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as ee| Ue gE my 10$000 “PRE a EM TODAS AS sm “at tradugéo de sntco-venissiMa = EDICGES MERIDIANO eee RIDLIOFECA PAR ORGE ALBERTO ALVES MARIA “0 HOMEM E A TECNICA” Bsorito © publicado ap6s 0 monumental “A Decadénela do Oeldente”, o livro que as Edl- er Merlilano apresentam ho- ‘Je 40 piblico brasileiro encerra tum sumério da filototia do 0 ald Spereier Batava tle convencido de aue f cultura técnica — a cultara da Idado a méquina que 0 ho- ‘mem criou com « sun capact- dado tinica para a técnica in- dividual, bem como para a ra- lal, — 44 atingla sen ponto mais alto 6 que o futuro 86 fos reserva catdstrofes. ‘A-ora mectnica om que vive- on — acha élo — nfo tom Nida cultural progrossiva, mas apenas usin do poder edo owes, 0 trlunfo da méquina fondut no a menos trabalha- Mores @ menos trabalho, mas a ln estado do regimentacto om aust. A técnica dito, pois, © destino da civlizagto oct dental, © fim deste ttvro pequeno “ius compacto o cheto de f0rca, 4 wma pororacto flosética quo HAifctimente encontraré igual #m nossa 6poca, ‘Todo o volume langa tus 80- tyre 0 quo parecer obscuro a fuultor toltores em “A Dece- Aneta do Ocidente”. 0 E\otimece j bide toed “ts! 10 waned cidade » ' pprbop.or Comhanin, U6 EL OSWALD SPENGLER 0 HOMEM E A TECNICA CONTRIBUICAO Auducare ran aw Te Ae A UMA FILOSOFIA DA VIDA 1941 EDIGOES MERIDIANO PORTO ALEGRE | Publicado originalmente em alemilo com 0 seguinte titulo: “DER MENSCH UND DIE TECHNIK” 1931 ee eee mmapugso DE ERICO VERISSIMO OF. GRAP. DA TIP. THURMANN Rua 7 de Setembro, 723 Porto Alegre OSWALD SPENGLER Orme SPENGLER nasceu em 1880, em Blankendurg, Alemanka, Estudou matemédti- ca, filosofia ¢ histéria em Munich ¢ Berlim, ¢ de 1907 a 1911 ensinou matemdética e fisica numa es- cola em Hamburgo. A crise de Agadir em 1911 The serviu de incentivo imediato para exhaustivas investigagdes em torno das origens de nossa civili- zagdo. Abandonando 0 magistério, completou em 1914 a primeira versio do volume primeiro de A DECADENCIA DO OCIDENTH, que permaneceu inédito durante quatro anos. Antes disso nada ha- via publicado além de sua tese de doutoramento 36- bre Heréclito, Durante seus tiltimos anos de vida, Spengler enchia as horas de lazer com quadros, armas pri- ‘mitivas, quartetos de Beethoven ¢ comédias de Sha- kespeare ¢ Molidre. Bram essas as diversdes prin- cipais do filésofo, além de passeios a pé as monta- nhas de Harz ¢ de visitas @ Italia. Sob 0 regime nazista teve a coragem de exprimir o seu desprézo pelo anti-semitismo e no fim caiu das gragas do F b r OSWALD SPENGLER partie, © qual, entretanto, nada ousou fazer contra le. Oswald Spengler morreu em Munich a 8 de Maio de 1986. Por ocasiéio de seu falecimento, o “New York Times” escreveu num editorial: “A primeira edigto de “A Decadéncia do Ocidente” aparecen néo apenas antes da ascengtio de Musso- lini a0 poder, mas também muito antes do apare- cimento ‘de Hitler. Assim, quando Spengler predi- sia a volta da ditadura, ndo estava meraments Profetizando um estado de coisas j4.atingido. Suaa Profecias cumpriram-se quasi completamente na Alemanha”. Além de “A Decadéneia do Ocidente”, publicou Spengler “A Hora da Deciséo” ¢ éste admirdvel “O Homem ¢ a Técnica” que, segundo 0 eritico ameri- cano Lawrence Stallings 6 “wma obra de filosofia como ninguém a néo ser Spengler inos podia dar com tal amplitude”, PREFACIO Noes piiginas seguintes ponho ante os olhos do leitor uns poucos pensamentos tirados de uma obra maior na qual hé anos me acho empe- nhado. Foi minha intengio empregar aqui o mes- mo método que.em A Decadéncia do Ocidente ay quei exclusivamente ao grupo das culturas superio- res para a investigagao de seu pre-requisito histé. rico, ou seja a histéria do homem desde suas ori- gens. Mas a experiéncia do trabalho anterior mos- ‘trou que os leitores em sua maioria nfio se acham em condigées de ter uma visio de conjunto da mas- sa de idéias como um todo, de sorte que assim se perdem nas particularidades déste ou daquele do- qminio que Thes é familiar, vendo o resto de soslaio ou entio no vendo de maneira nenhuma. Em con- sequéncia disso, ficam com uma falsa imagem nio 86 do que eserevi, como também do assunto sdbre © qual eserevi, Hoje, como entio, estou convencido de que 0 destino do homem s6 pode ser compreen- dido se levarmos em conta thdas as provincias de sua atividade simultdnea ¢ comparativamente, evi- tando o érro de procurar a elucidagio de algum pro- blema — por exemplo: 0 da politica, da religifio ou © da arte — considerando-o exclusivamente como ee OSWALD SPENGLER um aspecto particular de sua existéncia, de que, isso feito, nada mais resta a dizer, sl Neste livro, néo obstante, aventuro-me a pro- or alguns désses problemas. ‘Sto uns pouccs den, Weis Acham-se, porém, de tal forma entre. ee los La Por ora ajudar o leitor a ter na imp) répida ¢ provis6ria de grédo do destino humano. en INDICE 1— A TECNICA COMO TATICA DE VIDA 13 Processo ¢ melos. ~*Luta ¢ arma. — Ewolugio ¢ reall« zagio. — A transitoriedade como forma do recl 1 — HERBIVOROS E ANIMAIS DE RAPINA. 35 © homem como animal de rapina. — "Ser" presa ¢ “fa- er” presa. ~ O movimento como fuga e ataque. ~ O @lho apace ¢ seu mundo, ~ A invarldvel “técnica da espécie” ¢ a técnica inventive do homem. I~ A ORIGEM DO HOMEM: A MAO E © INSTRU- ‘MENTO ub “ nea ‘A mio como 6rgfo do tacto e da ago, ~ Diferenciagio entre © fabrico das armas ¢ 0 uso delas. ~ Liberagso relativa A coagio da espécie. — “Pensamento do olho” © “pensamento da mio". — Melos e fim. ~ O Homem co- mo criador. — © ato singular. — Natureza e “arte”. —~ A técnica humana ¢ artificial. — Homem versus Natureza. = A tragédia do Homem. IV = 0 SEGUNDO ESTADIO: FALAR E EMPREENDER 71 (© “fazer” coletivo. — Ha quanto tempo se fala com pa- lavras? — Finalldade da linguagem: 2 emprési_coletiva. a tit al Be OSWALD SPENGLER *xecutor, — Cabecas © mios = Otganizacto, — Existen. / politica e economia, — mnt © 8 Mero doa homens, ~ Personaidede ¢ 3 V2~ © OLTIMO. ATO: ASCENCAO E FIM DA cuLTu. gy MECANIE 7115 gag wih ce 103 jac de inten, — Eapecicin, histone pabetes Perpetuum mobile, Sentido da. mag CAPITULO I | Mencks da Natureza obrigndasia. tabular teeneiee So mania Pith CaFiHo populagio. — Mecnsientny Z, Sintomas de decadencia: diminuigao inn ‘akira divetoras. — A revolta das’ ty IDA IMO TATICA DE VI os. ~ O mono- A TECNICA CO! Pollo perdide da teenies. — © mundo. co a Je otateresreil Proceso 6 meios. Luta e arma, — Evolugdo e realizagdo..— A transitoriedade como forma do real. PROBLEMA da técnica e de sua rela- c&o com a Cultura e a Histéria s6 no século dezenove que se apresenta pela pri- meira vez. O dezoito, com o seu cepticismo fundamental — com a sua dtivida que se avi- zinhava do desespéro — havia proposto a questo do sentido e do valor da Cultura. Foi um assunto que levou a outros cada vez mais largos e subdivididos, criando assim para o séeulo vinte, para os nossos préprios dias, a possibilidade de olhar a Histéria Universal como um problema. O século dezoito, a era’ de Robinson Cru- soe e de Jean Jacques Rousseau, dos parques ingleses e da poesia pastoril, considerava o homem “primitive” como uma espécie de cor- deirinho pacifico e virtuoso, que mais tarde a Cultura deitou a perder. Seu aspecto técnico era completamente esquecido ou, se chega- vam a vé-lo, consideravam-no indigno da atengdo do moralista. 2-08 T. 18 OSWALD SPENGLER OSWALD SPENGLER Mas depois de Napoleéo a técnica ma- auinista da Europa ocidental eresceu a pro. Porcoes gigantescas e, com suas cidades fa. bris, suas estradas-de-terro e barcos a vapor obrigou-nos finalmente a encarar o problema de frente ea sério, Qual a significacio da técnica? Qual o seu sentido dentro da Histé. ria? O seu valor dentro da vida? Que posi. $80 ocupa, social e metafisieamente? Ofere. ceram-se muitas respostas a essas Perguntas, mas no fundo elas se podem reduzir a duas, De um lado, 0g idealistas e idedlogos, os epigonos do Classicismo humanista da época de Goethe, consideravam as coisas técnicas 08 assuntos eeondmicos como fora ou, melhor, abaixo da “Cultura”. O proprio Goethe, com Seu grande senso do real, havia procurado, no Seu segundo Fausto, penetrar nas mais fundas Profundidades désse novo mundo-de-fatos, Mas j@ em Wilhelm von Humboldt temos os prineipios de uma concepedo filolégica anti. realista da Historia que, no fim de contas, aquilata o valor de uma época historica pelo niimero de quadrose livros que ela produziu, Um homem de govérno 86 era olhado coms figura significativa quando ganhava foros de 0 HOMEM EA TSONICA 19. patrono da literatura e da arte. Pouco impor- tava a maneira como se conduzia em outros terrenos, Estado_era_um_ constants c culo & verdadeira Cultura que se buseava nas salas de conferéncias, nos reftigios dos estu- Tosos dos arlisias. Mal se chegava a dar crédito A possibilidade da guerra, que nio passava de uma barbirie de épocas pretéritas. A economia era qualquer coisa de prosaico, estiipido indigno de nossa atengio, embora na realidade fdsse assunto de trato diario, Mencionar o nome de um grande comerciante ou de um grande engenheiro junto com o de poetas ¢ pensadores, era quasi um ato de lése-majesté & “verdadeira Cultura’ * Exami- nemos, por exemplo, as Aisin ng chtungen (Consideracées sobre ie Taina) de Jakob Burckhardt, Seu ponto de vista é earacteristico da maioria dos professores de filosofia .e até de nao poucos historiadores, ao mesmo tempo que é também © ponto de vista désses literatos e estetas de nossos dias que consideram a elaboragio dum romance mais importante que o projeto de um motor de aviao. A ‘ ®_______—“ OSWALD SPENGLER De outra parte havia.o Materialismo — ~ em sua esséneia um produto inglés, Estava em grande moda entre os semi-cultos da se~ gunda metade do século passado. Era a filo- sofia do jornalismo liberal e das assembléias populares radicais, dos marxistas e dos escri- tores ético-sociais que se consideravam pen- sadores e profetas. Se o caracteristico da primeira classe era uma falta do senso da realidade, no segundo grupo o que havia era uma auséncia devas. tadora do sentido de profundidade. O ideal dos materialistas era o util e apenas o util. Tudo quanto fdsse util a “humanidade” era um elemento legitimo de Cultura, era na rea~ lidade Cultura, Quanto ao resto... luxo, su- Perstigdo ou barbarie, Agora: essa utilidade era a utilidade que levava & “felicidade do maior numero”, e es- sa felicidade consistia em nao fazer nada. Tal é em Ultima andlise a doutrina de Ben. tham, Spencer e Mill. Afirmava-se que 0 ob- Jetivo da humanidade consistia em aliviar o individuo da maior quantidade possivel de trabalho, atirando a carga para cima da mé- © HOMEM_E A TECNICA 21 quina. Libertar os homens da “miséria da eseraviddo ao salério”, dar-Ihes igualdade nas diversdes e confortos e no “gézo da arte”. & © panem et circenses da urbe gigantesca das épocas de decadéncia que se est apresentan- do, Os filisteus do progresso se entusiasma- vam liricamente a cada botfo que punha em movimento um aparelho cuja finalidade era, ao que se supunha, a economia do trabalho humano. Em lugar da religidio honesta dos tempos passados, havia um entusiasmo super- ficial pelas “conquistas da humanidade” — palavras estas que nada mais querem dizer senéio progresso na técnica da economia do trabalho e da fabricacio de divertimentos. Sobre a alma, porém, nenhuma palavra. Ora, tais ideais nao séo em absoluto do gosto dos grandes deseobridores (com raras excecdes) nem mesmo dos que conhecem bem ‘os problemas técnicos. Mas o é dos especta- dores que os ceream e que, incapazes de des- cobrir qualquer coisa ou pelo menos compre- ender © que por acaso descobrissem, sentem que ha no ar algo que pode redundar em seu beneficio. Nessas condigdes, uma vez 22 OSWALD SPENGLER que em cada “civilizacéio” (*) 0 materia- lismo se distingue por sua falta de forca ima- ginativa, surge o quadro dum futuro no qual o fim Ultimo e a condic&o duradoura e final da humanidade.é um paraiso terrestre, con- cebido segundo as tendéncias técnicas, diga- mos, da casa dos 80 no século passado — uma des¢oncertante negago do conceito mesmo de progresso, que por hipétese exclue os “Es- tados”. Essa ordem de idéias é representada por livros como 0 Alte und Neue Glaube (A Antiga e a Nova Fé) de Strauss, Looking Backward (Retrospecto) de Bellamy e Die Frau und der Sozialismus (A Mulher e 0 So- cialismo) de Bebel. Nada de guerras; nao mais diferencas de leis, racas, estados ou re- ligides; nada de criminosos e aventureiros; nada de conflitos surgidos da superioridade e das diferencas na maneira de ser das pessoas; niio mais édios ou vingancas, mas apenas um infinito bem-estar por todos os séculos dos séculos. Mesmo hoje em dia, quando estamos ainda a viver as tltimas fases désse otimismo, @) A palavra ‘aqui € usada naturalmente no sentido expe- clfico que ela tem em "A Decadencia do Ocidente”. (N. do T.). © HOMEM BA TBCNICA trivial, tais imbecilidades nos fazem estreme- cer & idéia do pavoroso tédio — o tedium vitee da Roma Imperial — que se estende bre a alma humana & simples leitura dés- cs idilios. Porque se éles se tornassem éfe- livos na vida real, ainda mesmo que apenas em parte, s6 poderiam levar ao assassinio ¢ ao suiefdio em massa. ‘Ambos ésses pontos de vista esto hoje antiquados. Chegamos finalmente, com o sé- culo vinte, a uma era suficientemente madura para penetrar na significagdo derradeira dés- ses fatos cuja totalidade constitue a histé do mundo, A interpretaciio das coisas e dos ntecimentos nfo 6 mais assunto do gosto privado de alguns individuos de tendéncia vacionalizadora, ou das esperangas e desejos das massas. Em lugar do “talvez seja assim” ou do “devia ser assim” teremos os inexor veis “é assim” e “hd de ser assim”. Um cepti- cismo orgulhoso vem substituir os sentimenta- lismos do século pasado. Aprendemos que a Hist6ria 6 qualquer coisa que nao tem em menor conta as nossas esperancas. 0 taeto fisiognoménico, como chamei em outro livro & faculdade que nos permite pene- 4 OSWALD SPENGLER trar 0 sentido dé todo 0 acontecimento — a intui¢&o de Goethe e de todos 0S que nasce- ram com 0 dom de conhecer as criaturas, a vida ¢ a historia através dos tempos — o tacto fsiognomdnico € que descobre no individuo, seja éle pessoa ou coisa, a sua significacd: mais profunda, reer 'ARA compreender a esséncia da técnica, nao devemos partir da técnica da era da maquina e muito menos da idéia engana- dora de que a construgio de m4quinas e uten- silios seja 0 objetivo da técnica. Porque na realidade a técnica.é mui- tissimo antiga e, além do mais, ela nao é algo de historicamente especifico mas sim qualquer coisa de imensamente geral. A téc- nica transcende as origens da humanidade, recua até a vida dos animais, de todos os ani- mais. O tipo de vida déstes tltimos, em con- traste com o da planta, se distingue pela sua capacidade de movimento livre no espago, pela posse, em maior ou menor grau, de von- tade propria e pela independéncia da Natu- reza como um todo. Assim sendo, o animal é obrigado a manter-se contra a Natureza e a dar A sua prépria existéncia certa espécie de significacdo, certa espécie de contetido e cer- ta espécie de superioridade. Se vamos entiio atribuir um significado a téeni b lo & téenica, partir da alma, e apenas dela, Porque a livre mobilidade dos animais é luta, nada mais, nada tétiea do vida, a sua superioridaae Co, ridade em face do “outro” eM aeeG t6ea dessa ne que determina se seu destino t a historia dos outros ou ser pee, A see fhistoria désses outros, A-Técnica gis s ria de ; ica rma intima cuja expressao ex. uta no conflito — no conflito que se identifica com a propria Vida, Vamos a0 segundo étro que se deve evi- tar: A técnica néo der i como. inteparével dos inatramenee ree importa néo & como se fabricam as cot mas o que fazemos com elas; nio se trate ane armas, mas da batalha. A guerra moder ns qual a tética é 0 elemento decisive ia é, levando em conta que a téeniea de conn zir a guerra, a téenica de i ee lea de inventar, de produ. bs icas nas quais nao se usam absolutamente ingbitinenten bag eh OSWALD SPENGLER devemos 0 HOMEM BA TRCNICA exemplo, a de um leo negaceando uma gi a ou a da diplomacia. A técnica da admi- nistragéo consiste em manter’o Estado apto para as lutas da histéria politica, Existem as iéenicas da guerra quimica e de gases. Ha ainda a técnica das pinceladas do pintor, a da equitacio e a de pilotar dirigiveis. Nao se ivata de coisas, mas sim de uma atividade que tem um propésito. E 6 precisamente por isto que tantas vezes tem sido esquecido no estu- do da pre-histéria, em que se presta exage- rada ateng&o as coisas dos museus e se dé pouquissima importancia aos inumerdveis pro- cessos que devem ter existido, mesmo que n&o hajam deixado o menor vestigio. Cada méquina serve um processo, e de- ve sua existéneia ao pensamento a respeito désse processo. Todos os nossos meios de transporte se desenvolveram da idéia de mo- vimentar um carro, de remar, de navegar a vela e nfo do simples conceito de carro ou de bareo, Os proprios métodos sdo armas, E con- sequentemente a técnica nfo 6 uma parte da economia, do mesmo modo que a economia (ou a guerra ou a politica) nao pode ser con- siderada uma parte da vida existente por si OSWALD SPENGLER mesma, Todos ésses siio apenas aspectos de uma vida ativa, lutadora e cheia. Nao obstan- te, da guerra *primeva das béstas extintas emerge um caminho que leva aos processos dos modernos inventores e engenheiros, do mesmo modo que da cilada, a mais antiga de tédas as armas, sai uma estrada que conduz ao desenho das mfquinas com que hoje fa- zemos guerra & Natureza, superando-a em estratagemas. Ao movimento nesses caminhos se dé o nome de Progresso. Foi essa a grande epigra- fe do século passado. Os homens viam a his- t6ria & sua frente como uma rua pela qual a “humanidade” marchava corajosa e sempre para a frente; e com “humanidade” queriam designar as racas brancas ou, mais exatamen- te, os habitantes de suas grandes cidade, ou, com maior preciso ainda, os “educados”. Mas... marcha para onde? Por quanto tempo? E... depois? Era um pouco ridicula essa caminhada rumo do infinito, dum alvo em que 03 homens niio pensavam seriamente, dum objeto que ninguém concebia com nitidez ou, para falar 0 HOMEM EA TACNICA 29 a verdade, que ninguém ousava imaginar. Porque um alvo é um fim. Ninguém faz uma coisa sem pensar no momento em que atinge o que deseja. Ninguém comeca uma guerra ou uma viagem ou mesmo um simples passeio sem pensar na direcio ou na conclusdo. Todo o ser humano realmente criador conhece e te- me 0 vazio que se segue A terminacio duma obra. ‘A evolugio implica em cumprimento — cada evolucio tem um prinefpio e cada cum- primento 6 um fim. A velhice est4 implicita na juventude; 0 nascimento no perecimento; a morte na vida. Porque o animal, cujo pen- samento esté preso ao presente, conhece ou fareja a morte como alguma coisa que esté no futuro, alguma coisa que nfo o ameaca. fle apenas conhece o médo da morte-no mo- mento de ser morto. Mas o homem, que tem o pensamento emancipado das cadeias do aqui e do agora, do ontem e do amanhé, in- vestiga o “uma vez” do passado e do futuro, 0 seu triunfo ou derrota final ante o médo da morte depende da profundidade ou superfi- cialidade de sua natureza. Conta velha lenda grega, sem a qual nfo existiria a Tliada, que, 20 OSWALD SPENGLER tendo a mae de Aquiles oferecido a éste a.es- colha de uma vida longa e vazia ou de uma vida breve mas cheia de feitos e de fama, éle preferiu a segunda, O homem era e 6 demasiadamente super ficial e covarde para suportar a idéia da mor- talidade de tédas as coisas vivas, Ble a en- volve no otimismo cér-de-rosa do progresso, amontoa sdbre ela as flores da literatura, fica a rastejar por trés de uma muralha de ideais para no enxergar nada. Mas a transitoric- dade, o nascimento e 0 passamento, é a forma de tudo quanto tem realidade — desde as es- twélas, cujo destino para nés 6 incalculavel, até o efémero formigueiro de nosso planeta. A vida do individuo, seja éle animal, planta ou homem, é tao perecfvel como a dos povos e das Culturas. Cada criacdo est4 predesti- nada A decomposieao; todo o pensamento, todo o descobrimento, todo 0 feito estdo con- denados ao esquecimento. Aqui e ali, por t6- da a parte vislumbramos cursos da historia de grandioso destino e hoje desaparecidos. Ve- mos em térno de nés rufnas das obras “que foram”, de culturas mortas. No descomedi- mento de Prometeu, que ergueu as maos para © HOMEM EA TSCNICA os eéus para submeter as poténcias divinas ao homem, estava implicita a queda. Que é fei- to, pois, dessa palavrosa alusio as “realiza- ¢des imorredoiras”? A hist6ria do mundo tem um aspecto com- pletamente diferente daquele que nosso século se permite sonhar, A histéria do homem, com- parada & do mundo animal e vegetal déste planeta — para no falar na vida dos mun- dos estelares, — 6 realmente breve, & uma ascengfo e um declinio de uns poucos milé- nios, um periodo que nao tem a menor impor- taneia na histéria da terra mas que, para nés que nascemos com éle, esté cheio de forca e grandeza tragicas. E nés, séres humanos do século vinte, descemos a encosta vendo a des- cida, Nossa faculdade de perceber a hist6ria, nossa capacidade de escrevé-la, 6 um sinal re- velador de que nosso caminho se dirige para baixo, Nos picos das Culturas superiores, no momento em que estas se acham em transito para a civilizagio, ésse dom de penetrante co- nhecimento Ihes aparece por um instante, mas sé por um instante. Entre os enxames das estrélas_“eternas” intrinsecamente néo importa qual seja o des- 32 OSWALD SPENGLER =W_____OSWALD SPENGLER tino déste pequeno planeta que segue seu cur- so por breve tempo em algum lugar do espaco infinito. Ainda mais insignificante 6 aquilo que em sua superficie se move durante alguns instantes. Mas cada um de nés, intrinseca- mente um nada, se vé lancado nesse universo rodopiante por um minuto indizivelmente bre- ve. Porisso éste mundo em miniatura, esta hist6ria universal, é algo de suprema impor- tancia. E, 0 que é mais, o destino de cada um désses individuos nao consiste apenas em, por seu nascimento, terem sido éles trazidos para dentro desta historia universal, mas sim em haverem aparecido num determinado s6- culo, num determinado pais, num determina- do povo, numa determinada religiio, numa determinada classe. Nao estd ao nosso alean- ce escolher entre ser filho dum camponés. egipcio de 3.000 A. C., de um rei persa ou en- t&io dum vagabundo de nossos dias, A ésse destino temos de nos adaptar. fle nos con- dena a certas situacdes, concepedes ¢ agdes. Nao existe “o homem em si” tal como querem os filésofos, mas apenas homens de uma épo- ca, de uma localidade, de uma raca, de uma indole pessoal, homens que travam batalha © HOMEM E A TECNICA 33 com um dado mundo e acabam vencendo ou sucumbindo, enquanto o universo ao redor dé- les segue lentamente o seu curso com uma in- diferenca divina, Essa batalha é a vida — a vida, sim, no sentido nietzscheano — uma lu- ta torva, impiedosa e sem quartel, que nasce da vontade-de-poder. sLoa.n, | HERBI{VOROS E ANIMAIS DE RAPINA HOMEM é um animal de rapina. Pensadores agudos como Montaigne e Nietzsche nunca ignoraram isso. Os velhos contos-de-fadas e os provérbios dos eampo- neses e némades de todo 0 mundo, com sua sabedoria da vida: a semi-sorridente penetra- go caracteristica dos grandes conhecedores de homens (estadistas, generais, comercian- tes ou juizes) do alto de suas vidas ricas: 0 desespéro do reformador fracassado: a invee- tiva do sacerdote irado — em nenhuma parte se nega ou sequer se tenta esconder ésse fato. S6 a cerimoniosa solenidade dos filésofos * idealistas e outros... tedlogos 6 que no te- ve a coragem de proclamar o que no fundo 03 seus coragdes sabiam muito bem. Os ideais sio covardias. Nao obstante, das obras mes- mas dessas pessoas se pode tirar uma bonita antologia das opinides que de quando em quando elas deixaram escapar a respeito da bésta humana. 40 OSWALD SPENGLER Devemos hoje ajustar contas definitiva- mente com ésse modo de ver. O cepticismo, a tinica atitude filos6fica possfvel nesta época (mais ainda: a tinica digna dela) nao permi- te tanto desperdicio de palavras. No entanto, por essa mesma razio, nio deixarei de con- testar as opinides que se desenvolveram da ciéncia natural do século passado. Nosso trata- mento e classificagio anatémicos do mundo animal acham-se inteiramente dominados (como era de se esperar em vista de suas ori- gens) pelo ponto de vista materialista. A ima- gem do corpo, tal como ela se oferece aos olhos do homem (e s6 aos do homem), e, fortiori, 0 corpo dissecado, preparado quit camente e maltratado pelas experiéncias de- ram lugar a um sistema que Lineu fundou e que a escola de Darwin ‘aprofundou com a paleontologia. % um sistema de particularida- des estaticas e oticamente observaveis, ao la- do do qual encontramos outra ordem comple- tamente diferente e destituida de sistema, uma ordem dos modos de vida que se revela apenas na convivéncia ingénua, através dessa afinidade intimamente sentida do Ego e do Tu, que qualquer camponés, bem como qual- © HOMEM EA TRCNICA a quer poeta, conhece. Gosto de meditar sdbre a fisiognoménica dos modos em que se mani- festa a vida animal e sobre as espécies da alma animal, deixando aos zoologistas a sistemé- tica da estrutura corporal. Revela-se ent&o uma hierarquia, do corpo e néo do espirito, completamente diversa. A planta vive, embora s6 seja um ser vi- vo no sentido restrito. Com efeito, ha vida nela ou em térno dela. Ela respira, ela se ali- menta, ela se multiplica, dizemos nés. Mas na realidade ela,é simplesmente 0 teatro dés- ses processos que constituem uma unidade com os processos da Natureza em térno, tais como 0 dia e a noite, os raios do sol e a fer- mentacao do solo. Assim sendo, a planta mes- ma nao pode querer ou escolher. Tudo acon- tece com ela e nela. A planta nfo escolhe a sua posicéio, nem o seu alimento, nem as ou- tras plantas com as quais exerce as fungdes de reprodugo. Ela nfo se move, mas sim 6 movida pelo vento, pelo calor e pela luz. ‘Acima dessa espécie de vida alca-se ago- ya a vida livremente mével dos animais. Mas dessa vida h4 dois estadios, H& uma espécie, representada em todos os géneros anatémicos « OSWALD sPpENGLER desde os animais unieelulares até os palmi- pedes e os ungulados, e cuja vida depende em sua manutencio do mundo imével das plantas, pois estas no podem fugir nem de. fender-se. Acima, porém, dessa espécie exis. te uma segunda: a dos animais que vivem de outros animais e cuja vida consiste em matar. Neste caso a presa mesma 6 mével, e em alte grau, e, além do mais, 6 combativa e bem do. tada de toda a sorte de austicias, Bsta segun. da espécie se encontra também em todos os géneros do sistema, Cada gota d'égua 6 um campo de batalha, Nos que temos a luta da terra tao constantemente ante nossos olhos que chegamos a aceité-la como natural, e até Mesmo a esquecé-la, estremecemos de horror ao ver como entre as formas fantésticas das lezas do mi i Brofmdesas do mar se procesa essa vida de O animal de rapina 6 forma mai da vida mével, Significa um mdtine de he berdade a seu favor e contra os outros, o ma. ximo de responsabilidade prépria, de. singu- laridade; significa também o extremo de ne- cessidade onde ésse eu s6 se pode afirmar lutando, vencendo e destruindo. O fato de 0 HOMEM EA TECNICA a ser o tipo humano um animal de rapina con- ferethe uma alta dignidade. ‘Um herbivoro 6 por destino uma presa. Procura por meio do voo fugir a essa sina, mas os animais de rapina precisam de vitimas. Um dos tipos de vida é, em sua esséncia mais intima, defensivo; 0 outro, ofensivo, duro, cruel, destruidor. A diferenga se faz visivel mesmo na tatica dos movimentos. De um la- do 0 habito do véo, o dom da velocidade, da evasio, de negar o corpo, de ocultar-se. De outro lado, vemos o movimento retilineo do ataque, o salto do leo, o vo arremessado da Aguia, Existem negacas e artimanhas tanto no estilo do forte como no do fraco. A astt- cia no sentido humans, isto é, a astticia ativa, 6 atributo apenas dos animais de rapina. Com- parados com éstes, os herbivoros sao obtusos, nio apenas a pomba “inocente” e o elefante, mas também as espécies mais nobres dos un- gulados: 0 touro, o cavalo e o cervo. S6 quan- do cegos de raiva ou sexualmente excitados 6 que sio capazes de lutar; de outro modo deixam-se domar e uma crianga facilmente os poder conduzir. ‘Além dessas diferengas entre as espécies 44 : OSWALD SPENGLER de movimento, ‘existem outras, ainda mais mareadas, nos orgios dos sentidos. Porque elas séio acompanhadas por diferencas na ma- neira de apreender, de ter um “mundo”. Em si mesmo todo o ser vive na natureza dentro de um ambiente, nao importando que éle per- ceba ou nao ésse ambiente ou que seja ou nao notado dentro déle. &, porém, a relacio—mis- teriosa, inexplicével por qualquer raciocinio humano — que se estabelece entre o animal € 0 ambiente, por meio dos sentidos do tacto, da ordem e do intelecto, que transforma o sim- ples ambiente em um muhdo circundante. Os herbivoros superiores so governados pelo ou- vido, mas acima de tudo pelo olfato (*) ; os car- nivoros superiores, por outro lado, dominam com os olhos. O olfato é um sentido caracte- risticamente defensivo. Com o nariz o animal fareja 0 quadrante e a distancia do perigo, dando assim aos movimentos de fuga a diro- ao conveniente: o afastamento de alguma coisa. Mas 0 6lho do animal e visa um alvo. O fato mesmo de os dois olhos dos gran- CY “Uexdal: Biologlache Weltanschasting Q HOMEM EB A TSONICA 45 des carniyoros, bem ¢omo os do homem, pode- rem fixar-se num ponto do ambiente permite ao animal fascinar a presa. Nesse olhar hostil esté ja implicito para a vitima o destino a que nao pode fugir, o salto do momento imedi Mas ésse ato de fixacdo de dois olhos di dos para diante e paralelamente é equivalen- te ao nascimento do mundo no sentido da pos- se do mundo pelo Homem — isto é, como um quadro, como um mundo diante dos olhos, como um mundo nao apenas de luzes e céres, mas de distdncias em perspectiva, de espaco e de movimentos no espago, de objetos situa dos em determinados pontos. Essa maneira de ver que todos os earnivoros superiores pos- suem — os herbivoros, como por exemplo os ungulados, tém_os olhos orientados lateral- Jngnte, dando cada um déles uma impressio diferente ¢ sem perspectiva — traz j4 em si a idéia implicita de dominio. A imagem do mundo é o mundo circundante dominado pe- los olhos. Os olhos do animal de rapina de- terminam as coisas de acérdo com sua posi- cdo e distdncia. files apreendem o horizonte. Medem negse campo de batalha 0 objetos e as condigdes do ataque. Um a farejar, 0 ou- NY EAE 46 |__ OSWALD SPENGLER tro a espreitar, — 0 veado esté para o faledo assim como 0 escravo esté para o senhor. Ha um sentimento infinito de férga nesse olhar largo e tranquilo, um sentimento de liberdade que brota da superioridade e se apoia na con- ciéncia de um maior poder e na consequente certeza de nao ser presa de ninguém. O mun- do 6 a presa, e désse fato, em tltima anilise, nasceu téda a cultura humana. E, finalmente, 0 fato dessa superioridade inata se tem intensificado néo apenas para fo- ra do mundo luminoso e das suas distancias infinitas, mas também para dentro, relativa- mente & espécie de alma de que sio dotados os animais fortes, A alma — ésse qué de enigmitico que sentimos ao ouvir esta pala- vra, mas cuja esséncia nifio é acessivel a ne- nhuma ciéncia; essa chispa divina neste-cor- po vivo, que neste mundo divinamente cruel e divinamente indiferente tem de dominar ou de capitular — a alma é 0 contra-polo do mundo luminoso que nos cerca. Dai o fato de pensamento e o sentimento humanos esta- rem sempre prontos a aceitar a existéncia de uma alma césmica dentro déle. Quanto mais Bblitario 6 o ser e mais resoluto se mostra no — OQ HOMEM © A TECNICA at formar um mundo para si mesmo, contra t6- as as outras conjunturas de mundo a seu re- “dor, tanto mais efinida.a torte 6 a tempera de sua alma. Qual é o oposta da alma de um leio? A alma de uma vaca. Os herbivoros substituem a férca da alma individual pelo grande ntimero, pelo rehanho, pelo sentir e pelo fazer em comum das massas. Quanto menos, porém, um individuo precisa dos ou- tros, tanto mais poderoso éle é O animal de rapina é inimigo de todo o mundo. Nao to- lera nunca um igual em seu antro. Aqui es- tao as raizes do verdadeiro conceito régio de propriedade. A propriedade é 0 dominio no qual exercitamos poder ilimitado, o poder que conquistamos em batalha, que defende- mos contra nossos pares, que mantivemos vi- toriosamente. Nao 6 o direito a um mero ha- ver, mas sim 0 soberano direito a fazer o que queremos com 0 que é nosso. Uma vez que compreendemos esas coi- sas, chegamos A verificaciio de que existe a ética do carnivoro e a ética do herbivoros Es- t4 fora do aleance de qualquer um alterar is- so. Trata-se de algo que pertence A forma intima, ao sentido e a tatica de téda a vida. 48 SWALD SPENGLE um simples fato. Podemos aniquilar a vida, mas nao lhe podemos alterar o cardter. Um animal de rapina domesticado e cativo — qualquer jardim zoolégico nos oferece exem- plos disso — fica mutilado, tomado de sauda- de césmica, interiormente morto. Alguns dé- les fazem voluntariamente a greve da fome, quando capturados. Os herbivoros nada per- dem no processo de domesticagio. Essa 6 a diferenga entre o destino dos herbivoros e o do animal de rapina. Um dés- ses destinos apenas ameaga; 0 outro, exalta. Aquele deprime, empequenece e acobarda; éste eleva por meio do poder e da vitéria, do orgulho e do 6édio.. E a luta da natureza- interna com a natureza-externa ji nao de- ve ser considerada miséria como afirmava Schopenhauer, ou “luta pela existéncia”, co- mo achava Darwin, mas sim um grande sen- tido que enobrece a vida, o amor fati de Nietzsche. E a esta espécie e nao & outra que o Homem pertence. QUATRO HOMEM nao é nenhum simpl “pom por natureza” e estipido; nem uum semi-macaco com tendéncias téenicas, co- mo Haeckel 0 desereve e Gabriel Max o pin- ta: (°). Por sdbre ésses quadros cai ainda & sombra plebéia de Rousseau. Nio, a tities de sua vida é a de um espléndido animal de rapina, corajoso, astuto ¢ cruel, Vive de ata- car, de matar e de destruir, Ble quer, e des: dle que existe sempre tem querido, ser senhor. Significaré isso, entretanto, que a téeni- ca’é na realidade mais antiga que o homem? {iy Fel © impaciente dembalo da clanifcacio, que assom inn {Psat pron aronon 0 tonen do mets ae, memos onatomies eto je om ies do man condusdo mato aprenodn ¢ spel ha oe enue ge fl darwiasta: Det Werde sete Menechhelt (O Advento dx Humanidade) 1920, & pda 0 seguintes, stamente no, “sistema” mesmo que © et 28 5 see i scr sol pre Lalas? oral ¢ aberrado em outras eet pan de nn eau CO _ ta tree es que etaon extend € ge is iho ato ne em an an ee ¢ wm anal dt 0 4—O8T. OSWALD sPE GLER Certamente nao. HA uma enorme diferenca entre o homeni ¢ os outros animais, A técnica déstes tiltimos é uma técnica genérica. Nao é inventiya nem suscetivel de desenvolvimento. 0 tipo abelha desde que existe tem construi- do seus favos exatamente como 0 faz agora, e hé de continuar a construi-los assim até a sua extingiio. Os favos pertencem & abelha como'a forma de suas asas e a cdr de seu cor- po. As diferencas entre a estrutura corporal e 0 modo de’vida s6 existem vistas do angulo do anatomista. Se partirmos da forma interna da vida em vez de’da forma externa do cor- po, veremos entdo a tatica de vida e a distri- buie&o do corpo como uma tinica e mesma coisa, expressdes ambas de uma mesma tea- lidade organica. A “espécie” ¢ uma forma, nao do vistvel e estético, mas da mobilidade —ama forma nao do ser-assim mas do fazer- assim. A forma corporal é a forma do corpo ativo. As abelhas, as térmitas e os castores er- guem construgdes admirdveis, As formigas conhecem a agricultura, a construcio de estra- das, a escravidio e a guerra. A arte de criar os filhos, de erguer fortificagdes e organizar © HOMEM © A TECNICA St 9 HOMEM EA TBONICA as migragées se acha Jargamente difundida na natureza. Tudo que o homem pode fazer esta on aquela espécie de animal j4 tem feito. Sao tendéncias que existem adormecidas sob a forma de possibilidades dentro da vida mé- vel. O homem nada realiza que nfo seja rea- lizdvel pela vida como um todo. No entanto, no fundo tudo isso nada tem a ver com a técnica humana. A téenica da espécie 6 inalteravel. Eis 0 que significa a palavra “instinto”, Estando o “pensamento” animal estritamente ligado ao agora © aqui imediatos e néio conhecendo o passado ¢ 0 futuro, nao conhece também a experiéncia e ‘a preocupacdo. Nao é verdade que entre os animais as fémeas se “preocupem” com os filhotes. Preocupaciio é sentimento que pres- supde visio mental futuro a dentro, interésse pelo que esté por acontecer, do mesmo modo que remorso implica em conhecimento do que aconteceu. Um animal néo pode odiar nem desesperar. O cuidado da cria é, como tudo mais que se mencionou acima, um impulso obscuro e ineoneiente como os que se encon- tram em muitos tipos de vida. Pertence & es- pécie e niio ao individuo, A técnica genérica a OSWALD SPENGLER nao é apenas inalterdvel, mas também impes- soal, Pelo contrario, ha até um fato tmico com relagio & técnica humana: o de que ela é in- dependente da vida do género humano. & 0 tmico caso em téda a histéria da vida em que o individuo se liberta da coagio da espécie. Precisamos meditar longamente sdbre essa idéia se quisermos apanhar-lhe a imensa sig- nificagio. A técnica na vida do homem é con- ciente, arbitréria, alterdvel, pessoal e inven- tiva. Aprende-se e é suscetivel de melhora. O homem se fez criador de sua tatica de vida. Esta é a sua grandeza e a sua fatalidade. E forma interna dessa criatividade chamamos cultura, — possuir cultura, criar cultura, pa- decer pela cultura. As criagdes do homem sio a expressio de sua existéncia em forma pessoal. CAPITULO Ill A ORIGEM DO HOMEM: A MAO E 0 INS- TRUMENTO A mio como érgao do tacto e da acéo, — Diferenciacio entre o fabrico das armas e 0 uso delas. — Liberagio relativa a coacdo da espécie. — “Pensamento do dlho” ¢ “pensa- ‘mento da mao”. — Meios ¢ fim. — O Homem como eriador. — O ato singular. — Natureza e.“arte”. — A téeniea humana é artificial. — Homem versus Natureca, — A tragédia do Homem. CINCO ESDE quando existe ésse tipo de carni- yoro inventive? Ou, entio, 0 que vem dar no mesmo, desde quando existe o ho- mem? Que é 0 homem? Como veio a ser ho- mem? Bis a resposta: através da génesis da mao. A mio é uma arma sem igual no mun- do da vida mével. Comparémo-la com a pa- ta, o bico, os cornos, os dentes e as barbata- nas dos outros animais. Para comegar: 0 sen- tido do tacto se acha em tal grau concentra- do na mao que esta pode ser quasi conside- vada o 6rgao tdctil, no mesmo sentido em que os olhos so os orgdos visuais e os ouvi- dos os orgéos auditivos. A mao nao s6 dis- tingue o quente do frio, o s6lido do liquido, 0 duro do mole, mas também, acima de tudo, © péso, a forma, o lugar das resisténcias, ete., — em suma,’as coisas no espaco. Além e aci- ma dessa funcio, porém, a atividade da vida se retine de modo tao completo na mao que toda a postura e marcha do corpo tomou — se simultaneamente — a configuragao dela. Nao h& nada em todo o mundo que se possa com- parar a ésse membro capaz igualmente de toque e de ago. Aos olhos do animal de ra- pina que contemplam “teorieamente” o mun- do, ajunta-se a mao do homem, que o domina praticamente. A sua origem deve ter sido sibita, com relac&o ao ritmo das correntes césmicas. Ela deve ter acontecido tio abruptamente como um relampago ou um terremoto, & maneira das coisas decisivas que na histéria do mun- do marcam época, no sentido mais alto da expressiio. Neste ponto, temos de outra vez nos li- bertar da idéia — sustentada no século pas- sado ¢ baseada nas investigacdes geolégicas de Lyell — de um processo de “evolucio”. ‘Uma variacio assim lenta e fleugmatica adap- ta-se bem A maneira de ser dos ingleses, mas nao corresponde & Natureza. Para apoiar a teoria recorre-se a milhdes de anos, uma vez que dentro dos periodos de tempo mensuré- veis nada se revelava désse proceso. Mas na verdade nao poderfamos distinguir as diver- sas camadas geol6gicas se niio houvessem si- 59 do elas separadas uma das outras por catas- trofes de natureza e origem desconhecidas; endo poderiamos conhecer as espécies das criaturas fésseis se estas nfo tivessem apare- cido de stibito, mantendo-se invariéveis até a sua extingio. Nada sabemos dos “antepassa- dos” do Homem, a despeito de tédas as nos- sas investigagdes e da anatomia comparada. © esqueleto humano desde que apareceu tem sido exatamente o que é hoje. Em qualquer reunifio popular podemos encontrar até o ho- mem de Neandertal. #, pois, impossivel que a mao, a postura erecta do corpo no marchar, a posicdo da ecabeca ¢ o mais.que segue se tenham desenvolvido sucessivamente e de ma- neira independente. A coisa toda aparece junta e de repente (*). A histéria do mundo (1) Quanto 2 ess “evolugio”, em geval afirmam os darwi- sistas que a posse de ermas to admiraveis como essas favorecea fe comservou a espécie a luta pela Vida, Mas o certo € que sé ‘arma ja completamente formada poderia constituir uma ‘vanta- fgem. A.arma, durante 0 processo de evolugio — ¢ dizem que esse processo durou milénios — terla sido uma carga indtil © te a trazido mais prejulzos que beneficios espécie. Como ima- ginar.o inicio de tal evolusio? Esta caga das causas ¢ dos efel- tes, que no fim de contas so formas do pensemento humano, ¢ bo do vie-a-ser do mundo, torna-se um tanto imbecll se espt- rermos penetrar com ela nos segredos désse mundo, 60 OSWALD SPENGLER avanga de catastrofe em catastrofe, quer pos- samos compreender e provar o fato, quer nao. A isso chamamos hoje, segundo A. de Vries, Mutagao (‘), & uma mudanga interior que subitamente se apodera de todos os exempla- res duma espécie, naturalmente “sem-tom- nem-som”, como tudo mais que se passa na realidade. 1 0 ritmo misterioso do real. Mais ainda: nao s6 a mao do homem, a marcha e a postura devem ter surgido jun- tas, como também — e éste ponto ninguém até hoje observou — a mao e o instrumento. A mao inerme nio tem utilidade por si s6. Exige uma arma para se transformar ela mes- ma em arma. Assim como 0s instrumentos foram modelados de acdrdo com a forma da mio, a mao tomou também a configuracéo do instrumento. E insensato procurar separé- los a ambos no tempo. 1 impossivel que a mao j4 formada tenha exercido atividade, mesmo que por curto tempo, sem o instru- mento, Os mais remotos restos humanos e 0s (1), H. de Vries: Dle Mutationstheorle (1901, 1903) (A. ‘Peoria da, Mutagi0). mais remotos instrumentos tém a mesma idade, O que se dividiu, entretanto — nao ero- nolégica mas logicamente — foi o proces- so téenico, de sorte que a produgio do ins- trumento e 0 seu uso sfio coisas diferentes. ‘Assim como existe uma técnica de fabricar yiolinos e outra de tocar-violino, do mesmo modo hé uma técnica de construir navios e outra de navegar, — a arte de fazer bestas ea arte de maneji-las. Nenhum outro animal de vapina escolhe jamais suas armas, Mas 0 homem nao s6 escolhe como também as faz, de acérdo com suas idéias individuais. Com iso obtém uma tremenda superioridade na luta contra seus semelhantes, contra os ou- tros animais e contra a Natureza. Isso significa sua liberagao da coacao da espécie — fendmeno tmico na histéria de t6- da a vida déste planeta, Com isso 0 homem comeca a ser. Faz sua vida ativa em larga escala indepéndente das condigdes do corpo. © instinto genérico ainda persiste com plena forca, mas déle se separou um pensamento e uma acdo inteligentes que nfio dependem da espécie. Essa liberdade consiste na liberdade e OSWALD SPENGLER de eseolha. Cada um fabriea as suas pré- prias armas, de acdrdo com sua habilidade e raciocinio préprios. O descobrimento de gran- des acervos de instrumentos falhos e abando- nados sdéo testemunhos eloquentes do cuida- do désse primitivo “fabricar conciente”. Se, a-pesar-de tudo, ésses espécimes siio tao semelhantes que — embora com justifi- cago duvidosa — possamos deduzir a exis- téncia de “culturas” diferencdveis, como a acheulense e a solutrense, e até mesmo che- gar dai a estabelecer — desta vez certamente sem justificacéio — paralelos de tempo nas cinco partes do mundo, deve-se isso ao fato de que essa liberagdo da coacéio da espécie surgiu 2 prinefpio apenas como uma grande Possibilidade e esté muito longe de ser indi- vidualismo j4 realizado. Ninguém gosta de parecer extravagante, nem tampouco de imi- tar os outros. De fato, cada qual pensa e tra- balha para si mesmo, mas a vida da espécie 6 tao poderosa que a despeito disso o resul- tado 6 semelhante em todas as partes — co- mo no fundo acontece até mesmo hoje. Assim, pois, além do “pensamento dos olhos”, do olhar agudo e compreensivo dos © HOMEM BA TECNICA ue § 6 grandes animais de rapina, temos agora o “pensamento da mao”. Do primeiro desen- volyeu-ge nesse entretempo 0 pensamento, que 6 tedrico, contemplativo, observante — a “re- flexio” ¢ a “sabedoria”. E agora, do segun- do nasce o pensamento ativo e pratico, n “gsttieia”, a “inteligéncia” propriamente dita. © élho indaga sdbre causa e efeito; a mio trabalha segundo 0 prineipio dos meios e do fim, .A questio do préprio e do impréprio — © critério do fazedor — nada tem a ver com a verdade ou a falsidade, que sio os valores do observador. E um fim, um alvo, é um fa- to, ao passo que uma conexfio de causa e efeito 6 uma verdade. Dess’arte surgiram os diferentes modos de pensar dos homens-de- verdade — o sacerdote, o estudioso, 0 fil6so- fo — e dos homens-dos-fatos — 0 politico, 0 general, o comerciante. Desde entio, pois, até mesmo. nossos dias, a mio que comanda, que dirige, a mao de punhos cerrados 6 a ex- pressio de uma vontade. Tanto é assim que temos realmente uma grafologia e uma qui- rosofia, para nfo falar em figuras de lingua- gem como o “punho de ferro” do conquista- “4 OSWALD SPENGLER dor, a “mao habil” do financista e a “mao” do artista ou do criminoso. Com a mfo, sua arma, e com o seu pen- samento pessoal 0 homem chegou a ser eria- dor. Todos os animais permanecem dentro dos limites da atividade da espécie e nfo en- riquecem de modo nenhum a sua vida, Entre- tanto 0 Homem, o animal criador, espalhox por todo o mundo tais tesouros de pensamen- tos inventivos que éle parece perfeitamente autorizado a dar & sua breve historia o no- me de Histéria Universal, ¢ a olhar 0 que 0 cerea como “humanidade”, tendo o resto da natureza como um fundo, um objeto e um meio. ‘A atividade da mao pensante chamamos feitos. Ji existe atividade na existéncia dos animais, mas os Feitos s6 comecaram com o Homem. Nada caracteriza melhor essa dife- renga que a histéria do fogo. O Homem vé (causa e efeito) como surge o fogo, e o mes- mo véem muitos dos animais. Mas s6 0 Ho- mem (fim e meios) pensa num processo para provocar 0 fog. Nenhum outro ato nos dei- xa como ésse a impresséio do sentido da cria- cio. Um dos mais fantAsticos, violentos e 0 HOMEM E A TEONICA enigmétieos fenémenos da Natureza — o raio, o incéndio da floresta, o vulcio — € chamado a vida pelo préprio Homem, contra a Natureza. Que se teria passado na alma do Homem quando pela primeira vez éle viu o fogo que sua propria mio provocara? b-OnT. ‘ SEIS OB a impressiio poderosa désse ato singu- lar, livre e conciente, que assim emerge da uniforme “atividade da espécie”, ativida- de essa impulsiva e coletiva, tomou forma a alma humana verdadeira, alma mui solitéria (mesmo comparada com a dos outros animais de rapina), cheia de expressio pensativa ¢ orgulhosa, alma de quem conhece o seu pr6- prio destino; alma dotada dum incoerefvel sen- timento de poderio que se concentra no punho habituado aos feitos; alma inimiga de todos; alma que mata, que odeia, decidida & con- quista ou A morte. Essa alma 6 mais profun- da e mais apaixonada que a de qualquer ou- tro animal, Acha-se ela em oposicdo irrecon- ciliével ao mundo inteiro, do qual a, separa seu proprio cardter criador. 1 a alma de um rebelde. © homem: primitive preparava sua gua- rida, solitério como uma ave de rapina, Se varias “familias” se reuniam num bando, era 0 HOMEM E A. TECNICA 67 um bando da forma mais livre e frouxa. Nao se podia-falar ainda em tribus e muito me- nos em povos. Essa horda é uma reunidio aci- dental de uns poucos machos — que dessa vez no lutam uns com os outros, —e de suas mulheres e dos filhos dessas mulheres. Nao tém sentimento de comunidade. Vivem em perfeita Iberdade. Nao constituem um “nds” como o simples rebanho composto de exem- plares duma espécie. ‘A alma désses solitérios fortes @ total- mente guerreira, desconfiada, ciosa de sua propria forca e de suas presas. Ela conhece © sentimento nao s6 do “eu” como do “meu”. Conhece também a embriaguez dos sentidos quando a faca corta a carne do inimigo, quan- do 0 cheiro de sangue e a sensagao de espan- to pénetram juntos a alma triunfante. Cada “homem” verdadeiro, mesmo nas cidades dos periodos superiores das Culturas, sente em si mesmo de tempos em tempos os fogos ador- mecidos dessa alma primitiva, Nao ha aqui © menor vestigio dessa lamentavel estimacao das coisas como “tteis” e “economizadoras de trabalho” e muito menos désse desdentado sen- timento de compaixio, reconciliag&o e désse 68 OSWALD SPENGLER anseio de paz. Em vez, porém, disso, hi o profundo orgulho de se saber temido, admi- rado e odiado pela sua ventura e pela sua forca, e a necessidade urgente de vinganca com relagiio a tudo, tanto aos seres vivos co- mo as coisas — pois todos constituem, pelo simples fato de existirem, uma ameaca a ésse orgulho. E essa alma avanca cada vez mais, num. sempre crescente alheamento de téda a Na- tureza, As armas dos animais de rapina sio naturais, mas o punho armado do homem com a sua arma artificialmente feita, medi- tada’e escolhida, nfo é natural. Aqui come- ga a “Arte” como conceito contraposto & “Natureza”. © Cada processo técnico do homem 6 uma arte e sempre foi deserito como tal; assim temos, por exemplo, a arte de atirar com 0 areo, de cavalgar e de guerrear. As artes da construgdo, do govérno, do sacrificio, da pro- fecia, da pintura, da versificagio, da experi- mentacio. cientifica... Cada obra do homem 6 artificial, antinatural, desde a producio do fogo até as criagdes que, nas Culturas supe- riores, so especificamente consideradas “ar- © HOMEM © A TECNICA 69 tisticas””. O Homem arrebatou a Natureza o privilégio da eriacio. A “vontade livre” 6 em si nada menos que um ato de rebeldia. O homem criador se libertou dos lagos da Na- tureza e com cada criag&o nova se afasta ca- da vez mais dela, torna-se cada vez mais seu inimigo. Isso 6 “Histéria Universal”, a historia de uma dimensio fatal que se ergue, ineoereivel, sempre crescente, entre o mundo do homem e 0 universo — a histéria de um rebelde que cresce para erguer a mio contra a propria mie, Aqui principia a tragédia do homem porque a Natureza é o mais forte dos dois. O Homem continua a depender dela, porque a despeito de tudo ela o inclue, como a tudo mais, no seu seio. Tédas as grandes Culturas so derrotas. Ragas inteiras, interiormente destruidas e quebrantadas, permanecem en- tregues A esterilidade e A decomposicio es- piritual, como cadéveres abandonados no campo. A luta contra a Natureza é uma luta sem esperanga, e no entanto o homem a leva até o amargo final. CAPITULO IV © SEGUNDO ESTADIO: FALAR E EM- PREENDER O “fazer” coletive. — Hé quanto tempo se fala com palavras? — Finalidade da lin- guagem: a emprésa coletiva, — Finalidade da emprésa: exaltagdo da poténcia humana, — Separagéo do pensamento e da mao: 0 traba- Iho do diretor ¢ 0 trabalho do executor, — Ca- becas e méos: a hierarquia dos talentos, — Organizagéio. — Existéncia organizada: esta- do € povo, politica e economia, — A técnica € 0 ntimero’dos homens. — Personalidade e massa. SETE Qe tempo durou a era da mio armada —isto é, desde quando o ho- mem é homem? Nao sabemos. Seja como for, o total de anos nfo importa, embora hoje ainda o estimemos em cifra muitissimo ele- vada. Nao é um assunto de milhdes de anos nem mesmo de varias centenas de milhare Nao obstante, devem ter transcorrido muitos milénios. Verifica-se agora, porém, a segunda mu- danga que mareou época. Foi tio abrupta e imensa como a primeira, e como ela transfor- mon o destino do homem desde os alicerees. Foi mais outra verdadeira “mutacio” no sen- tido anteriormente explicado. A arqueologia prehistériea observou isso faz muito tempo, e de-fato as coisas que se acham em nossos mu- seus de sibito comecam a ter um aspecto di- ferente. Aparecem vasos de barro, tracos de “ggricultura” e “criagio de gado” (embora se empreguem aqui impropriamente ésses ter- % ‘OSWALD SPENGLER mos que designam coisas muito mais moder- nas), construco de cabanas, sepulturas, indi- cacées de viagens. Um novo mundo de idéias técnicas e de processos se anuncia. Do ponto de vista dos museus — excessivamente super- ficial e obcecado pela simples ordenacio dos achados — foi feita a distingio de duas Ida- des da Pedra, a mais velha e a mais nova, a paleolitica ¢ a neolitica. Esta distingio, po- rém, hé muito tempo vem sendo olhada com inquietantes dividas, e nestes tltimos decé- nios se fizeram tentativas para substitui-la por outra. Os estudiosos, porém, se apegam ainda A idéia da classificagdo de objetos (co- mo indieam termos como mesolitico, mioliti- _ co, mixolitico) e dai néo vaio para diante. © que mudou nao foram os utensflios, mas sim o Homem. &, uma vez mais, apenas par- tindo de sua alma que se pode deséobrir a his- toria do Homem. Podemos fixar a data dessa mutacio com razodvel preciséo se a situarmos 14 pelo quinto milénio antes de Cristo (*). Dois mil @) Segundo as pesquisas de De Geers em t®mno da cerd- nica listada da Suécia, (Reallexikon der Vorgeschichte), a ee 0 HOMEM EA TECNICA aT anos mais tarde, quando muito, as Culturas superiores comecam no Egito e na Mesopo- tamia. Na verdade, o ritmo da historia se processa tragicamente, Até ent&o milhares de anos quasi no contavam absolutamente; agora, porém, cada século se torna importan- te. Em saltos violentos a pedra se aproxima rolando do abismo. Mas na verdade, que foi que aconteceu? Se nos aprofundarmos mais neste novo mundo de formas das atividades do homem,. logo perceberemos as mais fantdsticas ¢ com- plicadas das relagdes. Em todas essas técnicas, uma pressupde a existéncia da outra. A ma- nutengfio de animais domesticados exige o cultivo de forragem, a semeadura e colheita de plantas nutritivas requerem por sua vez a existéncia de animais de tiro e de carga; estes, por seu turno, pressupdem a construcio de cercados. Cada tipo de edificagio exige a preparacao e o transporte de materiais; e © transporte, por sua vez, requer estradas, animais de carga e barcos. Que 6, em tudo isso, a transformagio “espiritual”? A resposta que ofereco aqui est4: — ag&o coletiva por meio, de plano. 78 QSWALD SPENGLER Até ent&o cada homem tinha vivido sua pré- pria vida, feito suas préprias armas, seguido sua propria tatica na luta didria. Ninguém precisava do préximo. Tudo isso, porém, mu- da subitamente. Os novos processos ocupam longos perfodos de tempo; em alguns casos, anos inteiros. Pensemos, por exemplo, no tem- po que decorre entre a derrubada de uma Arvore e a partida do bareo que com ela se construiu. A histéria se divide numa série de “atos” separados e bem ordenados e de “en- redos” que se desenvolyem paralelamente uns aos outros, Para ésse processo coletivo a con- dicéo prévia indispensdvel era um meio — a linguagem, O falar em frases e palavras, portanto, néio pode ter comecado antes nem depois, mas deve ter surgido entéo — rapidamente como tudo quanto é decisivo e, além disso, em e: treita conexio com os novos métodos do ho- mem. Pode-se provar isso. Que vem a ser “falar”? 1 sem diivida um processo que tem por finalidade fornecer informaco, uma atividade que é exercida continuamente por uma quantidade de séres MEM BA TSONICA » humanos. O “diseurso” ou “linguagem” é apenas uma abstragéio disso; é a forma inte- rior (gramatical) do falar e, portanto, das palavras. Essa forma deve ser propriedade comum e ter uma certa permanéncia para que possa servir de meio de informacio. Demons- trei em outra parte que o falar em sentencas foi precedido de formas mais simples de co- municacio, tais como simbolos visuais, sinais, gestos, gritos de adverténcia e ameaga. Tédas essas coisas continuam a existir ainda em nos- sos dias, como auxiliares da palavra, na me- lodia da diceao, na énfase, no jogo de gestos e (no discurso escrito) na pontuacio. Nao obstante, o falar “fluente” 6, por forea do seu contetido, qualquer coisa de com- pletamente novo. Desde Hamann e Herder vém os homens propondo a si mesmos a ques- tao da origem da linguagem falada. Mas se tOdas as respostas oferecidas até hoje nos pa- recem pouco satisfatérias é porque a intencéio da pergunta foi mal compreendida. Porque a origem da linguagem em palavras nao se pode encontrar na atividade mesma do falar. fase foi o érro dos romanticos que — alheios como sempre A realidade — queriam derivar OSWALD SPENGLER o idioma da “poesia primordial” da humani- dade. E mais ainda: achavam éles que a pré- pria linguagem j4 em si mesma era essa poe- sia original — mito, poema e oragio, tudo a um tempo — e que a prosa era simplesmente qualquer coisa de posterior que se degradara para se acomodar ao uso comum de cada dia. Mas se tivesse sido assim, a forma intima da linguagem, a gramitica, a construcdo légica da sentenca, deveria ter um aspecto comple- tamente diferente. Na realidade sio precisa- mente os idiomas primitivos, como os das tri bus bantis e turcomanas, que mostram de maneira mais acentuada a tendéncia de mar- car diferencas claras, incisivas e inequivo- cas. () Isso por sua vez nos leva ao érro funda- mental désses inimigos declarados do roman- ticismo, os racionalistas, que vivem eterna- mente apegados 4 idéia de que a sentenca exprime um juizo ou pensamento. Sentam-se éles a suas mesas-de-trabalho, cercados de li- (2) Tanto é assim que em muitas linguas a sentenga € uma palavra dnica ¢ monsiruosa na qual, por melo de prefixos e su- fixos classificativos, colocados em ordem regular, se exprime © ‘que se quer dizer vros, e poem+se a fazer minuciosas investiga- ces sObre seu proprio modo de pensar ¢ es- crever. Em consequéncia disso o “pensamen- to” se Ihes apresenta como o fim da lingua- gem falada e — como de habito ésses pesqui- sadores fazem meditagées solitérias — esque- cem-se @les de que além do falar, existe o ouvir, além da pergunta hé a resposta, além do eu est o tu. Quando dizem “linguagem” pensam no discurso, na conferéncia, na, dis- sertagiio. Sua opinifio sdbre a origem da lin- guagem 6 portanto falsa, pois éles a encaram como monélogo. ‘A maneira correta de tratar o problema nao é procurar saber como mas sim quando apareceu a linguagem em palavras. E uma vez formulada a pergunta, tudo em breve se esclarece. O fim da linguagem em sentencas, habitualmente mal compreendido ou ignora- do, é estabelecido pelo periodo em que se tornou um costume o falar assim (isto é, “flnentemente”) e revelado com absoluta clareza na forma de construir a oracio. ‘A linguagem no nasceu por meio do monélogo nem as sentencas seguiram os ca- minhos da oratéria. Ela nasceu da conversa- 6-—OH.T. 82 ‘OSWALD SPENGLER c&o entre varias pessoas. Sua finalidade nao 6 wma compreensiio baseada na reflexio, mas sim um entendimento recfproco em conse- quéncia de pergunta e resposta. Quais sio, pois, as formas basicas da linguagem? Nao o juizo nem a declaragdio, mas sim a ordem, a expressio de obediéncia, a enunciacio, a per- gunta, a afirmacdo ou a negacio. Eram sen- tencas originalmente bastante breves ¢ inva- riavelmente dirigidas a outros, tais como “Fa- ga isto!” — “Pronto?” — “Sim!” — “Va- mos!”. As palavras como designadoras de conceitos (') séo apenas produtos da finali- dade da sentenca, de sorte que o vocabuldrio de uma tribu de cagadores é desde o inicio diferente do de uma aldeia de pastores ou do de uma populacdo que habita a beira do mar. Originalmente o falar era uma atividade di- ficil e pode-se ter como certo que éle estava limitado ao estritamente necessirio. Mesmo em nossos dias 0 camponés é pareo de pala- ‘vras, comparado com o homem da cidade — () © conceito ¢ ordenagSo de coisas, situagbes e ativi- cdades em classes de generalidade “prética”. O criador de cavalos néo diz nunca “cavalo”, mas elm “egua tonlilha”, "potro balo’, ee... F © HOMEM E A TECNICA 83 que esta tio acostumado a falar, que nfo po- de calar a béca e 6 capaz de, por mero des- fastio, tagarelar e entabular conversagéio quando nfo tem nada que fazer, tenha ou nao tenha o que dizer. A finalidade primitiva da linguagem‘é a execugéo de um ato, de acérdo com uma inteng&o, tempo, lugar e meio. A construgio clara e inequivoca do ato é o primeiro ele- mento essencial; e a dificuldade de fazer-se compreender, de impor aos outros a nossa yontade, produz a técnica da gramatica, da formagdo de oragées e construgées, os modos corretos de dar ordens, fazer perguntas, res- ponder, formar classes de palavras — tudo ‘isso baseado em intencées e prépositos pré- ticos e nio tedricos. O papel representado pela meditagao tedrica nos prineipios da line guagem falada foi praticamente nulo. Todo o falar era de natureza pratica e procedia do “pensar da mio”. OITO x A “AGAO coletiva por meio de plano” se pode dar o nome mais curto de “em- présa”, “A relacio que existe entre o falar ¢ © empreender 6 precisamente a mesma que existia antes entre a mao ¢ o instrumento. O falar entre muitas pessoas desenvolveu sua forma interna gramatieal na exeeugio das emprésas; ¢, viceversa, 0 costume de levar a cabo tarefas se diseiplinoy mediante 0 méto- do de um pensamento que lidava com pala- vras Porque o falar consiste em comunicar alguma coisa ao pensamento de outrem. Se 0 falar 6 um ato, 6 sem diivida um ato intelec- tual com meios sensiveis. Muito em breve deixa de precisar da primitiva relagdo ime- diata com o ato fisico. No quinto milénio antes de Cristo uma inovaco mareou época: o pensar, o intelec- to, a raztio on como quer que chamemos a is- so que, por meio da linguagem, se emaneipou M_E A TECNICA 85 da dependéncia da mio ativa — apareceu co- mo uma férga em si mesmo ante a Alma e a Vida, A reflexdo puramente intelectual, o “céleulo” que nesse ponto surgiu — sibita, decisiva e radicalmente — consiste nisto: em que a aco comum 6 uma unidade tio defini- da como seria a agio pessoal de um gigante. Ou como Mefistéfeles diz ironicamente a Fausto: .+Merco seis urcos, de seis urcos a forga ajunto a minha, Levo-me pelo ar, porque possuo mais vinte © quatro pés... (1) O homem, animal de rapina, insiste con- cientemente em aumentar sua superioridade muito para além dos limites de sua forca cor- poral. A ésse seu desejo-de-mais-poder éle sa- crifiea até um elemento importante de sua pré- pria vida. O pensar e o calcular um efeito maior 6 0 que vem em primeiro lugar. E pa- ra conseguir isso éle se dispde a sacrificar um pouco de sua liberdade pessoal. Por dentro, entretanto, 0 homem se conserva indepen- (1) Goethe — Fausto (Tradugio de Castillo), Pr Ee eT PE TR re 86 OSWALD SPENGLER dente. Mas a Histéria ndo permite os passos A retaguarda, O Tempo, e por conseguinte a Vida, nao sao reversiveis, Uma vez habitua- do & ag&o coletiva e aos seus éxitos, ficou o homem cada vez mais fundamente preso a ésses vinculos fatais. O pensamento de em- présa exige um dominio cada vez mais firme sdbre a vida da alma. O homem se tornou escravo do préprio pensamento. O passo que vai do uso dos instrumentos pessoais A emprésa comum implica numa ar- tificialidade crescente do procedimento. O simples trabalhar com material artificial (co- mo na ceramica, na tecelagem e na arte de fa- zer esteiras) nao significa ainda grande coisa, embora esteja muito mais impregnado de es- pirito e seja muito mais criador do que tudo quanto ficou para tras. Chegaram, porém, até nés vestigios de uns poucos processos que pressupdem de-fato grande férca mental e que se acham bastante acima dos muitos de espé- cie ordinaria a respeito dos quais hoje nada podemos saber. Temos, sobretudo, os que nasceram da idéia de construir. Muito antes de qualquer conhecimento dos metais, havia minas de pederneira na Bélgica, Inglaterra, ta © HOMEM EA TECNICA 87 Austria, Sicilia e Portugal; minas que certa- mente remontam a ésse tempo; minas com pogos e galerias, com ventilacéo, drainagem e instrumentos feitos de cornos de cervo ('). No perfodo neolitico inferior, Portugal e o noroeste da Espanha tinham estreitas ligagdes com a Bretanha (contornando a Franga me- ridional) e a Bretanha por sua vez tinha co- munig6es com a Irlanda. Essas relacoes su- podem uma nayegacdo regular e portanto a construgio de navios capazes de enfrentar o mar, a-pesar-de nao termos déstes 0 menor conhecimento. Existem na Espanha edificios megaliticos de pedra lavrada de proporgdes giganteseas com cobertas que pesam mais de cem toneladas e que devem ter sido trazidas de muito longe e colocadas em seus lugares segundo uma técnica para nés desconhecida. Sera que na verdade compreendemos bem o que de reflexio, consultas, fiscalizacdo e or- dens foi necessério durante meses e anos sem fim para se poder extrair o bloco, para tras- lada-lo, para. distribuir as tarefas no tempo e (Oy Reallexikon der Vorgeschichte (Diciondrlg de Prehisto- tia) ~ Tomo 1, Verbete: Bergbau (ssinério). ae 1 OSWALD SPENGLER no espago, para delinear o plano e para em- preender e executar um trabalho dessa: natu- reza? Como comparar a prolongada medita- cho prévia necesséria para o transporte désse bloco por alto mar com’a simples producio de uma faca de pederneira? S6 0 “areo compos- to”, que aparece nas figuras pintadas em ro- chas, na Espanha, requer para sua constru- cho, tendées, cornos e madeiras especiais, to- dos de origens diferentes, e ao-mesmo tempo um complicado processo de manufatura que levava de cinco'a sete anos. Ea “invencio”, como ingenuamente dizemos, do carro — quanto pensamento, quantas ordens e quanta atividade ela pressupde, desde a determina- cio do propésito’e da espécie de movimento exigidos, da escolha e preparacio da estrada (um ponto habitualmente esquecido), da cap- tura ou domesticacio dos animais para a tra- fio — até as consideragées a respeito do’ta- manho, péso e amarramento da carga e da di- recio e abrigo de um combéio! Um outro mundo absolutamente diferen- te de criages surge da “idéia” de procriacio — a saber, a criac&o de plantas e animais 0 HOMEM BA ‘THONICA 89 mediante a qual o homem se faz representan- te da Natureza criadora, imitando-a, modifi- cando-a, melhorando-a e violentando-a. Des- de 0 tempo em que 0 homem comecou a cul tivar em vez de. Apenas apanhar as plantas nao ha diivida que éle as tem modificado con- cientemente de acérdo com seus propésitos. Em todo o caso os achados prehistéricos de exemplares vegetais pertencem a espécies que nunca foram encontradas em estado sel- yagem. Mesmo nos mais antigos achados de ossos de animais que indicam alguma forma de criacdo de gado, percebemos j4 as conse- quéncias da “domesticacdo”, a qual'em parte, se no no todo, deve ter sido intencional e foi conseguida por meio de uma criac&o (*) de- liberada. © coneeito-de-presa do carnivoro se amplia e inclue nao apenas as vitimas mor- tas na cagada, mas também o rebanho selva- ge que pasta em liberdade dentro (ou mesmo fora) dos cercados erguidos pela mao do ho- (1) *Hilzheimer: Natieliche Rassengeschichte der. Haussiue- tere ~ 1926 (Historia Natural das Ragas dos Mamiferos Domés- tcos). 20 ‘OSWALD SPENGLER mem. ('). Pertence éle a alguém, — a uma cla ou bando de eacadores — e seus donos de- fendem o seu direito de exploragio. A cap- tura de animais para fins de criacio, fim que pressupde o cultivo de plantas forrageiras para sua alimentagdo, constitue uma das vé- rias maneiras de possessiio naqueles tempos praticadas. JA demonstrei que o nascimento da mao armada teve por consequéncia uma separa- cao légica de duas técnicas, a saber: a da produgio ea do manejo da arma, Do mesmo modo, a emprésa dirigida pela linguagem le- va a separacio. da atividade mental. da ati dade manual. Em téda a emprésa o planejar € 0 executar so elementos distintos e, a par- tir désse momento, o pensamento pratico re- presenta o principal papel. Ha um trabalho de direcéo ¢ um trabalho de execugio e éste fato tem sido desde entiio a forma técnica fundamental de téda a vida humana. Quer (@) Mesmo no século dezenove as tribus de indlos ‘perse- ‘gulam 0s grandes rebanhos de bifalos como ainda hoje os gatichos argentinos correm atrés dos rebanhos vacunt que so proprie-” dade privada. O nomadismo nasceu assim em grande parte da sedentariedade. © HOMEM EA TECNICA on se trate de cacar grandes animais, de cons- truir templos, de langar uma emprésa guer- reira ou agricola, quer se cogite de fundar um estabelecimento comercial ou de organizar a viagem de uma caravana, uma rebelido e até mesmo um crime — sempre o primeiro requi- sito 6 uma cabeca empreendedora e inyenti- va para tracar a idéia e dirigir a execucdo, para comandar e para distribuir as tarefas. Numa palavra, alguém que tenha naseido pa- ra chefe de outros que nao 0 sao. Porque na época das emprésas dirigidas verbalmente no existem apenas duas espé- cies de téenieas — as quais, por falar nisso, divergem de modo cada vez mais definido & medida que se passam os séculos — mas tam- bém duas espécies de homens, diferenciados pelo fato de seus talentos se encontrarem nes- ta ou naquela diregaio. Em todo o processo hA uma técnica de direcio e uma técnica de execugio, de sorte que com nao menos evi- déncia existem homens nascidos para man- dar’e homens nascidos para obedecer, sujei- tos e objetos do processo politico e econémi- co, Esta é a forma biésica da vida humana 2 OSWALD SPENGLER que, desde aquela transformacio, se foi fa- zendo cada vez mais variada de aspecto e que sé com a propria vida é que podia ser eliminada, Admitamos que ela seja artificial e con- tréria & Natureza, mas precisamente isso é que é “Cultura”. O destino pode ordenar, e dis vezes chega mesmo a fazer isso, que 0 ho- mem se imagine capaz de a abolir artificial- mente — mas nem por essa razfio deixa isso de ser um fato. Governar, decidir, guiar, co- mandar é uma arte, uma técnica dificil e, co- mo qualquer outra, ela pressupde um talento inato. S6 as criancas 6 que imaginam que um rei vai para a cama com sua coroa e s6 0s sub- homens da cidade-monstro, os marxistas e os literatos, 6 que tém a mesma idéia com rela- Gao aos reis do mundo dos negécios. A em- présa é um labor e s6 como resultado désse labor é que se torna possivel o trabalho ma- nual. E, igualmente, o descobrir, o refletir, 0 caleular e o dirigir um novo processo siio ati- vidades criadoras de algumas cabecas bem dotadas e tém como consequéncia necessiria a atividade executora dos nfo criadores. Aqui SAO || encontramos uma yelha conhecida, agora um. pouco fora de moda. Trata-se da questéo do génio e do talento, Génio (*) signifiea — li- teralmente — poder criador, a faisea divina da vida individual que na torrente das gera- ces surge stibita e misteriosamente, extin- gue-se depois para tornar a aparecer uma ge- racaio mais tarde, iluminando subitamente to- da uma époea. 0 talento 6 um dom relativo a problemas particulares ja existentes e que se pode desenvolver por meio da tradigao, do ensino, do adestramento e da pratica para produzir resultados mais sélidos. O talento para se poder aplicar pressupde 0 génio e néo vice-versa, Finalmente, ha uma distincao natural de grau entre os homens nascidos para mandar e os homens nascidos para servir, entre os condutores e os conduzidos da vida. A exis- téncia dessa distingio é um fato manifesto ¢ em 6pocas sis e entre povos sfios 6 reconhe- cida (embora involuntariamente) por toda a (1) Vem do latim genius, que significy a forca fecundante do varia.

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