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Parte 2 Estudos rosianos Pagina anterior: “O diabo no meio do redemoinho” ~ Wanessa Cruz ~ (Ceramica, 2004; detalhe) O ‘Quem’ dos lugares. A passionalizagao da natureza em Grande sert&o: veredas* Adélia Bezerra de Meneses" Resumo A proposta é de um estudo das imagens fundamentais de Grande sertio: veredas, & luz. das idéias de Giambatista Vico. Com efeito, nesse movimento de nomear que constitui fundamentalmente a po- esia, 0 filésofo napolitano mostra o processo em que se efetiva uma projecio do corpo humano e das *humanas paixées” sobre a paisa- gem circundante, tendo por base a analogia. Pois bem, & essa sensorialidade do fazer poético que se pode apontar no romance de Guimaraes Rosa, em que, do rio a0 sertio, aos buritis ¢ a todas as demais “quisquilhas da natureza”, €a metéfora que dé “sentimento e paixio” as coisas inanimadas. E toda a orquestragio das imagens da natureza obedecers a0 poderoso impulso que atzai Riobaldo a Diadorim. Palavras-chave: Grande sertio: veredas; Imagens; Vieo e 0 processo metaf6rico; Projecto do corpo humano sobre a na- tureza; Analogia. grande metéfora de Grande sertio: veredas, de Guimaries Rosa, junto A com a do Sertio, é 0 Rio. Inclusive, entranhadamente ligadas. Sabemos 0 quanto o rio, além de realidade geografica, é uma realidade mitica e magica. Nessa longa conversa do ex-jagungo Riobaldo, ao doutor da cidade, que es- trutura o romance, nesse narrar que se configura como uma busca desesperada de sentido para o vivido, é assim que o protagonista Riobaldo propée o assunto da conversa. seu interlocutor: “Vou Ihe falar. Lhe falo do sertio. Do que nao sei Um grande serti ‘as — ¢ 86 essas poucas veredas, veredazinhas”! (ROSA, 1972, p. 79). 10 sei, Ninguém ainda nao sabe. $6 umas rarissimas pesso- ‘Universidade Estadual de Campinas/Universidade de Sto Paulo. " Veredas, no seu sentido dicionarizado, registra, além do mais conhecido (no Sul do Brasil) que é “ea~ ‘minho”, também aquele que diz respeito 3 regito do sertao de Guimaraes Rosa (Minas Gerais): “ea~ beceia ¢cursod'sgua orlados de burtis, especialmente na zona sio-franciscana” (FERREIRA, [&4]} 2 Todas as citagdes de Grande sertio: veredas foram retiradas da edigao de 1972 e, doravante, 1e19, somente as paginas indicadas (Rio de Janeiro: J. Olympic, 1972) 29 SERIPTA eto ozone 0 Das 17, 29-39, "sem 2005 ia Bezerra de Meneses E.um pouco mais adiante, explicita: “sertao é 0 dentro da gente”. Esses textos, dentre muitos outros que se poderiam pinear ao longo de Grande serta ere- das, equiparam 0 sertio ao “dentro da gente”. O grande sertio da alma de um ho- mem: aquilo que ele n’ experigneia, nesse encontro a dois, nessa relagio em que um ser humano escuta o outro ¢, a0 escuté-lo, ao acolher sua fala, propde um receptaculo a esse jorro ver- bal que caracteriza o protagonista, e 0 ajuda a organizar-se, o estrutura (cf. M 1 sabe, mas de que tentara se acercar, “organizando” sua NESES, 2002). E como se a escuta do interlocutor fornecesse um continente a essa “matéria vertente” que jorra, infinita e desorganizada, ¢ the da um curso, margens, delimitagées, um leito no qual correr. As alusdes aos protagonistas aferidos aos rios pontilham © texto; mas a “ma- téria vertente” é narrativa da vida, sempre. “Mas 0 senhor sério tenciona devas- sar a raso este mar de tertitérios, para sortimento de conferir o que existe? Tem seus motivos”, diz Riobaldo ao interlocutor. E em seguida: “Mas entio, para uma safra razoavel de bizarrices, reconselho de o senhor entestar viagem mais dilata- da” (p. 23). Ainsinuada ambigilidade entre a escuta das bizarrices e uma ® Jatada” se agua gem mais di- Lhe mostsar os altos claros das Almas: rio despenha de Is, numa afa, de espuma pr pero, gruge; cada cachoeira, s6 tombos. O cio da tigre preta na Serra do Tatu — ja ouviu 0 senhor gargaragem de onga? (...) Quem me ensinou a apreciar essas belezas sem dono foi Diadorim. (p. 23) Ai estaria o intento, 0 objetivo da conversa do Riobaldo, enderegada ao se- nhor doutor culto da cidade: mostrar-lhe “os altos claros das Almas” ~ ¢ 0 rio que despenha de li. Os planos geogrifico ¢ psicolégico se sobreporio: “mostrar os altos claros das almas” talvez.seja uma explanagio do termo “Psico-anslise”, se estivermos atentos a etimologia de “psique” ma e a Anfklérung, a0 percurso de “esclarecimento” que 0 proceso analitico propicia. (Nuri parénteses: nio se pode deixar de enxergar no “cio da onga preta” esse niicleo pulsional do humano, ser sexualizado. A ‘0 retornarci mais adiante). © Rio, 0 rio que despenha, é assim uma metifora fundamental do romance. ‘Vamo-nos deter nessa figura de linguagem, a metafora, cujo fundamento é uma relagio anal6gica.® * Embora nem todos os simbolos operem por analogia, como se pode verificar na Matematica ow na Lingistica; mesmo na Psicandlise, o prépria Freud, 20 falar do simbolismo nos sonhos, refere-se alusio: assim, 2 yestimenta, em sonhos, pode dizer respeito 20 seu contririo, a nudez. Mas, em se tratando especificamente da Literatura, creio que se pode dizer, com Fernando Pessoa, que “Tude & simbolo e analogis’ 30 TTT Si inte Ds IT, po DD, De TODS © Quem’ dos lugares. A passionalizacdo da naturcza em Grande sertio: veredas filésofo Giambatista Vico, para quem a metéfora é um pequeno mito, no seu extraordindrio Scienza Nuova, em pleno século XVIT, defende a idéia de que 4 poesia precede a prosa, de que os homens primitivamente falavam por poesia, ¢ 86 posteriormente a linguagem racional da prosa se instaura. Os homens, por ne- cessidade de expressio, falariam por imagens, Disso jé se infere que a fala poética nio é enfeite, adorno, um refinamento tardio, mas algo de essencial, de vitalmen- te necessario. A metéfora aparece como fruto de uma necessidade ineludivel de expressio. “A mente humana”, 0, “inelina-se, muito naturalmente, medi- ante os sentidos da reflexio, entender-se a si propria” (VICO, 1979, p. 48). Isso fornece o princi- pio segundo o qual os homens falariam por imagens, tendo por base a fazer-se visivel no corpo e, com muita dificuldade, por meio si proprios ~seu préprio corpo e suas paixdes. Textualmente: “os vocébulos sao transpostos dos corpos e das propriedades dos corpos para significacio das coisas da mente e do espirito” (idem). Mostrando o carter fundamentalmente orginico da formacao das imagens, ¢ a importincia do corpo nesse proceso, Vico aponta que, nas virias linguas, a maior parte das expressOes das coisas inanimadas é efetuada “mediante transla- g6es do corpo humano e de suas partes, assim como dos sentidos humanos e das por exemplo, cabeca é fronte, costas, por adiante e atris; boca por abertura; labios, por bordas; fala-se humanas paixdes" ada por principio, ou por cimos em garganta de terra, lingua do mar, brago do rio, seio do mar (por golfo), carne das frutas. E ainda: sopra o vento, murmura a onda, ti 0 céu, geme um objeto de grande peso. Assim, diz 0 fil6sofo napolitano, “o homem se faz regra do universo” “a partir de si préprio erige um mundo inteiro”. Toca-se aqui no cerne da questo da sensorialidade que anima o fazer postico. A metifora, para Vico, dé “sentimen- toe paixio” as coisas todas. F. todo o mundo dos afetos que se vé convocado. Vico estabelece entio no movimento de nomear utilizando a palavra (esse processo fundamental de simbolizaga0), como operagio basica, a analogia. E apon- tao mecanismo segundo o qual o ser humano projeta o proprio corpo na realida- de circundante, ¢ através dele nomeia a natureza. Pois bem, é tal processo que a gente vé em acio no caso dessa ligagio de co- munhio profunda do homem com 0 Rio ~ sobretudo de um homem de uma re- gio em que esse rio é fonte de Vida. Para o fildsofo napolitano, na necessidade inelutavel de expre busca no seu préprio corpo a maneira de nomear as coisas. Dito em outras pala- do, 0 homem vas, os homens emprestam as coisas a sua prépria natureza, entendem o mundo a partir de si préprios: por exemplo, admirando os efeitos do ima sobre o ferro, dizem que o ima estaria enamorado do ferro, “convertendo, por tal modo, toda a natureza em um vasto corpo animado, que sente paixdes e afetos...” (VICO, 1979). SeRITA Bab TooRe VIA Tp em IOS 31 ‘Adélia Bezerra de Met Em Grande sertio: veredas, cujo titulo condensa exatamente as duas metafo- ‘sentimento ep. xio” que se vé na relacio de correspondéncia dos protagonistas com o rio . ras fundamentais do romance: sertio ¢ rios, € exatamente esse ‘Nunca é demais repetir que a poesia depende de uma intensidade privilegiada de sentidos, e de riqueza afetiva; depende de uma agueada e sensivel percepcio das coisas e da vida, ¢ de capacidade de comunhao profunda e compreensiva com a realidade. © poeta é um ser atento 2 analogias e correspondéncias — e sabe- ‘mos em que medida o senso das “Correspondances™ é fundamental no proceso poético. Por outro lado, ele tem o poder (inquietante!) de lidar com as palavras, explorando-Ihes os efeitos sensoriais e plisticos, deles extraindo tudo 0 que pode- riam render, na forga plistica, visual, gestual, sensorial da linguagem. Para Hegel, poesia é 0 “luzir sensivel da ideia”. Mas esse processo apontado por Vico, em que na sensorialidade do fazer po- ético se vé a projegio do ser humano ~ a projegio do corpo humano e “das hu- ‘manas paixoes” sobre a paisagem ~ dé-se em Grande sertao: veredas sobretudo em relagio a0 rio, mas nao exclusivamente. © amor de Riobaldo por Diadorim faz, metonimicamente, com que a natureza toda seja vista como impregnada da- quilo que era a caracteristica fundamental do seu amigo: “os olhos aos grandes, verdes” ‘Assim, além dos rios verdes, (“Sai, vim destes meus gerais”: voltei com Dia- dorim, Nao voltei? Travessias... Diadorim, os rios verdes” ~ p. 235), 0 buriti de palmas verdes é metonimia de Diadorim (“ah, meus buritizais levados de ver- de,”); qualquer palmeita pode indiciar Diadorim (*namorei uma palmeira”); tam- bém o vento: “o vento é verde”; até o mar: “ Morreu 0 mar, que foi” ~ diz ele, comentando a morte de Diadorim, Hé mesmo uma passagem em que Riobaldo resume tudo isso numa frase: “Diadorim me pds 0 rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza” (p. 25).* E ainda: “Mas eu gostava de Diadorim para poder saber que esses gerais sio formosos” (p. 46). "Ch Baudelaire: “La Nature est un temple oit des vivants pilers/ Laissent parfois sortir des vivantes paroles./ Homme y passe travers une forét de symboles/ Qui le regardent avec des yeux familers” * Chena tradigio da cangao brasileira, a “Asa Branca” de Luis Gonzaga: “quando o verde dos teus olhos/ se espraiar na plantacio/ eu voltae, viu,ndo chores nio, vi,/ cu voltaei,viu, meu coragio”. E como “coracio mistura amores", Riobaldo sobreporé as imagens de Otacilia ¢ Diadorim: ele se cass com Otacflia “quando deu o verde nos campos” (p. 43). E sho saudades de Otactlia que o fazem evocar a tstrofezinha: "Buritiy minha palmeira,/ Is na vereda de ly easinha da banda esquerda,/ olhos de onda ‘do mare.” (p- 42). No entanto, logo em seguida a esses versos, acreseentara: "Mas os olhos verdes sendo 0s de Diadorim” (p. 42) * Como Joao da Cruz, no "Céntico espiritual”, falando que o amado revestiu de formosura a Nature za: "Mil gracias derramando,/ pas6 por estos sotos com presuray/y yéndolos mirandoy/ con sola sua figura/ vestidos los dejé de hermosura’ 32 vem 2005 © Quem’ dos lugares. A passionalizagio da natureza em Grande sertdo: veredas No entanto, apesar de comparecerem outros elementos da Natureza nessa projecio, € 0 Rio o elemento que condensa metaforicamente, ¢ que se projeta, metonimicamente, nas personagens prineipais, Riobaldo e Diadorim, ida aos rios (“Deis rios diferentes, era 0 que nés dois atravessamos?” — p. 268 — pergunta-se Riobal- A vida das personagens, 0 “verter da sua presenga”, é afer do); assim como a natrativa de suas vidas, 0 poderoso jorro verbal, “matéria verten- te” que €0 relato do protagonista natrador diante do seu interlocutor silencioso. Cavaleanti Proenca, em seu estudo “Trilhas no Grande sertio” no topos “O plano mitico” mostra que as proprias “fases da vida dos protagonistas encontram reflexo no rio”: assim a e6lera pela morte de Joca Ramiro é uma enchente, diz ele; a morte de Medeiro Vaz também acontece em meio a uma chuva pesada, Na realidade, isso é um processo de animizagao. Mas sobretudo Cavalcanti Proenca atribui ao Urucuia, dentre 0s varios rios que alimentam as Veredas do Grande sertio, o apandgio de representar o jagungo Riobaldo, que com ele se identifica- ria —o que 6, de uma certa maneira discutivel, como se verd a seguir. Apesar das virias declaragées, por parte de Riobaldo, de amor ao Urucuia (“Meu rio de amor € 0 Urucuia”) ~ sendo que também é esse o rio que por vezes representa Otacilia (“Ota que € rio de braveza”) ~ parece ser realmente 0 Rio Sao Francisco que figura com mais intensidade a relacio de Riobaldo e Diadorim, e sua reciproca paixao. sendo forte como a paz feito aqueles largos remansos do Urucuia, mas Em todo 0 caso, se 0 sertio € 0 mundo, o rio sio os homens. Mas aq} nese mundo de imensidio de rios que cumprem seu destino geogritico ¢ poético, “um” é 0 Rio ~ no romance, somos advertidos: “Agora, por aqui, 0 senhor ja viu: rio € 56 0 Sao Francisco, o Rio do Chico. O resto pequeno € vereda, E algum ri- beirio”. Assim, a minha proposta bisica é aferir essa “matéria vertente” que é 0 discur- so do protagonista, a0 Rio S40 Francisco, a um s6 tempo mitico e geogrifico, realidade magica e emblema paisagistico, elemento estruturador do enredo ¢ do espago narrativo e~enquanto “encruzilhada de varias cadeias associativas” — uma das metiforas fundamentais do romance. Dada sua importancia fuleral como “tio da unidade nacional” ~ 0 Rio Sio Francisco atravessa varios estados brasilei- ” era de se esperar que marcasse profundamente, assim como outro rio emblemtico que € 0 Amazo- ros, garantindo-lhes a possibilidade de sobreviver & seca nas, 0 imaginério literério brasileiro. © que seria 0 especifico de minha proposta é que o Sao Fran isco aparece em, Grande sertio: ‘eredas nio como elemento paisagistico, delimitador de territé- (Apesar da afltivasitungio atual, em que a agio antiecologica pesada o compromete, chegando a di- ‘minuir signfieativamente suas geandes dguas) 33 SCRIPTA elo HoaPone.e im 2005 TIT p29, Adélia Bezerra de Meneses trios, ou engendrador de lendas, ou mesmo, como ilustres avatares, antropomor- fizado; nem apenas como elemento estruturador do enredo, como apontou Anto- nio Candido, que, atentando para a sua funcao no livro, mostra que © Rio Sie Francisco divide o mundo do sertio em duas partes: “o lado direito e o lado es- querdo, carregados do sentido mégico-simbélico que essa divisao representa para a mentalidade primitiva. O direito é 0 fasto; nefasto o esquerdo” (CANDIDO, 1971). Mas © mais importante é que o rio é suporte de uma projecio dos prota- gonistas, Riobaldo e Diadorim: “Diadorim, esse, o senhor sabe como um rio & bravo? E, todaa vida, de longe a longe, rolando essas bragas aguas, de outra par- te, de fugida, no sertao” (p. 323). Apesar de toda imensa rede associativa tecida pelo rio em Grande sertao: ve~ redas, nesse romance, afunilando-se o espectro, Rio (sobretudo 0 Rio do Chico, mas também o Urucuia), metafdrica e metonimicamente figurardo a paixio, 0 Desejo. Seria o caso de a gente se deter (mesmo que minimamente) no riquissimo simbolismo das Aguas, a que a maior parte das civilizacGes atribui um poder e6s- mico magico, de fonte de vida, simbolismo universal de fecundagao, de fertiliza- cio e de poder regenerador, origem da Criagao. Na civilizagio judaico-crist, a gua fonte de vida esta presente do Génesis ao Apocalipse.* Mas se a agua é fonte de vida, cla também pode ser fonte de morte, como nos diz. imagem universal do Dilivio. Ambiguas e contraditérias como o ser huma- no, as aguas de um rio sao criadoras e destruidoras: “A vida é muito discordada. Tem partes. Tem artes. Tem as neblinas de Sirui “Temas caras todas do Cio, ¢ as vertentes do viver” (p. 381) Como a paixio: Ah, meu senhor! Como se 0 obedecer do amor nao fosse sempre 20 contritio. O se- hor vé, nos gerais longe: nuns lugares, encostando 0 ouvido no chio, se escuta ba- rulho de fortes aguas, que vio rolando debaixo da terra. O senhor dorme sobre um rio.. (p- 222) Essas “fortes 4guas” subterrineas, forga vital mal represada, ¢ que aflora inso- pitével com toda a violéncia das pulsdes, com todo seu poder seminal - que fi- sguracdo mais expressiva poderia se pensar para a libido,’ forga irrefredvel? Nesse enquadramento € que se pode interpretar a emblematica travessia do Rio Sio Francisco, no encontro dos dois protagonistas, adolescentes, Riobaldo e ito de Deus paitava sobre as sguas” (Gen. I, 2), no eaos indiferenciado que precede até 0 novo radical instaurado no Apocalipse: “O Cordeito os conduziré as fontes de fa (Apoe. 7,17) * Ca represemtacao freudiana para a libido, como corrente liquids 34 TSCRIPTA, Bo Hozontes 89. mp 2005 © Quem’ dos lugares. A passionalizagio da natureza em Grande sertio: veredas 0 “Menino”, Diadorim. £ um encontro que se dé no Porto do rio chamado “de Janeiro”, que desgua no Sio Francisco, E a melhor maneira de se atraves para ‘sua outra margem, nessa regio, é exatamente nesse lugar, em que o de-Janeiro esbarra no Sio Francisco. Passagem absolutamente emblemstica, travessia inicidtica, é bom que nos dete- nhamos nela: ‘Mas com pouco, chegivamos no do-Chico. O seahor surja:é de repentemente aque- la tervivel 4gua de largura: imensidade. Medo maior que se tem, ¢ de vir canoando num ribeiriozinho, e dar, sem espera, no corpo dum rio grande. Até pelo mudar. A feitira com que o Sao Francisco puxa, se moendo todo barzento vermelho, recebe pa ra sio de-Janciro, quase s6 um rego verde s6. — “Daqui vamos voltar2” - eu pedi, ansiado. O menino nao me olhou ~ porque ja tinha estado me olhando, como estava. — "Para que?” ~ cle simples perguntou, em descanso de paz. (..) Mas mesmo diante do medo do amigo recente, ¢ do seu grito, o Menino “sé- rio, naquela sua formosa simpatia, deu ordem ao eanoeiro, com uma palavra 6, firme mas sem vexame: — ‘Atravessa!’ O canoeiro obedeceu” (...). ‘Trata-se de uma passagem que deverd ser posta em paralelismo com outra, al- tamente simbélica, do romance, que & travessia do Liso do Sussuario, deserto- simbolo, tentada pelo bando dos jagungos, uma primeira vez, liderada por Me- deiro Vaz, e fracassada; mas que, depois, sob 0 comando de Riobaldo, por desejo de Diadorim (que assim via como viabilizar a vinganga da morte do pai, Joca Ra- miro), ser realizada com éxito. Quer se trata d“aquela terrivel 4gua de largura: imensidade” ou de um lugar em que “Agua, nao ha”, a ordem é uma s6: “Atravessa”! Sabemos o quanto a travessia de um rio € importante, simbolicamente, em tradigdes culturais, de algumas civilizages Na China antiga, por exemplo, era costume os jovens casais a realizarem, no equinécio da primavera, como um rito de travessia (travessia do ano, das estagées, do yin ao yang, purificagio prepara- t6ria A fecundidade (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1977). Mas continuemos a iniciatica travessia dos dois meninos, a primeira e inaugu- ral. Diz. Riobaldo: A aguagem bruta, traicocira —0 rio é cheio de baques, modos moles, de esfrio, ¢ uns sussurros de desamparo. Apertei os dedos no pau da canoa. (...) “Eu tinha o medo imediato”. (..) Oarrojo do rio, e séaquele estrape, ¢ 0 risco extenso d'égua, de parte parte. Alto rio, fechei os olhos. (..) Afo bambalango das aguas, a avangacio enorme, roda-a-roda ~ 6 que até hoje, mi- nha vida, avistei, de maior, foi aquele rio. Aquele, daquele dia. (p. 83) E depois de uma conversa sobre a coragem ~ “Carece de ter muita coragem. ~edo canto do canoeiro ~ “Meu Rio de Sao Francisco, nessa maior turvagio: vim RAR Rio PHM Ree 8S ‘Adélia Bezerra de Meneses te dar um gole d’4gua, mas pedir tua bengio...” ~ eles chegam: “Ai o desejado, ar ribamos na outra beira, a de 1s” (p. 84). Passagem emblemética, travessia i icidtica, a partir daquele dia tudo muda na vida de Riobaldo: ele nota “uma transformagio, pesivel”. E é por isso que dirs, de uma maneira definitiva: “O Sao Francisco partiu minha vida em duas partes”. Hi toda uma sub-corrente erética naquelas fortes imagens, que evocam “o corpo de um grande rio”; “o bambalango das éguas, a avancagio enorme, roda-a- roda”; “Uma aguagem bruta, traigoeira ~ 0 rio é cheio de baques, modos moles, de esfrio, e uns sussurros de desamparo”; do rio tirgido das cheias, ao poderoso fluxo que ele representa (bem como o poderoso jorro verbal da narrativa, que tem no rio o seu simile), as imagens so fortemente sexualizadas: Eu queria a muita movimentacio, horas novas. Como 0s rios nao dormem. O rio no «quer ir a nenhuma parte, ele que é chegar a ser mais grosso, mais fundo. (p. 329) E Diadorim parava calado, proximo de mim, ¢ eu concebi o verter da presenca dele, quando 0s nossos dois pensamentos se encontravam. Que nem um amor no a0-es- curo, um carinho que se ameacava. Qua cangio do Siruiz, cujas estrofes pontilham o romance, e das quais ressalto: Unucuia ~ rio bravo Cantado a minha feigio Eo dizer das Sguas claras Que turvam na perdigao (p. 241)" Eo refrio, na sua ambigitidade erdtico-bélica, sexualizada: Oleré, baiana, Eu ia € nfo vou mais Eu fago que vou, oh Baiana, E volto do meio p’ra tras... (p. 54, p. 412, p. 341 outras) Até acabar, precedendo de poucas linhas a tltima palavra ~ “Travessia” — na ‘O rio de Sao Fran- cisco que, de tio grande se comparece ~ parece é um pau grosso, em pé, enor ” (p. 460). E extremamente significative que num outro momento forte do romance, que € 0 momento do pacto das Veredas Mortas, quando, convoeado, © Diabo nao surge ~ mas o pacto fica selado (fica? Sera essa a di metafora inapelavelmente falica com que se fecha o romance: la que atormentard o prota- "© que tema mesma coada desse “canto de cantiga” que Riobaldo “tira”, antes da bata final com 0. Hermégenes: “Remanso de tio largo... Deus ou demo, no sertio”. 36 SCRIPTA, Bel Honamie,@9, m7 p 29-9, Poem 2008 © ‘Quem dios lugares. A passionalizaciio da natureza em Grande sertio: veredas gonista até o fim de seus dias) ~, uma alusio mais propriamente libidinal se pa- tenteie. Depois de invocar, de esperar, e de convocar Diabo, que nio aparece, Riobaldo reitera: Fi, Licifer! Saranis, dos meus Infernos! Vox minha se estragasse, em mim tudo era cordas e cobras. E foi as, Foi. Ele nao exis- te, € no apareceu nem respondeu — que € um falso imaginado, Mas eu supri que ele tinha me ouvido. Me ouviu, a conforme a ciéncia da noite e o envir dos espacos, que medeia. Como que adquirisse minhas palavras todas; fechou o arrécho do assuinto ‘Ao que eu recebi de volta um adejo, um gozo de agarro, dai umas tranqiilidades ~ de pancada, Lembrei dum rio que viesse adentro a casa de meu pai. (p. 319) Nesse instante, em que hi “arrocho”, “adejo”, um “gozo de agarro”, ¢ “dat umas trangiilidades” ~ com todas as alusées orgisticas que dai possam advir — Riobaldo se lembra “dum rio que viesse adentro a casa de (seu) pai” — numa ene- voada alusio & cena primordial (em que mie provavelmente como o Sio Francisco, naquela figuragio de que ele se reveste ao “casa”, assim como pai = rio fim de Grande sertao: veredas, e que referi mais acima: “um pau grosso, em pé, enorme”... E finalmente, como nio podia deixar de ser, eabem algumas observagdes a res- peito da presenca do “rio” no nome dos protagonistas. (“Que é que é um nome? Nome nao da; nome recebe” — p. 121) reflete Riobaldo. Muito ja se falou dos sig- nificados condensados embutidos no nome de Diadorim (que, enquanto cor ruptela de “Deodorina”, é “dom de Deus”, e é dor, e é “através da dor”, ¢ é “dia” = diabo, mas também “dia”; ¢ ainda, na parte final desse nome, pode-se vislum- brar “dia” de Nossa Senhora da Abadia);" também muito ja se falou a respeito da significagio mais evidente de “Rio baldo”, que carrega em seu préprio nome, evi- dentemente, Rio, mas também o sema da falta, da inutilidade. “Baldo”, de origem drabe (de batil = imitil) e que vive nos advérbios “embalde” na locugio adver- bial “debalde” expressao “terreno baldio” = nio cultivado, inculto, sem proveito, instil); eo sm Vio), originou o adjetivo “baldo”, e “baldio” (conhecido na verbo “baldar” = tornar initil (como em “baldados esforcos”). Mas como em Guimaraes Rosa nada é univoco, como Deus é 0 Diabo, como Diadorim & dom de Deus e é Dis, também “baldo” tem outra acepgio dicionari- zada contraditoria: barragem ou parede para represar...as éguas de um agude. Dai a palavra “balde” = recipiente. Aqui também se verificaria uma relacio, no nivel dos nomes, entre os dois protagonistas: Riobaldo, que carrega o sema da falha, * Como ais, sagere o prdprio Riobaldo: *Diadorim nas asus do instant, na pessoa dele vi fo ama xem t30 formosa de Nosea Senora da Abaia vem 2005 37 SERIA, Belo Horizonte,» TIF pada A Bezerra de Meneses da inutilidade, do vazio, Riobaldo é aquele que... represa éguas, Da correnteza de um rio. Explico: hii um momento no romance em que Diadorim comenta a simi- latidade sonora entre os nomes “Riobaldo” ¢ “Reinaldo”. Ora, em Reinaldo, a primeira parte do nome (a que nao rima com Riobaldo), “rei”, remete ao verbo ‘orrer: (lembremo-nos do panta rei = tudo corre, de Heréclito). E como ja disse, em Guimaraes Rosa nada é por acaso, 6 significativo que na passa- gem em que Diadorim the revela que nao se chama Reinaldo, mas sim Diadorim, logo em seguida Riobaldo declare: “Esses rios tém de correr bem!” (p. 121) 0 grego réo. que, menos do que comentario ao nome recém-revelado de Diadorim, refere-se a Reinaldo (em que rei = corre). Na realidade, se se for desprezar o aspecto mais propriamente formal (concordancia de sons, rima), pode-se, no nivel etimolégi- co, verificar um outro profundo acordo entre esses dois nomes, entre essas duas personagen se Riobaldo € 0 rio “vao”, também pode ser aquele que represa, co- mo agude... as gu: E verdade: segundo compadre Quemelém, a realidade ¢ contraditéria: desse rio, que “corre bem”. ‘com- prar ou vender, as vezes, sdo as agGes que so as quase iguais...” (p. 460). Pois o romance todo versa sobre a ambigitidade, a fundamental contradigao que habita © sertio e que nos habita, que marca a vida das pessoas e que impregna, como na cancio de Siruiz, 03 versos que Riobaldo “tira” antes da batalha final contra 0 Hermégenes, o pactario: Remansos de Rio largo, Deus ou demo, no sertio. (p. 424) Abstract ‘This article aims at studying fundamental images in Grande sertéo: yeredas in the light of Giambatista Vico’s ideas. In fact, in the move- ment of naming which consticutes the basis of poetry, the Napoletan, philosopher clarifies the process of projection of the human body and of ‘human passion’ on the surrounding landscape, with basis on analogy. Itis precisely this sensoriality of the poetic process that can be found in Guimaraes Rosa’s novel, as ‘feeling and passion’ are at~ tributed to inanimate things ~ the river or the sertdo, the buritis and all the other ‘trfles of nature’ ~ through metaphors. Thus, the whole orchestration of the images of nature follows the powerful impulse that attracts Riobaldo to Diadorim, Key words: Grande sertao: veredas: Images; Vico and the metaphor ical process; Projection of the human body on nature; Analogy. 38 SCRPTA, Bao © Quem’ dos lugares. A passionalizacio da natureza em Grande sertao: veredas Referéncias CANDIDO, Antonio. O homem dos avessos. Tese e antitese. 2. ed. Sao Paulo: Com- panhia Editora Nacional, 1971. p. 119-139. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain, Dicionério de simbolos. 11. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 197 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionario da Lingua Portuguesa, 1. ed.,3. imp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [s.d.} MENESES, Adélia Bezerra de. Grande sertio: veredas e a Psicanilise. Scripta, v5, n 10, Edigao especial do 2° Seminario Internacional Guimaraes Rosa. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2° sem. 2002. p. 21-37. PROENCA, M. Cavalcanti. Trilhas no Grande sertao. In: PROENCA, M. Cavaicanti. 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