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Micropolítica Do Desejo - A Clínica Do Sujeito Na Instituição de Saúde Mental COM GRIFOS
Micropolítica Do Desejo - A Clínica Do Sujeito Na Instituição de Saúde Mental COM GRIFOS
17332013 315
Micropolítica do desejo:
ARTIGO ARTICLE
a clínica do sujeito na instituição de saúde mental
Abstract The scope of this article is to discuss Resumo Este artigo tem por objetivo discutir
clinical practice issues in public mental health in- questões da prática clínica em instituições públi-
stitutions, their predicaments and potential con- cas de saúde mental, seus impasses e condições
ditions, focusing especially on the practice “among de possibilidade, focalizando em especial a prá-
others” of the psychoanalyst in this clinic. The tica “entre vários” do psicanalista nessa clínica.
mental health field is a field in permanent revital- O campo da saúde mental está em permanente
ization, marked by the heterogeneity and plurality construção, marcado pela heterogeneidade e plu-
of guidelines, permeated by tensions between old ralidade de orientações, permeado por tensões en-
models of care, new political objectives to redeem tre velhos modelos de assistência, novos objetivos
the minimum rights of a population traditional- políticos de resgate dos direitos mínimos de uma
ly excluded from social coexistence and proposals população tradicionalmente excluída do convívio
for a new clinical practice that concentrates on the social e propostas de uma nova clínica que privile-
individual. Based on clinical perceptions, I intend gie o sujeito. A partir de fragmentos clínicos, pre-
to approach the clinical treatment of the individ- tende-se abordar a clínica do sujeito na instituição
ual in a mental health institution, as well as the de saúde mental, assim como os desafios do traba-
challenges of working in a team, bearing in mind lho em equipe, frente às injunções da política de
the impositions of mental health policy arounnd saúde mental que orienta os serviços. A presente
which the services are structured. Our proposal is proposta é pensar a clínica como uma micropolíti-
to think of the clinic as the micropolitics of desire ca do desejo, que sustenta o trabalho cotidiano de
that sustains the daily work of monitoring the acompanhamento do percurso de cada sujeito em
course of treatment for each individual. tratamento.
Key words Mental health, Psychoanalysis, Indi- Palavras chave Saúde mental, Psicanálise, Sujei-
vidual, Clinic, Micropolitics to, Clínica, Micropolítica
1
Instituto de Psicologia,
Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. R. São
Francisco Xavier 524/10º
andar/Bloco B/sala 10024,
Maracanã. 20551-030 Rio
de Janeiro RJ Brasil.
doris@uerj.br
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Rinaldi DL
a clínica do sujeito possibilita a atenção psicos- sejo que coloca o sujeito como eixo do trabalho
social, a partir da implicação do sujeito em suas clínico.
próprias questões. Esta é uma das mais impor- Que desafios ele enfrenta? Por um lado, os
tantes contribuições da psicanálise ao trabalho desafios da clínica propriamente dita, com sua
coletivo e plural que se desenvolve nas institui- imprevisibilidade, em que o real da psicose e da
ções de saúde mental. Sustentar a clínica na ins- neurose grave acossa a todos, através de casos
tituição nessa perspectiva ética – que não é a da bastante graves de desamparo psíquico, aos quais
moral assistencialista, que já sabe de antemão o se soma o desamparo socioeconômico. Mas há
que é melhor para o sujeito – deve ser pensada também as dificuldades do próprio trabalho na
também como uma proposta política, em um instituição, fundamentalmente coletivo, que co-
processo que pretende reconstruir as formas de loca em questão a prática tradicional do psica-
assistência pública a saúde mental a partir de ou- nalista, habituado à solidão de seu consultório.
tros paradigmas. Na instituição ele está entre muitos “técnicos” e o
Nessa direção ético-política, é fundamen- seu trabalho, ainda que tenha a sua especificida-
tal refletir sobre os efeitos da clínica do sujeito de, não existe sem os demais, sendo no âmbito da
na organização dos serviços e nas articulações equipe, com suas múltiplas intervenções, que ele
da rede de atenção psicossocial, assim como nas pode se realizar. Não se pode, portanto, trabalhar
proposições da política de saúde mental. Cha- sozinho, ainda que a experiência seja sempre de
ma-nos a atenção, no momento, a maneira como cada um, que deve se responsabilizar pelo seu ato.
esta política vem sendo implementada, em franca No âmbito dos serviços de saúde mental, há
contradição com os próprios princípios nortea- diferenças na conformação e na orientação do
dores da reforma psiquiátrica, especialmente no trabalho das equipes, ainda que todas estejam
tratamento de usuários de álcool e drogas, mas subordinadas às determinações normativas da
que tem seus efeitos sobre todo o campo da saúde política nacional de saúde mental, que definem
mental. Assim, da macro à micropolítica, em que formas de gestão, objetivos, competências e dis-
esta última diz respeito aos jogos de força e poder positivos de tratamento.
no espaço das instituições de saúde mental, trata- Em alguns serviços a presença da psicanáli-
se de ressaltar o lugar da clínica no conjunto das se é mais marcante na direção do trabalho em
ações institucionais e na gestão dos serviços. equipe, em outros menos, mas não é essa a dife-
rença que importa, pois, como se pode constatar
Os psicanalistas “entre vários” na prática, a psicanálise não é uma panaceia, um
nas instituições de saúde mental antídoto para os problemas da clínica institucio-
nal, muito pelo contrário, ela os deixa à mostra.
A presença de psicanalistas nesse campo não Quando a psicanálise é tomada como um saber
é uma novidade e vem se consolidando desde o idealizado sobre a clínica, uniformizando o dis-
final do século passado nos diversos dispositivos curso, teremos certamente um reforço da resis-
criados pela Reforma Psiquiátrica, entre eles os tência. Talvez a diferença mais importante seja
Centros de Atenção Psicossocial, que acolhem os entre equipes mais abertas às interpelações do
casos de psicose e neurose grave, autismo e psico- inconsciente e outras menos abertas, em que a
se infantil, assim como os de toxicomania (CAPS, resistência se apresenta mais fortemente. De todo
CAPSis e CAPS-AD). modo, qualquer trabalho clínico que tenha como
Seu trabalho se efetiva no âmbito da equipe eixo o sujeito do inconsciente e seus efeitos, só é
multidisciplinar instituída pela reforma, a partir possível ao se levar em conta a resistência, como
da quebra da hegemonia do saber médico. É no Freud mostrou desde cedo9. Lacan acrescentou
bojo dessa transformação que os psicanalistas que, em última instância, a resistência está do
passaram a se inserir de forma mais efetiva nesses lado do analista10, o que é uma indicação bastante
serviços. Composta por profissionais de diferen- oportuna para pensar o trabalho institucional de
tes disciplinas, esta equipe enfrenta os desafios analistas e não analistas nas instituições.
do trabalho clínico-assistencial nos Centros de Há equipes em que o saber, ainda que pro-
Atenção Psicossocial, entre a reprodução de ve- veniente de diferentes formações disciplinares,
lhas práticas e o reinventar permanente que se apresenta-se de forma consistente, fechado a in-
impõe ao trabalho clínico. Nesse campo o psica- terpelações, cristalizando os discursos. Exemplo
nalista está entre “vários”, seja como técnico, seja disso são reuniões clínicas de discussão de casos,
na função de supervisor clínico, e é desses lugares conduzidas de tal forma que os sujeitos e seu so-
que ele deve sustentar uma ética fundada no de- frimento são tomados como objetos (casos), so-
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parte dos técnicos, a partir de um diagnóstico exames clínicos. Percebeu-se que o CAPS poderia
consolidado que para equipe reverberava sob a ser um local para que seu tratamento fosse efeti-
forma de um saber rígido e prévio acerca da usu- vado, em virtude dos sintomas que apresentava,
ária. Foi justamente o questionamento desse sa- como também poderia ser um local de enrique-
ber que possibilitou a construção de um espaço cimento de seu cotidiano, através das atividades
para a manifestação do sujeito em sua singulari- e do relacionamento com os seus frequentadores
dade, na medida em que sua fala passou a ser va- e técnicos. No tratamento intensivo, a frequência
lorizada, independentemente de um diagnóstico do usuário deve ser em tempo integral (das nove
definitivo. às dezessete horas), de segunda a sexta. Assim foi
combinado com Leila, a partir de sua participa-
2. Leila, dor e angústia ção nas oficinas: de culinária, bijuteria, mosaico,
geração de renda, café dançante e oficina da pa-
O segundo fragmento clínico refere-se a uma lavra, oficinas escolhidas pela usuária. Além das
situação comum nos CAPS, envolvendo aque- oficinas foi estabelecido atendimento individual,
les usuários que não participam das atividades semanal com a psicóloga/psicanalista, ao que se
coletivas da instituição, como oficinas, grupos seguiu, com a saída desta do serviço, o atendi-
terapêuticos, etc., mas que frequentam o CAPS, mento feito por uma estudante de psicologia.
permanecendo no espaço de convivência, mui- Inicialmente, a usuária participava de todas as
tas vezes isolados e/ou dormindo. Em geral, es- oficinas, fazia todas as atividades, chegava e saía
tas situações provocam angústia na equipe, por nos horários certos. Apresentava melhora em sua
trazerem à tona o seu não saber. A discussão so- higiene pessoal e melhora no ânimo para execu-
bre uma usuária nesta situação foi suscitada na tar as atividades. No entanto, queixava-se da dor
reunião de equipe do serviço por um profissional e falava pouco sobre ela com a equipe. Deixava o
que atuava na instituição há cerca de seis meses. momento do atendimento individual para falar
Ele questionou qual seria a função do CAPS para um pouco mais sobre sua dor. Em suas palavras,
esta usuária, que chamaremos de Leila, que fica uma dor de “angústia”. Após atendimentos indi-
deitada, não participa das oficinas e, por isso, viduais e no lidar cotidiano com Leila, a psicana-
nada produz13. lista que a atendia levantou a hipótese diagnósti-
Qual o trabalho possível com os usuários que ca de histeria.
não participam das oficinas e outras atividades Em meio diagnósticos divergentes, um fato
coletivas? De início, pode-se dizer que são situ- era certo: tratava-se de um sujeito que se quei-
ações que demandam uma condução clínica que xava de uma dor muito forte na barriga, que a
acompanhe o sujeito em outros espaços, respei- angustiava e angustiava a equipe. Leila apresenta-
tando a sua diferença, aliada a uma convocação va dificuldade de elaborar algo sobre a dor, bem
à equipe a arriscar-se a novas maneiras de tra- como a equipe demonstrava dificuldade para
tamento. acolher o seu sofrimento. Leila gradualmente
Leila foi encaminhada ao CAPS pela equipe deixou de participar das oficinas e passou a des-
de psiquiatras da instituição hospitalar na qual se cuidar-se do corpo. A equipe questionava o que
encontrava internada devido aos maus cuidados Leila tinha.
com seu próprio corpo e irregularidade de sua Foram realizados exames clínicos, sem êxito,
higiene pessoal. Apresentava algumas lesões pru- para identificar a dor. Então, como acolher o seu
riginosas na pele como escabiose e lesões no cou- sofrimento? Oferecer uma escuta para que ela fa-
ro cabeludo devido à pediculose. Demonstrava- lasse sobre a dor era uma possibilidade e essa foi
se inapetente, apática, pouco reativa e queixan- a aposta encaminhada pela psicanalista, seguida
do-se de fortes dores abdominais. Após algumas pela estudante de psicologia que a substituiu. Lei-
semanas de internação foi encaminhada para o la percebia não ter espaço para falar de seu sofri-
CAPS com o diagnóstico de episódio depressivo mento nas atividades das oficinas. Relatava que
moderado e retardo mental leve. “incomodava” a equipe ao queixar-se da dor. Di-
Ao chegar ao CAPS foi atendida pela equipe zia que “falar sobre a dor, dói, dói muito”. Preferia
de acolhimento constituída por uma psicanalista ficar deitada no espaço de convivência “remoen-
e uma técnica de enfermagem. A equipe a intro- do a dor”. Quando participava da oficina era para
duziu no tratamento intensivo após algumas en- “prender a dor”. Repetia que “tinha que aguentar
trevistas com ela e sua família, devido à queixa de tudo calada”.
uma dor abdominal que não correspondia a uma Em meio a esta dinâmica clínica, a maioria
dor orgânica, pois já tinha sido investigada em dos profissionais da equipe preocupava-se em
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e as atitudes de repulsa e ódio apontavam para locamentos discursivos que possibilitem a ela-
um quadro erotomaníaco. Após muitas tentati- boração, no âmbito da equipe, de novos saberes,
vas, o médico desistiu de atender à usuária. sempre não todos.
Durante meses Flávia acossou a equipe e os Para o psicanalista, esta prática é antes de
usuários. Porém, a posteriori, foi possível perce- tudo, formadora, porque é diante do real e do
ber que muitas das atitudes e atos de Flávia foram vazio de saber que ele deve sustentar a sua fun-
uma resposta ao funcionamento clínico-institu- ção, inventando um saber fazer ali, cujos efeitos
cional que, em alguns momentos parecia rivali- só serão recolhidos a posteriori, seja diretamente
zar com Flávia. A crescente tensão que o compor- na clínica com cada sujeito ou no trabalho em
tamento de Flávia trazia ao funcionamento do equipe.
CAPS e à equipe fez com que a resposta a essas Lacan ao referir-se em Radiofonia16 aos qua-
situações fossem imperativos institucionais e leis tro discursos através dos quais pensa o laço social
rígidas que pareciam evidenciar um Outro insti- – o discurso do mestre, como avesso do discurso
tucional sem furo. do analista, o discurso da histérica e o discurso
Assim, a relevância deste fragmento clínico universitário – afirma que é o inconsciente, com a
está no fato de ele apontar o quanto os membros sua dinâmica, que precipita a passagem brusca de
da equipe, diante de passagens ao ato graves, res- um discurso para outro. Na clínica institucional
ponderam de forma normativa, fixando-se aos pública essa indicação é particularmente valiosa,
aspectos fenomenológicos do caso e perdendo pois não se trata de defender a prevalência de
de vista a dimensão clínica do agir de Flávia. Um qualquer discurso que seja sobre os outros, nem
dos exemplos da atuação da equipe, aí incluída a mesmo o discurso do analista, mas de ressaltar
direção, foi a suspensão de Flávia do cotidiano do a presença dos quatro discursos: o discurso do
CAPS. Suspensão que ela jamais cumpriu e que mestre, que funda a instituição, o discurso uni-
acentuou sua postura hostil e agressiva com o co- versitário que orienta o seu funcionamento e a
letivo do CAPS. burocracia, o discurso da histérica que questiona
Em todos os fragmentos apresentados, o o saber constituído e o discurso do analista que
que se observa são os impasses da clínica que dá lugar à fala do sujeito17. É o próprio exercício
questionam o saber constituído, desde a dúvida da clínica, em seus impasses, que traz a tona os
diagnóstica até as diferentes propostas de dire- furos desses discursos, ou seja, o seu real, e per-
ção do tratamento, evidenciando os momentos mite uma circulação discursiva em que o saber se
de resistência. O que eles nos ensinam é que na mostra em sua impotência.
clínica institucional (mas não só nela) os saberes Nessa prática, em que se combinam a clí-
da equipe são constantemente furados pelo que nica singular de cada sujeito, na psicanálise em
vem do real, trazido pela própria clínica, onde intenção, e o trabalho com a equipe, no âmbito
algo de insuportável se apresenta. Os chamados da psicanálise em extensão18, o psicanalista opera
casos difíceis, considerados intratáveis, que mo- a partir de uma ética que coloca o sujeito e seu
bilizam e angustiam a todos, são exemplares para desejo como eixo do trabalho. Mas é principal-
movimentar a equipe, porque eles colocam em mente no trabalho em equipe que essa ética pode
questão sua suposta suficiência ou competência. ser sustentada como uma política, na medida em
A repetição de protocolos já instituídos, através que ela incide justamente sobre o que não anda,
dos quais se procura apaziguar a angústia, já não o que faz obstáculo, sobre o impossível do real,
funciona. no sentido de sustentar esse furo no saber que fa-
Mas é justamente nesses impasses, nas difi- vorece o reviramento discursivo, que movimenta
culdades de conduzir o trabalho com determina- a instituição e dá lugar à clínica que é sempre de
dos sujeitos que uma abertura se instaura, o que cada sujeito.
é especialmente importante para impedir o imo- É nesse sentido que ele pode também contri-
bilismo tão frequentes nas instituições. Um vazio buir para a reflexão sobre a política pública para
de saber se abre e é nessa brecha que se pode in- a saúde mental, em seus avanços e retrocessos,
serir a novidade que a psicanálise traz: de que há levando em conta, em especial, a micropolítica
saber inconsciente, isto é saber não sabido, que que sustenta o trabalho cotidiano das equipes no
está do lado do sujeito e não do lado dos técnicos. enfrentamento das questões que tanto o real da
É ao levar isso em conta que podem ocorrer des- clínica quanto o real da política impõem.
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