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Sumário
Introdução ..................................................................................................................................... 4
O advento do ciberespaço e as linguagens líquidas ...................................................................... 6
Sobre o lúdico, o jogo e o jogar .................................................................................................. 10
Relevância cultural, pesquisa e mercado .................................................................................... 13
Classificações e a hibridização das linguagens ............................................................................ 15
Games: características fundamentais ......................................................................................... 18
Narratologia versus Ludologia ..................................................................................................... 22
Possibilidades de experiências nos games .................................................................................. 27
Diferentes possibilidades existentes ........................................................................................... 30
Primeiridade em Flower: o acaso extático .............................................................................. 32
Secundidade em EyePet: a relação com a realidade ............................................................... 41
Terceiridade em Heavy Rain: o autoconhecimento ................................................................ 50
Reflexões finais ........................................................................................................................... 64
Referências das imagens ............................................................................................................. 67
Bibliografia selecionada .............................................................................................................. 70
Anexos ......................................................................................................................................... 73
Fichas técnicas dos games analisados .................................................................................... 73
Vídeos demonstrativos ........................................................................................................... 74
4
Introdução
1
“Fliperama é a designação utilizada para as máquinas criadas no final do século XIX nos Estados
Unidos (pinball), que consistem de dois ou mais flippers (braços) com a função de rebater uma bola –
que, à medida em que se encosta em pinos, plaquetas e outros objetos, acumulam pontos – de volta para a
mesa de jogo sem deixa-la passar por entre os dois flippers, nem cair em canaletas laterais. No Brasil
acabou se tornando a designação genérica para arcades (e, em alguns casos, para toda espécie de games),
bem como para o tipo de estabelecimento onde normalmente se encontra uma grande concentração dessas
máquinas” (NESTERIUK, 2009: 26).
5
que podem variar desde a satisfação contemplativa de um cenário bem resolvido a uma
reconstrução de identidade por parte de um personagem-herói bem elaborado.
Atualmente, vive-se o apogeu da história dos videogames. Santaella, em seu
livro Mapa do Jogo, apresenta de forma muito relevante a importância cultural (e
econômica) atual dos games. Segundo ela, os games são hoje “os grandes estimuladores
e responsáveis pelo avanço tecnológico da indústria do entretenimento, aproveitando-se
das pesquisas de ponta, ao mesmo tempo em que as disponibilizam com grande
rapidez” (SANTAELLA, 2007: 407). Um bom exemplo disso são os títulos lançados
que fazem uso da tecnologia da realidade aumentada – como o jogo EyePet, que será
analisado – e do mapeamento de ambientes e pessoas – que ocorre nos jogos
desenvolvidos pela Microsoft compatíveis com seu dispositivo sensorial Kinect, para o
console xBox.
Além de estimular avanços tecnológicos, outro fator importante é a sua posição
na economia: dentro da indústria do entretenimento, os games estão em primeiro lugar –
acima até mesmo do cinema. Já na indústria mundial, eles ocupam a terceira posição,
atrás apenas da indústria bélica e da automobilística.
Já ao focar a atenção para o meio acadêmico, as estatísticas são bastante
desanimadoras. Os games ainda sofrem um forte menosprezo crítico, sendo vistos como
algo banal, vulgar e nocivo, principalmente por estimular comportamentos agressivos e
a violência – fato erroneamente postulado e divulgado nas mídias em geral.
Vale citar a opinião de Marcus Bastos, quando ele diz que “é possível supor
que o século XXI terá, na prática de jogar por meio do computador, uma forma de
entretenimento tão dominante quanto os formatos audiovisuais foram no século XX”
(2009: 148), fato este que a própria economia do entretenimento já começa a
comprovar. E mais ainda, Henry Jenkins (apud BASTOS, 2009: 148) diz que “o
problema com a maior parte dos jogos contemporâneos não é que sejam violentos, mas
sim que sejam banais, formulaicos e previsíveis”.
Um dos objetivos deste trabalho é justamente apresentar – através da análise
semiótica – três games que caminham na contramão da crítica de Jenkins e, com essa
reflexão, alimentar e expandir essa área de pesquisa ainda tão carente, não só no Brasil,
como no mundo.
6
2
Por “casa maluca”, Murray define qualquer jogo computacional de quebra-cabeça baseado num labirinto
no qual o jogador é levado através de um espaço disposto em múltiplas camadas, “que lembra vagamente
um palácio das ‘Mil e Uma Noites’”. (MURRAY, 2003: 130) O termo se refere às atrações geralmente
presentes em parques de diversões, nas quais os participantes também são convidados a explorar diversos
ambientes, como um labirinto de surpresas.
9
meios eletrônicos é procedimental. O autor de um game não cria cenas específicas, mas
“um mundo de possibilidades narrativas”. Em outras palavras, o autor é responsável
pela criação de uma estrutura de estruturas possíveis.
3
A tabela com todas as definições utilizadas pelo autor encontra-se em seu artigo “The Game, the Player,
the World: Looking for a Heart of Gameness” (2003), disponível em:
<http://www.jesperjuul.net/text/gameplayerworld/>. Acesso em 2012.
4
Tradução de João Ranhel (2009: 12).
12
peças montáveis”, onde o jogador pode interagir com, alterar e até mesmo personalizar
suas estruturas básicas, funcionando como complexas caixas de peças virtuais de Lego.
Para Juul, a afinidade entre os jogos e os computadores tem sua principal causa
no fato dos games serem um fenômeno transmidiático: não são necessariamente
associados a uma plataforma específica, mas sim ao processamento computacional de
dados. E mais: como os jogos têm nas regras suas estruturas primordiais, o computador
se tornou uma excelente plataforma, devido à sua alta capacidade de processamento.
(POLTRONIERI, 2009: 165), o autor diz que “a arte muitas vezes tem o poder de
antecipar os desenvolvimentos tecnológicos bem antes de uma geração”.
Sob outra perspectiva, em seu estudo Cultura da Interface, Steven Johnson
acredita que os meios modestos do presente fazem com que estejamos para o videogame
do futuro assim como a obra de Melié está para a de Welles no cinema (JOHNSON
apud NESTERIUK, 2004). Para o autor, os jogos de videogame fornecem para nós uma
das maneiras mais claras e diretas de vislumbrar o futuro através dos limitados meios
disponíveis no presente.
Enquanto área de pesquisa, Nesteriuk apresenta três linhas principais de
estudos de games: os estudos funcionalistas, os estudos técnico-tecnológicos e os
estudos formalistas. Os primeiros partem do estudo das causas, consequências e efeitos
dos jogos – o meio é a mensagem – e estão divididos entre visões apocalípticas
(neoluditas) e integradas (tecnoutópicas). Os segundos têm foco no desenvolvimento e
na exploração da inteligência artificial, na computação gráfica, na programação e nas
demais ciências técnicas e computacionais. Para eles, o videogame é usado para fins
experimentais, como um laboratório de novas linguagens e tecnologias – o jogador é
visto como explorador das potencialidades tecnológicas. Os terceiros e últimos,
formalistas, concentram seus estudos nas questões referentes à linguagem, à estética e à
retórica do meio – o meio não é a mensagem; seus pesquisadores investigam as formas
expressivas e as potencialidades intrínsecas do videogame. Infelizmente, é a linha de
estudos onde encontra-se o menor número de pesquisadores (NESTERIUK, 2009: 23).
Um dos motivos para essa escassez, segundo o próprio autor, é o fato dos games serem
hoje “um dos fenômenos tecnológicos de maior interdisciplinaridade e complexidade
para se estudar”.
Nesteriuk acredita que, ao serem incentivados os estudos formalistas e
qualitativos sobre o videogame, possa ser criada uma “vida inteligente” dentro dele, a
partir do momento em que ele seja pensado enquanto meio expressivo interativo,
imersivo e comunicacional. Sua produção, no entanto, esteve há muitos anos na
contramão desse ideal.
A respeito da produção dos games, Johnson (apud NESTERIUK, 2004)
acredita que vivemos sob uma “tirania do mercado”, a qual dita a produção de acordo
com estatísticas de venda e não de investigação e inovação experimental. Segundo o
autor, uma possível saída para esse “tiranismo” estaria no desenvolvimento de uma
geração de vanguarda digital ativa e participativa, que seria capaz de desenvolver e
15
oferecer alternativas significativas a esta situação. Ele acredita que isso poderia se dar
de duas formas: através da subversão do meio e da abertura de novas possibilidades
exploratórias.
Outro problema fortemente enraizado na cultura midiática é o menosprezo
crítico com relação ao videogame em geral. Visto como algo banal, vulgar e nocivo, é
erroneamente acusado de estimular comportamentos agressivos e violência:
18
Antes de partir para a análise dos games propostos, uma melhor compreensão
de seus aspectos fundamentais faz-se necessária. Uma vez compreendidos os alicerces,
a reflexão sobre as diferenças e dominâncias específicas se tornará mais clara. Como
ponto de partida, tratar-se-á a respeito do tempo no universo dos games.
Muitos games têm por fator básico a projeção de um mundo virtual, no qual o
ato de jogar significa envolver-se em uma brincadeira de faz-de-conta. Nela, aquele que
joga apresenta-se tanto como si mesmo quanto como um outro – no papel que lhe é
designado pelo mundo virtual. Essa dualidade, segundo Juul (2004), reflete-se no tempo
do jogo, que pode ser dividido entre o tempo do jogar (o tempo que o jogador leva para
jogar) e o tempo do evento (o tempo que passa no mundo virtual do jogo).
Na jogabilidade, o fator fundamental dos jogos consiste em sua mudança de
estado, ou seja, o movimento entre o estado inicial, no qual uma ação ainda não foi
decidida, e o estado seguinte, consequente da ação já realizada. O jogo pode, portanto,
ser considerado uma máquina de estados, através do qual o jogador apenas interage com
seu estado atual. Em um jogo cujo tempo de evento equivale ao tempo do jogar, ou seja,
um jogo em “tempo real”, o jogador atua como si próprio ao mesmo tempo em que é
um personagem do mundo virtual. Em jogos de tiro tem-se um claro exemplo do tempo
real 1:1 – o tempo de jogar equivale ao tempo do evento: ao mesmo tempo em que o
jogador pressiona um botão de seu controle, um tiro é disparado pela arma virtual no
mundo do game.
Outros elementos, que também interferem na noção do tempo no game, são as
6
chamadas “cut-scenes” – animações narrativas não-interativas que são disparadas no
desenrolar do jogo e que complementam o repertório do jogador – e a função de salvar
(“save game”), a qual permite ao jogador gravar o estado do jogo em que se encontra
para que continue posteriormente – ocorre uma pausa no tempo de evento que pode ser
retomado posteriormente sem perda de informação alguma para o jogador 7.
6
“Cut-scenes depict events in the event time (in the game world). Cut-scenes are not a parallel time or an
extra level, but a different way of creating the event time. They do not by themselves modify the game
state - this is why they can usually be skipped, and why the user can’t do anything during a cut-scene.
While action sequences have play time mapped to event time, cut-scenes disconnect play time from event
time” (JUUL, 2004).
7
Para o pesquisador Chris Crawford, a necessidade da possibilidade de “salvar” um jogo indica uma falha
em sua jogabilidade. Para ele, “experienced gamers have come to regard the save-die-reload cycle as a
normal component of the total gaming experience... Any game that requires reloading as a normal part of
19
the player’s progress through the system is fundamentally flawed. On the very first playing, even a
below-average player should be able to successfully traverse the game sequence. As the player grows
more skilled, he may become faster or experience other challenges, but he should never have to start over
after dying.” (CRAWFORD apud JUUL, 2004).
20
Para o autor ainda, outro aspecto fundamental para a compreensão dos games
encontra-se na questão da interface, uma vez que ele considera a relação homem-
máquina uma das mais férteis enquanto campo de criação. Nesteriuk diz que o ideal, a
cada novo jogo, é a interface ser trabalhada de forma que ao mesmo tempo repita
elementos passados – para que o jogador a assimile a seu repertório – assim como
apresente novas estruturas de interação. Ele também acredita que o videogame esteja
sob o domínio da coautoria, uma vez que cada jogo jogado é único, “não apenas em sua
8
“A sigla CAVE vem de Cave Automatic Virtual Environment, aqui conhecida por Caverna Digital.
Trata-se de um pequeno ambiente onde são projetados gráficos tridimensionais em cada uma de suas
superfícies – paredes, teto e piso. Através de um dispositivo, esses gráficos são atualizados em tempo real
pela pessoa imersa na caverna, que pode explorar e interagir com ambientes e pessoas virtuais.”
(ANTUNES: no prelo).
21
instância mental ou interpretativa (cada jogador tem uma leitura), mas em sua própria
existência enquanto jogo” (NESTERIUK, 2009: 28). A obra do videogame é, portanto,
o resultado do próprio jogo jogado.
Com isso, cabe ao designer de games a criação e disponibilização de uma
estrutura necessária do jogo9, composta por um texto aberto à interatividade do jogador;
em outras palavras, como dito anteriormente sobre a autoria em games, o designer de
jogo é responsável por desenvolver uma estrutura de estruturas possíveis10. A
interatividade, além de possibilidade de imersão, deve funcionar como possibilidade de
construção de obras abertas e dinâmicas, nas quais os jogadores nunca possam se
certificar de que um determinado caminho narrativo tenha sido percorrido em sua
totalidade.
jogador, o autor considera que essas mesmas ações tornam-se contextualizadas por elas.
Segundo ele, as regras somam significado e possibilidades de ações, ao configurar as
diferenças entre movimentos e eventos possíveis.
Para finalizar a respeito dos aspectos fundamentais dos games, Sherry Turkle
(apud NESTERIUK, 2003) levanta hipóteses interessantes sobre como a disseminação
do uso dos computadores pessoais e da imersão no ciberespaço vêm alterando a nossa
própria identidade. A autora defende que, além de ser uma ferramenta, o computador
também oferece a nós tanto novos modelos de mentalidade como novos meios nos quais
podemos projetar nossas ideias e fantasias. Em outras palavras, a multiplicidade do
sujeito pós-moderno pode ser realizada de forma fluida no espaço virtual. A autora,
entretanto, alerta: se por um lado a simulação permite que os jogos sejam transformados
em realidade, por outro, ela também permite que a realidade seja transformada em jogo.
não ocorre sem a perda de elementos fundamentais, como a interação. Nos games, a
ligação entre a história e o discurso faz-se essencial.
Já a respeito do tempo, a narrativa pode ser dividida entre dois tempos
distintos: o tempo da história (o tempo dos eventos contados, em sua ordem
cronológica) e o tempo do discurso (o tempo do ato de contar a história, na ordem em
que é contada). Em uma narrativa verbal, o tempo gramatical deve necessariamente
apresentar uma relação temporal entre o tempo do discurso e o tempo da história – de
maneira geral, existe um distanciamento que torna clara a diferença entre os tempos (por
exemplo, histórias que começam com "Era uma vez, há muito tempo atrás...").
Por outro lado, ao se considerar o tempo nos games, deve-se levar em conta o
agora: dificilmente existe o distanciamento entre o tempo da história e o tempo do
discurso. Nos games, os eventos representados não podem já ter ocorrido ou serem
passados, uma vez que os jogadores podem influenciá-los diretamente, em tempo real.
Dessa forma, Juul comprova que a interatividade e a narrativa são dois
aspectos impossíveis de serem simultâneos: “it is impossible to influence something that
has already happened. This means that you cannot have interactivity and narration at
the same time”. O autor ainda reforça sua teoria ao mencionar que, na maioria dos
games, operações narrativas como flashback ou flash forward são praticamente
inexistentes: não faria sentido algum se o jogador pudesse, por exemplo, “morrer” com
seu personagem em um flashback, uma vez que ele sabe que o mesmo personagem se
encontra vivo no futuro.
A questão do agora também demanda um esforço por parte do interator.
Quanto mais aberta à interpretação é uma narrativa, maior é a ênfase no esforço do
leitor/espectador no agora. A diferença, entretanto, entre o agora das narrativas e o
agora dos games é que o primeiro diz respeito à situação em que o leitor, ao se esforçar
para interpretar, obscurece a história – o texto transforma-se completamente em
discurso e, consequentemente, as tensões temporais são aliviadas. Já o agora dos games
significa a convergência do tempo da história com o tempo do jogar, sem que o
contexto – o game – seja obscurecido pelo jogador.
Para concluir, Juul acredita que 1) um jogador pode contar uma história a
respeito de uma sessão de um game, 2) muitos games contêm elementos narrativos e,
em muitos casos, os jogadores podem jogar com a finalidade de assistir a uma cena
(cut-scene) ou a uma sequência narrativa; e 3) os games e as narrativas compartilham
alguns aspectos estruturais. No entanto, seu objetivo em seu artigo é demonstrar que 1)
25
O pesquisador João Ranhel, por sua vez, discorre a respeito das naturezas
diferentes das narrativas e dos games: “Narrativas descrevem ações passadas. Jogos são
um agora, um fazer acontecer no momento em que são jogados. Narrativas baseiam-se
em fatos que já ocorreram, suas relações de causa e consequência” (RANHEL, 2009:
17). No entanto, o autor alerta que quando ambos migram para os computadores,
começa a haver uma fusão: “da literatura com narrativa linear passando por aplicativos
multimídia e em hipermídia; dos games que são puras estruturas até os jogos de
aventura e dramas interativos”. O que vale perceber, para o autor, é que quanto mais
narrativo for o game, menos o jogador será agente (menos ele poderá agir e modificar o
resultado da narrativa, como em RPGs gráficos); por outro lado, quanto mais o game for
uma estrutura pura, mais o jogador será agente (mais ele poderá interferir no resultado,
como em Tetris).
Figura 1. O diagrama de migrações de narrativas e games para meios computacionais, de Ranhel.
Para Jim Andrews, o próprio termo “imersão” é usado de forma mais literal
quando relacionado aos games do que à literatura. Mesmo assim, o autor adverte que o
termo deva permanecer em seu sentido figurativo: “somos quem somos onde estamos
quando estamos, e não há como contornar esse fato” (ANDREWS, 2009: 141).
Para finalizar, outra autora que trabalha a questão das narrativas em games é
Marie-Laure Ryan. Em seu artigo “Beyond Myth and Metaphor” (2001), Ryan relaciona
a questão da identidade com o distanciamento existente nos livros:
27
Uma última reflexão antes da análise dos games propostos será a respeito das
possibilidades de experiências que lhes são inerentes. De acordo com Murray, o ato de
tornar-se uma personagem em um contexto de ficção deveria ser uma experiência
prazerosa e, ao mesmo tempo, instrutiva. Ao relatar sobre o mito do Holodeck, a autora
o descreve como um local seguro onde o interator poderia confrontar-se com seus
sentimentos mais complicados, que de outra forma seriam suprimidos. O Holodeck,
portanto, permitiria ao interator o reconhecimento de suas fantasias mais ameaçadoras,
sem que elas o paralisassem (MURRAY apud RYAN, 2001).
Outra possibilidade bastante recorrente nos games é a construção de sua
narrativa baseada na estrutura mítica da jornada do herói, de Joseph Campbell. A
estrutura é principalmente aplicada em games de aventura e de RPG: neles, tem-se a
missão do herói de atravessar um território repleto de perigos os quais ele deve enfrentar
para conquistar um objeto desejado. Pode-se, portanto, pensar que uma vez que a
jornada do herói funciona como metáfora da vida, tem-se nos games os ensaios para ela.
28
11
Por "fenômeno" entende-se "tudo aquilo que aparece à mente, corresponda a algo real ou não"
(SANTAELLA, 2005: 33).
31
30). Esse olhar deve ser despido de interpretações, um olhar que disponibilize as
primeiras impressões, tanto sensórias quanto abstratas.
Aqui, estamos no reino das qualidades, ou seja, daquilo que apela para nossa
sensibilidade e sensorialidade. O primeiro olhar, onde o signo diz o que diz através do
modo como aparece, simplesmente através de suas qualidades: o signo como pura
possibilidade qualitativa, quali-signo.
O segundo tipo de olhar, a ser dirigido ao fenômeno, é definido como um olhar
observacional. Aqui, deve entrar em ação a capacidade perceptiva daquele que analisa,
ou seja, ele deve “estar alerta para a existência singular do fenômeno, saber discriminar
os limites que o diferenciam do contexto ao qual pertence, conseguir distinguir partes e
todo” (Santaella, 2008: 31). Esse segundo tipo de fundamento do signo, o sin-signo,
requer a observação de como ele se corporifica, ou seja, de suas características
existenciais.
O terceiro e último olhar é decorrente do desenvolvimento da capacidade de
generalização daquele que analisa. Em outras palavras, deve-se buscar extrair o geral do
particular ao dirigir a atenção para os aspectos mais abstratos do fenômeno: as
regularidades, as leis: legi-signo.
A partir do reconhecimento desses três tipos de olhar, Peirce extrai os
elementos elementares e gerais da experiência que tornam a própria experiência
possível. Ao considerar experiência tudo aquilo que se apresenta a um indivíduo e que
lhe impõe reconhecimento, Peirce conclui que tudo que aparece à consciência é
apresentado numa gradação de três propriedades: 1) Qualidade; 2) Relação; e 3)
Representação. Em busca de englobar a generalidade das propriedades, mais tarde ele as
renomeia para Primeiridade, Secundidade e Terceiridade.
Para esclarecer a amplitude e abertura máxima que as categorias apresentam,
segundo Santaella,
Figura 2. Arte da capa do game em sua loja virtual.
33
Figura 3. Imagem da tela inicial - o menu de fases. O único vaso em cima da mesa dá acesso à primeira fase do
game.
Para acessar cada uma das fases, o jogador deve inclinar o controle, para a
direita ou para a esquerda, de acordo com o vaso que deseja selecionar. Na primeira vez
jogada, apenas um vaso estará disponível – a primeira fase – e basta pressionar e segurar
qualquer botão do controle para que seja iniciada. Na metáfora do jogo, ao iniciar uma
fase, o jogador mergulha no universo onírico da flor selecionada – “the Flower dream”.
Uma vez dentro da primeira fase, o jogador é levado a uma extensa e bucólica
paisagem, em um campo aberto. Aqui, ele deve controlar o soprar do vento para mover
uma única pétala que se encontra flutuando ao centro da tela. Para tanto, o controle deve
ser inclinado, para a direita ou para a esquerda, para cima ou para baixo; esses
movimentos são diretamente relacionados à movimentação do vento, que irá mover-se
para os lados, para cima ou para baixo de forma simultânea. Para intensificar a
velocidade do vento e, consequentemente, mover a pétala com maior rapidez, qualquer
botão do controle pode ser pressionado. O enquadramento do game acompanha os
movimentos por trás da pétala, numa visão em terceira pessoa. Apenas em alguns
momentos específicos ela é alterada: torna-se uma vista superior ou congela em
determinado ângulo, de acordo com o objetivo da fase.
35
Figura 4. Cenário de uma das fases iniciais. A corrente de pétalas à esquerda é aquela controlada pelo jogador.
Figura 5. Grandes hélices eólicas adormecidas, que devem ser despertas pelo jogador.
36
Figura 6. Outro cenário do game.
noturno. Nesta fase, o papel do jogador é iluminar os diversos postes apagados que
encontra pelo caminho – sempre através de flores suavemente despetaladas por seu
vento.
Os postes de luz vão-se acendendo até atingir uma cidade distante, habitada
pela escuridão e pelo silêncio. Repleta de estruturas metálicas retorcidas, cabos elétricos
partidos e prédios cinzentos despedaçados, a cidade convida o jogador a animá-la –
aqui, no sentido primeiro da palavra: anima, alma, dar vida. Seguem-se as duas fases
finais do jogo onde, ao percorrer cada caminho e bifurcação, cada poço de lama e base
de torres, o jogador deve suavemente tocar as poucas flores encontradas e transformar,
gradualmente, a cidade fantasma em um local brilhante, colorido, cheio de vida e de
sinfonia.
Conforme o jogador avança pelas fases do game, ao retornar ao apartamento
(tela inicial com o menu de vasos), a cidade vista pela janela vai sendo também
transformada. De seu estado inicial cinzenta e chuvosa, com ruídos de metrópoles como
motores de carros e buzinas, a cidade vai se transformando em luz e perdendo ruídos, de
maneira vibrante e colorida. Se o jogador descobrir e despertar, em cada uma das seis
fases, três pétalas secretas especiais, ao final do jogo a paisagem do apartamento se
transforma em um campo brilhante, com montanhas ao fundo. É como se, ao final,
Dorothy Gale transformasse a cinzenta Kansas na brilhante e animada Oz.
Figura 7. Tela inicial apresentada ao desenrolar do game.
38
Figura 8. Tela inicial apresentada ao final, caso o jogador encontre todas as pétalas especiais escondidas. A
paisagem na janela encontra-se completamente transformada.
grande responsável pela descoberta dos possíveis trajetos, assim como também pode
optar por não seguir trajeto algum e apenas explorar a vastidão e os pequenos detalhes
de cada novo cenário.
Figura 9. Cenário da fase noturna; as pétalas a serem controladas encontram-se em primeiro plano.
Figura 10. Cenário da cidade em ruínas.
Figura 11. Cenário da cidade em transformação: ganha vida com a ação do jogador, que a desperta.
40
12
Esteve presente, inclusive, no Brasil, na mostra Festival Internacional de Linguagem Eletrônica - FILE
de 2009.
13
O prêmio ganho mais significativo para o propósito dessa pesquisa foi o "Artistic Achievement", pela
British Academy of Film & Television Arts Video Game Awards, em 2010. Para conhecer os outros
prêmios, acesse: <http://thatgamecompany.com/games/flower/>. Acesso em abril de 2013.
41
Figura 12. Imagem da capa do jogo.
42
Figura 13. Exemplo de utilização da tecnologia da Realidade Aumentada, com uso de marcadores: obra artística
levelHead, de autoria de Julian Oliver (2007). À esquerda, cubos com os marcadores em suas superfícies; à direita, a
sobreposição de conteúdo virtual.
carinhosa; se detecta algum movimento em alta velocidade vindo em sua direção, ele
pula ou esquiva – acompanhado de uma expressão carismaticamente assustada.
Além do pequeno animal, todos os elementos e objetos necessários para seu
cuidado e entretenimento são também sobrepostos em realidade virtual, sendo
necessária para seu funcionamento a existência do chamado “Cartão Mágico”. Este
cartão, feito de plástico resistente, é o grande responsável pelo funcionamento da
tecnologia empregada, uma vez que é nele que se encontra impresso o marcador
identificado pela câmera e utilizado para posicionar os elementos virtuais.
Figura 14. Imagem promocional do game com os acessórios necessários (câmera e cartão mágico).
Figura 15. Nascimento de uma nova mascote.
A partir de seu nascimento, toda interação é possível. Além das ações diretas,
realizadas com as próprias mãos dos jogadores – como afagar, acariciar, assustar e
provocar, por exemplo –, outras formas de interação se dão através de atividades
disponíveis no painel de controle do game. Nesse painel, acessado através do controle
do jogo, encontram-se as seguintes sete opções: 1) Programa do EyePet; 2) Cuidar do
EyePet; 3) Brinquedos Mágicos; 4) EyePet Online; 5) Desenhar; 6) Ao ar livre; e 7)
Área Pessoal.
Figura 16. Imagem do menu principal do jogo, onde se encontram as sete principais opções de interação.
45
Figura 17. Radiografia do pequeno animal, para conferir sua saúde.
46
Figura 18. Uma das brincadeiras mágicas: jogo da memória.
A quarta opção consiste no ambiente online do jogo, composto por uma loja
virtual e pela galeria de fotos e vídeos. Na loja virtual, os jogadores podem adquirir
monetariamente novos acessórios e materiais, ou apenas baixar conteúdos disponíveis
gratuitamente – geralmente, conteúdos relacionados a feriados internacionais são
distribuídos de forma gratuita, como roupa de Papai Noel ou Coelho da Páscoa. Na
galeria de fotos e vídeos, o jogador pode publicar seus próprios conteúdos ou acessar o
conteúdo de outros jogadores ao redor do mundo. Vale destacar que o jogador pode, a
qualquer momento, gravar cenas pessoais do jogo – screenshots – na forma de
fotografias ou vídeos, não importa a atividade que esteja fazendo; a Playstation Network
(rede online dos jogos Playstation), no entanto, tem um órgão avaliador desse conteúdo,
para evitar a publicação de materiais impróprios ou ilegais e conseguir manter a
classificação etária do game livre.
47
Figura 19. Atividade "Desenhar": desenha-se um foguete de forma simples...
Figura 20. ... e a mascote irá copiar de forma bastante fiel em seu caderno mágico.
escolha do material que o próprio jogador define, dentre uma lista de materiais
disponíveis e liberados ao longo dos desafios completados. Têm-se os materiais mais
diversos e engraçados: papelão, jornal, plástico, tecido, casca de laranja, bolo recheado
e até mesmo biscoito crocante. A antes silhueta torna-se então um foguete de fato, que
pode ser controlado pelo jogador e interagir com sua mascote – que irá fugir, tentar
atacar o veículo em movimento ou até mesmo pegar uma carona.
Figura 21. Em seguida, o desenho irá saltar, ganhar tridimensionalidade e transformar-se-á em brinquedo interativo.
imagens capturadas, em forma de álbuns. Ele pode ainda editá-las, publicá-las e até
mesmo apagar as indesejadas.
Além dessas sete opções de interação pré-formuladas, o jogador pode ainda
colocar a pequena mascote para dormir: basta que acaricie seu corpo com as pontas dos
dedos, como se fizesse um cafuné. Aos poucos, o animal vai acalmando e ronronando,
até que se encolhe, deita no chão e cai no sono. Ao dormir, ele pode sonhar com os
momentos mais emocionantes e excitantes que passou com seu jogador: sem aviso
prévio, são gravados pela câmera alguns momentos em que a interação se encontra em
perfeita harmonia – por exemplo, uma atividade que rendeu algumas risadas ou até
mesmo um momento de aprendizado do pequeno animal. No momento do sono, esses
vídeos gravados são exibidos na tela, na forma mesma de sonhos (dentro de balões com
uma leve opacidade), o que aumenta de forma significativa o carisma e a ligação
emocional entre o jogador e a mascote – especialmente pelo público mais jovem. Além
do afeto, a própria sensação de veracidade da interação real com o animal virtual é
intensificada, uma vez que os conteúdos dos sonhos são totalmente inesperados. É como
se o pequeno animal tivesse mesmo uma memória própria, criada pelo vínculo
emocional com seu dono.
Figura 22. Pode-se interagir com objetos variados, desde que o jogador desperte a atenção da mascote.
É nessa sensação de realidade, nessa forte relação criada entre mascote virtual
e jogador real, que habita a força da Secundidade. A realidade aumentada, através da
criação da sensação de mágica pela ilusão, pode ser vista como a grande responsável
50
pelo feito. No jogo, há o predomínio da simulação, não mais o simples estrutural como
em Flower, pois é na constante confrontação com o animal virtual e em suas reações
imediatas e realistas que se encontra o grande prazer do game. Com isso, pode-se
inclusive dizer que sua recepção tem o predomínio do indicial e o jogador tem um forte
papel de agente, e não mero "apertador de botões".
Sobre a discussão anterior acerca da narratologia versus a ludologia, nesse jogo
existe o predomínio da segunda sobre a primeira: enquanto jogo de simulação, o game
não apresenta um objetivo central a ser seguido e nem mesmo um final definido – ele
termina apenas quando o jogador decidir parar de jogar. Por isso, seu poder narrativo é
bastante aberto e incerto, cabendo ao próprio jogador criar mentalmente uma narrativa
linear, caso deseje.
Ao tomar para si, literalmente, o mundo real, sensual e reativo, o mundo da
existência cotidiana, e com esse mundo permitir a interação em tempo real, o game
EyePet, mais enfaticamente através do uso da tecnologia da realidade aumentada, tem
sua recepção na Secundidade por excelência.
“(...) o signo está numa relação a três termos; sua ação pode ser
bilateral: de um lado, representa o que está fora dele, seu objeto, e de
outro lado, dirige-se para alguém em cuja mente se processará sua
remessa para um outro signo ou pensamento onde seu sentido se
traduz. E esse sentido, para ser interpretado tem de ser traduzido em
outro signo, e assim ad infinitum.” (SANTAELLA, 2005: 52).
Figura 23. Imagem da capa do game.
acompanhados de uma figura animal feita de origami. Na trama, Ethan Mars é um pai
que busca salvar seu filho, a próxima vítima sequestrada pelo Assassino. Em paralelo, a
jornalista Madison Paige, o investigador do FBI Norman Jayden, e Scott Shelby, um
detetive particular, também buscam pistas para identificar e capturar o serial killer.
O game é dividido em 40 cenas – 39 jogáveis e a final, com o desfecho –, onde
cada uma delas tem como centro um dos quatro personagens. O gamer interage através
da realização de ações relacionadas ao controle do console, apresentadas na tela. Essas
ações variam: existem escolhas de respostas, relacionadas a botões específicos do
controle; sequências corretas de botões a serem pressionados simultaneamente em
momentos de ação mais rápidos (chamados de quick time events); e, até mesmo, a
movimentação do controle inteiro. Outra característica interessante é que o gamer pode
“ouvir os pensamentos” do personagem: ao pressionar um botão específico, assuntos
diferentes aparecem na tela relacionados a diferentes reflexões do personagem, que
podem ajudar nas decisões a serem tomadas.
As decisões e ações do gamer durante o jogo afetam diretamente sua narrativa:
os personagens principais podem, inclusive, morrer ou ficar detidos e, com isso, não
aparecer nas cenas seguintes. Também existem desfechos diferentes para a história,
decorrentes de cada decisão tomada ao longo do percurso. Embora a identidade do
Assassino seja sempre a mesma, as versões da história são múltiplas, ou seja, os
percursos de cada um dos quatro personagens em busca da solução do caso são
variáveis, assim como o destino da criança sequestrada, que pode ser salva ou não.
Ao ser considerada sua jogabilidade, não existem escolhas erradas no game –
ou “game over”. O jogo sempre irá prosseguir, tomando rumos inesperados e
apresentando finais diferentes, dependendo somente do desempenho e – principalmente
– das escolhas do gamer. Até mesmo com a morte de todos os personagens o jogo
apresenta um desfecho. No entanto, após terminar o jogo uma vez, pode-se voltar a
cenas anteriores e jogá-las novamente para experimentar o surgimento de outras cenas e
de outros desfechos diferentes. Não é necessário jogar o game por completo para isso,
pode-se apenas partir da cena a qual o gamer deseja mudar.
A multiplicidade de enredos faz com que o game seja enquadrado na definição
de histórias rizomáticas, apresentada por Murray (2003, p.135). Segundo a autora,
histórias rizomáticas ao redor de um núcleo de violência não possuem uma solução
única e combinam uma percepção clara da estrutura da história, justamente por conta de
sua multiplicidade de enredos. A narrativa é então enriquecida, pois o fato de
53
Figura 24. Ethan e seu filho Shaun, minutos antes do blackout.
Figura 25. Scott Shelby entrevista Lauren, mãe de uma das vítimas do Assassino.
55
Figura 26. Norman Jayden, em sua primeira aparição no game, investigando um dos casos do Assassino. Em
primeiro plano, a vítima morta: um garoto com uma orquídea branca sobre o peito.
Figura 27. A jornalista Madison Paige em cena de ação (em seu pesadelo). As imagens de "X" e "quadrado" referem-
se aos botões específicos a serem pressionados no controle.
56
Figura 28. Madison Paige, pouco depois de despertar de seu pesadelo.
Dá-se, então, início aos testes e desafios pelos quais cada um dos quatro
personagens deve passar e superar, a fim de alcançar seu objetivo único: capturar o
serial killer e encontrar a criança sequestrada. Esses testes exigidos de cada
personagem, como o próprio nome diz, são o “passar-de-fases” de cada um deles.
De volta a Ethan, o novo capítulo começa com a chegada de uma carta
anônima, com instruções que o levam a um armário de uma estação de trem. No
armário, Ethan encontra uma caixa de sapato que contém um celular, uma arma e cinco
figuras de origami. Com a caixa em mãos e a fim de fugir da mídia, Ethan se refugia em
um motel – o mesmo de Madison Paige –, de onde começa sua busca.
No quarto do motel, Ethan inicia a exploração da caixa encontrada no armário.
O celular nela encontrado apresenta uma mensagem gravada a qual exige que o pai
realize os testes contidos por escrito nas figuras de origami também localizadas na
caixa. Segundo a mensagem, cada teste realizado com sucesso irá liberar parte da
informação da localização de Shaun. Os testes, no entanto, não são fáceis de realizar:
através deles, o Assassino quer provar o limite que Ethan pode alcançar para salvar seu
filho. Na sequência do game, os cinco testes para Ethan são: dirigir na contramão de
uma rodovia em alta velocidade; passar por um túnel estreito cheio de vidros quebrados,
tendo que se arrastar sobre eles e, em seguida, por um labirinto de fios de alta tensão;
cortar um dedo da própria mão; matar um homem; e, por último, beber um veneno
mortal, que lhe dá apenas mais uma hora de vida – tempo suficiente para encontrar e
salvar Shaun.
Em todos os testes, sempre existem duas opções oferecidas ao gamer: fazer ou
não o que lhe é exigido. Ao recusar, Ethan prossegue em sua história sem conseguir
57
pista alguma do paradeiro de seu filho. Caso o gamer opte por realizar todos os testes
com sucesso, deve se esforçar ao máximo para conseguir completar os desafios – a
maioria deles depende de sua habilidade, pois consiste de sequências de botões do
controle que devem ser pressionados rapidamente. Uma vantagem para o gamer é que,
caso não consiga completar algum desafio por falta de habilidade, é possível jogar os
capítulos novamente (desde que o game já tenha sido terminado uma vez).
No motel, entre o primeiro e o segundo teste, Ethan conhece Madison, que,
como dito anteriormente, resolve o ajudar a encontrar seu filho. Além de buscar
informações, Madison também o ajuda a se recuperar dos ferimentos resultantes das
provas do Assassino. Em sua busca por informações, Madison também passa por exatos
cinco desafios.
No primeiro, Madison deve ajudar Ethan a escapar da polícia em um antigo
galpão abandonado, em seu teste de cortar o dedo da mão. No segundo, a jornalista
parte para investigar um médico psicopata, o qual é o dono do galpão abandonado
anterior. Neste desafio, Madison pode morrer. No caso de sobreviver, parte para o
terceiro desafio, onde ela investiga o dono mafioso de uma boate, a qual o médico
psicopata frequentava. Aqui, Madison também pode morrer. Novamente, caso
sobreviva, a jornalista descobre a identidade da mãe do Assassino. Em seu quarto
desafio, Paige deve ir até o hospital psiquiátrico no qual a mãe do Assassino se encontra
internada e deve interroga-la sobre o filho. Nesse capítulo, Madison descobre a
identidade do Assassino – a qual não é revelada ao gamer ainda. Seu quinto e último
desafio é, justamente, na casa do Assassino. Enquanto Madison investiga sua moradia,
ele a flagra, tranca e ateia fogo no apartamento, tanto no intuito de matá-la quanto para
apagar as evidências. Aqui, pela última vez, a jornalista também pode morrer. Todas
essas possibilidades dependem, sempre, das escolhas e habilidades do gamer.
Figura 29. Boate a que Madison e Jayden partem para investigar.
58
Figura 30. Interior da boate Blue Lagoon.
Figura 31. Norman Jayden em cena de ação com Mad Jack.
ele relacionados. O primeiro teste de Shelby é na loja de Hassan, pai de uma das vítimas
do Assassino. O proprietário da loja se recusa a dar informações ao investigador e entra
em cena outra situação tensa para o gamer: a loja é assaltada logo depois do
interrogatório e Scott – o gamer – deve decidir entre salvar Hassan (ser um herói para
tentar convencer Hassan a cooperar na investigação) ou permanecer escondido e deixar
Hassan ser morto.
Em uma próxima cena, Lauren Winter – a primeira entrevistada por Scott –
decide se juntar ao detetive em busca do assassino de seu filho. Juntos, passam por
outros testes. O principal suspeito de Scott é um playboy milionário e ambos partem
para sua mansão. Enquanto Lauren distrai os seguranças, Scott consegue chegar até o
dormitório do rapaz. Aqui, uma luta entre o detetive e outros seguranças é travada, e
Scott sai com a certeza de que ele é o Assassino.
O detetive parte, então, em busca do pai do playboy e o encontra em um clube
de golfe. Na cena, um diálogo bastante tenso é desenvolvido, no qual o pai do rapaz, o
Sr. Kramer, aconselha Scott a deixar seu filho em paz. Esse conselho, no entanto, serve
como uma provocação a Scott, que intensifica ainda mais sua investigação. Entre suas
buscas, o detetive percebe que uma das ações recorrentes do Assassino era enviar cartas
datilografadas aos pais das vítimas. Por ser uma tecnologia rara, Scott resolve visitar o
único antiquário do bairro, Manfred, a fim de obter informações sobre seus clientes –
mais especificamente, sobre aqueles que consomem suprimentos de máquinas de
datilografia. No entanto, durante sua estadia na loja, o dono do estabelecimento é
assassinado de forma inesperada. Scott e Lauren, pegos de surpresa, devem limpar todas
as evidências de que estavam no local a fim de fugir da polícia.
O próximo desafio começa com Scott acordando amarrado dentro de seu carro,
o qual se encontra debaixo d’água. Ao notar que Lauren também está presa ao seu lado,
percebe que ambos caíram em uma emboscada. O gamer deve, a seguir, optar entre
duas soluções: soltar-se e escapar do carro com ou sem a companheira.
Em seu último desafio, Scott volta a encontrar o milionário Sr. Kramer, pai do
rapaz suspeito, dessa vez em sua mansão. Ao entrevistá-lo, Scott é constantemente
ameaçado e uma nova luta entre ele e os seguranças é travada. Caso vença a luta, Scott
inicia um interrogatório bastante violento com o Sr. Kramer, o que lhe causa um ataque
do coração. Aqui, uma nova escolha é imposta: se Scott deve salvar ou não o
milionário.
61
Os três se dirigem para lá, onde encontram Scott à espera. Caso o gamer tenha optado
por tomar o veneno – último desafio de Ethan – o pai sabe que tem pouco tempo de vida
e se empenha para tirar seu filho do porão onde está preso. Enquanto isso, Madison e
Jayden travam uma luta com Scott. Existem várias opções e escolhas possíveis para o
final, sendo que, em uma delas, Jayden atira em Scott, que cai morto.
Ao final dessa linha de escolhas, Ethan passa por um forte momento de
epifania: ele descobre que o veneno que tomara, na verdade, não passara de uma
mentira. A simples escolha por tomar era o último teste de Scott para provar o amor do
pai pelo filho. No estágio final da história, além de se tornar o herói de seu filho, Ethan
prova seu amor por ele, permanece vivo e inicia um romance com Madison. Jayden, por
sua vez, deixa de usar a droga e segue em uma carreira de sucesso. O curioso é pensar
que, mesmo acabando morto, Scott consegue alcançar seu objetivo maior com os
crimes: encontrar um pai capaz de sacrificar a própria vida pelo filho, um verdadeiro
herói.
Figura 32. A difícil escolha final de Ethan: tomar ou não o veneno mortal.
14
Vale ressaltar que o game Heavy Rain foi analisado sob a luz da estrutura mítica da jornada do herói no
artigo “Heavy Rain: uma jornada paradoxal” (ANTUNES, no prelo).
64
Reflexões finais
ficcional, tem-se a criação ativa da crença em tal universo. Tanto em Flower, quanto em
Eyepet e Heavy Rain,o grau da imersão pode ser considerado satisfatório. No primeiro
game, os cenários bucólicos envolvem seus jogadores de tal forma que a crença no voo
torna-se factível. No segundo game, a crença é construída a partir da própria realidade
engolida pela câmera e apresentada simultaneamente e em tempo real junto a elementos
virtuais altamente responsivos. No terceiro game, é o próprio enredo bem amarrado,
unido a cenários muito bem resolvidos, que constrói a malha imersiva.
Outra questão que deve ser aqui retomada é a visão do ato de jogar enquanto
ensaio para a vida. Nos games, o indivíduo que joga representa seu papel de acordo com
o que acredita ser o mais adequado; diversas vezes chega a contrariar suas atitudes e
posturas da vida real. O jogo, portanto, possibilita a exploração de novos limites,
percepções e desejos. Em outras palavras, permite àquele que joga experiências novas
que vão além de seu cotidiano. Com isso, é fortalecido o fator lúdico, presente
justamente nas ações dentro do jogo, que importam muito mais do que a sua finalidade.
Os três games selecionados também representam a quebra de outro paradigma
apresentado anteriormente: a “tirania do mercado”, a qual dita a produção de acordo
com estatísticas de venda e não de investigação e inovação experimental. Nos três
games, tanto a jogabilidade quanto a recepção foram pensadas de maneira inovadoras,
desenvolvidas na contramão das estruturas de sucesso até então conhecidas: Flower, por
seu aspecto altamente contemplativo e sua exploração guiada pelo acaso; EyePet, pela
sobreposição de uma camada virtual à realidade, através do uso da realidade aumentada;
Heavy Rain, por se tratar de um drama interativo, rico em decisões mentais e, acima de
tudo, morais.
Para concluir, este trabalho buscou demonstrar possíveis exemplos de
subversão e de novas possibilidades, que vão à contramão das críticas atuais que recaem
sobre os games, através da análise de três obras. O objetivo principal que espera ter-se
alcançado é o de comprovar que os games não podem ser considerados, de maneira
geral, violentos e banais. Eles carregam em si as mais diversas possibilidades de
experiência e podem, inclusive, ser utilizados para despertar os sentidos e o intelecto do
homem.
67
Figura 2. Arte da capa do game em sua loja virtual. Disponível em: <
http://thatgamecompany.com/games/flower/>. Acesso em abril de 2013.
Figura 3. Imagem da tela inicial - o menu de fases. O único vaso em cima da mesa dá
acesso à primeira fase do game. Disponível em: <
http://www.soundingames.com/images/c/c5/Flower-Noise-1.png>. Acesso em abril de
2013.
Figura 4. Cenário de uma das fases iniciais. A corrente de pétalas à esquerda é aquela
controlada pelo jogador. Disponível em: < http://4.bp.blogspot.com/-
GkU539SjfuU/TlSNpXYVc1I/AAAAAAAAADg/dDB3c89zcPw/s1600/flower2+%25
281%2529.jpg>. Acesso em abril de 2013.
Figura 5. Grandes hélices eólicas adormecidas, que devem ser despertas pelo jogador.
Disponível em: < http://thatgamecompany.com/games/flower/>. Acesso em abril de
2013.
Figura 8. Tela inicial apresentada ao final, caso o jogador encontre todas as pétalas
especiais escondidas. A paisagem na janela encontra-se completamente transformada.
Disponível em: <
http://i702.photobucket.com/albums/ww25/RegorTtenneb/PICT0726.jpg>. Acesso em
abril de 2013.
Figura 11. Cenário da cidade em transformação: ganha vida com a ação do jogador, que
a desperta. Disponível em: < http://thatgamecompany.com/games/flower/>. Acesso em
abril de 2013.
Figura 16. Imagem do menu principal do jogo, onde se encontram as sete principais
opções de interação. Disponível em: <
https://forums.playfire.com/_proxy/?url=http%3A%2F%2Ffarm3.static.flickr.com%2F2
777%2F4132734161_5a66329b68.jpg&hmac=e65b26cfb31aa11af20fec15646748cd>.
Acesso em abril de 2013.
Figura 17. Radiografia do pequeno animal, para conferir sua saúde. Disponível em: <
http://www.gamespot.com/eyepet/images/716164/>. Acesso em abril de 2013.
Figura 18. Uma das brincadeiras mágicas: jogo da memória. Disponível em: <
http://www.gamespot.com/eyepet/images/829200/>. Acesso em abril de 2013.
Figura 20. ... e a mascote irá copiar de forma bastante fiel em seu caderno mágico.
Disponível em: < http://www.gamespot.com/eyepet/images/744227/>. Acesso em abril
de 2013.
Figura 22. Pode-se interagir com objetos variados, desde que o jogador desperte a
atenção da mascote. Disponível em: <
http://www.gamespot.com/eyepet/images/716155/>. Acesso em abril de 2013.
Figura 24. Ethan e seu filho Shaun, minutos antes do blackout. Disponível em: <
http://www.gamespot.com/heavy-rain/images/846981/>. Acesso em abril de 2013.
69
Figura 25. Scott Shelby entrevista Lauren, mãe de uma das vítimas do Assassino.
Disponível em: < http://www.gamespot.com/heavy-rain/images/846987/>. Acesso em
abril de 2013.
Figura 26. Norman Jayden, em sua primeira aparição no game, investigando um dos
casos do Assassino. Em primeiro plano, a vítima morta: um garoto com uma orquídea
branca sobre o peito. Disponível em: < http://www.gamespot.com/heavy-
rain/images/1023207/>. Acesso em abril de 2013.
Figura 27. A jornalista Madison Paige em cena de ação (em seu pesadelo). As imagens
de "X" e "quadrado" referem-se aos botões específicos a serem pressionados no
controle. Disponível em: < http://www.gamespot.com/heavy-rain/images/1023193/>.
Acesso em abril de 2013.
Figura 28. Madison Paige, pouco depois de despertar de seu pesadelo. Disponível em:
< http://www.gamespot.com/heavy-rain/images/1023196/>. Acesso em abril de 2013.
Figura 29. Boate a que Madison e Jayden partem para investigar. Disponível em: <
http://www.gamespot.com/heavy-rain/images/716296/>. Acesso em abril de 2013.
Figura 31. Norman Jayden em cena de ação com Mad Jack. Disponível em: <
http://www.gamespot.com/heavy-rain/images/713321/>. Acesso em abril de 2013.
Figura 32. A difícil escolha final de Ethan: tomar ou não o veneno mortal. Disponível
em: < http://cdn.gamerant.com/wp-content/uploads/heavy-rain-qte.jpg>. Acesso em
abril de 2013.
70
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Anexos
Fichas técnicas dos games analisados
Flower
Desenvolvimento ThatGameCompany
Publicação Sony Computer Entertainment
Direção Jenova Chen / Nicholas Clark
Plataforma Playstation 3
Data de lançamento Fevereiro de 2009
Gênero Aventura poética
Modo de jogo Single Player
Mídia/Distribuição Distribuição via download digital
EyePet
Heavy Rain
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Vídeos demonstrativos
Flower Trailer
Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=nJam5Auwj1E>. Acesso em abril
de 2013
Flower Gameplay
Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=RUC2tpY5gb4 >. Acesso em abril
de 2013
EyePet Trailer
Disponível em < http://www.youtube.com/watch?v=JHBq8QxHSE4>. Acesso em abril
de 2013
EyePet Gameplay
Disponível em < http://www.youtube.com/watch?v=7Jvp-i6BHaI>. Acesso em abril de
2013