Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Comissão Editorial
CORPO EDITORIAL / EDITORS:
Prof. Dr. Rafael de Paula Aguiar Araújo: Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP (2009) e Coordenador de Curso da Escola de
Sociologia e Política de São Paulo (raraujo@fespsp.org.br)
Rafael Balseiro Zin: Bacharel em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e
Política de São Paulo (rafaelbzin@hotmail.com)
DIAGRAMAÇÃO / DIAGRAMMING:
A Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo
tem por escopo a publicação científica de artigos acadêmicos. Os artigos são de responsabilidade
dos respectivos autores, não refletindo necessariamente a opinião da Comissão Editorial acerca do
conteúdo dos mesmos.
Este trabalho está licenciado sob uma Licença Creative Commons Attribution 3.0 .
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013
1
ALABASTRO
revista eletrônica dos alunos
da Escola de Sociologia e Política de São Paulo
Sumário
Nota dos Editores
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013
2
ALABASTRO
revista eletrônica dos alunos
da Escola de Sociologia e Política de São Paulo
Artigos
Ensaio Poético
O artesão 112
Renato Moro Giannico
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013
3
ALABASTRO
revista eletrônica dos alunos
da Escola de Sociologia e Política de São Paulo
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 4-5.
4
Nota dos editores
Boa leitura!
Rafael de Paula Aguiar Araújo
Rafael Balseiro Zin
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 4-5.
5
Dossiê Lima Barreto
Resumo
Esse trabalho tem por objetivo analisar a obra de Brasil) através de um amigo ou quando vai preso
Lima Barreto Recordações do escrivão Isaías Caminha, e é enquadrado como marginal, passando pela
de acordo com o ponto de vista político e social, influente imprensa carioca e até observando as
visando uma historicidade que remonta à época do mudanças estruturais da cidade maravilhosa. Em
Rio de Janeiro no início do século XX. O conteúdo suma, o ponto de partida deste trabalho são duas
a seguir é enriquecido com as observações do obras de extremo valor para uma boa compreensão
historiador e professor José Murilo de Carvalho e sobre o início do século XX no Rio de Janeiro.
sua obra Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república
que não foi, escrito em 1987, em que demonstra o
processo de formação do republicanismo em face
da capital brasileira e discursa sobre a participação
do povo carioca no processo democrático. Foi
identificado através das leituras que o livro de Lima
Barreto torna-se campo fértil para uma discussão
sobre os aspectos da mudança política da época.
No discurso de todo o enredo, Lima Barreto
pontilha cada grupo e os sofrimentos destes, como
no caso de seu contato com a Igreja Positivista
(um dos pensamentos que mais influenciaram o
Palavras -Chave
Pensamento político brasileiro. Século XX. Lima Barreto. José Murilo de Carvalho.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 7-11.
7
Dossiê Lima Barreto
O Rio de Janeiro no início do século XX: uma narrativa sociológica do desenvolvimento da cidade na obra Recordações
do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto.
Ana Magali Busko e Rafael Lacerda Soares
Em Recordações do escrivão Isaías Caminha, demográfico desenfreado, com um contingente
publicado em 1909, Lima Barreto conduz o leitor a populacional quase que dobrando entre 1872 e
um passeio pelo Rio de Janeiro no início do século 1890, passando de 274 mil habitantes para 522
XX, em pleno estabelecimento da República e mil habitantes. Um dos motivos foi a abolição da
apresenta os relatos de uma cidade que foi palco de escravatura, que nos anos anteriores impulsionou
uma transformação política radical que deu rumos um contingente de trabalhadores que buscaram
ao Brasil contemporâneo. Na obra, Lima Barreto na capital da república um posto de trabalho. O
pincela os aspectos sociais, políticos e ideológicos outro fator foi a vinda de muitos estrangeiros
de uma população que ainda estava agitada pela oriundos da Europa para tentar uma vida no Brasil,
decorrência do golpe que culminou em um novo como foi o caso do jornalista Ivã Gragoróvitch
sistema. O autor encontra-se em face de uma das Rostolóff, citado por Isaías Caminha no decorrer
maiores agitações políticas do cenário brasileiro e, da narrativa.
nesse sentido, o povo do Rio de Janeiro assistia a Nesse ínterim, cresceu o número de
metamorfose desse cenário esperançada. pessoas buscando emprego, consequentemente,
Segundo o historiador José Murilo (1987) de desempregados. A economia enfrentou índices
esse era o momento de trazer o povo para o inflacionários absurdos, por causa da especulação
proscênio da atividade política, o momento de o desenfreada em vários níveis, especialmente terrível
povo se engajar politicamente, afinal era o início de para as classes populares.
uma república em terras antes monárquicas. Apesar A concepção de um povo “bestializado”
de o pensamento proposto pelos propagandistas surge quando, após a conquista da República, por
da república de que os cidadãos participassem falta de uma organização política pela sociedade,
das decisões do Estado, o grosso da população o poder é dado às pessoas envolvidas com o
brasileira, nessa época, presenciava todas as liberalismo imperial. O termo “bestializados”
transformações aquém do poder. José Murilo em surge com a Constituição de 1891. O Estado
seu livro Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república não tinha a obrigação em fornecer educação
que não foi, diz que, “embora proclamado sem a ao povo e o direito de voto só ser dado àqueles
iniciativa popular, o novo regime despertaria entre não analfabetos, a grande maioria da população
os excluídos do sistema anterior certo entusiasmo tornou-se excluída da participação na comunidade
quanto às novas possibilidades de participação” política. Como foi a primeira vez que o povo viu um
(CARVALHO, 1987. p.12). modelo de república, houve um descontentamento
De fato, este período da história brasileira generalizado, inclusive desejando o retorno
foi de total conturbação. Nesta época o povo sofria da monarquia, devido à simpatia a D. Pedro
com a falta de um sistema eficiente de saneamento II e a princesa Isabel. Desse modo, a falta de
básico e isto desencadeava frequentes epidemias, participação do povo no processo de consolidação
entre elas, a febre amarela, peste bubônica e varíola. da República, fez com que estudiosos chamassem
A população carente, de moradias precárias, era a o povo de “bestializado”. E assim são tratados até
principal vítima destas epidemias. Ao analisar as a Revolta da Vacina, em 1904 em que eclodiu um
condições sociais dessa época vê-se claramente que sentimento tão esperado pela defesa da honra e de
a instabilidade predominava. Já ao final do século seus direitos.
XIX, o Rio de Janeiro passa por um crescimento
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 7-11.
8
Dossiê Lima Barreto
O Rio de Janeiro no início do século XX: uma narrativa sociológica do desenvolvimento da cidade na obra Recordações
do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto.
Ana Magali Busko e Rafael Lacerda Soares
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 7-11.
9
Dossiê Lima Barreto
O Rio de Janeiro no início do século XX: uma narrativa sociológica do desenvolvimento da cidade na obra Recordações
do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto.
Ana Magali Busko e Rafael Lacerda Soares
me parecia com nenhum outro, que não do jornal O Globo no palco político, e de fato as
era capaz de me soldar a nenhum e que, folhas cariocas foram de suma importância para
desajeitado para me adaptar, era incapaz
de tomar posição, importância e nome. o processo democrático. Foram fundados diários
(BARRETO, 2011, p.295). das mais variadas vertentes de pensamento para
essa expressão. Jornais como o Não Matarás e o
Conforme citação de Carvalho (1987):
Baluarte representavam a Federação Operária do
“A República que não era cidade, não tinha
Rio; os anarquistas tinham os jornais: O Despertar, O
cidadão”. Além disso, diz o pesquisador, “O povo
Protesto, O Golpe, A greve entre outros. Os socialistas
não se enquadrava nos padrões europeus”. Por
tinham o Echo Popular e muitos outros setores das
essa razão, impossibilitada de ser “A República”,
massas procuravam seu lugar ao sol na política
a cidade mantinha suas repúblicas particulares,
brasileira. Além disso, o personagem de Isaías
ou seja, seus núcleos de participação social, nos
Caminha conta no decorrer do enredo que parte
bairros nas associações, nas irmandades, nos
desses jornais já estava corrompida pelos próprios
grupos étnicos, nas igrejas, nas festas religiosas
donos do poder e ao analisar a história de muitos
e profanas e mesmo nos cortiços e nas rodas de
jornais cariocas nota-se que não sobreviviam por
capoeira, que se transformaram, ao longo dos anos,
muitos anos.
em estruturas comunitárias que não se encaixavam
É dentro desse contexto conturbado da
no modelo contratual do liberalismo dominante na
historiografia nacional que Lima Barreto olha a
política. A despeito disso, pode-se dizer que foi a
sociedade carioca usando como janela o cotidiano
evolução destas repúblicas, algumas inicialmente
do jornal O Globo que se mistura à sua vida
discriminadas, que se não perseguidas formou-se
privada. Ele fez de Isaías Caminha o protagonista, e
a identidade coletiva da cidade.
assim aguça a intelectualidade do leitor na tentativa
Foram nelas que se aproximaram povo e
de fazê-lo entender o que foi narrado e sobre os
classe média, foram nelas que se desenhou o rosto
fatos sociais decorridos. Será porque havia uma
real da cidade, longe das preocupações com a
particularidade no fundo desta narrativa tão rica
imagem que se devia apresentar a Europa. Foram
que explica todo o tema do livro? Pode-se dizer
o futebol, o samba e o carnaval que deram ao Rio
que sim, as relações entre os personagens são por
de Janeiro uma comunidade de sentimentos por
si somente um elemento relevante no romance.
cima e além das grandes diferenças sociais que
E também o são as descrições geográficas, pois
sobreviveram e ainda sobrevivem. Negros livres,
neste passeio sensorial pelo Rio de Janeiro do
ex-escravos, imigrantes, proletários e classe média
início do século XX criam-se as memórias afetivas,
encontraram nessa resistência o reconhecimento
construindo uma moldura para todas as narrativas
que lhes era negado pela sociedade e pela política,
do enredo, no feixe de ligação entre os personagens,
que os marginalizava, restringindo o seu forte
nas suas afinidades, nos seus olhares, nos seus
apelo cultural.
desafetos e rancores, nos seus destinos.
Durante todo esse período a voz das
organizações era a imprensa, pois procuravam
visibilidade dentro do cenário político carioca.
Lima Barreto deixa saliente em sua história o papel
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 7-11.
10
Dossiê Lima Barreto
O Rio de Janeiro no início do século XX: uma narrativa sociológica do desenvolvimento da cidade na obra Recordações
do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto.
Ana Magali Busko e Rafael Lacerda Soares
Referências Bibliográficas:
BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São
Paulo: Companhia das Letras, 1987.
HOUAISS, Antonio. Mini Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Objetiva/
Moderna, 2008.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 7-11.
11
Dossiê Lima Barreto
Resumo
O anarquismo, visto com maus olhos pelo senso
comum devida sua fama equivocada de desordem
e bagunça, é um pensamento político, social e
econômico que contribuiu para a formação da
sociedade atual, defendendo em seu cerne os
interesses dos proletários, das mulheres, do meio
ambiente e de todas as vítimas dos processos de
industrialização e das relações de poder, a partir do
final do século XIX. As obras do brasileiro Lima
Barreto, autor à frente de seu tempo, são marcadas,
entre outras coisas, pelo pensamento libertário e
de inconformidade com o estado moral e social da
época, anteriores à consolidação do pensamento
anarquista brasileiro (a partir dos anos 30 do
século XX). Começaremos esse trabalho pela
tessitura e conceituação dos termos anarquia e
anarquismo, explorando suas vertentes e difusão
pelo Brasil a partir da abolição da escravatura e
formação da classe operária. Posteriormente uma
abordagem sobre a vida e obra de Lima Barreto
e, em seguida, buscando identificar a presença de
insigths anarquistas na obra Recordações do escrivão
Isaías Caminha.
Palavras -Chave
Anarquismo, Lima Barreto, Literatura brasileira.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
12
Dossiê Lima Barreto
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
13
Dossiê Lima Barreto
os grandes nomes anarquistas, como, por métodos revolucionários: esta última se utilizava
exemplo, Godwin, Stiner e Tolstói, este último da não violência e das greves como protesto.
sendo considerado pela crítica mundial um dos No anarco-comunismo seriam abolidos toda
maiores escritores anarquista de acordo com forma de propriedade privada e Estado e os
Bezerra (2010), se utilizaram do termo em suas trabalhadores tomariam o poder e se utilizariam da
informações ante as relações de poder impostas democracia direta para todas as decisões políticas.
criando, para isso, sistemas antigovernamentais. Os anarcossindicalistas acreditavam que a via
Mas, pela conceituação que estamos abordando da atuação nos sindicatos seria uma ferramenta
aqui, esses nomes podem ser considerados como para alterar a sociedade, mudando o capitalismo
anarquistas por estarem alinhados no sentido instalado e o Estado e fundando democraticamente
de irem de encontro ao sistema social vigente e uma nova sociedade, esta autogerida pelos próprios
propondo novas formas de organização social e, trabalhadores.
também, política. Há também o anarquismo individualista,
O que Proudhon deseja construir, onde pensadores e atuantes dessa vertente não
conforme descrito por Woodcock (2002), é uma acreditam na integridade de nenhuma forma de
sociedade reunida em grandes federações de associação, mesmo cooperativista, exaltando o
comunas e cooperativas operárias, tendo como caráter individual; além dos anarco-pacifistas,
base econômica onde indivíduos e pequenos representado ilustremente por Tolstói, e que,
grupos disponham de seus próprios meios de inclusive, influenciou as ideias de Gandhi,
produção e ligados por contratos e permuta de cogitavam a não-resistência. Para eles, sendo
créditos mútuos que asseguraria a todos o produto contrários a qualquer forma de poder, e acreditando
de seu próprio trabalho. ser a violência também uma forma de poder, eram
Desse ideal imaginado por Proudhon, avessos a tais manifestações.
surgem correntes de pensamento anarquistas Podemos constatar um perfil próximo
que se diferenciam principalmente pela forma de ao positivismo em alguns ideais anarquistas, no
organização econômica e pelo modo de militância, sentido, conforme citado por Woodcock (2002),
violenta ou não. Essa vertente de Proudhon, de entenderem que existe um progresso no
posteriormente adotada por Kropotkin, pode desenvolvimento das sociedades proporcionado,
ser chamada de “mutualismo” e “coletivismo” entre outras coisas, pelos avanços científicos e
respectivamente, tendo como base a ideia das pela questão das sociedades se firmarem quase que
comunas e cooperativas e a ênfase na ideia da naturalmente, conforme descrito por Proudhon
propriedade em mãos de instituições voluntária apud Woodcock (2002, p. 23) em que as sociedades
que assegurariam aos trabalhadores o produto se desenvolvem “estimuladas pelo progresso
integral de seus trabalhos. das ciências, por novos inventos e pela evolução
Surgira também o anarco-comunismo ininterrupta das ideias cada vez mais elevadas”,
e, posteriormente, o anarcossindicalismo, duas onde tais homens não são governados por outros
correntes, por assim dizer, mais focada na homens, mas em contínua evolução – tal como
situação da classe proletária da época, tendo como notado na Natureza. Porém, é com cuidado que
principal diferença a forma de manifestação ou nos arriscamos a considerar o anarquismo como
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
14
Dossiê Lima Barreto
uma vertente progressista, pois, não define tão ganhando impulso somente com a imigração.
claramente tal progresso e não define com exatidão Sendo assim, o proletariado brasileiro é formado
um devir. Woodcock (2002, p. 25) menciona que: não somente por artesões e camponeses, como
ocorrera na Europa na transição do feudalismo
a maioria dos homens de esquerda
do século XIX falavam em progresso. para o capitalismo, mas, sim, por indivíduos
Godwin sonhava com homens que predominantemente estrangeiros.
se desenvolveriam indefinidamente,
O processo de industrialização no Brasil foi
Kropotkin procurava diligentemente
estabelecer ligações entre o anarquismo e lento e concentrou-se quase que na sua totalidade
a evolução e Proudhon chegou a escrever na região sul do país. Há um aceleramento da
uma Philosophie du Progrés [Filosofia do industrialização a partir de 1880 provocando assim
Progresso].
uma maior demanda por força de trabalho. A partir
Já os que se consideravam marxistas, daí, a imigração cresce ainda mais.
utilizando um anacronismo neste termo, negavam A partir de 1890 em São Paulo e Rio de
a existência da evolução nos ideais anarquistas, Janeiro a classe operária no Brasil já era formada
pois, segundo eles, estes ‘flutuavam no ar’ sem em sua maioria por imigrantes. Tal como ocorrido
nenhuma definição legítima ou concreta dos ideais na Europa, a industrialização foi sustentada a
anarquistas em relação à história. partir da exploração da mão de obra, assim “o
Tais correntes anarquistas foram se proletariado nascente é vítima de uma exploração
espalhando por todo mundo, inclusive para intensiva, com condições de vida e trabalho
o Brasil, onde se firmou mais claramente a precárias, jornadas de trabalho extensas e uso da
partir das décadas de 30 do século XX, embora forca de trabalho feminina precoce com salários
anteriormente a esse período já se mostrasse baixos”. (DEMINICIUS e FILHO, 2006, p. 27)
claramente presente na literatura e mídias da época, Os trabalhadores vivam em condições
muitas censuradas pela polícia e pelo governo, mas insalubres, tanto dentro como fora das fábricas,
que contribuíram enormemente para a difusão dos as violências praticadas dentro da fabrica contra
ideais anarquistas. mulheres e menores eram constantemente
relatadas na imprensa operária. Não havia nenhuma
O anarquismo no Brasil: contra as forças
representatividade da classe operária na política
produtivas hierarquizadas e a exploração do
institucional, sendo esta vigiada e controlada pelo
trabalhador brasileiro
Estado. As associações tornaram-se cada vez mais
“O anarquismo brasileiro, em sua origem urgentes, surgindo às ideias sindicalistas, socialistas
não era força hegemônica no movimento operário, e principalmente anarquistas brasileiros.
como era uma força política poderosa e que estava
Segundo Deminicis e Filho (2006),
presente nas lutas operárias de forma intensiva”
grande parte dos imigrantes europeus que vieram
(DEMINICIUS e FILHO, 2006, p. 23). O
pra região de São Paulo e Rio de Janeiro eram
pensamento anarquista no Brasil inicia-se junto
italianos, o que explica a hegemonia anarquista no
à formação da classe operária, dada a partir da
movimento operário brasileiro, devido ao fato de
abolição da escravatura. Surge então o trabalho
que o movimento operário italiano era marcado
assalariado que desenvolve lentamente, porém
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
15
Dossiê Lima Barreto
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
16
Dossiê Lima Barreto
arma poderosa nas mãos do proletariado; Dona Amália, mãe de Lima Barreto
ela é ou pode ser um modo e a ocasião de morreu quando ele tinha apenas sete anos, vitima
desencadear uma revolução social radical.
Entretanto, eu me pergunto se a ideia da de tuberculose. “A morte de Amália há de descer
greve geral não fez mais mal do que bem como uma sombra no coração do filho mais velho.
à causa da revolução. (MALATESTA, Sombra que nunca mais se dissipará”. (BARBOSA,
1989, p. 107) 2002, p. 50)
Os movimentos operários foram cada vez Lima guardou pra sempre a imagem da
mais se burocratizando, o Estado antes indiferente mãe morta, boa parte de sua revolta, violência e
às causas operárias passou a interferir através descrença no mundo virá da imensa tristeza que
de legislações reguladoras. A partir de 1919 os sempre o assombrará a partir desse triste episodio
partidos políticos também passam a interferir, de sua vida. Talvez pela vida dura sem os carinhos
burocratizando ainda mais as associações e os de sua mãe e pelo peso de ser o irmão mais velho,
sindicatos. O processo capitalista no Brasil Lima Barreto sempre “reagira com extremada
e o aprofundamento das instituições estatais, violência, antes as injustiças do mundo e as
também contribuíram significativamente para o incompreensões das pessoas quo o cercam, com
enfraquecimento dos ideais anarquistas. violência às vezes desmedida e inconsequente”.
Lima Barreto: vida e obra (BARBOSA, 2002, p. 61)
Após a morte de sua mãe vai para escola
Nasceu em 13 de Maio de 1881, Afonso pública, sendo sempre um aluno aplicado. Em 13
Henriques de Lima Barreto, neto de uma negra de Maio de 1888, dia do seu aniversario de sete
escrava liberta e de um português que nunca anos ocorreu a abolição da escravatura, fato esse
reconheceu seu pai, sua mãe também era mulata. que passou despercebido, pois conforme Barbosa
Lima nasceu sobre um “signo ruim”, numa sexta- (2002), sendo um morador do Rio de Janeiro
feira 13 no dia de Nossa Senhora dos Martírios, onde os escravos já rareavam, Lima Barreto nunca
assim, continua BASTOS (2010) “o martírio conheceu um escravo e desta forma não imaginava
de Lima parece advir mais da época e local de ser a escravidão uma “instituição vexatória”
nascimento (a retrógada sociedade brasileira de fins de “aspectos hediondos”. Sempre bom aluno
do século 19) que da data supostamente agourenta e contando com o incentivo do seu pai, Lima
em que por acaso se deu”. conquistou boas notas na escola unindo seu desejo
O pai de Lima era tipógrafo e sua mãe de estudar e o sonho do pai de vê-lo na Escola
professora primaria, seu pai não media esforços Politécnica.
para sustentar os filhos trabalhando dia e noite, era Enfim em março de 1897, Affonso
muito preocupado com a educação formal, já que Henriques Lima Barreto era estudante da Escola
não conseguiu realizar seu sonho de ser medico Politécnica. Porém, era incapaz de se interessar
devido à necessidade de trabalhar para custear os por assuntos que não gostava e cada vez mais,
gastos com a família, se esforçava para que seus foi mostrando que o fato de estudar na Escola
filhos, em especial seu primogênito Affonso, Politécnica dava-se mais pelo desejo de seu pai do
se tornasse doutor e não passasse por todas as que por sua vontade, ele era um amante da filosofia
humilhações e privações as quais passou. e não conseguia ocupar sua cabeça com teoremas e
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
17
Dossiê Lima Barreto
conjugados, desta forma, e além das perseguições Lima chega a fundar uma revista Floreal
sofridas por um dos professores e a loucura de a qual , permitia liberar ainda mais seus desejos
seu pai que o levou a se ver obrigado a assumir a de ser escritor/jornalista, nesta revista chegou a
função de arrimo de família, não tardou para que publicar dois capítulos do futuro livro Recordações
reprovasse em diversas matérias de exatas e fosse do escrivão Isaías Caminha. Porém a revista não
obrigado a abandonar a Politécnica. Em 1903 após passa da quarta edição e tomado por sentimento
prestar concurso público foi nomeado a um cargo de tristeza e depressão, passa a buscar na bebida
na Secretaria da Guerra. alivio para seus tormentos.
Desde a época da Politécnica, Lima Barreto Consegue publicar sua primeira obra
já demonstrava sua inclinação aos pensamentos literária Recordações... em Portugal devido a não ter
libertários e progressistas, havia sido colaborador localizado no Brasil quem a quisesse publicar, a
de um periódico chamado A Lanterna que se partir daí, dado o conteúdo pessoal do livro e suas
intitulava de “órgão oficioso da mocidade de referências a figuras importantes da cena jornalista
nossas escolas superiores” (BARBOSA, 2002, p. da época, seu caráter denunciante e desmoralizante
106), ali neste jornal já despejava sua revolta contra acerca dos acontecimentos e pessoas, Lima já
as instituições, contra os professores e contra seus discriminado pela sua condição de mulato e pobre,
colegas, dos quais, praticavam comportamentos passa a ser também um autor não quisto.
preconceituosos em relação a ele. Além de Recordações... Lima escreveu
Como já dito anteriormente, por volta de simultaneamente Morte de M.J. Gonzaga de Sá e logo
1900 através dos imigrantes italianos, chega ao adiante sua mais famosa obra O triste fim de Policarpo
país os ideais anarquistas, que contribuíram para o Quaresma, segundo o documentário da TV Escola
inicio de publicações tanto de romances quanto de Lima Barreto – Vida e obra, só a partir de seus escritos
contos com conteúdo social (BARBOSA, 2002). é que a figura do pobre e do suburbano passa a
existir no espaço elegante e nobre da literatura. Nas
Lima Barreto revelou simpatia pelo
anarquismo em vários dos seus artigos, suas obras ele retrata temas como, preconceito,
crônicas, romances e ensaios. Em Palavras discriminação das mulheres, ecologia, desfiguração
de um snob anarquista, publicado em da paisagem, mostrando-se um escritor à frente do
1913, em A Voz do trabalhador, tenta
mostrar plausibilidade dessa teoria política, seu tempo, de modo que nos dias atuais podemos
no contexto social brasileiro, contrário verificar facilmente a atualidade de suas obras.
aos grandes jornais, que a consideravam Em 1911 seus três principais livros já estão
um movimento alienígena, sem raízes na
‘cultura brasileira’. Entre os vários títulos publicados, os problemas com a bebida aumentam
encontrados na biblioteca do autor, e assim pode-se traçar o começo de um declínio na
destacam-se as obras de Hamon, Ethz sua produção literária.
Bacher, Max Nordou, Malatesta, Elisée
Reclus e, principalmente, Kropotkin. Suas A falta de estimulo e a hostilidade do
fontes documentais dão conta da afinidade ambiente, aliados ao forte complexo e
de Lima Barreto com o pensamento a uma serie de outros fatores, dos quais
anarquista, através da utilização marcante não deve ser esquecido o da tragédia
das chamadas linguagens negadoras: doméstica, transformaria o adolescente
paródia, ironia, sátira, etc. (DEMINICIS cheio de sonhos num pobre homem,
e FILHO, 2006 p. 147) viciado no álcool, que lhe consome
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
18
Dossiê Lima Barreto
não somente a saúde, como em grande sair, sem poder praticar suas andanças pela cidade
parte lhe sacrifica a carreira de escritor. nem compartilhar da companhia das pessoas
(BARBOSA, 2002, p. 223)
simples as quais tanto gostava. Morreu em 1° de
O uso exagerado da bebida matou Lima novembro de 1922 no seu quarto em meio aos
lentamente, passava dias nas ruas, não se alimentava, seus livros e suas últimas palavras foram perguntar
não tardou a começar a apresentar sinais físicos de se seu pai estava bem, estava sentado abraçado a
seus abusos. (BARBOSA, 2002). Em 1914 ocorre uma revista francesa. Seu velório foi disputado
sua primeira internação num hospício por causa de por “gente desconhecida dos subúrbios. Amigos
alucinações derivadas do excesso de bebidas. humildes.” (BARBOSA, 2002 p. 358)
Por volta de 1917 passa a contribuir No seu leito de moribundo, João
mais ainda com o movimento anarquista, seus Henriques sentira que qualquer coisa
pensamentos libertários se expandiam, saiam cada diferente ocorrera na casa. Como que
recobrando a razão por um instante,
vez mais da obra literária e “embora sem participar perguntara à filha, no dia seguinte:
da ação direta, dá ao movimento, que cresce a Que foi que aconteceu? Afonso morreu?
olhos vistos, o melhor do seu esforço de escritor e Evangelina procurou acalmá-lo, mas
em vão. João Henriques tinha os olhos
jornalista” (BARBOSA, 2002, p. 268), o medo de
secos e duros. Logo depois, entrava em
perder seu emprego público não o atormenta mais, agonia. Nada mais restava a esperar...
seus irmãos já eram adultos e trabalhavam tendo Morreu quarenta e oito horas depois do
possibilidades de participar do custeio da casa e filho. Foi enterrado na mesma campa. E,
no túmulo humilde, eles repousam para
cuidar também de seu pai, há tempos, entregue a sempre, novamente unidos, na morte
loucura. Assim, seus anseios de participar da luta como na vida. (BARBOSA, 2002, p. 360)
social cresceram. Passa a denunciar tudo ferozmente,
contribui ainda mais para a imprensa anarquista. Ideais anarquistas na obra Recordações do
Através desse sentimento de liberdade que o toma escrivão Isaías Caminha
entrega-se cada vez mais a bebida, é internado
Tendo em vista que os ideais básicos
novamente em 1919, continua contribuindo com
da anarquia, conforme aqui conceituado, seja a
a imprensa operária e devido a suas insanidades, é
liberdade individual como garantia indispensável
aposentado do serviço público.
para qualquer sociedade, e que muitos pensadores
Após a aposentadoria, passa a escrever
do anarquismo são aguerridos e munidos de
para diversos jornais: Careta, A.B.C., Hoje, Tio-Jornal
críticas contra o status quo, alguns até mesmo
entre outros. “Nos últimos anos, como em toda a
com o pensamento de que se é preciso ‘destruir’
vida, Lima Barreto permanece fiel à sua vocação
o estado atual da sociedade para se construir
de escritor. Ao mesmo tempo em que luta para se
um novo estado, e entendendo também Lima
libertar do vicio que o degrada, agarra-se à literatura
Barreto como um artista literário dotado de tais
como a um resto de náufrago” (BARBOSA, 2002,
características (BEZERRA, 2010), podem-se
p. 320).
notar na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha a
Lima Barreto foi vencido pelo alcoolismo presença de algumas passagens que, ao nosso olhar,
e consequentemente pela doença, passou seus mesmo que sutilmente, perpassa pelas questões
últimos momentos em casa, recluso, sem poder
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
19
Dossiê Lima Barreto
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
20
Dossiê Lima Barreto
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
21
Dossiê Lima Barreto
Laje: – Porque eu apoiava a oposição lá de vingança pelo que estaria prestes a acontecer.
no meu município… É isto a polícia, no
Brasil… Eu posso falar: sou brasileiro…
Naquele dia, quebrou sua rotina, o que
A polícia no Brasil só serve para exercer teria provocado posteriormente a intimação por
vinganças, e mais nada. (BARRETO, suspeita de roubo. Saiu de casa mais cedo na
2010, p. 115) tentativa frustrada de encontrar o doutor Castro.
Após descobrir em uma notícia que o Na volta, foi almoçar com seu amigo Gregoróvitch.
doutor Castro, que tanto ele procurava, não estaria Nesse encontro, passou a conhecer-lhe mais.
mais na cidade, começa a despertar em Isaías Gregoróvitch “tinha cinqüenta anos e sentia-se
um enorme sentimento de revolta contra todos absolutamente sem pátria, livre de todas as tiranias
os joguetes que os homens poderosos fazem as morais e psicológicas que essa nação contém em
pessoas humildes passarem. Barreto (2010, p. 122) si” (BARRETO, 2010, p. 124). Essa passagem
cita um trecho bastante significativo e que vão ao demonstra a característica anarquista do amigo de
encontro dos ideais anarquistas, é um momento Isaías. Em outro trecho, Isaías, comentando sua
que sofre um safanão de um sujeito e começa a admiração pelo recente amigo, cita que ele fez-
refletir: lhe “notar que era preciso difundir na consciência
coletiva um ideal de força, de vigor, de violência
Esse incidente fez-me voltar de novo mesmo, destinado a corrigir a doçura nativa de
aos meus pensamentos amargos, ao ódio
já sopitado, ao sentimento de opressão todos nós” (BARRETO, 2010, p. 125). Podemos
da sociedade inteira… Até hoje não me notar que, a partir daqui, muitas das ideias libertárias
esqueci desse episódio insignificante de Isaías foram de todo incitadas pelas conversas
que veio reacender na minha alma o
desejo feroz de reinvindicação. Senti-me
com Gregoróvitch.
humilhado, esmagado, enfraquecido por Na delegacia, sofre um ato discriminatório
uma vida de estudo, a servir de joguete, pela sua cor. Isaías, escrevendo essas memórias,
de irrisão a esses poderosos todos por aí.
Hoje que sou um tanto letrado sei que lembra-se com muita dor desse e de outros
Stendhal dissera que são esses momentos acontecimentos e discerne os fatos que o levaram
que fazem os Robespierres. O nome não a ter pensamentos de tais maneiras. Nessa
me veio à memória, mas foi isso que eu
ocasião, ficou indignado ante o descompasso
desejei chegar a ser um dia.
que um homem, representante das autoridades e
A figura de Robespierre aparece aqui como do governo, do que tinha de certa forma poder
sendo uma imagem a ser atingida pelos anseios de legitimado e que deveria ter consciência jurídica
Isaías, uma figura de liderança em prol das causas de seus direitos, agirem dessa forma. Após uma
populares e que no cerne da Revolução Francesa pequena discussão, sem motivos para isso, Isaías
fora acusado de anarquista por Brissot e pelo é preso a mando do delegado, injustamente. Todo
Diretório, conforme mencionado por Woodcock seu pensamento de patriotismo, recém-erguido
(2002). Uma figura de inconformidade contra as por seu amigo, se desfaz. Pensou ironicamente: “A
causas absolutistas e de luta pelos seus ideais. pátria!”.
Ao final do capítulo IV, em reflexões que Lima Barreto mistura reflexões pessoais
não deixa claro quem está falando, Lima Barreto ou com as reflexões da personagem ao longo da obra.
Isaías Caminha, deixa evidentes seus desejos atuais Ele, enquanto Lima Barreto, critica os literatos
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
22
Dossiê Lima Barreto
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
23
Dossiê Lima Barreto
outra coisa! Pois o senhor acha justo que em O Globo, a convite de seu amigo Gregoróvitch,
esses senhores gordos, que andam por aí, sempre fica muito claro suas críticas ante a imprensa
gastem numa hora com as mulheres, com
as filhas e com as amantes, o que bastava e as relações de poder que se encontra dentro
para fazer viver famílias inteiras? O senhor e fora dela. Esse fato fica claro na passagem a
não vê que a pátria não é mais do que a seguir, quando Leiva dialoga com Plínio de Andrade,
exploração de uma minoria, ligada entre
suposto pseudônimo do próprio Lima Barreto:
si, estreitamente ligada, em virtude dessa
mesma exploração, e que domina fazendo Plínio: – (…) A imprensa! Que quadrilha!
crer à massa que trabalha para a felicidade (…) Nada há nada tão parecido como o
dela? O público ainda não entrou nos pirata antigo e o jornalista moderno: a
mistérios da religião da pátria... Ah! mesma fraqueza de meios, servida por
quando ele entrar! (BARRETO, 2010, p. uma coragem de salteador; conhecimentos
156 e 157) elementares do instrumento que
lançam mão e um olhar seguro, uma
No trecho seguinte, Leiva, aos moldes adivinhação, um faro para achar a presa
proposto por Proudhon apud Woodcock (2002), e uma insensibilidade, uma ausência de
no pensamento anarquista, na questão da não senso moral de toda a prova… E assim
dominam tudo, aterram, fazem que todas
necessidade do Estado para governar a vida social,
as manifestações de nossa vida coletiva
pois, tal como acontece com os outros seres sociais dependam do assentimento e da sua
da Natureza, a raça humana tende a uma vida social aprovação… Todos nós temos que nos
tão natural quanto por si só, exclama: submeter a eles, adulá-los, chama-los
gênios, embora inteiramente os sintamos
Leiva: – Não há na natureza nada ignorantes, parvos, imorais e bestas…
que se pareça com a nossa sociedade (…) E como eles aproveitam esse
governada pelo Estado... Observe o poder que lhes dá a fatal estupidez das
senhor que todas as sociedades animais multidões! (…) trabalham para a seleção
se governam por leis para as quais elas de mediocridades.
não colaboraram, são como preexistentes (…)
a elas, independentes de sua vontade; e só Plínio: – (…) hoje, é a mais tirânica
nós inventamos esse absurdo de fazer leis manifestação do capitalismo e a mais
para nós mesmos – leis que, em última terrível também… É um poder vago, sutil,
análise, não são mais que a expressão da impessoal, que só poucas inteligências
vontade, dos caprichos, dos interesses de podem colher-lhe a força e a essencial
uma minoria insignificante... No nosso ausência da mais elementar moralidade,
corpo há uma multidão de organismos, dos mais rudimentares sentimentos
todos eles se interdependem, mas vivem de justiça e honestidade! São grandes
autonomamente sem serem propriamente empresas, propriedade de venturosos
governados por nenhum, e o equilíbrio se donos, destinadas a lhes dar o domínio
faz por isso mesmo... O sistema solar... sobre as massas, em cuja linguagem
Na natureza, todo o equilíbrio se obtém falam, e a cuja inferioridade mental vão
pela ação livre de cada uma das forças ao encontro, conduzindo os governos, os
particulares... caracteres para os seus desejos inferiores,
(...) para os atrozes lucros burgueses… Não
Leiva: – Eu quero a confusão geral, para é fácil a um indivíduo qualquer, pobre,
que a ordem natural surja triunfante e cheio de grandes ideias, fundar um que os
vitoriosa! (BARRETO, 2010, p. 157) combata… Há necessidade de dinheiro;
são precisos, portanto, capitalistas que
Quando Isaías já se encontra trabalhando determinem e imponham o que deve fazer
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
24
Dossiê Lima Barreto
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
25
Dossiê Lima Barreto
Conclusão
Este trabalho teve como objetivo investigar
a presença de resquícios literários que se remetam
ou refletem o início da construção do pensamento
anarquista no Brasil no início do século XX, mais
especificamente na obra Recordações do escrivão Isaías
Caminha, de Lima Barreto. Embora suas obras
posteriores como Triste fim de Policarpo Quaresma, ou
mesmo os folhetins publicados por Lima Barreto
em jornais considerados anarquistas da época
apresentem elementos figurados do pensamento
anarquista mais evidente, tal como citado por
BEZERRA (2010), nota-se que na obra analisada
há, mesmo timidamente, trechos, ideias e passagens
que remetem ao pensamento libertário do autor na
obra analisada.
Começamos a conceituar os termos
anarquismo e anarquia, explanamos seu surgimento
e desenvolvimento na Europa, mostramos
brevemente como a anarquia se firmou no Brasil,
mostramos resumidamente a vida e obra de
Lima Barreto e suas relações com o anarquismo
e finalmente investigamos na obra Recordações do
escrivão Isaías Caminha a presença de passagens
que se remete ao pensamento anarquista de Lima
Barreto. É necessário, todavia, deixar claro que
não se pode afirmar categoricamente que Lima
Barreto era um anarquista, mas é evidente que, até
mesmo pelas circunstâncias históricas da época e
de sua história de vida (fortemente marcada pelo
preconceito e pela luta e crítica contra o status quo),
suas obras transparecem o pensamento libertário,
muitas vezes pela vertente do anarco-comunismo.
A obra analisada ainda é tímida nesse sentido, mas
julgamos rico tornar evidente em que momentos
da história de Isaías o anarquismo se mostra
presente.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
26
Dossiê Lima Barreto
Referências Bibliográficas:
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro, RJ: José Olympio Editora,
2003.
BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo, SP:
Editora Penguin & Companhia das Letras, 2010.
BEZERRA, Jane Mary Cunha. Lima Barreto: anarquismo, antipatriotismo e forma literária. 2010.
129 f. Dissertação de mestrado (pós-graduação em Letras) – Universidade Federal do Ceará: Fortaleza,
CE, 2010.
COSTA, Túlio Caio. O que é anarquismo? São Paulo: Editora Brasiliense, 1980.
DEMINICIS, Rafael Borges e FILHO, Daniel Aarão (orgs.). História do anarquismo no Brasil.
Volumes 1. Niterói, RJ: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2006.
DULLES, John W. Foster. Anarquistas e comunistas no Brasil (1900-1930). Coleção-Brasil Século 20.
Rio de Janeiro, RJ: Editora Nova Fronteira, 1977.
MALATESTA, Errico. Escritos revolucionários. Brasília, DF: Novos Tempos Editora, 1989.
RODRIGUES, Edgar. Quem tem medo do anarquismo? Rio de Janeiro, RJ: Editora Achiamé, 1992.
______. Socialismo e sindicalismo no Brasil (1675-1913). Rio de Janeiro, RJ: Gráfica Editora
Laemmert, 1969.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
27
Dossiê Lima Barreto
WOODCOCK, George. História das idéias e movimentos anarquistas. Volume 1: A idéia. Porto
Alegre, SC: L&PM Pocket, 2002.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
28
Dossiê Lima Barreto
Resumo
O presente trabalho tem por interesse apresentar
uma leitura onde se buscará elementos de um
pensamento hegemônico na cidade do Rio
de Janeiro no começo do século XX. A partir
de relatos contidos na obra do autori visa-se
identificar um modelo de pensamento que
predominava na cidade do Rio de Janeiro.
Focalizando os discursos que deslegitimavam
os “cidadãos” negros da “cidade maravilhosa”
na época, serão abordados assuntos como
preconceito, estigma social, marginalização,
entre outros.
Palavras -Chave
Pensamento; Linguagem; Dominação; Poder.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 29-41.
29
Dossiê Lima Barreto
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 29-41.
30
Dossiê Lima Barreto
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 29-41.
31
Dossiê Lima Barreto
Isaías refletir sobre sua conduta e o leva a analisar miserável, nada pôde fazer pelo filho senão apoiá-
suas origens e as razões pelas quais o levaram até lo. Sua vida pacata e “burguesa” de algum modo
o seu destino. mostrar-lhe-ia que fora dos confins do interior,
da cidadezinha, sua condição não passaria de uma
A tristeza, a compreensão e a desigualdade
de nível mental do meu meio familiar mera negação da sua própria identidade; para se
agiram sobre mim de modo curioso: compreender como esta descontrução se dá é
deram-me anseios de inteligência. (...) preciso entender a linguagem, e como através
Foi com esses sentimentos que entrei
para o curso primário. Dediquei-me
dela construímos as formas socialmente aceitas de
açodadamente ao estudo. Brilhei, e identidade.
com o tempo foram-se desdobrando as Frantz Fanon, em seu livro Pele Negra
minhas primitivas noções sobre o saber.
Acenturam-se-me tendências; pus-me a Mascaras Brancas, apresenta como a linguagem
colimar glórias extraordinárias, sem lhes determina as formas de identidades estabelecidas
avaliar ao certo significação e a utilidade. socialmente.
Houve na minha alma um tumultuar de
desejos, de aspirações indefinidas. Para Na linguagem está a promessa do
mim era como se o mundo me estivesse reconhecimento; dominar a linguagem,
esperando para continuar a evoluir... um certo idioma, é assumir a identidade
(BARRETO, 2011, p. 67-68). da cultura. Esta promessa não se cumpre,
todavia, quando vivenciada pelos negros.
Sendo ele filho de um padre, e sua mãe Mesmo quando o idioma é “dominado”,
escrava, Isaías já antes de nascer encontra-se numa resulta a ilegitimidade (FANON, 2008, p.
batalha e num dilema moral. O Pai pela profissão 15).
e o peso do pecado da carne não pôde assumi- Isaías acredita nesta legitimidade do ser
lo como filho socialmente, mas dá-lhe toda a letrado e parte para a cidade com a esperança de
instrução e carinho que qualquer outro pai poder- conquistar seu lugar ao Sol. Da saída do interior
lhe-ia dar. até a chegada à capital Isaías enfrentará inúmeros
Pareceu-me que o seu encontro fora conflitos, dos quais nem a sua inteligência,
rápido, o bastante para me dar nascimento. aguçada e voraz, conseguirá de imediato decifrá-
Uma crise violenta do sexo fizera esquecer los. Ao chegar à capital demorará a perceber que
os votos de seu sacerdócio, vencera a sua
sua estadia além de não ser bem quista por uns,
vontade, mas, passada ela, viera, com o
arrependimento da quebra do seu voto, a será anulada por outros. “O contraste feriu-me,
dor inqualificável de não poder confessar e com os olhares que os presentes me lançaram,
sua partenidade. mais cresceu a minha indignação. Curti durante
Ele amou-me sempre, talvez me quisesse
mais por causa das condições que segundos uma raiva muda, e por pouco ela não
envolviam o meu nascimento. Em público rebentou em pranto.” (BARRETO, 2011, p. 80).
olhava-me de soslaio, media as carícias,
Mas, de certo modo, Isaías “enfrentará”
esforlava-se por fazê-las banais; em casa,
porém, quando não havia testemunhas, os problemas. Contudo, seus esforços, em grande
beijava-me e afagava-me com transporte. parte, serão em vão. Procurará exigir seus direitos
(BARRETO, 2011, p. 67-68). mesmo que para isso tenha que dormir no
A mãe, por sua condição humilde e “xilindró”; colocar-se-á, muitas vezes, na pele de
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 29-41.
32
Dossiê Lima Barreto
outras pessoas, essas provações servirão ao nosso os homens da Ilustração se tinham incumbido de
protagonista como combustível para seguir em divulgar e a Revolução Francesa de pôr em prática”
frente, sempre avante, em busca de seu sonho. (COSTA, 2010, p. 30).
Firmará alianças, terá inimigos, provará o doce Durante o período imperial um número
sabor da amizade e o ardor veneno da mentira e substancial de vertentes político-ideológicas
da traição. imergiu nas discussões dos grupos de repressão
Contudo, para entendermos a situação de contra o regime. Às vésperas da independência a
Isaías no contexto apresentado na obra de Lima vertente que se destacava era o liberalismo. Neste
Barreto, será preciso retornarmos um pouco no mesmo período discutia-se a ‘possibilidade de
tempo para que possamos compreender como um levante de escravos’, contudo, firmaram um
as disposições sociais e políticas tratadas na obra documento que garantia o direito de propriedade
ocorreram. Assim, damos ao leitor uma pequena dos senhores sobre seus servos: “‘Patriotas’ (...)
abordagem das transformações que se sussederam ‘vossas propriedades, ainda as mais opugnantes ao
e que deram molde ao pensamento apresentado ideal de justiça, serão sagradas. O governo porá
no livro. Deste modo, um breve levantamento meios de diminuir o mal, não o fará cessar pela
das transformações histórico-político-culturais força’” (COSTA, 2010, p. 33). O Liberalismo
do período, assim como, dos conflitos que brasileiro conciliava com a religião e com a Igreja
desencadearam a Independência e a Abolição dos Católica, constata-se tal dado a partir do número
escravos revelaria a tão sonhada “República”. A expressivo de padres nos movimentos contra
importância de tal apresentação nos permite tratar hegemônicos, este processo recebeu o nome de
mais precisamente dos processos que se desdobram Revolução dos Padres.
sobre a personagem protagonista durante toda a Outra vertente apresentara-se no mesmo
obra. período, o nacionalismo. Entretanto, esta não
consolidou-se devido a economia brasileira que era
Os processos sócio-políticos na pré
ainda baseada essencialmente na exportação, tendo,
República
também, precárias suas formas de comunicação,
Os ares do Brasil pré-republicano eram, assim como, o limitado comércio interno que
naquele período, de mudança, pelo menos para dificultava as transições em toda sua extensão.
a elite que se iluminava, já há algum tempo, Tal nacionalismo expressava-se na forma de um
com os “abomináveis princípios franceses” da radical antiportuguesismo.
revolução e buscavam a Independência da colônia Todavia, existia uma dualidade, pois:
com a metrópole. Esses homens ilustrados eram
Aos olhos da população nativa mestiça,
“os estudantes que viajavam para o exterior,
a Independência significava sobretudo a
completando seus estudos em Portugal ou na possibilidade de eliminar as restrições que
França [e] voltavam imbuídos das novas ideias...” afastavam as pessoas de cor das posições
(COSTA, 2010, p. 29) visando uma reforma superiores, dos cargos administrativos,
do acesso à Universidade (...) e ao clero
imediata, que devidos aos conflitos ideológicos, superior. Abolir as diferenças de cor
ocorreriam paulatinamente. “Toda uma geração branca, preta e parda, oferecer iguais
fora educada nos princípios revolucionários que oportunidades a todos sem nenhuma
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 29-41.
33
Dossiê Lima Barreto
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 29-41.
34
Dossiê Lima Barreto
O Olhar de Isaías e o pensamento na Primeira Preconiza então sua partida para a cidade
República do Rio de Janeiro. Esta fora feita junto a uma
carta cedida pelo coronel Belmiro endereçada ao
Isaías, que nascera justamente cercado
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 29-41.
35
Dossiê Lima Barreto
deputado Castro, solicitando-o asilo e trabalho ao à beira do brejo; andar assim pelas ruas,
jovem Isaías. Sua partida viera acompanhada de pelas praças, pelas estradas, pelas salas,
recebendo cumprimentos: Doutor, como
um temor, um receio que o acolhera subitamente passou? Como está, doutor? Era sobre
após sua decisão. humano!... (BARRETO, 2011. p. 75).
(...) era uma cidade grande, cheia de Aqui percebemos claramente a influência
riqueza, abarrotada de egoísmo, onde
de um pensamento que o domina, que transfere
eu não tinha conhecimentos, relações,
protetores [exceto o deputado Castro] sua realidade à reliadade de um grupo específico.
que me pudessem valer... Essa dominação acontece, segundo Bourdieu
Que faria lá, só, a contar com minhas (2002), por um poder simbólico que se exerce
próprias forças? Nada... Havia de ser
como uma palha no redemoinho da vida sobre Iasías, e é justamente o que estrutura seu
– levado daqui, tocado para ali, afinal pensamento. E este pensamento mergulhará Isaías
engolido no sorvedoro... ladrão... bêbado... num novo mundo e fará com que ele reproduza os
tísico e quem sabe mais? (BARRETO,
valores deste mundo ao qual ele pensa pertencer.
2011, p. 69)
Repentinamente senti-me outro. Os
Contudo, levado pelo ímpeto desejo, meus sentidos aguçaram-se; a minha
um pathos incondicional, de alcançar o título de inteligência entorpecida (...) despertou
Doutor, este, o fez acender a chama da esperança com força, alegremente e cantante... Eu
via nitidamente as coisas e elas penetraram
e deste modo lançou-se para sua odisséia. Suas
em mim até o âmago. Convergi todo o
fantasias giravam em torno do poder atribuído meu aparelho de exame para o espetáculo
ao título buscado, o Doutor! Não titubeava pela que me surpreendia. Estive por instantes
escolha feita, almejava nela suas glórias, fortunas, espasmodicamente arrebatado, para um
outro mundo, adivinhado além das coisas
e via na mesma, a mais valiosa das virtú. Entoava sensíveis e materiais.
sobre as condições, disposições e impressões mais Evolava-se do ambiente um perfume,
rotineiras possíveis que a titulação lhe daria. uma poesia, alguma coisa de unificador,
a abraçar o mar, as casas, as montanhas
Ah! Doutor! Doutor!... Era mágico o e o céu; pareciam erguidos por um só
título, tinha poderes e alcances múltiplos, pensamento, afastados e aproximados
vários, polimórficos... Era um pallium, por uma inteligência coordenadora que
era alguma coisa como clâmide sagrada, calculasse a divisão dos planos, abrisse
tecida com um fio tênue e quase vales, recortasse curvas, a fim de agitar viva
imponderável, mas a cujo encontro os e harmoniosamente aquele amontoado
elementos, os maus olhares, os exorcismos de coisas diferentes... O aconchego, a
se quebravam. De posse dela, as gotas da tepidez da hora, a solenidade do lugar, o
chuva afastar-se-iam transidas do meu crenulado das montanhas engastadas no
corpo, não se animariam a tocar-me nas céu côncavo, deram-me impressões várias,
roupas, no calçado sequer. O invisível discordantes e figidias... (BARRETO,
distribuidor dos raios solares escolheria os 2011. p. 81-82)
mais meigos para me aquecer, e gastaria
os fortes, os inexoráveis, com o mundo Bourdieu (2002, p. 12) dirá que “O campo
dos homens que não é doutor. Oh! Ser de produção simbólica é um microcosmos da luta
formado, de anel no dedo, sobrecasaca
simbólica entre as classes: é ao servirem os seus
e cartola, inflado e grosso, como um
sapo-entanha antes de ferir a marteladas interesses na luta interna do campo de produção
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 29-41.
36
Dossiê Lima Barreto
que os produtores servem aos interesses dos que identifica-se, segundo Bourdieu (2002), nas
grupos exteriores do campo de produção.” Desta taxionomias políticas, religiosas, filosóficas, jurídicas
forma, Isaías reproduz discursos, muitas vezes, etc., que revelam a legitimidade “natural”, desde
preconceituosos e racistas mesmo ele sendo que não adimitidas. As relação de comunicação
“negro”viii (mestiço). Fanon (2008) dirá que o que entre os indivíduos são, portanto, relações de
determina que tal pensamento seja atríbuido pelos poder fixadas no poder (simbólico ou material)
negros é a afirmação, ou certeza, do fracasso como armazenados pelos indivíduos durante as relações.
indivíduo. Tais sistemas agem com base em instrumentos
estruturados e estruturantes de informação e
Muitos negros acreditam neste fracasso
(...) e declaram uma guerra maciça contra saberes que garantem a dominação de um grupo
a negritude. Este racismo dos negros sobre outro, utilizando aparelhos que determinem
contro o negro é um exemplo da forma a legitimação, dominando os dominados.
de narcisismo no qual os negros buscam
a ilusão dos espelhos que oferecem um O poder simbólico como poder de
reflexo branco. Eles literalmente tentam constituir o dado pela enunciação, de
olhar sem ver, ou ver apenas o que querem fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de
ver. Este narcisismo funciona em muitos transformar a visão do mundo e, deste
níveis. Muitos brancos, por exemplo, modo, a ação sobre o mundo, portanto,
investem nele, já que teoricamente poder quase mágico que permite o
preferem uma imagem de si mesmos equivalente daquilo que é obtido pela força,
como não racistas, embora na pratica graças ao efeito específico de mobilização,
ajam frequentemente de forma contrária. só se exerce se for reconhecido, quer dizer,
(FANON, 2008. p. 15) ignorado como arbitrário. (BOURDIEU,
2002. p. 14)
Esta leitura nos levanta, portanto, uma
questão: O que faz com que os negros adotem a Deste ponto, talvez, possamos identificar
postura (racista e preconceituosa) dos brancos? esta “obsessão” dos negros em se colocar
Tal questão nos remete a pensar a linguagem como socialmente, assim como sua revolta. Logo, “esta
determinante de tal função. Sendo a linguagem um obsessão (...) é resultado da impotência social”,
mecanismo de dominação – conforme o próprio pois, “não conseguindo exercer um impacto sobre
Fanon (2008) afirma – esta imcubice de formular o mundo social, eles se voltam para dentro de si
a formação dos sujeitos. Tendo em vista a recente mesmos” (FANON, 2008. p. 16). Assim, busca-se
ruptura da escravidão e do colonialismo alguns de algum modo o reconhecimento social, mesmo
mecanismo ainda permeavam a esfera tanto pessoal que legitimando o outro (dominante), ou seja,
(psique) quanto social carioca. Diria Fanon, “(...) deslegitimando a si mesmo (dominado). Assim age
a colonização [dominação] requer mais do que a o poder simbólico.
subordinação material de um povo. Ela também
O reconhecimento do poder simbólico
fornece os meios pelos quais as pessoas são capazes só se dá na condição de se descreverem
de se expressarem e se entenderem.” (FANON, as leis de transformação que regem a
2008, p. 15). transmutação das diferentes espécies,
(...) o trabalho de dissimulação e de
Esta sentença nos permite observar uma transfiguração que garante uma verdadeira
inculcação ideológica estruturada nos indivíduos transubstanciação das relações de força
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 29-41.
37
Dossiê Lima Barreto
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 29-41.
38
Dossiê Lima Barreto
aspectos de épocas remotas num Brasil buscando escravidão protagonizados pelas práticas e lógicas
resistir étnica e culturalmente e aderindo às eurocêntricas que culminaram numa realidade
diversas culturas influenciantes. Ainda nesta obra marcada pela desigualdade social ainda não dirimida
célebre Darcy nos aponta várias realidades em que em nossa contemporaneidade):
forças de resistência culturais, o fortalecimento
Apesar da associação da pobreza com
do racismo e outras contingências seguem a negritude, as diferenças profundas
formando nosso povo brasileiro tão controverso. que separam e opõem os brasileiros em
Há, portanto, que se formular um pensamento a extratos flagrantemente contrastantes
são de natureza social. São elas que
respeito da alteridade do outro. Deste modo, será distinguem os círculos privilegiados e
possível se enxergar no outro, respeitando-o seja camadas abonadas – que conseguiram,
por sua etnia, cor, classe social ou econômica. numa economia geral de penúria, alcançar
padrões razoáveis de consumo – da
Por conseguinte, este pensamento enorme massa explorada no trabalho, ou
necessário para o fortalecimento de uma igualdade até dele excluída por viver à margem do
que provenha da democracia racial , de fato, processo produtivo e, em consequência,
da vida cultura, social e política da nação.
implica numa profunda reflexão e mudança de
(RIBEIRO, 2006, p.215-216)
postura/atitude sociocultural no contexto das
relações sociais, nas quais se perpetra o racismo Portanto, as disposições sociais que se
e a inferiozação das pessoas negras, bem como formularam/estruturaram durante o período
nos tempos recordados por Isaías, e, por assim colonial/imperial brasileiro formaram um
dizer, também Lima Barreto que sua literatura pensamento estruturado estruturante possibilitando
manifesta. um ordenamento social que viabilizava as práticas
Em diversas passagens do romance, a de dominação/inculcação ideológica. (Bourdieu.
presença forte de um discurso de desigualdade de 2002) Tais práticas possibilitaram – e possibilitam
classe e racial é evidente: – o domínio de poucos sobre muitos. Tais
disposições aparecem nitidamente na narrativa
(...) De longe, parece que toda essa gente
de Lima Barreto, pois ao descrever e comparar as
pobre, que vemos por aí, vive separada,
afastada pelas nacionalidades ou pela realidades do centro do Rio de Janeiro (urbano,
cor; no palacete, todos se misturavam e civilizado, industrializado) com a periferia (não
se confundiam. Talvez ao se amassem, urbana, depredada, incivilizada), assim como
mas viviam juntos, trocando presentes,
protegendo-se, prestando-se mútuos
as formas socialmente construídas e aceitas de
serviços. Bastava, entretanto, que cidadãos, apresenta-nos um quadro das forças que
surgisse uma desinteligência para que os atuavam sobre o período na cidade “maravilhosa”.
tratamentos desprezíveis estalassem de
Desse modo, torna-se possível enxergar a realidade
parte a parte. (BARRETO, 2010, p. 241)
e ao mesmo tempo transpô-la, tomando-a como
Podemos, inclusive, nos reportar novamente referência, para analisarmos os dias de hoje.
ao sociólogo Darcy Ribeiro (1995), em se tratando
da formação do povo brasileiro tão marcarda
pelas violências colonialistas (aqui, nos referimos
ao etnocídio, genocídio e longos períodos de
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 29-41.
39
Dossiê Lima Barreto
Notas
i
Obra: Recordações do Escrivão Isaias Caminha: BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías
Caminha. 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras e Editora Pinguim, 2011, publicada em 1909;
na obra é retratado o social e o indivíduo no meio ao qual está inserido. Ao tratar os conflitos sociais
e pessoais do protagonista Lima Barreto nos apresenta um quadro dos principais percalços do Rio de
Janeiro e seu desenvolvimento.
Veículos como O Diabo, Revista da Época, Fon-Fon, Brás Cubas, Careta, O Malho e Correio da Noite
ii
Paulo. É professor titular da área de literatura brasileira na USP, escritor, comentarista e literário. Bosi é
reconhecido por abordar temas como Pré-Modernismo; História da Literatura Brasileira, entre outros.
Utilizamos uma aspa para manter a descrição do próprio Isaías consigo mesmo. Em seus discursos
viii
durante toda obra ele não se enxerga como negro, isso prova-nos a sua inocência, assim como o
condicionamento do seu pensamento.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 29-41.
40
Dossiê Lima Barreto
Referências Bibliográficas:
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Coleção Reconquista do Brasil, v. 140. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp: 1988.
BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. 2ª edição. São Paulo: Companhia das
Letras e Editora Pinguim, 2011.
BOSI, Alfredo. Literatura e resistência. In BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha.
2. ed. São Paulo: Companhia das Letras/Editora Pinguim, 2011. p. 10.
BOURDIEU, Pierre. Sobre o poder simbólico. In: BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 5° Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
COSTA, Emília Viotti. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 9ª edição. São Paulo:
Editora UNESP, 2010.
FANON, Frantz. Pele negra, mascaras brancas. Tradução Renato da Silveira. Salvador: Editora
EDUFBA, 2008.
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do Patronado Político Brasileiro. 16ª edição.
São Paulo: Editora Globo, 2004.
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira
República. 3ª edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.
SEVCENKO, Nicolau. História da Vida Privada no Brasil: República da Époque à Era do Rádio.
Coordenador-geral da coleção: Fernando A. Novais; Organizador do volume: Nicolau Sevcenko. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998. – (História da vida privada no Brasil; vol. 03)
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 29-41.
41
Dossiê Lima Barreto
Resumo
Através da obra de Lima Barreto Recordações do
escrivão Isaias Caminha analisamos de que forma a
educação, no contexto brasileiro, é vista como uma
ferramenta emancipadora, mas que também acaba
por reproduzir velhas estruturas sociais e raciais.
A herança escravista e a divisão por classes de cor
ainda se fazem presentes no Brasil, podendo ser
percebidas na educação e na cultura, por exemplo,
pelos entraves da linguagem e do debate sobre as
cotas raciais. Isaias Caminhas, personagem de Lima
Barreto, demonstra a trajetória de muitos jovens
brasileiros, em sua maioria vindos das periferias,
que tentam trilhar um caminho de ascensão social,
mas que ainda hoje são barrados pelos preconceitos
e dificuldades impostas pela sociedade.
Palavras -Chave
Educação; Classes de Cor; Ascensão Social; Lima Barreto.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 42-51.
42
Dossiê Lima Barreto
A busca por reconhecimento através da educação e os entraves socioculturais de uma classe de cor
Marcella de Campos Costa e Kleber Aparecido da Silva
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 42-51.
43
Dossiê Lima Barreto
A busca por reconhecimento através da educação e os entraves socioculturais de uma classe de cor
Marcella de Campos Costa e Kleber Aparecido da Silva
pelas amarras do modo de produção escravocrata, exemplificada aqui, tornou-se mais harmoniosa e
Serge diz: “O desenvolvimento capitalista no Brasil estável a relação do negro no âmbito sociocultural
só podia avançar com a transformação do trabalho brasileiro, Munanga alerta que “está ideia ainda
escravo em trabalho assalariado”. (Goulart, 2002, paira em nosso imaginário social”. (MUNANGA,
p.13) 2006, p. 107).
Vimos aqui que a questão racial foi o As raízes históricas relacionadas aos negros
óbice do acanhado desenvolvimento da sociedade no Brasil continuam presente no imaginário do
brasileira que queria avançar na relação geopolítica homem, que mesmo por avanços obtidos pelas lutas
com o restante dos outros países, como os EUA de pretos e pardos ou de políticas reformistas, ainda
que já havia liberto os negros e não apenas isso, encontram dificuldades perante toda a sociedade,
mas também terras para o plantio agrícola. seja a priori nas escolas, nas universidades públicas
Não obstante, no Brasil, a combinação da ou até mesmo ao desfrutar do espaço público.
pressão da Inglaterra, até então rainha dos mares A marginalidade também foi subscrita pelo
e senhora incontestável da economia capitalista, modo de abolição, que em contraponto dos EUA,
que já havia impulsionado os movimentos de “o fim da escravidão para aqueles que trabalhavam
independência nas colônias ibéricas das Américas, nas fazendas não significou o acesso a terra.
exigia uma modificação na situação do Brasil. Mas, Significou seu despejo das fazendas”. (Goulart,
também lutas internas contra a escravidão, desde 2002, p.17). A sociedade brasileira é baseada nesse
um ideário abolicionista a levantes nas senzalas, atraso, e traz consigo marcas profundas cravadas
dinamitaram o escravismo na segunda metade do em cada indivíduo.
século XIX. Poucos países carregam tantos e tamanhos
A luta do povo negro no Brasil não foi problemas educacionais como o Brasil, para
um processo simples, a assinatura da Lei Áurea Florestan Fernandes isto também é resultado de
(que aboliu a escravidão), não foi suficiente para uma herança deixada pela sociedade escravocrata
resultar em uma solução favorável, pois nesse e senhorial, pois “recebemos uma situação
momento teríamos um contingente de homens e dependente inalterável na economia mundial,
mulheres livres, mas sem direção, sem trabalho, instituições políticas fundadas na dominação
sem moradia. patrimonialista e concepções de liderança que
Não foi através da lei que se ganhou a convertiam a educação sistemática em símbolo
condição de livre voo, pois não estavam isentos social dos privilegiados e do poder dos membros e
dos grilhões da injustiça sócio-racial. Não houve a das camadas dominantes” (Fernandes, 1989, p. 162).
prerrogativa de uma ascensão ou emancipação com Florestan também acredita no papel da educação
oportunidades como aquelas dadas aos brancos, na moldagem do homem, homem este que busca
sobretudo, às camadas ricas da população. Suas a sua identidade, procura reconhecimento perante
práticas religiosas e liberdade de expressão estavam os familiares e a sociedade. Em um país com
subjulgadas pela classe de cor branca dominante. tantas desigualdades sociais e econômicas como
É preciso destacar as lutas de resistência o Brasil a educação ainda é considerada um dos
negra e desmistificar a Ideia que pós a Lei Áurea já poucos meios de se alcançar o almejado, ou seja, a
estabilidade financeira e, não menos importante, o
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 42-51.
44
Dossiê Lima Barreto
A busca por reconhecimento através da educação e os entraves socioculturais de uma classe de cor
Marcella de Campos Costa e Kleber Aparecido da Silva
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 42-51.
45
Dossiê Lima Barreto
A busca por reconhecimento através da educação e os entraves socioculturais de uma classe de cor
Marcella de Campos Costa e Kleber Aparecido da Silva
“tão meigos e transcendentes que pareciam ler o de ser doutor, pois como dizia Isaías:
meu destino” dizia Isaias. (Barreto, 2012, p. 69).
‘Ora Felício!’ pensei de mim para mim. ‘O
Entendemos que o homem para encontrar Felício! Tão burro! Tinha vitórias no Rio!
o reconhecimento social, precisa de alguns Por que não as havia eu de ter também –
eu que lhe ensinara, na aula de português,
determinantes, como um país que proporcione
de uma vez para sempre, diferença entre
uma estrutura física e política de escolas, e também o adjunto atributivo e o adverbial? Por
de professores bem preparados que façam uma quê!?’ (Barreto, 2012, p.70)
leitura crítica de mundo. Não apenas por uma
Como motivador ou apenas inveja, Isaías
cosmovisão e sim pela interdisciplinaridade.
se coloca a desejar o título de doutor, sonhava em
Que esses professores vejam seus alunos se formar, em ter um anel no dedo, andar nas ruas,
como indivíduos socioculturais, prenhes de nas praças, pelas estradas de cartola e sobrecasaca,
conhecimentos do cotidiano social e geográfico. com as pessoas o chamando de Doutor e se
Só assim os professores poderão conquistar e importando com o seu dia. Para Isaías isso seria
mediar à ascensão dos futuros protagonistas da sobre-humano. Neste ponto da obra Isaías começa
sociedade. a enfrentar o conflito que, segundo Nietzsche
Quando uma cidade ou localidade (1998), é natural ao homem, à busca pelo poder e
qualquer não oferece subsídios para o processo autoafirmação.
sócio educacional e mercado de trabalho, muitos Como todo rapaz mulato, pobre
precisam migrar para outros locais que favoreçam e brasileiro da época que aspirava qualquer tipo
maior espírito cosmopolita. de ascensão e consideração da sociedade era
A migração para cidades de maior necessário um apadrinhamento, ou seja, alguém
desenvolvimento socioeconômico é de dúbio de grande importância e prestigio nas elites para
acento. Há forte tendência para a ascensão social sustentar a jornada do jovem rumo ao topo e que
quanto para extrema pobreza e tamanha dificuldade o apresentasse a elite de modo a ser ao menos
estrutural da infraestrutura urbana. aceito. É exatamente o trajeto que Isaías Caminhas
Mesmo assim, o nosso personagem Isaías acredita que irá traçar, mas ao chegar à cidade
Caminha escutava uma voz que dizia para ir para do Rio de Janeiro se depara com outra realidade
o Rio de Janeiro, pois sua cidade já não bastava, e percebe que terá que alcançar seus objetivos
não era suficiente para atender seus sonhos. Isaías sozinhos, terá que conseguir seus estudos para ser
colocou-se a pensar e a medir as consequências ao doutor sem ajuda e mais do que isso, se depara
mudar para a cidade grande. com o preconceito contra o negro.
Um dia, ao ler o Diário de *** verificou Conforme discutido acima o preconceito
que Felício, um antigo condiscípulo, se formara é uma problema enraizado na sociedade brasileira
em farmácia, e como dizia o Diário, houve uma e passa por todos os âmbitos, mas nos interessa
estrondosa manifestação da parte de seus colegas. especificamente na educação. Já na época que a obra
(Barreto, 2012, p. 70) retrata, inicio do período republicano, a seleção
Havia uma motivação que apontava para o educacional, conforme nos mostra Florestan
empreendimento dos seus sonhos, era a vontade Fernandes, é baseado em privilégios (de riqueza,
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 42-51.
46
Dossiê Lima Barreto
A busca por reconhecimento através da educação e os entraves socioculturais de uma classe de cor
Marcella de Campos Costa e Kleber Aparecido da Silva
de posição social, de poder, de raça ou religião). habilidades culturais e de letramento são ignoradas
Era de interesse das elites ‘deseducar’ a massa, ou e muitos o julgam inadequado para o trabalho,
seja, os desprivilegiados, negros, mulatos, mestiços mesmo fugindo a regra, pois havia tido uma
e pobres. Estes tinham seu... educação básica espetacular aos moldes da elite.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 42-51.
47
Dossiê Lima Barreto
A busca por reconhecimento através da educação e os entraves socioculturais de uma classe de cor
Marcella de Campos Costa e Kleber Aparecido da Silva
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 42-51.
48
Dossiê Lima Barreto
A busca por reconhecimento através da educação e os entraves socioculturais de uma classe de cor
Marcella de Campos Costa e Kleber Aparecido da Silva
Durante o livro percebemos que em sua chegada todos os desfavorecidos (negros e pobres) também
logo nota que lhe tratam diferente pela sua cor, conseguem sem cotas, mas esquecem de citar que
após entrar no jornal acaba tendo certos contatos o cenário que ele encontra é de um poder judiciário
pela sua educação de “gente abastada”, mas logo onde apenas 13% dos juízes são negros e pardos,
desiste de buscar seu sonho de títulos e prestigio. e estes ganham em média 14% a menos do que
Contenta-se com o pouco que a sociedade carioca seus colegas brancos. Além disso, ignoram que a
do século XIX se propõe a lhe dar. herança escravocrata ainda faz cegar alguns olhos
do quadro social brasileiro com seus reflexos de
Lembrava-me... lembrava-me de que
deixara toda a minha vida ao acaso e forma nítida. Há quem ainda ache natural termos
que não pusera ao estudo e ao trabalho uma quantidade imensa de “patrões” de cor branca
com a força de que era capaz. Sentia-me e “peões” de cor negra e parda, num país onde
repelente, repelente de fraqueza, de falta
de decisão e mais amolecido agora com sua maioria populacional é composta por negros,
o álcool e com os prazeres... Sentia-me pardos e mestiçosi.
parasita adulando o diretor para obter Neste ensaio tentamos demonstrar como
dinheiro... Às minhas aspirações, àquele
forte sonhar da minha meninice eu não a educação e o conhecimento são utilizados como
tinha dado as satisfações devidas. A má ferramenta para se alcançar o reconhecimento
vontade geral, a excomunhão dos outros perante a sociedade e a ascensão social. No entanto
tinham-me amedrontado, atemorizado,
ainda hoje para muitos brasileiros não há garantias
feito adormecer em mim o Orgulho,
com seu cortejo de grandeza e de força. de êxito nesta busca, pois há os empecilhos
Rebaixara-me, tendo medo de fantasmas impostos por uma sociedade ainda muito marcada
e não obedecera ao seu império. (...) pela escravidão e os preconceitos entre classes de
Sentia-me sempre desgostoso por não ter
tirado de mim nada de grande, de forte e cor.
ter consentido em ser um vulgar assecla e Isaías Caminha, personagem de Lima
apaniguado em um outro qualquer. Tinha
Barreto, demonstra a trajetória de muitos jovens
outros desgostos, mas esse era o principal.
Por que o tinha sido? Um pouco devido brasileiros, em sua maioria vindos das periferias,
aos outros e um pouco devido a mim. que tentam trilhar um caminho de sucesso, mas
(Barreto, 2012, p.300-301) acabam barrados pelos preconceitos e dificuldades
Este é o destino de muitos negros no Brasil, impostas em sua educação formal.
que tenta esconder sua face preconceituosa com
discursos como “ser contra a cota porque os negros
têm a mesma capacidade” e “os negros também
são racistas”. Estes discursos só ignoram o fato de
que o caminho que os negros e pardos percorrem
pra chegar onde almejam é, quase sempre, mais
árduo do que o do branco. Podemos evocar um
caso atual de homem negro brasileiro “que deu
certo”, o ministro Joaquim Barbosa. Pessoas
utilizam sua imagem para veicular mensagens com
dizeres que indicam que se ele conseguiu chegar
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 42-51.
49
Dossiê Lima Barreto
A busca por reconhecimento através da educação e os entraves socioculturais de uma classe de cor
Marcella de Campos Costa e Kleber Aparecido da Silva
Notas:
i
Cerca de 191 milhões de brasileiros em 2010, 91 milhões se classificaram como brancos, 15 milhões
como pretos, 82 milhões como pardos, 2 milhões como amarelos e 817 mil indígenas. Registrou-se uma
redução da proporção brancos de 53,7% em 2000 para 47,7% em 2010, e um crescimento de pretos (de
6,2% para 7,6%) e pardos (de 38,5% para 43,1%). IBGE - 2011.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 42-51.
50
Dossiê Lima Barreto
A busca por reconhecimento através da educação e os entraves socioculturais de uma classe de cor
Marcella de Campos Costa e Kleber Aparecido da Silva
Referências Bibliográficas:
BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Penguin Classics Companhia
das Letras, 2010.
BOURDIEU. A economia das trocas lingüísticas. Trad. Paulo Montero. São Paulo: Ática, 1994.
(Original: Langue Française, 34, maio 1977)
FERNANDES, Florestan. O desafio educacional. São Paulo: Cortez; Autores Associados, 1989.
_____. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Dominus Editora, 1965.
GNERRE, Maurizio. Linguagem, Escrita e Poder. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
MUNANGA, Kabengele, LINO GOMES, Nilma. O negro no Brasil de hoje. São Paulo: Global, 2006.
(Coleção para entender)
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.
PRADO, Antonio Arnoni. Lima Barreto: o crítico e a crise. São Paulo: Duas Cidades. 1989.
SOUZA NETO, João Clemente de. A trajetória do menor a cidadão: filantropia, municipalização,
políticas sociais. São Paulo: Arte Impressa. 2011
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 42-51.
51
Artigos
Resumo Abstract
Este artigo pretende questionar as possibilidades de This article aims to question the possibilities of
ação política envolvidas no trabalho da curadoria political action involved in curatorial practices.
de artes. Faz um percurso pelo entendimento da It is a journey through the understanding of
curadoria da contemporaneidade, suas funções, contemporary curatorial work, its functions, its
suas possibilidades de escolha e de influencia choice and influence over certain contexts and
sobre determinados contextos e ambientes, environments, indicating its ability to give visibility
apontando sua capacidade de dar visibilidade à to artistic production and to generate discourses
produção artística e de gerar discursos através das through the artistic activities that it promotes and
mostras artísticas que promove e organiza. A partir organizes. From this reasoning begins a reflection
desse raciocínio inicia uma reflexão, na tentativa in an attempt to build a bridge over the critical
de construir cruzamentos sobre pensamentos thoughts that call for suggestions and strategies to
críticos que convocam sugestões e estratégias para boost cultural development in the Latin American
dinamizar o desenvolvimento cultural na região region.
latino americana.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 52-64.
52
Artigos
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 52-64.
53
Artigos
para gerar uma mostra artística que mobilize o (Bolívia). Não é que seremos bairristas no sentido
senso dos espectadores para uma determinada mais retrograda, mas com certeza as questões
direção. É importante pensar no que faz falta em são contextuais e serão mais potentes se temos
nosso espaço e pensar como a curadoria de arte consciência disso. Uma mostra artística tem um
pode apontar para essas reflexões. local de “residência”, e também terá territórios
Os curadores assim como “os artistas, não imaginários em cada um dos espectadores,
estão acima da realidade política: a sua liberdade desdobramentos culturais por todos os signos e
não é de modo nenhum imunidade, antes se imagens propostas nas obras, em fim, reverberações
realiza precisamente na força e na clareza das não sempre mapeáveis a priori. As exibições, por
suas intervenções”. (ARGAN, 1995, p. 45). Os tanto tem amplitude tanto local quanto global, é
curadores devem pensar muito bem a quem uma das propostas do mundo nas quais a gente
estão dirigindo o seu discurso, como aporta pode pensar global e agir local e vice versa, em
esse discurso a determinada realidade, e em que função de não perder de vista a complexidade do
âmbito está atuando porque, por exemplo, um fenômeno artístico e suas implicações na cultura.
festival internacional pode querer refletir sobre a O discurso curatorial que aporta ao âmbito
complexidade das relações culturais, revelando o do político convoca a ideia da curadoria como um
potencial da pluralidade, e as relações multiaxiais, “dizer alguma coisa”, como um manifesto que não
explorando uma idéia de cultura global; mas uma só se gera através de algum texto que o curador
mostra local num bairro em situação de risco possa produzir para acompanhar sua mostra, se
pode possibilitar discussões sobre a violência, não que é um discurso que aparece também na
a responsabilidade social, as diferenças de materialidade da mostra artística, na organização
oportunidades, promovendo sempre o diálogo das peças expostas ou apresentadas, nos recortes
entre uns artistas e outros e entre alguns públicos propostos, em cada obra mostrada, no estudo
e outros. que se realizou antes, no acompanhamento de
As possibilidades são infinitas. Basta certos artistas, obras, tendências, na capacidade da
ser estudioso, propor uma discussão pertinente curadoria de ser um termômetro de diz qual é a
ao contexto e estudar quais são as obras que temperatura da arte e quais são suas propostas.
colocadas em relação, podem ajudar a se inserir
Potencializando discussões através da
nesta discussão e trazer visões sobre o assunto, às
curadoria
vezes sendo incisivo, às vezes sendo tangencial,
às vezes sendo discreto, tudo vai depender do O ponto chave da curadoria é a forma
contexto onde se está inserido. como a mostra se apresenta, este é o diferencial
Esta forma de criar discursos e para este espaço potencializar outros assuntos
questionamentos tem tanto a ver com o sistema ou não. É na montagem da grade programática
geral da arte como com a idéia local da produção que o curador consegue expressar seu ponto de
e da vida em determinado país, cidade, bairro, etc. vista. Cada escolha pode refletir os objetivos, as
Não é o mesmo questionamento que pode ser condições e as ideologias da curadoria. No melhor
produzido na América Latina e na Índia, nem o dos casos, a organização do espaço-tempoi faz
mesmo em Belém do Pará e na cidade de La Paz que o espectador perceba a clareza da informação
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 52-64.
54
Artigos
que está em jogo, tanto das obras como unidades sua reflexão e por isso deve estar em plena relação
de sentido, quanto da exposição como unidade de com a história e a vida política do contexto.
conteúdos e sentidos culturais. Talvez precise ter capacidades aguçadas
A mostra artística feita através de uma de reconhecer o discurso que vale a pena ser dito
curadoria, cria conhecimento, sentidos, cadeias e buscar as peças, as equipes, as estruturas para
de pensamento e ação. Na prática o discurso do fazer este discurso existir. É fundamental pensar o
curador se faz através das relações estabelecidas espaço da mostra de arte como um possível espaço
entre as obras, assim como na própria materialidade de confronto, diálogo, confluência e reflexão, de
dos trabalhos escolhidos; essa é uma possível lógica prática política, sobre onde estamos e para onde
do “dizer algo” de um curador. Os curadores queremos ir. Nesse sentido, espera-se que os
geralmente explicitam de formas inusitadas, que curadores saibam relacionar as lógicas das obras
tipo de relação está querendo propiciar com de artes com a história da arte e o contexto da
essa curadoria, manifestando seu ponto de vista, sua realização com outros trabalhos de arte que
articulando as peças apresentadas com esse ponto constituam um campo de conhecimento que esteja
de vista e garantindo que essas aproximações sejam dentro da discussão atual.
percebidas também pelo espectador.
A curadoria pode ser uma micro-política
A realização da mostra artística se configura
cultural para America Latina?
como uma “criação” do curador, onde ele conjuga
conclusões de suas análises, os quais estarão em É possível fazer um exercício para
relação com o objetivo da mostra e algumas outras reconhecer certos aspetos sobre nossa região
coisas ressaltantes, à natureza e materialidade que podem e devem ser salientados pelas práticas
própria das obras escolhidas, seus próprios curatoriais feitas neste contexto? Como a curadoria
aportes criativos, éticos, estéticos, ideológicos e pode abranger a complexidade de territórios e
compositivos, configurando um espaço para a culturas que implica esta parte do mundo?
defesa de ideias e apostas políticas curatoriais que Vale a pena uma reflexão a este respeito,
versam sobre as obras, sobre o status da arte, sobre pois algumas coisas em comum conectam esta
a contemporaneidade. Latino-América entre si, mesmo que às vezes
Para isto, e já o tínhamos comentado nos parece que cada país tem sua historia e sua
antes, um curador deve ser um estudioso tanto especificidade, é possível ao meu entender achar
da história da arte e da cultura quanto da cultura confluências de necessidades e preocupação tanto
e arte contemporânea que se faz no seu tempo e estéticas quanto artística, políticas, econômicas,
região. O curador pode ser um pensador da área em fim, culturais.
na que se envolve em função de não sucumbir
à tentação de só fazer circular aquilo que gosta; Circular, viajar, vender dentro da América
muito menos quando se trata de dinheiro público. Latina
A relação entre o público e o privado deve ser Pesquisas culturais e artísticas (Bourdieu,
cuidada exaustivamente. O curador exerce o direito Eco) demonstraram que a criação cultural
se forma também na circulação e recepção
à liberdade de pensamento, mas isto não suspende dos produtos simbólicos. É necessário,
sua responsabilidade social, pois faz uso público da por tanto, dar importância, nas políticas
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 52-64.
55
Artigos
culturais, a esses momentos posteriores importância que estes podem ter na construção
à geração de bens e mensagens, isto é, de uma Latino-america mais potente como região
ao consumo e apropriação das artes e da
mídia. (CANCLINI, 2008, p. 76) simbólica e cultural. Como podemos os curadores
gerar esta familiaridade, quais são os mecanismos
Comecemos por situar algumas questões a
que vamos utilizar para aproximar (sem satisfazer
mais das já ditas sobre o ofício do curador. Convido
de forma solta) nossos cidadãos das preocupações
a pensar em que posição da cadeia produtiva das
que ocupam a arte e que são de forma direta
artes está a pratica do curador. Na minha percepção
preocupações que dizem sobre todos nós, alguma
este fazer muda muito com respeito às inquietações
parte sempre nos atinge, ou pelo menos pode abrir
de cada curador, mas, geralmente, o curador faz
as portas para novas percepções, enriquecimentos
parte de um estádio muito importante da produção
e visões de mundo.
artística que é a distribuição, circulação e mobilidade
As políticas culturais, e fazendo o transito,
dos produtos simbólicos que são produzidos por
as políticas curatoriais, devem contrarrestar os
artistas no mundo inteiro. É aqui, que seu papel
efeitos de uma tendência à privatização dos bens
é fundamental. No momento em que a obra é
simbólicos, e de uma apropriação da mídia que acaba
consumida, por quem, onde, como, antecedida por
com construções polifônicas e multidirecionadas.
que, sucedida por que, são perguntas fundamentais
Parecesse impossível, mas é esse um dos principais
na curadoria.
papeis de uma mostra de arte, sua capacidade
Uma curadoria, com ferramentas para
de aproximar e mostrar aquilo que você não vê
responder estas perguntas, tem o potencial (como
sempre na TV comercial e que também pertence
dizemos ao principio do artigo) de modificar
às construções simbólicas de nossos cidadãos.
o rumo da produção artística e de sua recepção
A criatividade cultural desenvolve neste
também. O momento do consumo cultural é
triangulo ESTADO, MERCADO e ARTE, um
fundamental para alcançar uma familiaridade com
papel importantíssimo porque é quem pode dilatar,
a produção artística que desdobre em relações mais
movimentar e realinhar os espaços de integração
aprofundadas entre vida e arte. Uma curadoria
cidadã, integração transnacional, transcultural, etc.
que só sucumbe a razões econômicas, pressões da
“Promover políticas culturais e de integração no
“moda” artística, sobrevaloração de estilo ou tipo
meio às novas formas de privatização transnacional
de obras, sem pensar em como isso afeta o contexto
exige repensar tanto o Estado como o mercado,
que toca e como poderia ser transformador fazer
e a relação dos dois com a criatividade cultural”
diferente, perde a maior parte de sua possibilidade
CANCLINI, 2009, p.76
de mudar a realidade do contexto onde está sendo
realizado. E perde a possibilidade de se pensar Todo profissional que entenda, trabalhe
como “micro política” onde se traçam objetivos na e movimente noções sociais e públicas, deve se
base da pesquisa, da instigação e da compreensão questionar qual é o verdadeiro significado do
do meio com o que lidamos. público, e de como o público (último estágio
da cadeia produtiva) esta sendo nestes tempos
A geração de familiaridade e de apropriação
dominado por certa produção cultural que
por parte dos cidadãos aos bens simbólicos é
neutraliza este sentido do público e o “privatiza”,
indispensável para compreender a dimensão e
por assim dizer, simplificando sua complexidade e
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 52-64.
56
Artigos
satisfazendo os interesses do mercado em quanto árdua. Inclusive porque viemos duma escola de
produtor de sentido, de gostos e de expectativas. formação “eurocéntrica” que pouco se ocupa
Devemos nos perguntar quais são as em aprofundar os fazeres artísticos locais, a
possibilidades para que novas políticas culturais interação entre artistas de uma mesma região, de
criem estruturas e estratégias para negociar uma realidade política e histórica semelhante e
espaços com esta nova privatização dos gostos, que de aprofundar a pesquisa, a experimentação e a
empobrece nossos sentidos e minimiza o senso descoberta própria. Inclusive aqueles movimentos
crítico da população. São precisas políticas onde “... identitarios, reduzem a manifestação de nossa
haja lugar não apenas para aquilo que é vantajoso cultura a um tipo de lógica esteriotipada que
para o mercado, mas também para a diferença e a pouca diversidade e coesão da a nossos produtos
dissidência, para inovação e o risco. Em suma: para artísticos. Viemos de uma cultura da repetição,
elaborar imaginários coletivos interculturais mais cópia e pouco da transgreção, contextualização,
democráticos e menos monótonos” (CANCLINI, resignificação.
2008, p. 79), que possam enriquecer nossas visões O pior, quando pensamos na região
de mundo e abram possíveis portas para a cultura latino-americana, é que em outros tempos esta
que queremos. simplificação da produção simbólica era dada pela
Hoje, o grande desafio das artes e a colônia (prática o simbólica), regimes de governos
cultura Latino-americana é como reconhecer as nacionalistas que reprimiam a diversidade, e
áreas estratégicas do nosso desenvolvimento, hoje está sendo imposta pelas grandes indústrias
inclusive pensando neste desenvolvimento não transnacionais (americanas, europeias e agora
como o já fracassado conceito moderno que nos chinesas) que continuam determinando o que
ensinaram as democracias ocidentais, se não esse consumimos e como o consumimos neste
desenvolvimento que condiz às características território, fazendo que sejamos vendidos ao
particulares de nossas práticas sociais e que estrangeiro como potencia exótica quase unívoca
melhorariam a qualidade de vida de nossos cidadãos. e comprando o que eles nos vendem, seja o que
Porém pensando que desenvolvimento implica for. Digamos que é como estar mudando a o santo
inevitavelmente o mercado global, o comercio de mais não a igreja, seguimos estando colonizados.
bens e serviços onde devemos nos posicionar de Contudo, em Latino-america existem espaços de
forma mais efetiva e clara, em função de beneficiar resistência, e é possível sim promover e encontrar
de forma contundente nossa sociedade. práticas artísticas que mergulhem na velha escola
não para copiar se não para recriar o material do
A pergunta-chave não é com que ajustes
econômicos internos vamos pagar melhor que preocupa, ocupa e excita o senso estético,
as dívidas, e sim que produtos materiais político e artístico dos cidadãos.
e simbólicos próprios (e importados)
Por isso, e agora nos valendo diretamente
podem melhorar as condições de vida
das populações latino-americanas e da fala do García Canclini:
potencializar nossa comunicação com as
Afirmar que os leitores e espectadores
demais” (CANCLINI, 2008, p.103). têm a ultima palavra na decisão do que
Na curadoria este papel de reconhecer merece circular e ser promovido é uma
meia verdade dos discursos de marketing;
nossas potencialidades parece sempre uma tarefa
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 52-64.
57
Artigos
uma afirmação que se mostra enganosa um segredo que trazer um artista da Espanha é mais
em sociedades onde os Estados fazem barato que um do Equador. Um absurdo?, é, mas
cada vez menos por formar públicos
culturais, com bibliotecas entendidas é a realidade. Isto é muito grave, nem os próprios
como depósitos de livros e quase nunca gestores públicos de cultura, nem movimentos
como clubes de leitura, com sistemas estudantis universitários, nem o movimento da
educacionais que ainda não percebem
classe artística tem conseguido instaurar medidas
– como aconteceu recentemente na
frança – que aprender a avaliar os meios de pressão fortes que criem medidas de incentivo à
audiovisuais deve fazer parte do currículo mobilidade de materiais culturais dentro do âmbito
fundamental. (CANCLINI, 2008, p. 79) latino-americano.
Sob o rotulo “o público sabe o que lhe Será possível pensar como a curadoria influi
interessa, gosta e quer”, diversos crimes culturais nesta dinâmica, mesmo sendo custoso, será que
são realizados dia a dia nas nossas radiodifusoras, podemos fazer circular sempre produtos latino-
nossas televisões e nossos jornais. Como fazer americanos, lidando de modo ágil e consciente
frente a esta massificação incompleta da informação com as diferencias políticas e históricas que esta
e da produção cultural? E como fazer frente a região compreende, em função de contrarrestar a
esta união latino-americana que se gera só através falta de posição e ação de nossos governos frente
desta relação linear com o mercado estrangeiro? ao que chamamos mobilidade de bens e serviços
Quais são os tipos de integração latino-americanas dentro da região. Precisamos organizar estratégias
possíveis fora o olho da transnacional interessada para sensibilizar e obrigar os países a passar dessa
unicamente na nossa capacidade de consumir cooperação internacional que temos, a um que “(...)
produtos trazidos e produzidos fora do nosso trabalhe como o que é possível homogeneizar, com
território e fora de nossas políticas? as diferenças que persistirão e com os crescentes
Esta realidade não toca unicamente a conflitos interculturais” (CANCLINI, 2008,
produção cultural senão todo o consumo em geral, p.104).
mas focando na produção artística que é a que A integração na América Latina
tem mais a ver com curador, devemos reconhecer continuará sendo uma Utopia, entre aspas
que as políticas de integração e distribuição irônicas ou cínicas, em quanto não houver
articulação entre trabalhadores, indígenas,
dos bens culturais entre países da América são consumidores, cientistas, artistas,
muito complexo, custoso, desorganizado e produtores culturais; em quanto não
desbalanceado. Os nossos acordos de cooperação incluirmos na agenda formas de cidadania
latino-americana que reconheçam os
internacional pouco ou nada se ocupam de apoiar
direitos de todos os que produzem
e estabelecer políticas que beneficiem a mobilidade dignamente dentro ou além de seus
do conhecimento que se produz em universidades, territórios de nascimento (CANCLINI,
estúdios de artes, conservatórios, projetos sociais e 2008, p. 105).
demais iniciativas que realizamos. Nosso Mercosul, Aladi, Alca, Alba, pouco
Ainda baseados em preocupações sobre tem respondido a estas demandas, mesmo sabendo
como abaixar impostos para levar e trazer que muito se contribui para o desenvolvimento da
mercadoria, não estão conseguindo abranger a cultura quando se tomam medidas que beneficiam
produção simbólica de modo satisfatório. Não é esta circulação, distribuição, consumo, como
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 52-64.
58
Artigos
podem ser casos europeus, japoneses, inclusive ser colocada encima da ação governamental, e
norte-americanos. A mobilidade dos bens culturais compartilho esta ideia, pois devem se atualizar e
permitirá uma amplitude de possibilidade, mercado, aprimorar as legislações, leis de amparo à cultura.
visões e desenvolvimento da própria produção Porém, e sabendo que a complexidade e lentidão
cultural, dando fortaleza à economia cultural e da nossa maquina burocrática demora longos
criativa que desde faz alguns anos vem apontando períodos para poder mudar pequenos retalhos de
uma nova possibilidade de desenvolvimento tecido, acredito que a participação dos gestores
econômico sustentável nas cidades. culturais, as comissões de seleção de projetos a
Não podemos seguir recebendo de braços serem incentivados, as curadorias de arte e dos
abertos os “presentes” da cooperação internacional criadores de obras e projetos artísticos, sejam
europeia, que só beneficia a mobilidade de seus fundamentais nessa construção de intercâmbio
produtos, só para não organizar, forçar e mobilizar de conhecimentos entre nossas populações na
nossos próprios recursos em função de fazer circular America latina, pensando estes atores como
nossa produção artística. Os países “centrais” também fazedores de micropolíticas capazes de
estão certos em querer distribuir seus produtos, mobilizar a afetividade do público, o fazer artístico
pois sabem quanto isso gera sustentabilidade para e o rumo da cultural.
seus produtores, devemos seguir o exemplo, não O público, entendido como parte
só comprando, mas vendendo, mobilizando, e fundamental da relação entre a produção simbólica
circulando também o que é produzido nas nossas e a sociedade, deve ser explorado, estudado,
cidades, por nossos artistas, teóricos, pesquisadores, entendido, e deve se construir uma relação
etc. infinitamente mais atrelada, pois será, talvez,
(...) não é a mesma coisa o programa a única forma de ação política que possa fazer
Media ou Eurimages ser aproveitado por frente à avalancha de informação padronizada que
Claude Chabrol, Pedro Almodóvar ou
os canais Plus europeus do que por um recebemos diariamente.
diretor de cinema uruguaio, um editor A criatividade cultural implica os públicos
mexicano ou um produtor de televisão
que são no final das contas, o último consumidor e
costa-riquenha, que devem se bater com
legislações pré-midiáticas nas alfândegas construtor de sentidos e desdobramentos daquilo
de seus países, com burocracias que tratam que entendemos como produção artística. Por esta
filmes e livros como objetos supérfluos. relação é que continua sendo importante aprimorar
A pesar dos acordos assinados em 1998
para liberalizar a circulação dos bens e a educação artística, o apoio aos autores, aos
serviços culturais (a Associação Latino- editores, os museus, canais de televisão, festivais
americana de Integração e o artigo XIII de artes cênicas, que são onde estes produtos são
do Protocolo do Mercosul), as práticas
consumidos, difundidos e distribuídos.
alfangendárias dos governos desconhecem
essas facilidades (Saraiva, 1997). Isso nos Os curadores de artes precisam se
leva a dois desafios estratégicos: a integração aproximar tanto aos artistas como ao seus
multimídia e as legislações de amparo à cultura.
públicos, estudando aprofundadamente o que
(CANCLINI, 2008, p. 78)
pode mobilizar sua afetividade, sua capacidade
Desde o pensamento do Canclini, fica de resignificação, e aprender a usufruir isto que
parecendo que muita responsabilidade deve lhes pertence como direito, se preocupando em
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 52-64.
59
Artigos
estabelecer estratégias que possam garantir um atendam à diversidade dos nossos espectadores,
consumo cultural maciço que possa ser acessados sem anular ou ignorar esta diversidade, senão
com a menor discriminação possível. “Sobretudo fazendo dela o grande potencial de diálogo, de
para descobrir e pensar como podem as culturas aproximação, de conjunção, de oportunidade.
populares sair de seu abandono local e, com suas O panorama complica porque, nestas
criações e saberes participar competitivamente do ultimas décadas, este ser “latinoamericano” está
comércio global”. (CANCLINI, 2008, p.94) mudando rapidamente, “A pergunta sobre o que
Não é uma tarefa fácil pensar no público, significa ser latino-americano está mudando, as
ainda mais quando estamos na frente de uma região respostas outrora convincentes se desvanecem
onde o público é latino-americano. Nesta hora e surgem dúvidas quanto à utilidade de assumir
é necessário lembrar-se da particularidade de se compromissos continentais” CANCLINI, 2008,
debruçar num território, um conceito e uma região p. 24. Muitas questões estão sendo colocadas
simbólica tão complexa quanto a America Latina. para que pensemos como fazer possível um
Este território que compreende algumas dezenas de percurso que gere tensões, gere leveza na relação
países no centro e sul América, todos multiculturais, e riqueza na vivência deste contexto cultural,
multirraciais, com grande diversidade de classes apropriando-se cada vez mais dos compromissos
sociais, religiões, noções estéticas, é estigmatizado com quem é familiar e não com regimes política ou
por uma coesão cultural um tanto simplificada sob economicamente estabelecidos.
“uma identidade só”. Como convocar discussões Ainda tem uma questão, não menor,
na frente desta complexidade? que identifica nossa região como uma parte do
Por exemplo, achamos que na America mundo que por diversas razões nos últimos
Latina tudo mundo sabe dançar salsa, sendo que anos se espalhou pela Europa, Estados Unidos,
inclusive nos países com grande influência salseira principalmente, mas também dentro da própria
existem não só pessoas quanto grupos culturais latino-america, construindo um mapa complexo de
que não valorizam este ritmo e baile (e toda sua migrações, muitos exílios (políticos, econômicos) e
estética) e não dançam, não ouvem, não fazem outras mobilidades, sobretudo dos profissionais de
parte, não conhecem, não se interessam. Isto é só classe media que transitam pelo mundo levando e
um exemplo para localizar a quantidade de reduções trazendo conhecimentos e experiências.
que fazemos sobre o contexto latinoamericano e o “A América Latina não está completa
perigo da reflexão que venho propor, pois acredito na América Latina. Sua imagem é devolvida
que só pensando na complexidade, diversidade, por espelhos dispersos no arquipélago das
multidões, poderemos ter alguma aproximação migrações” (CANCLINI, 2008, p. 25). Este
a uma prática curatorial que dê conta das ponto é fundamental quando queremos entender
preocupações também múltiplas deste universo. inclusive como se constroem as artes, pois neste
As identidades políticas instauradas a partir campo, quase com religiosidade, a mobilidade,
dos anos 50´s nos deixaram um ranço de unidade transferência, transitoriedade territorial enriquece
que muito contribui para a impossibilidade de fazer as práticas, as acompanha, as nutre com tudo o
estudos suficientemente aprofundados sobre como que vá sendo recolhido no caminho. O tempo
poderemos gerar lógicas, discursos e práticas que inteiro temos dificuldade de saber de onde é tal
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 52-64.
60
Artigos
artista pois nasceu em Irã, mas mora entre Belgica, medrosa do diferente, racista, conservadora,
Dinamarca e passa mais de 4 meses por ano na precisamos gente que lide com a multidão que
America Latina. É muito típico este fenômeno nas representa este território e que não precise fechar
artes, o qual complexifica ainda mais a vontade de quadros que acalmem suas dúvidas, suas questões,
encontrar caminhos possíveis de mediação entre suas possibilidades de criar o mundo que quer viver
saberes e fazeres locais e globais, artistas e públicos, com menos pré-conceito e mais criatividade.
diversidade e organização. “Podemos dizer que Acredito na curadoria que modifica, e
“o latino-americano” anda à solta, transborda pensando em América Latina acredito que uma
seu território, segue à deriva em rotas dispersas” curadoria que considera estes aspetos pode fazer
(CANCLINI, 2008, p. 27). diferença nas hipóteses que se propõe:
Parece-me instigante neste contexto que - Diversidade cultural, diversidade de
colocamos sobre a mesa, pensar numa curadoria públicos, diversidade de entendimento, vozes,
capaz de influir nesta narrativa tão variada e formas, pensamentos.
polifônica que é América latina, aos poucos, com - Relação entre o público e privado, entre o
algumas iniciativas, desde seu espaço, seu recorte bem de todos e as novas formas de privatização.
e seu poder. É um desafio que poderia convocar
- Distribuição dos bens culturais como
a discussão sobre a responsabilidade do curador
elemento fundamental da distribuição mais
na frente de seu contexto. Nesta parte do mundo
equitativa da qualidade de vida.
há de se ser muito cuidadoso sobre nossa visão de
mundo, sobre nossa capacidade de abrir caminhos, - Circulação de conhecimento, de arte, de
de abranger vozes diversas e de falar com vários produção simbólica como motor de sustentabilidade
tipos de corpos, pensamentos, ações, preocupações, e mudanças na cidadania.
urgências. - Acordos e microcooperações que
Estes pontos que assinalamos sobre possibilitem a mobilidade e visibilidade da nossa
a America Latina são só algumas razões “... produção pode modificar a familiaridade da
que desautorizam qualquer narrativa não sociedade aos bens criativos.
suficientemente polifônica, com fortíssimos e - Curadoria como motor de discussões,
pianíssimos para transmitir a heterogeneidade ampliador de visões e possibilitador de novos
de América Latina, suas variadas escalas de caminhos.
desenvolvimento” (CANCLINI, 2008, p. 31). O fato artístico, a mostra artística, o fazer
Essa responsabilidade do curador que simbólico mediado por curadores engajados com
nesse artigo convocamos, tem a ver como a a realidade política podem mudar (em escalas
talvez capacidade de influir neste mal chamado desconhecidas por falta de avaliações qualitativas
“desenvolvimento” da sociedade e aumento de em longo prazo) a maneira em que nossos latino
qualidades de vida que permitam uma interação americanos se enxergam e enxergam suas riquezas e
maior dos cidadãos com bens culturais que os especificidades como indivíduos, como sociedade,
contemplam, que os instigam e que os fazem como motor de economia, política e produção
abrir portas para uma sociedade mais aberta, mais criativa, cultural, simbólica. Eis, ao meu entender, a
possível, mais enriquecida, menos zenofóbica, grande potencia da curadoria na América Latina.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 52-64.
61
Artigos
Notas:
i
Espaço no caso das artes plásticas, visuais ou exposições onde o percurso do espectador contempla
deslocamento no espaço como condição principal; tempo ou programação no caso das artes temporais
como a música ou as artes cênicas.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 52-64.
62
Artigos
Referências Bibliográficas:
AGAMBEN, Giorgo. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó, Editora Argos, 2009.
ALVES, Cauê. A curadoria como historicidade viva. In: RAMOS, Alexandre (org.) Sobre o ofício do
curador. Porto Alegre, Zouk Editora, 2010, p. 43-58.
ARGAN, Giulio Carlo. Arte e crítica de arte. Lisboa. Editorial Estampa, 1995.
BANES, Sally. Writing Dancing: in the age os postmodernism. Hanover. University Press of New
England, 1994.
BARRIOS, José Marcio. KAUARK Giuliana (org). Diversidade cultural e desigualdade de trocas-
participação, comercio e comunicação. Observatório Itau Cultural. São Paulo. Editora PUCMinas,
2011.
CANCLINI, Néstor. Latino-americanos à procura de um lugar neste século. São Paulo. Editorial
Iluminuras, 2008.
CINTRÃO, Rejane. As montagens de exposições de arte: dos Salões de Paris ao MOMA. In:
RAMOS, Alexandre (org.) Sobre o ofício do curador. Porto Alegre, Zouk Editora, 2010, p. 15-41.
COELHO, Teixeira. Dicionário Crítico de Políticas Culturais, São Paulo, Iluminuras, 1999.
DANTO, Arthur C.. After the end of art. Neerman(trad). Barcelona: Paidós Transiciones. 1999.
FERREIRA, Glória. Escolhas e experiências. In: RAMOS, Alexandre (org.) Sobre o ofício do curador.
Porto Alegre, Zouk Editora, 2010, p. 137-147.
MORAYS, Liria. Sem Título. Jornadas de discussão e reflexão sobre curadoria- PID. Salvador-BA,
2010. Disponível em: http://www.pidbahia.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=
86%3Ajornada-de-discussao-e-reflexao-sobre-curadoria-pid&lang=pt . Acesso em: 28 out 2010.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 52-64.
63
Artigos
SEIJAS, Nirlyn. Destrinchando o ofício curatorial. 1era publicação ANDA. Porto Alegre, 2011.
TEJO, Cristiana. Não se nasce curador, torna-se curador. In: RAMOS, Alexandre (org.) Sobre o
ofício do curador. Porto Alegre, Zouk Editora, 2010, p. 149-163.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 52-64.
64
Artigos
Resumo Abstract
Um estudo da crise econômica mundial de 2008 a A study of the global economic crisis in 2008
partir de um resgate das idéias do republicanismo from a redemption of the ideas of classical
clássico, buscando traçar percepções de como republicanism, in order to describe perceptions
a teoria republicana pode colaborar para uma of how the republican theory can contribute to a
melhor compreensão das dinâmicas da crise, bem better understanding of the dynamics of the crisis,
como para as possíveis resoluções desta a partir da as well as to possible resolutions of this from the
lógica do Estado. logic of the State.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 65-85.
65
Artigos
Uma percepção das mudanças no modelo de Estado após a crise econômica de 2008 sob o foco dos conceitos do
Republicanismo Clássico
Thiago Henrique Desenzi
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 65-85.
66
Artigos
Uma percepção das mudanças no modelo de Estado após a crise econômica de 2008 sob o foco dos conceitos do
Republicanismo Clássico
Thiago Henrique Desenzi
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 65-85.
67
Artigos
Uma percepção das mudanças no modelo de Estado após a crise econômica de 2008 sob o foco dos conceitos do
Republicanismo Clássico
Thiago Henrique Desenzi
A crise econômica de 2008 teve origem nos Havia aqui claramente uma incoerência
Estado Unidos, a partir de seu mercado imobiliário, do mercado imobiliário, que chegou ao limite de
que havia sido utilizado como instrumento de corresponder a mais que a metade do PIB norte
manobra por sistemas bancários, tendo em vista americano. O indivíduo norte americano abria
a sustentabilidade da ampliação deste mesmo mão de sua residência para manter-se consumindo
mercado. no mercado, porém este modelo era insustentável,
O país mais rico do mundo vivia além como se mostrou, quando esta “bolha” de
das suas posses (STIGLITZ, 2011). A estratégia crescimento artificial se rompeu, e colocou aos
adotada para a manutenção do sistema econômico olhos do mundo a real situação econômica daquele
global, claramente dependente deste mercado país. A necessidade norte americana e também
de consumo americanoiv, foi a da expansão do mundial para a manutenção de seu padrão de
crédito junto a sua população, mesmo cientes que consumo trouxe o colapso. Sinais da crise já
a capacidade de endividamento destes indivíduos vinham aparecendo em outros setores da economia
havia chegado ao “limite”. As taxas de juros americana, porém o governo através de ações que
eram baixas, bem como as regulações do estado inundavam de crédito a economia e da redução dos
para a concessão de empréstimos, e desta forma impostos, buscava resolver o problema da “falta
foi montado um cenário propício à alimentação de consumo”, pela disposição de mais capital no
de uma “bolha”, pois a carteira de credores, que mercado, induzindo as pessoas a ficarem cada vez
haviam tomados estes empréstimos concedidos mais endividadas, mas mantendo o seu padrão de
pelas instituições financeiras, era composta também consumo.
de pessoas que dificilmente teriam condições de As dívidas individuais junto aos bancos
honrar o pagamento destas dívidas. foram transformadas em carteiras de dividendos e
De acordo com Stiglitz (2011), a inundação negociadas entre instituições financeiras diferentes,
de liquidez no mercadov fez criar uma pressão sob a forma de derivativosvi, de forma a securitizar a
inflacionária no valor dos imóveis, e os indivíduos, operação, conferindo assim “maior confiabilidade”
na busca da concessão de novos empréstimos para aos papéis que vieram a ser negociados em Wall
manter seu padrão de consumo, dispuseram de Strett.
suas residências como garantia na avaliação destes Assim se formou uma cadeia, entre o
empréstimos. mercado, as securitizadoras, e até as resecuritizadoras
O dinheiro em excesso que vinha a do mercado. E quando a bolha estourou, o efeito foi
inundar o mercado viria também do aumento do devastador, levando todos que estavam envolvidos
endividamento em relação ao capital existente, ou na negociação destes papéis. Os resultados desta
seja, os bancos estavam operando a uma ordem crise afetaram grande parte da população norte
superior ao “normal” de emprestar três vezes o americana, bem como, a partir do desaquecimento
total de seus depósitos, pois chegaram a operar da sua economia, exportou a incerteza e a recessão
em 2005 com trinta vezes o total de depósitos econômica por todo o mundo dependente de seu
disponíveis (HARVEY, 2011), operando a partir consumo.
da especulação, sem lastro real. O mercado financeiro norte americano,
agindo de forma desmedida, tendo a busca do
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 65-85.
68
Artigos
Uma percepção das mudanças no modelo de Estado após a crise econômica de 2008 sob o foco dos conceitos do
Republicanismo Clássico
Thiago Henrique Desenzi
lucro como objetivo central e isento de qualquer A tentação de obter lucros fáceis a partir
responsabilidade quanto às demais esferas da dos custos das transações levou muitos
bancos grandes a negligenciar suas
sociedade, conduziu tal processo desde a concessão funções essenciais. O sistema bancário,
de empréstimos aos indivíduos até a elaboração nos Estados Unidos e em muitos outros
de novos produtos financeiros de alto risco, que países, não se concentrou em emprestar
dinheiro a pequenos e médios produtores,
pudessem maximizar os lucros a serem obtidos.
que constituem a base da criação de
empregos em qualquer economia, mas
3. As agências e seus interesses concentraram-se, em vez disso, em
promover a securitização, especialmente
Um importante mecanismo utilizado neste no mercado hipotecário. (STIGLITZ,
sistema é o das agências de classificação de risco, 2011, p.41)
tais como Standart & Poor´s, Moody´s, Fitch entre
outras. Estas assumiram um papel político muito Com o rompimento da “bolha” imobiliária,
forte ao redor do mundo, se desvinculando de seu principalmente após a falência do banco de
aspecto estreitamente econômico. Tem o poder de investimentos Lehman Brothers e a estatização
atribuir notas referentes ao “risco” da operação de da seguradora AIG em setembro de 2008, as
crédito, tanto para empresas quanto para países, agências responsáveis pela regulação deste
expressando qual o risco do não pagamento de mercado se calaram, tal como o Banco Central
suas dívidas no prazo previamente estipulado. norte americano, alegando a impossibilidade de
saber antecipadamente sobre esta bolha que vinha
O problema reside no fato que os clientes
se formando ao longo dos anos. Os mercados
principais destas agências são as próprias instituições
financeiros buscaram se isentar da culpa, alegando
classificadas, gerando uma nebulosa relação entre
que a crise não fora mais que um acidente, e
estes. Existem diversas manobras passíveis de
afirmavam de maneira categórica que a regulação
desvios e corrupçãovii. Um exemplo típico pode ser
do estado ainda seria maléfica a inovação e a
visto no escândalo Enron em 2001, onde através
competição dos mercados.
de fraudes contábeis na auditoria fiscal regida pela
Andersen Consulting, que auxiliou a manipulação 4. Economia liberal, socorro estatal
de seus balanços financeiros escondendo uma
enorme dívida de mais de 25 bilhões de dólares, A lógica que permitiu que o mercado
buscou a lucratividade de seus títulos no mercado financeiro viesse a ditar as regras do estado nacional
de ações através de uma fictícia imagem de “saúde” quanto a defesa de seus interesses, tanto nos Estados
financeira desta empresa. Unidos como nos demais países que adotaram o
modelo da liberalização econômica, era a lógica
Certamente tais agências de classificação
privatista. Através do lobby e do favorecimento
de risco não analisaram corretamente o mercado
político, se entranharam nas estruturas políticas do
ao qual classificavam, ou supostamente agiram de
Estado, de forma a barrar quaisquer tentativas de
forma premeditada a partir de interesses escusos.
regulamentação do mercado. A única orientação
Afinal de contas, dispunham os papéis vinculados
destas políticas ora estabelecidas era a da obtenção
às hipotecas de subprime sob uma alta classificação,
do lucro privado. O mercado buscava resultados
encorajando diversos investidores a participarem
de curto prazo, de lucro máximo no prazo mínimo,
deste lucrativo negócio.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 65-85.
69
Artigos
Uma percepção das mudanças no modelo de Estado após a crise econômica de 2008 sob o foco dos conceitos do
Republicanismo Clássico
Thiago Henrique Desenzi
conforme Stiglitz destaca (2011, p.51): “Como estado sendo direcionada para socorrer este hábil
sua remuneração se vincula aos preços das ações esquema de defesa dos interesses privatistas e
nas bolsas e não aos resultados de longo prazo, particulares. Segundo Harvey (2011, p.16), a lógica
é natural que os gestores façam o possível para que orientou as ações das economias liberais no
elevar o valor das ações – mesmo que isso de lugar socorro aos seus mercados era: “privatizar os
a uma contabilidade ilusória (ou criativa)”. lucros e socializar os riscos; salvar os bancos e
Mesmo o FMI, em seus relatórios sobre a colocar os sacrifícios nas pessoas”.
crise aponta que devido ao mundo estar inundado
viii
Tal procedimento é visto atualmente nos
de crédito, foi difícil fazer a previsão da crise que programas de socorro aplicados pelo FMI em
vinha se formando, ou seja, o mercado financeiro países como a Grécia, Espanha e Portugal, que
estava tomando enormes lucros com esta dinâmica, atravessam grandes convulsões sociais devido a um
então ninguém se interessou em buscar as razões processo de aumento de impostos e diminuição de
que poderiam levar ao colapso. investimento público, tendo em vista que o estado
Offe (1984) e Przeworski (2001) já possa pagar pelas dívidas de seu sistema financeiro
apontavam a desmedida de forças, entre os junto ao mercado.
“corporativos”, que se utilizam das ferramentas O imediato socorro ao sistema financeiro
e da força do capital, para ter uma maior de um país se deve ao estrondoso tamanho que
representatividade de seus interesses junto à esfera as instituições financeiras tomaram em relação
política, e que a sociedade em geral, não conta com ao Estado. Se o estado permite que as empresas
uma força representativa tão impactante. quebrem, ele esta permitindo que o próprio
Em suma, os mercados financeiros fizeram Estado, suas instituições e toda a economia local
muito dinheiro durante os anos em que prorrogaram venha a colapsar, se tornando assim refém do
uma crise já anunciada, trabalharam com um próprio sistema financeiro. Os planos de socorro
capital “fictício” durante anos, gerando bilhões de deste sistema financeiro em todo o mundo passam
dólares para seus acionistas, e distribuindo bônus então a ser regidos sob o argumento que os bancos
milionários a seus correligionários em Wall Strett. se tornaram grandes demais para poder falir.
A protelação da economia de crédito O governo norte americano, por exemplo,
interessava a todos que ganhavam enormes somas destinou grande parte da verba de saneamento do
financeiras com o negócio. Havia presente uma setor financeiro na compra de ações preferenciais
idéia que eles não teriam o que temer, pois mesmo sem direito a voto de bancos e instituições de
se viessem a ter problemas tinham a certeza que poupança, beneficiando mais de 400 instituições,
seriam resgatados pelo governo. Esta confiança além de cerca de outros US$500 bilhões ainda no
no socorro por parte do governo encorajou o governo de George W. Bush destinados a outras
sistema financeiro a tomar medidas de alto risco empresas, seguradoras e bancosix. O que nos
(STIGLITZ, 2011; HARVEY, 2011). E fora chama a atenção, é que os mesmos executivos e
exatamente como ocorreu, pois o sistema financeiro instituições que enriqueceram nas operações de
foi resgatado de maneira questionável, aos olhos crédito envolvendo as hipotecas de subprime
da sociedade que via sua contribuição junto ao nos Estados Unidos ao longo dos últimos anos,
foram premiados com pacotes de ajuda financeira
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 65-85.
70
Artigos
Uma percepção das mudanças no modelo de Estado após a crise econômica de 2008 sob o foco dos conceitos do
Republicanismo Clássico
Thiago Henrique Desenzi
mantendo seus mesmos salários astronômicos, bem fornecimento de meios para os ricos ficarem mais
como mantendo sua farta política de distribuições ricos”. Tal premissa vem se confirmando, haja vista
de bônus. as convulsões e questionamentos que democracia
Desta forma, verificamos que aqueles que e o capitalismo vêm enfrentando.
depositam sua confiança no fundamentalismo de O principio que baseia a necessidade da
mercado, tal como o FMIx e o setor financeiro, regulamentação é simples, Stiglitz (2011, p.49)
foram os primeiros a reclamar ajuda governamental resume de forma clara: “a razão pela qual os
no socorro aos envolvidos com a crise, sob a bancos são regulados é que sua falência causa
alegação de assim evitar o “contágio” com as danos consideráveis ao resto da economia”. Desta
demais instituições financeiras, o que na prática forma, os argumentos em defesa de uma suposta
não tem se mostrado muito efetivo, conforme “liberdade” do sistema financeiro, acabam se
análise de Nouriel Roubini: tornando limitados e relativos, tendo em vista
estarem desvinculados da realidade e do objetivo
Until last year, policymakers could always
produce a new rabbit from their hat to do bem comum em um Estado.
reflate asset prices and trigger economic O fato é que não atingimos a meta de
recovery. Fiscal stimulus, near-zero
Friedman de utilizar ao máximo nossas capacidades
interest rates, two rounds of “quantitative
easing,” ring-fencing of bad debt, e oportunidades, não podemos de forma alguma,
and trillions of dollars in bailouts and afirmar que atualmente os indivíduos têm
liquidity provision for banks and financial igualdade de direitos e igualdade de oportunidades.
institutions: officials tried them all. Now
they have run out of rabbits. (ROUBINI, Creio que a afirmação de Friedman seja um tanto
2011) quanto questionável. Podemos nos utilizar da
interpretação de Karl Marx, dispondo acerca
As soluções apontadas pelo governo
de indivíduos diferentes em relação aos direitos
americano de saldar as dívidas do setor financeiro
individuais, como forma de buscar outra linha de
com a utilização do capital público, somado a
raciocínio:
diminuição de impostos e a baixa taxa de juros se
mostraram insuficientes. Na Europa, os pacotes de O direito só pode consistir, por natureza,
na aplicação de uma medida igual; mas
socorro financeiro que pregam a austeridade fiscal
os indivíduos desiguais (e não seriam
tampouco surtiram resultado. indivíduos diferentes se não fossem
desiguais) só podem ser medidos por uma
5. Do que nos valeu tudo isso? mesma medida sempre quando sejam
considerados sob um ponto de vista igual,
A aposta no modelo liberal de estado sempre e quando sejam olhados sob um
não obteve o resultado esperado, trouxe apenas aspecto determinado... Para evitar todos
estes inconvenientes, o direito não teria
maior centralização de renda e maior desigualdade
de ser igual, mas desigual (MARX, 1973,
entre os indivíduos, acentuada ainda mais pela p.232).
fragilidade e incapacidade do estado em mediar
tais situações junto ao mercado. Segundo Tony Ou seja, medidas diferentes para pessoas
Judt (2011, p.97): “o capitalismo não sobreviveria diferentes. É impossível na sociedade crer que
se seu funcionamento se reduzisse ao mero todos os indivíduos partem de uma igualdade
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 65-85.
71
Artigos
Uma percepção das mudanças no modelo de Estado após a crise econômica de 2008 sob o foco dos conceitos do
Republicanismo Clássico
Thiago Henrique Desenzi
6. O panorama atual
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 65-85.
72
Artigos
Uma percepção das mudanças no modelo de Estado após a crise econômica de 2008 sob o foco dos conceitos do
Republicanismo Clássico
Thiago Henrique Desenzi
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 65-85.
73
Artigos
Uma percepção das mudanças no modelo de Estado após a crise econômica de 2008 sob o foco dos conceitos do
Republicanismo Clássico
Thiago Henrique Desenzi
de sua balança de pagamentos. Como no caso da suas bases sobre a idéia do bem comum, atrelado
Grécia, vieram a adotar uma política de austeridade a concepção do cidadão ativo dotado de virtude
com aumento de impostos, corte de benefícios cívica, tendo como objetivo ser um instrumento
públicos à população e dos gastos do governo. A contra toda forma de dominação arbitrária e
reação é que a economia não responde, e a reação despótica, conforme cá será melhor descrito.
prática é que a população destes países sofre na Entendemos que as ideias do
pele os efeitos da política liberal. republicanismo clássico, principalmente as
Roubini (2011) aponta que a única forma vinculadas ao pensamento de Aristóteles, podem
de fazer com que tais economias orientadas pelo nos auxiliar a buscar novas formas de observar o
mercado voltem a operar de forma capaz e desejável, mesmo objeto, o quadro econômico-político atual.
é que estas retornem a um ponto de equilíbrio Contudo, temos uma clara visão que os conceitos
entre a orientação de mercado e sua orientação de da sociedade que embasaram os estudos destes
fornecimento de bens públicos. Ainda de acordo teóricos em muito se diferem daqueles vigentes em
com este autor: “That means moving away from nossa sociedade contemporânea, principalmente
both the Anglo-Saxon model of laissez-faire and quanto ao conceito do indivíduo em relação à
voodoo economics and the continental European concepção moderna deste. Compreendemos que a
model of deficit-driven welfare states. Both are forma de raciocínio conduzida ali, que fora utilizada
broken”. como base ao longo dos séculos que os sucederam
na moldagem do nosso modelo democrático
7. A baliza do republicanismo republicano, amplamente adotado e conceituado
No presente quadro econômico-político no mundo, pode nos auxiliar a encontrar pontos
internacional assistimos o Estado ser dirigido no qual devemos acentuar as pesquisas, bem como
pelos interesses de uma oligarquia financeira, buscar formas para aperfeiçoar a convivência social
que em troca da obtenção de maiores lucros entre os indivíduos.
através do mercado financeiro em detrimento do Em todos os momentos em que o
mercado produtivo, coloca de forma prática ou republicanismo foi retomado ao longo da história,
potencial, grande parte da população global em existe presente uma ideia que busque conduzir
grandes problemas sociais. Mohandas Gandhi, o a sociedade contra a dominação dos indivíduos
grande líder da independência da maior República pelo do arbítrio de quem quer que seja. O
democrática do mundo, a Índia, teceu um celebre republicanismo de Cícero em Roma, por exemplo,
frase acerca destes interesses. Segundo ele haveria primava pela independência e pela não dominação
no mundo alimentos o suficiente para saciar toda a de seus cidadãos (PETTIT, 1999).
fome de cada pessoa, porém, não para saciar toda Da mesma forma, os burgueses do
a ganância de cada indivíduo. A frase se encaixa renascimento Italiano encontraram na releitura
perfeitamente no quadro que descrevemos até aqui. destes clássicos, embasamento para a formação
A “fome” de poder de alguns confere o flagelo à de uma sociedade sem poderes arbitrários. Tais
maioria. idéias também são discutidas com veemência
Em contraposição a esta situação vigente, pelos aos teóricos políticos jusnaturalistas ingleses,
a retomada do republicanismo clássico assenta principalmente quando estes atravessaram
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 65-85.
74
Artigos
Uma percepção das mudanças no modelo de Estado após a crise econômica de 2008 sob o foco dos conceitos do
Republicanismo Clássico
Thiago Henrique Desenzi
períodos turbulentos de sua história, durante a condicionada como negativa, pois se limita a defesa
revolução Inglesa e Gloriosa (SKINNER, 1999), dos interesses do indivíduos junto aos demais.
bem como, são amplamente discutidas no processo A noção desejável de liberdade a partir
de independência norte americano, que buscava destes republicanos é a liberdade positiva, na qual
acima de tudo conceber a garantia da “liberdade” os cidadãos possam ter uma ação direta junto à
do povo contra a tirania ou opressão de qualquer vida política da cidade. Desta forma, esta relação
poder externo. entre Estado e sociedade seria o que se perdeu
A concepção de Estado, presente nas na releitura das ideias republicanas ao longo da
discussões republicanas contemporâneas, busca história, pois o Estado na república não tem a
que este venha se tornar um mecanismo não mesma forma do Estado na concepção liberal de
arbitrário de governo na sociedade. A orientação governo. Tal mudança na relação entre governo e a
da constituição mistaxiv, com poderes divididos liberdade dos indivíduos configura aquilo o que foi
e limitados, permite um contrapeso dentro das descartado na concepção liberal de liberdade.
instâncias de poder, inibindo a ação de tiranos que
possam tomar o poder por desejos individuais. 8. A contribuição de Aristóteles
A liberdade da não dominação, portanto, é No livro I, cap. II de A Política, Aristóteles
dependente da existência do Estado. A função nos parece já “saber” sobre a dinâmica liberal
desempenhada pelo Estado seria de mediar às de mercado que viria dominar o mundo tanto
relações na sociedade, conferindo uma orientação séculos depois. Ali, este discute sobre a avareza e
de justiça e proteção a seus cidadãos. sobre a insaciável busca humana por riquezas, na
Entretanto, diferentemente da concepção qual estes “amam o dinheiro”, buscando sempre
atual de liberdade, vista como uma não interferência, acumular maiores somas por nunca julgar que tem
a concepção republicana prima pela não dominação, o necessário. Segundo ele: “Ora, é absurdo chamar
na qual o cidadão passa a ser um protagonista a “riquezas” um metal cuja abundância não impede
partir de seu próprio arbítrio, sob qualquer forma de se morrer de fome; prova disso é o Midas da
de subjugação. Este valor é conferido quando este fábula, a quem o céu, para puni-lo de sua insaciável
vem a participar das esferas de decisão da cidade, avareza, concedera o dom de transformar em ouro
na busca do bem comum. tudo o que tocasse”. (ARISTOTELES, 1991,
p.22)
A visão atual de liberdade foi conceituada a
partir dos teóricos do século XVII, na releitura das O regime político apresentado por
idéias republicanas clássicas (SKINNER, 1999). Aristóteles é a Politeia, que tem como substância
As bases do republicanismo cívico se perderam na de sua existência o corpo dos cidadãos. Para este
releitura hobbesiana de tais ideias , havendo um filósofo a vida na polis está relacionada a um fim
deslocamento da concepção original de liberdade, último do homem, se traduzindo como a mais
sendo desvinculada do ideário de civismo e desenvolvida forma de convivência humana.
colocada sob a noção do direito liberal. Esta mesma Em suas palavras: “A sociedade que se formou
concepção de liberdade é amplamente aceita da reunião de várias aldeias constituiu a Cidade,
nas argumentações dos teóricos do liberalismo, que tem a faculdade de se bastar a si mesma,
apesar de aos olhos dos novos republicanos ser sendo organizada não apenas para conservar a
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 65-85.
75
Artigos
Uma percepção das mudanças no modelo de Estado após a crise econômica de 2008 sob o foco dos conceitos do
Republicanismo Clássico
Thiago Henrique Desenzi
existência, mas também para buscar o bem-estar” relação e mediação com os demais membros da
(ARISTOTELES, 1991, p.3). sociedade.
Desta forma, podemos ver que o objetivo O elemento de coesão entre os mesmos
final da polis é outro que não apenas sua manutenção, cidadãos de uma polis é uma capacidade de saber
mas tendo como cerne da questão a forma como o que é certo e o que não é de maneira geral, uma
se viva em sociedade, a busca de uma “melhor” moral compartilhada que reconhece os indivíduos
forma de vida em sociedade, objetivada a busca enquanto semelhantes. Isto apenas seria possível,
de um bem estar comum. Esta premissa é o que uma vez que temos no discurso o “laço de toda
destaca este filósofo daqueles que o precederam. De sociedade” e nos utilizando da razão através do
acordo com Aristóteles (apud MIRANDA FILHO, discurso, podemos nos reconhecer e também
96, p.71), assim são enumerados os objetivos da reconhecer os demais, de forma a compor uma
polis: “I) este não consiste apenas em assegurar a sociedade.
posse dos bens materiais e da propriedade; II) nem A convivência com os demais é explicada
apenas assegurar aos cidadãos a proteção contra através da teoria da amizade (philia) de Aristóteles,
injustiças e crimes tanto de origem externa quanto que aponta que os laços que unem os seres na
interna; III) nem facilitar as trocas, o comércio ou polis estão relacionados não apenas a uma busca
a garantia dos contratos”. comercial (como configura a teoria liberal), mas se
Para melhor relacionar as razões desta vincula a busca de afetos, lealdade e honra. Esta
concepção, devemos partir da célebre afirmação “amizade” é aquilo que configura a intenção de
de Aristóteles, de que o homem é um animal viver em comunidade, desfrutando de uma moral
cívico, pois é dotado do dom da palavra. É com coletiva. A amizadexvi aqui colocada diminui o
a utilização desta faculdade humana que temos: conflito na polis. Esta relação é o que possibilita
“senão o conhecimento desenvolvido, pelo menos que tal laço entre os indivíduos, provido pelo
o sentimento obscuro do bem e do mal, do útil discurso e pela razão (logos), venha a permitir a
e do nocivo, do justo e do injusto, objetos para vida em sociedade na busca pelo bem estar comum.
a manifestação dos quais nos foi principalmente Segundo Aristóteles (1991, p.139): “Se forem seus
dado o órgão da fala. Este comércio da palavra amigos, se-lo-ão também de seu Estado. A amizade
é o laço de toda sociedade doméstica e civil” supõe igualdade e semelhança.”
(ARISTÓTELES, 1991, p.4). Esta propriedade social descrita através
Esta citação de Aristóteles fundamenta da teoria da amizade é aquilo que possibilita aos
um dos mais importantes, e por vezes mal homens ver o objeto da polis a partir de um
compreendido, conceito de seu pensamento. diferente ponto de vista. De acordo com Arendt:
Quando o autor se refere ao homem como um “Esse tipo de compreensão – ver o mundo (como
animal cívico, não se está afirmando que há uma dizemos corriqueiramente) do ponto de vista do
inclinação natural biológica do homem a política, outro – é uma percepção política por excelência”
o que se afirma aqui é que o homem é um animal (2009, p.60). Tal possibilidade, de poder ter acesso
político porque somos dotados do discurso e da a diversos pontos de vista sobre o mesmo objeto,
razão, que diferentemente dos demais animais, nos é característica chave da política, sendo passível de
possibilita ter no discurso e na razão formas de ser aplicada na politeia aristotélica.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 65-85.
76
Artigos
Uma percepção das mudanças no modelo de Estado após a crise econômica de 2008 sob o foco dos conceitos do
Republicanismo Clássico
Thiago Henrique Desenzi
Desta forma, a política aristotélica traz em Ainda segundo o autor, o regime da politeia
seu eixo de ação a moral social, na qual o Estado é seria uma mescla entre as instituições da democracia
disposto como superior ao indivíduo, assim como e da oligarquia, convencionando posteriormente
o bem comum é sobreposto ao bem individual. politeia às que tendem a democracia, ou seja,
Entretanto, não se trata de um conceito opressivo, as que buscam a ampliação da base do sistema
que tem o cidadão por apenas uma “engrenagem” (CARDOSO, 2008). A busca então é encontrar
que venha a permitir a funcionalidade de todo o um equilíbrio, ou um “justo meio” entre ambos,
sistema, a ideia da perfeição da polis só poderia ser de forma a conduzir a dinâmica do Estado sem
atingida com a participação do sujeito nas esferas tender para nenhuma das duas partes, nem a busca
de decisão, partilhando assim, junto ao estado, a exacerbada da riqueza pelos ricos, nem a busca
responsabilidade pelo bem estar comum. desmedida dos desejos pelos pobres, e assim
Baseado nestes argumentos, a república alcançar a preservação virtuosa da polis.
pode ser vista como uma ferramenta contra todos O Estado nacional pós anos setenta,
os tipos de autoritarismo, principalmente ligados a descrito na primeira parte deste artigo, aponta que
governos totalitários que venham a mobilizar toda estaríamos sendo governados não pela maioria,
uma massa de indivíduosxvii, ou demais formas e sim por alguns, uma oligarquia de interesses
de governos que utilizem ou pretendam utilizar a envolvidos com o mercado financeiro. Segundo
população como massa de manobra para projetos Cardoso (2008, p.36): “Os ricos, por sua vez,
particulares de dominação. sustentam sua reivindicação ao poder em nome
É também importante destacar que da riqueza, da competência e do mérito que, no
Aristóteles apontava uma divisão central na governo, estariam postos a serviços da cidade;
sociedade, entre pobres e ricos, e esta seria a mas, na verdade, querem apenas conservar os seus
fundamental diferença na democracia. Na Grécia bens e aumentar seu patrimônio, em que vêem o
clássica havia dois regimes concretos, o da maioria bem verdadeiro e a aspiração universal de todos os
(demos) tido por democracia e o de alguns, tido por homens”.
oligarquia (oligoi). Todavia, o problema apontado A ganância dos ricos na atualidade vem
pelo filósofo era que: “cada um deles, ao invés de desvirtuando a orientação republicana, conforme
contemplar a totalidade da polis é excludente: o aponta Judt (2011, p.155): “As instituições da
povo exclui os oligarcas e vice-versa” (MIRANDA república tem sido degradadas, acima de tudo
FILHO, 1992, p.65). pelo dinheiro”. Diferentemente da atualidade, a
As pessoas não podem ser ao mesmo orientação aristotélica aponta que a república teria
tempo ricas e pobres, sendo necessário ao Estado por função utilizar-se da razão, através do Estado,
buscar o equilíbrio entre ambos, de forma que com vistas a não permitir o domínio das tiranias
nenhum dos dois elementos se sobressaia, a fim sobre todos, seja ela da maioria (democracia), de
de evitar a injustiça que uma possa cometer sobre alguns (oligarquia) ou de um (monarquia). Assim,
a outra. Para Aristóteles, a justa medida estaria na o Estado teria como fim ser o uma instituição que
chamada classe média, que seria fundamental na pudesse se intrometer nos assuntos dos indivíduos,
moderação dos interesses da polis, agindo como o porém de forma não arbitrária, buscando se
“fiel da balança”. desvincular da concepção do tirano, que poderia
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 65-85.
77
Artigos
Uma percepção das mudanças no modelo de Estado após a crise econômica de 2008 sob o foco dos conceitos do
Republicanismo Clássico
Thiago Henrique Desenzi
definir leis, julgar e condenar os indivíduos, através da inviabilidade democrática como sistema (tese
de seu próprio arbítrio. posta a prova nas sociedades contemporâneas), a
A descrição aristotélica da democracia, por questão de suma importância no quadro de crise
sua vez, conduzia a visão de uma tirania das massas, atual, dentro da concepção vigente de democracia
que seria tão terrível quanto à tirania de apenas é: Que sentimento dirige as deliberações nesta
um (monarquia), ou de um grupo (oligarquia). A democracia?
origem desta crença se assentava na ideia de uma Aqui vamos nos utilizar da interessante
massa “pouco educada”, que teria como objetivo frase de Ribeiro (2011, p.22): “Uma democracia
somente expropriar os ricos, devido à busca de seus sem república não é kratosxviii, é simples populismo
desejos, relacionados à conquista de bens materiais distributivista”. Existe neste trecho uma significativa
(RIBEIRO, 2008). Esta visão pode ser constatada colocação de que a democracia precisa da república
na passagem de Aristóteles: para existir. Conforme explanamos anteriormente,
o republicanismo tem a função de orientar tais
Não é sem razão que se censura tal
governo e, de preferência, o chamam deliberações visando às premissas do bem comum.
democracia ao invés de República; pois Assim, a democracia apenas não é suficiente para
onde as leis não têm força não pode haver atender os anseios da vida em sociedade, partindo
República, já que este regime não é senão
uma maneira de ser do Estado em que
do pressuposto que os homens naturalmente têm
as leis regulam todas as coisas em geral uma inclinação para vida em sociedade, conforme
e os magistrados decidem sobre os casos demonstra Aristóteles (1991, p.5): “O mesmo
particulares. Se, no entanto, pretendermos
ocorre com os membros da Cidade: nenhum pode
que a democracia seja uma das formas de
governo, então não se deverá nem mesmo bastar-se a si mesmo. Aquele que não precisa dos
dar este nome a esse caos em que tudo outros homens, ou não pode resolver-se a ficar
é governado pelos decretos do dia, não com eles, ou é um deus, ou um bruto. Assim, a
sendo então nem universal nem perpétua
nenhuma medida.(ARISTÓTELES, inclinação natural leva os homens a este gênero de
1991, p.111) sociedade”.
Há então a necessidade de uma orientação
Tal ideia é contraposta a concepção atual
que busque pautar a vida a partir do conceito de
de democracia, que na mais rasa interpretação que
sociedade, e não apenas de indivíduo. Desta forma,
se possa ter, nos leva a ideia de que o poder tem
a indicação é exposta de forma clara, temos uma
como “soberano” o povo, que busca colocar em
inclinação natural para a convivência. Como tal, a
prática seus anseios através dos representantes
principal orientação que deveria guiar a construção
eleitos pelo sufrágio universal. Mesmo que tal
desta convivência seria a maneira de torná-la
argumentação seja contestável, principalmente a
possível e virtuosa.
partir dos teóricos do liberalismo, tomemos como
base o cerne da idéia democrática atual, a busca Porém, na compreensão da dinâmica da
de limitar a propensão a tirania no Estado através polis, mesmo dentro da premissa que os seus
da participação popular em suas instituições e no membros compartilham de uma ética individual
processo de escolha dos representantes populares. comum, refletida na moral do Estado, Aristóteles
leva em conta as diferentes funções e o diferente
Independentemente da visão aristotélica
arbítrio entre cada um dos indivíduos. A combinação
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 65-85.
78
Artigos
Uma percepção das mudanças no modelo de Estado após a crise econômica de 2008 sob o foco dos conceitos do
Republicanismo Clássico
Thiago Henrique Desenzi
entre logos (capacidade de discurso e lógica) e (1991, p.41): “É daí que provém a bondade
política somente fora possível considerando tal intrínseca do Estado, sem que seja necessário que
característica particular da polis. A citação de Mario haja entre todos igualdade de mérito”.
Miranda Filho, que explicita está ideia com base na
pluralidade compõe o pensamento: 9. Considerações finais
Diante de todo o panorama apresentado,
Decidida a se instalar para valer na polis
acreditamos que apesar das diferenças junto à
a filosofia, a partir de Platão, terá que
operar em si mesma uma conversão: sociedade da antiguidade, principalmente sob
reconhecer a existência de gente como a visão aristotélica, em relação à sociedade
Estrepsíade como necessária, de gente atual, podemos sim utilizar diversos pontos e
cujo comportamento errante é ditado,
em grande parte, por forças irracionais argumentações políticas desenvolvidas ali para
constitutivas do homem e, portanto nosso debate contemporâneo, como já o fizemos
também da cidade. Isto equivale a em alguns pontos até aqui discorridos.
reconhecer que a política abriga em si
um elemento irracional que aparece por O primeiro ponto a ser destacado se trata
vezes como um incontornável para a do conceito de oligarquia. Aristóteles apontava que
razão – seja ele o sagrado, seja a estupidez este seria o regime no qual o domínio é exercido
da força bruta em sua recusa de escutar
o outro – com o qual o especialista da por apenas alguns, o que de fato observamos
razão tem que se haver. Viver na polis atualmente. Conforme descrevemos na primeira
não é, pois viver numa comunidade de parte do artigo, toda crise financeira americana e
sábios virtuosos, nem de religiosos, ou
posteriormente mundial, teve no setor financeiro
de conformistas ou de guerreiros, ou de
rico ou de pobres. A polis é, como diz o elemento que entranhado nas esferas de poder
exemplarmente Aristóteles na Política, do Estado, pode manipular as diretrizes deste com
uma pluralidade. (MIRANDA FILHO, vista a atender seus interesses econômicos. Os
1992, p.59)
demais membros da sociedade que trabalhavam
A pluralidade traz consigo a noção de que na construção da riqueza do sistema (até porque
todos estão colaborando para um fim em comum, sem este trabalho não existiria esta riqueza)
a manutenção da polis. Aristóteles (1991, p.41) eram elementos até certo ponto passivos, e que
argumenta que “embora as funções dos cidadãos certamente não tinham a mesma voz e a mesma
sejam dessemelhantes, todos trabalham para a representatividade na obtenção de seus interesses
conservação de sua comunidade, ou seja, para a junto ao Estado.
salvação do Estado. Por conseguinte, é a este Outro elemento a ser destacado é a divisão
interesse comum que deve relacionar-se a virtude social entre ricos e pobres. Creio que esta tenha se
do cidadão”. alterado ao longo dos séculos, mas não a maneira
Para o filósofo seria impossível que um que apontava o filósofo, com a predominância de
Estado fosse composto integralmente de homens uma classe média. O fato é que a situação dispõe
perfeitos, mas a busca é que os cidadãos venham a a parcela dos mais ricos da sociedade, dos mais
executar o seu melhor papel como tal, procurando poderosos, dirigindo e controlando o Estado, de
se tornar bons cidadãos. Aqui estaria a posição forma questionável podemos afirmar, tendo em
de encaixe do Estado. De acordo com Aristóteles vista todo o ônus que trouxeram a população dos
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 65-85.
79
Artigos
Uma percepção das mudanças no modelo de Estado após a crise econômica de 2008 sob o foco dos conceitos do
Republicanismo Clássico
Thiago Henrique Desenzi
países atingidos pela crise. Até os dias atuais, as dispostas de forma dispersa, e na maioria dos casos
demandas destas duas parcelas são paradoxalmente orientadas por demandas específicas, ainda assim,
distintas, e estas duas parcelas da sociedade não estas contribuem para uma orientação social que
podem ser descartadas como um todo, nem junto busca o bem estar do todo. Segundo Amartya Sen:
ao poder, nem junto às suas demandas. O ponto “Os valores sociais podem desempenhar – e têm
a ser perseguido é o equilíbrio, aos moldes de desempenhado – um papel importante no êxito
uma politeia aristotélica, contudo, descartando a de várias formas de organização social” (2000,
configuração elitista disposta pelo filósofo para p.297).
exercer os postos de governo na polis. O conceito atual de liberdade permite, e com
Destacamos também o papel da virtude justa medida, a busca dos interesses particulares, mas
cívica, que é fundamental na dinâmica republicana. é inegável que a orientação do sujeito não é restrita
Alias, é o que se espera do cidadão, conforme apenas a busca de seus interesses financeirosxix,
visto na argumentação de Judt (2011, p.153): “Mas a moral social compartilhada desempenha um
repúblicas e democracias só existem em virtude do papel de suma importância na orientação destes
engajamento de seus cidadãos na condução dos indivíduos, atrelada a parcela econômicaxx.
negócios públicos”. No conceito de Aristóteles A liberdade apontada pelos teóricos
esta virtude cívica seria aplicável em um pequeno do liberalismo considerava a não-interferência,
Estado, onde os laços sociais formados a partir mas se esqueceu de observar e resguardar a
da amizade poderiam mediar as relações entre os não-dominação. O indivíduo pode não sofrer
indivíduos, gerando a virtude cívica manifestada interferências, mas sem o Estado na mediação das
na participação da vida política. As sociedades diferenças entre os diversos indivíduos, o regime
hoje em muito se diferem desta, em tamanho e em é dominado por uma parcela de força apenas, que
composição (nacionalidades, credos, orientações e subjuga todos os demais pela interferência nas leis
etc.), assim, o conceito da amizade ali demonstrado do mercado, de modo desregulatório e específico,
se torna um tanto quanto frágil para descrever o ou seja, de acordo com a conveniência do poder.
processo de aglutinação na polis atual. Para a obtenção da não dominação do
Entretanto, a colocação acerca da razão e indivíduo, o republicanismo atual busca resgatar
do discurso, nossa capacidade enquanto “animal uma autogestão no indivíduo, que possa ser livre,
político”, vinculada a uma capacidade de discernir sem nenhum opressor lhe cerceando. De acordo
o bem do mal, colabora na construção de uma com Pettit (2008, informação verbal), a ideia de
moral comum, ao qual compartilhamos. E tal liberdade republicana é vinculada a não dominação
moral comum orienta a sociedade a buscar não (pensamento, discurso, religião, associação,
apenas seus objetivos de interesse específico, mas deslocamento, emprego e etc.), seria uma das bases
a serem orientadas também quanto a uma noção necessárias para que todos, independentemente de
de bem e mal no tocante a restante desta mesma sua função ou cargo na sociedade, possam olhar
sociedade. uns nos olhos dos outros, sem medo.
As diversas manifestações sociais no mundo Conforme discutimos anteriormente, a
demonstram uma orientação comum no indivíduo, democracia por si só, sem a orientação republicana
vinculada a uma ideia de justiça social. Mesmo que
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 65-85.
80
Artigos
Uma percepção das mudanças no modelo de Estado após a crise econômica de 2008 sob o foco dos conceitos do
Republicanismo Clássico
Thiago Henrique Desenzi
acaba por se tornar limitada como regime junto aos Creio que o modelo de Estado que venha a
homens. De acordo com Tony Judt (2011, p.135): se delinear após a crise de 2008 seja algo, conforme
“Sem idealismo, a política se reduz a uma forma apontado por Nouriel Roubini (2011), para uma
de contabilidade social, de administração cotidiana estrutura que se distancie do modelo anglo-saxão
de homens e coisas”. O idealismo destacado por do livre mercado e também do modelo europeu
Judt é a orientação e, quando não existe o Estado, de Estados de bem estar social movidos a déficits.
fica entregue aos interesses dominantes, no caso, A questão colocada agora é de que forma delinear
os econômicos. esta nova estrutura e como colocar em prática nesta
O resgate a orientação social é elemento sociedade dominada pelas relações de mercado.
urgente em nossa sociedade, bem como a retomada Desta forma, o ponto fundamental do
da virtude cívica, disposta de forma adaptada a republicanismo nos dias atuais é o resgate do tema
sociedade atual, conforme a liberdade individual da igualdade, pois tal propriedade tem se mostrado
que detemos e buscamos que seja mantida. Creio extremamente corrosiva a toda dinâmica da vida
que a frase de Joseph Stiblitz pode sintetizar bem em sociedade. O ponto é, conforme apontado por
o cerne desta exposição: Aristóteles, buscar a média, o ponto de equilíbrio
entre as estruturas e os cidadãos que compõe nossa
Avançamos muito por um caminho
alternativo – criando uma sociedade sociedade, de forma a evitar a desmedida de forças
em que o materialismo predomina disposta aos olhos de todos no desenvolvimento
sobre os compromissos morais; em que desta crise. Nas palavras deste ilustre filósofo: “É
o crescimento rápido que atingimos
não é sustentável, nem do ponto de uma verdade reconhecida que a mediana é boa em
vista ambiental nem do social; em que tudo.” (ARISTÓTELES, 1991, p.168).
não agimos em conjunto, como uma
comunidade, para atender as nossas
necessidades comuns, de certa forma
porque o individualismo desabrido e o
fundamentalismo do mercado erodiram
qualquer sentido de comunidade e
levaram a uma exploração selvagem de
indivíduos inocentes e desprotegidos e a
uma crescente divisão social. (STIBLITZ,
2011, p.389)
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 65-85.
81
Artigos
Uma percepção das mudanças no modelo de Estado após a crise econômica de 2008 sob o foco dos conceitos do
Republicanismo Clássico
Thiago Henrique Desenzi
Notas
i
Conforme apontam palavras da diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional: “Lagarde disse
aos estudantes da John F. Kennedy School of Government que a geração deles “enfrenta provavelmente
a pior insegurança econômica em décadas, possivelmente pior até do que a da Grande Depressão”
(LAGO, 2012)
Influente teórico do liberalismo, oriundo da Escola de Chicago. Aponta as diretrizes do liberalismo,
ii
buscando condicionar o temor dos indivíduos à concentração de poder nas mãos do estado, objetivando
a liberdade individual através do liberalismo de mercado, sem a regulação ou interferência do estado.
A partir de 1970 o capitalismo vem se globalizando, através da utilização de novas ferramentas na
iii
aproximadamente 15,6 trilhões de dólares em 2011, mais que duas vezes maior ao segundo colocado, a
China com 7,3 trilhões.
v
Termo de referência para dizer que o mercado estava repleto de capital buscando algum negócio onde
pudesse ser aplicado.
vi
Um instrumento financeiro de alto risco derivado de outros ativos (ex. ações). Busca fundamentalmente
estabelecer ferramentas de especulação relacionadas a proteção, alavancagem e arbitragem, criando
assim um “produto” vendido a investidores, que buscam lucros a partir de sua negociação no mercado
financeiro.
Conforme demonstra o documentário norte americano Inside Job, de Charles Fergunson, vencedor
vii
para acentuar os reflexos sociais das crises econômicas que vieram a atingir os países que receberam
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 65-85.
82
Artigos
Uma percepção das mudanças no modelo de Estado após a crise econômica de 2008 sob o foco dos conceitos do
Republicanismo Clássico
Thiago Henrique Desenzi
pacotes econômicos de socorro, haja vista a atuação deste junto ao México em 1994, a Crise dos países
asiáticos em 1997 e a crise argentina de 2002.
A constituição mista atualmente é definida pela idéia de eleições, leis, alteração no poder, divisão de
xiv
papeis funcionais, transparência e checks and balances. (informação verbal) (PETTIT, 2008).
xv
Pettit (1999), Ribeiro (2008).
O conceito de amizade de Aristóteles se enquadra na sua definição de melhor polis para ser governada,
xvi
sendo uma cidade pequena, com relações baseadas entre “iguais”. As grandes cidades contemporâneas
dotadas de diversidades étnicas em sua composição, com certeza fogem a sua premissa teórica.
xvii
Conforme definição de Newton Bignotto (2008, p.57).
xviii
Relativo à força. Vinculada a ideia da origem da palavra democracia: demo mais kratos.
“O uso do raciocínio socialmente responsável e de idéias de justiça relaciona-se estreitamente à
xix
centralidade da liberdade individual. Não se está afirmando com isso que as pessoas invariavelmente
invocam suas idéias de justiça ou utilizam seus poderes de raciocínio socialmente sensível para decidir
sobre o modo de exercer sua liberdade. Mas um senso de justiça está entre as considerações que podem
motivar as pessoas – e com freqüência isso ocorre” (SEN, 2000, p.297)
xx
“Quanto à vida dedicada a ganhar dinheiro, é uma vida forçada, e a riqueza não é, obviamente, o bem
que estamos procuramos: trata-se de uma coisa útil, nada mais, e desejada no interesse de outra coisa”
(ARISTÓTELES, 2008, p.12).
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 65-85.
83
Artigos
Uma percepção das mudanças no modelo de Estado após a crise econômica de 2008 sob o foco dos conceitos do
Republicanismo Clássico
Thiago Henrique Desenzi
Referências Bibliográficas:
BIGNOTTO, Newton. Humanismo Cívivo Hoje. In: ______ (org.). Pensar a república. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2008.
CARDOSO, Sérgio. Que república? Notas sobre a tradição do “governo misto”. In: BIGNOTTO,
Newton (org.). Pensar a república. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
CHOMSKY, Noam. Chomsky debate futuro dos novos movimentos. Disponível em: http://www.
outraspalavras.net/2011/11/14/chomsky-debate-futuro-dos-novos-movimentos/. Acesso em nov. 2011.
HARVEY, David. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011.
JUDT, Tony. O mal ronda a terra: um tratado sobre as insatisfações do presente. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2011.
LAGO, Andréia. Crise atual pode ser pior que a Grande Depressão, diz Lagarde. Estado de São
Paulo Online, São Paulo, 23 de maio de 2012. Disponível em: http://economia.estadao.com.br/noticias/
economia,crise-atual-pode-ser-pior-que-a-grande-depressao-diz-lagarde,113575,0.htm
MARX, Karl. Contribuição para a crítica da economia política. Lisboa: Estampa, 1973.
MIRANDA FILHO, Mário. Politeia e virtude no republicanismo clássico. Lua Nova, São Paulo,
n.º38 dec.1996, p.55-76.
OFFE, Claus. Problemas Estruturais do Estado Capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
PRZEWORSKI, Adam. Sociedade e Estado em Transformação. São Paulo: Editora Unesp, 2001.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 65-85.
84
Artigos
Uma percepção das mudanças no modelo de Estado após a crise econômica de 2008 sob o foco dos conceitos do
Republicanismo Clássico
Thiago Henrique Desenzi
RIBEIRO, Renato. Democracia versus República: a questão do desejo nas lutas sociais. In:
BIGNOTTO, Newton (participação/org.). Pensar a república. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
p.13-26.
ROUBINI, Nouriel. Is capitalism doomed? Project Syndicate, Nova Iorque, ago.2011, disponível em
http://www.project-syndicate.org/commentary/is-capitalism-doomed-
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
STIGLITZ, Joseph. O mundo em queda livre: os Estados Unidos, o mercado livre e o Naufrágio
da Economia Mundial. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 65-85.
85
Artigos
Resumo Abstract
O presente artigo pretende a partir do livro This article seeks from the book The Power Owners
Os Donos do Poder de Raymundo Faoro (2000), Raymundo Faoro (2000), back to the discussion
retomar a discussão sobre o patrimonialismo, a about the formation of patrimonialism and political
formação do patronato político, e os obstáculos patronage, and the obstacles they had to build a
que eles apresentaram à construção de um Estado modern state, and thus the very configuration of
moderno, e, portanto, à própria configuração do Brazilian capitalism.
capitalismo brasileiro. Faoro (2000) sustain that over six centuries the
Faoro (2000) sustenta que ao longo de seis séculos Brazilian state became autonomous in relation to
o Estado brasileiro se fez autônomo em relação à civil society, for he had a central goal: the realization
sociedade civil, pois possuía um objetivo central: of the interests of its leaders, employers, or political
a realização dos interesses particulares de seus establishment. Thus, the government machinery
dirigentes, do patronato, ou estamento político. has been transformed into personal wealth, the
Desta forma, a máquina pública foi transformada leitmotiv typically Brazilian.
em patrimônio pessoal, o leitmotiv tipicamente The long stay politically oriented capitalism and
brasileiro. traditional stamp sheet was possible because we
A longa permanência do capitalismo politicamente can combine it with modern capitalism, creating
orientado de cunho tradicional e patrimonial foi a dual agenda of development, with the archaic
possível porque conseguimos combiná-lo com o and modern walking together. This modernizing
capitalismo moderno, criando uma dupla pauta process will have consequences in the power
de desenvolvimento, com o arcaico e o moderno structure in monolithic group and domain in the
caminhando juntos. Este processo modernizador social imaginary, preventing change, stimulating
terá consequências na estrutura de poder, no associative vertical over the horizontal associative
grupo monolítico de domínio e no imaginário and not encouraging the formation of a civic
social, impedindo a mudança, estimulando culture.
o associativismo vertical em detrimento ao
associativismo horizontal e não fomentando a
formação de uma cultura cívica.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 86-98.
86
Artigos
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 86-98.
87
Artigos
Além disso, fornecerá subsídios para a formação pois, se não existiam as evidências empíricas
do estamento nobiliárquico através da concessão na superestrutura, estas levavam à incerteza da
de terras, combinando dois fundamentos em si existência do feudalismo na infraestuturai Faoro
contraditórios: o da soberania da posse da terra (2000) trará ainda para contrastar com a teoria
e o da dependência ante o Poder Real, tudo isso marxista, a diferenciação de Maquiavel (1976) sobre
selado pela lealdade. O resultado será uma grande dois tipos de principado, o feudal e o patrimonial,
capilarização dos agentes reais no território no último o monarca é o senhor do comércio e
português, cuidando de algo que era ao mesmo da riqueza territorial, e estende sobre os súditos
tempo seu e do rei. uma rede patriarcal diferente dos direitos e deveres
O marcante traço territorialista de Portugal fixamente determinados como no feudalismo.
terá também, influências significativas em seu Não ter tido um feudalismo chamado
ordenamento jurídico, não podendo se filiar à “autêntico”, que tivesse revolvido as entranhas
Common Law, ou direito do costume da terra; e da sociedade, fez com que a Península Ibérica
também sem construir um conjunto de normas desconhecesse as relações capitalistas em sua
que lhe seja endógeno. Foi adotada a Constituição íntegra, sem a articulação entre sociedade e Estado.
de Diocleciano, como Estatuto de Ordem Pública - Portugal ficou refém dos avanços tecnológicos de
dando o caráter político e instituindo uma vasta outras nações, especialmente, França e Inglaterra,
camada de funcionários públicos - e o Código de pois, não havia reinvestimento ou acumulação.
Justiniano, como Estatuto regulador das relações O patrimônio português servia para manter a
privadas, sendo que este afirmava o poder ilimitado administração colonial, e esta é uma das principais
do imperador, e consequentemente reforçava o teses de Faoro (2000), a de que toda renda gerada
patrimonialismo. pela terra era destinada à geração e conservação de
Segundo terminologia de Faoro (2000), a um estamento burocrático de caráter fidalgo. Esta
esses fundamentos sociais e espirituais se somará tese desfaz ainda ao nó górdio da manutenção
a tendência mercantil da monarquia portuguesa, e, por Portugal de um domínio colonial tão vasto e
juntos construirão o Estado patrimonial e com ele rico a despeito de não seguir princípios racionais
uma nova ordem social, o capitalismo politicamente modernos. A resposta está em quanto maior o
orientado. Um capitalismo de Estado diferente do patrimônio real, maior era a incorporação de
capitalismo dos países que tiveram uma revolução pessoas ao estamento, e, portanto, maior era a
burguesa clássica, pois tanto em Portugal quanto capilaridade de Portugal na colônia, “todos são a
na América portuguesa, a burguesia fora sufocada sombra do rei”, de um poder monocéfalo que se
e cooptada, ela não terá um papel eminentemente desdobrava nos rincões tropicais.
revolucionário como a história mostrou e Marx Vale ressaltar que, se a estrutura
eternizou no Manifesto Comunista (MARX, 2002). patrimonial levou à estabilização da economia e
Reforçando o argumento da importância do entreposto colonial, por outro lado, impediu o
da predisposição comercial de Portugal, Faoro florescimento da burguesia e com ela o capitalismo
(FAORO, 2000, p.36) ressalta que foi esta industrial. Como já dissemos, o Brasil vivenciou
peculiaridade histórica que acelerou o aparecimento um capitalismo orientado de cunho tradicional, e
do sistema patrimonial, contrário à ordem feudal, embora utilizasse formas do capitalismo moderno,
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 86-98.
88
Artigos
racionalidade técnica e dispersões liberais, não Sérgio Buarque (2000), dirá que a ocupação dos
possuía o seu espírito, ou o ethos capitalista segundo trópicos será estimulada pelos imensos territórios
a teoria weberiana. à disposição, o colono virá somente se for o
No texto Ética Protestante e o Espírito do dirigente, contando com outra gente que trabalhe
Capitalismo (1981) Weber procura confirmar para ele, revelando a aversão ibérica ao trabalho
a hipótese de que a representação religiosa, manual.
especialmente a dos calvinistas, e a conduta
3. O estamento: Leviatã Social
econômica por eles exercida foram no Ocidente
uma das causas do desenvolvimento do capitalismo. É interessante notar o uso que Faoro
Embora existissem fenômenos capitalistas em (2000) faz da história, pois se por um lado ele a
civilizações orientais, as características específicas usa intensamente, recuperando os antecedentes
do capitalismo ocidental – busca do lucro históricos como a formação do Estado-Nação
combinado com a burocratização, o primado do português, e suas heranças para a América
Direito racional e o protagonismo do indivíduo – portuguesa, por outro lado, ele cria uma teoria
só floresceram quando o espírito do capitalismo a-histórica sobre a formação do patronato
e a vocação religiosa se encontraram. A ética brasileiro, algo se manterá imutável diante dos
protestante sugere que se deve desconfiar dos desdobramentos do mundo (SCHWARTZMAN,
agrados deste mundo, a riqueza em si constitui 2003). E para compreender esta paralisia
um grande perigo, o ideal é trabalhar dia após dia, Faoro (2000) tenta escapar do determinismo
acumulando lucro e reinvestindo no que não foi historiográfico rompendo com um postulado
consumido. Permitindo o desenvolvimento dos marxista que considera o feudalismo uma etapa
meios de produção, a aquisição econômica deixa de necessária na linha da história, mas que por outro
ser um meio de satisfazer somente as necessidades lado, vê a origem do patrimonialismo brasileiro
básicas do homem e passa a ser um dos princípios já nos primórdios coloniais, quando Portugal
orientadores do capitalismo. Os calvinistas viviam transplanta sua estrutura de dominação à América
o comportamento ascético de alheamento do portuguesa, tendo o estamento como ferramenta
mundo e como eles não sabiam se seriam salvos de poder.
ou condenados, procuravam sinais no mundo que De acordo com Faoro (2000) o estamento é
indicassem sua escolha. É assim que algumas seitas diferente das classes, pois teria de ser uma categoria
terminaram por ver no êxito econômico uma prova econômica, e não somente política, mas ao contrário
da escolha de Deus, eram os predestinados. é o estamento que sustenta a classe pelo fiscalismo.
Este ethos capitalista, este comportamento Vale ressaltar, porém que isso não exclui as
ascético voltado para a acumulação não ocorria relações de poder, enquanto capacidade de agir, de
entre os católicos, pois eles não percebiam a produzir efeitos, de determinar comportamentos,
sociedade dos homens na terra como um fim em de forma intencional ou interessada, neste caso, as
si, mas, de forma teleológica esperavam o Segundo relações se fundamentam e se legitimam no que
Advento, ou o Paraíso, que de certa foi encontrado Weber (2005) chamou de um tipo de dominação
na América portuguesa. O historiador Caio Prado tradicional, baseado na tradição, com o aparato
Júnior (1970), seguindo a mesma vertente de administrativo de tipo patriarcal formando a rede
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 86-98.
89
Artigos
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 86-98.
90
Artigos
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 86-98.
91
Artigos
oligarquia, e aqui tomou outras formas; a Guarda Nacional – entram em colapso, além
ideologia a ser criada não priorizava a democracia disso, a abolição da escravatura trata de lhe desferir
representativa, mas sim uma forma elitista de ação o último golpe, afetando o estamento político
política, tendo o Estado como principal ator. Era que sobrevivia das divisas oriundas do crédito
como se fosse descoberta uma forma de convívio cedido à agricultura comercial, a classe dominante
entre as instituições liberais e o sistema patrimonial estava fragmentada e absorvida em ideias e
de origem ibérica. posicionamentos diferentes dos do Império.
Esse convívio ou mudança pela via A despeito de sua aproximação com
da acomodação, Faoro (2000) vai identificar a classe média – já que com o passar do tempo
especialmente no comportamento e nas atitudes os filhos das oligarquias concentram-se cada vez
da Coroa portuguesa, do Exército e também da mais nas carreiras do Direito, e o oficialato ao
classe dominante, por exemplo, quando a queda contrário, passa a ter sua origem, sobretudo de
do Gabinete Liberal de Zacarias de Góes em famílias militares e de rendas modestas – e da
1868 inaugura um processo de intenso dissídio tomada de um discurso democrático com a tese
entre a Coroa e o Exército. A Coroa tentava do cidadão de farda, a instauração da República
conter o liberalismo, ao passo que se espalhava a pelo Exército não trouxe consigo a soberania
contrariedade quanto ao uso indiscriminado do popular ou a representação social e política, mas o
Poder Moderador, a famosa frase “o rei reina, mas poderio regional, especialmente dos Estados mais
não governa” será usada por progressistas e liberais, abastados com o exacerbamento do mandonismo
e posteriormente exacerbada pelos republicanos privado. Cabe ressaltar que se a oligarquia persistiu
que farão intensa pregação contra a monarquia. a esta mudança social, o mesmo ocorre com o
O Partido Republicano agrupará grande parte estamento, que não finda, somente dispersa.
dos fazendeiros dissidentes, especialmente os do Assim, mesmo com a República e a tentativa
oeste paulista. Estes, que outrora eram um dos de descentralização do poder não houve a ampliação
sustentáculos do Império, agora não viam mais da cidadania, o Estado republicano passou a não
vantagem na artificial titulação nobiliárquica, o impedir a atuação das forças sociais, mas a favorecer
benefício visualizado por eles estava agora no as mais fortes, no estilo spenceriano, como nos
discurso federativo. A Coroa tenta ainda em seus ensina Carvalho (2006), com o liberalismo como
últimos suspiros esvaziar essas reivindicações instrumento de consolidação do poder.
federativas reinantes empreendendo a centralização Faoro (2000) dirá que a soberania popular
política e descentralização administrativa, essa só existirá como farsa, não traduz a vontade “de
tentativa de aproximação dos municípios e com baixo para cima”, mas sempre de cima, de um
as províncias protegerá a unidade política, mas a estamento burocrático que num movimento
medida será tomada tarde demais. pendular confunde o espectador, variando sua
A sociedade começa a se desmistificar, aparência, ora liberal, ora democrático, e outras,
dirá Faoro (2000). A sociedade de classes começa autoritário.
a surgir, e suportes como a burguesia agrária e
o Exército – chamado por Faoro de o principal 5. Viagem redonda: estamento permanente?
aparelho centralizador, depois de aniquilada a
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 86-98.
92
Artigos
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 86-98.
93
Artigos
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 86-98.
94
Artigos
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 86-98.
95
Artigos
Notas
i
Superestrutura é uma categoria usada na tradição marxista para indicar as relações sociais, jurídicas,
políticas, e as representações da consciência (costumes, ideias) que complementam a estrutura.
Infraestrutura é a base material, as forças econômicas.
Bonapartismo é uma forma de governo ou de uso do poder onde há a subordinação do Legislativo ante
ii
considerada ideal.
iv
Faoro explica este processo através do exemplo hegeliano para o desenvolvimento, usando a metáfora
do desenvolvimento de uma planta, que não se faz por uma força externa, mas a partir de seu germe,
que a contém de modo ideal, e não uma direção superior, um enxerto, desenvolvendo assim, a planta
(FAORO, 1992, p. 07).
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 86-98.
96
Artigos
Referências Bibliográficas:
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem. A elite política imperial. In: Teatro de
sombras: A política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 5. ed., 2010.
______. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das
Letras, 3.ed., 2006.
COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: Um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1999.
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: Formação do patronato político brasileiro. São Paulo:
Globo, 2000.
______. A questão nacional: a modernização. Estud. av. [online]. 1992, vol.6, n.14, pp.7-22.
ISSN0103-4014.doi:10.1590/S0103-40141992000100002. Acessado em 11 mai/2011.
FERNANDES, Florestan. Mudanças Sociais no Brasil. São Paulo: Global, 4. ed. rev. 2008.
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.
MARX, Karl. O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte. São Paulo: Centauro, 2006.
PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora Brasiliense, 10. ed.,
1970.
SCHWARTZMAN, Simon. Atualidade de Raymundo Faoro. Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio
de Janeiro, Vol. 46, n. 2, 2003, pp. 207 a 213.
______. Bases do Autoritarismo Brasileiro. Rio de Janeiro: Publit Soluções Editoriais, 4. ed., 2007.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 86-98.
97
Artigos
WEBER, Max. Feudalismo e Estado Estamental. In: IANNI, Octavio (org.). Teorias de
Estratificação Social. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1978.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 86-98.
98
Artigos
Resumo
Trata-se de um projeto individual e autônomo, do projeto foi o de trazer os participantes para
desenvolvido para produção textual a partir de dentro do processo de produção textual, através
conversas e debates sobre conteúdos e experiências de suas experiências vividas, apresentando que tais
de vida dos participantes, conforme orientações da experiências têm seus valores, pois estão inseridas
metodologia Pesquisa-Ação, cujo objetivo é o da na mesma sociedade, pode-se assim, relacioná-las
transformação e resolução de problemas em uma com os contextos sociais, políticos e econômicos,
forma de ação planejada de caráter social. Nos possibilitando um pensamento crítico de si mesmo
últimos cinquenta anos os problemas da leitura, e do mundo em que vivem.
compreensão e escrita de textos persistem na
educação brasileira e têm sido diagnosticados através
de dados e estatísticas, no entanto a questão que se
colocou foi como estas dificuldades se apresentam
e quais seriam suas consequências práticas. Uma
vez que esta problemática está colocada, é possível
aceitá-la como um fato dado, portanto percebido
como real, de modo que a dificuldade se apresentaria
como parte da produção de textos, legitimando
distinções entre aqueles que sabem e dominam e os
que não sabem e são dominados. Assim, o objetivo
Palavras -Chave
Produção textual. Desmistificação da escrita. Experiência vivida.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 99-111.
99
Artigos
Da experiência vivida à crítica escrita: Os saberes cotidianos e os seus sujeitos como parâmetros da produção textual e
reflexão dos fenômenos sociais
Alessandra Felix de Almeida
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 99-111.
100
Artigos
Da experiência vivida à crítica escrita: Os saberes cotidianos e os seus sujeitos como parâmetros da produção textual e
reflexão dos fenômenos sociais
Alessandra Felix de Almeida
da educação secundária como sendo “o da um fato dado e propagada graças à legitimidade dos
preparação de candidatos a cursos superiores” veículos de comunicação. Também não foi objeto
(OESP, 1962), em 17/07/2012, foi publicado, pelo deste trabalho a análise dos objetivos da mídia,
mesmo veículo, que “No ensino superior, 38% quanto à possibilidade de divulgar uma ideologia,
dos alunos não sabem ler e escrever plenamente” mas sim como as notícias superficiais orientam a
(OESP, 2012) e em reportagem sobre o ENEM, construção de verdades que podem impactar nas
um importante portal de notícias na web, destacou, atitudes dos leitores e ouvintes. Podemos entender
em 04/06/2012, que os “candidatos ainda têm que diante destas colocações as produções de
dificuldade para entender tema de redação” (UOL, texto ganhem uma complexidade além do que de
2012). Podemos perceber, ainda que à primeira fato teriam. Se “a miséria do nordeste é decorrente
vista, que a educação tem sido apresentada mais do clima”, do que decorreria a dificuldade para a
como um problema do que uma solução ou menos elaboração de um texto?
ainda, como parte integrante do direito civiliv,
um dos três elementos do conceito de cidadania 3. O “saber de experiência feito”
previsto por T.H. Marshall (1967). Do ponto de vista de que todas as pessoas
O presente trabalho aborda a questão da partilham do mesmo mundo, embora com visões
produção textual, neste sentido foi realizada uma e referenciais diferentes, é possível considerar que
breve pesquisa nos meios de comunicação quanto estas mesmas pessoas têm algo a contar, ensinar
às notícias veiculadas que fizessem referência ao e aprender, seja em suas relações cotidianas ou
último Exame Nacional do Ensino Médio, realizado na produção de um texto. Paulo Freire (2011)
nos dias 03 e 04/11/2012, que citassem as palavras procurou
“redação” e “ENEM”, temos assim os seguintes
introduzir a troca fecunda de saberes, do
resultados publicados no dia 04/11/2012v: popular com o científico. Deixou claro que
somente um ignorante pode considerar o
povo ignorante. Pois ele é um produtor
de sentido, de visão de mundo, de valores
além dos frutos de seu trabalho (FREIRE,
2011: 10).
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 99-111.
101
Artigos
Da experiência vivida à crítica escrita: Os saberes cotidianos e os seus sujeitos como parâmetros da produção textual e
reflexão dos fenômenos sociais
Alessandra Felix de Almeida
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 99-111.
102
Artigos
Da experiência vivida à crítica escrita: Os saberes cotidianos e os seus sujeitos como parâmetros da produção textual e
reflexão dos fenômenos sociais
Alessandra Felix de Almeida
do processo tenham voz e vez. A Pesquisa-Ação, fazemos uma introdução (apresentamos o tema),
sem reduzir a reflexão teórica, opera principalmente desenvolvemos (detalhamos o tema) e concluímos
como pesquisa aplicada (THIOLLENT, 1986: 7,8, (esboçamos alguma opinião) e foi nesta dinâmica
73). Esta metodologia, aplicada à área de educação, que os encontros ocorreram de forma a desmistificar
justifica-se na a produção de um texto, colocando-o como parte
integrante, ainda que de forma subjetiva, no dia-a-
constatação de uma desilusão para com
a metodologia convencional, cujos dia da comunicação entre as pessoas.
resultados, apesar de sua aparente Sentávamos em forma de círculo e era
precisão, estão muito afastados dos
sugerido pela ajudante (pesquisadora) que os
problemas urgentes da situação atual
da educação. Por necessárias que sejam, participantes relatassem um acontecimento
revelam-se insuficientes muitas das importante ocorrido naquela semana (houve
pesquisas que se limitam a uma simples também a utilização de fotos e jornais), destes
descrição da situação ou a uma avaliação
de rendimentos escolares [...]. Dentro de era escolhido, por votação, o mais interessante.
uma concepção do conhecimento que A partir da escolha do acontecimento, a ajudante
seja também ação, podemos conceber pedia para que os participantes dissessem palavras
e planejar pesquisas cujos objetivos não
relacionadas com o que foi relatado. Todas as
se limitem à descrição ou avaliação da
reconstrução do sistema de ensino, não palavras eram escritas na lousa e quando se
basta descrever e avaliar. Precisamos esgotavam todas as possibilidades de palavras,
produzir ideias que antecipem o real ou passávamos a sublinhar as mais importantes.
que delineiem um ideal (THIOLLENT,
1986: 74,75). Sobravam, em média cinco palavras e com estas
conversávamos a fim de construir um tema.
5. Vivência Para a primeira construção do tema, houve
certa dificuldade, pois os acontecimentos pareciam
Em uma sala de aula da Escola Estadual ser um fim em si mesmos. Assim, desenvolvemos
Professor Crispim de Oliveira, localizada no uma analogia com um iceberg a partir do filme
Jardim Carumbé – Vila Brasilândia, foram Titanic (1997), que todos haviam assistido, essa
realizados nove encontros quinzenais, aos sábados, analogia procurava mostrar que se o comandante
totalizando vinte e sete horas, com uma média de do transatlântico tivesse noção do tamanho do
nove alunos por turma, com idades entre onze e bloco de gelo que sustentava a pequena ponta
cinquenta e três anos. O objetivo, apresentado em aparente, provavelmente, o naufrágio não teria
todos os encontros, era de que ao final de cada ocorrido, ou seja, procurávamos analisar os fatores
debate fosse produzida uma dissertação crítica. que sustentavam o tema oriundo do acontecimento
Assim, em todos eles foi apresentada a estrutura narrado, refletindo sobre as questões que não
da dissertação (introdução, desenvolvimento, prestamos atenção no dia-a-dia, mas que uma
conclusão) no entanto, trazendo esta estrutura vez analisadas, proporcionam um caráter mais
técnica para uma linguagem mais próxima da fala, crítico aos acontecimentos, tornando tanto as
procurando enfatizar que em qualquer conversa conversas quanto os textos mais interessantes e
cotidiana lançamos mão de alguma estrutura, ou fundamentados. Essa analogia foi aceita por todos
seja, quando contamos uma história, seja qual for, os participantes e utilizada em todos os encontros,
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 99-111.
103
Artigos
Da experiência vivida à crítica escrita: Os saberes cotidianos e os seus sujeitos como parâmetros da produção textual e
reflexão dos fenômenos sociais
Alessandra Felix de Almeida
Após a produção dos textos cada produtor e refletíamos sobre o que cada texto mostrou de
fazia a leitura em voz alta, nos dois primeiros novo.
encontros nenhum dos participantes quis ler,
assim, a ajudante iniciou esta fase do encontro, 7. Análise dos Resultados
sendo que nos demais, os próprios participantes No mínimo, durante os últimos cinquenta
se candidatavam para iniciar as leituras. Ao final anos os problemas da leitura e escrita persistem entre
do encontro conversávamos sobre o que foi lido os estudantes brasileiros, tal problema dificultaria o
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 99-111.
104
Artigos
Da experiência vivida à crítica escrita: Os saberes cotidianos e os seus sujeitos como parâmetros da produção textual e
reflexão dos fenômenos sociais
Alessandra Felix de Almeida
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 99-111.
105
Artigos
Da experiência vivida à crítica escrita: Os saberes cotidianos e os seus sujeitos como parâmetros da produção textual e
reflexão dos fenômenos sociais
Alessandra Felix de Almeida
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 99-111.
106
Artigos
Da experiência vivida à crítica escrita: Os saberes cotidianos e os seus sujeitos como parâmetros da produção textual e
reflexão dos fenômenos sociais
Alessandra Felix de Almeida
Notas
i
Disponível em <http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/enem-2012-ultima-dia-de-prova-tem-a-
temida-redacao>. Acesso em 10/11/2012.
É aquela versão da realidade social desenvolvida pela classe dominante, tendo em vista facilitar a
ii
dominação, tornando-a aceitável pelos dominados. Essa versão tende a esconder dos homens o modo
real como as relações sociais são produzidas. Por meio da ideologia os homens legitimam as condições
sociais de exploração e dominação, fazendo que estas pareçam verdadeiras e justas (VILLAÇA, 1999:
231).
Sua pesquisa demonstrou que a região de concentração das camadas de alta renda, que representa
iii
15,90% dos domicílios da área pesquisada, recebeu 74,66% da atenção da imprensa (VILLAÇA, 1999:
233).
iv
Nos termos de T. H. Marshall (1967) a educação estaria diretamente relacionada com a cidadania,
sendo um pré-requisito para a liberdade civil. O elemento civil, para o referido autor, é uma das
três partes do conceito de cidadania, sendo representado pela “liberdade de ir e vir, liberdade de
imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à justiça”
(MARSHALL, 1967, p. 63)
v
Tabela de Dados: Anexo I
Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/saber/1091790-professora-e-acusada-de-punir-alunas-
vi
enem-internanoticia,1917/candidatos-se-dizem-surpresos-com-tema-da-redacao.shtml. Acesso em
10/11/2012.
Disponível em http://g1.globo.com/se/sergipe/noticia/2012/11/sergipanos-consideram-o-tema-da-
xiv
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 99-111.
107
Artigos
Da experiência vivida à crítica escrita: Os saberes cotidianos e os seus sujeitos como parâmetros da produção textual e
reflexão dos fenômenos sociais
Alessandra Felix de Almeida
Disponível em http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2012/11/no-rio-2-dia-de-enem-foi-mais-
xvi
Enem+primeiros+a+sair+em+Curitiba+divergem+sobre+dificuldade+do+teste.html. Acesso em
10/11/2012.
Disponível em http://noticias.terra.com.br/educacao/enem/noticias/0,,OI6276665-EI8398,00-Enem
xxv
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 99-111.
108
Artigos
Da experiência vivida à crítica escrita: Os saberes cotidianos e os seus sujeitos como parâmetros da produção textual e
reflexão dos fenômenos sociais
Alessandra Felix de Almeida
Anexo I
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 99-111.
109
Artigos
Da experiência vivida à crítica escrita: Os saberes cotidianos e os seus sujeitos como parâmetros da produção textual e
reflexão dos fenômenos sociais
Alessandra Felix de Almeida
Anexo II
Anexo III
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 99-111.
110
Artigos
Da experiência vivida à crítica escrita: Os saberes cotidianos e os seus sujeitos como parâmetros da produção textual e
reflexão dos fenômenos sociais
Alessandra Felix de Almeida
Referências Bibliográficas:
ABREU, Jayme. A escola média do século XX: um novo fato em busca de caminhos. Jornal O
Estado de São Paulo, São Paulo, 04/02/1962. 6º Caderno, p 115. Disponível em http://acervo.estadao.
com.br/pagina/#!/19620204-26621-nac-0115-999-115-not/busca/ensino+problemas. Acesso em
20/10/2012.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 14ª Ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
CARRASCO, Luis & LENHARO, Mariana. No ensino superior, 38% dos alunos não sabem ler e
escrever plenamente. Jornal O Estado de São Paulo, São Paulo, 17/07/2012. Disponível em http://
www.estadao.com.br/noticias/impresso,no-ensino-superior-38-dos-alunos-nao-sabem-ler-e-escrever-
plenamente-,901250,0.htm. Acesso em 20/10/2012.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança. 17ª Ed., São Paulo: Paz e Terra, 2011.
NOGUEIRA, João Pontes & MESSARI, Nizar. Teoria das Relações Internacionais - Correntes e
Debates. Rio de Janeiro: Campus, 2005.
REVISTA VEJA. Enem 2012: último dia de prova tem a temida redação. Disponível em http://
veja.abril.com.br/noticia/educacao/enem-2012-ultima-dia-de-prova-tem-a-temida-redacao. Acesso em
10/11/2012.
UOL, Universo On Line. Candidatos ainda têm dificuldade para entender tema de redação.
Disponível em http://educacao.uol.com.br/noticias/2012/06/04/candidatos-ainda-tem-dificuldade-
para-entender-tema-de-redacao-veja-o-que-o-enem-leva-em-conta-na-correcao-dos-textos.htm. Acesso
em 20/10/2012.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 99-111.
111
Ensaio Poético
O artesão
Renato Moro Giannico
Estudante de graduação no curso de
Sociologia e Política, da Escola de Sociologia e
Política de São Paulo.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 112.
112