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hérnia graccoliveira

©2013 GRACCOLIVEIRA
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direção de arte:
daniel minchoni
hérnia
primeira edição. 2013
a Rodrigo Alberto Nunes
“(...) ‘Quem quiser nascer tem que destruir
um mundo’ — eis a mensagem — destruir no sentido
de romper com o passado e as tradições já mortas,
de desvincular-se do meio excessivamente cômodo
e seguro da infância para a consequente dolorosa
busca da própria razão de existir: ser é ousar ser... . (...)”.

Ivo Barroso comentando ‘Demian’, de Hermann Hesse.


a luz que habita a caneta
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é pouca pra escrever manhãs

era negra
a neve que caia
onde as palavras ardem em despedaços
todo verso é crasso
e as letras
maltrapilhas
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se flagelam

abandona ali tua boca imunda de meiguices


exercicim pra não ler (em silêncio)
?, . a prol dos de campos e galáxias
:
rebelde sem casa rebelde zen
bebe de tempos a sede que
recebe de relê de ventos em brasa
(dá causa ao caos a conseloquência)
pesca sóis sem anzóis
soca o acaso
o oco o asco
ousa asa além do azul
pousa pausa apaga e evapora o riso ósseo e a voz fóssea fática
pisa as próprias pálpebras
pesa e apavora o alvoroço da pala falavra pela primeira pedra
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arte ira mira atira atreve e trava atrasos


escava enquanto escreve enquanto prostra enquanto astra
arrisca enquanto resta a ísca fosca faísca
cospe a pólvora o pó o lem e molda
a lama dalvorada
palavra pedra epilética
branca mudez entre letras
abismo contido num O
adaga afriada nágua
língua ferida viva
estrela cadente rasgando as nuvens do céu da boca
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mantras e blasfêmias
nadam raso
na saliva
olhares alagáridos de lonjúrias
a manhã ontenrrada em nuas escuridões
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(num qualquer jardim


pode nascer um cacto)
pro cacto
qualquer deserto
é jardim
entre os
cabelos do
vazio
todos os
dedos se perdem

quantas faces cabem


na sede de um tapa?

morremo
-nos
uns
aos outros
roemo-nos
e somos um
erro
espelho envolto em nuvens
- o hálito não mente

fôlego: a dança
do fogo ao redor
do gelo
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as unhas dos
olhos são
incortáveis
minha sombra me arrasta pela língua
por epiléticas ruas sou levado
de tarso se debate em garrafas e não se cala
há motores guturais em marcha fúnebre
o sol
silencioso e surdo
se move
não sabe que horas são
as nuvens nos cegam
mundo só se vê à beira da janela
à traz da tela
entre o balé do limpador do para-brisas
brisas há
o verde envenena a cidade com vida
poucos sabem menos querem
dos poros do asfalto a escuridão mais pura
olhos néon não bastam nem morna lágrima alguma bastará
minha sombra gargalha
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e não me enfraquece
luto é
lucro e
tudo posso
quem dirá o que ninguém ouviu? dia
logo ausente a lua uiva pra matilha
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e deseja explodir

o breu na palavra é absoluto


19 graccoliveira

( [ tanta
mudez dentro
do canto quanto silêncio envolto em grito
] )
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roendo a raiz dos sorrisos não nomeias teus demônios. neutroutro:


mesmo opaco e roto rosto brutosco desfeito na eloquência das mãos
(que não sabem chagas nem o prego das carícias).
anjos que se sonham homens, homens que se querem deuses,
deuses que se sabem vermes. seu nome, seu gesto, sua fome,
sua voz que some, seu sonho, seu vício, sua paixão mais cara,
sua máscara mais cara, sua tara sem cura, suas caras. suas
palavras: as mais belas mentiras muito bem escritas. poemas
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fáceis, mulheres de ouvidos frágeis. seu riso comprado, sua


fala despudorada, seu medo inda que oculto muito bem
alimentado, seu sepulcro caiado, seu tênis nike, seu lucky
strike, seu ray ban. seus dentes brancos, seus olhos claros
amordaçados, seu coração plástico,
e
a voz do nosso avesso
canta em nós desde o começo
diz o fim (escorre
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à margem) dessa estrada


que nos percorre
e leva a nada
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o ruído aguado das perguntas


a boca maior que a palavra
menor que a sede
o silêncio seco da resposta.
uns cegos me disseram:
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somos coisas que choram,


objetos que podem sangrar.
e é tudo uma questão de ponto de vista.
meu lar é a casa em que nunca estive
um lugar pequeno
mal iluminado
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e com janelas maiores que as paredes

o instante onde abriguei a fúria


de todo afago e o mel
de toda lágrima
quando anoitece a casa dói mais
silêncio cresce
e vêm crianças enterrar retratos no jardim
[ outras crianças dormem nos retratos ]
chove dentro
águas de ontem desfazem o vazio
na poeirausência que impregna o chão da casa
permanecem pegadas
de Ninguém
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a casa toda se faz brasa


e queima
mora em mim
trintaquatronovedois
o peso da pata do touro
sobre o ouro o jarro
o cachimbo o barro
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do domingo
cascos cavam fundo
chifres furam muros
e o mundo é fraco vasto
e mudo
vens numavalanche
desavessar o passo do meu verso
quando a noite geme nas janelas
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uma vela débil se nega a dormir:


tua voz
que ao ventre dumas nuvens me arremessa
se te navego
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amor
sonho naufrágios
o profundo de ti em meus pulmões
águas rubras
sangue teu em que me sei cardume
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[amor é um Deus
que me devora
e me dá de comer]
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todos orixás me disseram


que o poeta mentiu
o riso vem feito ferida
há lodo em cada palavra clara
ondas espelham e espalham o vazio
(um punhado de açúcar
lançado ao mar
não demora vira sal)
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que voz habitaria a rouquidão das marés?


um nome se fecha em pétalas à sete palmos do meu peito
uma canção qualquer estilhaça a lua
não estarás aqui quando a noite vier
serei visto entre os que se perdem
e não direi teu nome

ao cheiro de tuas mãos


uma canção percorreria minha pele?

não fecharei meus olhos


colhi teu nome nos lábios da ferida
nos labirintos frios da escuridão
teu nome agonizante fruto podre doce ainda
ecoa fome
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asfixia
agora em mim em teu lugar

por isso não o direi


não mentirei sorrisos em minha história
não me desculpe, moça, mas um cachorro ferido e sujo
chama mais minha atenção que tua voz, tuas unhas,
teu cabelo, teu estilo de vida, teu encanto. pois nada
disso é de fato teu. me apresente às suas inimigas. quero
conhecer quem você despreza. fácil posso ser amigo dos
caras que você dispensa. dar a você o que você quer seria,
indiscutivelmente, um prazer, mas qualquer pedra é única
e eu te encontro- cópia copiada- em qualquer esquina
desse e de qualquer lugar. e não me culpe, moça. o lixo
que a chuva leva pela guia, o hálito podre de cerveja com
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que acordei hoje... qualquer coisa onde há verdade é mais


bonita que você.
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cabe muito abismo num abraço


despedaços do passado
esperneiam e mordem
despeço-me sem alarde
o verso despe a noite
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adia o dia
meço em falso o passo que me hesita
já é tarde
direi coisas terríveis quando amanhecer
e as pedras e as nuvens
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e tudo mais que vive há de dizer comigo


relógios e bússolas e calendários
não existirão quando a manhã ser

pra derrubar paredes bastará olhar através delas


hérnia
os filhos da mudez não entenderão
mas nem todo labirinto é via crucis
parto sem dor
nasço na procura do que sou sem me saber
pra não me ser estranha a história que o espelho diz
38 hérnia

assim eu quito a dívida:


enxergo dádiva onde há dúvida
direi coisas terríveis quando amanhecer
e as pedras e as nuvens
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e tudo mais que vive há de dizer comigo


relógios e bússolas e calendários
não existirão quando a manhã ser

pra derrubar paredes bastará olhar através delas


hérnia
os filhos da mudez não entenderão
mas nem todo labirinto é via crucis
parto sem dor
nasço na procura do que sou sem me saber
pra não me ser estranha a história que o espelho diz
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assim eu quito a dívida:


enxergo dádiva onde há dúvida
plantarás mesmo teus pés aí? o vento tem uma canção pra
você. bater de portas, árvores alvoroçadas. tua sede inunda
teus gestos, teus olhos opacos, e tudo à volta reconhece a
melodia. as cortinas da tua casa, a bandeira da tua pátria,
os cabelos da tua preta, essas folhas secas que pisas. estás
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disposto a ouvir? o vento sussurra um convite, uma ofensa. e


não espera por ti. em lugar algum esperam por ti. tudo além
é cúmplice do descompasso, da dissonância desse canto. teu
silêncio, até. principalmente. pretendes dormir esta noite?
tens coragem? nem tua surdez é mordaça pra essa voz.
se passeares a língua em tua pele, a queimarás no sabor
da história, no azedume dos dias que transpiras. a roupa
que a pele cobre é quase podre mas respira. repara num
cigarro afogado em cinza própria, repara atentamente no
pavor que a chuva te provoca. depois, se ainda tiveres voz,
poderás argumentar. por hora, saiba: vida é a dor de que
não somos dignos, e os calendários mentem, e os relógios
portam maldições, e ninguém é de onde está. pedra é fonte
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e grã finale. calculas? daí o absurdossoluto: chegarás a ti


despedaçado. repara. cabe mais morte num menino do que
vida num poema.
travessia
01
perdi o espelho em que guardei meus olhos
em antigos cadernos guardo a imagem do que virá
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lábios cegos dizem rostos sem nomes

aprendi a andar
descalço
e com meus pés
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02
meu passo é certo nesse descaminho:
o vento me convida e as aves dizem ‘vai!’
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03
na rota das nuvens
sem mapa nem bagagem
sou tudo que posso tocar
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roendo a raiz dos sorrisos não nomeias teus demônios


neutroutro: mesmo opaco e roto rosto brutosco
desfeito na eloquência de umas mãos virgens de pregos
o mar tem algo a me dizer
sobre essa coisa de ir e vir
se abandonar
se confundir

o mar tem algo a me ensinar


sobre fúria e escuridão
e sabe bem me convidar à pesca

o mar não sabe sua extensão


ensina profundeza
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se afoga
em si
e se retorce
e
me sorri
depois da pedra
o canto se tornou questão de honra
na inutilidade das asas
48 hérnia

imaginando a nuvem
ninho
agonizou sorrindo à gaiola vazia
4:20 p.m
é verde a voz da paz que se aproxima
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o sopro da brisa desfaz trevas


dilata perigos e pupilas
abrasa o olhar

ao som do nome de santa maria joaninhas voam águias


desafinar a cor das tempestades
reabrir feridas
lembrar seus nomes
olhar o mar em vez de prédios
pra saber nosso tamanho
50 hérnia

e finalmente
tendo tudo surdo à voz do atraso
adormecer
matilhas de
cordeiros
devoram o sol
o poema
não responde
de olhos boquiabertos
um garoto mergulha
e bebe em suas
próprias mãos
- um
51 graccoliveira

punhado
de mar perdido
nelas –

a folha em branco ainda grita

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