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[206] [207] ser dada tanto pelo computador quanto por um papagaio com mui to mais rapidez que qualquer outro. Kleist encontrou uma frase muito bonita para expressar essa experiéncia: o volante dos pensa: mentos deve ser acionado. No falar, uma palavra puxa a outra € com isso expande-se nosso pensamento. Uma verdadeira palavra € aquela que se oferece por si 20 falar a partir de vocabulirios e usos de linguagem pré-esquematizados. Pronunciase a palavra e talvez ela conduza aquele que a pronuncia ao alcance de conseqiiéncias ¢ objetivos que ele mesmo jamais havia previsto. 0 pano de fundo para a universalidade do acesso ao mundo pela linguagem & que nosso conhecimento do mundo apresenta-se como um texto infini to, que aprendemos a recitar com dificuldades e fragmentariamen- te. A palavra “recitar” deve tornar consciente de que nao se trata de um dizer. Recitar é 0 contrario de dizer. O recitar jé sabe 0 que vem em seguida, nao se expondo assim as possiveis vantagens que surgem do improviso. Todos ja fizemos a experiéncia de assistir a péssimos atores que recitam, de tal modo que ao lerem a primeira palavra temos a impressio de que jé esté pensando na préxima, Na verdade, isso nao é dizer. $6 ha dizer quando se assume o risco de propor alguma coisa seguir suas implicagdes. Diria, em suma, que real incompreensao a respeito da questio da estrutura da lin- suagem base de nossa compreensio € a incompreensio sobre 0 que é linguagem, quando esta é definida como um reservatorio de palavras e frases, de conceitos, modos de ver e opinides. A lingua- gem 6, na verdade, a tinica palavra cuja virtualidade nos abre a pos- sibilidade de seguir falando e conversando infinitamente, que nos oferece a liberdade do dizer a si mesmo e deixar-se dizer. A lingua. gem nao é um convencionalismo reelaborado, nao € o peso de es- ‘quemas prévios que nos recobrem e sim a forca geradora e criativa de sempre de novo conferir fluidez a esse todo. 16. A incapacidade para o didlogo (1972) Tanto a questo aqui levantada quanto os fatos que a suscitam compreendemsse de imediato, A arte do didlogo esté desaparecen: do? Na vida social de nossa época nao estamos assistindo a uma 242 monologizacao crescente do comportamento humano? Sera um fe nOmeno tipico de nossa civilizacdo que acompanha 0 modo de pensar técnico-cientifico? Ou sera que experiéncias especificas de autoalienagéo e de isolamento presentes no mundo moderno é que fazem os mais jovens se calar? Ou serd ainda que o que se tem chamado de incapacidade para 0 didlogo nao é propriamente @ decisio de recusar a vontade de entendimento e uma mordaz re beligo contra o pseudo-entendimento dominante na vida puiblica? ‘Sto as questdes que se apresentam logo que se ouca falar do tema em discussao aqui. A capacidade para o diélogo é um atributo natural do homem. Aristételes definiu o homem como o ser que possui linguagem e li ‘guagem apenas se da no didlogo. Mesmo que a linguagem possa ser codificada e encontrar uma relativa fixagdo no diciondrio, na gramé- tica, na literatura, sua vitalidade prépria, seu amadurecimento e re- novacdo, sua deterioracio e depuramento até as elevadas formas es- tilisticas da arte literdria, tudo isso vive do intercambio vivo entre oS seus interlocutores. A linguagem apenas se di no didlogo. A fungo que o didlogo exerce entre os homens é, porém, mui to diversificada. Certa vez, pude observar uma delegacdo militar de oficiais finlandeses sentados ao redor de uma grande mesa re- donda num hotel de Berlim, silenciosos e concentrados. Parecia que entre cada um deles e seu vizinho estendiase a vasta tundra da paisagem de suas almas como se representasse uma distancia insu: perdvel. Qual o viajante dos paises nérdicos que nao se mostra ad- mirado do constante rebuligo sonoro das conversas travadas nos mercados e pracas dos paises meridionais, por exemplo, Espanha ou Itélia?! Mas quem sabe nio devéssemos considerar o primeiro exemplo como falta de disposicao para o didlogo eo segundo como ‘uma capacitacao para tal. Pois pode ser que 0 didlogo seja algo bem diferente do que o tipo estilo de intercdmbio travado nos sons ruidosos da vida social. Na queixa de incapacidade para 0 didlogo nao é isso que est em questio. O didlogo precisa ser compreendi- do em sentido bem mais ambicioso, Vamos tentar esclarecer isso com um exemplo contrério, que talvez também seja responsdvel pela diminuigdo do didlogo. Refi: 243 {208} [209] ro-me & conversa telefénica. Tornou-se tio comum mantermos lon- gas conversas por telefone que quase jé no nos damos conta do empobrecimento comunicativo que se dé na convivéncia com as pessoas que se encontram ao nosso lado, restringindo-se ao ele- mento actistico. Mas o problema do didlogo nao se faz sentir na- queles casos em que a convivéncia estreita de duas pessoas vai te- cendo o fio da conversacao. A questio da incapacidade para 0 dié- logo refere-se, antes, & possibilidade de alguém abrirse para 0 ou: tro e encontrar nesse outro uma abertura para que o fio da conver- ‘sa possa fluir livremente. Aqui a experiéncia da conversa telefonica serve de documentacao como o negativo de uma foto. Ao telefone quase nao é possivel ouvir a disposigao de abertura do outro para entrar em didlogo. Também nao € possivel a experiéncia da aproxi- ‘magao miitua, onde cada um vai adentrando, passo a passo, 0 did: logo, chegando a ficar de tal modo imbufdos do dislogo que a co- munhao surgida jé nao pode ser rompida, Caracterizei a conversa telefonica como o negativo de uma foto, pois a aproximagao ar cial criada pelo fio telef6nico quebra imperceptivelmente justamen- te a esfera do tato e da escuta, em que as pessoas podem aproxi- marse. Toda chamada telefonica traz consigo algo da brutalidade do molestar e ser molestado, mesmo quando se assegura que a chama- da foi motivo de alegria. Em nossa comparacao podemos sentir pela primeira vez quais as reais condicdes para um verdadeiro didlogo, para que esse possa atingir a profundidade da comunho humana e quais as forcas con- trérias, que criam resisténcia ao didlogo na civilizagdo moderna. As técnicas modernas da informa¢ao, que podem estar apenas nos inf- cios de sua perfeicao, e que, a crer-se nos profetas da técnica, logo tornardo obsoletos tanto 0 livro e o jornal quanto mais os ensina- ‘mentos que procedem dos encontros humanos, fazem-nos lembrar aqueles que so o seu oposto mais radical. Refiro-me aos carismati- cos do didlogo que mudaram o mundo: Confiicio, Buda, Jesus e Sé- crates. Lemos os seus didlogos. Mas esses textos sao transcrigdes feitas por outros, que néo conseguem conservar e reproduzir 0 ver- dadeiro carisma do didlogo, apenas presente na espontaneidade viva da pergunta e resposta, no dizer e deixar-se dizer. Mesmo as- sim, essas transcrigdes apresentam uma forca documental pecu- 244 liar. So, em certo sentido, literatura, isto é, pressupéem a arte de escrever, essa capaz de formular e evocar, com os recursos literarios, uma realidade viva. Mas, distintas dos jogos poéticos da imagina- co, essas transcrigdes possuem uma transparéncia singular, dei- xando entrever ao fundo a verdadeira realidade, 0 auténtico acon- tecer. O tedlogo Franz Overbeck percebeu isso com muita clareza e na aplicacao ao Novo Testamento cunhou o conceito de “literatura origindria”, que precede a literatura propriamente dita como 0 tempo primordial precede 0 tempo histérico. Seria util orientar-nos aqui por um outro fenémeno andlogo. A incapacidade para o didlogo nao é certamente o tinico fendmeno comunicativo em desaparecimento de que temos conhecimento. De ha muito nos damos conta do desaparecimento da carta e da correspondéncia. Os grandes escritores epistolares do séc. XVII ¢ XVIII so coisa do passado. A época da diligéncia, quando se res- pondia ao outro com uma missiva pelo correio - literalmente falan- do, a missiva da diligéncia -, prestava-se mais a essa forma de co- municagao de que a época técnica da quase simultaneidade de per gunta e resposta, caracterizada pela conversa telefénica. Quem co- nhece um pouco a América sabe que ali escrevem-se muito menos cartas que no Velho Mundo. Na realidade, o que se escreve episto- larmente também no Velho Mundo é to pouco e reduzse de tal modo a coisas que ja nao necessitam nem exigem forca de criacao literdria, sensibilidade da alma e fantasia produtiva, que o telégrafo presta-se muito melhor que a pena. A carta tornouse um meio de informagao retrégrado. ‘Também no ambito do pensamento filos6fico, o fendmeno do dialogo e sobretudo aquela forma especifica do didlogo entre duas pessoas desempenharam uma importante funcdo, e talvez.na mes- ma confrontacao que acabamos de descobrir como um fendmeno cultural comum. Foi sobretudo a época romantica e seu renasci- ‘mento no século XX que conferiu ao fendmeno do didlogo uma fun- ‘do critica frente 4 funesta monologizacao do pensamento filoséfi- co. Mestres do didlogo como Friedrich Schleiermacher, esse geni da amizade, ou Friedrich Schlegel, cuja sensibilidade cativante era mais propfcia a didlogos caudalosos do que a forma permanente aos conceitos, advogaram filosoficamente por uma dialética que 245 [210] atribuia ao modelo platonico de didlogo e de conversacdo uma pri mazia especial na busca da verdade. E facil ver em que consiste essa primazia. Quando duas pessoas se encontram e trocam expe- rigncias, tratase sempre do encontro entre dois mundos, duas vi- sbes e duas imagens de mundo. Nao é a mesma visao a respeito do mesmo mundo, como tenta comunicar 0 pensamento dos grandes pensadores com seu esforgo conceitual e a elaboracao de suas teo- rias. O préprio Plato nao comunicou sua filosofia simplesmente em dialogos escritos em reconhecimento ao mestre do didlogo, Sé- crates. Vit ali um principio da verdade, segundo o qual a palavra 6 encontra confirmagao pela recepgio e aprovacao do outro que 0 pensamento que nao viesse acompanhado do pensamento do outro seria inconseqiiente ¢ sem forca vinculante. Cabe afir- mar que todo ponto de vista humano tem algo de aleatério. modo como alguém experimenta 0 mundo, pela visao, pelo ouvi- do e sobretudo pelo gosto permanece um mistério pessoal in: transponivel. “Quem pode mostrar um cheiro com os dedos?” (Ril: ke). Assim como nossa apercep¢ao sensivel do mundo é ineludi- velmente privada, também nossos impulsos e nossos interesses individualizam-nos, e nossa razio, comum e capaz de aprender 0 comum a todos, permanece impotente diante dos ofuscamentos alimentados pela nossa individualidade. Assim, 0 didlogo com os outros, suas objecdes ou sua aprovacao, sua compreensao ou seus malentendidos, representam uma espécie de expansao de nossa individualidade e um experimento da possivel comunidade ‘a que nos convida a razao. Poderfamos imaginar toda uma filoso- fia do didlogo, partindo dessas experiéncias: 0 ponto de vista in- transferivel do individuo, onde se espelha a totalidade do mundo, ea totalidade do mundo que se apresenta nos pontos de vista indi viduais de todos os outros como um e 0 mesmo. A extraordindria concepgio metafisica de Leibniz, admirada também por Goethe, foi de que a multiplicidade de espelhos do universo, representados pe los indivfduos, singulares, forma na sua totalidade um tinico uni verso. Isso se deixa configurar num universo do didlogo. 0 que o romantismo, com a descoberta do mistério indecifré- vel da individualidade, objetou contra a generalidade abstrata do conceito foi retomado no inicio do século XX pela critica a filosofia 246 académica do século XIX e a fé liberal no progresso. Nao foi por acaso que um discipulo do romantismo alemio, o escritor dinamar qués Soren Kierkegaard, dotado de grande maestria literdria, te nha travado uma batalha nos anos quarenta do século XIX contra © predominio académico do idealismo hegeliano. No século XX, com a tradugao de suas obras para o alemao, Kierkegaard passou a exercer grande influéncia na Europa. Foi sobretudo aqui em Hei- delberg (mas também em muitos outros locais da Alemanha) que o pensamento comecou a contrapor a experiéncia de um tue da pala- vra que une um eu e um tu ao idealism neokantiano. O renasct- mento de Kierkegaard em Heidelberg, promovido sobretudo por Jaspers, teve forte expressao na revista Die Kreatur (A criatura). Homens como Franz Rosenzweig e Martin Buber, Friedrich Gogar- ten e Ferdinand Ebner, para citar alguns pensadores judeus, pro- testantes e catélicos, de diversas procedéncias, e também um psi- quiatra do quilate de Viktor von Waizscker, uniram-se na convic- do de que o caminho da verdade passa pelo didlogo. O que € um didlogo? De certo que com isso pensamos num pro- ccesso entre pessoas, que apesar de toda sua amplidao e infinitude potencial possui uma unidade prépria e um ambito fechado. Um didlogo €, para nés, aquilo que deixou uma marca. O que perfaz um verdadeiro dislogo nao é termos experimentado algo de novo, mas termos encontrado no outro algo que ainda néo haviamos encon- trado em nossa propria experiéncia de mundo. Aquilo que movia 05 fil6sofos a criticar o pensamento monol6gico é o mesmo que ex- perimenta o individuo em si mesmo. O didlogo possui uma forca transformadora. Onde um didlogo teve éxito ficou algo para nés e ‘em nés que nos transformou. O didlogo possui, assim, uma grande proximidade com a amizade™. & s6 no didlogo (e no “rir juntos”, que funciona como um entendimento tacito transbordante) que os amigos podem encontrarse e construir aquela espécie de comu- mhao onde cada qual continua sendo o mesmo para 0 outro porque ambos encontram 0 outro e encontram a si mesmos no outro. 21.Cf. minha contribuigho 20 Festschrift fr U Holscher, Waraburg, 1985, "Freundschaft lind Selbsterkeantie, in: Ges, Werke, v0.7. 247 (2) [212] Mas, para nao falarmos sempre apenas desse sentido mais ex. tremo e profundo de didlogo, devemos também considerar diversas formas de didlogo que ocorrem em nossa vida, agora ameacados como discutimos em nosso tema. 0 primeito € o didlogo pedagse ‘co. Nao que merecesse por si uma primazia especial, mas nele mos trase de modo especial o que pode estar por trés da experiéncia da incapacidade para 0 didlogo. O didlogo entre professor e alunos € certamente uma das formas mais primitivas de experiéncia de dit. Jogo, e aqueles carisméticos do diglogo de que falamos acima sio todos mestres e professores que ensinam seus diseipulos ou alunos através do didlogo. Na situacao do professor reside uma dificulda de peculiar em manter firme a capacidade para o didlogo, na qual a maioria sucumbe. Aquele que tem que ensinar acredita dever e po- der falar, e quanto mais consistente e articulado por sua fala, tanto mais imagina estar se comunicando com seus alunos. £ 0 perigo da cétedra que todos conhecemos. Recordo-me de meu tempo de est dante de um semindrio que fiz. com Husserl. Sabemos que o exerci: cio do semindrio costuma conter o maximo de didlogo investigat vo possivel eo minimo possivel de didlogo pedagégico. Husserl, ue nos primeitos vinte anos como mestre de fenomenologia em Friburgo sentia-se movido por um profundo impulso missionario e exercia na realidade uma atividade filoséfica de ensino muito signi ficativa, nao era nenhum mestre do dislogo. Ele abria aqueles se- mindrios com uma questo inicial, recebia uma resposta curta € movido por essa prosseguia seu monélogo por duas horas segui- das. Quando ao final da reuniao saia da sala junto com seu assis tente, Heidegger, dizia a este tltimo: “hoje, sim, tivemos realmente um debate animado”, Sao experiéncias desse tipo que nos dias de hoje colocaram em crise as prelegdes académicas. A incapacidade para dialogar dé-se principalmente por parte do professor, e sendo © professor o auténtico transmissor da ciéncia, essa incapacidade radicase na estrutura de mondlogo da ciéncia moderna e da forma- 40 tedrica. Em escolas superiores tém-se feito repetidas tentativas de animar as prelegdes através do debate, fazendose também a ex periéncia contraria de que a passagem da posicao receptiva de ow vinte para a iniciativa da pergunta e da oposigao é extremamente

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