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Alabastro: ano 1, v. 1, n. 1, 2013.

Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e


Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013

Comissão Editorial
CORPO EDITORIAL / EDITORS:

Prof. Dr. Rafael de Paula Aguiar Araújo: Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP (2009) e Coordenador de Curso da Escola de
Sociologia e Política de São Paulo (raraujo@fespsp.org.br)
Rafael Balseiro Zin: Bacharel em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e
Política de São Paulo (rafaelbzin@hotmail.com)

EDITORES ASSISTENTES / ASSISTANT EDITORS:

Bruno Teixeira Martins: Graduando em Sociologia e Política pela Fundação Escola de


Sociologia e Política de São Paulo (bruno_bar_1@hotmail.com)
Evandro Finardi Sabóia: Graduando em Sociologia e Política pela Fundação Escola de
Sociologia e Política de São Paulo (evandrofsaboia@gmail.com)
Caterina de Castro Rino: Graduando em Sociologia e Política pela Fundação Escola de
Sociologia e Política de São Paulo (caterinarino@gmail.com)
Luis Sérgio Brandino: Graduando em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia
e Política de São Paulo (brandino@apeoesp.org.br)
Thiago Duarte de Oliveira: Graduando em Sociologia e Política pela Fundação Escola de
Sociologia e Política de São Paulo (prof.thiduarte@gmail.com)

DIAGRAMAÇÃO / DIAGRAMMING:

Alessandra Felix de Almeida (dona@alealmeida.com)

A Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo
tem por escopo a publicação científica de artigos acadêmicos. Os artigos são de responsabilidade
dos respectivos autores, não refletindo necessariamente a opinião da Comissão Editorial acerca do
conteúdo dos mesmos.

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ALABASTRO
revista eletrônica dos alunos
da Escola de Sociologia e Política de São Paulo

Alabastro: ano 1, v. 1, n. 1, 2013.

Sumário
Nota dos Editores

Nota dos editores 4-5


Rafael de Paula Aguiar Araújo
Rafael Balseiro Zin

Dossiê Lima Barreto

O Rio de Janeiro no início do século XX: uma narrativa sociológica do 7 - 11


desenvolvimento da cidade na obra Recordações do escrivão Isaías
Caminha, de Lima Barreto
Ana Magali Busko
Rafael Lacerda Soares

Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão 12 - 28


Isaías Caminha
Fabiana Nancy da Silva Araújo
Thiago Duarte de Oliveira

Recordações do Escrivão Isaías Caminha: Uma leitura da obra de 29 - 41


Lima Barreto
Fernando Morgato de Oliveira
Yasmim Nóbrega de Alencar

A busca por reconhecimento através da educação e os entraves 42 - 51


socioculturais de uma classe de cor
Marcella de Campos Costa
Kleber Aparecido da Silva

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revista eletrônica dos alunos
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Artigos

Curadoria de Artes, Micropolíticas Culturais para a América Latina 52 - 64


Nirlyn Karina Seijas Castillo

Uma percepção das mudanças no modelo de Estado após a crise 65 - 85


econômica de 2008 sob o foco dos conceitos do Republicanismo Clássico
Thiago Henrique Desenzi

Faoro e o LEITMOTIV tipicamente brasileiro: as confusões entre público e 86 - 98


privado
Tathiana Senne Chicarino

Da experiência vivida à crítica escrita: Os saberes cotidianos e os seus 99 - 111


sujeitos como parâmetros da produção textual e reflexão dos fenômenos
sociais
Alessandra Felix de Almeida

Ensaio Poético

O artesão 112
Renato Moro Giannico

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ALABASTRO
revista eletrônica dos alunos
da Escola de Sociologia e Política de São Paulo

Alabastro: ano 1, v. 1, n. 1, 2013.

Nota dos editores

A ALABASTRO – Revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia


e Política de São Paulo, é uma publicação de cunho científico, com
periodicidade semestral, organizada por estudantes de graduação em
Ciências Sociais da Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Sua
finalidade é estimular a produção e a veiculação de conhecimento e
aproximar os pesquisadores de diferentes instituições universitárias ao
cotidiano das Ciências Sociais por meio de artigos, resenhas, traduções
científicas, análise de material audiovisual e produções poético-literárias,
com temas vinculados às Ciências Humanas.
Alabastro é um tipo de vaso feito de cerâmica e que foi muito
utilizado na Antiguidade para armazenar ou queimar determinados
conteúdos, entre eles óleo e perfume. A primeira menção conhecida a
estes “frascos de essências” vem de Heródoto, geógrafo e historiador
grego, e está registrada no capítulo XX, do livro III, da obra Histórias, que
cita o alabastro como um dos presentes enviados por Cambises, antigo
rei da Pérsia, ao rei da Etiópia. Passada a sua época, a palavra foi utilizada
tanto entre os escritores gregos quanto entre romanos, difundindo-se
por todo o Ocidente e alcançando os nossos tempos.
Pensando nestes termos, nasce a ALABASTRO. Assim como
os vasos que eram utilizados na Antiguidade, esse periódico, pensado
e elaborado por alunos de graduação, assume a forma de um frasco
de essências. A Revista quer, portanto, organizar, armazenar e tornar
pública a produção acadêmica de jovens pesquisadores, contribuindo,
dessa maneira, para o enriquecimento e maior qualificação na formação
intelectual dos alunos. Vale destacar que a criação desta Revista ocorre
em momento oportuno, como parte das comemorações dos 80 anos da
Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 4-5.
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Nota dos editores

Nesta primeira edição, os textos selecionados versam sobre


assuntos diversos, mas sempre relacionados ao universo das Ciências
Sociais. Para melhor disposição do material, este número está estruturado
em três eixos. O primeiro deles traz um dossiê a respeito de um dos mais
importantes escritores brasileiros, Afonso Henriques de Lima Barreto,
a partir de sua obra Recordações do Escrivão Isaías Caminha, publicada
pela primeira vez em 1909. A segunda parte apresenta artigos que
problematizam questões referentes à sociedade, ao Estado, aos saberes
cotidianos, às artes e ao pensamento social brasileiro. Na terceira e
última seção, trazemos a público um breve ensaio poético que enaltece o
papel dos artesões, enquanto importantes agentes culturais da sociedade
brasileira.
Fundamentada em um processo colaborativo, capaz de promover
a troca de conhecimentos e interesses entre os estudantes de graduação e
pós-graduação, a comunidade acadêmica em geral e demais interessados,
a comissão editorial da ALABASTRO oferece ao público leitor os
trabalhos que compõem esta primeira edição da Revista. Esperamos que
nossos leitores apreciem esta iniciativa e compartilhem esse novo espaço
de trocas, contribuindo com as futuras edições. A ALABASTRO, como
frasco de essências, quer armazenar conhecimento, mas, da mesma
forma que é preciso abrir o frasco para que o perfume seja apreciado e se
espalhe, queremos que os saberes aqui reunidos se multipliquem através
dos leitores. Esperamos que gostem...

Boa leitura!
Rafael de Paula Aguiar Araújo
Rafael Balseiro Zin

Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 4-5.
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Dossiê Lima Barreto

O Rio de Janeiro no início do século XX: uma


narrativa sociológica do desenvolvimento da
cidade na obra Recordações do escrivão Isaías
Caminha, de Lima Barreto.
Ana Magali Busko
Rafael Lacerda Soares
Estudantes de graduação no curso
de Sociologia e Política, da Escola de
Sociologia e Política de São Paulo

Resumo
Esse trabalho tem por objetivo analisar a obra de Brasil) através de um amigo ou quando vai preso
Lima Barreto Recordações do escrivão Isaías Caminha, e é enquadrado como marginal, passando pela
de acordo com o ponto de vista político e social, influente imprensa carioca e até observando as
visando uma historicidade que remonta à época do mudanças estruturais da cidade maravilhosa. Em
Rio de Janeiro no início do século XX. O conteúdo suma, o ponto de partida deste trabalho são duas
a seguir é enriquecido com as observações do obras de extremo valor para uma boa compreensão
historiador e professor José Murilo de Carvalho e sobre o início do século XX no Rio de Janeiro.
sua obra Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república
que não foi, escrito em 1987, em que demonstra o
processo de formação do republicanismo em face
da capital brasileira e discursa sobre a participação
do povo carioca no processo democrático. Foi
identificado através das leituras que o livro de Lima
Barreto torna-se campo fértil para uma discussão
sobre os aspectos da mudança política da época.
No discurso de todo o enredo, Lima Barreto
pontilha cada grupo e os sofrimentos destes, como
no caso de seu contato com a Igreja Positivista
(um dos pensamentos que mais influenciaram o

Palavras -Chave
Pensamento político brasileiro. Século XX. Lima Barreto. José Murilo de Carvalho.

Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 7-11.
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Dossiê Lima Barreto

O Rio de Janeiro no início do século XX: uma narrativa sociológica do desenvolvimento da cidade na obra Recordações
do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto.
Ana Magali Busko e Rafael Lacerda Soares
Em Recordações do escrivão Isaías Caminha, demográfico desenfreado, com um contingente
publicado em 1909, Lima Barreto conduz o leitor a populacional quase que dobrando entre 1872 e
um passeio pelo Rio de Janeiro no início do século 1890, passando de 274 mil habitantes para 522
XX, em pleno estabelecimento da República e mil habitantes. Um dos motivos foi a abolição da
apresenta os relatos de uma cidade que foi palco de escravatura, que nos anos anteriores impulsionou
uma transformação política radical que deu rumos um contingente de trabalhadores que buscaram
ao Brasil contemporâneo. Na obra, Lima Barreto na capital da república um posto de trabalho. O
pincela os aspectos sociais, políticos e ideológicos outro fator foi a vinda de muitos estrangeiros
de uma população que ainda estava agitada pela oriundos da Europa para tentar uma vida no Brasil,
decorrência do golpe que culminou em um novo como foi o caso do jornalista Ivã Gragoróvitch
sistema. O autor encontra-se em face de uma das Rostolóff, citado por Isaías Caminha no decorrer
maiores agitações políticas do cenário brasileiro e, da narrativa.
nesse sentido, o povo do Rio de Janeiro assistia a Nesse ínterim, cresceu o número de
metamorfose desse cenário esperançada. pessoas buscando emprego, consequentemente,
Segundo o historiador José Murilo (1987) de desempregados. A economia enfrentou índices
esse era o momento de trazer o povo para o inflacionários absurdos, por causa da especulação
proscênio da atividade política, o momento de o desenfreada em vários níveis, especialmente terrível
povo se engajar politicamente, afinal era o início de para as classes populares.
uma república em terras antes monárquicas. Apesar A concepção de um povo “bestializado”
de o pensamento proposto pelos propagandistas surge quando, após a conquista da República, por
da república de que os cidadãos participassem falta de uma organização política pela sociedade,
das decisões do Estado, o grosso da população o poder é dado às pessoas envolvidas com o
brasileira, nessa época, presenciava todas as liberalismo imperial. O termo “bestializados”
transformações aquém do poder. José Murilo em surge com a Constituição de 1891. O Estado
seu livro Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república não tinha a obrigação em fornecer educação
que não foi, diz que, “embora proclamado sem a ao povo e o direito de voto só ser dado àqueles
iniciativa popular, o novo regime despertaria entre não analfabetos, a grande maioria da população
os excluídos do sistema anterior certo entusiasmo tornou-se excluída da participação na comunidade
quanto às novas possibilidades de participação” política. Como foi a primeira vez que o povo viu um
(CARVALHO, 1987. p.12). modelo de república, houve um descontentamento
De fato, este período da história brasileira generalizado, inclusive desejando o retorno
foi de total conturbação. Nesta época o povo sofria da monarquia, devido à simpatia a D. Pedro
com a falta de um sistema eficiente de saneamento II e a princesa Isabel. Desse modo, a falta de
básico e isto desencadeava frequentes epidemias, participação do povo no processo de consolidação
entre elas, a febre amarela, peste bubônica e varíola. da República, fez com que estudiosos chamassem
A população carente, de moradias precárias, era a o povo de “bestializado”. E assim são tratados até
principal vítima destas epidemias. Ao analisar as a Revolta da Vacina, em 1904 em que eclodiu um
condições sociais dessa época vê-se claramente que sentimento tão esperado pela defesa da honra e de
a instabilidade predominava. Já ao final do século seus direitos.
XIX, o Rio de Janeiro passa por um crescimento

Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 7-11.
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Dossiê Lima Barreto

O Rio de Janeiro no início do século XX: uma narrativa sociológica do desenvolvimento da cidade na obra Recordações
do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto.
Ana Magali Busko e Rafael Lacerda Soares

A título de ilustração, há na obra de Lima Portanto, durante a leitura do romance de


Barreto a seguinte passagem: Lima Barreto vê-se um jovem, Isaías Caminha,
com muitos sonhos e desejos de ser reconhecido
Durante três dias a agitação manteve-
se. Iluminação quase não havia. Na Rua como “Um grande homem”. Queria ir para o Rio
do Ouvidor armavam-se barricadas, de Janeiro, obter o reconhecimento de todos em
cobria-se o pavimento de rolhas para sua volta, da família e dos amigos como “Doutor”.
impedir as cargas de cavalaria. As forças
eram recebidas a bala e respondiam
Para ele, era um título mágico, tinha poderes e
(...). Da sacada do jornal, eu pude alcances múltiplos. Estudar na capital era querer
ver os amotinados. Havia a poeira de ter as regalias e prestígios que somente um diploma
garotos e moleques; havia o vagabundo,
pode fornecer. Entretanto, diante do contexto
o desordeiro profissional, o pequeno-
burguês, empregado, caixeiro e estudante; histórico e político seu desencantamento vem sem
havia emissários de políticos descontentes. demora.
Todos se misturavam, afrontavam as
Entre os esforços de Isaías Caminha na
balas, unidos pela mesma irritação e pelo
mesmo ódio à polícia, onde uns viam o procura por um emprego, na tentativa de provar
seu inimigo natural e outros o Estado, sua identidade, é possível refletir a respeito da
que não dava a felicidade, a riqueza e a hipocrisia da sociedade vigente a época, sobre
abundância. (BARRETO, 2011, p.265)
a importância de um diploma para sobreviver
Isaías Caminha, o protagonista da história, naquele período, sobre a miséria ser um empecilho
mostra as dificuldades de arrumar emprego e a para o sucesso.
certo ponto na narrativa é confundido com um Carvalho (1987) faz abordagem sobre a
ladrão e levado pelo dono do hotel onde residia à participação das camadas inferiores da sociedade,
cadeia. Pelo fato de a cidade do Rio de Janeiro dessas onde se encontrava o desiludido Isaías Caminha,
décadas estar povoada por ladrões, prostitutas, durante o período da Proclamação da República.
ciganos trapaceiros e gatunos, ele foi obrigado a Segundo o autor, a economia enfrentou índices
receber tal tratamento. E recebeu, não somente inflacionários absurdos, por causa da especulação
pelo fato de ser negro, mas também por fatores desenfreada em vários níveis, que foi em especial,
sociais que o deixaram a míngua pela cidade. Nesse terrível para as classes populares. É no meio daquele
sentido sofre com o desencantamento da cidade fervilhar de ambições pequenas, de intrigas, de
e com o preconceito constante. Segundo José hipocrisia, de ignorância, que Isaías Caminha via
Murilo, uma das consequências dessa desordem todas as coisas majestosas, todas as coisas que
sociopolítica foi: ele amara, sendo diminuídas ou desmoralizadas.
O acúmulo de pessoas em ocupações Conforme enfatiza Isaías Caminha em uma
mal remuneradas ou sem ocupação fixa. passagem:
Domésticos, jornaleiros, trabalhadores
em ocupações mal definidas chegavam a Queria-me um homem do mundo,
mais de 100 mil pessoas em 1890 e mais sabendo jogar, vestir-se, beber, falar às
de 200 mil em 1906 e viviam nas tênues mulheres; mas as sombras e as nuvens
fronteiras entre a legalidade e a ilegalidade, começavam a invadir-me a alma, apesar
às vezes participando simultaneamente de daquela vida brilhante. Eu sentia bem o
ambas. (CARVALHO, 1987, p.17). falso da minha posição, a minha exceção
naquele mundo; sentia também que não

Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 7-11.
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Dossiê Lima Barreto

O Rio de Janeiro no início do século XX: uma narrativa sociológica do desenvolvimento da cidade na obra Recordações
do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto.
Ana Magali Busko e Rafael Lacerda Soares

me parecia com nenhum outro, que não do jornal O Globo no palco político, e de fato as
era capaz de me soldar a nenhum e que, folhas cariocas foram de suma importância para
desajeitado para me adaptar, era incapaz
de tomar posição, importância e nome. o processo democrático. Foram fundados diários
(BARRETO, 2011, p.295). das mais variadas vertentes de pensamento para
essa expressão. Jornais como o Não Matarás e o
Conforme citação de Carvalho (1987):
Baluarte representavam a Federação Operária do
“A República que não era cidade, não tinha
Rio; os anarquistas tinham os jornais: O Despertar, O
cidadão”. Além disso, diz o pesquisador, “O povo
Protesto, O Golpe, A greve entre outros. Os socialistas
não se enquadrava nos padrões europeus”. Por
tinham o Echo Popular e muitos outros setores das
essa razão, impossibilitada de ser “A República”,
massas procuravam seu lugar ao sol na política
a cidade mantinha suas repúblicas particulares,
brasileira. Além disso, o personagem de Isaías
ou seja, seus núcleos de participação social, nos
Caminha conta no decorrer do enredo que parte
bairros nas associações, nas irmandades, nos
desses jornais já estava corrompida pelos próprios
grupos étnicos, nas igrejas, nas festas religiosas
donos do poder e ao analisar a história de muitos
e profanas e mesmo nos cortiços e nas rodas de
jornais cariocas nota-se que não sobreviviam por
capoeira, que se transformaram, ao longo dos anos,
muitos anos.
em estruturas comunitárias que não se encaixavam
É dentro desse contexto conturbado da
no modelo contratual do liberalismo dominante na
historiografia nacional que Lima Barreto olha a
política. A despeito disso, pode-se dizer que foi a
sociedade carioca usando como janela o cotidiano
evolução destas repúblicas, algumas inicialmente
do jornal O Globo que se mistura à sua vida
discriminadas, que se não perseguidas formou-se
privada. Ele fez de Isaías Caminha o protagonista, e
a identidade coletiva da cidade.
assim aguça a intelectualidade do leitor na tentativa
Foram nelas que se aproximaram povo e
de fazê-lo entender o que foi narrado e sobre os
classe média, foram nelas que se desenhou o rosto
fatos sociais decorridos. Será porque havia uma
real da cidade, longe das preocupações com a
particularidade no fundo desta narrativa tão rica
imagem que se devia apresentar a Europa. Foram
que explica todo o tema do livro? Pode-se dizer
o futebol, o samba e o carnaval que deram ao Rio
que sim, as relações entre os personagens são por
de Janeiro uma comunidade de sentimentos por
si somente um elemento relevante no romance.
cima e além das grandes diferenças sociais que
E também o são as descrições geográficas, pois
sobreviveram e ainda sobrevivem. Negros livres,
neste passeio sensorial pelo Rio de Janeiro do
ex-escravos, imigrantes, proletários e classe média
início do século XX criam-se as memórias afetivas,
encontraram nessa resistência o reconhecimento
construindo uma moldura para todas as narrativas
que lhes era negado pela sociedade e pela política,
do enredo, no feixe de ligação entre os personagens,
que os marginalizava, restringindo o seu forte
nas suas afinidades, nos seus olhares, nos seus
apelo cultural.
desafetos e rancores, nos seus destinos.
Durante todo esse período a voz das
organizações era a imprensa, pois procuravam
visibilidade dentro do cenário político carioca.
Lima Barreto deixa saliente em sua história o papel

Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 7-11.
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Dossiê Lima Barreto

O Rio de Janeiro no início do século XX: uma narrativa sociológica do desenvolvimento da cidade na obra Recordações
do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto.
Ana Magali Busko e Rafael Lacerda Soares

Referências Bibliográficas:

BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São
Paulo: Companhia das Letras, 1987.

HOUAISS, Antonio. Mini Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Objetiva/
Moderna, 2008.

Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 7-11.
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Dossiê Lima Barreto

Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra


Recordações do escrivão Isaías Caminha
Fabiana Nancy da Silva Araújo
Thiago Duarte de Oliveira
Estudantes de graduação no curso
de Sociologia e Política, da Escola de
Sociologia e Política de São Paulo

Resumo
O anarquismo, visto com maus olhos pelo senso
comum devida sua fama equivocada de desordem
e bagunça, é um pensamento político, social e
econômico que contribuiu para a formação da
sociedade atual, defendendo em seu cerne os
interesses dos proletários, das mulheres, do meio
ambiente e de todas as vítimas dos processos de
industrialização e das relações de poder, a partir do
final do século XIX. As obras do brasileiro Lima
Barreto, autor à frente de seu tempo, são marcadas,
entre outras coisas, pelo pensamento libertário e
de inconformidade com o estado moral e social da
época, anteriores à consolidação do pensamento
anarquista brasileiro (a partir dos anos 30 do
século XX). Começaremos esse trabalho pela
tessitura e conceituação dos termos anarquia e
anarquismo, explorando suas vertentes e difusão
pelo Brasil a partir da abolição da escravatura e
formação da classe operária. Posteriormente uma
abordagem sobre a vida e obra de Lima Barreto
e, em seguida, buscando identificar a presença de
insigths anarquistas na obra Recordações do escrivão
Isaías Caminha.

Palavras -Chave
Anarquismo, Lima Barreto, Literatura brasileira.

Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
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Dossiê Lima Barreto

Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha


Fabiana Nancy da Silva Araújo e Thiago Duarte de Oliveira

Nasce o anarquismo e o movimento anarquista: políticas, etc.), fosse de ordem política


poder para quê? (estrutura administrativa hierarquizada),
de ordem econômica (propriedade dos
Contra toda forma de autoridade, meios de produção), de ordem social
(integração em uma classe ou num grupo
totalitarismo, absolutismos, hierarquizações e determinado), ou até em ordem jurídica
sistemas que oprimem a liberdade individual, no (a lei). A estes motivos se junta o impulso
sentido mais geral e salvo do conceito popular geral para a liberdade [de onde vem o
do senso comum, está presente o anarquismo. termo libertarismo].
Woodcock (2002, p. 7) introduz o livro citando Começamos este trabalho com a intensão
uma frase de Sebastien Faure (famoso ativista primeira de desconstruir o conceito do senso comum
libertário): “Todo aquele que contesta a autoridade do anarquismo como estado de bagunça, de caos
e luta contra ela é um anarquista”. Podemos, instalado, da natureza humana malévola em si, do
segundo ele, considerar o fio condutor de toda terrorismo e de ser o promotor da desordem. Este
história e surgimento do anarquismo essa questão conceito popular tem uma razão histórica de ser,
de luta contra a autoridade e que é a doutrina que mas o conceito usado nesse trabalho é, conforme
propõe uma crítica, de certa forma destrutiva citado por Woodcock (2002, p. 8) “[o anarquista]
para se tornar construtiva, ao estado da sociedade como um homem que acredita ser preciso que o
vigente, de forma que o anarquismo como um governo morra para que a liberdade possa viver”.
sistema de filosofia social, visando promover É importante ressaltar que essa diferença causa
mudanças básicas na estrutura da sociedade e, uma confusão semântica e conceitual das teorias
principalmente – pois esse é o elemento comum anarquistas com o uso popular do termo; mesmo
a todas as formas de anarquismo – a substituição porque, no surgimento dos termos ‘anarquia’
do estado autoritário por alguma forma de e ‘anarquismo’ que apareceram na Revolução
cooperação não governamental entre indivíduos Francesa de 1789 nos escárnios dos girondinos,
livres (WOODCOCK, 2002, p. 11). principalmente Brissot, e posteriormente mais
Segundo Costa (1980, p. 11), “os fortemente pelo Diretório, contra os jacobinos,
anarquistas, (…), têm em mira apenas o indivíduo, liderados por Robespierre, acusados de serem
sem representantes, sem delegações, produtor, detentores da desordem, criminosos hediondos,
naturalmente em sociedade. Positivamente, eles inimigos das leis, engordados de sangue, entre
preconizam uma nova sociedade e indicam alguns outros escárnios acusatórios.
meios para isto”. O anarquismo, segundo a Posteriormente, pensadores e militantes
definição que Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998, aguerridos contra o autoritarismo imposto
p. 23) é uma adotaram o nome anarquia, primeiramente o
individualista e violento Pierre-Joseph Proudhon,
sociedade, livre de todo domínio
político autoritário, na qual o homem em 1840. Proudhon, inclusive, é o autor da célebre
se afirmaria apenas através da própria frase “A propriedade é um roubo”, contida em seu
ação exercida livremente num contexto livro O que é a propriedade?, (PROUDHON apud
sócio-político em que todos deverão ser
WOODCOCK, 2002, p. 10)
livres. Anarquismo significou, portanto, a
libertação de todo poder superior, fosse ele É importante ressaltar que nem todos
de ordem ideológica (religião, doutrinas,

Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
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Dossiê Lima Barreto

Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha


Fabiana Nancy da Silva Araújo e Thiago Duarte de Oliveira

os grandes nomes anarquistas, como, por métodos revolucionários: esta última se utilizava
exemplo, Godwin, Stiner e Tolstói, este último da não violência e das greves como protesto.
sendo considerado pela crítica mundial um dos No anarco-comunismo seriam abolidos toda
maiores escritores anarquista de acordo com forma de propriedade privada e Estado e os
Bezerra (2010), se utilizaram do termo em suas trabalhadores tomariam o poder e se utilizariam da
informações ante as relações de poder impostas democracia direta para todas as decisões políticas.
criando, para isso, sistemas antigovernamentais. Os anarcossindicalistas acreditavam que a via
Mas, pela conceituação que estamos abordando da atuação nos sindicatos seria uma ferramenta
aqui, esses nomes podem ser considerados como para alterar a sociedade, mudando o capitalismo
anarquistas por estarem alinhados no sentido instalado e o Estado e fundando democraticamente
de irem de encontro ao sistema social vigente e uma nova sociedade, esta autogerida pelos próprios
propondo novas formas de organização social e, trabalhadores.
também, política. Há também o anarquismo individualista,
O que Proudhon deseja construir, onde pensadores e atuantes dessa vertente não
conforme descrito por Woodcock (2002), é uma acreditam na integridade de nenhuma forma de
sociedade reunida em grandes federações de associação, mesmo cooperativista, exaltando o
comunas e cooperativas operárias, tendo como caráter individual; além dos anarco-pacifistas,
base econômica onde indivíduos e pequenos representado ilustremente por Tolstói, e que,
grupos disponham de seus próprios meios de inclusive, influenciou as ideias de Gandhi,
produção e ligados por contratos e permuta de cogitavam a não-resistência. Para eles, sendo
créditos mútuos que asseguraria a todos o produto contrários a qualquer forma de poder, e acreditando
de seu próprio trabalho. ser a violência também uma forma de poder, eram
Desse ideal imaginado por Proudhon, avessos a tais manifestações.
surgem correntes de pensamento anarquistas Podemos constatar um perfil próximo
que se diferenciam principalmente pela forma de ao positivismo em alguns ideais anarquistas, no
organização econômica e pelo modo de militância, sentido, conforme citado por Woodcock (2002),
violenta ou não. Essa vertente de Proudhon, de entenderem que existe um progresso no
posteriormente adotada por Kropotkin, pode desenvolvimento das sociedades proporcionado,
ser chamada de “mutualismo” e “coletivismo” entre outras coisas, pelos avanços científicos e
respectivamente, tendo como base a ideia das pela questão das sociedades se firmarem quase que
comunas e cooperativas e a ênfase na ideia da naturalmente, conforme descrito por Proudhon
propriedade em mãos de instituições voluntária apud Woodcock (2002, p. 23) em que as sociedades
que assegurariam aos trabalhadores o produto se desenvolvem “estimuladas pelo progresso
integral de seus trabalhos. das ciências, por novos inventos e pela evolução
Surgira também o anarco-comunismo ininterrupta das ideias cada vez mais elevadas”,
e, posteriormente, o anarcossindicalismo, duas onde tais homens não são governados por outros
correntes, por assim dizer, mais focada na homens, mas em contínua evolução – tal como
situação da classe proletária da época, tendo como notado na Natureza. Porém, é com cuidado que
principal diferença a forma de manifestação ou nos arriscamos a considerar o anarquismo como

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uma vertente progressista, pois, não define tão ganhando impulso somente com a imigração.
claramente tal progresso e não define com exatidão Sendo assim, o proletariado brasileiro é formado
um devir. Woodcock (2002, p. 25) menciona que: não somente por artesões e camponeses, como
ocorrera na Europa na transição do feudalismo
a maioria dos homens de esquerda
do século XIX falavam em progresso. para o capitalismo, mas, sim, por indivíduos
Godwin sonhava com homens que predominantemente estrangeiros.
se desenvolveriam indefinidamente,
O processo de industrialização no Brasil foi
Kropotkin procurava diligentemente
estabelecer ligações entre o anarquismo e lento e concentrou-se quase que na sua totalidade
a evolução e Proudhon chegou a escrever na região sul do país. Há um aceleramento da
uma Philosophie du Progrés [Filosofia do industrialização a partir de 1880 provocando assim
Progresso].
uma maior demanda por força de trabalho. A partir
Já os que se consideravam marxistas, daí, a imigração cresce ainda mais.
utilizando um anacronismo neste termo, negavam A partir de 1890 em São Paulo e Rio de
a existência da evolução nos ideais anarquistas, Janeiro a classe operária no Brasil já era formada
pois, segundo eles, estes ‘flutuavam no ar’ sem em sua maioria por imigrantes. Tal como ocorrido
nenhuma definição legítima ou concreta dos ideais na Europa, a industrialização foi sustentada a
anarquistas em relação à história. partir da exploração da mão de obra, assim “o
Tais correntes anarquistas foram se proletariado nascente é vítima de uma exploração
espalhando por todo mundo, inclusive para intensiva, com condições de vida e trabalho
o Brasil, onde se firmou mais claramente a precárias, jornadas de trabalho extensas e uso da
partir das décadas de 30 do século XX, embora forca de trabalho feminina precoce com salários
anteriormente a esse período já se mostrasse baixos”. (DEMINICIUS e FILHO, 2006, p. 27)
claramente presente na literatura e mídias da época, Os trabalhadores vivam em condições
muitas censuradas pela polícia e pelo governo, mas insalubres, tanto dentro como fora das fábricas,
que contribuíram enormemente para a difusão dos as violências praticadas dentro da fabrica contra
ideais anarquistas. mulheres e menores eram constantemente
relatadas na imprensa operária. Não havia nenhuma
O anarquismo no Brasil: contra as forças
representatividade da classe operária na política
produtivas hierarquizadas e a exploração do
institucional, sendo esta vigiada e controlada pelo
trabalhador brasileiro
Estado. As associações tornaram-se cada vez mais
“O anarquismo brasileiro, em sua origem urgentes, surgindo às ideias sindicalistas, socialistas
não era força hegemônica no movimento operário, e principalmente anarquistas brasileiros.
como era uma força política poderosa e que estava
Segundo Deminicis e Filho (2006),
presente nas lutas operárias de forma intensiva”
grande parte dos imigrantes europeus que vieram
(DEMINICIUS e FILHO, 2006, p. 23). O
pra região de São Paulo e Rio de Janeiro eram
pensamento anarquista no Brasil inicia-se junto
italianos, o que explica a hegemonia anarquista no
à formação da classe operária, dada a partir da
movimento operário brasileiro, devido ao fato de
abolição da escravatura. Surge então o trabalho
que o movimento operário italiano era marcado
assalariado que desenvolve lentamente, porém

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fortemente pelo anarquismo. e comunidades vizinhas. O sonho anarquista e sua


O anarquismo cumpriu um papel magnífica experiência tiveram então seu fim – sob
importante na consolidação dos pensamentos o pretexto de procurar um criminoso refugiado,
sindicalistas no Brasil, tanto a partir da divulgação destruíram a colônia.
de suas ideias tanto por passar conhecimento No final do século XIX as associações e
referente às conexões das lutas do passado com as movimentos anarquistas cresciam cada vez mais, eles
lutas do presente na Europa. se associavam através de centros de estudos, centros
O anarquismo no Brasil não se limitou culturais, escolas para alfabetização, grupos por
aos sindicatos, manifestações e ações grevistas. afinidades, etc. Muitas associações se ramificaram:
Em meados de 1890 a partir da doação de terras surgiram as associações dos sapateiros, vidraceiros,
feitas por Dom Pedro II é fundada a Colônia tecelões, assim o anarquismo passou a ser “a ideia
Cecília, tentativa de anarquistas de fundar uma mestra da luta de classes”. (RODRIGUES, 1984
comunidade ‘desierarquizada’ onde os meios de apud DEMINICIUS e FILHO, 2006)
produção fossem de todos para todos, e as ações, Neste período surgem os principais jornais
debatidas entre todos e realizadas sempre de e periódicos anarquistas. O anarcossindicalismo
comum acordo. no Brasil desenvolve-se e em 1906 é realizado o
primeiro Congresso Operário Brasileiro. Deste
Tudo se resolvia em assembleias abertas,
gerais, com a participação dos habitantes congresso resultou na COB (Confederação
da comunidade (...). Não havia donos, Operária Brasileira) que colocava como seus
superioridades culturais e profissionais objetivos a defesa dos interesses dos trabalhadores,
nem figuras inferiores dentro da colônia
(...). Cada membro da comunidade, o estudo e a divulgação dos meios de participação,
adaptado a nova forma de trabalho, lutava e a produção de um jornal intitulado A voz do
lado a lado com seus companheiros, trabalhador com o intuito de reunir publicações
durante o dia de enxada na mão, e, à
e informações acerca das questões operárias e
noite, trocavam ideias, debatiam interesses
coletivos, sem esquecer o anarquismo, denunciar as condições de trabalho em todo o
desafiado a viver na prática. Um homem, país, neste jornal sob o pseudônimo de Isaias
ali, valia um homem! (RODRIGUES, Caminha, Lima Barreto era um dos colaboradores
1984 apud DEMINICIUS e FILHO,
(NASCIMENTO, 2010).
2006, p. 35)
Os movimentos grevistas, tendo os
Os obstáculos encontrados pelos moradores anarquistas como os principais idealizadores,
da Colônia Cecília como: as individualidades foram se desenvolvendo e em 1917 ocorre uma
relacionadas aos valores burgueses e as intempéries greve geral envolvendo milhares de operários. De
naturais que prejudicavam a produção agrícola, longa duração, a greve é marcada por diversos
não foram suficientes para acabar com a colônia, conflitos, confrontos com policiais e mortes. As
porém outros fatores externos contribuíram para greves foram difundidas por todo o país, sendo
seu desfecho. Com o fim do império de Dom Pedro que no Rio de Janeiros cerca de cinquenta mil
II os republicanos passaram a atacar a colônia, trabalhadores cruzaram os braços.
cobrando altos impostos e obrigando os colonos
a trabalharem cada vez mais, inclusive em fazendas A greve geral é, sem nenhuma dúvida, uma

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arma poderosa nas mãos do proletariado; Dona Amália, mãe de Lima Barreto
ela é ou pode ser um modo e a ocasião de morreu quando ele tinha apenas sete anos, vitima
desencadear uma revolução social radical.
Entretanto, eu me pergunto se a ideia da de tuberculose. “A morte de Amália há de descer
greve geral não fez mais mal do que bem como uma sombra no coração do filho mais velho.
à causa da revolução. (MALATESTA, Sombra que nunca mais se dissipará”. (BARBOSA,
1989, p. 107) 2002, p. 50)
Os movimentos operários foram cada vez Lima guardou pra sempre a imagem da
mais se burocratizando, o Estado antes indiferente mãe morta, boa parte de sua revolta, violência e
às causas operárias passou a interferir através descrença no mundo virá da imensa tristeza que
de legislações reguladoras. A partir de 1919 os sempre o assombrará a partir desse triste episodio
partidos políticos também passam a interferir, de sua vida. Talvez pela vida dura sem os carinhos
burocratizando ainda mais as associações e os de sua mãe e pelo peso de ser o irmão mais velho,
sindicatos. O processo capitalista no Brasil Lima Barreto sempre “reagira com extremada
e o aprofundamento das instituições estatais, violência, antes as injustiças do mundo e as
também contribuíram significativamente para o incompreensões das pessoas quo o cercam, com
enfraquecimento dos ideais anarquistas. violência às vezes desmedida e inconsequente”.
Lima Barreto: vida e obra (BARBOSA, 2002, p. 61)
Após a morte de sua mãe vai para escola
Nasceu em 13 de Maio de 1881, Afonso pública, sendo sempre um aluno aplicado. Em 13
Henriques de Lima Barreto, neto de uma negra de Maio de 1888, dia do seu aniversario de sete
escrava liberta e de um português que nunca anos ocorreu a abolição da escravatura, fato esse
reconheceu seu pai, sua mãe também era mulata. que passou despercebido, pois conforme Barbosa
Lima nasceu sobre um “signo ruim”, numa sexta- (2002), sendo um morador do Rio de Janeiro
feira 13 no dia de Nossa Senhora dos Martírios, onde os escravos já rareavam, Lima Barreto nunca
assim, continua BASTOS (2010) “o martírio conheceu um escravo e desta forma não imaginava
de Lima parece advir mais da época e local de ser a escravidão uma “instituição vexatória”
nascimento (a retrógada sociedade brasileira de fins de “aspectos hediondos”. Sempre bom aluno
do século 19) que da data supostamente agourenta e contando com o incentivo do seu pai, Lima
em que por acaso se deu”. conquistou boas notas na escola unindo seu desejo
O pai de Lima era tipógrafo e sua mãe de estudar e o sonho do pai de vê-lo na Escola
professora primaria, seu pai não media esforços Politécnica.
para sustentar os filhos trabalhando dia e noite, era Enfim em março de 1897, Affonso
muito preocupado com a educação formal, já que Henriques Lima Barreto era estudante da Escola
não conseguiu realizar seu sonho de ser medico Politécnica. Porém, era incapaz de se interessar
devido à necessidade de trabalhar para custear os por assuntos que não gostava e cada vez mais,
gastos com a família, se esforçava para que seus foi mostrando que o fato de estudar na Escola
filhos, em especial seu primogênito Affonso, Politécnica dava-se mais pelo desejo de seu pai do
se tornasse doutor e não passasse por todas as que por sua vontade, ele era um amante da filosofia
humilhações e privações as quais passou. e não conseguia ocupar sua cabeça com teoremas e

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conjugados, desta forma, e além das perseguições Lima chega a fundar uma revista Floreal
sofridas por um dos professores e a loucura de a qual , permitia liberar ainda mais seus desejos
seu pai que o levou a se ver obrigado a assumir a de ser escritor/jornalista, nesta revista chegou a
função de arrimo de família, não tardou para que publicar dois capítulos do futuro livro Recordações
reprovasse em diversas matérias de exatas e fosse do escrivão Isaías Caminha. Porém a revista não
obrigado a abandonar a Politécnica. Em 1903 após passa da quarta edição e tomado por sentimento
prestar concurso público foi nomeado a um cargo de tristeza e depressão, passa a buscar na bebida
na Secretaria da Guerra. alivio para seus tormentos.
Desde a época da Politécnica, Lima Barreto Consegue publicar sua primeira obra
já demonstrava sua inclinação aos pensamentos literária Recordações... em Portugal devido a não ter
libertários e progressistas, havia sido colaborador localizado no Brasil quem a quisesse publicar, a
de um periódico chamado A Lanterna que se partir daí, dado o conteúdo pessoal do livro e suas
intitulava de “órgão oficioso da mocidade de referências a figuras importantes da cena jornalista
nossas escolas superiores” (BARBOSA, 2002, p. da época, seu caráter denunciante e desmoralizante
106), ali neste jornal já despejava sua revolta contra acerca dos acontecimentos e pessoas, Lima já
as instituições, contra os professores e contra seus discriminado pela sua condição de mulato e pobre,
colegas, dos quais, praticavam comportamentos passa a ser também um autor não quisto.
preconceituosos em relação a ele. Além de Recordações... Lima escreveu
Como já dito anteriormente, por volta de simultaneamente Morte de M.J. Gonzaga de Sá e logo
1900 através dos imigrantes italianos, chega ao adiante sua mais famosa obra O triste fim de Policarpo
país os ideais anarquistas, que contribuíram para o Quaresma, segundo o documentário da TV Escola
inicio de publicações tanto de romances quanto de Lima Barreto – Vida e obra, só a partir de seus escritos
contos com conteúdo social (BARBOSA, 2002). é que a figura do pobre e do suburbano passa a
existir no espaço elegante e nobre da literatura. Nas
Lima Barreto revelou simpatia pelo
anarquismo em vários dos seus artigos, suas obras ele retrata temas como, preconceito,
crônicas, romances e ensaios. Em Palavras discriminação das mulheres, ecologia, desfiguração
de um snob anarquista, publicado em da paisagem, mostrando-se um escritor à frente do
1913, em A Voz do trabalhador, tenta
mostrar plausibilidade dessa teoria política, seu tempo, de modo que nos dias atuais podemos
no contexto social brasileiro, contrário verificar facilmente a atualidade de suas obras.
aos grandes jornais, que a consideravam Em 1911 seus três principais livros já estão
um movimento alienígena, sem raízes na
‘cultura brasileira’. Entre os vários títulos publicados, os problemas com a bebida aumentam
encontrados na biblioteca do autor, e assim pode-se traçar o começo de um declínio na
destacam-se as obras de Hamon, Ethz sua produção literária.
Bacher, Max Nordou, Malatesta, Elisée
Reclus e, principalmente, Kropotkin. Suas A falta de estimulo e a hostilidade do
fontes documentais dão conta da afinidade ambiente, aliados ao forte complexo e
de Lima Barreto com o pensamento a uma serie de outros fatores, dos quais
anarquista, através da utilização marcante não deve ser esquecido o da tragédia
das chamadas linguagens negadoras: doméstica, transformaria o adolescente
paródia, ironia, sátira, etc. (DEMINICIS cheio de sonhos num pobre homem,
e FILHO, 2006 p. 147) viciado no álcool, que lhe consome

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não somente a saúde, como em grande sair, sem poder praticar suas andanças pela cidade
parte lhe sacrifica a carreira de escritor. nem compartilhar da companhia das pessoas
(BARBOSA, 2002, p. 223)
simples as quais tanto gostava. Morreu em 1° de
O uso exagerado da bebida matou Lima novembro de 1922 no seu quarto em meio aos
lentamente, passava dias nas ruas, não se alimentava, seus livros e suas últimas palavras foram perguntar
não tardou a começar a apresentar sinais físicos de se seu pai estava bem, estava sentado abraçado a
seus abusos. (BARBOSA, 2002). Em 1914 ocorre uma revista francesa. Seu velório foi disputado
sua primeira internação num hospício por causa de por “gente desconhecida dos subúrbios. Amigos
alucinações derivadas do excesso de bebidas. humildes.” (BARBOSA, 2002 p. 358)
Por volta de 1917 passa a contribuir No seu leito de moribundo, João
mais ainda com o movimento anarquista, seus Henriques sentira que qualquer coisa
pensamentos libertários se expandiam, saiam cada diferente ocorrera na casa. Como que
recobrando a razão por um instante,
vez mais da obra literária e “embora sem participar perguntara à filha, no dia seguinte:
da ação direta, dá ao movimento, que cresce a Que foi que aconteceu? Afonso morreu?
olhos vistos, o melhor do seu esforço de escritor e Evangelina procurou acalmá-lo, mas
em vão. João Henriques tinha os olhos
jornalista” (BARBOSA, 2002, p. 268), o medo de
secos e duros. Logo depois, entrava em
perder seu emprego público não o atormenta mais, agonia. Nada mais restava a esperar...
seus irmãos já eram adultos e trabalhavam tendo Morreu quarenta e oito horas depois do
possibilidades de participar do custeio da casa e filho. Foi enterrado na mesma campa. E,
no túmulo humilde, eles repousam para
cuidar também de seu pai, há tempos, entregue a sempre, novamente unidos, na morte
loucura. Assim, seus anseios de participar da luta como na vida. (BARBOSA, 2002, p. 360)
social cresceram. Passa a denunciar tudo ferozmente,
contribui ainda mais para a imprensa anarquista. Ideais anarquistas na obra Recordações do
Através desse sentimento de liberdade que o toma escrivão Isaías Caminha
entrega-se cada vez mais a bebida, é internado
Tendo em vista que os ideais básicos
novamente em 1919, continua contribuindo com
da anarquia, conforme aqui conceituado, seja a
a imprensa operária e devido a suas insanidades, é
liberdade individual como garantia indispensável
aposentado do serviço público.
para qualquer sociedade, e que muitos pensadores
Após a aposentadoria, passa a escrever
do anarquismo são aguerridos e munidos de
para diversos jornais: Careta, A.B.C., Hoje, Tio-Jornal
críticas contra o status quo, alguns até mesmo
entre outros. “Nos últimos anos, como em toda a
com o pensamento de que se é preciso ‘destruir’
vida, Lima Barreto permanece fiel à sua vocação
o estado atual da sociedade para se construir
de escritor. Ao mesmo tempo em que luta para se
um novo estado, e entendendo também Lima
libertar do vicio que o degrada, agarra-se à literatura
Barreto como um artista literário dotado de tais
como a um resto de náufrago” (BARBOSA, 2002,
características (BEZERRA, 2010), podem-se
p. 320).
notar na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha a
Lima Barreto foi vencido pelo alcoolismo presença de algumas passagens que, ao nosso olhar,
e consequentemente pela doença, passou seus mesmo que sutilmente, perpassa pelas questões
últimos momentos em casa, recluso, sem poder

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anarquistas. Em alguns trechos Lima Barreto, na Com a ideia de se tornar um homem


voz da personagem Isaías Caminha, deixa claro também intelectualizado, e movido também por
seu pensamento de inconformismo perante um senso competitivo contra seu amigo de sala,
as injustiças que ele presencia, algumas vezes menos intelectualizado, mas que se deu bem indo
justificando suas causas pelas relações exacerbadas estudar no Rio de Janeiro, Isaías pede conselho
de poder, rebeldia às leis e traços de personalidade a algumas pessoas, dentre elas o Tio Valentim.
que demonstram forte senso crítico. Importante ressaltar que o Tio Valentim era um
Outra característica importante a ser antigo militante do Partido Liberal, ele sempre
observada na obra, conforme explorado por contava ao Isaías suas “façanhas, bravatas
Bezerra (2010, p. 90), é a forma literária do autor. portentosas, levadas a cabo, pelos tempos que
Segundo ela, fora, nas eleições, esteio ao Partido Liberal”
BARRETO (2010, p. 72). O Partido Liberal foi
é necessário mostrar (…) [que] as ideias
um partido político brasileiro do Período Imperial,
anarquistas e os problemas sociais da
jovem República, foram filtrados pela tinha como bandeira a não simpatização do regime
visão do artista e se configuram na absolutista. Eram contrários às ideias do Partido
estrutura narrativa de sua obra, tornando- Conservador no modo de lidar com a realidade
se muito mais relevantes como elementos
estéticos do que como simples fatos social. Embora defendendo o monarquismo, foi
sociais. umas das primeiras instituições contrárias às ideias
absolutistas centralizadoras e conservadoras do
Bezerra (2010, p. 93) também afirma que
poder nacional. É interessante notar também que,
essa liberdade, essa rebeldia diante das leis, de acordo com Barbosa (2002), o pai de Lima
é um traço recorrente na obra de Lima Barreto era um dos colaboradores do Partido
Barreto, provavelmente consequência de
Liberal. Há esta evidência de que o Tio Valentim
sua simpatia pelas ideias anarquistas. Essa
atitude não se limita à estética, como já seria a figura do pai de Lima Barreto, mas que na
se observa; trilha praticamente toda a vida narrativa se tornou o tio de Isaías.
do artista e acaba por se refletir em sua
obra, principalmente em Recordações do Resolvendo tentar a vida no Rio, Isaías
escrivão Isaías Caminha. embarca no trem, onde sofre seu primeiro ato
de preconceito. Sem saber exatamente a causa,
Lima Barreto inicia sua narrativa observando se indigna com a situação, causando-lhe espanto
como foi a infância de Isaías Caminha. Ele se e iniciando suas críticas posteriores. Lá conhece
tornou um homem intelectualizando, comparando Laje da Silva, que será importante em sua estadia
a simplicidade de sua mãe, sendo que esta não no Rio. Este o convida para os lazeres que a vida
conseguia explicar as grandes coisas do mundo, carioca pode proporcionar.
com o sacerdócio e bom manejo das palavras de
No botequim do teatro, Raul Gusmão
seu pai, dando a causa dessa característica como
pronuncia uma frase que fica marcada na mente de
sendo os estudos. Seu pai também lhe contara certa
Isaías, uma frase que demonstra certa inquietude
vez sobre as aventuras do grande homem que fora
ante o rebuscamento efêmero das castas mais altas
Napoleão, arregalando-se os olhos e admirando-se
em prol de uma liberdade que só se encontra na
pela postura desse grande guerreiro.
Natureza:

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Os antigos bebiam pérolas dissolvidas em honestidade, a consideração, a beleza e


vinagre. Não eram lá de gosto muito fino o saber. Sem nós não há nada disso; nós
e a extravagância nada significativa. Eu somos, além de tudo, a majestade e o
bebo a verde esmeralda sadia, emblema domínio!’ (BARRETO, 2010, p. 103)
da mater Natureza, num copo de xerez.
Em vez de pérola mórbida, doença de A segunda, a passagem do exército pela rua,
um marisco, no acre vinagre, bebo o como demonstrado do seguinte trecho, também
verde dos prados, a magnífica coma das
palmeiras, o perfume das flores, tudo que se faz como uma característica que demonstra
o verde lembra da grande mãe augusta! fortemente a presença de um pensamento
(BARRETO, 2010, p. 86) anarquista do autor no sentido de ser indiferente
ante as forças armadas como forma de estabelecer
Após alguns acontecimentos, dentre eles,
relações de poder:
a ida ao tribunal em busca do doutor Castro e o
encontro com o Senador Carvalho no bonde, Isaías Era talvez a primeira vez que eu vi a
demostra apreço pelo que ele idealiza que seja a força armada do meu país. Dela, só tinha
até então vagas notícias. Uma, quando
profissão de legislador, homens enormemente encontrei, num portal de uma venda,
capacitados em julgar e determinar leis que sejam semiembriagado civil e militar, um velho
úteis e benéficas para todos. Posteriormente se soldado; a outra, quando vi a viúva do
general Bernardes receber na Coletoria
indigna com a frieza e indiferença desses homens
um conto e tanto de pensões e vários
em seus ofícios e ante os problemas sociais que títulos, que lhe deixara o marido, um
eles lidam todos os dias. plácido general que envelhecera em várias
comissões pacíficas e bem retribuídas…
Conhece então o doutor Ivã Gregoróvitch
O batalhão passou de todo; e até a
Rostóloff, personagem que terá importância na própria bandeira que passara me deixou
narrativa. Gregoróvitch na história é um jornalista perfeitamente indiferente… (BARRETO,
amigo de Laje da Silva. Em nota de rodapé da edição 2010, p. 104)
utilizada neste trabalho (BARRETO, 2010, p. 100, Conforme vai decorrendo a história, após
nota 21), este jornalista na vida real corresponderia as tentativas frustradas de encontrar o doutor
ao Mario Cattaruzza, jornalista italiano radicado no Castro, e no receio de acabar seu dinheiro, Isaías,
Brasil e que fundou, “junto com Vitalino Rotteline, ao conversar com Laje da Silva, questiona sobre
o jornal anarquista Il Fanfula, fechado pela polícia o que é o jogo do bicho. Laje então, pelo diálogo
no ano seguinte”. travado, se posiciona contra a forma da polícia agir,
Em determinado momento, após esse julgando-a como executora de vinganças. A polícia
encontro e estando sozinho subindo a rua, se sente havia lhe pregado uma cilada, colocando notas
de todo indiferente ante dois fatos. O primeiro a falsas em seu chapéu. Sua posição fica clara de
indiferença diante das vitrinas das lojas, onde denúncia contra as autoridades, conforme diálogo
criticou em seus pensamentos a petulância e a a seguir:
efemeridade dos artigos à venda:
Isaías: – Foi preso?
(…) As botinas, os chapéus petulantes, Laje: – Preso, só?! Fui esbordoado, metido
o linho das roupas brancas, as gravatas numa enxovia, gastei dinheiro… O diabo!
ligeiras, pareciam-me dizer: ‘Veste- E sabe por que tudo isso?
me, ó idiota! nós somos a civilização, a Isaías: – Não.

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Laje: – Porque eu apoiava a oposição lá de vingança pelo que estaria prestes a acontecer.
no meu município… É isto a polícia, no
Brasil… Eu posso falar: sou brasileiro…
Naquele dia, quebrou sua rotina, o que
A polícia no Brasil só serve para exercer teria provocado posteriormente a intimação por
vinganças, e mais nada. (BARRETO, suspeita de roubo. Saiu de casa mais cedo na
2010, p. 115) tentativa frustrada de encontrar o doutor Castro.
Após descobrir em uma notícia que o Na volta, foi almoçar com seu amigo Gregoróvitch.
doutor Castro, que tanto ele procurava, não estaria Nesse encontro, passou a conhecer-lhe mais.
mais na cidade, começa a despertar em Isaías Gregoróvitch “tinha cinqüenta anos e sentia-se
um enorme sentimento de revolta contra todos absolutamente sem pátria, livre de todas as tiranias
os joguetes que os homens poderosos fazem as morais e psicológicas que essa nação contém em
pessoas humildes passarem. Barreto (2010, p. 122) si” (BARRETO, 2010, p. 124). Essa passagem
cita um trecho bastante significativo e que vão ao demonstra a característica anarquista do amigo de
encontro dos ideais anarquistas, é um momento Isaías. Em outro trecho, Isaías, comentando sua
que sofre um safanão de um sujeito e começa a admiração pelo recente amigo, cita que ele fez-
refletir: lhe “notar que era preciso difundir na consciência
coletiva um ideal de força, de vigor, de violência
Esse incidente fez-me voltar de novo mesmo, destinado a corrigir a doçura nativa de
aos meus pensamentos amargos, ao ódio
já sopitado, ao sentimento de opressão todos nós” (BARRETO, 2010, p. 125). Podemos
da sociedade inteira… Até hoje não me notar que, a partir daqui, muitas das ideias libertárias
esqueci desse episódio insignificante de Isaías foram de todo incitadas pelas conversas
que veio reacender na minha alma o
desejo feroz de reinvindicação. Senti-me
com Gregoróvitch.
humilhado, esmagado, enfraquecido por Na delegacia, sofre um ato discriminatório
uma vida de estudo, a servir de joguete, pela sua cor. Isaías, escrevendo essas memórias,
de irrisão a esses poderosos todos por aí.
Hoje que sou um tanto letrado sei que lembra-se com muita dor desse e de outros
Stendhal dissera que são esses momentos acontecimentos e discerne os fatos que o levaram
que fazem os Robespierres. O nome não a ter pensamentos de tais maneiras. Nessa
me veio à memória, mas foi isso que eu
ocasião, ficou indignado ante o descompasso
desejei chegar a ser um dia.
que um homem, representante das autoridades e
A figura de Robespierre aparece aqui como do governo, do que tinha de certa forma poder
sendo uma imagem a ser atingida pelos anseios de legitimado e que deveria ter consciência jurídica
Isaías, uma figura de liderança em prol das causas de seus direitos, agirem dessa forma. Após uma
populares e que no cerne da Revolução Francesa pequena discussão, sem motivos para isso, Isaías
fora acusado de anarquista por Brissot e pelo é preso a mando do delegado, injustamente. Todo
Diretório, conforme mencionado por Woodcock seu pensamento de patriotismo, recém-erguido
(2002). Uma figura de inconformidade contra as por seu amigo, se desfaz. Pensou ironicamente: “A
causas absolutistas e de luta pelos seus ideais. pátria!”.
Ao final do capítulo IV, em reflexões que Lima Barreto mistura reflexões pessoais
não deixa claro quem está falando, Lima Barreto ou com as reflexões da personagem ao longo da obra.
Isaías Caminha, deixa evidentes seus desejos atuais Ele, enquanto Lima Barreto, critica os literatos

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dos jornais. Justifica-se escrevendo para denunciar A descrição e características físicas e da


os problemas porque passou e tenta inaugurar personalidade de Leiva se aproxima da
de Luiz Edmundo que, na juventude,
uma nova forma de escrita, se desvencilhando freqüentava a mesma roda da Café
das normas padrões de beleza e se utilizando de Papagaio, no centro do Rio, junto
uma forma acessível para todos. Entre suas obras com Lima Barreto. Os amigos de
Leiva reúnem características de outros
favoritas, Barreto (2010, p. 137) menciona a obra
jovens iconoclastas, grupo apelidado
A Guerra e a Paz, de Tolstói, uma importante obra de ‘Esplendor dos amanuenses’, que
em formato de romance que analisa as estruturas mesclavam ideias anarquistas e positivistas,
aristocráticas russas. aos quais se associam também alguns
poetas simbolistas. (BARRETO, 2010, p.
Após ter saída da delegacia, Isaías, absorto 150, nota 31)
em pensamentos e reflexões, se demonstra injuriado
e encalacrado ante os acontecimentos, não consegue A passagem a seguir sugere um perfil
se conformar com os acontecimentos recentes, não anarcomunista do amigo de Isaías, munido de
entende porque ele, uma pessoa tão aplicada aos ideias revolucionárias e socialistas:
estudos e com anseios morais tão nobres pudesse Como revolucionário, dizia-se socialista
sofre tantas injustiças daquela forma. “O que me adiantado, apoiando-se nas prédicas e
brochuras do senhor Teixeira Mendes,
fazia combalido, o que me desanimava eram as
lendo também formidáveis folhetos de
malhas de desdém, de escárnio, de condenação em capa vermelha, e era secretário do Centro
que me sentia preso”, “(...) na delegacia, na atitude de Resistência dos Varredores de Rua.
do delegado, numa frase meio dita, num olhar, eu Vivia pobremente, curtindo misérias e
lendo, entre duas refeições afastadas,
sentia que a gente que me cercava, me tinha numa as suas obras prediletas e enchendo a
conta inferior” (BARRETO, 2010, p. 141) e cidade com os longos passos de homem
de grandes pernas. (BARRETO, 2010, p.
(...) Aquele meu fervor primeiro tinha 151)
sido substituído por uma apatia superior
a mim. Tudo me parecia acima de minhas Em outras passagens onde Isaías Caminha
forças, tudo me parecia impossível; e que
não era eu propriamente que não podia e seu amigo Leiva conversam, sempre fica claro a
fazer isso ou aquilo, mas eram todos os presença de ideias revolucionárias e convergentes
outros que não queriam, contra a vontade aos tipos de anarquismo e, algumas vezes, o
dos quais a minha era insuficiente e débil.
socialismo. Em um diálogo travado entre Agostinho
(BARRETO, 2010, p. 149).
e Leiva, Agostinho se admira e se questiona sobre
Nota-se que a partir desse momento essa nova ordem social proposto por Leiva e este
começam a surgir no protagonista esses sentimentos com seu argumento demonstra que a realidade é
de inconformidade com o que está posto e um espaço de exploração do homem da massa
começa a ter insights de revoltas e pensamentos de pelo homem detentor do poder, alienando àqueles
crítica ante o sistema. Posteriormente conhece o uma falsa felicidade:
Abelardo Leiva, do qual passa a ter muita afinidade
Agostinho: – Mas o senhor o que quer
e admiração pelos seus pensamentos de poeta e é desordem, é anarquia, é extinção da
revolucionário. Em nota de rodapé: ordem social...
Leiva: – Mas é isso mesmo, não quero

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outra coisa! Pois o senhor acha justo que em O Globo, a convite de seu amigo Gregoróvitch,
esses senhores gordos, que andam por aí, sempre fica muito claro suas críticas ante a imprensa
gastem numa hora com as mulheres, com
as filhas e com as amantes, o que bastava e as relações de poder que se encontra dentro
para fazer viver famílias inteiras? O senhor e fora dela. Esse fato fica claro na passagem a
não vê que a pátria não é mais do que a seguir, quando Leiva dialoga com Plínio de Andrade,
exploração de uma minoria, ligada entre
suposto pseudônimo do próprio Lima Barreto:
si, estreitamente ligada, em virtude dessa
mesma exploração, e que domina fazendo Plínio: – (…) A imprensa! Que quadrilha!
crer à massa que trabalha para a felicidade (…) Nada há nada tão parecido como o
dela? O público ainda não entrou nos pirata antigo e o jornalista moderno: a
mistérios da religião da pátria... Ah! mesma fraqueza de meios, servida por
quando ele entrar! (BARRETO, 2010, p. uma coragem de salteador; conhecimentos
156 e 157) elementares do instrumento que
lançam mão e um olhar seguro, uma
No trecho seguinte, Leiva, aos moldes adivinhação, um faro para achar a presa
proposto por Proudhon apud Woodcock (2002), e uma insensibilidade, uma ausência de
no pensamento anarquista, na questão da não senso moral de toda a prova… E assim
dominam tudo, aterram, fazem que todas
necessidade do Estado para governar a vida social,
as manifestações de nossa vida coletiva
pois, tal como acontece com os outros seres sociais dependam do assentimento e da sua
da Natureza, a raça humana tende a uma vida social aprovação… Todos nós temos que nos
tão natural quanto por si só, exclama: submeter a eles, adulá-los, chama-los
gênios, embora inteiramente os sintamos
Leiva: – Não há na natureza nada ignorantes, parvos, imorais e bestas…
que se pareça com a nossa sociedade (…) E como eles aproveitam esse
governada pelo Estado... Observe o poder que lhes dá a fatal estupidez das
senhor que todas as sociedades animais multidões! (…) trabalham para a seleção
se governam por leis para as quais elas de mediocridades.
não colaboraram, são como preexistentes (…)
a elas, independentes de sua vontade; e só Plínio: – (…) hoje, é a mais tirânica
nós inventamos esse absurdo de fazer leis manifestação do capitalismo e a mais
para nós mesmos – leis que, em última terrível também… É um poder vago, sutil,
análise, não são mais que a expressão da impessoal, que só poucas inteligências
vontade, dos caprichos, dos interesses de podem colher-lhe a força e a essencial
uma minoria insignificante... No nosso ausência da mais elementar moralidade,
corpo há uma multidão de organismos, dos mais rudimentares sentimentos
todos eles se interdependem, mas vivem de justiça e honestidade! São grandes
autonomamente sem serem propriamente empresas, propriedade de venturosos
governados por nenhum, e o equilíbrio se donos, destinadas a lhes dar o domínio
faz por isso mesmo... O sistema solar... sobre as massas, em cuja linguagem
Na natureza, todo o equilíbrio se obtém falam, e a cuja inferioridade mental vão
pela ação livre de cada uma das forças ao encontro, conduzindo os governos, os
particulares... caracteres para os seus desejos inferiores,
(...) para os atrozes lucros burgueses… Não
Leiva: – Eu quero a confusão geral, para é fácil a um indivíduo qualquer, pobre,
que a ordem natural surja triunfante e cheio de grandes ideias, fundar um que os
vitoriosa! (BARRETO, 2010, p. 157) combata… Há necessidade de dinheiro;
são precisos, portanto, capitalistas que
Quando Isaías já se encontra trabalhando determinem e imponham o que deve fazer

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num jornal… (…) (BARRETO, 2010, p. A irritação do espírito popular que eu


163, 164 e 165) tinha observado na minha própria casa
não me fez pensar nem temer. Julguei-a
Em certo momento, Isaías faz uma crítica à especial àqueles a quem tocava e nunca
imprensa: “era a imprensa, a onipotente imprensa, que aquelas observações ingênuas se
tivessem transformado em grito de guerra,
o quarto poder fora da Constituição!” (BARRETO,
em amuleto excitador para multidão toda.
2010, p. 193) (BARRETO, 2010, p. 263)
Questionando ainda mais, posteriormente, Todos se misturavam, afrontavam as
balas, unidos pela mesma irritação e pelo
as relações de poder dentro do jornal e suas mesmo ódio à polícia, onde uns viam o
relações com os funcionários, adotando uma crítica seu inimigo natural e outros o Estado,
contrária às formas de subordinação e segregação, que não dava a felicidade, a riqueza e a
Isaías afirma: abundância. (BARRETO, 2010, p. 265)

No jornal, o diretor é uma espécie de Então, quase no fim do romance notamos


senhor feudal a quem todos prestam mais dois trechos que nos remetem aos ideais
vassalagem e juramento de inteira anarquistas, a primeiro parafraseado os escritos
dependência: são seus homens. As suas
festas são festas do feudo a que todos
de Tolstói (BEZERRA, 2010) ao considerar o
têm obrigação a se associar; os seus ódios impulso de luta pelo amor – e não pelo ódio –
são ódios de suserano, que devem ser e posteriormente no sentimento de Isaías de
compartilhados por todos os vassalos,
que realmente apenas a oposição e o emprego
vilões ou não.
(…) da violência, observados pela personagem Leiva
Não há repartição, casa de negócio em anteriormente, é capaz de tirar as pessoas de seus
que a hierarquia seja mais ferozmente estados alienados de bondade, que deixa cega todo
tirânica. O redator despreza o repórter;
o repórter, o revisor; este, por sua vez, sentido de liberdade:
o tipógrafo, o impressor, os caixeiros do (…) fiquei animado, como ainda estou,
balcão. A separação é a mais nítida possível a contradizer tão malignas e infames
e o sentimento de superioridade, de uns opiniões, seja em que terreno for, com
para os outros, é palpável, perfeitamente obras sentidas e pensadas, que imagino
palpável. O diretor é um deus inacessível, ter força para realizá-la, não pelo talento,
caprichoso, espécie de Tupã ou de Júpiter que julgo não ser muito grande em mim,
Tonante, cujo menor gesto faz todo o mas pela sinceridade da minha revolta que
jornal tremer. (BARRETO, 2010, p. 244) vem bem do Amor e não do Ódio, como
podem supor. (BARRETO, 2010, p. 288)
No decorrer da história, acontece um Na delegacia, a minha vontade era rir-me
fato inusitado, a Guerra do Sapato, apontado de satisfação, de orgulho, de ter sentido
pelo comentarista dessa edição como sendo uma por fim que, no mundo, é preciso o
emprego da violência, do murro, do soco,
paráfrase da Revolta Contra a Vacina Obrigatória
para impedir que os maus e os covardes
de 1904 (BARRETO, 2010, p. 265, nota 99). não nos esmaguem de todo.
Em determinada passagem, fica claro o furor Até ali, tinha sido eu a doçura em pessoa,
da sociedade contra as imposições do governo, a bondade, a timidez e vi bem que não
podia, não devia e não queria ser mais
ressaltando o perfil anarquista de combate às leis e assim pelo resto de meus dias em fora.
autoridades. Isso fica claro nas duas passagens: Ria-me, pois tive vontade de rir-me, por
ter descoberto uma coisa que ninguém

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ignora. Felizmente não foi tarde…


(BARRETO, 2010, p. 289).

Conclusão
Este trabalho teve como objetivo investigar
a presença de resquícios literários que se remetam
ou refletem o início da construção do pensamento
anarquista no Brasil no início do século XX, mais
especificamente na obra Recordações do escrivão Isaías
Caminha, de Lima Barreto. Embora suas obras
posteriores como Triste fim de Policarpo Quaresma, ou
mesmo os folhetins publicados por Lima Barreto
em jornais considerados anarquistas da época
apresentem elementos figurados do pensamento
anarquista mais evidente, tal como citado por
BEZERRA (2010), nota-se que na obra analisada
há, mesmo timidamente, trechos, ideias e passagens
que remetem ao pensamento libertário do autor na
obra analisada.
Começamos a conceituar os termos
anarquismo e anarquia, explanamos seu surgimento
e desenvolvimento na Europa, mostramos
brevemente como a anarquia se firmou no Brasil,
mostramos resumidamente a vida e obra de
Lima Barreto e suas relações com o anarquismo
e finalmente investigamos na obra Recordações do
escrivão Isaías Caminha a presença de passagens
que se remete ao pensamento anarquista de Lima
Barreto. É necessário, todavia, deixar claro que
não se pode afirmar categoricamente que Lima
Barreto era um anarquista, mas é evidente que, até
mesmo pelas circunstâncias históricas da época e
de sua história de vida (fortemente marcada pelo
preconceito e pela luta e crítica contra o status quo),
suas obras transparecem o pensamento libertário,
muitas vezes pela vertente do anarco-comunismo.
A obra analisada ainda é tímida nesse sentido, mas
julgamos rico tornar evidente em que momentos
da história de Isaías o anarquismo se mostra
presente.

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Editora Penguin & Companhia das Letras, 2010.

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http://expressaoliberta.blogspot.com.br/2010/02/o-libertario-lima-barreto.html
Disponível em 14/11/2012.

BEZERRA, Jane Mary Cunha. Lima Barreto: anarquismo, antipatriotismo e forma literária. 2010.
129 f. Dissertação de mestrado (pós-graduação em Letras) – Universidade Federal do Ceará: Fortaleza,
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BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política.


Volumes 1 e 2. Brasília, DF: Editora UnB, 1998.

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DEMINICIS, Rafael Borges e FILHO, Daniel Aarão (orgs.). História do anarquismo no Brasil.
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DULLES, John W. Foster. Anarquistas e comunistas no Brasil (1900-1930). Coleção-Brasil Século 20.
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FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, Ministério da Cultura. Diário Íntimo – Lima Barreto.


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RODRIGUES, Edgar. Quem tem medo do anarquismo? Rio de Janeiro, RJ: Editora Achiamé, 1992.

______. Socialismo e sindicalismo no Brasil (1675-1913). Rio de Janeiro, RJ: Gráfica Editora
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Dossiê Lima Barreto

Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha


Fabiana Nancy da Silva Araújo e Thiago Duarte de Oliveira

TV ESCOLA. Lima Barreto – Vida e obra. (Vídeo)


http://www.youtube.com/watch?v=YYM0i_7jAs4 Disponível em 17/11/2012.

WOODCOCK, George. História das idéias e movimentos anarquistas. Volume 1: A idéia. Porto
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Dossiê Lima Barreto

Recordações do Escrivão Isaías Caminha: Uma


leitura da obra de Lima Barreto
Fernando Morgato de Oliveira
Yasmim Nóbrega de Alencar
Bacharelandos em Sociologia e Política na
Fundação Escola de Sociologia e Política
de São Paulo

Resumo
O presente trabalho tem por interesse apresentar
uma leitura onde se buscará elementos de um
pensamento hegemônico na cidade do Rio
de Janeiro no começo do século XX. A partir
de relatos contidos na obra do autori visa-se
identificar um modelo de pensamento que
predominava na cidade do Rio de Janeiro.
Focalizando os discursos que deslegitimavam
os “cidadãos” negros da “cidade maravilhosa”
na época, serão abordados assuntos como
preconceito, estigma social, marginalização,
entre outros.

Palavras -Chave
Pensamento; Linguagem; Dominação; Poder.

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Recordações do Escrivão Isaías Caminha: Uma leitura da obra de Lima Barreto


Fernando Morgato de Oliveira e Yasmim Nóbrega de Alencar

Lima Barreto: vida e obra terminaria simultaneamente, ainda que o primeiro


venha a ser publicado dez anos depois que o
Lima Barreto nasceu no dia 13 de maio
segundo. A partir do lançamento de Recordações do
de 1881, mulato, era filho de João Henriques e
escrivão Isaías Caminha, em 1909, Lima teria, enfim,
Amália Augusta, ele tipógrafo e ela professora,
seu nome mencionado na “high society” da imprensa
ambos mulatos. Não era de família abastada, mas
carioca.
tinhas ligações com os nobres da época, como, por
exemplo, seu padrinho que era Visconde de Ouro Passa então a escrever e elaborar crônicas
Preto e senador do Império. Lima sofre aos seis e peças satíricas em quase todos os veículos
anos de idade com a morte precoce de sua mãe. de comunicação de sua épocaii. Todos os seus
Quando completa sete anos vê-se diante de um escritos continham um “sentimento humano e
novo período da história onde ocorre a Abolição uma compreensão admirável do fenômeno social”
da escravatura no ano de 1888. Um ano depois (BARBOSA, Francisco de Assis. In: BARRETO,
veria o universo político-social brasileiro alterar-se Lima 2011, p. 37iii).
drasticamente com a Proclamação da República, no Segundo Barbosa (2011, p. 44), “não será
ano de 1889. Com mais uma reviravolta do destino possível proceder-se à revisão da nossa história
e no mesmo ano seu pai é demitido da Imprensa republicana, do 15 de Novembro ao primeiro 5
Nacional em fevereiro, e em março, é nomeado de Julho (...), sem recorrer aos romances, contos,
escriturário das Colônias de Alienados da Ilha do crônicas e artigos de Lima Barreto”. Lima possui
Governador. Perceber-se-ia que dali em diante as uma escrita paradigmática, torna-se impossível,
marcas desse período e o processo de infinitas muitas vezes, traçar uma distância entre as fronteiras
dificuldades de inserção do negro, discriminação do real e do imaginário.
racial deixariam suas marcas na sociedade brasileira, Novamente Francisco de Assis Barbosa
marcas estas que estariam presentes como centro nos dá um ótimo exemplo do talento, da atuação
de discussão em quase todas as suas obras. de Lima Barreto como escritor longínquo,
Já no início da sua carreira como literato vanguardista que está para além dos ideais de
Lima nos presenteia suas obras onde utiliza seu produção de sua época, ou como diria o próprio
recurso realista autobiográfico. Ele dá inicio em Lima Barreto: das camuflagens do real. Ele o
1900 aos registros do Diário Íntimo, onde colocará distingue como um escritor:
suas impressões sobre êxodo rural, a cidade e a vida Memorialista, a ponto de se tornar difícil,
urbana no Rio. Lima passa por inúmeros percalços, senão impossível, delimitar em alguns
mas quando começa a escrever reportagens no de seus romances e contos as fronteiras
da ficção e da realidade, ele anotou,
Correio da Manhã inicia de modo regular sua
registrou, fixou, comentou ou criticou
carreira no jornalismo literato brasileiro. todos os grandes acontecimentos da vida
Em 1905, nasce a primeira versão de Clara dos republicana. Como num vasto painel
que se desdobra em sucessivos quadros,
Anjos, este seria publicado somente postumamente, lá estão os episódios culminantes da
na mesma época elabora os prefácios de dois de insurreição antiflorianista, a campanha
seus romances: Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá e contra a febre amarela, a ação de Rio
Branco no Itamaraty, o Governo de
Recordações do escrivão Isaias Caminha, livros estes que
Hermes da Fonseca, a participação do

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Recordações do Escrivão Isaías Caminha: Uma leitura da obra de Lima Barreto


Fernando Morgato de Oliveira e Yasmim Nóbrega de Alencar

Brasil na Primeira Guerra Mundial, o de envergadura que transpõe os planos do real


advento do feminismo, as primeiras greves e do imaginário, do eu lírico, onde a produção
operárias, a Semana da Arte Moderna, e o
delírio do futebol e do jogo do bicho, tudo se faz na concepção da semântica formaliv e não
isso se mistura com os nossos ridículos da semântica enunciativav, como os “mandarins”
e as nossas misérias, mas também sem (escritores) da época de Lima Barreto faziam.
esquecer a grandeza e a doçura do nosso
povo; a mania da ostentação, o vazio Introdução
intelectual e a ganância dos políticos; em
suma, toda a crise das classes dirigente, Recordações do escrivão Isaías Caminha é o
que se agravaria de modo alarmante com
a queda do Império, isso de um lado; do
primeiro romance de Lima Barreto lançado, em
outro, a bondade inata do brasileiro, a 1907, em folhetim na revista Florealvi, sendo
coragem do funcionário público humilde lançado em livro em 1909. Na obra o narrador
que luta para educar os filhos, o milagre
principal é Isaías Caminha, mulato, letrado, de
da sobrevivência da população pobre do
subúrbio carioca, que, em meio da miséria, família humilde, mas não marginal, que almeja um
canta e ri. (BARRETO, 2011, p. 45) futuro e vê no Rio de Janeiro sua esperança de se
tornar alguém. Com o auxílio de Valentim (seu
Lima Barreto enxergou isso com os olhos
Tio) e uma carta escrita pelo Coronel Belmiro para
de quem estava imergido naquele contexto sócio-
o deputado Castro, Isaías vê/consegue sua saída
cultural e que não tinham nada de falso, fez sua
da vida no interior, nela está à porta de entrada
contribuição para o universo literário transmitindo
para o seu futuro como “Doutor” na capital. “A
em seus livros o mais exuberante realismo nunca
minha situação no Rio estava garantida. Obteria
antes visto ou transcrito por nenhum escritor de
um emprego. Um dia pelos outros iria às aulas, e
sua época. Retratou sem pudor os políticos, a
todo fim de ano, durante seis, faria os exames, ao
maquinaria social, a manipulação da mídia e outras
fim dos quais seria doutor!” (BARRETO, 2011, p.
dezenas de fatos que corroboraram para inúmeras
75). O que ele não esperava encontrar durante a sua
leituras e análises da época e do país. Através de
trajetória era inúmeros percalços que o levariam ao
suas investidas, de simbologias descritas através de
limite da superação e da consciência humana.
seus personagens Lima alterou o plano narrativo e
Bosivii (2011, p. 10) , na introdução do
de interpretação do real, traçando em seus escritos
livro descreve a condição de Isaías como a “do
um panorama da mentalidade burguesa que
mestiço humilde, interiorano” que passa depois
durante os primeiros trinta anos de nossa república
a ser o “suburbano” enfrentando as dificuldades
predominou.
de integração de vida na capital carioca que “se
Esta é uma obra ímpar de valor histórico
moderniza a passos largos”.
incalculável. Não é a toa que Lima Barreto tornar-
O que é visto na obra é uma construção
se-á inclassificável após esta e outras publicações.
minuciosa da vida humilde de um mestiço, seus
Suas análises sobrepõem-se ao plano comum,
conflitos, suas angústias, as mazelas, as atrocidades
romântico e sensorial da sua época; tem-se nos
e as injustiças que observará na atmosfera tétrica
escritos desta obra o ar de ausência da humanidade,
e marginalizada dos cortiços ao do centro urbano
o tom cinza do pudor, a mancha da vergonha e
pré-modernizado do Rio de Janeiro. Tudo isso
a tenaz realidade. O que temos então? Uma obra
mostra uma realidade brutal, severa, mas que faz

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Recordações do Escrivão Isaías Caminha: Uma leitura da obra de Lima Barreto


Fernando Morgato de Oliveira e Yasmim Nóbrega de Alencar

Isaías refletir sobre sua conduta e o leva a analisar miserável, nada pôde fazer pelo filho senão apoiá-
suas origens e as razões pelas quais o levaram até lo. Sua vida pacata e “burguesa” de algum modo
o seu destino. mostrar-lhe-ia que fora dos confins do interior,
da cidadezinha, sua condição não passaria de uma
A tristeza, a compreensão e a desigualdade
de nível mental do meu meio familiar mera negação da sua própria identidade; para se
agiram sobre mim de modo curioso: compreender como esta descontrução se dá é
deram-me anseios de inteligência. (...) preciso entender a linguagem, e como através
Foi com esses sentimentos que entrei
para o curso primário. Dediquei-me
dela construímos as formas socialmente aceitas de
açodadamente ao estudo. Brilhei, e identidade.
com o tempo foram-se desdobrando as Frantz Fanon, em seu livro Pele Negra
minhas primitivas noções sobre o saber.
Acenturam-se-me tendências; pus-me a Mascaras Brancas, apresenta como a linguagem
colimar glórias extraordinárias, sem lhes determina as formas de identidades estabelecidas
avaliar ao certo significação e a utilidade. socialmente.
Houve na minha alma um tumultuar de
desejos, de aspirações indefinidas. Para Na linguagem está a promessa do
mim era como se o mundo me estivesse reconhecimento; dominar a linguagem,
esperando para continuar a evoluir... um certo idioma, é assumir a identidade
(BARRETO, 2011, p. 67-68). da cultura. Esta promessa não se cumpre,
todavia, quando vivenciada pelos negros.
Sendo ele filho de um padre, e sua mãe Mesmo quando o idioma é “dominado”,
escrava, Isaías já antes de nascer encontra-se numa resulta a ilegitimidade (FANON, 2008, p.
batalha e num dilema moral. O Pai pela profissão 15).

e o peso do pecado da carne não pôde assumi- Isaías acredita nesta legitimidade do ser
lo como filho socialmente, mas dá-lhe toda a letrado e parte para a cidade com a esperança de
instrução e carinho que qualquer outro pai poder- conquistar seu lugar ao Sol. Da saída do interior
lhe-ia dar. até a chegada à capital Isaías enfrentará inúmeros
Pareceu-me que o seu encontro fora conflitos, dos quais nem a sua inteligência,
rápido, o bastante para me dar nascimento. aguçada e voraz, conseguirá de imediato decifrá-
Uma crise violenta do sexo fizera esquecer los. Ao chegar à capital demorará a perceber que
os votos de seu sacerdócio, vencera a sua
sua estadia além de não ser bem quista por uns,
vontade, mas, passada ela, viera, com o
arrependimento da quebra do seu voto, a será anulada por outros. “O contraste feriu-me,
dor inqualificável de não poder confessar e com os olhares que os presentes me lançaram,
sua partenidade. mais cresceu a minha indignação. Curti durante
Ele amou-me sempre, talvez me quisesse
mais por causa das condições que segundos uma raiva muda, e por pouco ela não
envolviam o meu nascimento. Em público rebentou em pranto.” (BARRETO, 2011, p. 80).
olhava-me de soslaio, media as carícias,
Mas, de certo modo, Isaías “enfrentará”
esforlava-se por fazê-las banais; em casa,
porém, quando não havia testemunhas, os problemas. Contudo, seus esforços, em grande
beijava-me e afagava-me com transporte. parte, serão em vão. Procurará exigir seus direitos
(BARRETO, 2011, p. 67-68). mesmo que para isso tenha que dormir no
A mãe, por sua condição humilde e “xilindró”; colocar-se-á, muitas vezes, na pele de

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outras pessoas, essas provações servirão ao nosso os homens da Ilustração se tinham incumbido de
protagonista como combustível para seguir em divulgar e a Revolução Francesa de pôr em prática”
frente, sempre avante, em busca de seu sonho. (COSTA, 2010, p. 30).
Firmará alianças, terá inimigos, provará o doce Durante o período imperial um número
sabor da amizade e o ardor veneno da mentira e substancial de vertentes político-ideológicas
da traição. imergiu nas discussões dos grupos de repressão
Contudo, para entendermos a situação de contra o regime. Às vésperas da independência a
Isaías no contexto apresentado na obra de Lima vertente que se destacava era o liberalismo. Neste
Barreto, será preciso retornarmos um pouco no mesmo período discutia-se a ‘possibilidade de
tempo para que possamos compreender como um levante de escravos’, contudo, firmaram um
as disposições sociais e políticas tratadas na obra documento que garantia o direito de propriedade
ocorreram. Assim, damos ao leitor uma pequena dos senhores sobre seus servos: “‘Patriotas’ (...)
abordagem das transformações que se sussederam ‘vossas propriedades, ainda as mais opugnantes ao
e que deram molde ao pensamento apresentado ideal de justiça, serão sagradas. O governo porá
no livro. Deste modo, um breve levantamento meios de diminuir o mal, não o fará cessar pela
das transformações histórico-político-culturais força’” (COSTA, 2010, p. 33). O Liberalismo
do período, assim como, dos conflitos que brasileiro conciliava com a religião e com a Igreja
desencadearam a Independência e a Abolição dos Católica, constata-se tal dado a partir do número
escravos revelaria a tão sonhada “República”. A expressivo de padres nos movimentos contra
importância de tal apresentação nos permite tratar hegemônicos, este processo recebeu o nome de
mais precisamente dos processos que se desdobram Revolução dos Padres.
sobre a personagem protagonista durante toda a Outra vertente apresentara-se no mesmo
obra. período, o nacionalismo. Entretanto, esta não
consolidou-se devido a economia brasileira que era
Os processos sócio-políticos na pré
ainda baseada essencialmente na exportação, tendo,
República
também, precárias suas formas de comunicação,
Os ares do Brasil pré-republicano eram, assim como, o limitado comércio interno que
naquele período, de mudança, pelo menos para dificultava as transições em toda sua extensão.
a elite que se iluminava, já há algum tempo, Tal nacionalismo expressava-se na forma de um
com os “abomináveis princípios franceses” da radical antiportuguesismo.
revolução e buscavam a Independência da colônia Todavia, existia uma dualidade, pois:
com a metrópole. Esses homens ilustrados eram
Aos olhos da população nativa mestiça,
“os estudantes que viajavam para o exterior,
a Independência significava sobretudo a
completando seus estudos em Portugal ou na possibilidade de eliminar as restrições que
França [e] voltavam imbuídos das novas ideias...” afastavam as pessoas de cor das posições
(COSTA, 2010, p. 29) visando uma reforma superiores, dos cargos administrativos,
do acesso à Universidade (...) e ao clero
imediata, que devidos aos conflitos ideológicos, superior. Abolir as diferenças de cor
ocorreriam paulatinamente. “Toda uma geração branca, preta e parda, oferecer iguais
fora educada nos princípios revolucionários que oportunidades a todos sem nenhuma

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restrição era o principal ideal das massas de compreender essas cidades e as


mestiças que viam nos movimentos experiências humanas, ali vividas em
revolucionários a oportunidade de seus múltiplos espaços, em uma de suas
viverem em ‘igualdade e abundância’. maiores características: a instabilidade.
Para elas, a Independência configurava-se “Desordem” e “tumulto”eram justamente
como uma luta contra os brancos e seus as dimensões, muito eficientes, que grande
privilégios (COSTA, 2010, p. 36). parte das populações urbanas brasileiras
encontravam para sua sobrevivência, para
Contudo, Marins (1998), no livro História seu agir social.
da Vida Privada no Brasil, nos mostra que essa Casas e ruas fundiam-se numa dinâmica
plasmada e difusa, em que os limites
“independência” tanto do povo negro, quanto dos espaciais constituíam-se historicamente
migrantes e imigrantes da época, teriam um custo ao sabor da ambição fundiária dos
muito alto. Sua subordinação daria-se não mais proprietários e da complacência sonsa
das autoridades. O ‘desleixo’, (...) parecia
pelas garras do senhor (carrasco e desumano),
comandar a pratica (...). Neste aparente
esta, agora, estruturariam-se a partir dos novos desleixos esgueiravam-se as ‘aparentes’
logradouros e da “nova engenharia” que surgiriam desordens funcionais (...) em que
nesta suposta “independência”, as favelas. escravos, forros e seus descendentes,
miseráveis e remediados, logravam obter
Fim da escravidão. Migrações e imigrações. mais facilmente as condições de sua
A aurora do regime republicano dava-se sobrevivência, e de seus próprios padrões
em meio a transformações demográficas culturais e de sociabilidade. (MARINS,
e sociais, que liberavam populações, e 1998, p. 132-133)
franqueavam novos destinos geográficos
às esperanças de sobrevivência de muitos Darcy Ribeiro (1995), em seu livro O Povo
dos velhos e novos brasileiros. (...) As Brasileiro, complementa, o trecho citado acima,
grandes cidades surgiam-no horizonte explicando que esta deterioração urbana ocorreu
como o espaço das novas possibilidades
de vida, do esquecimento das mazelas por muitas dessas pessoas que “levantaram” as
do campo, da memória do cativeiro. (...) favelas, somente, para que fosse possível manter
somavam-se aos antigos escravos, forros seu trabalho. Caso contrário, seria impossível
e brancos pobres que já inchavam as
cidades imperiais, e junto a eles também
trabalhar na capital tendo em vista a distância dela
aprenderiam a sobreviver na instabilidade para o campo. Casos adversos a esses também
que marcaria suas vidas também em seu surgiram, de modo que:
novo habitat. (...) As elites emergentes
imputavam-se o dever de livrar o país do A própria população urbana, largada a
que consideravam “atraso” (...) visível na seu destino, encontra soluções para seus
aparente confusão dos espaços urbanos, maiores problemas. Soluções esdruxulas
povoados de ruas populosas e barulhentas, é verdade, mas são as únicas que estão ao
de habitações superlotadas, de epidemia seu alcance. Aprende a edificar favelas nas
que se alastravam com rapidez pelos morrarias mais íngremes fora todos os
bairros, assolando continuamente as regulamentos urbanísticos, mas que lhe
grandes capitais litorâneas. permitem viver juntos aos seus locais de
Acreditar na adjetivação que as intenções trabalho e conviver como comunidades
normativas das elites atribuíam à aparência humanas regulares, estruturando uma
das ruas e casas das antigas cidades, vida social intensa e orgulhosa de si.
herdadas da Colonia e do Império, (...) onde faltam morrarias, as favelas
inviabiliza, entretanto, a possibilidade se assentam no chão liso de áreas de

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propriedade contestada e organizam-se deste pensamento, reproduziria tal poder sobre


socialmente como favelas. (...) É nessa seus pares. Já na infância mostrava traços de que
base que se estrutura o crime organizado,
oferecendo uma massa de empregos na o condicionamento de seu pensamento fora bem
própria favela, bem como uma escala de estruturado. “O espetáculo de saber do meu pai,
heroicidade dos que o capitaneiam e um ralçado pela ignorância de minha mãe e de outros
padrão de carreira altamente desejável
(...), surgiu aos meus olhos de criança, como um
para a criançada. Antigamente, tratava-se
apenas do jogo do bicho, que empregava deslumbramento” (BARRETO, 2011, p. 67). Fora
ex-presidiários e marginais, lhes dando este deslumbramento que fez com que Isaías criasse
condições de existência legal. anseios de inteligência e buscasse sua posição na
(...) Outro processo dramático vivido
por nossas populações urbanas cidade.
[principalmente nas periferias] é sua Esta suposta decisão traria um júbilo a
deculturação. Sua gravidade é quase
Isaías onde, vez outra, este chegaria a fantasiar em
equivalente à primeira deculturação
que sofremos, no primeiro século, ao sua mente forças, ou chamados, que buscava-o
desindianizar os índios, desafricanizar os para aventuras e conquistas mundo a fora.
negros e deseuropeizar o europeu para “Ouvia uma tentadora sibila falar-me, a toda hora
nos fazermos. (...) A questão hoje é mais
grave. A luta dentro dessa massa urbana é e a todo instante, na minha glória fortuna. Agia
ferocíssima. (...) O normal na marginalia desordenadamente e sentia a incoerência dos
é uma agressividade em que cada um meus atos, mas esperava que o preenchimento
procura arrancar o seu, seja de quem for.
final do meu destino me explicasse cabalmente”
(RIBEIRO, 1995. p. 204-205)
(BARRETO, 2011, p. 68). Estas formas de
Esta sociabilidade se constitue a partir do contentamento subjetivas introjetadas em seu
próprio momento e do complexo conjunto de imaginário levariam-no a universos e multiversos,
relações que fora estabelecido em uma realidade chegando algumas vezes metamorfosear chamados
ainda marcada pelo pensamento colonialista, com de alguma força que nem mesmo ele saberia
suas prerrogativas essenciais para relações de explicar.
opressão cultural: o preconceito racial e o estigma
Todas as manhãs, ao acordar-me, ainda
social proveniente de uma desigualdade de classes, com o espírito acariciado pelos nevoentos
que já ali começavam a delinear seus contornos. sonhos de bom agouro, a sibila me dizia
Esses eram os benefícios e as condições de ao ouvido: ‘Vai, Isaías! Vai!... Isto aqui não
te basta... Vai para o Rio!’ (...) por fim um
estrutura que grande parte da população brasileira, bando de patos negros passou por sobre
pobre, não letrada e marginalizada, e aqueles que a minha cabeça, bifurcado em dois ramos,
adotariam a pátria, teriam de partilhar. Ademais, divergentes de um pato que voara a frente,
a formar um V. Era a inicial de ‘Vai’. [e]
haviam aqueles que possuíam um fragmento da
Tomei isso como um sinal animador,
“civilidade” vigente, e a esses ficou a incumbência como um bom augúrio do meu propósito
de reproduzir o pensamento dominante. audacioso. (BARRETO, 2011, p. 68)

O Olhar de Isaías e o pensamento na Primeira Preconiza então sua partida para a cidade
República do Rio de Janeiro. Esta fora feita junto a uma
carta cedida pelo coronel Belmiro endereçada ao
Isaías, que nascera justamente cercado

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deputado Castro, solicitando-o asilo e trabalho ao à beira do brejo; andar assim pelas ruas,
jovem Isaías. Sua partida viera acompanhada de pelas praças, pelas estradas, pelas salas,
recebendo cumprimentos: Doutor, como
um temor, um receio que o acolhera subitamente passou? Como está, doutor? Era sobre
após sua decisão. humano!... (BARRETO, 2011. p. 75).

(...) era uma cidade grande, cheia de Aqui percebemos claramente a influência
riqueza, abarrotada de egoísmo, onde
de um pensamento que o domina, que transfere
eu não tinha conhecimentos, relações,
protetores [exceto o deputado Castro] sua realidade à reliadade de um grupo específico.
que me pudessem valer... Essa dominação acontece, segundo Bourdieu
Que faria lá, só, a contar com minhas (2002), por um poder simbólico que se exerce
próprias forças? Nada... Havia de ser
como uma palha no redemoinho da vida sobre Iasías, e é justamente o que estrutura seu
– levado daqui, tocado para ali, afinal pensamento. E este pensamento mergulhará Isaías
engolido no sorvedoro... ladrão... bêbado... num novo mundo e fará com que ele reproduza os
tísico e quem sabe mais? (BARRETO,
valores deste mundo ao qual ele pensa pertencer.
2011, p. 69)
Repentinamente senti-me outro. Os
Contudo, levado pelo ímpeto desejo, meus sentidos aguçaram-se; a minha
um pathos incondicional, de alcançar o título de inteligência entorpecida (...) despertou
Doutor, este, o fez acender a chama da esperança com força, alegremente e cantante... Eu
via nitidamente as coisas e elas penetraram
e deste modo lançou-se para sua odisséia. Suas
em mim até o âmago. Convergi todo o
fantasias giravam em torno do poder atribuído meu aparelho de exame para o espetáculo
ao título buscado, o Doutor! Não titubeava pela que me surpreendia. Estive por instantes
escolha feita, almejava nela suas glórias, fortunas, espasmodicamente arrebatado, para um
outro mundo, adivinhado além das coisas
e via na mesma, a mais valiosa das virtú. Entoava sensíveis e materiais.
sobre as condições, disposições e impressões mais Evolava-se do ambiente um perfume,
rotineiras possíveis que a titulação lhe daria. uma poesia, alguma coisa de unificador,
a abraçar o mar, as casas, as montanhas
Ah! Doutor! Doutor!... Era mágico o e o céu; pareciam erguidos por um só
título, tinha poderes e alcances múltiplos, pensamento, afastados e aproximados
vários, polimórficos... Era um pallium, por uma inteligência coordenadora que
era alguma coisa como clâmide sagrada, calculasse a divisão dos planos, abrisse
tecida com um fio tênue e quase vales, recortasse curvas, a fim de agitar viva
imponderável, mas a cujo encontro os e harmoniosamente aquele amontoado
elementos, os maus olhares, os exorcismos de coisas diferentes... O aconchego, a
se quebravam. De posse dela, as gotas da tepidez da hora, a solenidade do lugar, o
chuva afastar-se-iam transidas do meu crenulado das montanhas engastadas no
corpo, não se animariam a tocar-me nas céu côncavo, deram-me impressões várias,
roupas, no calçado sequer. O invisível discordantes e figidias... (BARRETO,
distribuidor dos raios solares escolheria os 2011. p. 81-82)
mais meigos para me aquecer, e gastaria
os fortes, os inexoráveis, com o mundo Bourdieu (2002, p. 12) dirá que “O campo
dos homens que não é doutor. Oh! Ser de produção simbólica é um microcosmos da luta
formado, de anel no dedo, sobrecasaca
simbólica entre as classes: é ao servirem os seus
e cartola, inflado e grosso, como um
sapo-entanha antes de ferir a marteladas interesses na luta interna do campo de produção

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que os produtores servem aos interesses dos que identifica-se, segundo Bourdieu (2002), nas
grupos exteriores do campo de produção.” Desta taxionomias políticas, religiosas, filosóficas, jurídicas
forma, Isaías reproduz discursos, muitas vezes, etc., que revelam a legitimidade “natural”, desde
preconceituosos e racistas mesmo ele sendo que não adimitidas. As relação de comunicação
“negro”viii (mestiço). Fanon (2008) dirá que o que entre os indivíduos são, portanto, relações de
determina que tal pensamento seja atríbuido pelos poder fixadas no poder (simbólico ou material)
negros é a afirmação, ou certeza, do fracasso como armazenados pelos indivíduos durante as relações.
indivíduo. Tais sistemas agem com base em instrumentos
estruturados e estruturantes de informação e
Muitos negros acreditam neste fracasso
(...) e declaram uma guerra maciça contra saberes que garantem a dominação de um grupo
a negritude. Este racismo dos negros sobre outro, utilizando aparelhos que determinem
contro o negro é um exemplo da forma a legitimação, dominando os dominados.
de narcisismo no qual os negros buscam
a ilusão dos espelhos que oferecem um O poder simbólico como poder de
reflexo branco. Eles literalmente tentam constituir o dado pela enunciação, de
olhar sem ver, ou ver apenas o que querem fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de
ver. Este narcisismo funciona em muitos transformar a visão do mundo e, deste
níveis. Muitos brancos, por exemplo, modo, a ação sobre o mundo, portanto,
investem nele, já que teoricamente poder quase mágico que permite o
preferem uma imagem de si mesmos equivalente daquilo que é obtido pela força,
como não racistas, embora na pratica graças ao efeito específico de mobilização,
ajam frequentemente de forma contrária. só se exerce se for reconhecido, quer dizer,
(FANON, 2008. p. 15) ignorado como arbitrário. (BOURDIEU,
2002. p. 14)
Esta leitura nos levanta, portanto, uma
questão: O que faz com que os negros adotem a Deste ponto, talvez, possamos identificar
postura (racista e preconceituosa) dos brancos? esta “obsessão” dos negros em se colocar
Tal questão nos remete a pensar a linguagem como socialmente, assim como sua revolta. Logo, “esta
determinante de tal função. Sendo a linguagem um obsessão (...) é resultado da impotência social”,
mecanismo de dominação – conforme o próprio pois, “não conseguindo exercer um impacto sobre
Fanon (2008) afirma – esta imcubice de formular o mundo social, eles se voltam para dentro de si
a formação dos sujeitos. Tendo em vista a recente mesmos” (FANON, 2008. p. 16). Assim, busca-se
ruptura da escravidão e do colonialismo alguns de algum modo o reconhecimento social, mesmo
mecanismo ainda permeavam a esfera tanto pessoal que legitimando o outro (dominante), ou seja,
(psique) quanto social carioca. Diria Fanon, “(...) deslegitimando a si mesmo (dominado). Assim age
a colonização [dominação] requer mais do que a o poder simbólico.
subordinação material de um povo. Ela também
O reconhecimento do poder simbólico
fornece os meios pelos quais as pessoas são capazes só se dá na condição de se descreverem
de se expressarem e se entenderem.” (FANON, as leis de transformação que regem a
2008, p. 15). transmutação das diferentes espécies,
(...) o trabalho de dissimulação e de
Esta sentença nos permite observar uma transfiguração que garante uma verdadeira
inculcação ideológica estruturada nos indivíduos transubstanciação das relações de força

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fazendo ignorar-reconhecer a violência inúmeras vezes consigo buscando meandros para


que elas encerram objetivamente e comparar a imponência deles com a de pensadores
transformando-as assim em poder
simbólico, capaz de produzir efeitos antigos e Deuses.
reais sem dispêndio aparente de energia.
Não foi sem espanto que que descobri
(BORDIEU, 2002, p. 15) em mim um grande respeito por esse alto
e venerável oficio. Lembrei-me daqueles
Fanon (2008) acrescenta que,
velhos legisladores da lenda e da história:
O principal problema desta atitude está os Manus, os Licurgos, Os Moisés, os
na contradição em buscar a liberdade Sólons, os Numas – esses nomes todos que
escondendo-se dela. A liberdade os povos agradecidos pela fecundidade e
[reconhecimento] requer visibilidade, mas, pela sabedoria de suas leis reverenciaram
para que isto aconteça, faz-se necessário por dilatados anos, ergueram-nos à altura
um mundo de outros. Esquivar-se do de deuses, consagraram-lhe templos
mundo é uma ladeira escorregadia que, magníficos. (BARRETO, 2011, p. 94)
no final das contas, leva à perda de si. Até
Assim se estruturará o pensamento de
mesmo o auto reconhecimento requer
uma colocação sob um ponto de vista de Isaías. Olhando seus pares com olhos de pomba,
um outro. Esta é [portanto] uma verdade e vendo-os como reles insetos que contribuem
difícil de aceitar (FANON, 2008, p. 16) para o pleno funcionamento da cadeia alimentar,
Ao mesmo tempo, se a liberdade requer um subservientes não mais dos Deuses, mas dos
mundo de outros, é necessário que uma alteridade paladinos da justiças, os Doutores.
regule os vínculos entre os sujeitos. Logo, a não
Considerações finais
compreensão do outro, reflete a incompreensão
de si mesmo. Tal formulação nos permite Na perspectiva sociológica, podemos
enxergar características em Isaías que fogem desta refletir acerca das correlações existentes entre a
concepção de alteridade. Para ele, sua condição de desigualdade de classes e racial no contexto em
rapaz letrado, fidedigno permitia-o olhar o mundo que a narrativa de Lima Barreto se desenvolve. É
de cima, tal postura fazia-o analisar os outros possível ainda nos reportarmos às passagens em o
sem o menor pudor, chegando, vez outra, utilizar personagem descreve, mais de uma vez, situações
termos e expressões fortes e radicais para descrever de discriminação com a figura do estudante, da
situações ou pessoas. “(...) Eu não podia adivinhar pessoa negra e pobre. Vale ressalvar que o racismo
que o Rio contivesse exemplar tão curioso do no Brasil, apesar de ser ainda velado e invisibilizado,
gênero humano, uma desencontrada mistura de influenciou fortemente a sociabilidade no contexto
porco e de símio adiantado, (...) exuberante de da República, ainda marcada pelo colonialismo.
gestos inéditos e frases imprevistas”. (BARRETO, Sem falar do que este pensamento colonialista
2011, p. 88) contribuiu para o desenrolar da desigualdade de
Tal postura pode estar associada ao seu classe e da desvalorização da cultura brasileira que
objetivo de ser Doutor. Isaías idolatra os que viria a ser esta miscelânea de costumes, maneiras de
possuem tais títulos, exemplo claro é sua admiração viver, fazer arte, literatura e etc, fora dos padrões
pelos doutores da Câmara dos Deputados da dos colonizadores europeus.
República dos Estados Unidos do Brasil. Ele dialoga Darcy Ribeiro (1995) evidencia muitos dos

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aspectos de épocas remotas num Brasil buscando escravidão protagonizados pelas práticas e lógicas
resistir étnica e culturalmente e aderindo às eurocêntricas que culminaram numa realidade
diversas culturas influenciantes. Ainda nesta obra marcada pela desigualdade social ainda não dirimida
célebre Darcy nos aponta várias realidades em que em nossa contemporaneidade):
forças de resistência culturais, o fortalecimento
Apesar da associação da pobreza com
do racismo e outras contingências seguem a negritude, as diferenças profundas
formando nosso povo brasileiro tão controverso. que separam e opõem os brasileiros em
Há, portanto, que se formular um pensamento a extratos flagrantemente contrastantes
são de natureza social. São elas que
respeito da alteridade do outro. Deste modo, será distinguem os círculos privilegiados e
possível se enxergar no outro, respeitando-o seja camadas abonadas – que conseguiram,
por sua etnia, cor, classe social ou econômica. numa economia geral de penúria, alcançar
padrões razoáveis de consumo – da
Por conseguinte, este pensamento enorme massa explorada no trabalho, ou
necessário para o fortalecimento de uma igualdade até dele excluída por viver à margem do
que provenha da democracia racial , de fato, processo produtivo e, em consequência,
da vida cultura, social e política da nação.
implica numa profunda reflexão e mudança de
(RIBEIRO, 2006, p.215-216)
postura/atitude sociocultural no contexto das
relações sociais, nas quais se perpetra o racismo Portanto, as disposições sociais que se
e a inferiozação das pessoas negras, bem como formularam/estruturaram durante o período
nos tempos recordados por Isaías, e, por assim colonial/imperial brasileiro formaram um
dizer, também Lima Barreto que sua literatura pensamento estruturado estruturante possibilitando
manifesta. um ordenamento social que viabilizava as práticas
Em diversas passagens do romance, a de dominação/inculcação ideológica. (Bourdieu.
presença forte de um discurso de desigualdade de 2002) Tais práticas possibilitaram – e possibilitam
classe e racial é evidente: – o domínio de poucos sobre muitos. Tais
disposições aparecem nitidamente na narrativa
(...) De longe, parece que toda essa gente
de Lima Barreto, pois ao descrever e comparar as
pobre, que vemos por aí, vive separada,
afastada pelas nacionalidades ou pela realidades do centro do Rio de Janeiro (urbano,
cor; no palacete, todos se misturavam e civilizado, industrializado) com a periferia (não
se confundiam. Talvez ao se amassem, urbana, depredada, incivilizada), assim como
mas viviam juntos, trocando presentes,
protegendo-se, prestando-se mútuos
as formas socialmente construídas e aceitas de
serviços. Bastava, entretanto, que cidadãos, apresenta-nos um quadro das forças que
surgisse uma desinteligência para que os atuavam sobre o período na cidade “maravilhosa”.
tratamentos desprezíveis estalassem de
Desse modo, torna-se possível enxergar a realidade
parte a parte. (BARRETO, 2010, p. 241)
e ao mesmo tempo transpô-la, tomando-a como
Podemos, inclusive, nos reportar novamente referência, para analisarmos os dias de hoje.
ao sociólogo Darcy Ribeiro (1995), em se tratando
da formação do povo brasileiro tão marcarda
pelas violências colonialistas (aqui, nos referimos
ao etnocídio, genocídio e longos períodos de

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Notas

i
Obra: Recordações do Escrivão Isaias Caminha: BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías
Caminha. 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras e Editora Pinguim, 2011, publicada em 1909;
na obra é retratado o social e o indivíduo no meio ao qual está inserido. Ao tratar os conflitos sociais
e pessoais do protagonista Lima Barreto nos apresenta um quadro dos principais percalços do Rio de
Janeiro e seu desenvolvimento.
Veículos como O Diabo, Revista da Época, Fon-Fon, Brás Cubas, Careta, O Malho e Correio da Noite
ii

(BARRETO, Lima. 2011 – Texto de abertura da Editora)


Prefácio publicado pela Editora Brasiliense, em 1961, na edição de Recordações do escrivão Isaías
iii

Caminha. (N. E.).


É uma semântica de tradição lógica como a relação entre significado e verdade, referência e denotação,
iv

quantitativo, extensão e intensão.


v
Faz referência a uma ilusão criada pela linguagem, sendo a linguagem um jogo de argumentação
enredado em si mesmo. Não fala-se sobre o mundo, fala-se para construir um mundo e a partir dele
tentar convencer o interlocutor da VERDADE; verdade CRIADA pelas e nas nossas interlocuções.
vi
De pequeno formato (15 x 20 cm aproximadamente), com edições variando de 39 a 56 páginas,
a revista Floreal apareceu na primavera de 1907, sob a direção de Lima Barreto, para deixar de ser
publicada dois meses depois, totalizando apenas quatro números. Lima Barreto, intelectual investido
de verdadeira missão, atribuía um sentido emancipatório à leitura e tinha em Floreal não só um espaço
de expressão que não encontrara em seu meio, mas um baluarte útil no combate ao que julgava ser a
crescente alienação promovida pelos meios (sociais) de comunicação. Fonte: http://www.brasiliana.usp.
br/node/737; Acessado em: 20/10/2012
Cursou letras neolatinas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
vii

Paulo. É professor titular da área de literatura brasileira na USP, escritor, comentarista e literário. Bosi é
reconhecido por abordar temas como Pré-Modernismo; História da Literatura Brasileira, entre outros.
Utilizamos uma aspa para manter a descrição do próprio Isaías consigo mesmo. Em seus discursos
viii

durante toda obra ele não se enxerga como negro, isso prova-nos a sua inocência, assim como o
condicionamento do seu pensamento.

Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 29-41.
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Dossiê Lima Barreto

Recordações do Escrivão Isaías Caminha: Uma leitura da obra de Lima Barreto


Fernando Morgato de Oliveira e Yasmim Nóbrega de Alencar

Referências Bibliográficas:

BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Coleção Reconquista do Brasil, v. 140. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp: 1988.

BARBOSA, Francisco de Assis. A Vida de Lima Barreto. In BARRETO, Lima. Recordações do


escrivão Isaías Caminha. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras/Editora Pinguim, 2011. p. 37.

BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. 2ª edição. São Paulo: Companhia das
Letras e Editora Pinguim, 2011.

BOSI, Alfredo. Literatura e resistência. In BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha.
2. ed. São Paulo: Companhia das Letras/Editora Pinguim, 2011. p. 10.

BOURDIEU, Pierre. Sobre o poder simbólico. In: BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 5° Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

COSTA, Emília Viotti. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 9ª edição. São Paulo:
Editora UNESP, 2010.

FANON, Frantz. Pele negra, mascaras brancas. Tradução Renato da Silveira. Salvador: Editora
EDUFBA, 2008.

FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do Patronado Político Brasileiro. 16ª edição.
São Paulo: Editora Globo, 2004.

RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira
República. 3ª edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.

SEVCENKO, Nicolau. História da Vida Privada no Brasil: República da Époque à Era do Rádio.
Coordenador-geral da coleção: Fernando A. Novais; Organizador do volume: Nicolau Sevcenko. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998. – (História da vida privada no Brasil; vol. 03)

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Dossiê Lima Barreto

A busca por reconhecimento através da


educação e os entraves socioculturais de uma
classe de cor
Marcella de Campos Costa
Kleber Aparecido da Silva
Graduandos do curso de Sociologia e
Política da Escola de Sociologia e Política
de São Paulo

Resumo
Através da obra de Lima Barreto Recordações do
escrivão Isaias Caminha analisamos de que forma a
educação, no contexto brasileiro, é vista como uma
ferramenta emancipadora, mas que também acaba
por reproduzir velhas estruturas sociais e raciais.
A herança escravista e a divisão por classes de cor
ainda se fazem presentes no Brasil, podendo ser
percebidas na educação e na cultura, por exemplo,
pelos entraves da linguagem e do debate sobre as
cotas raciais. Isaias Caminhas, personagem de Lima
Barreto, demonstra a trajetória de muitos jovens
brasileiros, em sua maioria vindos das periferias,
que tentam trilhar um caminho de ascensão social,
mas que ainda hoje são barrados pelos preconceitos
e dificuldades impostas pela sociedade.

Palavras -Chave
Educação; Classes de Cor; Ascensão Social; Lima Barreto.

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A busca por reconhecimento através da educação e os entraves socioculturais de uma classe de cor
Marcella de Campos Costa e Kleber Aparecido da Silva

1 mental do meio familiar agiram sobre mim de um


modo curioso; deram-me anseios de inteligência”.
A história nos mostra diversos exemplos (Barreto, 2011, p. 67)
dos homens em busca de emancipação e poder, Não basta o acesso escolar, mas também é
que hoje passa preponderantemente pela ascensão necessário uma estrutura familiar, que propicie os
econômica e o direito de consumo. anseios do educando, seja com a refeição diária ou
O direito de consumo torna evidente a inspiração obtida através da cultura familiar, pois
a fragilidade de atender necessidades básicas é no seio da família que primeiro nos deparamos
como o reconhecimento de cidadania munido de com o mundo. Mas, nem todas as famílias podem
direitos sociais. O Estado ao invés de diminuir a propiciar um ambiente intelectualizado e instigante,
desigualdade racial e social, promove a queda de com uma excelente biblioteca doméstica, nem
juros e incentiva o poder de compra. Mas, ainda todos os pais tem a disposição em debater diversos
assim, o acesso à educação, a cultura e ao espaço assuntos com os seus filhos.
público é negado pelas autoridades. Uma camada Os meios pelos quais se chegam à educação,
da sociedade acredita que se igualar a economia, e posteriormente ao sucesso, seriam mediados pelo
todos teriam o mesmo direito de concorrer de Estado que possibilitaria acesso continuum, mas na
maneira justa a vagas nas universidades e melhores prática como diria Carlos Drummond de Andrade
postos de trabalho. Outra parte da sociedade “no meio do caminho tinha uma pedra”. Os
aposta que há uma dívida com a comunidade negra, obstáculos são variados - da cor da pele ao status
sendo assim reivindicam cotas, principalmente sócio-econômico encontramos os entraves de um
para inserção nas universidades públicas. Estado pouco ineficaz na representação máxima
Há uma dificuldade do poder público de de seu povo.
atenuar o abismo existente entre uma classe de cor Uma das pedras encontradas no caminho
e outra, acentuando-se a desigualdade racial, de poderia ser chamada d’o câncer da sociedade. O
renda, saúde e educação entre brancos e negros. racismo, que ainda hoje sobrepuja a consciência
Muitos apontam o sucesso do homem por aquilo do cidadão, inviabiliza e obstrui as relações
que ele conquistou com a sua força de trabalho, sociais no mais estrito conceito, pois ainda não
pela determinação pessoal e posição financeira. superamos essa doença maligna que interfere no
Sabemos que não é só isso, uma série de fatores desenvolvimento de um país livre dos preconceitos
interfere no êxito do indivíduo, pois será preciso de cor e pobreza.
percorrer longos caminhos que muitas vezes se
Segundo o autor da obra “Racismo e
apresentam de maneira íngreme. A educação
Luta de Classes”, Serge Goulart nos lembra que
escolar é a força motriz da tão sonhada ascensão
“o Brasil e Cuba foram os dois últimos países do
social, mas também se faz necessário o capital
mundo a eliminar a escravatura como base de um
cultural que facilite a incursão desse agente.
modo de produção”. (Goulart, 2002, p.11)
Na obra de Lima Barreto explicita-se a
Goulart (2002) continua a exemplificar, que
discrepância cultural, mas que de certo modo
no Brasil havia duas linhas constrangedoras que se
alavanca os desejos do menino Isaias Caminha: “A
encontravam no caminho desse país ainda regido
tristeza, a compreensão e a desigualdade de nível

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A busca por reconhecimento através da educação e os entraves socioculturais de uma classe de cor
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pelas amarras do modo de produção escravocrata, exemplificada aqui, tornou-se mais harmoniosa e
Serge diz: “O desenvolvimento capitalista no Brasil estável a relação do negro no âmbito sociocultural
só podia avançar com a transformação do trabalho brasileiro, Munanga alerta que “está ideia ainda
escravo em trabalho assalariado”. (Goulart, 2002, paira em nosso imaginário social”. (MUNANGA,
p.13) 2006, p. 107).
Vimos aqui que a questão racial foi o As raízes históricas relacionadas aos negros
óbice do acanhado desenvolvimento da sociedade no Brasil continuam presente no imaginário do
brasileira que queria avançar na relação geopolítica homem, que mesmo por avanços obtidos pelas lutas
com o restante dos outros países, como os EUA de pretos e pardos ou de políticas reformistas, ainda
que já havia liberto os negros e não apenas isso, encontram dificuldades perante toda a sociedade,
mas também terras para o plantio agrícola. seja a priori nas escolas, nas universidades públicas
Não obstante, no Brasil, a combinação da ou até mesmo ao desfrutar do espaço público.
pressão da Inglaterra, até então rainha dos mares A marginalidade também foi subscrita pelo
e senhora incontestável da economia capitalista, modo de abolição, que em contraponto dos EUA,
que já havia impulsionado os movimentos de “o fim da escravidão para aqueles que trabalhavam
independência nas colônias ibéricas das Américas, nas fazendas não significou o acesso a terra.
exigia uma modificação na situação do Brasil. Mas, Significou seu despejo das fazendas”. (Goulart,
também lutas internas contra a escravidão, desde 2002, p.17). A sociedade brasileira é baseada nesse
um ideário abolicionista a levantes nas senzalas, atraso, e traz consigo marcas profundas cravadas
dinamitaram o escravismo na segunda metade do em cada indivíduo.
século XIX. Poucos países carregam tantos e tamanhos
A luta do povo negro no Brasil não foi problemas educacionais como o Brasil, para
um processo simples, a assinatura da Lei Áurea Florestan Fernandes isto também é resultado de
(que aboliu a escravidão), não foi suficiente para uma herança deixada pela sociedade escravocrata
resultar em uma solução favorável, pois nesse e senhorial, pois “recebemos uma situação
momento teríamos um contingente de homens e dependente inalterável na economia mundial,
mulheres livres, mas sem direção, sem trabalho, instituições políticas fundadas na dominação
sem moradia. patrimonialista e concepções de liderança que
Não foi através da lei que se ganhou a convertiam a educação sistemática em símbolo
condição de livre voo, pois não estavam isentos social dos privilegiados e do poder dos membros e
dos grilhões da injustiça sócio-racial. Não houve a das camadas dominantes” (Fernandes, 1989, p. 162).
prerrogativa de uma ascensão ou emancipação com Florestan também acredita no papel da educação
oportunidades como aquelas dadas aos brancos, na moldagem do homem, homem este que busca
sobretudo, às camadas ricas da população. Suas a sua identidade, procura reconhecimento perante
práticas religiosas e liberdade de expressão estavam os familiares e a sociedade. Em um país com
subjulgadas pela classe de cor branca dominante. tantas desigualdades sociais e econômicas como
É preciso destacar as lutas de resistência o Brasil a educação ainda é considerada um dos
negra e desmistificar a Ideia que pós a Lei Áurea já poucos meios de se alcançar o almejado, ou seja, a
estabilidade financeira e, não menos importante, o

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status quo, o reconhecimento. constituíam não só uma razão de ser de


felicidade, de abundância e riqueza, mas
O personagem principal da obra Recordações também um título para superior respeito
do escrivão Isaias Caminha de Lima Barreto, pode ser dos homens e pra a superior consideração
tomado como exemplo dessa busca incansável de toda a gente. (Barreto, 20112, p.67)
pelo reconhecimento perante a sociedade. Este
Essa abertura demonstra-nos a figura do
sonha em encontrar seu espaço, sua importância
mulato pobre que ainda não se reconhece como
através da educação e de um título, como
tal. Vê o pai, que é branco, “fortemente inteligente
demonstra o trecho “Ah! Doutor! Doutor!... Era
e ilustrado” e sua mãe com uma origem obscura
mágico o título, tinha poderes e alcances múltiplos,
que trata seu pai de maneira cerimoniosa, quase
vários, polifórmicos...” (Barreto, 2012, p. 75). Este
como uma empregada se dirige ao patrão.
é o caminho encontrado por muitos jovens, mas
Vendo a sua mãe triste, Caminha ainda não
a educação se faz insuficiente e isso se agrava se
a via como uma escrava alforriada e sim imaginava
levarmos em consideração as diferenciações das
que a consternação era devido à discrepância da
classes de cor, que fomenta a desigualdade na busca
educação da mãe com a do pai. “Se minha mãe
pelas oportunidades de inserção e reconhecimento
me parecia triste e humilde – pensava eu naquele
socioeconômico.
tempo – era porque não sabia, como meu pai, dizer
Na obra Recordações do escrivão Isaias Caminha
nomes das estrelas do céu e explicar a natureza da
o autor, Lima Barreto, nos coloca diante de uma
chuva” (Barreto, 2012, p.68).
incrível sensibilidade de mesclar problemas pessoais
O contraste familiar não atenuou os
do personagem principal, que segundo Prado
desejos e aspirações de Caminha. Foi com esses
(1989), traz em seu cerne características do próprio
sentimentos que entrou para o curso primário,
escritor, e problemas sociais recorrentes como a
não hesitou, dedicou-se açodadamente ao estudo
desigualdade racial, econômica e educacional.
e não demorou em brilhar e o mundo era como se
Lima Barreto inicia o livro nos mostrando
estivesse esperando para continuar a evoluir. Era
a vida e a formação do personagem principal,
assim que Isaías Caminha se via.
Isaias Caminha, filho de um padre bem sucedido e
Como era de se esperar, com o tempo a
educado com uma mãe mulata ex-escrava, descrita
energia de Isaias não diminuiu cresceu sempre
pelo próprio filho como obscura por sua ignorância.
progressivamente. Sua professora, dona Ester
Rapaz bem criado e educado aos moldes burguês
imaginou que lhe passava pelas mãos um gênio.
pelo pai, do qual o filho Isaias Caminha nutre
grande admiração e orgulho, principalmente por Para alcançar seus objetivos Isaias “fugia
seu vasto conhecimento e educação. aos brinquedos, evitava os grandes grupos [...]”
(Barreto, 2012, p.68). No Liceu não foi diferente,
O espetáculo de saber do meu pai, realçado
teve uma boa reputação, quatro aprovações e
pela ignorância de minha mãe e de outros
parentes dela, surgiu aos meus olhos de muitas sabatinas ótimas, descreve Lima Barreto.
criança, como um deslumbramento. Isaias lamenta pelas poucas recordações de seus
Pareceu-me então que aquela sua faculdade professores do curso secundário, a única descrição
de explicar tudo, aquele seu desembaraço
de linguagem, a sua capacidade de que faz a eles é que eram banais. Além do mais,
ler línguas diversas e compreendê-las eles não tinham os olhos azuis de dona Ester, que

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“tão meigos e transcendentes que pareciam ler o de ser doutor, pois como dizia Isaías:
meu destino” dizia Isaias. (Barreto, 2012, p. 69).
‘Ora Felício!’ pensei de mim para mim. ‘O
Entendemos que o homem para encontrar Felício! Tão burro! Tinha vitórias no Rio!
o reconhecimento social, precisa de alguns Por que não as havia eu de ter também –
eu que lhe ensinara, na aula de português,
determinantes, como um país que proporcione
de uma vez para sempre, diferença entre
uma estrutura física e política de escolas, e também o adjunto atributivo e o adverbial? Por
de professores bem preparados que façam uma quê!?’ (Barreto, 2012, p.70)
leitura crítica de mundo. Não apenas por uma
Como motivador ou apenas inveja, Isaías
cosmovisão e sim pela interdisciplinaridade.
se coloca a desejar o título de doutor, sonhava em
Que esses professores vejam seus alunos se formar, em ter um anel no dedo, andar nas ruas,
como indivíduos socioculturais, prenhes de nas praças, pelas estradas de cartola e sobrecasaca,
conhecimentos do cotidiano social e geográfico. com as pessoas o chamando de Doutor e se
Só assim os professores poderão conquistar e importando com o seu dia. Para Isaías isso seria
mediar à ascensão dos futuros protagonistas da sobre-humano. Neste ponto da obra Isaías começa
sociedade. a enfrentar o conflito que, segundo Nietzsche
Quando uma cidade ou localidade (1998), é natural ao homem, à busca pelo poder e
qualquer não oferece subsídios para o processo autoafirmação.
sócio educacional e mercado de trabalho, muitos Como todo rapaz mulato, pobre
precisam migrar para outros locais que favoreçam e brasileiro da época que aspirava qualquer tipo
maior espírito cosmopolita. de ascensão e consideração da sociedade era
A migração para cidades de maior necessário um apadrinhamento, ou seja, alguém
desenvolvimento socioeconômico é de dúbio de grande importância e prestigio nas elites para
acento. Há forte tendência para a ascensão social sustentar a jornada do jovem rumo ao topo e que
quanto para extrema pobreza e tamanha dificuldade o apresentasse a elite de modo a ser ao menos
estrutural da infraestrutura urbana. aceito. É exatamente o trajeto que Isaías Caminhas
Mesmo assim, o nosso personagem Isaías acredita que irá traçar, mas ao chegar à cidade
Caminha escutava uma voz que dizia para ir para do Rio de Janeiro se depara com outra realidade
o Rio de Janeiro, pois sua cidade já não bastava, e percebe que terá que alcançar seus objetivos
não era suficiente para atender seus sonhos. Isaías sozinhos, terá que conseguir seus estudos para ser
colocou-se a pensar e a medir as consequências ao doutor sem ajuda e mais do que isso, se depara
mudar para a cidade grande. com o preconceito contra o negro.
Um dia, ao ler o Diário de *** verificou Conforme discutido acima o preconceito
que Felício, um antigo condiscípulo, se formara é uma problema enraizado na sociedade brasileira
em farmácia, e como dizia o Diário, houve uma e passa por todos os âmbitos, mas nos interessa
estrondosa manifestação da parte de seus colegas. especificamente na educação. Já na época que a obra
(Barreto, 2012, p. 70) retrata, inicio do período republicano, a seleção
Havia uma motivação que apontava para o educacional, conforme nos mostra Florestan
empreendimento dos seus sonhos, era a vontade Fernandes, é baseado em privilégios (de riqueza,

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de posição social, de poder, de raça ou religião). habilidades culturais e de letramento são ignoradas
Era de interesse das elites ‘deseducar’ a massa, ou e muitos o julgam inadequado para o trabalho,
seja, os desprivilegiados, negros, mulatos, mestiços mesmo fugindo a regra, pois havia tido uma
e pobres. Estes tinham seu... educação básica espetacular aos moldes da elite.

horizonte cultural claramente delimitado, O personagem de Lima Barreto, Isaias


porque afinal de contas, a cultura cívica era Caminha, não consegue atingir seu objetivo inicial,
a cultura de uma sociedade de democracia se tornar doutor, mas consegue um emprego
restrita, inoperante, na relação da minoria
por indicação em um famoso jornal do Rio de
poderosa e dominante com a massa da
sociedade. Essa massa era a gentinha; Janeiro da época. Neste jornal Isaias sofre uma
e, para ser a gentinha, a educação seria transformação, apesar de permanecer buscando
perola, que não deveria ser lançada aos por seu reconhecimento e a consideração de
porcos (...). (Fernandes, 1989, p. 162)
toda a gente. Este que antes tinha que driblar
Ainda hoje nota-se essa fragmentação da os preconceitos agora passa a agir de forma
educação por classes sociais e, consequentemente, preconceituosa. Na concepção de Isaias para
classes de cor, se levarmos em conta a herança ser jornalista era necessário um embasamento
escravocrata descrita nas páginas acima. As escolas educacional e cultural elevado, qualidades que
públicas da periferia são, muitas vezes, abandonadas muitos dos seus colegas de trabalho, em sua
pelo poder publico e deixadas a sua própria sorte. perspectiva, não tinham. A soberba de Isaias
De todos os lugares, mídia, família, professores passa também pela linguagem, que segundo
etc., os alunos recebem a carga e a responsabilidade Gnerre (1987), é símbolo de status e poder, aliás,
da sua formação e de seu futuro. Delega-se a eles a ferramenta de poder para quem a detém. Isaias
tarefa de “estudar para ser alguém na vida” e “ter passa a julgar as pessoas de seu convívio pelo
um futuro”, amenizando assim as desigualdades seu modo de falar e pela linguagem utilizada. Os
sociais que sofreram a vida toda. A educação de fala mais rebuscada eram detentores de bons
permanece hoje seletiva, tomemos como exemplo estudos e de capital cultural superior aos demais,
as universidades públicas, onde apenas alunos com sendo assim tinham reconhecimento e importância
repertório cultural e educacional superior ao da para a sociedade. Mais uma vez o conhecimento
maioria é que conseguem ingressar nessas vagas, é utilizado como elemento de segregação e para
ou seja, alunos de escolas privadas ou publicas dos qualificar os homens. A norma culta da língua que
bairros centrais tidas como modelo. remete a poder e a persuasão é transmitida através
Eis a briga do sociólogo Florestan do processo de educacional, não apenas escolar,
Fernandes, a briga por uma educação mais mas também no ambiente familiar, pela influência
democrática, onde a qualidade do ensino não leve dos pais nos hábitos de leitura. Isaías além de
em consideração a “qualidade do homem” (etnia, ter tido boa educação contou também com o
classes, região, origem e gênero). conhecimento das grandes obras de literatura que
Isaías que passa a enfrentar a questão seu pai lhe proporcionou. Assim, o personagem
das classes de cor não consegue facilmente um principal de Recordações do escrivão Isaías Caminha,
emprego que lhe proporcionasse estabilidade dominava os códigos linguísticos, muito diferente
para frequentar os estudos. Por ser mestiço, suas de grande parte dos jovens negros e mestiços, que

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precisam aproveitar possibilidades reduzidas do linguagens de ensino-aprendizagem. Assim como


processo de aprendizagem. oficinas de artes, esporte e lazer, esses novos
Dominar os códigos linguísticos, a fala gêneros educacionais aguçariam a criatividade e
rebuscada e a cultura literária são para as sociedades dariam novas percepções de mundo que fossem
complexas fatores expressivos no processo de transformadoras e libertárias.
reconhecimento social e na busca do status quo, pois A esperança é decisiva para provocar
possibilita mobilizar pessoas, influenciar opiniões e mudanças individuais e sociais. Mesmo
demonstra educação sofisticada (Bourdieu, 1977). que muitos a compreendam como força
alienante, ela impulsiona pessoas e
O prestígio de Isaías no jornal em que trabalha
grupos ao encontro de saídas, mesmo que
aos poucos vai sendo moldado e este assume incipientes. Ela gera coragem e amor à
uma postura preconceituosa e segregadora. Este vida, leva sujeito a apreciar os fragmentos
problema de descriminação pelo falar é nítido já de emancipação, a permanecer disponível
e a providenciar o necessário alimento
na época em que a obra se passa e persiste nos para que esses fragmentos fertilizem
dias de hoje, por exemplo, o uso de gírias, muito e cresçam. Por lado, a desesperança
comum em periferias onde a educação é precária, profetiza a morte do sujeito e o compele
à autodestruição, ao lançar sobre os
é ligada diretamente a marginalidade e a pessoas
fragmentos emancipatórios possíveis seus
desprivilegiadas socialmente. vaticínios agourentos. Admitir a morte
A língua que nos une é a mesma que nos do sujeito é não compreender a história
como síntese de múltiplas determinações,
separa. Isaías parece se esquecer das suas origens, construídas a partir das correlações de
do caminho trilhado para o reconhecimento da forças, dentro de várias possibilidades de
sociedade burguesa de seu tempo, assim como saída, presentes no local e no regional,
no nacional e no mundial. (Souza Neto,
hoje, apenas queria reproduzir os valores dessa
2011, p. 170)
classe.
No mesmo livro o autor ainda nos faz
Os valores burgueses não se dão apenas no
lembrar que “o homem também é produto e
âmbito econômico, mas também se apropriam de
produtor do seu cotidiano e de sua história”
outras formas de dominação como pelo substrato
(NETO, 2011, p. 178). Negar esse axioma é negar
linguístico. A língua culta restrita na classe
a condição humana, por isso se faz importante
dominante e aqui enfatizo mais uma vez que não
não observar apenas a questão econômica e sim a
se trata apenas do economicismo, mas também
questão cultural que é construída pelo indivíduo.
do academicismo, ganhando cada vez mais força
segregadora do que concerne a exclusão social.
2
Assim como as gírias, novos códigos são
elaborados, e está claro que a educação formal não Isaías termina o seu relato confessando
deu conta de subsidiar crianças e jovens negros seu desapontamento quanto aos desfechos que sua
ou pobres para que com a forma culta pudessem vida ganhou. Seu árduo caminho rumo à ascensão
decodificar o mundo e seus signos. e reconhecimento social, que começou quando saiu
É preciso esperança que outras fontes de do seio familiar e se atirou a uma aventura no Rio
educação, que não seja a formal, utilizem novas de Janeiro para ser doutor, é cheia de altos e baixos.

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Durante o livro percebemos que em sua chegada todos os desfavorecidos (negros e pobres) também
logo nota que lhe tratam diferente pela sua cor, conseguem sem cotas, mas esquecem de citar que
após entrar no jornal acaba tendo certos contatos o cenário que ele encontra é de um poder judiciário
pela sua educação de “gente abastada”, mas logo onde apenas 13% dos juízes são negros e pardos,
desiste de buscar seu sonho de títulos e prestigio. e estes ganham em média 14% a menos do que
Contenta-se com o pouco que a sociedade carioca seus colegas brancos. Além disso, ignoram que a
do século XIX se propõe a lhe dar. herança escravocrata ainda faz cegar alguns olhos
do quadro social brasileiro com seus reflexos de
Lembrava-me... lembrava-me de que
deixara toda a minha vida ao acaso e forma nítida. Há quem ainda ache natural termos
que não pusera ao estudo e ao trabalho uma quantidade imensa de “patrões” de cor branca
com a força de que era capaz. Sentia-me e “peões” de cor negra e parda, num país onde
repelente, repelente de fraqueza, de falta
de decisão e mais amolecido agora com sua maioria populacional é composta por negros,
o álcool e com os prazeres... Sentia-me pardos e mestiçosi.
parasita adulando o diretor para obter Neste ensaio tentamos demonstrar como
dinheiro... Às minhas aspirações, àquele
forte sonhar da minha meninice eu não a educação e o conhecimento são utilizados como
tinha dado as satisfações devidas. A má ferramenta para se alcançar o reconhecimento
vontade geral, a excomunhão dos outros perante a sociedade e a ascensão social. No entanto
tinham-me amedrontado, atemorizado,
ainda hoje para muitos brasileiros não há garantias
feito adormecer em mim o Orgulho,
com seu cortejo de grandeza e de força. de êxito nesta busca, pois há os empecilhos
Rebaixara-me, tendo medo de fantasmas impostos por uma sociedade ainda muito marcada
e não obedecera ao seu império. (...) pela escravidão e os preconceitos entre classes de
Sentia-me sempre desgostoso por não ter
tirado de mim nada de grande, de forte e cor.
ter consentido em ser um vulgar assecla e Isaías Caminha, personagem de Lima
apaniguado em um outro qualquer. Tinha
Barreto, demonstra a trajetória de muitos jovens
outros desgostos, mas esse era o principal.
Por que o tinha sido? Um pouco devido brasileiros, em sua maioria vindos das periferias,
aos outros e um pouco devido a mim. que tentam trilhar um caminho de sucesso, mas
(Barreto, 2012, p.300-301) acabam barrados pelos preconceitos e dificuldades
Este é o destino de muitos negros no Brasil, impostas em sua educação formal.
que tenta esconder sua face preconceituosa com
discursos como “ser contra a cota porque os negros
têm a mesma capacidade” e “os negros também
são racistas”. Estes discursos só ignoram o fato de
que o caminho que os negros e pardos percorrem
pra chegar onde almejam é, quase sempre, mais
árduo do que o do branco. Podemos evocar um
caso atual de homem negro brasileiro “que deu
certo”, o ministro Joaquim Barbosa. Pessoas
utilizam sua imagem para veicular mensagens com
dizeres que indicam que se ele conseguiu chegar

Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 42-51.
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Dossiê Lima Barreto

A busca por reconhecimento através da educação e os entraves socioculturais de uma classe de cor
Marcella de Campos Costa e Kleber Aparecido da Silva

Notas:

i
Cerca de 191 milhões de brasileiros em 2010, 91 milhões se classificaram como brancos, 15 milhões
como pretos, 82 milhões como pardos, 2 milhões como amarelos e 817 mil indígenas. Registrou-se uma
redução da proporção brancos de 53,7% em 2000 para 47,7% em 2010, e um crescimento de pretos (de
6,2% para 7,6%) e pardos (de 38,5% para 43,1%). IBGE - 2011.

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Dossiê Lima Barreto

A busca por reconhecimento através da educação e os entraves socioculturais de uma classe de cor
Marcella de Campos Costa e Kleber Aparecido da Silva

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Curadoria de Artes, Micropolíticas Culturais


para a América Latina
Nirlyn Karina Seijas Castillo
Artista da dança, mestranda do programa
multidisciplinar de pós-graduação em cultura
e sociedade da Universidade Federal da Bahia,
Especialista em Estudos Contemporâneos em
Dança pela Universidade Federal da Bahia,
e Licenciada em Dança pela Universidad
Experimental de las Artes, Venezuela. Membro
da Associação Nacional de Pesquisadores
em Dança. Diretora Geral e Curadora da
Plataforma Internacional de Dança/Bahia.
Produtora executiva da Coreógrafa e Bailarina
Gilsamara Moura. Coordenadora Geral do
Catálogo Virtual de Dança/BA 2012

Resumo Abstract
Este artigo pretende questionar as possibilidades de This article aims to question the possibilities of
ação política envolvidas no trabalho da curadoria political action involved in curatorial practices.
de artes. Faz um percurso pelo entendimento da It is a journey through the understanding of
curadoria da contemporaneidade, suas funções, contemporary curatorial work, its functions, its
suas possibilidades de escolha e de influencia choice and influence over certain contexts and
sobre determinados contextos e ambientes, environments, indicating its ability to give visibility
apontando sua capacidade de dar visibilidade à to artistic production and to generate discourses
produção artística e de gerar discursos através das through the artistic activities that it promotes and
mostras artísticas que promove e organiza. A partir organizes. From this reasoning begins a reflection
desse raciocínio inicia uma reflexão, na tentativa in an attempt to build a bridge over the critical
de construir cruzamentos sobre pensamentos thoughts that call for suggestions and strategies to
críticos que convocam sugestões e estratégias para boost cultural development in the Latin American
dinamizar o desenvolvimento cultural na região region.
latino americana.

Palavras -Chave Keywords


curadoria, desenvolvimento, políticas culturais, curatorial practice, development, cultural policies,
America Latina. Latin America

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Dos críticos aos curadores como acadêmicos e experimentadores, sempre


transitando e permitindo com esse transito que
Parto do pré-suposto de que a “teoria
os fazeres se complexifiquem, se relativizem e se
da arte” foi construída pelos críticos e pelos
enriqueçam.
historiadores. Contudo, nestes últimos 50 anos,
esta tarefa vem sendo distribuída em diversas De qualquer forma, o que realmente é
mãos, dando mobilidade, diversidade de narrativas importante salientar neste artigo é que a natureza da
e multiplicidade de visões que fazem da arte um curadoria pode permitir uma transformação tanto
universo ainda mais complexo. da atividade da própria crítica, quanto da prática
artística e da relação com os espectadores, pois ela
Assim, a teoria de arte normalmente
estabelece outros nexos com as materialidades das
construída a partir da crítica, passou das mãos
obras, suas apreciações, avaliações e localizações.
dos “críticos especializados” às mãos dos artistas
(FERREIRA, 2010, p. 47).
que decidem cada vez mais argumentar, teorizar,
escrever, criticar seus próprios trabalhos e os Compromisso político na prática curatorial
trabalhos de seus colegas artistas, determinando
assim o fim do poder que envolvia a figura do A partir do surgimento das artes
crítico e deslocando-a então à curadoria, por ser, contemporâneas, se cria uma nova situação para
na sequencia, a figura que decide de forma prática a curadoria, que vai além do velho conceito do
os rumos da arte visível (eles decidem o que circula, curador como zelador do acervo de arte e da a ele
o que se mostra, o que se vende). uma noção de organização, criação de discurso,
amplificação de visão e propositor de políticas de
Hoje a curadoria tem potencial para
entendimento, percepção, poder.
transformar as artes pelo simples fato de gerar
visibilidade para umas questões e outras não. Pode agir no seu âmbito muito particular
Este “poder” pode ser utilizado para aportar de (a curadoria) como espécie de gestão cultural, de
maneira prática e concreta ao desenvolvimento forma que pensa o que de seu contexto pode ser
de um pensamento-conhecimento cultural em movimentado para obter outro resultado, cobrir
determinada região onde age, para modificar uma carência, fomentar certas questões, e então
realidades, para criar discursos necessários ao agir na sua prática com consequência a isto.
mundo de hoje, para fazer circular o conhecimento O discurso curatorial tem a capacidade
construído coletivamente por artistas, ou (claro!) de falar sobre questões políticas e estéticas que
pode se constituir como uma simples estrutura de colocam ao curador no lugar dos formadores de
poder, onde arbitrariedade, o interesse pessoal, a opinião, que permitem e promovem reflexões
repetição dos modelos impostos, etc, tem espaço sobre a cultura de sua sociedade, trazendo à luz
para continuar existindo de forma influente e noções diversas sobre uma questão que podem
radical na cena das artes. modificar o jeito em que as enxergamos.
A curadoria na contemporaneidade Conhecer bem o meio onde se apresentará a
também não sempre escapa das mãos destes exposição, ter uma posição sobre o que é necessário
novos artistas que se colocam como criadores de ser apresentado e estabelecer o que queremos
e pensadores, como intérpretes e gestores, promover nesse meio, são elementos fundamentais

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para gerar uma mostra artística que mobilize o (Bolívia). Não é que seremos bairristas no sentido
senso dos espectadores para uma determinada mais retrograda, mas com certeza as questões
direção. É importante pensar no que faz falta em são contextuais e serão mais potentes se temos
nosso espaço e pensar como a curadoria de arte consciência disso. Uma mostra artística tem um
pode apontar para essas reflexões. local de “residência”, e também terá territórios
Os curadores assim como “os artistas, não imaginários em cada um dos espectadores,
estão acima da realidade política: a sua liberdade desdobramentos culturais por todos os signos e
não é de modo nenhum imunidade, antes se imagens propostas nas obras, em fim, reverberações
realiza precisamente na força e na clareza das não sempre mapeáveis a priori. As exibições, por
suas intervenções”. (ARGAN, 1995, p. 45). Os tanto tem amplitude tanto local quanto global, é
curadores devem pensar muito bem a quem uma das propostas do mundo nas quais a gente
estão dirigindo o seu discurso, como aporta pode pensar global e agir local e vice versa, em
esse discurso a determinada realidade, e em que função de não perder de vista a complexidade do
âmbito está atuando porque, por exemplo, um fenômeno artístico e suas implicações na cultura.
festival internacional pode querer refletir sobre a O discurso curatorial que aporta ao âmbito
complexidade das relações culturais, revelando o do político convoca a ideia da curadoria como um
potencial da pluralidade, e as relações multiaxiais, “dizer alguma coisa”, como um manifesto que não
explorando uma idéia de cultura global; mas uma só se gera através de algum texto que o curador
mostra local num bairro em situação de risco possa produzir para acompanhar sua mostra, se
pode possibilitar discussões sobre a violência, não que é um discurso que aparece também na
a responsabilidade social, as diferenças de materialidade da mostra artística, na organização
oportunidades, promovendo sempre o diálogo das peças expostas ou apresentadas, nos recortes
entre uns artistas e outros e entre alguns públicos propostos, em cada obra mostrada, no estudo
e outros. que se realizou antes, no acompanhamento de
As possibilidades são infinitas. Basta certos artistas, obras, tendências, na capacidade da
ser estudioso, propor uma discussão pertinente curadoria de ser um termômetro de diz qual é a
ao contexto e estudar quais são as obras que temperatura da arte e quais são suas propostas.
colocadas em relação, podem ajudar a se inserir
Potencializando discussões através da
nesta discussão e trazer visões sobre o assunto, às
curadoria
vezes sendo incisivo, às vezes sendo tangencial,
às vezes sendo discreto, tudo vai depender do O ponto chave da curadoria é a forma
contexto onde se está inserido. como a mostra se apresenta, este é o diferencial
Esta forma de criar discursos e para este espaço potencializar outros assuntos
questionamentos tem tanto a ver com o sistema ou não. É na montagem da grade programática
geral da arte como com a idéia local da produção que o curador consegue expressar seu ponto de
e da vida em determinado país, cidade, bairro, etc. vista. Cada escolha pode refletir os objetivos, as
Não é o mesmo questionamento que pode ser condições e as ideologias da curadoria. No melhor
produzido na América Latina e na Índia, nem o dos casos, a organização do espaço-tempoi faz
mesmo em Belém do Pará e na cidade de La Paz que o espectador perceba a clareza da informação

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que está em jogo, tanto das obras como unidades sua reflexão e por isso deve estar em plena relação
de sentido, quanto da exposição como unidade de com a história e a vida política do contexto.
conteúdos e sentidos culturais. Talvez precise ter capacidades aguçadas
A mostra artística feita através de uma de reconhecer o discurso que vale a pena ser dito
curadoria, cria conhecimento, sentidos, cadeias e buscar as peças, as equipes, as estruturas para
de pensamento e ação. Na prática o discurso do fazer este discurso existir. É fundamental pensar o
curador se faz através das relações estabelecidas espaço da mostra de arte como um possível espaço
entre as obras, assim como na própria materialidade de confronto, diálogo, confluência e reflexão, de
dos trabalhos escolhidos; essa é uma possível lógica prática política, sobre onde estamos e para onde
do “dizer algo” de um curador. Os curadores queremos ir. Nesse sentido, espera-se que os
geralmente explicitam de formas inusitadas, que curadores saibam relacionar as lógicas das obras
tipo de relação está querendo propiciar com de artes com a história da arte e o contexto da
essa curadoria, manifestando seu ponto de vista, sua realização com outros trabalhos de arte que
articulando as peças apresentadas com esse ponto constituam um campo de conhecimento que esteja
de vista e garantindo que essas aproximações sejam dentro da discussão atual.
percebidas também pelo espectador.
A curadoria pode ser uma micro-política
A realização da mostra artística se configura
cultural para America Latina?
como uma “criação” do curador, onde ele conjuga
conclusões de suas análises, os quais estarão em É possível fazer um exercício para
relação com o objetivo da mostra e algumas outras reconhecer certos aspetos sobre nossa região
coisas ressaltantes, à natureza e materialidade que podem e devem ser salientados pelas práticas
própria das obras escolhidas, seus próprios curatoriais feitas neste contexto? Como a curadoria
aportes criativos, éticos, estéticos, ideológicos e pode abranger a complexidade de territórios e
compositivos, configurando um espaço para a culturas que implica esta parte do mundo?
defesa de ideias e apostas políticas curatoriais que Vale a pena uma reflexão a este respeito,
versam sobre as obras, sobre o status da arte, sobre pois algumas coisas em comum conectam esta
a contemporaneidade. Latino-América entre si, mesmo que às vezes
Para isto, e já o tínhamos comentado nos parece que cada país tem sua historia e sua
antes, um curador deve ser um estudioso tanto especificidade, é possível ao meu entender achar
da história da arte e da cultura quanto da cultura confluências de necessidades e preocupação tanto
e arte contemporânea que se faz no seu tempo e estéticas quanto artística, políticas, econômicas,
região. O curador pode ser um pensador da área em fim, culturais.
na que se envolve em função de não sucumbir
à tentação de só fazer circular aquilo que gosta; Circular, viajar, vender dentro da América
muito menos quando se trata de dinheiro público. Latina
A relação entre o público e o privado deve ser Pesquisas culturais e artísticas (Bourdieu,
cuidada exaustivamente. O curador exerce o direito Eco) demonstraram que a criação cultural
se forma também na circulação e recepção
à liberdade de pensamento, mas isto não suspende dos produtos simbólicos. É necessário,
sua responsabilidade social, pois faz uso público da por tanto, dar importância, nas políticas

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culturais, a esses momentos posteriores importância que estes podem ter na construção
à geração de bens e mensagens, isto é, de uma Latino-america mais potente como região
ao consumo e apropriação das artes e da
mídia. (CANCLINI, 2008, p. 76) simbólica e cultural. Como podemos os curadores
gerar esta familiaridade, quais são os mecanismos
Comecemos por situar algumas questões a
que vamos utilizar para aproximar (sem satisfazer
mais das já ditas sobre o ofício do curador. Convido
de forma solta) nossos cidadãos das preocupações
a pensar em que posição da cadeia produtiva das
que ocupam a arte e que são de forma direta
artes está a pratica do curador. Na minha percepção
preocupações que dizem sobre todos nós, alguma
este fazer muda muito com respeito às inquietações
parte sempre nos atinge, ou pelo menos pode abrir
de cada curador, mas, geralmente, o curador faz
as portas para novas percepções, enriquecimentos
parte de um estádio muito importante da produção
e visões de mundo.
artística que é a distribuição, circulação e mobilidade
As políticas culturais, e fazendo o transito,
dos produtos simbólicos que são produzidos por
as políticas curatoriais, devem contrarrestar os
artistas no mundo inteiro. É aqui, que seu papel
efeitos de uma tendência à privatização dos bens
é fundamental. No momento em que a obra é
simbólicos, e de uma apropriação da mídia que acaba
consumida, por quem, onde, como, antecedida por
com construções polifônicas e multidirecionadas.
que, sucedida por que, são perguntas fundamentais
Parecesse impossível, mas é esse um dos principais
na curadoria.
papeis de uma mostra de arte, sua capacidade
Uma curadoria, com ferramentas para
de aproximar e mostrar aquilo que você não vê
responder estas perguntas, tem o potencial (como
sempre na TV comercial e que também pertence
dizemos ao principio do artigo) de modificar
às construções simbólicas de nossos cidadãos.
o rumo da produção artística e de sua recepção
A criatividade cultural desenvolve neste
também. O momento do consumo cultural é
triangulo ESTADO, MERCADO e ARTE, um
fundamental para alcançar uma familiaridade com
papel importantíssimo porque é quem pode dilatar,
a produção artística que desdobre em relações mais
movimentar e realinhar os espaços de integração
aprofundadas entre vida e arte. Uma curadoria
cidadã, integração transnacional, transcultural, etc.
que só sucumbe a razões econômicas, pressões da
“Promover políticas culturais e de integração no
“moda” artística, sobrevaloração de estilo ou tipo
meio às novas formas de privatização transnacional
de obras, sem pensar em como isso afeta o contexto
exige repensar tanto o Estado como o mercado,
que toca e como poderia ser transformador fazer
e a relação dos dois com a criatividade cultural”
diferente, perde a maior parte de sua possibilidade
CANCLINI, 2009, p.76
de mudar a realidade do contexto onde está sendo
realizado. E perde a possibilidade de se pensar Todo profissional que entenda, trabalhe
como “micro política” onde se traçam objetivos na e movimente noções sociais e públicas, deve se
base da pesquisa, da instigação e da compreensão questionar qual é o verdadeiro significado do
do meio com o que lidamos. público, e de como o público (último estágio
da cadeia produtiva) esta sendo nestes tempos
A geração de familiaridade e de apropriação
dominado por certa produção cultural que
por parte dos cidadãos aos bens simbólicos é
neutraliza este sentido do público e o “privatiza”,
indispensável para compreender a dimensão e
por assim dizer, simplificando sua complexidade e

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satisfazendo os interesses do mercado em quanto árdua. Inclusive porque viemos duma escola de
produtor de sentido, de gostos e de expectativas. formação “eurocéntrica” que pouco se ocupa
Devemos nos perguntar quais são as em aprofundar os fazeres artísticos locais, a
possibilidades para que novas políticas culturais interação entre artistas de uma mesma região, de
criem estruturas e estratégias para negociar uma realidade política e histórica semelhante e
espaços com esta nova privatização dos gostos, que de aprofundar a pesquisa, a experimentação e a
empobrece nossos sentidos e minimiza o senso descoberta própria. Inclusive aqueles movimentos
crítico da população. São precisas políticas onde “... identitarios, reduzem a manifestação de nossa
haja lugar não apenas para aquilo que é vantajoso cultura a um tipo de lógica esteriotipada que
para o mercado, mas também para a diferença e a pouca diversidade e coesão da a nossos produtos
dissidência, para inovação e o risco. Em suma: para artísticos. Viemos de uma cultura da repetição,
elaborar imaginários coletivos interculturais mais cópia e pouco da transgreção, contextualização,
democráticos e menos monótonos” (CANCLINI, resignificação.
2008, p. 79), que possam enriquecer nossas visões O pior, quando pensamos na região
de mundo e abram possíveis portas para a cultura latino-americana, é que em outros tempos esta
que queremos. simplificação da produção simbólica era dada pela
Hoje, o grande desafio das artes e a colônia (prática o simbólica), regimes de governos
cultura Latino-americana é como reconhecer as nacionalistas que reprimiam a diversidade, e
áreas estratégicas do nosso desenvolvimento, hoje está sendo imposta pelas grandes indústrias
inclusive pensando neste desenvolvimento não transnacionais (americanas, europeias e agora
como o já fracassado conceito moderno que nos chinesas) que continuam determinando o que
ensinaram as democracias ocidentais, se não esse consumimos e como o consumimos neste
desenvolvimento que condiz às características território, fazendo que sejamos vendidos ao
particulares de nossas práticas sociais e que estrangeiro como potencia exótica quase unívoca
melhorariam a qualidade de vida de nossos cidadãos. e comprando o que eles nos vendem, seja o que
Porém pensando que desenvolvimento implica for. Digamos que é como estar mudando a o santo
inevitavelmente o mercado global, o comercio de mais não a igreja, seguimos estando colonizados.
bens e serviços onde devemos nos posicionar de Contudo, em Latino-america existem espaços de
forma mais efetiva e clara, em função de beneficiar resistência, e é possível sim promover e encontrar
de forma contundente nossa sociedade. práticas artísticas que mergulhem na velha escola
não para copiar se não para recriar o material do
A pergunta-chave não é com que ajustes
econômicos internos vamos pagar melhor que preocupa, ocupa e excita o senso estético,
as dívidas, e sim que produtos materiais político e artístico dos cidadãos.
e simbólicos próprios (e importados)
Por isso, e agora nos valendo diretamente
podem melhorar as condições de vida
das populações latino-americanas e da fala do García Canclini:
potencializar nossa comunicação com as
Afirmar que os leitores e espectadores
demais” (CANCLINI, 2008, p.103). têm a ultima palavra na decisão do que
Na curadoria este papel de reconhecer merece circular e ser promovido é uma
meia verdade dos discursos de marketing;
nossas potencialidades parece sempre uma tarefa

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uma afirmação que se mostra enganosa um segredo que trazer um artista da Espanha é mais
em sociedades onde os Estados fazem barato que um do Equador. Um absurdo?, é, mas
cada vez menos por formar públicos
culturais, com bibliotecas entendidas é a realidade. Isto é muito grave, nem os próprios
como depósitos de livros e quase nunca gestores públicos de cultura, nem movimentos
como clubes de leitura, com sistemas estudantis universitários, nem o movimento da
educacionais que ainda não percebem
classe artística tem conseguido instaurar medidas
– como aconteceu recentemente na
frança – que aprender a avaliar os meios de pressão fortes que criem medidas de incentivo à
audiovisuais deve fazer parte do currículo mobilidade de materiais culturais dentro do âmbito
fundamental. (CANCLINI, 2008, p. 79) latino-americano.
Sob o rotulo “o público sabe o que lhe Será possível pensar como a curadoria influi
interessa, gosta e quer”, diversos crimes culturais nesta dinâmica, mesmo sendo custoso, será que
são realizados dia a dia nas nossas radiodifusoras, podemos fazer circular sempre produtos latino-
nossas televisões e nossos jornais. Como fazer americanos, lidando de modo ágil e consciente
frente a esta massificação incompleta da informação com as diferencias políticas e históricas que esta
e da produção cultural? E como fazer frente a região compreende, em função de contrarrestar a
esta união latino-americana que se gera só através falta de posição e ação de nossos governos frente
desta relação linear com o mercado estrangeiro? ao que chamamos mobilidade de bens e serviços
Quais são os tipos de integração latino-americanas dentro da região. Precisamos organizar estratégias
possíveis fora o olho da transnacional interessada para sensibilizar e obrigar os países a passar dessa
unicamente na nossa capacidade de consumir cooperação internacional que temos, a um que “(...)
produtos trazidos e produzidos fora do nosso trabalhe como o que é possível homogeneizar, com
território e fora de nossas políticas? as diferenças que persistirão e com os crescentes
Esta realidade não toca unicamente a conflitos interculturais” (CANCLINI, 2008,
produção cultural senão todo o consumo em geral, p.104).
mas focando na produção artística que é a que A integração na América Latina
tem mais a ver com curador, devemos reconhecer continuará sendo uma Utopia, entre aspas
que as políticas de integração e distribuição irônicas ou cínicas, em quanto não houver
articulação entre trabalhadores, indígenas,
dos bens culturais entre países da América são consumidores, cientistas, artistas,
muito complexo, custoso, desorganizado e produtores culturais; em quanto não
desbalanceado. Os nossos acordos de cooperação incluirmos na agenda formas de cidadania
latino-americana que reconheçam os
internacional pouco ou nada se ocupam de apoiar
direitos de todos os que produzem
e estabelecer políticas que beneficiem a mobilidade dignamente dentro ou além de seus
do conhecimento que se produz em universidades, territórios de nascimento (CANCLINI,
estúdios de artes, conservatórios, projetos sociais e 2008, p. 105).
demais iniciativas que realizamos. Nosso Mercosul, Aladi, Alca, Alba, pouco
Ainda baseados em preocupações sobre tem respondido a estas demandas, mesmo sabendo
como abaixar impostos para levar e trazer que muito se contribui para o desenvolvimento da
mercadoria, não estão conseguindo abranger a cultura quando se tomam medidas que beneficiam
produção simbólica de modo satisfatório. Não é esta circulação, distribuição, consumo, como

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podem ser casos europeus, japoneses, inclusive ser colocada encima da ação governamental, e
norte-americanos. A mobilidade dos bens culturais compartilho esta ideia, pois devem se atualizar e
permitirá uma amplitude de possibilidade, mercado, aprimorar as legislações, leis de amparo à cultura.
visões e desenvolvimento da própria produção Porém, e sabendo que a complexidade e lentidão
cultural, dando fortaleza à economia cultural e da nossa maquina burocrática demora longos
criativa que desde faz alguns anos vem apontando períodos para poder mudar pequenos retalhos de
uma nova possibilidade de desenvolvimento tecido, acredito que a participação dos gestores
econômico sustentável nas cidades. culturais, as comissões de seleção de projetos a
Não podemos seguir recebendo de braços serem incentivados, as curadorias de arte e dos
abertos os “presentes” da cooperação internacional criadores de obras e projetos artísticos, sejam
europeia, que só beneficia a mobilidade de seus fundamentais nessa construção de intercâmbio
produtos, só para não organizar, forçar e mobilizar de conhecimentos entre nossas populações na
nossos próprios recursos em função de fazer circular America latina, pensando estes atores como
nossa produção artística. Os países “centrais” também fazedores de micropolíticas capazes de
estão certos em querer distribuir seus produtos, mobilizar a afetividade do público, o fazer artístico
pois sabem quanto isso gera sustentabilidade para e o rumo da cultural.
seus produtores, devemos seguir o exemplo, não O público, entendido como parte
só comprando, mas vendendo, mobilizando, e fundamental da relação entre a produção simbólica
circulando também o que é produzido nas nossas e a sociedade, deve ser explorado, estudado,
cidades, por nossos artistas, teóricos, pesquisadores, entendido, e deve se construir uma relação
etc. infinitamente mais atrelada, pois será, talvez,
(...) não é a mesma coisa o programa a única forma de ação política que possa fazer
Media ou Eurimages ser aproveitado por frente à avalancha de informação padronizada que
Claude Chabrol, Pedro Almodóvar ou
os canais Plus europeus do que por um recebemos diariamente.
diretor de cinema uruguaio, um editor A criatividade cultural implica os públicos
mexicano ou um produtor de televisão
que são no final das contas, o último consumidor e
costa-riquenha, que devem se bater com
legislações pré-midiáticas nas alfândegas construtor de sentidos e desdobramentos daquilo
de seus países, com burocracias que tratam que entendemos como produção artística. Por esta
filmes e livros como objetos supérfluos. relação é que continua sendo importante aprimorar
A pesar dos acordos assinados em 1998
para liberalizar a circulação dos bens e a educação artística, o apoio aos autores, aos
serviços culturais (a Associação Latino- editores, os museus, canais de televisão, festivais
americana de Integração e o artigo XIII de artes cênicas, que são onde estes produtos são
do Protocolo do Mercosul), as práticas
consumidos, difundidos e distribuídos.
alfangendárias dos governos desconhecem
essas facilidades (Saraiva, 1997). Isso nos Os curadores de artes precisam se
leva a dois desafios estratégicos: a integração aproximar tanto aos artistas como ao seus
multimídia e as legislações de amparo à cultura.
públicos, estudando aprofundadamente o que
(CANCLINI, 2008, p. 78)
pode mobilizar sua afetividade, sua capacidade
Desde o pensamento do Canclini, fica de resignificação, e aprender a usufruir isto que
parecendo que muita responsabilidade deve lhes pertence como direito, se preocupando em

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estabelecer estratégias que possam garantir um atendam à diversidade dos nossos espectadores,
consumo cultural maciço que possa ser acessados sem anular ou ignorar esta diversidade, senão
com a menor discriminação possível. “Sobretudo fazendo dela o grande potencial de diálogo, de
para descobrir e pensar como podem as culturas aproximação, de conjunção, de oportunidade.
populares sair de seu abandono local e, com suas O panorama complica porque, nestas
criações e saberes participar competitivamente do ultimas décadas, este ser “latinoamericano” está
comércio global”. (CANCLINI, 2008, p.94) mudando rapidamente, “A pergunta sobre o que
Não é uma tarefa fácil pensar no público, significa ser latino-americano está mudando, as
ainda mais quando estamos na frente de uma região respostas outrora convincentes se desvanecem
onde o público é latino-americano. Nesta hora e surgem dúvidas quanto à utilidade de assumir
é necessário lembrar-se da particularidade de se compromissos continentais” CANCLINI, 2008,
debruçar num território, um conceito e uma região p. 24. Muitas questões estão sendo colocadas
simbólica tão complexa quanto a America Latina. para que pensemos como fazer possível um
Este território que compreende algumas dezenas de percurso que gere tensões, gere leveza na relação
países no centro e sul América, todos multiculturais, e riqueza na vivência deste contexto cultural,
multirraciais, com grande diversidade de classes apropriando-se cada vez mais dos compromissos
sociais, religiões, noções estéticas, é estigmatizado com quem é familiar e não com regimes política ou
por uma coesão cultural um tanto simplificada sob economicamente estabelecidos.
“uma identidade só”. Como convocar discussões Ainda tem uma questão, não menor,
na frente desta complexidade? que identifica nossa região como uma parte do
Por exemplo, achamos que na America mundo que por diversas razões nos últimos
Latina tudo mundo sabe dançar salsa, sendo que anos se espalhou pela Europa, Estados Unidos,
inclusive nos países com grande influência salseira principalmente, mas também dentro da própria
existem não só pessoas quanto grupos culturais latino-america, construindo um mapa complexo de
que não valorizam este ritmo e baile (e toda sua migrações, muitos exílios (políticos, econômicos) e
estética) e não dançam, não ouvem, não fazem outras mobilidades, sobretudo dos profissionais de
parte, não conhecem, não se interessam. Isto é só classe media que transitam pelo mundo levando e
um exemplo para localizar a quantidade de reduções trazendo conhecimentos e experiências.
que fazemos sobre o contexto latinoamericano e o “A América Latina não está completa
perigo da reflexão que venho propor, pois acredito na América Latina. Sua imagem é devolvida
que só pensando na complexidade, diversidade, por espelhos dispersos no arquipélago das
multidões, poderemos ter alguma aproximação migrações” (CANCLINI, 2008, p. 25). Este
a uma prática curatorial que dê conta das ponto é fundamental quando queremos entender
preocupações também múltiplas deste universo. inclusive como se constroem as artes, pois neste
As identidades políticas instauradas a partir campo, quase com religiosidade, a mobilidade,
dos anos 50´s nos deixaram um ranço de unidade transferência, transitoriedade territorial enriquece
que muito contribui para a impossibilidade de fazer as práticas, as acompanha, as nutre com tudo o
estudos suficientemente aprofundados sobre como que vá sendo recolhido no caminho. O tempo
poderemos gerar lógicas, discursos e práticas que inteiro temos dificuldade de saber de onde é tal

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artista pois nasceu em Irã, mas mora entre Belgica, medrosa do diferente, racista, conservadora,
Dinamarca e passa mais de 4 meses por ano na precisamos gente que lide com a multidão que
America Latina. É muito típico este fenômeno nas representa este território e que não precise fechar
artes, o qual complexifica ainda mais a vontade de quadros que acalmem suas dúvidas, suas questões,
encontrar caminhos possíveis de mediação entre suas possibilidades de criar o mundo que quer viver
saberes e fazeres locais e globais, artistas e públicos, com menos pré-conceito e mais criatividade.
diversidade e organização. “Podemos dizer que Acredito na curadoria que modifica, e
“o latino-americano” anda à solta, transborda pensando em América Latina acredito que uma
seu território, segue à deriva em rotas dispersas” curadoria que considera estes aspetos pode fazer
(CANCLINI, 2008, p. 27). diferença nas hipóteses que se propõe:
Parece-me instigante neste contexto que - Diversidade cultural, diversidade de
colocamos sobre a mesa, pensar numa curadoria públicos, diversidade de entendimento, vozes,
capaz de influir nesta narrativa tão variada e formas, pensamentos.
polifônica que é América latina, aos poucos, com - Relação entre o público e privado, entre o
algumas iniciativas, desde seu espaço, seu recorte bem de todos e as novas formas de privatização.
e seu poder. É um desafio que poderia convocar
- Distribuição dos bens culturais como
a discussão sobre a responsabilidade do curador
elemento fundamental da distribuição mais
na frente de seu contexto. Nesta parte do mundo
equitativa da qualidade de vida.
há de se ser muito cuidadoso sobre nossa visão de
mundo, sobre nossa capacidade de abrir caminhos, - Circulação de conhecimento, de arte, de
de abranger vozes diversas e de falar com vários produção simbólica como motor de sustentabilidade
tipos de corpos, pensamentos, ações, preocupações, e mudanças na cidadania.
urgências. - Acordos e microcooperações que
Estes pontos que assinalamos sobre possibilitem a mobilidade e visibilidade da nossa
a America Latina são só algumas razões “... produção pode modificar a familiaridade da
que desautorizam qualquer narrativa não sociedade aos bens criativos.
suficientemente polifônica, com fortíssimos e - Curadoria como motor de discussões,
pianíssimos para transmitir a heterogeneidade ampliador de visões e possibilitador de novos
de América Latina, suas variadas escalas de caminhos.
desenvolvimento” (CANCLINI, 2008, p. 31). O fato artístico, a mostra artística, o fazer
Essa responsabilidade do curador que simbólico mediado por curadores engajados com
nesse artigo convocamos, tem a ver como a a realidade política podem mudar (em escalas
talvez capacidade de influir neste mal chamado desconhecidas por falta de avaliações qualitativas
“desenvolvimento” da sociedade e aumento de em longo prazo) a maneira em que nossos latino
qualidades de vida que permitam uma interação americanos se enxergam e enxergam suas riquezas e
maior dos cidadãos com bens culturais que os especificidades como indivíduos, como sociedade,
contemplam, que os instigam e que os fazem como motor de economia, política e produção
abrir portas para uma sociedade mais aberta, mais criativa, cultural, simbólica. Eis, ao meu entender, a
possível, mais enriquecida, menos zenofóbica, grande potencia da curadoria na América Latina.

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Notas:

i
Espaço no caso das artes plásticas, visuais ou exposições onde o percurso do espectador contempla
deslocamento no espaço como condição principal; tempo ou programação no caso das artes temporais
como a música ou as artes cênicas.

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Uma percepção das mudanças no modelo de


Estado após a crise econômica de 2008 sob o
foco dos conceitos do Republicanismo Clássico
Thiago Henrique Desenzi
Graduado em Engenharia Civil, Especialista em
Gestão e Políticas de Cultura pela Universidade
Metodista de São Bernardo do Campo e
Graduando em Sociologia e Política pela
FESPSP - Fundação Escola de Sociologia e
Política de São Paulo.
Contato: thiago.desenzi@gmail.com

Resumo Abstract
Um estudo da crise econômica mundial de 2008 a A study of the global economic crisis in 2008
partir de um resgate das idéias do republicanismo from a redemption of the ideas of classical
clássico, buscando traçar percepções de como republicanism, in order to describe perceptions
a teoria republicana pode colaborar para uma of how the republican theory can contribute to a
melhor compreensão das dinâmicas da crise, bem better understanding of the dynamics of the crisis,
como para as possíveis resoluções desta a partir da as well as to possible resolutions of this from the
lógica do Estado. logic of the State.

Palavras -Chave Keywords


Crise econômica; Republicanismo; Estado. Economic crisis; Republicanism; State.

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Uma percepção das mudanças no modelo de Estado após a crise econômica de 2008 sob o foco dos conceitos do
Republicanismo Clássico
Thiago Henrique Desenzi

1. Introdução e que buscaria transferir toda a esfera de ação


possível para que o mercado viesse a gerir isento
Com o “estouro” da bolha do mercado
de sua intermediação efetiva, sob a premissa que
imobiliário norte americano em 2008, estamos
o mercado livre sem esta ação incisiva do estado
assistindo até os dias atuais o desenrolar de
poderia trazer uma maior liberdade aos indivíduos,
uma grande recessão econômica de amplitude
e segundo Friedman (1985, p.177): “A essência
mundiali, com enormes reflexos na economia
da filosofia liberal é a crença na dignidade do
cotidiana. Tal colapso na economia mundial
indivíduo, em sua liberdade de usar ao máximo suas
fora fruto, inicialmente, das más condutas do
capacidades e oportunidades de acordo com suas
mercado financeiro norte americano, que devido
próprias escolhas, sujeito somente à obrigação de
à desregulamentação deste frente ao estado, pôde
não interferir com a liberdade de outros indivíduos
tomar atitudes que vieram a inflar esta “bolha”,
fazerem o mesmo”.
tornando ainda maiores os reflexos de sua
ruptura. Entretanto, este projeto de Estado
desenvolvido desde os anos setenta, não se mostrou
A doutrina da desregulamentação do
tão efetivo à comunidade global ao decorrer destes
mercado se baseia na premissa de que o mercado
anos, haja vista que os países que aceitaram este
livre e desregulado, deixado por si só é eficiente, se
modelo de ação para seus estados apresentam
auto corrigindo nos pequenos deslizes que venha
um acentuado processo de centralização da
a ter. Idéia esta, impulsionada principalmente após
riqueza e do poder (HARVEY, 2011; JUDT, 2011,
a segunda fase da crise do Petróleo de 1973, onde
CHOMSKY, 2011).
os países produtores de petróleo aumentam os
preços deste produto em cerca de 300% do valor, Ademais, as crises financeiras se tornaram
momento que coloca um ponto de inflexão no cada vez mais recorrentes ao redor do mundo, e
modelo econômico keynesiano de estado, baseado seus reflexos atingiram proporções cada vez mais
no estado de bem estar social, que contava com amplas. Segundo Stiglitz (2010), ocorreram cerca
grande respaldo público e político tanto na Europa de 124 crises entre 1970 e 2007. Apesar do grande
como nos Estados Unidos. colapso causado pela crise de 2008, segundo David
Harvey (2011), não havia nada de original nesta
A partir deste momento, as idéias de
crise, apenas o seu tamanho e seu alcance.
cunho liberal, fundamentadas principalmente sob
o ponto de vista de Milton Friedmanii , teórico do Nos dias atuais, a origem dos lucros
liberalismo, passam a desenhar um novo modelo corporativos ao redor do mundo tem suas bases no
de estado, suplantando o deficitário modelo de setor de finanças, e não mais no setor produtivo,
estado de bem estar social. Tem por objetivo tendo como base de operação um capital
atender à dinâmica desta nova sociedade que vem especulativo, “fictício”, não atrelado diretamente
se formando, e que aos poucos vem sofrendo os a nenhum elemento do processo de produção.
impactos da globalização e da financeirização da Segundo Harvey (2011), este capital “fictício”
economiaiii . tomou as rédeas do poder, a partir da geração de
enormes somas de dinheiro, que silenciavam as
Ganha força a idéia do estado mínimo, que
vozes dissonantes quanto a seus interesses.
atuaria somente como um regulador do mercado,

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Entretanto, quando da ocorrência destas suporte inicial as idéias de Aristóteles. Segundo


crises, o setor financeiro vem até o Estado na este autor, a ganância dos ricos é sempre crescente,
busca de socorro. O que aparentemente se pois estes buscam defender seus interesses sobre
apresenta de forma paradoxal foi uma prática os demais interesses dos pobres.
corrente no lidar com estas crises. Nas ações que A concepção das idéias republicanas
tentavam solucionar tais crises, assistimos o Estado relacionadas ao bem comum também nos parecem
injetando dinheiro público na tentativa de resgatar como um norte, buscando fundamentar as
este mercado, ou seja: “Os contribuintes estão premissas desejáveis do estado nacional político e
simplesmente socorrendo os bancos” (HARVEY, econômico, em relação ao momento atual de crise
2011, p.33). Aqueles que enriqueceram sob a lógica ao qual atravessamos.
da ausência necessária do Estado, se utilizam deste, A retomada republicana, em justa medida,
no momento que precisam de resgate. “faz contraponto à celebração da expansão do
Atualmente os sintomas da crise vêm se mercado e da esfera dos interesses privados,
alastrando pelo mundo, ou conforme preferem à retração do espaço público e das regulações
os economistas, vem “contagiando” as demais políticas” (CARDOSO, 2008, p.28). Esta traz no
economias. Os Estados Unidos apresentam cerne de suas argumentações a fundamentação
um índice de desemprego duas vezes maior que central da polis, a vida justa e virtuosa. Se o ideal
antes da crise. A Europa, em especial Espanha e republicano dos propósitos coletivos de uma
Grécia, operam com um índice de desemprego sociedade que busque o bem comum, soa como
superior a 20,00%, e convulsões sociais claras se estivesse fora de seu tempo, desarraigado do
vêm demonstrando a insatisfação popular com a cotidiano, pode significar como a concepção de
economia, com a política e com os planos de resgate vida pública esteja degradada (JUDT, 2011).
econômico do Fundo Monetário Internacional, Entendemos ser este um momento
que pregam a austeridade econômica com a propício para a retomada dos valores republicanos,
privatização das companhias públicas, aumento de pois a ganância do sistema financeiro, pouco a
impostos e corte nos gastos públicos. pouco, nos conduziu a uma espécie de presente
Diante deste quadro, tendo em vista sem passado, a uma condição de busca incessante
compreender as razões que permitem e norteiam pelo lucro desvinculada de nenhum outro aspecto
a vida em sociedade dos indivíduos, buscamos no moral da vida em sociedade. O mundo caminha
republicanismo clássico um resgate parcial das como se não tivesse aprendido nada com as lições
idéias relacionadas a tradição do governo misto, da de seu passado.
democracia, da relação entre os diversos indivíduos A dinâmica é nova, os personagens também,
dentro da polis e dos demais conceitos permeáveis mas recorrer ao berço das ideias das repúblicas
ao republicanismo nos dias atuais. democráticas modernas pode nos trazer clareza de
Para buscar compreender esta dinâmica quais os motivos que fundamentaram e orientam a
de opressão de uma parcela da população sobre existência da sociedade atual.
as demais, tendo como base o sistema financeiro
e a classe relacionada com tal setor em relação 2. O início da crise
às demais esferas da sociedade, tomamos como

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A crise econômica de 2008 teve origem nos Havia aqui claramente uma incoerência
Estado Unidos, a partir de seu mercado imobiliário, do mercado imobiliário, que chegou ao limite de
que havia sido utilizado como instrumento de corresponder a mais que a metade do PIB norte
manobra por sistemas bancários, tendo em vista americano. O indivíduo norte americano abria
a sustentabilidade da ampliação deste mesmo mão de sua residência para manter-se consumindo
mercado. no mercado, porém este modelo era insustentável,
O país mais rico do mundo vivia além como se mostrou, quando esta “bolha” de
das suas posses (STIGLITZ, 2011). A estratégia crescimento artificial se rompeu, e colocou aos
adotada para a manutenção do sistema econômico olhos do mundo a real situação econômica daquele
global, claramente dependente deste mercado país. A necessidade norte americana e também
de consumo americanoiv, foi a da expansão do mundial para a manutenção de seu padrão de
crédito junto a sua população, mesmo cientes que consumo trouxe o colapso. Sinais da crise já
a capacidade de endividamento destes indivíduos vinham aparecendo em outros setores da economia
havia chegado ao “limite”. As taxas de juros americana, porém o governo através de ações que
eram baixas, bem como as regulações do estado inundavam de crédito a economia e da redução dos
para a concessão de empréstimos, e desta forma impostos, buscava resolver o problema da “falta
foi montado um cenário propício à alimentação de consumo”, pela disposição de mais capital no
de uma “bolha”, pois a carteira de credores, que mercado, induzindo as pessoas a ficarem cada vez
haviam tomados estes empréstimos concedidos mais endividadas, mas mantendo o seu padrão de
pelas instituições financeiras, era composta também consumo.
de pessoas que dificilmente teriam condições de As dívidas individuais junto aos bancos
honrar o pagamento destas dívidas. foram transformadas em carteiras de dividendos e
De acordo com Stiglitz (2011), a inundação negociadas entre instituições financeiras diferentes,
de liquidez no mercadov fez criar uma pressão sob a forma de derivativosvi, de forma a securitizar a
inflacionária no valor dos imóveis, e os indivíduos, operação, conferindo assim “maior confiabilidade”
na busca da concessão de novos empréstimos para aos papéis que vieram a ser negociados em Wall
manter seu padrão de consumo, dispuseram de Strett.
suas residências como garantia na avaliação destes Assim se formou uma cadeia, entre o
empréstimos. mercado, as securitizadoras, e até as resecuritizadoras
O dinheiro em excesso que vinha a do mercado. E quando a bolha estourou, o efeito foi
inundar o mercado viria também do aumento do devastador, levando todos que estavam envolvidos
endividamento em relação ao capital existente, ou na negociação destes papéis. Os resultados desta
seja, os bancos estavam operando a uma ordem crise afetaram grande parte da população norte
superior ao “normal” de emprestar três vezes o americana, bem como, a partir do desaquecimento
total de seus depósitos, pois chegaram a operar da sua economia, exportou a incerteza e a recessão
em 2005 com trinta vezes o total de depósitos econômica por todo o mundo dependente de seu
disponíveis (HARVEY, 2011), operando a partir consumo.
da especulação, sem lastro real. O mercado financeiro norte americano,
agindo de forma desmedida, tendo a busca do

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lucro como objetivo central e isento de qualquer A tentação de obter lucros fáceis a partir
responsabilidade quanto às demais esferas da dos custos das transações levou muitos
bancos grandes a negligenciar suas
sociedade, conduziu tal processo desde a concessão funções essenciais. O sistema bancário,
de empréstimos aos indivíduos até a elaboração nos Estados Unidos e em muitos outros
de novos produtos financeiros de alto risco, que países, não se concentrou em emprestar
dinheiro a pequenos e médios produtores,
pudessem maximizar os lucros a serem obtidos.
que constituem a base da criação de
empregos em qualquer economia, mas
3. As agências e seus interesses concentraram-se, em vez disso, em
promover a securitização, especialmente
Um importante mecanismo utilizado neste no mercado hipotecário. (STIGLITZ,
sistema é o das agências de classificação de risco, 2011, p.41)
tais como Standart & Poor´s, Moody´s, Fitch entre
outras. Estas assumiram um papel político muito Com o rompimento da “bolha” imobiliária,
forte ao redor do mundo, se desvinculando de seu principalmente após a falência do banco de
aspecto estreitamente econômico. Tem o poder de investimentos Lehman Brothers e a estatização
atribuir notas referentes ao “risco” da operação de da seguradora AIG em setembro de 2008, as
crédito, tanto para empresas quanto para países, agências responsáveis pela regulação deste
expressando qual o risco do não pagamento de mercado se calaram, tal como o Banco Central
suas dívidas no prazo previamente estipulado. norte americano, alegando a impossibilidade de
saber antecipadamente sobre esta bolha que vinha
O problema reside no fato que os clientes
se formando ao longo dos anos. Os mercados
principais destas agências são as próprias instituições
financeiros buscaram se isentar da culpa, alegando
classificadas, gerando uma nebulosa relação entre
que a crise não fora mais que um acidente, e
estes. Existem diversas manobras passíveis de
afirmavam de maneira categórica que a regulação
desvios e corrupçãovii. Um exemplo típico pode ser
do estado ainda seria maléfica a inovação e a
visto no escândalo Enron em 2001, onde através
competição dos mercados.
de fraudes contábeis na auditoria fiscal regida pela
Andersen Consulting, que auxiliou a manipulação 4. Economia liberal, socorro estatal
de seus balanços financeiros escondendo uma
enorme dívida de mais de 25 bilhões de dólares, A lógica que permitiu que o mercado
buscou a lucratividade de seus títulos no mercado financeiro viesse a ditar as regras do estado nacional
de ações através de uma fictícia imagem de “saúde” quanto a defesa de seus interesses, tanto nos Estados
financeira desta empresa. Unidos como nos demais países que adotaram o
modelo da liberalização econômica, era a lógica
Certamente tais agências de classificação
privatista. Através do lobby e do favorecimento
de risco não analisaram corretamente o mercado
político, se entranharam nas estruturas políticas do
ao qual classificavam, ou supostamente agiram de
Estado, de forma a barrar quaisquer tentativas de
forma premeditada a partir de interesses escusos.
regulamentação do mercado. A única orientação
Afinal de contas, dispunham os papéis vinculados
destas políticas ora estabelecidas era a da obtenção
às hipotecas de subprime sob uma alta classificação,
do lucro privado. O mercado buscava resultados
encorajando diversos investidores a participarem
de curto prazo, de lucro máximo no prazo mínimo,
deste lucrativo negócio.

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conforme Stiglitz destaca (2011, p.51): “Como estado sendo direcionada para socorrer este hábil
sua remuneração se vincula aos preços das ações esquema de defesa dos interesses privatistas e
nas bolsas e não aos resultados de longo prazo, particulares. Segundo Harvey (2011, p.16), a lógica
é natural que os gestores façam o possível para que orientou as ações das economias liberais no
elevar o valor das ações – mesmo que isso de lugar socorro aos seus mercados era: “privatizar os
a uma contabilidade ilusória (ou criativa)”. lucros e socializar os riscos; salvar os bancos e
Mesmo o FMI, em seus relatórios sobre a colocar os sacrifícios nas pessoas”.
crise aponta que devido ao mundo estar inundado
viii
Tal procedimento é visto atualmente nos
de crédito, foi difícil fazer a previsão da crise que programas de socorro aplicados pelo FMI em
vinha se formando, ou seja, o mercado financeiro países como a Grécia, Espanha e Portugal, que
estava tomando enormes lucros com esta dinâmica, atravessam grandes convulsões sociais devido a um
então ninguém se interessou em buscar as razões processo de aumento de impostos e diminuição de
que poderiam levar ao colapso. investimento público, tendo em vista que o estado
Offe (1984) e Przeworski (2001) já possa pagar pelas dívidas de seu sistema financeiro
apontavam a desmedida de forças, entre os junto ao mercado.
“corporativos”, que se utilizam das ferramentas O imediato socorro ao sistema financeiro
e da força do capital, para ter uma maior de um país se deve ao estrondoso tamanho que
representatividade de seus interesses junto à esfera as instituições financeiras tomaram em relação
política, e que a sociedade em geral, não conta com ao Estado. Se o estado permite que as empresas
uma força representativa tão impactante. quebrem, ele esta permitindo que o próprio
Em suma, os mercados financeiros fizeram Estado, suas instituições e toda a economia local
muito dinheiro durante os anos em que prorrogaram venha a colapsar, se tornando assim refém do
uma crise já anunciada, trabalharam com um próprio sistema financeiro. Os planos de socorro
capital “fictício” durante anos, gerando bilhões de deste sistema financeiro em todo o mundo passam
dólares para seus acionistas, e distribuindo bônus então a ser regidos sob o argumento que os bancos
milionários a seus correligionários em Wall Strett. se tornaram grandes demais para poder falir.
A protelação da economia de crédito O governo norte americano, por exemplo,
interessava a todos que ganhavam enormes somas destinou grande parte da verba de saneamento do
financeiras com o negócio. Havia presente uma setor financeiro na compra de ações preferenciais
idéia que eles não teriam o que temer, pois mesmo sem direito a voto de bancos e instituições de
se viessem a ter problemas tinham a certeza que poupança, beneficiando mais de 400 instituições,
seriam resgatados pelo governo. Esta confiança além de cerca de outros US$500 bilhões ainda no
no socorro por parte do governo encorajou o governo de George W. Bush destinados a outras
sistema financeiro a tomar medidas de alto risco empresas, seguradoras e bancosix. O que nos
(STIGLITZ, 2011; HARVEY, 2011). E fora chama a atenção, é que os mesmos executivos e
exatamente como ocorreu, pois o sistema financeiro instituições que enriqueceram nas operações de
foi resgatado de maneira questionável, aos olhos crédito envolvendo as hipotecas de subprime
da sociedade que via sua contribuição junto ao nos Estados Unidos ao longo dos últimos anos,
foram premiados com pacotes de ajuda financeira

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mantendo seus mesmos salários astronômicos, bem fornecimento de meios para os ricos ficarem mais
como mantendo sua farta política de distribuições ricos”. Tal premissa vem se confirmando, haja vista
de bônus. as convulsões e questionamentos que democracia
Desta forma, verificamos que aqueles que e o capitalismo vêm enfrentando.
depositam sua confiança no fundamentalismo de O principio que baseia a necessidade da
mercado, tal como o FMIx e o setor financeiro, regulamentação é simples, Stiglitz (2011, p.49)
foram os primeiros a reclamar ajuda governamental resume de forma clara: “a razão pela qual os
no socorro aos envolvidos com a crise, sob a bancos são regulados é que sua falência causa
alegação de assim evitar o “contágio” com as danos consideráveis ao resto da economia”. Desta
demais instituições financeiras, o que na prática forma, os argumentos em defesa de uma suposta
não tem se mostrado muito efetivo, conforme “liberdade” do sistema financeiro, acabam se
análise de Nouriel Roubini: tornando limitados e relativos, tendo em vista
estarem desvinculados da realidade e do objetivo
Until last year, policymakers could always
produce a new rabbit from their hat to do bem comum em um Estado.
reflate asset prices and trigger economic O fato é que não atingimos a meta de
recovery. Fiscal stimulus, near-zero
Friedman de utilizar ao máximo nossas capacidades
interest rates, two rounds of “quantitative
easing,” ring-fencing of bad debt, e oportunidades, não podemos de forma alguma,
and trillions of dollars in bailouts and afirmar que atualmente os indivíduos têm
liquidity provision for banks and financial igualdade de direitos e igualdade de oportunidades.
institutions: officials tried them all. Now
they have run out of rabbits. (ROUBINI, Creio que a afirmação de Friedman seja um tanto
2011) quanto questionável. Podemos nos utilizar da
interpretação de Karl Marx, dispondo acerca
As soluções apontadas pelo governo
de indivíduos diferentes em relação aos direitos
americano de saldar as dívidas do setor financeiro
individuais, como forma de buscar outra linha de
com a utilização do capital público, somado a
raciocínio:
diminuição de impostos e a baixa taxa de juros se
mostraram insuficientes. Na Europa, os pacotes de O direito só pode consistir, por natureza,
na aplicação de uma medida igual; mas
socorro financeiro que pregam a austeridade fiscal
os indivíduos desiguais (e não seriam
tampouco surtiram resultado. indivíduos diferentes se não fossem
desiguais) só podem ser medidos por uma
5. Do que nos valeu tudo isso? mesma medida sempre quando sejam
considerados sob um ponto de vista igual,
A aposta no modelo liberal de estado sempre e quando sejam olhados sob um
não obteve o resultado esperado, trouxe apenas aspecto determinado... Para evitar todos
estes inconvenientes, o direito não teria
maior centralização de renda e maior desigualdade
de ser igual, mas desigual (MARX, 1973,
entre os indivíduos, acentuada ainda mais pela p.232).
fragilidade e incapacidade do estado em mediar
tais situações junto ao mercado. Segundo Tony Ou seja, medidas diferentes para pessoas
Judt (2011, p.97): “o capitalismo não sobreviveria diferentes. É impossível na sociedade crer que
se seu funcionamento se reduzisse ao mero todos os indivíduos partem de uma igualdade

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de condições, de capacidades e oportunidades. o próprio capitalismo em xeque. A dimensão


Há diferenças latentes, em diversos sentidos, tais tamanha da crise, dotada de escala mundial,
como capacidades físicas, de saúde, de acesso a levanta questionamentos inclusive acerca do
informação, a educação e de oportunidades de próprio modelo democrático adotado na maioria
certos tipos de trabalhos. Desta maneira, o papel dos países capitalistas. Mesmo as vozes ortodoxas
do Estado, é de mediar estas diferenças, aplicando do FMI permeiam esta grande preocupação com
medidas diferentes, para cidadãos diferentes. o quadro econômico atual, segundo Christine
A concessão do poder através da concepção Lagarde, diretora-gerente do Fundo Monetário
do liberalismo desregulado tende a centralizar o Internacional: “Devemos todos estar cientes de
poder na parcela mais rica da sociedade, ou seja, que este é um momento decisivo. Não se trata
aqueles que já dispunham do poder econômico se de salvar um país ou uma região em particular.
perpetuam ali. Segundo Tony Judt (2011, p.157): Trata-se de salvar o mundo de cair numa espiral
“os ricos não querem a mesma coisa que os econômica descendente”xi.
pobres. Quem depende do trabalho para sustentar A ideia é perfeitamente cabível. As posições
a família não quer a mesma coisa que quem vive de dos analistas internacionais, do FMI e dos demais
investimentos e dividendos”. setores ligados à economia apontam que a recessão
Entendemos assim, que a concepção do econômica ainda pode vir a se agravar mais. O
liberalismo apartada do Estado é potencialmente perigo do contágio ilustrado pelos analistas pode
tirânica, tendo em vista se comportar como se consolidar, pois apesar dos mercados europeus
benéfica apenas para uma parcela da sociedade em e americanos estarem mais orientados ao setor
detrimento da parcela mais pobre, tal entendimento financeiro, e sofrerem mais rapidamente os efeitos
pode ser visto também em Aristóteles (1991, desta crise, os demais países em desenvolvimento,
p.172): “É um erro, mesmo nas Constituições essencialmente fornecedores de matérias primas
aristocráticas, dar, como fazem muitos, muito e produtos manufaturados, podem vir a sofrer
aos ricos e muito pouco ao povo; a longo prazo, grandes impactos em sua economia, devido à
de coisas que só têm aparência de bem resulta diminuição do ritmo de consumo dos países mais
necessariamente um mal real: o Estado arruína- afetados pela crise.
se mais pela cupidez dos ricos do que pela dos Abaixo apresentamos um quadro resumido
pobres”. com as informações centrais da crise contrapostas
A afirmação de Aristóteles não poderia a situação anterior a ela:
se mais coerente à crise da corrente liberal, em
consonância ainda com as palavras de Marx
revalidam a afirmação de que o capitalismo deixado
livre tende a “arruinar-se”, devido à própria
ganância do lucro que dirige suas premissas.

6. O panorama atual

Atualmente diversos críticos, economistas


e teóricos especulam se esta crise está colocando

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medidas de austeridade do FMI que inibem o


investimento no setor produtivo, o Estado passa
a ficar “engessado”, não dispondo de linhas de
ação efetivas para resolução da crise e ficando
condicionado aos caprichos destes pacotes de
ajuda concedidos.
A situação na Grécia particularmente nos
chama mais a atenção, pois o colapso social devido
à crise financeira e aos pacotes de ajuda da União
Européia e FMI são enormes, tendo consequências
sociais gravíssimas. O quadro político e social
atual da Grécia ilustra de forma clara quais os
efeitos dos problemas oriundos da liberalização do
mercado, e ainda, ilustra de que forma o Fundo
Monetário Internacional enxerga a crise, aplicando
mais uma vez medida de austeridade, que colocam
a população a beira de um colapso e o país a beira
Fonte: http://www.economist.com/blogs/buttonwood/2012/05/
debt-crisis-1 do caos.
* http://www.tradingeconomics.com/
Atualmente a população grega reagiu nas
Segundo Nouriel Roubini (2011), as diversas urnas quanto à orientação do mercado, elegendo
manifestações populares que atravessam o mundo um quadro político dissonante com a ordem
discutem questões colocadas pelo crescimento estabelecida, conforme aponta matéria do Jornal
da desigualdade, pela pobreza, centralização da Correio Braziliense: “A prescrição de medidas de
riqueza e pelo desemprego. Reforçamos esta austeridade pelo FMI ao país do Mediterrâneo foi
afirmação com os dados da tabela acima, podemos o estopim de uma crise política sem precedentes,
verificar um quadro onde a maioria dos países com os partidos gregos votados em 6 de maio não
mencionados obteve um aumento do índice de conseguindo formar o gabinete para governar e a
desemprego atrelado a um maior déficit público convocação de novas eleições em 17 de junho”xii.
(em conseqüência direta ou não de uma menor Os demais países apontados nas primeiras
arrecadação de tributos). Os casos mais graves posições dos índices de desemprego vêm
são os de Grécia e Espanha, que se encontram no apresentando pouco a pouco quadros de recessão
foco da crise atual, aonde os níveis de desemprego econômica e colapso financeiro, cada um a sua
chegaram a índices alarmantes. Por conseqüência, maneira devido a particularidades locais. Por
tal situação vem conduzindo a uma escalada da sua vez, a política fiscal “amarrada” por acordos
insatisfação popular exponencial nestes países, internacionais, impede uma reação mais ajustada
alem de todos os problemas sociais oriundos do à crisexiii. Afinal, ao invés de buscar estimular a
desemprego, tais como o aumento nas taxas de economia através de recursos que instiguem a
criminalidade. produção e diminuam, assim, os impactos do
Com o déficit público somado as desemprego, focam sua ação na responsabilidade

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de sua balança de pagamentos. Como no caso da suas bases sobre a idéia do bem comum, atrelado
Grécia, vieram a adotar uma política de austeridade a concepção do cidadão ativo dotado de virtude
com aumento de impostos, corte de benefícios cívica, tendo como objetivo ser um instrumento
públicos à população e dos gastos do governo. A contra toda forma de dominação arbitrária e
reação é que a economia não responde, e a reação despótica, conforme cá será melhor descrito.
prática é que a população destes países sofre na Entendemos que as ideias do
pele os efeitos da política liberal. republicanismo clássico, principalmente as
Roubini (2011) aponta que a única forma vinculadas ao pensamento de Aristóteles, podem
de fazer com que tais economias orientadas pelo nos auxiliar a buscar novas formas de observar o
mercado voltem a operar de forma capaz e desejável, mesmo objeto, o quadro econômico-político atual.
é que estas retornem a um ponto de equilíbrio Contudo, temos uma clara visão que os conceitos
entre a orientação de mercado e sua orientação de da sociedade que embasaram os estudos destes
fornecimento de bens públicos. Ainda de acordo teóricos em muito se diferem daqueles vigentes em
com este autor: “That means moving away from nossa sociedade contemporânea, principalmente
both the Anglo-Saxon model of laissez-faire and quanto ao conceito do indivíduo em relação à
voodoo economics and the continental European concepção moderna deste. Compreendemos que a
model of deficit-driven welfare states. Both are forma de raciocínio conduzida ali, que fora utilizada
broken”. como base ao longo dos séculos que os sucederam
na moldagem do nosso modelo democrático
7. A baliza do republicanismo republicano, amplamente adotado e conceituado
No presente quadro econômico-político no mundo, pode nos auxiliar a encontrar pontos
internacional assistimos o Estado ser dirigido no qual devemos acentuar as pesquisas, bem como
pelos interesses de uma oligarquia financeira, buscar formas para aperfeiçoar a convivência social
que em troca da obtenção de maiores lucros entre os indivíduos.
através do mercado financeiro em detrimento do Em todos os momentos em que o
mercado produtivo, coloca de forma prática ou republicanismo foi retomado ao longo da história,
potencial, grande parte da população global em existe presente uma ideia que busque conduzir
grandes problemas sociais. Mohandas Gandhi, o a sociedade contra a dominação dos indivíduos
grande líder da independência da maior República pelo do arbítrio de quem quer que seja. O
democrática do mundo, a Índia, teceu um celebre republicanismo de Cícero em Roma, por exemplo,
frase acerca destes interesses. Segundo ele haveria primava pela independência e pela não dominação
no mundo alimentos o suficiente para saciar toda a de seus cidadãos (PETTIT, 1999).
fome de cada pessoa, porém, não para saciar toda Da mesma forma, os burgueses do
a ganância de cada indivíduo. A frase se encaixa renascimento Italiano encontraram na releitura
perfeitamente no quadro que descrevemos até aqui. destes clássicos, embasamento para a formação
A “fome” de poder de alguns confere o flagelo à de uma sociedade sem poderes arbitrários. Tais
maioria. idéias também são discutidas com veemência
Em contraposição a esta situação vigente, pelos aos teóricos políticos jusnaturalistas ingleses,
a retomada do republicanismo clássico assenta principalmente quando estes atravessaram

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períodos turbulentos de sua história, durante a condicionada como negativa, pois se limita a defesa
revolução Inglesa e Gloriosa (SKINNER, 1999), dos interesses do indivíduos junto aos demais.
bem como, são amplamente discutidas no processo A noção desejável de liberdade a partir
de independência norte americano, que buscava destes republicanos é a liberdade positiva, na qual
acima de tudo conceber a garantia da “liberdade” os cidadãos possam ter uma ação direta junto à
do povo contra a tirania ou opressão de qualquer vida política da cidade. Desta forma, esta relação
poder externo. entre Estado e sociedade seria o que se perdeu
A concepção de Estado, presente nas na releitura das ideias republicanas ao longo da
discussões republicanas contemporâneas, busca história, pois o Estado na república não tem a
que este venha se tornar um mecanismo não mesma forma do Estado na concepção liberal de
arbitrário de governo na sociedade. A orientação governo. Tal mudança na relação entre governo e a
da constituição mistaxiv, com poderes divididos liberdade dos indivíduos configura aquilo o que foi
e limitados, permite um contrapeso dentro das descartado na concepção liberal de liberdade.
instâncias de poder, inibindo a ação de tiranos que
possam tomar o poder por desejos individuais. 8. A contribuição de Aristóteles
A liberdade da não dominação, portanto, é No livro I, cap. II de A Política, Aristóteles
dependente da existência do Estado. A função nos parece já “saber” sobre a dinâmica liberal
desempenhada pelo Estado seria de mediar às de mercado que viria dominar o mundo tanto
relações na sociedade, conferindo uma orientação séculos depois. Ali, este discute sobre a avareza e
de justiça e proteção a seus cidadãos. sobre a insaciável busca humana por riquezas, na
Entretanto, diferentemente da concepção qual estes “amam o dinheiro”, buscando sempre
atual de liberdade, vista como uma não interferência, acumular maiores somas por nunca julgar que tem
a concepção republicana prima pela não dominação, o necessário. Segundo ele: “Ora, é absurdo chamar
na qual o cidadão passa a ser um protagonista a “riquezas” um metal cuja abundância não impede
partir de seu próprio arbítrio, sob qualquer forma de se morrer de fome; prova disso é o Midas da
de subjugação. Este valor é conferido quando este fábula, a quem o céu, para puni-lo de sua insaciável
vem a participar das esferas de decisão da cidade, avareza, concedera o dom de transformar em ouro
na busca do bem comum. tudo o que tocasse”. (ARISTOTELES, 1991,
p.22)
A visão atual de liberdade foi conceituada a
partir dos teóricos do século XVII, na releitura das O regime político apresentado por
idéias republicanas clássicas (SKINNER, 1999). Aristóteles é a Politeia, que tem como substância
As bases do republicanismo cívico se perderam na de sua existência o corpo dos cidadãos. Para este
releitura hobbesiana de tais ideias , havendo um filósofo a vida na polis está relacionada a um fim
deslocamento da concepção original de liberdade, último do homem, se traduzindo como a mais
sendo desvinculada do ideário de civismo e desenvolvida forma de convivência humana.
colocada sob a noção do direito liberal. Esta mesma Em suas palavras: “A sociedade que se formou
concepção de liberdade é amplamente aceita da reunião de várias aldeias constituiu a Cidade,
nas argumentações dos teóricos do liberalismo, que tem a faculdade de se bastar a si mesma,
apesar de aos olhos dos novos republicanos ser sendo organizada não apenas para conservar a

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existência, mas também para buscar o bem-estar” relação e mediação com os demais membros da
(ARISTOTELES, 1991, p.3). sociedade.
Desta forma, podemos ver que o objetivo O elemento de coesão entre os mesmos
final da polis é outro que não apenas sua manutenção, cidadãos de uma polis é uma capacidade de saber
mas tendo como cerne da questão a forma como o que é certo e o que não é de maneira geral, uma
se viva em sociedade, a busca de uma “melhor” moral compartilhada que reconhece os indivíduos
forma de vida em sociedade, objetivada a busca enquanto semelhantes. Isto apenas seria possível,
de um bem estar comum. Esta premissa é o que uma vez que temos no discurso o “laço de toda
destaca este filósofo daqueles que o precederam. De sociedade” e nos utilizando da razão através do
acordo com Aristóteles (apud MIRANDA FILHO, discurso, podemos nos reconhecer e também
96, p.71), assim são enumerados os objetivos da reconhecer os demais, de forma a compor uma
polis: “I) este não consiste apenas em assegurar a sociedade.
posse dos bens materiais e da propriedade; II) nem A convivência com os demais é explicada
apenas assegurar aos cidadãos a proteção contra através da teoria da amizade (philia) de Aristóteles,
injustiças e crimes tanto de origem externa quanto que aponta que os laços que unem os seres na
interna; III) nem facilitar as trocas, o comércio ou polis estão relacionados não apenas a uma busca
a garantia dos contratos”. comercial (como configura a teoria liberal), mas se
Para melhor relacionar as razões desta vincula a busca de afetos, lealdade e honra. Esta
concepção, devemos partir da célebre afirmação “amizade” é aquilo que configura a intenção de
de Aristóteles, de que o homem é um animal viver em comunidade, desfrutando de uma moral
cívico, pois é dotado do dom da palavra. É com coletiva. A amizadexvi aqui colocada diminui o
a utilização desta faculdade humana que temos: conflito na polis. Esta relação é o que possibilita
“senão o conhecimento desenvolvido, pelo menos que tal laço entre os indivíduos, provido pelo
o sentimento obscuro do bem e do mal, do útil discurso e pela razão (logos), venha a permitir a
e do nocivo, do justo e do injusto, objetos para vida em sociedade na busca pelo bem estar comum.
a manifestação dos quais nos foi principalmente Segundo Aristóteles (1991, p.139): “Se forem seus
dado o órgão da fala. Este comércio da palavra amigos, se-lo-ão também de seu Estado. A amizade
é o laço de toda sociedade doméstica e civil” supõe igualdade e semelhança.”
(ARISTÓTELES, 1991, p.4). Esta propriedade social descrita através
Esta citação de Aristóteles fundamenta da teoria da amizade é aquilo que possibilita aos
um dos mais importantes, e por vezes mal homens ver o objeto da polis a partir de um
compreendido, conceito de seu pensamento. diferente ponto de vista. De acordo com Arendt:
Quando o autor se refere ao homem como um “Esse tipo de compreensão – ver o mundo (como
animal cívico, não se está afirmando que há uma dizemos corriqueiramente) do ponto de vista do
inclinação natural biológica do homem a política, outro – é uma percepção política por excelência”
o que se afirma aqui é que o homem é um animal (2009, p.60). Tal possibilidade, de poder ter acesso
político porque somos dotados do discurso e da a diversos pontos de vista sobre o mesmo objeto,
razão, que diferentemente dos demais animais, nos é característica chave da política, sendo passível de
possibilita ter no discurso e na razão formas de ser aplicada na politeia aristotélica.

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Desta forma, a política aristotélica traz em Ainda segundo o autor, o regime da politeia
seu eixo de ação a moral social, na qual o Estado é seria uma mescla entre as instituições da democracia
disposto como superior ao indivíduo, assim como e da oligarquia, convencionando posteriormente
o bem comum é sobreposto ao bem individual. politeia às que tendem a democracia, ou seja,
Entretanto, não se trata de um conceito opressivo, as que buscam a ampliação da base do sistema
que tem o cidadão por apenas uma “engrenagem” (CARDOSO, 2008). A busca então é encontrar
que venha a permitir a funcionalidade de todo o um equilíbrio, ou um “justo meio” entre ambos,
sistema, a ideia da perfeição da polis só poderia ser de forma a conduzir a dinâmica do Estado sem
atingida com a participação do sujeito nas esferas tender para nenhuma das duas partes, nem a busca
de decisão, partilhando assim, junto ao estado, a exacerbada da riqueza pelos ricos, nem a busca
responsabilidade pelo bem estar comum. desmedida dos desejos pelos pobres, e assim
Baseado nestes argumentos, a república alcançar a preservação virtuosa da polis.
pode ser vista como uma ferramenta contra todos O Estado nacional pós anos setenta,
os tipos de autoritarismo, principalmente ligados a descrito na primeira parte deste artigo, aponta que
governos totalitários que venham a mobilizar toda estaríamos sendo governados não pela maioria,
uma massa de indivíduosxvii, ou demais formas e sim por alguns, uma oligarquia de interesses
de governos que utilizem ou pretendam utilizar a envolvidos com o mercado financeiro. Segundo
população como massa de manobra para projetos Cardoso (2008, p.36): “Os ricos, por sua vez,
particulares de dominação. sustentam sua reivindicação ao poder em nome
É também importante destacar que da riqueza, da competência e do mérito que, no
Aristóteles apontava uma divisão central na governo, estariam postos a serviços da cidade;
sociedade, entre pobres e ricos, e esta seria a mas, na verdade, querem apenas conservar os seus
fundamental diferença na democracia. Na Grécia bens e aumentar seu patrimônio, em que vêem o
clássica havia dois regimes concretos, o da maioria bem verdadeiro e a aspiração universal de todos os
(demos) tido por democracia e o de alguns, tido por homens”.
oligarquia (oligoi). Todavia, o problema apontado A ganância dos ricos na atualidade vem
pelo filósofo era que: “cada um deles, ao invés de desvirtuando a orientação republicana, conforme
contemplar a totalidade da polis é excludente: o aponta Judt (2011, p.155): “As instituições da
povo exclui os oligarcas e vice-versa” (MIRANDA república tem sido degradadas, acima de tudo
FILHO, 1992, p.65). pelo dinheiro”. Diferentemente da atualidade, a
As pessoas não podem ser ao mesmo orientação aristotélica aponta que a república teria
tempo ricas e pobres, sendo necessário ao Estado por função utilizar-se da razão, através do Estado,
buscar o equilíbrio entre ambos, de forma que com vistas a não permitir o domínio das tiranias
nenhum dos dois elementos se sobressaia, a fim sobre todos, seja ela da maioria (democracia), de
de evitar a injustiça que uma possa cometer sobre alguns (oligarquia) ou de um (monarquia). Assim,
a outra. Para Aristóteles, a justa medida estaria na o Estado teria como fim ser o uma instituição que
chamada classe média, que seria fundamental na pudesse se intrometer nos assuntos dos indivíduos,
moderação dos interesses da polis, agindo como o porém de forma não arbitrária, buscando se
“fiel da balança”. desvincular da concepção do tirano, que poderia

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definir leis, julgar e condenar os indivíduos, através da inviabilidade democrática como sistema (tese
de seu próprio arbítrio. posta a prova nas sociedades contemporâneas), a
A descrição aristotélica da democracia, por questão de suma importância no quadro de crise
sua vez, conduzia a visão de uma tirania das massas, atual, dentro da concepção vigente de democracia
que seria tão terrível quanto à tirania de apenas é: Que sentimento dirige as deliberações nesta
um (monarquia), ou de um grupo (oligarquia). A democracia?
origem desta crença se assentava na ideia de uma Aqui vamos nos utilizar da interessante
massa “pouco educada”, que teria como objetivo frase de Ribeiro (2011, p.22): “Uma democracia
somente expropriar os ricos, devido à busca de seus sem república não é kratosxviii, é simples populismo
desejos, relacionados à conquista de bens materiais distributivista”. Existe neste trecho uma significativa
(RIBEIRO, 2008). Esta visão pode ser constatada colocação de que a democracia precisa da república
na passagem de Aristóteles: para existir. Conforme explanamos anteriormente,
o republicanismo tem a função de orientar tais
Não é sem razão que se censura tal
governo e, de preferência, o chamam deliberações visando às premissas do bem comum.
democracia ao invés de República; pois Assim, a democracia apenas não é suficiente para
onde as leis não têm força não pode haver atender os anseios da vida em sociedade, partindo
República, já que este regime não é senão
uma maneira de ser do Estado em que
do pressuposto que os homens naturalmente têm
as leis regulam todas as coisas em geral uma inclinação para vida em sociedade, conforme
e os magistrados decidem sobre os casos demonstra Aristóteles (1991, p.5): “O mesmo
particulares. Se, no entanto, pretendermos
ocorre com os membros da Cidade: nenhum pode
que a democracia seja uma das formas de
governo, então não se deverá nem mesmo bastar-se a si mesmo. Aquele que não precisa dos
dar este nome a esse caos em que tudo outros homens, ou não pode resolver-se a ficar
é governado pelos decretos do dia, não com eles, ou é um deus, ou um bruto. Assim, a
sendo então nem universal nem perpétua
nenhuma medida.(ARISTÓTELES, inclinação natural leva os homens a este gênero de
1991, p.111) sociedade”.
Há então a necessidade de uma orientação
Tal ideia é contraposta a concepção atual
que busque pautar a vida a partir do conceito de
de democracia, que na mais rasa interpretação que
sociedade, e não apenas de indivíduo. Desta forma,
se possa ter, nos leva a ideia de que o poder tem
a indicação é exposta de forma clara, temos uma
como “soberano” o povo, que busca colocar em
inclinação natural para a convivência. Como tal, a
prática seus anseios através dos representantes
principal orientação que deveria guiar a construção
eleitos pelo sufrágio universal. Mesmo que tal
desta convivência seria a maneira de torná-la
argumentação seja contestável, principalmente a
possível e virtuosa.
partir dos teóricos do liberalismo, tomemos como
base o cerne da idéia democrática atual, a busca Porém, na compreensão da dinâmica da
de limitar a propensão a tirania no Estado através polis, mesmo dentro da premissa que os seus
da participação popular em suas instituições e no membros compartilham de uma ética individual
processo de escolha dos representantes populares. comum, refletida na moral do Estado, Aristóteles
leva em conta as diferentes funções e o diferente
Independentemente da visão aristotélica
arbítrio entre cada um dos indivíduos. A combinação

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entre logos (capacidade de discurso e lógica) e (1991, p.41): “É daí que provém a bondade
política somente fora possível considerando tal intrínseca do Estado, sem que seja necessário que
característica particular da polis. A citação de Mario haja entre todos igualdade de mérito”.
Miranda Filho, que explicita está ideia com base na
pluralidade compõe o pensamento: 9. Considerações finais
Diante de todo o panorama apresentado,
Decidida a se instalar para valer na polis
acreditamos que apesar das diferenças junto à
a filosofia, a partir de Platão, terá que
operar em si mesma uma conversão: sociedade da antiguidade, principalmente sob
reconhecer a existência de gente como a visão aristotélica, em relação à sociedade
Estrepsíade como necessária, de gente atual, podemos sim utilizar diversos pontos e
cujo comportamento errante é ditado,
em grande parte, por forças irracionais argumentações políticas desenvolvidas ali para
constitutivas do homem e, portanto nosso debate contemporâneo, como já o fizemos
também da cidade. Isto equivale a em alguns pontos até aqui discorridos.
reconhecer que a política abriga em si
um elemento irracional que aparece por O primeiro ponto a ser destacado se trata
vezes como um incontornável para a do conceito de oligarquia. Aristóteles apontava que
razão – seja ele o sagrado, seja a estupidez este seria o regime no qual o domínio é exercido
da força bruta em sua recusa de escutar
o outro – com o qual o especialista da por apenas alguns, o que de fato observamos
razão tem que se haver. Viver na polis atualmente. Conforme descrevemos na primeira
não é, pois viver numa comunidade de parte do artigo, toda crise financeira americana e
sábios virtuosos, nem de religiosos, ou
posteriormente mundial, teve no setor financeiro
de conformistas ou de guerreiros, ou de
rico ou de pobres. A polis é, como diz o elemento que entranhado nas esferas de poder
exemplarmente Aristóteles na Política, do Estado, pode manipular as diretrizes deste com
uma pluralidade. (MIRANDA FILHO, vista a atender seus interesses econômicos. Os
1992, p.59)
demais membros da sociedade que trabalhavam
A pluralidade traz consigo a noção de que na construção da riqueza do sistema (até porque
todos estão colaborando para um fim em comum, sem este trabalho não existiria esta riqueza)
a manutenção da polis. Aristóteles (1991, p.41) eram elementos até certo ponto passivos, e que
argumenta que “embora as funções dos cidadãos certamente não tinham a mesma voz e a mesma
sejam dessemelhantes, todos trabalham para a representatividade na obtenção de seus interesses
conservação de sua comunidade, ou seja, para a junto ao Estado.
salvação do Estado. Por conseguinte, é a este Outro elemento a ser destacado é a divisão
interesse comum que deve relacionar-se a virtude social entre ricos e pobres. Creio que esta tenha se
do cidadão”. alterado ao longo dos séculos, mas não a maneira
Para o filósofo seria impossível que um que apontava o filósofo, com a predominância de
Estado fosse composto integralmente de homens uma classe média. O fato é que a situação dispõe
perfeitos, mas a busca é que os cidadãos venham a a parcela dos mais ricos da sociedade, dos mais
executar o seu melhor papel como tal, procurando poderosos, dirigindo e controlando o Estado, de
se tornar bons cidadãos. Aqui estaria a posição forma questionável podemos afirmar, tendo em
de encaixe do Estado. De acordo com Aristóteles vista todo o ônus que trouxeram a população dos

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países atingidos pela crise. Até os dias atuais, as dispostas de forma dispersa, e na maioria dos casos
demandas destas duas parcelas são paradoxalmente orientadas por demandas específicas, ainda assim,
distintas, e estas duas parcelas da sociedade não estas contribuem para uma orientação social que
podem ser descartadas como um todo, nem junto busca o bem estar do todo. Segundo Amartya Sen:
ao poder, nem junto às suas demandas. O ponto “Os valores sociais podem desempenhar – e têm
a ser perseguido é o equilíbrio, aos moldes de desempenhado – um papel importante no êxito
uma politeia aristotélica, contudo, descartando a de várias formas de organização social” (2000,
configuração elitista disposta pelo filósofo para p.297).
exercer os postos de governo na polis. O conceito atual de liberdade permite, e com
Destacamos também o papel da virtude justa medida, a busca dos interesses particulares, mas
cívica, que é fundamental na dinâmica republicana. é inegável que a orientação do sujeito não é restrita
Alias, é o que se espera do cidadão, conforme apenas a busca de seus interesses financeirosxix,
visto na argumentação de Judt (2011, p.153): “Mas a moral social compartilhada desempenha um
repúblicas e democracias só existem em virtude do papel de suma importância na orientação destes
engajamento de seus cidadãos na condução dos indivíduos, atrelada a parcela econômicaxx.
negócios públicos”. No conceito de Aristóteles A liberdade apontada pelos teóricos
esta virtude cívica seria aplicável em um pequeno do liberalismo considerava a não-interferência,
Estado, onde os laços sociais formados a partir mas se esqueceu de observar e resguardar a
da amizade poderiam mediar as relações entre os não-dominação. O indivíduo pode não sofrer
indivíduos, gerando a virtude cívica manifestada interferências, mas sem o Estado na mediação das
na participação da vida política. As sociedades diferenças entre os diversos indivíduos, o regime
hoje em muito se diferem desta, em tamanho e em é dominado por uma parcela de força apenas, que
composição (nacionalidades, credos, orientações e subjuga todos os demais pela interferência nas leis
etc.), assim, o conceito da amizade ali demonstrado do mercado, de modo desregulatório e específico,
se torna um tanto quanto frágil para descrever o ou seja, de acordo com a conveniência do poder.
processo de aglutinação na polis atual. Para a obtenção da não dominação do
Entretanto, a colocação acerca da razão e indivíduo, o republicanismo atual busca resgatar
do discurso, nossa capacidade enquanto “animal uma autogestão no indivíduo, que possa ser livre,
político”, vinculada a uma capacidade de discernir sem nenhum opressor lhe cerceando. De acordo
o bem do mal, colabora na construção de uma com Pettit (2008, informação verbal), a ideia de
moral comum, ao qual compartilhamos. E tal liberdade republicana é vinculada a não dominação
moral comum orienta a sociedade a buscar não (pensamento, discurso, religião, associação,
apenas seus objetivos de interesse específico, mas deslocamento, emprego e etc.), seria uma das bases
a serem orientadas também quanto a uma noção necessárias para que todos, independentemente de
de bem e mal no tocante a restante desta mesma sua função ou cargo na sociedade, possam olhar
sociedade. uns nos olhos dos outros, sem medo.
As diversas manifestações sociais no mundo Conforme discutimos anteriormente, a
demonstram uma orientação comum no indivíduo, democracia por si só, sem a orientação republicana
vinculada a uma ideia de justiça social. Mesmo que

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acaba por se tornar limitada como regime junto aos Creio que o modelo de Estado que venha a
homens. De acordo com Tony Judt (2011, p.135): se delinear após a crise de 2008 seja algo, conforme
“Sem idealismo, a política se reduz a uma forma apontado por Nouriel Roubini (2011), para uma
de contabilidade social, de administração cotidiana estrutura que se distancie do modelo anglo-saxão
de homens e coisas”. O idealismo destacado por do livre mercado e também do modelo europeu
Judt é a orientação e, quando não existe o Estado, de Estados de bem estar social movidos a déficits.
fica entregue aos interesses dominantes, no caso, A questão colocada agora é de que forma delinear
os econômicos. esta nova estrutura e como colocar em prática nesta
O resgate a orientação social é elemento sociedade dominada pelas relações de mercado.
urgente em nossa sociedade, bem como a retomada Desta forma, o ponto fundamental do
da virtude cívica, disposta de forma adaptada a republicanismo nos dias atuais é o resgate do tema
sociedade atual, conforme a liberdade individual da igualdade, pois tal propriedade tem se mostrado
que detemos e buscamos que seja mantida. Creio extremamente corrosiva a toda dinâmica da vida
que a frase de Joseph Stiblitz pode sintetizar bem em sociedade. O ponto é, conforme apontado por
o cerne desta exposição: Aristóteles, buscar a média, o ponto de equilíbrio
entre as estruturas e os cidadãos que compõe nossa
Avançamos muito por um caminho
alternativo – criando uma sociedade sociedade, de forma a evitar a desmedida de forças
em que o materialismo predomina disposta aos olhos de todos no desenvolvimento
sobre os compromissos morais; em que desta crise. Nas palavras deste ilustre filósofo: “É
o crescimento rápido que atingimos
não é sustentável, nem do ponto de uma verdade reconhecida que a mediana é boa em
vista ambiental nem do social; em que tudo.” (ARISTÓTELES, 1991, p.168).
não agimos em conjunto, como uma
comunidade, para atender as nossas
necessidades comuns, de certa forma
porque o individualismo desabrido e o
fundamentalismo do mercado erodiram
qualquer sentido de comunidade e
levaram a uma exploração selvagem de
indivíduos inocentes e desprotegidos e a
uma crescente divisão social. (STIBLITZ,
2011, p.389)

A república mais uma vez deve ser


resgatada no momento em que a sociedade busca
lutar contra a dominação pelo arbítrio do mercado.
O papel desta, conforme disposto ao longo da
história, é o de nortear as discussões em busca do
melhor modelo de regime para vida em sociedade.
Estas discussões devem levar em conta a dinâmica
social vigente, centralmente quanto a valores como
liberdade e moral social, porém, de forma a não
perder de vista a busca do bem estar comum.

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Notas

i
Conforme apontam palavras da diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional: “Lagarde disse
aos estudantes da John F. Kennedy School of Government que a geração deles “enfrenta provavelmente
a pior insegurança econômica em décadas, possivelmente pior até do que a da Grande Depressão”
(LAGO, 2012)
Influente teórico do liberalismo, oriundo da Escola de Chicago. Aponta as diretrizes do liberalismo,
ii

buscando condicionar o temor dos indivíduos à concentração de poder nas mãos do estado, objetivando
a liberdade individual através do liberalismo de mercado, sem a regulação ou interferência do estado.
A partir de 1970 o capitalismo vem se globalizando, através da utilização de novas ferramentas na
iii

busca da maximização de seus lucros, tais como a financeirização da economia, a desregulamentação


dos mercados mundiais, a desestruturação do trabalho organizado, o avanço das tecnologias das
comunicações e a rapidez dos transportes.
Os Estados Unidos da América tiveram um Produto Interno Bruto Nominal (PIB) de
iv

aproximadamente 15,6 trilhões de dólares em 2011, mais que duas vezes maior ao segundo colocado, a
China com 7,3 trilhões.
v
Termo de referência para dizer que o mercado estava repleto de capital buscando algum negócio onde
pudesse ser aplicado.
vi
Um instrumento financeiro de alto risco derivado de outros ativos (ex. ações). Busca fundamentalmente
estabelecer ferramentas de especulação relacionadas a proteção, alavancagem e arbitragem, criando
assim um “produto” vendido a investidores, que buscam lucros a partir de sua negociação no mercado
financeiro.
Conforme demonstra o documentário norte americano Inside Job, de Charles Fergunson, vencedor
vii

do Oscar de Melhor Documentário no ano de 2010. Este descreve a sistemática de corrupção do


mercado financeiro norte americano, suas relações com as empresas e o estado nacional, bem como as
conseqüências de suas ações.
viii
Para consulta acessar http://www.imf.org/external/np/exr/key/finstab.htm
ix
Conforme dados disponíveis junto ao Grupo de Conjuntura Fundap - http://www.debates.fundap.
sp.gov.br/.
x
Fundo Monetário Internacional atua hoje como um regulador capitalista, oferecendo socorro financeiro
e estabelecendo as regras para sua concessão. Porém, as políticas que dirigem suas ações são claramente
privatistas, defendendo primariamente criar condições para os estado quitarem suas dívidas junto a seus
credores, buscando conferir “confiança” junto ao mercado, porém nitidamente desconexos do resultado
de suas ações no plano social junto a estes estados, haja vista os casos atuais da Grécia e Espanha.
xi
Para consulta acessar http://www.imf.org/external/np/exr/key/finstab.htm
Disponível em http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2012/5/23/as-
xii

contradicoes-de-lagarde Publicação de 23/05/2012.


A preocupação do FMI de conter os gastos públicos junto a seus países credores em muito colaborou
xiii

para acentuar os reflexos sociais das crises econômicas que vieram a atingir os países que receberam

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pacotes econômicos de socorro, haja vista a atuação deste junto ao México em 1994, a Crise dos países
asiáticos em 1997 e a crise argentina de 2002.
A constituição mista atualmente é definida pela idéia de eleições, leis, alteração no poder, divisão de
xiv

papeis funcionais, transparência e checks and balances. (informação verbal) (PETTIT, 2008).
xv
Pettit (1999), Ribeiro (2008).
O conceito de amizade de Aristóteles se enquadra na sua definição de melhor polis para ser governada,
xvi

sendo uma cidade pequena, com relações baseadas entre “iguais”. As grandes cidades contemporâneas
dotadas de diversidades étnicas em sua composição, com certeza fogem a sua premissa teórica.
xvii
Conforme definição de Newton Bignotto (2008, p.57).
xviii
Relativo à força. Vinculada a ideia da origem da palavra democracia: demo mais kratos.
“O uso do raciocínio socialmente responsável e de idéias de justiça relaciona-se estreitamente à
xix

centralidade da liberdade individual. Não se está afirmando com isso que as pessoas invariavelmente
invocam suas idéias de justiça ou utilizam seus poderes de raciocínio socialmente sensível para decidir
sobre o modo de exercer sua liberdade. Mas um senso de justiça está entre as considerações que podem
motivar as pessoas – e com freqüência isso ocorre” (SEN, 2000, p.297)
xx
“Quanto à vida dedicada a ganhar dinheiro, é uma vida forçada, e a riqueza não é, obviamente, o bem
que estamos procuramos: trata-se de uma coisa útil, nada mais, e desejada no interesse de outra coisa”
(ARISTÓTELES, 2008, p.12).

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Faoro e o LEITMOTIV tipicamente brasileiro: as


confusões entre público e privado
Tathiana Senne Chicarino
Graduada em Sociologia e Política pela Fundação Escola
de Sociologia e Política de São Paulo (2010). Mestranda em
Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP), onde participa como pesquisadora do
Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (NEAMP),
atuando principalmente nos seguintes temas: mídia, cultura
política, democracia, liderança política e ciberpolítica.

Resumo Abstract
O presente artigo pretende a partir do livro This article seeks from the book The Power Owners
Os Donos do Poder de Raymundo Faoro (2000), Raymundo Faoro (2000), back to the discussion
retomar a discussão sobre o patrimonialismo, a about the formation of patrimonialism and political
formação do patronato político, e os obstáculos patronage, and the obstacles they had to build a
que eles apresentaram à construção de um Estado modern state, and thus the very configuration of
moderno, e, portanto, à própria configuração do Brazilian capitalism.
capitalismo brasileiro. Faoro (2000) sustain that over six centuries the
Faoro (2000) sustenta que ao longo de seis séculos Brazilian state became autonomous in relation to
o Estado brasileiro se fez autônomo em relação à civil society, for he had a central goal: the realization
sociedade civil, pois possuía um objetivo central: of the interests of its leaders, employers, or political
a realização dos interesses particulares de seus establishment. Thus, the government machinery
dirigentes, do patronato, ou estamento político. has been transformed into personal wealth, the
Desta forma, a máquina pública foi transformada leitmotiv typically Brazilian.
em patrimônio pessoal, o leitmotiv tipicamente The long stay politically oriented capitalism and
brasileiro. traditional stamp sheet was possible because we
A longa permanência do capitalismo politicamente can combine it with modern capitalism, creating
orientado de cunho tradicional e patrimonial foi a dual agenda of development, with the archaic
possível porque conseguimos combiná-lo com o and modern walking together. This modernizing
capitalismo moderno, criando uma dupla pauta process will have consequences in the power
de desenvolvimento, com o arcaico e o moderno structure in monolithic group and domain in the
caminhando juntos. Este processo modernizador social imaginary, preventing change, stimulating
terá consequências na estrutura de poder, no associative vertical over the horizontal associative
grupo monolítico de domínio e no imaginário and not encouraging the formation of a civic
social, impedindo a mudança, estimulando culture.
o associativismo vertical em detrimento ao
associativismo horizontal e não fomentando a
formação de uma cultura cívica.

Palavras -Chave Keywords


Raymundo Faoro; Patrimonialismo; Estamento Raymundo Faoro; Patrimonialism; Political Estate;
Político; Capitalismo. Capitalism.

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1. Introdução Para Schwartzman (2007) o indivíduo


Faoro é sem dúvida um dos maiores no Brasil não tinha iniciativa ou direitos ante
intérpretes da realidade brasileira, sem desconsiderar o Estado, e se, eles não eram representados da
os aspectos socioculturais e o comportamento forma mais simples, uma forma articulada e
prático, mas enfatizando a feição institucional, autônoma era impensável. Diremos então, que esta
ele parte do estudo sobre patrimonialismo e os é uma característica constitutiva do capitalismo
obstáculos presentes na construção de um Estado brasileiro, definido como capitalismo de Estado,
moderno, para poder compreender a formação do ou politicamente orientado. De acordo com Faoro
patronato político e a configuração do capitalismo (2000) esta estrutura sobreviverá a tudo e a todos,
brasileiro. criando um capitalismo sem o ethos capitalista e
No clássico livro Os Donos do Poder (2000) a ética calvinista, mas sob a onipresença do Estado
o autor nos aponta que muito do “atraso” do país patrimonial.
se deve a uma herança ibérica transplantada desde 2. A origem do patrimonialismo
a colonização. Tendo como influência significativa
Max Weber, Faoro sustenta que ao longo de seis O primeiro Estado Nacional a surgir
séculos o Estado brasileiro se configurou como foi Portugal, e, de forma simplificada, as razões
autônomo em relação à sociedade, privilegiando desta vanguarda vão, de uma realeza mais forte
a racionalidade burocrática em detrimento da a um feudalismo mais centralizado, fatores que
racionalidade moderna e legal, mas o autor vai resultaram no progressivo enfraquecimento dos
além do pensamento weberiano quando diz que senhores feudais. Antevendo esta derrocada,
este mesmo Estado precede a sociedade civil, que parte da burguesia, especialmente a burguesia
não lhe é somente apartada. Esta autonomização mercantil, se alia ao Poder Real, transformando
se desenvolverá a partir de um objetivo central este no principal condutor do processo de
que é a realização dos interesses particulares de desenvolvimento do Estado-Nação, porém, o
seus dirigentes, ou do estamento como o autor sucesso desta aliança virá, sobretudo da cooptação
conceitua, transformando a máquina pública em nobiliárquica, ou, de uma estratégia domesticadora
patrimônio pessoal. de oferecimento de cargos com status de nobreza
Simon Schwartzman na obra Bases do que perduraria por séculos e que seria exportada à
Autoritarismo Brasileiro (2007) sintetiza bem a América portuguesa.
realidade brasileira, tendo como base o pensamento Formado o tripé “Coroa, burguesia,
de Faoro: Estado Nacional”, ungido pelo mito edênico do
(...) conheceríamos um sistema paraíso terrestre (BUARQUE, 2000) e reforçado
político de cooptação sobreposto pela marca da guerra, a empresa marítima buscará
ao de representação, uma sociedade
no expansionismo territorial a sedimentação de
estamental igualmente sobreposta à
estrutura de classes, o primado do Direito seu poderio e a subordinação da economia. Esta
Administrativo sobre o Direito Civil, a acumulação primitiva de terras, nos alerta Faoro
forma de domínio patrimonial-burocrática (2000) dará início a confusão entre o que é um
e o indivíduo como um ser desprovido de
iniciativa e sem direitos diante do Estado” bem público e o que é um bem privado, ou à
(SCHWARTZMAN, 2007, p.43). forma de dominação conhecida como patrimonial.

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Além disso, fornecerá subsídios para a formação pois, se não existiam as evidências empíricas
do estamento nobiliárquico através da concessão na superestrutura, estas levavam à incerteza da
de terras, combinando dois fundamentos em si existência do feudalismo na infraestuturai Faoro
contraditórios: o da soberania da posse da terra (2000) trará ainda para contrastar com a teoria
e o da dependência ante o Poder Real, tudo isso marxista, a diferenciação de Maquiavel (1976) sobre
selado pela lealdade. O resultado será uma grande dois tipos de principado, o feudal e o patrimonial,
capilarização dos agentes reais no território no último o monarca é o senhor do comércio e
português, cuidando de algo que era ao mesmo da riqueza territorial, e estende sobre os súditos
tempo seu e do rei. uma rede patriarcal diferente dos direitos e deveres
O marcante traço territorialista de Portugal fixamente determinados como no feudalismo.
terá também, influências significativas em seu Não ter tido um feudalismo chamado
ordenamento jurídico, não podendo se filiar à “autêntico”, que tivesse revolvido as entranhas
Common Law, ou direito do costume da terra; e da sociedade, fez com que a Península Ibérica
também sem construir um conjunto de normas desconhecesse as relações capitalistas em sua
que lhe seja endógeno. Foi adotada a Constituição íntegra, sem a articulação entre sociedade e Estado.
de Diocleciano, como Estatuto de Ordem Pública - Portugal ficou refém dos avanços tecnológicos de
dando o caráter político e instituindo uma vasta outras nações, especialmente, França e Inglaterra,
camada de funcionários públicos - e o Código de pois, não havia reinvestimento ou acumulação.
Justiniano, como Estatuto regulador das relações O patrimônio português servia para manter a
privadas, sendo que este afirmava o poder ilimitado administração colonial, e esta é uma das principais
do imperador, e consequentemente reforçava o teses de Faoro (2000), a de que toda renda gerada
patrimonialismo. pela terra era destinada à geração e conservação de
Segundo terminologia de Faoro (2000), a um estamento burocrático de caráter fidalgo. Esta
esses fundamentos sociais e espirituais se somará tese desfaz ainda ao nó górdio da manutenção
a tendência mercantil da monarquia portuguesa, e, por Portugal de um domínio colonial tão vasto e
juntos construirão o Estado patrimonial e com ele rico a despeito de não seguir princípios racionais
uma nova ordem social, o capitalismo politicamente modernos. A resposta está em quanto maior o
orientado. Um capitalismo de Estado diferente do patrimônio real, maior era a incorporação de
capitalismo dos países que tiveram uma revolução pessoas ao estamento, e, portanto, maior era a
burguesa clássica, pois tanto em Portugal quanto capilaridade de Portugal na colônia, “todos são a
na América portuguesa, a burguesia fora sufocada sombra do rei”, de um poder monocéfalo que se
e cooptada, ela não terá um papel eminentemente desdobrava nos rincões tropicais.
revolucionário como a história mostrou e Marx Vale ressaltar que, se a estrutura
eternizou no Manifesto Comunista (MARX, 2002). patrimonial levou à estabilização da economia e
Reforçando o argumento da importância do entreposto colonial, por outro lado, impediu o
da predisposição comercial de Portugal, Faoro florescimento da burguesia e com ela o capitalismo
(FAORO, 2000, p.36) ressalta que foi esta industrial. Como já dissemos, o Brasil vivenciou
peculiaridade histórica que acelerou o aparecimento um capitalismo orientado de cunho tradicional, e
do sistema patrimonial, contrário à ordem feudal, embora utilizasse formas do capitalismo moderno,

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racionalidade técnica e dispersões liberais, não Sérgio Buarque (2000), dirá que a ocupação dos
possuía o seu espírito, ou o ethos capitalista segundo trópicos será estimulada pelos imensos territórios
a teoria weberiana. à disposição, o colono virá somente se for o
No texto Ética Protestante e o Espírito do dirigente, contando com outra gente que trabalhe
Capitalismo (1981) Weber procura confirmar para ele, revelando a aversão ibérica ao trabalho
a hipótese de que a representação religiosa, manual.
especialmente a dos calvinistas, e a conduta
3. O estamento: Leviatã Social
econômica por eles exercida foram no Ocidente
uma das causas do desenvolvimento do capitalismo. É interessante notar o uso que Faoro
Embora existissem fenômenos capitalistas em (2000) faz da história, pois se por um lado ele a
civilizações orientais, as características específicas usa intensamente, recuperando os antecedentes
do capitalismo ocidental – busca do lucro históricos como a formação do Estado-Nação
combinado com a burocratização, o primado do português, e suas heranças para a América
Direito racional e o protagonismo do indivíduo – portuguesa, por outro lado, ele cria uma teoria
só floresceram quando o espírito do capitalismo a-histórica sobre a formação do patronato
e a vocação religiosa se encontraram. A ética brasileiro, algo se manterá imutável diante dos
protestante sugere que se deve desconfiar dos desdobramentos do mundo (SCHWARTZMAN,
agrados deste mundo, a riqueza em si constitui 2003). E para compreender esta paralisia
um grande perigo, o ideal é trabalhar dia após dia, Faoro (2000) tenta escapar do determinismo
acumulando lucro e reinvestindo no que não foi historiográfico rompendo com um postulado
consumido. Permitindo o desenvolvimento dos marxista que considera o feudalismo uma etapa
meios de produção, a aquisição econômica deixa de necessária na linha da história, mas que por outro
ser um meio de satisfazer somente as necessidades lado, vê a origem do patrimonialismo brasileiro
básicas do homem e passa a ser um dos princípios já nos primórdios coloniais, quando Portugal
orientadores do capitalismo. Os calvinistas viviam transplanta sua estrutura de dominação à América
o comportamento ascético de alheamento do portuguesa, tendo o estamento como ferramenta
mundo e como eles não sabiam se seriam salvos de poder.
ou condenados, procuravam sinais no mundo que De acordo com Faoro (2000) o estamento é
indicassem sua escolha. É assim que algumas seitas diferente das classes, pois teria de ser uma categoria
terminaram por ver no êxito econômico uma prova econômica, e não somente política, mas ao contrário
da escolha de Deus, eram os predestinados. é o estamento que sustenta a classe pelo fiscalismo.
Este ethos capitalista, este comportamento Vale ressaltar, porém que isso não exclui as
ascético voltado para a acumulação não ocorria relações de poder, enquanto capacidade de agir, de
entre os católicos, pois eles não percebiam a produzir efeitos, de determinar comportamentos,
sociedade dos homens na terra como um fim em de forma intencional ou interessada, neste caso, as
si, mas, de forma teleológica esperavam o Segundo relações se fundamentam e se legitimam no que
Advento, ou o Paraíso, que de certa foi encontrado Weber (2005) chamou de um tipo de dominação
na América portuguesa. O historiador Caio Prado tradicional, baseado na tradição, com o aparato
Júnior (1970), seguindo a mesma vertente de administrativo de tipo patriarcal formando a rede

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que irá sustentá-las. 2010, p.164).


O estamento segundo Faoro (2000) seria Porém, se considerarmos o texto de Weber
então, uma organização político-administrativa, (1978) Feudalismo e Estado Estamental, veremos que o
uma corporação de poder, estruturada numa estamento estaria baseado em relações de piedade,
comunidade, ou seja, o “Estado-maior da e não em relações contratuais como no feudalismo;
autoridade pública”. Este grupo se torna árbitro da sendo assim, o estamento poderia coexistir com
nação e das classes sociais, regulador da economia o capitalismo, a despeito da hierarquização e da
e proprietário da soberania nacional, atua em nome pessoalidade, pois o estamento não é casta já que
próprio e para tanto, usa indiscriminadamente os não possui a sua rigidez e nem classe, é um corpo
instrumentos oriundos de sua posse do Estado. homogêneo estratificado, formando uma teia de
Falar que o estamento é uma elite ou classe relacionamentos que constitui um determinado
política para Faoro (2000) é pleonasmo, pois poder e influi em determinado campo de atividade.
haverá sempre uma minoria governando ou tendo O estamento tivera origem no que Weber (1978)
isso como objetivo. Ser uma minoria governante denominou “patrimonialismo”, essa forma de
não significa, pois ter autonomia, e, esta é uma dominação política tradicional poderia evoluir
qualidade fundamental do estamento. para formas modernas, como o patrimonialismo
José Murilo de Carvalho (2010), no burocrático-autoritário, combinando aspectos
entanto, vai discordar de Faoro quanto ao que seja racionais e irracionais. O estamento portanto,
a classe dirigente imperial (segundo terminologia além de não ser rígido, não pode ser identificado
do próprio autor), para ele, não se trata de um com o pré-capitalismo, pois não terá um caráter
estamento, necessariamente transitório, mas muitas vezes
(...) mas de uma elite política formada permanente em uma economia patrimonial onde
em processo bastante elaborado de o prestígio e a honra ocupam papel destacado, por
treinamento, a cujo seio se chegava por isso o mecanismo da cooptação nobiliárquica terá
vários caminhos, os principais sendo
resultados tão eficientes.
alguns setores da burocracia, como a
magistratura. (...) O segredo da duração Se, ao definir o patronato político brasileiro
dessa elite estava, em parte, exatamente como sendo de ordem estamental, e usando
no fato de não ter a estrutura rígida
de um estamento, de dar a ilusão de conceitos como patrimonialismo e burocracia
acessibilidade, isto é, estava em sua racional-legal o autor se aproxima de Max Weber,
capacidade de cooptação de inimigos por outro lado, ele se afasta substancialmente Marx,
potenciais (CARVALHO, 2010, p. 151). principalmente quando sustenta a autonomia do
Acrescenta ainda que a classe dirigente estamento político burocrático. Faoro relendo Marx
também dirá que para este o bonapartismoii ou o cesarismo
apresenta apenas uma autonomia aparente, visível
(...) não era máquina moderna de
somente na superestrutura. De fato, em O Dezoito
administrar, pois o sistema industrial
de produção que levou a racionalização Brumário de Louis Bonaparte (2006) Marx vai,
administrativa para dentro dos modernos confirmando a clássica tese de que “O executivo no
Estados capitalistas ainda não se Estado moderno não é senão um comitê para gerir
estabelecera entre nós” (CARVALHO,

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os negócios comuns de toda a classe burguesa” política através da cooptação nobiliárquica e


(MARX, 2002, p.42) dizer que as políticas, ou as posteriormente, através da concessão de empregos
ações do Executivo coincidem com os interesses públicos.
da classe dominante, e mais, o Golpe de Estado Por ser uma realidade peculiar, retomaremos
na França de Napoleão III não fora obra de um alguns eventos políticos significativos para poder
indivíduo, mas das circunstâncias e condições compreender a evolução do estamento político no
geradas pela luta de classes. Faoro (2000) ao Brasil.
contrário, defenderá o estamento como um poder
político que não era exercido nem para atender aos 4. Recuperando a história
interesses das oligarquias rurais, nem a incipiente Desde a colonização, foi forte a presença
burguesia, mas em causa própria, “(...) por um da continuidade e da permanência, traços de nossa
grupo social cuja característica era, exatamente, a cultura política. É relevante salientar, portanto,
de dominar a máquina política e administrativa do que não vivenciamos uma revolução nos moldes
país, através da qual fazia derivar seus benefícios clássicos, não houve mudança na estrutura fundiária
de poder, prestígio e riqueza” (SCHWARTZMAN, e menos ainda na democratização do poder, e é
2003, p. 209). Simon Schwartzman (2003) em seu neste ponto que a continuidade fica mais evidente,
artigo Atualidade de Raymundo Faoro, contará que a nos donos do poder, ou no estamento político.
contribuição do jurista-sociólogo O capitalismo liberal, ou capitalismo
“(...) vai além da utilização dos conceitos manchesteriano desenvolveu-se no Brasil de
weberianos e da interpretação que deu ao forma derivada, perpassado pelo hibridismo de
sistema político brasileiro: ela consiste, sua estrutura e de suas instituições. As fases do
fundamentalmente, em chamar a atenção
seu desenvolvimento foram superpostas, não
sobre a necessidade de examinar o sistema
político nele mesmo, e não como simples encontraram aqui uma sociedade homóloga à sua
manifestação dos interesses de classe, prática e ideologia, mas um Estado anacrônico que
como no marxismo” (SCHWARTZMAN, até o Império era predominantemente agrário em
2003, p. 209).
base econômica latifundiária e escravista.
Faoro (2000) dirá ainda que tanto Marx Caberia então às elites utilizarem o
quanto Engels não previam a assimilação da liberalismo à sua maneira, de modo a não levar
burocracia pelo estamento, sendo a primeira à balcanização, mas em prol da manutenção e
apenas um formalismo do Estado. Já na realidade expansão do território, essa característica ibérica
brasileira, não impera a burocracia, a camada estaria acima da livre iniciativa e da descentralização
profissional que assegura o funcionamento do política, e, portanto da própria ideologia liberal,
governo e da administração no ideal do Estado que ficaria para ser concretizada no futuro, fazendo
racional-legal, mas o estamento político, que se faz com que a prática do liberalismo fosse retrógrada
árbitro dos conflitos entre as classes. Sua autonomia em relação à realidade brasileira, abafando os
se manifesta através de certos objetivos, sendo um interesses privados e inibindo a livre iniciativa
dos principais a centralização territorial e política. (VIANNA, 1996).
O estamento burocrático comanda o ramo civil e A democracia liberal de orientação
militar e também provê oportunidades de ascensão estrangeira, era contrária aos interesses da

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oligarquia, e aqui tomou outras formas; a Guarda Nacional – entram em colapso, além
ideologia a ser criada não priorizava a democracia disso, a abolição da escravatura trata de lhe desferir
representativa, mas sim uma forma elitista de ação o último golpe, afetando o estamento político
política, tendo o Estado como principal ator. Era que sobrevivia das divisas oriundas do crédito
como se fosse descoberta uma forma de convívio cedido à agricultura comercial, a classe dominante
entre as instituições liberais e o sistema patrimonial estava fragmentada e absorvida em ideias e
de origem ibérica. posicionamentos diferentes dos do Império.
Esse convívio ou mudança pela via A despeito de sua aproximação com
da acomodação, Faoro (2000) vai identificar a classe média – já que com o passar do tempo
especialmente no comportamento e nas atitudes os filhos das oligarquias concentram-se cada vez
da Coroa portuguesa, do Exército e também da mais nas carreiras do Direito, e o oficialato ao
classe dominante, por exemplo, quando a queda contrário, passa a ter sua origem, sobretudo de
do Gabinete Liberal de Zacarias de Góes em famílias militares e de rendas modestas – e da
1868 inaugura um processo de intenso dissídio tomada de um discurso democrático com a tese
entre a Coroa e o Exército. A Coroa tentava do cidadão de farda, a instauração da República
conter o liberalismo, ao passo que se espalhava a pelo Exército não trouxe consigo a soberania
contrariedade quanto ao uso indiscriminado do popular ou a representação social e política, mas o
Poder Moderador, a famosa frase “o rei reina, mas poderio regional, especialmente dos Estados mais
não governa” será usada por progressistas e liberais, abastados com o exacerbamento do mandonismo
e posteriormente exacerbada pelos republicanos privado. Cabe ressaltar que se a oligarquia persistiu
que farão intensa pregação contra a monarquia. a esta mudança social, o mesmo ocorre com o
O Partido Republicano agrupará grande parte estamento, que não finda, somente dispersa.
dos fazendeiros dissidentes, especialmente os do Assim, mesmo com a República e a tentativa
oeste paulista. Estes, que outrora eram um dos de descentralização do poder não houve a ampliação
sustentáculos do Império, agora não viam mais da cidadania, o Estado republicano passou a não
vantagem na artificial titulação nobiliárquica, o impedir a atuação das forças sociais, mas a favorecer
benefício visualizado por eles estava agora no as mais fortes, no estilo spenceriano, como nos
discurso federativo. A Coroa tenta ainda em seus ensina Carvalho (2006), com o liberalismo como
últimos suspiros esvaziar essas reivindicações instrumento de consolidação do poder.
federativas reinantes empreendendo a centralização Faoro (2000) dirá que a soberania popular
política e descentralização administrativa, essa só existirá como farsa, não traduz a vontade “de
tentativa de aproximação dos municípios e com baixo para cima”, mas sempre de cima, de um
as províncias protegerá a unidade política, mas a estamento burocrático que num movimento
medida será tomada tarde demais. pendular confunde o espectador, variando sua
A sociedade começa a se desmistificar, aparência, ora liberal, ora democrático, e outras,
dirá Faoro (2000). A sociedade de classes começa autoritário.
a surgir, e suportes como a burguesia agrária e
o Exército – chamado por Faoro de o principal 5. Viagem redonda: estamento permanente?
aparelho centralizador, depois de aniquilada a

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De forma exortativa, no último capítulo de portanto, vai se assentar na tradição, combinando


Os Donos do Poder, Faoro (2000) utiliza a metáfora continuidade e estabilidade, e isso servirá a
da Viagem Redonda, para dizer que de Dom Faoro não somente para identificar a origem do
João a Getúlio Vargas passaram-se seis séculos, patronato político brasileiro, mas também para
mas algo se manteve intacto, a ser, o capitalismo entender como se deu esse caminho, que no Brasil
politicamente orientado. Esta estrutura político- foi via Estado; o ator a moldar a fisionomia do
social se viabiliza pelo tipo de domínio conhecido chefe de governo e a regular as relações sociais. O
como patrimonial exercido pelas mãos do chefe por meio do Estado vai tutelar os interesses
estamento que, se no início era aristocrático, depois particularistas, dando um tom pessoalista às
passa a ser burocrático. Contudo, isso não significa normas, vai acolher sem intermediários o cidadão
dizer que a estrutura é estática, imóvel, mas que e os desvalidos em um braço, e no outro a apática
a mudança se deu ao longo dos séculos pela e parasita burguesia. Essa ambiguidade dirá Faoro
acomodação, ou seja, existe a renovação, porém, (2000), será uma característica significativa neste
ela carrega coercitivamente os mesmos valores e tipo de domínio. Dirá ainda, que o chefe não será
tradições de antes, com uma homogeneidade de um mito carismático, um herói, ou legitimado por
consciência, de ideologia, de visão de mundo, a um governo constitucional-legal, já que as leis
mudança não é, portanto, estrutural. Faoro (2000) tendem a configurar-se de acordo com a demanda
vai salientar que a permanência da estrutura exige do estamento, mas será o bom príncipe como D.
a mudança interna e o ajustamento externo, e se João I, D. Pedro II e Getúlio Vargas.
a elite conseguir controlar o ritmo e o alcance da Em se tratando da figura de Getúlio
mudança poderá impedir a ruptura, afastando as Vargas, conhecido como o “Pai dos pobres”, essa
consequências imprevistas. lógica operará com especial clareza, pois ele vai
O patrimonialismo não gerou uma burguesia empreender uma política de bem-estar social num
capaz de ir contra o status quo, ou fazer a revolução, momento onde as massas emergiam ao procênio do
mas uma elite predatória ligada ao estamento, e desenvolvimento industrial e urbano e a concessão
se durante esses seis séculos houve momentos de de direitos será uma forma de arrefecer as
crise, de mudança de direção, não houve, contudo, reivindicações e os possíveis surtos revolucionários,
mudança de domínio, como no conceito gramsciano processo conhecido como populismo. Porém, é
(COUTINHO, 1999), as pessoas podem mudar, importante ressaltar que, embora a manipulação
mas a orientação permanece. E Faoro (2000) vai das massas tenha sido um ingrediente ímpar na
seguir o mesmo raciocínio quando diz que essas estratégia populista, ela foi também um modo de
mudanças não ocorreram sem conflitos, mas ao expressão das insatisfações das massas e, ao mesmo
receber o impacto das novas forças sociais se opera tempo, uma forma de estruturação do poder para
a estratégia de cooptação, de amaciamento, de os grupos dominantes.
domesticação, de incorporação dos valores, num Para Faoro (2000) as massas confundirão
caráter de compromisso, podando-se o “fermento o político com o taumaturgo, com o ilusionista,
revolucionário” – clássica caracterização de que ao invés de agir, salva, e mais uma vez Getúlio
Florestan Fernandes acerca do liberalismo. Vargas e o nacionalismo que florescerá após
A legitimidade do patrimonialismo, a Revolução de 30 serão paradigmáticos para

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compreender esse fenômeno, a ser, o messianismo do desenvolvimento social. Porém, o ritmo da


que permeia a cultura política brasileira. Getúlio mudança não é homogêneo a todas as esferas
Vargas e o estamento que ele representava culturais e institucionais de uma dada sociedade,
significavam a esperança de um mundo novo, um o que pode gerar um desequilíbrio variável da
mundo em compasso com os valores e teorias integração delas entre si, com atritos e tensões,
tidas como universais, ou seja, correspondia a um algo típico em sociedades marcadas pela dualidade
verdadeiro processo civilizatório permeado por um estrutural (FERNANDES, 2008).
bovarismoiii colonizado, mas a modernização que Esta dualidade estrutural é o modo como o
correspondente a esse processo não desvanece o Brasil consolida o seu Estado burguês de Direito,
patrimonialismo político, ao contrário, dá sobrevida não com o capitalismo politicamente orientado
à elite política estamental numa ordem estatal precedendo o capitalismo moderno, mas agindo
centralizada. Nas palavras de Werneck Vianna ao mesmo tempo. Esta temática é trabalhada por
(2011) “(...) a Revolução de 1930 consistiria, pois, Faoro no texto A questão nacional: a modernização
em um retorno às raízes patrimoniais, obedecendo (1992) onde ele coloca a seguinte reflexão: se a
ao movimento oculto das estruturas” (VIANNA, realidade brasileira indica que a secular estrutura
2011, p.04). patrimonial não foi extinta, ou, não cumpriu a
etnocêntrica lei geral do desenvolvimento histórico
6. Modernização e modernidade: cultura
com o pressuposto de que as nações que estão
política imutável?
nas últimas posições devem se adaptar ao ritmo
A longa permanência do capitalismo mundial, há que se questionar sobre qual seria a
politicamente orientado de cunho tradicional foi “pista natural do desenvolvimento” do Brasil e,
possível porque conseguimos combiná-lo com o somente quando for desvendado o leito por onde
capitalismo moderno, criando uma dupla pauta ela corre, poderemos trilhar o caminho de um país
de desenvolvimento, com o arcaico e o moderno moderno e não modernizador, sem atalhos ou saltos,
caminhando juntos. Para compensar essa diferença pois eles “estão cheios de atoleiros de autocracias”
de ritmo, a mudança social se dará por saltos, o (FAORO, 1992, p.08). O desenvolvimento para
que favorecerá o estamento, pois permanecerá o Faoro (1992) começa com a descoberta desta
mesmo grupo monolítico de domínio, um grupo pista, que conteria um eco hegeliano na medida
capaz de impor um destino comum a homens em que se faz como devenir, como atualização,
heterônomos. negando a “(...) hipótese do encadeamento de
Sobre o conceito de mudança social, vale modernizações e da própria modernização como
a pena resgatá-lo do livro de Florestan Fernandes, via de desenvolvimento” (FAORO, 1992, p. 02).
Mudanças Sociais no Brasil (2008). Para tanto, Faoro (1992) fará a distinção
Neste o sociólogo vai chamá-lo de entre modernidade e modernização. A primeira
uma noção genérica, podendo ser aplicada a comprometeria em seu processo a sociedade em
quaisquer espécies de alterações no sistema social, geral, todas as classes e não só as dominantes,
independente das condições de tempo e espaço, com a revitalização e por vezes remoção de papéis
podendo ser, portanto, progressiva ou regressiva, sociais, não dependendo de comandos externos
e é a esta qualidade que depende a caracterização para se realizariv. Já a modernização, ao contrário da

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modernidade, não seria o desenrolar da lei natural


do desenvolvimento, mas a instauração de uma
política de mudança social implementada por um
grupo condutor, através da ideologia ou coerção, e
não como expressão da sociedade civil.
O processo modernizador tão próprio
do Brasil geraria um tempo circular, ou a lógica
do conservar-mudando de Vianna (1996). As
estruturas permaneceriam intactas ante as
mudanças, e o imaginário social acerca das relações
de poder, ou cultura política se manifestará contra
as ideologias opostas, os interesses divergentes,
afeita à conciliação e à internalização do conflito.
Nossa revolução burguesa será dominada pelo
andamento passivo, “(...) e por esta natureza passiva
do caminho, o sistema de orientação racional pode
coexistir com a ordem patrimonial, criando para
a burguesia a possibilidade de extrair vantagem
tanto do moderno quanto do atraso” (VIANNA,
2011, p.06).
Nosso particularismo privatista será
antípoda à formação de uma cultura cívica, de
um associativismo horizontal como na ética
protestante, as soluções virão de um associativismo
vertical, através da mendicância estatal.

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Notas

i
Superestrutura é uma categoria usada na tradição marxista para indicar as relações sociais, jurídicas,
políticas, e as representações da consciência (costumes, ideias) que complementam a estrutura.
Infraestrutura é a base material, as forças econômicas.
Bonapartismo é uma forma de governo ou de uso do poder onde há a subordinação do Legislativo ante
ii

o Executivo por uma figura carismática.


Bovarismo é uma visão romantizada da possibilidade de se passar de uma condição negativa, para outra
iii

considerada ideal.
iv
Faoro explica este processo através do exemplo hegeliano para o desenvolvimento, usando a metáfora
do desenvolvimento de uma planta, que não se faz por uma força externa, mas a partir de seu germe,
que a contém de modo ideal, e não uma direção superior, um enxerto, desenvolvendo assim, a planta
(FAORO, 1992, p. 07).

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Faoro e o LEITMOTIV tipicamente brasileiro: as confusões entre público e privado


Tathiana Senne Chicarino

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Da experiência vivida à crítica escrita:


Os saberes cotidianos e os seus sujeitos como
parâmetros da produção textual e reflexão dos
fenômenos sociais
Alessandra Felix de Almeida
Graduanda do curso de Sociologia e
Política da Fundação Escola de Sociologia
e Política de São Paulo.
Contato: dona@alealmeida.com /
alefelixalmeida@gmail.com

Resumo
Trata-se de um projeto individual e autônomo, do projeto foi o de trazer os participantes para
desenvolvido para produção textual a partir de dentro do processo de produção textual, através
conversas e debates sobre conteúdos e experiências de suas experiências vividas, apresentando que tais
de vida dos participantes, conforme orientações da experiências têm seus valores, pois estão inseridas
metodologia Pesquisa-Ação, cujo objetivo é o da na mesma sociedade, pode-se assim, relacioná-las
transformação e resolução de problemas em uma com os contextos sociais, políticos e econômicos,
forma de ação planejada de caráter social. Nos possibilitando um pensamento crítico de si mesmo
últimos cinquenta anos os problemas da leitura, e do mundo em que vivem.
compreensão e escrita de textos persistem na
educação brasileira e têm sido diagnosticados através
de dados e estatísticas, no entanto a questão que se
colocou foi como estas dificuldades se apresentam
e quais seriam suas consequências práticas. Uma
vez que esta problemática está colocada, é possível
aceitá-la como um fato dado, portanto percebido
como real, de modo que a dificuldade se apresentaria
como parte da produção de textos, legitimando
distinções entre aqueles que sabem e dominam e os
que não sabem e são dominados. Assim, o objetivo

Palavras -Chave
Produção textual. Desmistificação da escrita. Experiência vivida.

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Da experiência vivida à crítica escrita: Os saberes cotidianos e os seus sujeitos como parâmetros da produção textual e
reflexão dos fenômenos sociais
Alessandra Felix de Almeida

1. Introdução de demonstrar que a leitura do mundo se coloca


Em 04/02/1962 foi apresentado pelo como um passo anterior ao da leitura e da escrita
jornal O Estado de São Paulo, sob o título “A (FREIRE, 2011: 109), entendendo que a dificuldade,
escola média do século XX: um fato novo em colocada como um fato dado, acaba por legitimar
busca de caminhos”, um dos principais problemas distinções entre aqueles que sabem e dominam e
da educação secundária como sendo “o da os que não sabem e são dominados (BOURDIEU,
preparação de candidatos a cursos superiores” 2010: 10) e que a reflexão livre de pressupostos
(OESP, 1962), em 17/07/2012, foi publicado, pelo dominantes, efetiva a essência do pensamento que
mesmo veículo, que “No ensino superior, 38% é pensar (HORKHEIMER, 1983: 145).
dos alunos não sabem ler e escrever plenamente”
2. A construção da verdade em ação
(OESP, 2012) e em reportagem sobre o ENEM,
um importante portal de notícias na web, destacou, “Último dia de prova tem a temida redaçãoi”
em 04/06/2012, que os “candidatos ainda têm é o título de uma matéria da Revista Veja,
dificuldade para entender tema de redação” (UOL, publicada no dia 04/11/2012, em referência ao
2012). Diante deste quadro, podemos entender Exame Nacional do Ensino Médio. Flávio Villaça
que os problemas da leitura e escrita persistem (1999) em seu estudo sobre os “Efeitos do espaço
na educação brasileira, por pelo menos cinquenta sobre o social na metrópole brasileira” nos apresenta
anos, e que as políticas públicas para a educação o desenvolvimento de uma ideologiaii para a
tiveram como objetivo o desenvolvimento dos dominação do espaço público, nos mostra ainda
estudantes para o mercado de trabalho, no entanto que “o real não é fácil e diretamente observável
as mesmas políticas públicas têm se deparado com pelos nossos sentidos [...] surgem então diferentes
a ineficiência da educação de base (INAF, 2011: versões sobre o real” (VILLAÇA, 1999: 231). Em
3). seu trabalho, o autor aponta algumas versões do
A problemática da educação, real, como a ligada à naturalização dos processos
especificamente a produção textual, foi o ponto sociais, como por exemplo, “a miséria do nordeste
de partida para a elaboração deste projeto, é decorrência do clima” (VILLAÇA, 1999: 231).
desenvolvido na Vila Brasilândia, e orientado pela O estudo de Villaça (1999) percorre os veículos
questão da dificuldade em redigir textos como um de comunicação, especificamente os jornais e as
fato dado. De modo que a proposta deste projeto, revistas de grande circulação, a fim de apresentar
sob a perspectiva metodológica da Pesquisa-Ação, como as notícias são construídas e para onde
foi a de desmitificar a produção de textos, colocando está direcionada a atenção da imprensaiii. O tema
os participantes como protagonistas da produção de Villaça (1999) é o espaço urbano, no entanto,
textual, assim como o são do mundo que constroem podemos utilizar o seu método para analisar como
socialmente (NOGUEIRA e MESSARI, 2005: as versões do real também são desenvolvidas na
163) e apresentando suas qualidades sensoriais área da educação.
como vinculadas a todo processo da vida social Em 04/02/1962 foi apresentado pelo
(HORKHEIMER, 1983: 133). jornal O Estado de São Paulo, sob o título “A
Os temas dos textos produzidos tiveram escola média do século XX: um fato novo em
como fonte a vivência dos participantes, a fim busca de caminhos”, um dos principais problemas

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da educação secundária como sendo “o da um fato dado e propagada graças à legitimidade dos
preparação de candidatos a cursos superiores” veículos de comunicação. Também não foi objeto
(OESP, 1962), em 17/07/2012, foi publicado, pelo deste trabalho a análise dos objetivos da mídia,
mesmo veículo, que “No ensino superior, 38% quanto à possibilidade de divulgar uma ideologia,
dos alunos não sabem ler e escrever plenamente” mas sim como as notícias superficiais orientam a
(OESP, 2012) e em reportagem sobre o ENEM, construção de verdades que podem impactar nas
um importante portal de notícias na web, destacou, atitudes dos leitores e ouvintes. Podemos entender
em 04/06/2012, que os “candidatos ainda têm que diante destas colocações as produções de
dificuldade para entender tema de redação” (UOL, texto ganhem uma complexidade além do que de
2012). Podemos perceber, ainda que à primeira fato teriam. Se “a miséria do nordeste é decorrente
vista, que a educação tem sido apresentada mais do clima”, do que decorreria a dificuldade para a
como um problema do que uma solução ou menos elaboração de um texto?
ainda, como parte integrante do direito civiliv,
um dos três elementos do conceito de cidadania 3. O “saber de experiência feito”
previsto por T.H. Marshall (1967). Do ponto de vista de que todas as pessoas
O presente trabalho aborda a questão da partilham do mesmo mundo, embora com visões
produção textual, neste sentido foi realizada uma e referenciais diferentes, é possível considerar que
breve pesquisa nos meios de comunicação quanto estas mesmas pessoas têm algo a contar, ensinar
às notícias veiculadas que fizessem referência ao e aprender, seja em suas relações cotidianas ou
último Exame Nacional do Ensino Médio, realizado na produção de um texto. Paulo Freire (2011)
nos dias 03 e 04/11/2012, que citassem as palavras procurou
“redação” e “ENEM”, temos assim os seguintes
introduzir a troca fecunda de saberes, do
resultados publicados no dia 04/11/2012v: popular com o científico. Deixou claro que
somente um ignorante pode considerar o
povo ignorante. Pois ele é um produtor
de sentido, de visão de mundo, de valores
além dos frutos de seu trabalho (FREIRE,
2011: 10).

Procurando responder à pergunta: do


que decorreria a dificuldade para a elaboração
de um texto? Foi considerado que em oposição
à dificuldade haveria a facilidade. Conforme
exposto, o termo dificuldade (ou associações
Diante destes dados podemos afirmar que negativas à redação) é consideravelmente superior
as redações foram referenciadas de maneira negativa ao termo facilidade no que tange à produção de
em 86% das matérias publicadas. Se as redações redações. Assim, podemos começar a reelaborar
são, na “realidade”, fáceis ou difíceis, este não foi o a pergunta acima da seguinte forma: Do que
argumento de elaboração deste trabalho, mas sim decorreria a facilidade para a elaboração de textos
a questão da dificuldade em redigir colocada como por uma pequena parcela das pessoas? Neste

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sentido, sabe-se, através do pensamento de Pierre (HORKHEIMER, 1983: 145).


Bourdieu (2010), que as ideologias correspondem A hipótese para o desenvolvimento deste
a interesses particulares que procuram representar trabalho, procurando responder à pergunta: do que
interesses universais – aqui, verdades universais –, decorreria a dificuldade para a elaboração de um
que tendem a desmobilizar as classes dominadas. texto? Foi que a dificuldade estaria na não utilização
Uma vez que não haveria o que fazer diante de dos saberes cotidianos, tidos como menores, como
verdades universais, as distinções entre os grupos referência para a produção textual.
legitimar-se-iam e seriam estabelecidas hierarquias
(BOURDIEU, 2010: 10), em que estariam os que 4. O Desenvolvimento
sabem (produzem textos com facilidade) e dominam Foi realizada uma pesquisa exploratória
e aqueles que não sabem (têm dificuldades para em dezembro de 2011 junto a alguns adolescentes
produzir textos) e são dominados. moradores da região da Vila Brasilândia. A
Considerando que os dominados seriam pergunta de partida foi: Vocês têm dificuldades
representados, nos termos de Paulo Freire (2010), para fazer uma redação? Todas as respostas foram
pelo povo e que estes produzem sentido, têm positivas. A segunda pergunta foi: Vocês gostariam
seus valores e visões de mundo, poderíamos de participar de uma oficina de produção de
sugerir, assim, que a ideologia colocada também textos? As respostas foram igualmente positivas e
hierarquiza estes sentidos, valores e visões. Sendo entusiasmadas.
assim, conforme ensina Horkheimer (1983), A premissa para a elaboração deste projeto
as qualidades sensoriais dos homens estão foi a utilização do “conteúdo” de cada participante
intrinsecamente vinculadas a todo processo da vida para a geração de temas para as redações,
social, porém os fatos que os sentidos fornecem aos procurando relacionar as experiências vividas
indivíduos são pré-formatados, não são naturais, com o contexto social, a fim de realizar análises
são ensinados, tornando os homens receptivos, e aprofundar os temas, cujo resultado final seria
passivos e inautênticos. O indivíduo normalmente o pensamento crítico sobre as suas realidades. O
aceita as determinações pré-estabelecidas e vive objetivo do projeto foi o de trazer os participantes
de maneira a reforçá-las (HORKHEIMER, 1983: para dentro do processo de produção textual,
133, 135), portanto a produção textual baseada tornando-os parte dele e não tomar a dificuldade
nas experiências dos participantes poderia reverter como um fator intrinsicamente relacionado com a
este quadro de passividade diante dos fatos pré- referida produção.
formatados.
A metodologia utilizada foi a Pesquisa-
Uma vez que todos compartilham do Ação, cujo objetivo é o da transformação e resolução
mesmo mundo, podemos entender que todas as de problemas com a participação conjunta do
pessoas são sujeitos da história, ou no limite, de suas pesquisador e dos pesquisados, em uma forma de
histórias que têm em si o seu “saber de experiência ação planejada de caráter social. Esta metodologia
feito” (FREIRE, 2011: 39) e estes poderiam ser permite um meio eficaz para responder aos
utilizados na produção textual, proporcionando problemas da situação vivida, buscando soluções
uma reflexão livre de pressupostos dominantes, para problemas reais onde todos os participantes
efetivando a essência do pensamento que é pensar

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do processo tenham voz e vez. A Pesquisa-Ação, fazemos uma introdução (apresentamos o tema),
sem reduzir a reflexão teórica, opera principalmente desenvolvemos (detalhamos o tema) e concluímos
como pesquisa aplicada (THIOLLENT, 1986: 7,8, (esboçamos alguma opinião) e foi nesta dinâmica
73). Esta metodologia, aplicada à área de educação, que os encontros ocorreram de forma a desmistificar
justifica-se na a produção de um texto, colocando-o como parte
integrante, ainda que de forma subjetiva, no dia-a-
constatação de uma desilusão para com
a metodologia convencional, cujos dia da comunicação entre as pessoas.
resultados, apesar de sua aparente Sentávamos em forma de círculo e era
precisão, estão muito afastados dos
sugerido pela ajudante (pesquisadora) que os
problemas urgentes da situação atual
da educação. Por necessárias que sejam, participantes relatassem um acontecimento
revelam-se insuficientes muitas das importante ocorrido naquela semana (houve
pesquisas que se limitam a uma simples também a utilização de fotos e jornais), destes
descrição da situação ou a uma avaliação
de rendimentos escolares [...]. Dentro de era escolhido, por votação, o mais interessante.
uma concepção do conhecimento que A partir da escolha do acontecimento, a ajudante
seja também ação, podemos conceber pedia para que os participantes dissessem palavras
e planejar pesquisas cujos objetivos não
relacionadas com o que foi relatado. Todas as
se limitem à descrição ou avaliação da
reconstrução do sistema de ensino, não palavras eram escritas na lousa e quando se
basta descrever e avaliar. Precisamos esgotavam todas as possibilidades de palavras,
produzir ideias que antecipem o real ou passávamos a sublinhar as mais importantes.
que delineiem um ideal (THIOLLENT,
1986: 74,75). Sobravam, em média cinco palavras e com estas
conversávamos a fim de construir um tema.
5. Vivência Para a primeira construção do tema, houve
certa dificuldade, pois os acontecimentos pareciam
Em uma sala de aula da Escola Estadual ser um fim em si mesmos. Assim, desenvolvemos
Professor Crispim de Oliveira, localizada no uma analogia com um iceberg a partir do filme
Jardim Carumbé – Vila Brasilândia, foram Titanic (1997), que todos haviam assistido, essa
realizados nove encontros quinzenais, aos sábados, analogia procurava mostrar que se o comandante
totalizando vinte e sete horas, com uma média de do transatlântico tivesse noção do tamanho do
nove alunos por turma, com idades entre onze e bloco de gelo que sustentava a pequena ponta
cinquenta e três anos. O objetivo, apresentado em aparente, provavelmente, o naufrágio não teria
todos os encontros, era de que ao final de cada ocorrido, ou seja, procurávamos analisar os fatores
debate fosse produzida uma dissertação crítica. que sustentavam o tema oriundo do acontecimento
Assim, em todos eles foi apresentada a estrutura narrado, refletindo sobre as questões que não
da dissertação (introdução, desenvolvimento, prestamos atenção no dia-a-dia, mas que uma
conclusão) no entanto, trazendo esta estrutura vez analisadas, proporcionam um caráter mais
técnica para uma linguagem mais próxima da fala, crítico aos acontecimentos, tornando tanto as
procurando enfatizar que em qualquer conversa conversas quanto os textos mais interessantes e
cotidiana lançamos mão de alguma estrutura, ou fundamentados. Essa analogia foi aceita por todos
seja, quando contamos uma história, seja qual for, os participantes e utilizada em todos os encontros,

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a chamada para a utilização da “teoria do iceberg” 6. As produções


era: O que vocês acham que está por baixo disso
A cada encontro a ajudante apresentava
tudo que conversamos?
o que foi aprendido no encontro anterior, com o
Depois de construído o tema, era sugerido objetivo de mostrar que já havíamos aprendido algo
que os participantes atribuíssem um título a ele. que poderia ser reutilizado naquela nova produção
Os títulos eram escritos na lousa, um deles era textual, enfatizando que quando nos debruçamos
escolhido por votação e a partir deste momento sobre um tema percebemos o quanto dele sabemos,
todos os participantes, inclusive a ajudante, mas não havíamos prestado atenção, pois talvez o
começavam a produzir os textos seguindo a tratássemos como algo corriqueiro. Assim tivemos,
estrutura da dissertação crítica. por ordem de encontro, as seguintes produções:

Após a produção dos textos cada produtor e refletíamos sobre o que cada texto mostrou de
fazia a leitura em voz alta, nos dois primeiros novo.
encontros nenhum dos participantes quis ler,
assim, a ajudante iniciou esta fase do encontro, 7. Análise dos Resultados
sendo que nos demais, os próprios participantes No mínimo, durante os últimos cinquenta
se candidatavam para iniciar as leituras. Ao final anos os problemas da leitura e escrita persistem entre
do encontro conversávamos sobre o que foi lido os estudantes brasileiros, tal problema dificultaria o

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acesso ao ensino superior e consequentemente ao de elaborarmos os nossos próprios pensamentos,


mercado de trabalho qualificado. Temos políticas sendo assim, o processo da construção de um
públicas desenvolvidas sob a perspectiva da educação texto, ou uma redação, tornou-se mais acessível.
como um meio para o acesso à vida profissional, A questão principal que se colocou em
no entanto, a perspectiva inicial que sugerimos é o todo o processo deste projeto foi o exercício do
posicionamento dos indivíduos enquanto cidadãos pensamento, buscando os fatores que sustentam as
críticos de si, sendo que leitura e escrita podem nossas vivências cotidianas, refletindo sobre aquilo
representar o início de todo o desenvolvimento que vemos de maneira superficial, problematizando
educacional, pois para o entendimento de qualquer sobre nós mesmos, podendo assim problematizar
disciplina é necessário ler, interpretar e escrever. O o mundo em que vivemos e não o assimilarmos
presente trabalho partiu da problemática descrita de maneira dada. A desconstrução de ideologias
que, no referido período, nos apresenta dados, norteadoras das nossas ações se deu de maneira
gráficos e considerações construídos e elaborados simples, embora não fácil. O desânimo nos rondou
a partir de métodos quantitativos. No entanto, por diversas vezes, mas conversamos, refletimos
a questão colocada foi por que e como se dá a sobre esse desânimo e o problematizamos
dificuldade em ler, interpretar e escrever textos, também.
tal dificuldade estaria exclusivamente relacionada Esta Pesquisa-Ação, realizada em um
a questões de rendavii ou cor viii, conforme descritos pequeno grupo, parece ter iniciado o alcance de
em dados estatísticos? Partimos do pressuposto de seu objetivo, ou seja, a transformação e a resolução
que haveria a construção de uma realidade, em que de problemas pontuais. Transformação no
a dificuldade estaria dada no processo de produção sentido de desmistificar a produção textual como
textual e o ponto de partida para o desenvolvimento algo ligado necessariamente à dificuldade, não
deste projeto foi a desmistificação desta suposta tomamos a referida produção como algo fácil, mas
realidade. como algo que demanda esforço de pensamento,
Foi possível construir com os participantes repertório e reflexão crítica e estes itens não são
a prática da escrita a partir dos conteúdos de seus qualidades natas de uma ou outra pessoa, são
passados, presentes e perspectivas de futuro, processos e construções que podem ser realizados
mostrando que a produção textual tem como por qualquer pessoa racional, não depende de cor,
ponto de partida o próprio produtor, todas as credo ou classe social. Resolução de problemas
experiências têm valor, pois estão inseridas em no que diz respeito à ação da produção de texto
uma mesma sociedade, essas experiências são propriamente dita, exercendo a escrita sem temor
bases concretas para a produção de textos, podem ou preocupação.
ser problematizadas pari passu, passando de uma Curiosamente os temas propostos nos
narração para uma crítica e uma revisão da realidade encontros, tendo como ponto de partida os
vivida. Temas, à primeira vista, apresentados de próprios participantes, passaram por um processo
maneira simples, passaram, a partir dos debates, a de amadurecimento, começamos com o tema
serem implicados pelas conjunturas política, social mãe, que em tese é o nosso primeiro contato com
e econômica, portanto nos dizendo algo que não o mundo, passamos pelo papel da paternidade,
havíamos pensado, mostrando que somos capazes sobre as regras que conduzem as nossas vidas,

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pela reflexão de nossas experiências, pelo mundo


do trabalho e o seu papel social, pela análise
dos processos individuais que impactam no
coletivo e finalmente conseguimos analisar um
fato aparentemente exterior, fomos capazes de
contextualizá-lo, desenvolvê-lo e abordá-lo de
maneira crítica.
A questão da dominação não foi debatida
durante os encontros, ela foi sentida como parte
da fala dos participantes, como por exemplo, “eu
não consigo escrever” ou “eu não consigo pensar”
e estes “não consigo” foram problematizados e
questionados pela ajudante quando perguntava:
“por que você acha que não consegue?”. As
respostas iniciais eram “eu não sei”. Procurava-se
debater que saber que não se sabe seria o primeiro
passo para o saber, o não saber não seria um fato
dado, seria um fato provisório assim como todas
as instâncias da vida. Assim, discutíamos sobre a
construção dos saberes, considerando que estes
não estão relacionados a um dom ou a uma
relação entre pessoas mais ou menos capacitadas,
de modo que os saberes passaram a ser entendidos
como processos acessíveis e vividos por qualquer
pessoa.
Em nenhum momento a dificuldade foi
colocada como parte integrante da produção de
um texto, esta foi tratada como mais um forma
de comunicação, assim como a fala, lembrando
que quando começamos a falar não discursamos
de maneira eloquente, começamos por balbuciar
algumas sílabas e nem por isso nos calamos.

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reflexão dos fenômenos sociais
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Notas

i
Disponível em <http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/enem-2012-ultima-dia-de-prova-tem-a-
temida-redacao>. Acesso em 10/11/2012.
É aquela versão da realidade social desenvolvida pela classe dominante, tendo em vista facilitar a
ii

dominação, tornando-a aceitável pelos dominados. Essa versão tende a esconder dos homens o modo
real como as relações sociais são produzidas. Por meio da ideologia os homens legitimam as condições
sociais de exploração e dominação, fazendo que estas pareçam verdadeiras e justas (VILLAÇA, 1999:
231).
Sua pesquisa demonstrou que a região de concentração das camadas de alta renda, que representa
iii

15,90% dos domicílios da área pesquisada, recebeu 74,66% da atenção da imprensa (VILLAÇA, 1999:
233).
iv
Nos termos de T. H. Marshall (1967) a educação estaria diretamente relacionada com a cidadania,
sendo um pré-requisito para a liberdade civil. O elemento civil, para o referido autor, é uma das
três partes do conceito de cidadania, sendo representado pela “liberdade de ir e vir, liberdade de
imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à justiça”
(MARSHALL, 1967, p. 63)
v
Tabela de Dados: Anexo I
Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/saber/1091790-professora-e-acusada-de-punir-alunas-
vi

que-nao-emendaram-feriado-em-sp.shtml>. Acesso em 13/11/2012.


vii
Gráfico Níveis de alfabetismo da população de 15 a 64 anos segundo renda familiar: Anexo II
viii
Tabela Escolaridade da população de 15 a 64 anos segundo cor/raça: Anexo III
Disponível em http://www.gaz.com.br/noticia/376768-redacao_e_o_que_mais_preocupa_no_
ix

enem_2012.html. Acesso em 10/11/2012.


x
Disponível em http://www.jornalacidade.com.br/editorias/cidades/2012/11/03/enem-redacao-e-o-
maior-desafio-para-alunos.html. Acesso em 10/11/2012.
Disponível em http://atarde.uol.com.br/brasil/materias/1465046-estudante-diz-estar-preocupado-
xi

com-redacao-do-enem. Acesso em 10/11/2012.


Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/geral,estudante-diz-estar-preocupado-com-
xii

redacao-do-enem,955539,0.htm. Acesso em 10/11/2012.


Disponível em http://concursoseempregos.opovo.com.br/app/universidades/enem/2012/11/04/
xiii

enem-internanoticia,1917/candidatos-se-dizem-surpresos-com-tema-da-redacao.shtml. Acesso em
10/11/2012.
Disponível em http://g1.globo.com/se/sergipe/noticia/2012/11/sergipanos-consideram-o-tema-da-
xiv

redacao-do-enem-dificil.html. Acesso em 10/11/2012.


xv
Disponível em http://g1.globo.com/sp/sao-carlos-regiao/noticia/2012/11/candidatos-consideram-
tema-de-redacao-facil-em-sao-carlos-sp-enem-.html. Acesso em 10/11/2012.

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reflexão dos fenômenos sociais
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Disponível em http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2012/11/no-rio-2-dia-de-enem-foi-mais-
xvi

facil-mas-redacao-surpreendeu-estudantes.html. Acesso em 10/11/2012.


Disponível em http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2012/11/primeiros-acabar-enem-em-
xvii

brasilia-elogiam-tema-da-redacao.html. Acesso em 10/11/2012.


Disponível em http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2012/11/alunos-que-fizeram-enem-
xviii

na-ufsc-acham-complicado-tema-de-redacao.html. Acesso em 10/11/2012.


Disponível em http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2012/11/em-brasilia-candidatos-do-2-
xix

dia-do-enem-dizem-temer-redacao.html. Acesso em 10/11/2012.


xx
Disponível em http://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2012/11/matematica-e-redacao-sao-
desafios-para-o-2-dia-do-enem-dizem-alunos.html. Acesso em 10/11/2012.
Disponível em http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/2012/11/estudantes-de-bh-acham-redacao-
xxi

do-enem-mais-dificil-que-anteriores.html. Acesso em 10/11/2012.


Disponível em http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/enem/2012-11-05/tema-considerado-
xxii

dificil-pode-baixar-notas-da-redacao-no-enem.html. Acesso em 10/11/2012.


Disponível em http://noticias.r7.com/minas-gerais/noticias/tema-de-redacao-surpreende-
xxiii

candidatos-do-enem-e-divide-opinioes-em-bh-20121104.html. Acesso em 10/11/2012.


Disponível em http://noticias.terra.com.br/educacao/enem/noticias/0,,OI6276604-EI8398,00-
xxiv

Enem+primeiros+a+sair+em+Curitiba+divergem+sobre+dificuldade+do+teste.html. Acesso em
10/11/2012.
Disponível em http://noticias.terra.com.br/educacao/enem/noticias/0,,OI6276665-EI8398,00-Enem
xxv

+primeira+a+sair+candidata+desiste+da+redacao+no+Rio.html. Acesso em 10/11/2012.


Disponível em http://noticias.terra.com.br/educacao/enem/noticias/0,,OI6276595-EI8398,00-Ene
xxvi

m+redacao+dificil+faz+candidatos+inventarem+no+RS.html. Acesso em 10/11/2012.


Disponível em http://noticias.terra.com.br/educacao/enem/noticias/0,,OI6276701-EI8398,00-Ene
xxvii

m+tema+da+redacao+assusta+e+complica+estudantes+de+BH.html. Acesso em 10/11/2012.


Disponível em http://educacao.uol.com.br/noticias/2012/11/04/candidatos-do-enem-2012-em-
xxviii

belo-horizonte-dizem-que-vila-do-dia-e-a-redacao.htm. Acesso em 10/11/2012.


Disponível em http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/enem-2012-ultima-dia-de-prova-tem-a-
xxix

temida-redacao. Acesso em 10/11/2012.

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Anexo I

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Anexo II

Anexo III

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Referências Bibliográficas:

ABREU, Jayme. A escola média do século XX: um novo fato em busca de caminhos. Jornal O
Estado de São Paulo, São Paulo, 04/02/1962. 6º Caderno, p 115. Disponível em http://acervo.estadao.
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Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 99-111.
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Ensaio Poético

O artesão
Renato Moro Giannico
Estudante de graduação no curso de
Sociologia e Política, da Escola de Sociologia e
Política de São Paulo.

O artesão é a dinâmica entre a natureza e e esculpindo as nossas tradições que trazem, em


o homem que cria o artesanato: arte na matéria, suas raízes negras, brancas, mulatas, caboclas, as
criação no espírito, como uma mãe gera um filho. riquíssimas e múltiplas artes e trabalhos manuais
É filho da fibra e do laço, do suor e do que, sem sombra de dúvida, criam e transformam
sereno, da taboa e do xisto, da terra e do ar. a nossa cultura na mais bela colcha de retalhos.
É pai do traço e do gesto, do espírito e da “Somos herdeiros de todos os talentos,
matéria. de uma mistura que ainda esta se fazendo” (Darcy
Faz das mãos rachadas e humildes o Ribeiro).
trabalho que preserva e cria culturas. Dedico este suspiro aos artesãos brasileiros
No olhar atento, no suor da testa, nos pés que somos todos nós!
descalços no chão, o artesão se faz, a voz é rouca,
mas o trabalho é valho.
“Se arranco um “gaio”, com uma andorinha
faço verão, se “móio” o barro, crio até Eva e Adão,
se me dão um laço, desfaço e desvendo todo um
sertão, e se a vida me for negada pelo homem,
mostro que na natureza, a vida não se nega não, e
com o que cair na minha mão eu faço, porque eu
sou o artesão”.
O trabalho artesanal preserva e reescreve
a natureza do homem enquanto criador de seu
meio. E ter esta consciência tão bela e sagrada,
que é resgatada nos lentos e “mágicos” trabalhos
manuais e, concebida na perfeita harmonia entre
a inspiração com os sutis movimentos das mãos,
que se dá o dito trabalho artesanal. Sendo as mãos,
nada mais do que a extensão do coração.
E são estes homens e mulheres, bravos
guerreiros brasileiros que sobrevivem neste mundão
criando, recriando, pintando, tecendo, moldando

Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 112.
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