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Sociabilidades Urbanas

Revista de Antropologia e Sociologia

Publicação do Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções


Universidade Federal da Paraíba (Campus I – João Pessoa)

Ano I
Número 2
Julho de 2017

ISSN 2526-4702
2

Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia


GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Universidade Federal da Paraíba

Publicação Quadrimestral do GREM/UFPB


n° 2 – Julho de 2017 – Ano I
ISSN 2526-4702

Conselho Editorial
Cláudia Turra Magni (UFPEL); Cornelia Eckert (UFRGS); Gabriel D. Noel (Argentina -
UNSAM); João Martinho Braga de Mendonça (UFPB); Jussara Freire (UFF); Lisabete
Coradini (UFRN); Luís Roberto Cardoso de Oliveira (UNB); Luiz Antonio Machado da
Silva (UERJ); Luiz Gustavo P. S. Correia (UFS); Maria Cláudia Pereira Coelho (UERJ);
Maria Cristina Rocha Barreto (UERN); Pedro Lisdero (Argentina - CONICET); Roberta
Bivar Carneiro Campos (UFPE); Rogério de Souza Medeiros (UFPB); Simone Magalhães
Brito (UFPB).

EDITORES
Raoni Borges Barbosa (UFPB/GREM)
Mauro Guilherme Pinheiro Koury (UFPB/GREM)

Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia v1 n2 julho de 2017 ISSN 2526-4702


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Expediente
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/
Sociabilidades Urbanas ISSN 2526-4702
Editores: Raoni Borges Barbosa e Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia é uma revista acadêmica


do GREM - Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções. Tem por
objetivo debater as questões de formação do self e de culturas emotivas nas sociabilidades
urbanas contemporâneas na perspectiva teórico-metodológica das Ciências Sociais,
sobretudo a antropologia e a sociologia.

The Urban Sociabilities - Journal of Anthropology and Sociology is an academic journal of


GREM - Research Group on Anthropology and Sociology of Emotions. It aims to discuss
the issues of self and emotive cultures formation in contemporary urban sociabilities in the
theoretical-methodological perspective of Social Sciences, especifically with de
anthropology and sociology.

Secretaria Sociabilidades Urbanas.


E-Mail: sociabilidadesurbanas@cchla.ufpb.br

O GREM é um Grupo de Pesquisa vinculado ao Departamento de Ciências Sociais da


Universidade Federal da Paraíba.

GREM is a Research Group at Department of Social Science, Federal University of


Paraíba, Brazil.

Endereço / Address:
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia
[Aos cuidados de Raoni Borges Barbosa]
GREM - Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções
Departamento de Ciências Sociais/CCHLA/UFPB CCHLA / UFPB – Bloco V – Campus I
– Cidade Universitária CEP 58 051-970 · João Pessoa · PB · Brasil
Ou, preferencialmente, através do e-mail: sociabilidadesurbanas@cchla.ufpb.br
Or, preferentially, by e-mail: sociabilidadesurbanas@cchla.ufpb.br

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ISSN 2526-4702

Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia / GREM


– Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções /
Departamento de Ciências Sociais /CCHLA/ Universidade Federal da
Paraíba – v. 1, n. 2, Julho de 2017.

João Pessoa – GREM, 2017. (v.1, n.1 – Março/Junho de 2017) - Revista


Quadrimestral ISSN 2526-4702

Antropologia – 2. Sociologia – 3. Antropologia Urbana – 4. Sociologia


Urbana – Periódicos – I. GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia e
Sociologia das Emoções. Universidade Federal da Paraíba

BC-UFPB
CDU 301
CDU 572

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Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia é uma revista


acadêmica do GREM - Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções.
Tem por objetivo debater as questões de formação do self e de culturas emotivas nas
sociabilidades urbanas contemporâneas na perspectiva teórico-metodológica das Ciências
Sociais, sobretudo a antropologia e a sociologia.
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia se propõe o
esforço de construção de uma rede acadêmica de discussão e reflexão sobre o urbano
contemporâneo, em especial o brasileiro, de uma perspectiva interacionista e figuracional
da antropologia e sociologia, de modo a enfatizar o exercício de análise da cidade enquanto
comunidade paradoxal e espaço societal de intenso conflito entre cultura objetiva e
subjetiva na qual emerge a individualidade moderna.
O fazer antropológico e sociológico se direciona, nesta proposta teórico-
metodológica, para o esforço de observação e análise da formação da cultura emotiva, dos
códigos de moralidade e do self de atores sociais situados como agências criativas e
produtoras de um espaço interacional e intersubjetivo urbano específico.
Problematiza, portanto, a dimensão processual da construção e desconstrução das
cadeias de interdependência que se manifestam socialmente enquanto objetificação de
conteúdos subjetivos trocados pelos atores sociais.
As consequências desta exigência teórico-metodológica podem ser percebidas na
preocupação, quando do fazer etnográfico e da observação micro-orientada das formas e
conteúdos sociais, do registro das tensões e dos vínculos de solidariedade e conflito entre
os interactantes no formato de encontros, pertença, confiança, traição, medos, angústias,
vergonhas, ressentimentos, humilhações, sofrimento, e ainda todo um conjunto extenso de
emoções e gramáticas morais que perfazem as práticas e o imaginário cotidiano e ordinário
dos atores sociais na cidade.
Estas emoções revelam, entre outros, as disputas morais e os códigos de moralidade
em jogo nos sistemas de posição que organizam as fronteiras e hierarquias simbólicas e
materiais entre as unidades interacionais sob análise.
A agenda teórico-metodológica e os interesses temáticos abrigados na proposta de
publicação da Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia vem sendo
amadurecidos em uma rotina de pesquisa de quase quatro três décadas desenvolvida no
GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções, cujas linhas de
pesquisa, atualmente, são as seguintes: Emoções e Consumo; Emoções e Sociabilidades
Urbanas; Emoções, Moralidade e Gênero; Estudos Teóricos em Antropologia e Sociologia
das Emoções.
Nas palavras de Koury (A Antropologia e a sociologia das emoções no Brasil:
breve relato histórico do processo de consolidação de uma área temática. Trabalho
apresentado no II Simpósio Interdisicplinar de Ciências Sociais e Humanas da UERN,
2014.), fundador e coordenador do GREM:
―O GREM tem por objetivo a compreensão e análise da emergência da
individualidade e do individualismo no Brasil urbano contemporâneo. Enfatiza a questão
da formação das emoções, enquanto cultura emotiva, e desenvolve estudos e pesquisas
sobre o processo de formação e experiência sobre emoções específicas em sociabilidades
dadas. Assim, o processo de luto e da morte e do morrer; dos medos; das formas de
sociabilidades e das etiquetas sociais que envolvem as relações de amizade; dos processos
de ressentimento e humilhação; e das formas de estabelecimentos de laços de confiança e
desconfiança entre as camadas médias e periféricas no urbano brasileiro, faz parte do
núcleo de interesse do GREM. As pesquisas desenvolvidas e em desenvolvimento no
GREM se debruçam sobre as imagens e suas representações na conformação do homem

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comum urbano brasileiro. Debruça-se, também, sobre as redundâncias, as ambivalências e


as ambiguidades do ato executado ou expresso, sobre os silêncios, sobre os discursos e
narrativas fragmentados, sobre os gestos e tique que, invariavelmente, acompanham um
diálogo ou uma informação e, às vezes, ampliam, modificam ou contextuam para além das
frases ditas e dos sentidos do quer expressar. Tratam, enfim, da cultura emotiva e as redes
morais que se formam nela e através dela‖.
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia parte também da
experiência acumulada nos quinze anos de publicação sobre emoções da RBSE – Revista
Brasileira de Sociologia da Emoção, fundada e editada por Mauro Koury e sediada no
GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia das Emoções.
Neste ínterim, Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologias se
situa em uma tradição acadêmica de pesquisas e reflexões em antropologia e sociologia
sobre o indivíduo, o social e a cultura da perspectiva das emoções, de modo a enfatizar esta
proposta no campo das sociabilidades urbanas.

EDITORES
Raoni Borges Barbosa (UFPB/GREM)
Mauro Guilherme Pinheiro Koury (UFPB/GREM)

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NORMAS PARA OS AUTORES

1. A Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, ISSN 2526-4702, é


uma publicação quadrimestral do GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia e
Sociologia das Emoções, com lançamentos nos meses de março, julho e novembro de cada
ano.
2. A Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia tem por editores:
Raoni Borges Barbosa e Mauro Guilherme Pinheiro Koury.
3. A Sociabilidades Urbanas pode ser lida inteiramente, de forma gratuita, no site
http://www.cchla.ufpb.br/grem/sociabilidadesurbanas/.
4. Todos os artigos apresentados aos editores da Sociabilidades Urbanas serão submetidos
à pareceristas anônimos conceituados para que emitam sua avaliação.
5. A revista aceitará somente trabalhos inéditos sob a forma de artigos, entrevistas,
traduções, resenhas e comentários de livros. Exceto nos casos de dossiês e autores
convidados ou artigos que o Coordenador do Dossiê ou o Conselho Editorial achar
importante publicar ou republicar.
6. Os textos em língua estrangeira, quando aceitos pelo Conselho Editorial, serão
publicados no original, se em língua espanhola, francesa, italiana e inglesa, podendo por
ventura vir a ser traduzido.
7. Todo artigo enviado à revista para publicação deverá ser acompanhado de uma lista de
até cinco palavras-chave e Keywords que identifiquem os principais assuntos tratados e de
um resumo informativo em português, com versão para o inglês (abstract), com 300
palavras máximas, onde fiquem claros os propósitos, os métodos empregados e as
principais conclusões do trabalho.
8. Deverão ser igualmente encaminhados aos editores dados sobre o autor (filiação
institucional, áreas de interesse, publicações, entre outros aspectos).
9. Os editores reservam-se o direito de introduzir alterações na redação dos originais,
visando a manter a homogeneidade e a qualidade da revista, respeitando, porém, o estilo e
as opiniões dos autores. Os artigos expressarão assim, única e exclusivamente, as opiniões
e conclusões de seus autores.
10. Os artigos publicados na revista serão disponibilizados apenas on-line.

Toda correspondência referente à publicação de artigos deverá ser enviada para o e-mail da
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia:
sociabilidadesurbanas@cchla.ufpb.br.

Regras para apresentação de originais


1. Os originais que não estiverem na formatação exigida pela Sociabilidades Urbanas não
serão considerados para avaliação e imediatamente descartados.
2. Os artigos submetidos aos editores para publicação na Sociabilidades Urbanas deverão
ser digitados em Word, fonte Times New Roman 12, espaço duplo, formato de página A-4.
Nesse padrão, o limite dos artigos será de até 30 páginas e 8 páginas para resenhas,
incluindo as notas e referências bibliográficas.

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3. Citações com mais de três linhas, no interior do texto, devem se encontrar em separado,
sem aspas, com recuo de 1 cm à direita, fonte Times New Roman 11, normal, espaçamento
entre linhas duplo; e espaçamento de 6x6.
4. O arquivo deverá ser enviado por correio eletrônico para o e-mail
sociabilidadesurbanas@cchla.ufpb.br.

Notas e remissões bibliográficas


1. As notas deverão ser sucintas e colocadas no pé-de-página.
2. As remissões bibliográficas não deverão ser feitas em notas e devem figurar no corpo
principal do texto. Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, ISSN
1234-5678, v. 1, n. 1, abril de 2017 ISSN 2526-4702.
3. Da remissão deverá constar o nome do autor, seguido da data de publicação da obra e do
número da página, separados por vírgulas, de acordo com o exemplo 1: Exemplo 1:
Segundo Cassirer (1979, p.46), a síntese e a produção pelo saber...
4. Usa-se o sobrenome do autor, quando no interior do parêntese, em letras maiúsculas,
conforme o exemplo 2: Exemplo 2: O eu que enuncia "eu" (BENVENISTE, 1972, p.32)... .

Referências
1. As referências bibliográficas deverão constituir uma lista única no final do artigo, em
ordem alfabética.
2. Deverão obedecer aos seguintes modelos:

a) Tratando-se de livro:
 sobrenome do autor (em letra maiúscula), seguido do nome;
 título da obra (em itálico):
 subtítulo, (também em itálico);
 nº da edição (apenas a partir da 2ª edição);
 local de publicação, seguido de dois pontos (:);
 nome da editora;
 data de publicação.

Exemplo: BACHELARD, Gaston. La terre et les rêveries de la volonté.


Paris: Librairie José Corti, 1984. 1.

b) Tratando-se de artigo em revistas:


 sobrenome do autor (em letra maiúscula), seguido do nome;
 título do artigo sem aspas;
 nome do periódico por extenso (em itálico);
 volume e nº do periódico (entre vírgulas);
 páginas do artigo: (p. 15-21);
 data da publicação.

Exemplo: CAMARGO, Aspásia. Os usos da história oral e da história de


vida: trabalhando com elites políticas. Revista Dados, v. 27, n. 1, p.1-15,
1984. 2.

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c) Tratando-se de artigo em coletâneas:


 sobrenome do autor (em letra maiúscula), seguido do nome;
 título do artigo;
 In:
 nome do autor ou autores da coletânea seguido por (Orgs);
 título e subtítulo da coletânea em itálico;
 nº da edição (a partir da 2ª edição);
 local da publicação seguido de dois pontos (:);
 nome da editora;
 páginas do artigo;
 ano da publicação.

Exemplo: DIAS, Juliana Braz. Enviando dinheiro, construindo afetos. In:


Wilson Trajano Filho (Org.). Lugares, pessoas e grupos: as lógicas do
pertencimento em perspectiva internacional. 2ª edição. Brasília: ABA
Publicações, p. 47-73, 2012.

d) Tratando-se de artigos em revistas online:


 sobrenome do autor (em letra maiúscula), seguido do nome;
 título do artigo sem aspas;
 nome do periódico por extenso (em itálico);
 RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 15, n. 44, agosto de
2016 ISSN 1676-8965 volume e nº do periódico (entre vírgulas);
 páginas do artigo, se houver: ( p. 15-21);
 data da publicação
 Endereço do site
 Quando se deu a consulta.

Exemplo: FERRAZ, Amélia. Viver e morrer. Revista online de


comunicação, v. 10, n. 20, p. 5-10.
www.revistaonlinedecomunicação.com.br (Consulta em: 20.06.2015).

e) Tratando-se de teses, dissertações, tccs e relatórios:


 sobrenome do autor (em letra maiúscula), seguido do nome;
 título da obra (em itálico)
 subtítulo, (também em itálico);
 Tese; Dissertação, etc.;
 local de publicação, seguido de dois pontos (:);
 nome do Programa e Universidade;
 Ano

Exemplo: BARBOSA, Raoni Borges. Medos Corriqueiros e vergonha


cotidiana: uma análise compreensiva do bairro do Varjão/Rangel.
Dissertação. João Pessoa: PPGA/UFPB, 2015

Nota geral para as referências


1. Artigo, livro, coletânea, ensaio com mais de um autor: com até dois autores:

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 Sobrenome do autor principal (em letras maiúsculas), seguido do nome e


ponto e vírgula(;)
 A seguir, o nome e sobrenome do segundo autor.
2. Artigo, livro, coletânea, ensaio com mais de dois autores:
 Sobrenome do autor principal (em letras maiúsculas), seguido do nome e,
após, et al.

Quadros e Mapas
1. Quadros, mapas, tabelas, etc. deverão ser enviados em arquivos separados, com
indicações claras, ao longo no texto, dos locais onde devem ser inseridos.
2. As fotografias deverão vir também em arquivos separados e no formato jpg ou
jpeg com resolução de, pelo menos, 100 dpi.

Norms to manuscripts’ presentation

The Urban Sociabilities – Journal of Anthropology and Sociology is a review


published every Mach, July and November with original contributions (articles and book
reviews) within any field in the Sociology or Anthropology of Emotion. All articles and
reviews will be submitted to referees. Every issue of Urban Sociabilities will contain eight
main articles and one to three book reviews. All manuscripts submitted for editorial
consideration should be sent to GREM by e-mail: raoniborgesb@gmail.com.
Manuscripts and book reviews typed one and half space, should be submitted to the
Editors by e-mail, with notes, references, tables and illustrations on separate files. The
author's full address and the institutional affiliation should be supplied as a footnote to the
title page. Manuscripts should be submitted in Portuguese, English, French, Spanish and
Italian, the editors can translate articles to Portuguese (Sociabilidades Urbanas´s main
language) in the interest of the journal. Articles should not exceed 30 pages double-spaced,
including notes and references. Reviews should not exceed 8 pages double-spaced and
notes and references included.

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SUMÁRIO

ARTIGOS ....................................................................................................................................... 13
Sob os olhos da vizinhança: uma etnografia das formas de controle e administração das tensões em
um bairro popular ............................................................................................................................ 15
Mauro Guilherme Pinheiro Koury; Raoni Borges Barbosa
A história Natural do Jornal (nos EUA) .......................................................................................... 33
Robert Ezra Park; Tradução de Mauro Guilherme Pinheiro Koury e Raoni Borges Barbosa
Patrimônio cultural, turismo e desenvolvimento local: Estudo de caso da Cidade Velha, ilha de
Santiago, Cabo Verde...................................................................................................................... 45
José Rogério Lopes; Ângelo Moreira Pereira
O crescimento da cidade: Uma introdução a um projeto de pesquisa ............................................ 61
Ernest W Burgess; Tradução de Raoni Borges Barbosa
Disposições morais, regras de interação e categorias de acusações: Uma etnografia urbana das
condutas públicas de homens com práticas homoeróticas .............................................................. 71
Tarsila Chiara Albino da Silva Santana
Emoções e sociabilidades urbanas. Uma análise compreensiva e histórica do GREM Grupo de
Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções sobre a cidade de João Pessoa, PB ............ 85
Williane Juvêncio Pontes
Identidades, conflicto y basura. Hacia un mapeo de los ritmos de la acción colectiva en la ciudad
de Córdoba.................................................................................................................................... 107
Pedro Lisdero; Ignacio Pellón
“Yo sí, pero mis hijos no”: un análisis entre la soportabilidad y el amor filial en mujeres
recuperadoras de residuos (Argentina) ......................................................................................... 125
Gabriela Vergara
A cidade na perspectiva durkhemiana: Notas sobre a modernidade e morfologia social ............. 137
Jesus Marmanillo
Os limites da integração urbana: a força física como um recurso legítimo de manutenção da
ordem em um bairro periférico da cidade de Campos dos Goytacazes – RJ ................................. 151
Renan Lubanco Assis
“Violência urbana” e experiências públicas de familiares de vítimas “no interior” do estado do
Rio de Janeiro ............................................................................................................................... 165
Jussara Freire;Diogo da Cruz Ferreira;Viviany Férras da Motta dos Santos Soares;Tayná Santos
RESENHAS ................................................................................................................................... 187
Do Social ao Público: Uma etnografia do Espaço Público e dos Problemas Públicos a partir de
uma Sociologia Pragmatista ......................................................................................................... 189
Raoni Borges Barbosa
Etnografias urbanas sobre pertença e medos na cidade: Uma resenha ........................................ 197
Williane Juvêncio Ponte
SOBRE OS AUTORES .................................................................................................................. 201

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ARTIGOS

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14

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KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro & BARBOSA, Raoni Borges. Sob os olhos da vizinhança: uma
etnografia das formas de controle e administração das tensões em um bairro popular. Sociabilidades
Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v.1, n.2, p. 15-32, julho de 2017. ISSN 2526-4702.
Artigo
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

Sob os olhos da vizinhança: uma etnografia das formas de controle e


administração das tensões em um bairro popular1
Under the eyes of the neighborhood: an ethnography of the forms of control and management of
tensions in a popular neighborhood

Mauro Guilherme Pinheiro Koury


Raoni Borges Barbosa

Resumo: Discutem-se aqui formas de controle e administração de tensões na convivência


cotidiana entre moradores de um bairro popular de João Pessoa-PB. Tem-se por referência uma
invasão ocorrida nos anos 1990 em uma de suas ruas. Ali moradores passaram a conviver com
barracos que logo se transformavam em alvenaria. Isto gerou dissenso entre estabelecidos e
novos moradores, havendo posicionamentos no sentido da integração e expulsão pela força
destes novos. Havia consenso quanto à invasão ter repercutido negativamente na estima do
Varjão/Rangel e na imagem que a cidade tinha do bairro, percebido como ―um reduto de
bandidos‖. A reflexão se apóia em entrevistas e histórias de vida principalmente dos moradores
da rua invadida. A maioria habitava o bairro há mais de quarenta anos. Todos se conheciam e
interagiam intensamente entre si, havendo amizade e solidariedade coletiva expressa em
mutirões para a construção de casas e de benfeitorias na rua e no bairro. A partir de 1970 o
bairro cresceu e enclaves improvisados surgiram. Neste contexto de situações tensas e de
desorganização normativa se busca refletir sobre formas de controle social e de administração
de tensões cotidianas. Palavras-chave: controle e administração das tensões, bairro popular,
Varjão/Rangel, cidade de João Pessoa

Abstract: We discuss here ways of controlling and managing tensions in daily living among
residents of a popular neighborhood of João Pessoa-PB. One has by reference an invasion
occurred in years 1990 in one of its streets. There, residents lived with shacks that soon became
masonry. This has led to dissent between established and new residents, with positions towards
the integration and expulsion by force of these new ones. There was a consensus that the
invasion had a negative impact on Varjão / Rangel's esteem and on the city's image of the
neighborhood, perceived as "a bandit place". The analysis is based on interviews and life
stories mainly of the residents of the invaded street. Most of them lived in the neighborhood for
over forty years. Everyone knew each other and interacted intensely with each other, and there
was friendship and collective solidarity expressed in joint efforts to build homes and
improvements in the street and in the neighborhood. From 1970 the neighborhood grew and
improvised enclaves appeared. In this context of tense situations and normative
disorganization, we seek to reflect on forms of social control and daily stress management.
Keywords: control and management of tensions, popular neighborhood, Varjão/Rangel, city of
João Pessoa

Este artigo discute a convivência entre moradores de um bairro popular2 da cidade


de João Pessoa, Paraíba. A base de reflexão se apoia em uma pesquisa de campo

1
Primeira versão apresentada durante a 39ª Reunião Anual da ANPOCS, Caxambu, 26-30 de outubro de
2015.
2
A noção de bairro popular remete tanto a uma categoria sociológica quanto a uma categoria nativa.
Enquanto categoria da sociologia e da antropologia urbana, bairro popular implica em uma territorialidade

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desenvolvida na capital paraibana para um projeto maior sobre medos corriqueiros e a


construção imaginária das cidades no Brasil (Koury 2000), a partir de entrevistas e
histórias de vida dos moradores do bairro do Varjão, também nominado Rangel pelos
moradores, e conhecido pelo alto índice de violência e pela pobreza dos seus habitantes 3.
O que interessa compreender são as formas intensas de interação entre os
moradores e as possibilidades de controle social e de administração das tensões resultante
deste processo e o seu uso no cotidiano do bairro: seus conflitos, formas de gestão e
gerenciamento, mobilização política, choque entre forças locais e os regimes de
subjetividade que daí emerge. A análise se apóia nas entrevistas com moradores de um
conjunto de ruas, e na visão dessas pessoas sobre os outros moradores da rua e, por
extensão, do bairro e da cidade como um todo.
Grande parte dos moradores entrevistados começou a habitar o bairro desde os anos
de 1920, quando ainda o bairro do Varjão/Rangel era uma grande várzea. Outros foram
chegando em levas pelos anos subsequentes e por lá se estabeleceram. Todos se conhecem,
participam e interagem intensamente entre si.
Poucos são atualmente os moradores recém-chegados e, mesmo estes, logo entram
no cotidiano de interação com os demais habitantes. Em diversos relatos de moradores
mais antigos, as casas foram construídas em regime de mutirão e muitas benfeitorias na rua
e no bairro foram realizadas com a ajuda de todos. O que só fortaleceu o clima de amizade
e solidariedade entre as famílias locais.
Nos anos de 1970 em diante, porém, o bairro cresceu muito e enclaves surgiram
com ocupações desordenadas por todo o lugar, principalmente, pela redefinição das antigas
comunidades em bairro popular ou periferia, ao lado de delimitações conformadoras de
outros bairros, destinados às classes médias da cidade, como os bairros de Cristo Redentor
e Água Fria, que fazem fronteira com o Varjão/Rangel. Estes bairros mais recentes
problematizam a pobreza, a violência e os baixos padrões de moralidade do Varjão/Rangel
e se atritam com as imagens de bairro problema que a cidade faz dele e que contamina os
moradores dos outros bairros fronteiriços, criando, segundo depoimentos,
constrangimentos aos moradores e desvalorizando seus investimentos em moradias e
comércio.
Os dois pólos de pressão colocam os moradores do bairro do Varjão/Rangel em
frequentes tensões em busca de salvaguardar a face (Goffman 2012) de si e do bairro como
um lugar ordeiro e de gente de bem. Esforço que desmorona com as imagens produzidas
pela mídia sobre a violência e a pobreza local, bem como pelas invasões de levas de novos
moradores vindos do interior do estado da Paraíba ou de outros estados vizinhos, criando
no imaginário do morador fronteiras simbólicas móveis entre os estabelecidos e os novos

urbana regulada pela administração estatal, a unidade mínima de urbanização dentro de uma cidade ou
município, mas também em um lugar onde se estabelecem redes de interdependência e códigos de pertença e
de moralidades historicamente situados. O termo bairro popular é utilizado para designar os bairros de
moradia de classe média baixa ou pobre de uma cidade, no caso, a cidade de João Pessoa. O bairro popular é
geralmente um local de infraestrutura precária e de renda variável entre menos de hum a dois salários
mínimos. Também são conhecidos pelo termo periferia, independente de sua localização como área
geográfica no interior da cidade. Enquanto categoria nativa, bairro popular expressa um mapa mental, moral
e emocional, uma cultura emotiva, que os moradores do local constroem cumulativamente nos processos
cotidianos de interação entre familiares, amigos, vizinhos e compadres. A noção êmica de bairro popular,
assim, aponta para uma fachada coletiva que é oportuna e convenientemente acionada enquanto discurso de
desculpas de si e acusações do outro em relação aos estigmas e classificações morais que a cidade associa,
enquanto instância moral, ao bairro popular. Nesse sentido, cada morador de um bairro popular carrega
consigo as marcas de seu local de pertença, percebidas na cidade, ainda que imaginariamente, como um
habitus e como uma imagem deteriorada do self (Koury & Barbosa 2016).
3
O bairro em 2010 contava com 4701 domicílios e uma população estimada de 16.900 habitantes, em sua
grande maioria, quase 80%, com renda de até um salário mínimo (IBGE 2010).

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moradores (Elias 2000). Invasões que ocupam áreas desabitadas de terrenos públicos 4 ou
invadem a reserva florestal, conhecida como Mata do Buraquinho, que compõe uma das
fronteiras do bairro.
Nas ruas objeto desta etnografia, houve uma ocupação, ―súbita‖, no dizer dos
moradores já estabelecidos, no final dos anos de 1990. A ocupação se deu em uma área
pública ociosa de propriedade da prefeitura da cidade, com demanda para a construção de
um parque, ou mesmo de escola, posto de saúde ou outra benfeitoria para o bairro. A partir
de então os moradores passaram a conviver com um grande número barracos armados por
sem tetos, muitos deles já iniciando construções de alvenaria.
Esta ocupação, ou invasão, - como os mais antigos costumam denominar, -
modificou a rotina dos moradores das ruas trabalhadas, e as discussões sobre esses novos
habitantes provocaram dissenso entre eles5. É bom lembrar que muitos destes moradores
estão unidos por códigos de aliança variados, sendo, portanto, amigos, compadres ou
parentes de outros mais antigos da rua ou do bairro. Os quais chegaram através de
indicações de redes homofílicas que norteiam desde o início a ocupação do bairro.
Por essas razões, têm os seus projetos individuais e coletivos fortemente
influenciados por mecanismos de dádiva, gratidão e reputação que repercutem de imediato
nas cadeias de interdependência (Elias 1994) que cruzam o bairro. Muitos acreditavam,
assim, que os novos moradores advindos desta ocupação dos anos de 1990 e aqui tratados,
possuem o direito de permanecer no local e que deveria haver um esforço dos mais antigos
para os integrarem ao bairro e a rua.
A maior parte dos moradores, porém, achavam que a ocupação ou a invasão, como
preferem afirmar, provocou um grande contratempo na vida cotidiana local. A convivência
forçada com esses novos habitantes só criava, segundo suas narrativas, situações de
desordem e provocava a reprodução de uma imagem de bairro problema junto à cidade e
os bairros vizinhos.
Alegavam que, ―se a prefeitura não toma uma atitude para resolver esse problema
de invasão em um terreno da união, então a rua e o bairro deveriam tomar para si a tarefa
de removê-los da comunidade‖6. Apesar da divergência entre os moradores mais antigos
sobre a permanência ou não dos novos moradores que ocuparam o terreno baldio, todos os
moradores das ruas próximas e adjacentes à invasão, contudo, são unânimes na afirmação
4
A ocupação aqui trabalhada se instalou em uma área próxima a uma encosta de morro, que forma uma
imensa fenda e faz parte da zona inundável do leito do Rio Jaguaribe. Área considerada como de fragilidade
ambiental. Atualmente, a área se encontra densamente povoada, inclusive em suas encostas.
5
Ocupação e Invasão são dois termos trabalhados neste artigo, nos sentidos êmicos empregados pelos
moradores do bairro Varjão/Rangel. De acordo com a posição de justificação ou de acusação no debate entre
os moradores ao retratarem a situação da presença de barracas surgidas da ―noite para o dia‖, objeto de
reflexão deste paper, o termo ocupação refere-se à posse de uma área ou terreno baldio por famílias sem
moradia, ou conhecidas como sem-tetos, já o termo invasão tem o sentido de imputar a ilegalidade do ato de
ocupação, de invadir um espaço público destinado a outros fins comunitários, no caso, a construção de uma
escola ou de um parque, no bairro. O que, segundo a acusação, interfere na dinâmica local e prejudica os que
lá residem de várias formas, desde em relação à estética e embelezamento local, ou a utilização do espaço por
equipamentos de melhoria do lugar, até, por fim, na expressão do sentido econômico de desvalorização dos
imóveis, investimentos e do próprio lugar ou bairro em que habitam. Por outro lado, em alguns momentos, as
narrativas e falas dos moradores utilizam os dois termos de forma indiferenciada: ocupação e invasão às
vezes aparecem como sinônimos de um mesmo ato que deu origem a um conflito e a um grande
desentendimento entre os habitantes locais.
6
Entrevista com uma das lideranças locais que se mobilizou a favor da permanência dos novos ocupantes
locais. Os termos comunidade e comunitários, neste trabalho, são utilizados em suas construções êmicas para
denominar uma forma de associação estreita e íntima de um grupo interligado e integrado de pessoas que se
encontra ligado uns aos outros por laços intensamente pessoalizados de parentesco e amizade e a códigos
morais e formas de solidariedade comuns, e os seus membros.

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de que o bairro sofreu uma baixa estima e a imagem dos demais bairros da cidade em
relação ao Varjão/Rangel foi afetada por esta ocupação, e pelas inúmeras invasões sofridas
nos últimos quarenta anos pelo bairro.
Não só o crescimento acelerado e a forma improvisada com que o bairro do Varjão
foi sendo constituído contribuíram para esta baixa na estima e na depreciação do bairro
frente à cidade como um todo, mas, principalmente, a imagem da violência e da desordem
deles advindos. As estatísticas informam o bairro com um dos mais perigosos de João
Pessoa e ―um reduto de bandidos‖ que ameaça moralmente e fisicamente a cidade, como
informam cotidianamente os mapas da violência, produzidos pelas secretarias estaduais e
pela polícia e divulgadas pela imprensa local.
Esta imagem da violência também faz parte do discurso de muitos moradores mais
antigos e já estabelecidos no bairro e, aqui, com ênfase nas ruas aqui trabalhadas, que
afirmam lutar ―por uma imagem de um bairro ordeiro e de gente de bem‖: luta esta que
parte inclusive por uma mudança do nome oficial Varjão, para um outro, Rangel. Este,
sim, representante de um novo bairro, ordeiro, disciplinado, não violento, que diluiria e
substituiria, por fim, a imagem de degradação e violência instituídas na cidade de João
Pessoa pelo Varjão (Koury 2014; Barbosa 2015).
É sobre essa tensão entre iguais, em que se classificam mutuamente como
estabelecidos e invasores, na configuração de um ordenamento moral e sobre a
modificação na reputação do bairro perante a cidade e os bairros vizinhos, a influência
desta reputação na visão de si e do outro entre os moradores do bairro, as disputas morais
resultantes e o sistema de desculpas e acusações daí propiciado, que este artigo versará.
Tem como objeto central as micropolíticas e as conformações cotidianas do controle social
nas situações armadas e ocasionadas pela tensão resultante da chegada de novos e
inoportunos moradores que ajudam a processar uma imagem de degradação ao já mal-
afamado Varjão. Situações estas caracterizadas através da imputação do contágio para os
novos bairros, de classes médias, e pela presença de bolsões de miséria oriundas das
ocupações de sem tetos que armam suas barracas e teimam em não sair do local.
Dissenso e fragmentação dos códigos de aliança
Este artigo busca refletir os dissensos, as formas de arregimentação de forças pa-ra
o disciplinamento moral do bairro, e a fragmentação de laços de compadrio e parentesco
que unem e ao mesmo tempo pulverizam as relações. O que ocasiona tensões permanentes
de ódio e amor entre si, e a um processo de acusação e segmentação de um lugar de dois
nomes entre uma quase esquizofrênica repartição de um bairro que se pensa e se quer
civilizado, o Rangel, e um bairro que se diz e se acusa de marginal, o Varjão7.

7
A noção êmica civilizado aparece na fala ressentida dos moradores do bairro do Varjão/Rangel como
acusação ao outro próximo que reforça a imagem do bairro como fachada deteriorada (Goffman 2012; Koury
& Barbosa 2016), como local de pertença caracterizado pelo seu baixo padrão moral, sujeira e perigo. O
bairro do Rangel, que se quer civilizado, integrado moral e economicamente na cidade de João Pessoa,
aparece, nesse sentido, como categoria de acusação do outro, o bairro do Varjão, que é classificado
moralmente como marginal, como territorialidade, cultura emotiva e fachada coletiva de moradores
classificados como problemáticos. Varjão e Rangel, nesse sentido, aparecem para o morador não como
configurações e argumentos morais sobrepostos, mas autoexcludentes, conformando, assim, um cenário tenso
e de acentuada desorganização normativa, em que o civilizado e o marginal estão em constante disputa no
cotidiano de todos os moradores. A cidade de João Pessoa parece desconhecer esta diferenciação e iguala
moralmente esses lugares simbólicos, o que sugere uma dinâmica de ressentimento entre bairro, cidade e seus
moradores. Deste modo, a sobreposição ou mesmo a hibridização das identidades coletivas dos moradores do
bairro, ora Varjão ora Rangel, e ainda Varjão/Rangel, parece apontar para uma suspensão da vida cotidiana
em um espaço e em tempo sociais caracterizados pela liminaridade das relações entre os moradores do bairro:
―estou aqui só de passagem‖; ―sonho em sair do bairro‖; ―não tenho amigos no bairro‖; ―não vivo em porta

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Desde os anos de 1970 o Varjão vai se configurando como bairro e vem sofrendo
pressões que o conduzem para uma redefinição espacial e moralizadora. Redefinições estas
que conduzem e transformam as comunidades locais, até então dispersas no interior da
grande várzea à margem sul do rio Jaguaribe, para novos reordenamentos internos e mais
condizentes com a reestruturação da cidade de João Pessoa com a sua expansão e criação
de novos bairros na zona sul da cidade.
Constrangidas pela criação de conjuntos habitacionais que logo a seguir vão se
configurando e se assentando no formato de bairros de classe média, como o do Cristo
Redentor, as comunidades até então dispersas e espalhadas pela grande várzea do rio
Jaguaribe, na sua margem sul, fronteiriças e com penetração na reserva de mata atlântica
ali situada, começam a se agregar em um novo formato, forçado, é bom frisar, de um
bairro. São montadas ruas, as comunidades passam por reordenamento urbanístico que
transpassam as suas fronteiras, aproximando-as e às vezes embaralhando os seus limites
físico e simbólico. O que amplia os conflitos entre grupos comunitários nem sempre
próximos e com grandes disputas nas formas organizativas, morais e de princípios e
códigos de honra (Goffman 2010).
A grande várzea ao sul do Rio Jaguaribe, é importante salientar aqui, foi ocupada
por levas populacionais vindas do interior do estado da Paraíba ou de estados vizinhos,
desde os anos de 1920, quando se dão as primeiras notícias de sua ocupação. Grupos de
trinta a cinquenta famílias, amigas ou com laços de parentesco vinham e invadiam a área,
faziam uma clareira na reserva de mata atlântica, construíam pequenas casas de taipa em
um traçado peculiar a cada comunidade, com uma pequena capela, locais de lazer, bares, e
construção de espaços para troca e venda de seus produtos, artesanatos de utensílios
domésticos, produtos de caça trazidos da mata, de pescaria nas águas do Jaguaribe, ou de,
posteriormente, produtos dos roçados e de criação de animais domésticos, como galinha,
porcos, entre outros, segundo depoimento de Vó Mera, uma moradora antiga e personagem
símbolo de identidade cultural do bairro, contido na monografia de Cunha (2006).
Cada comunidade tinha uma organização quase que autossuficiente, e dependia
muito pouco da cidade, que também as ignorava, a não ser nas diversas disputas de honra e
nas disputas territoriais entre as comunidades. Contendas nas quais a força policial se fazia
presente para a contenção dos envolvidos, e que tornava a área da margem sul do rio
Jaguaribe em um lugar malvisto pela cidade, que a enxergava como um ambiente habitado
por ―um bando de arruaceiros‖, segundo os ditames da imprensa local, quando noticiavam
ações policiais nos arredores da cidade de João Pessoa.
Embora em disputas constantes, as diversas comunidades da margem sul do
Jaguaribe, também mantinham diferentes trocas entre si, não só se matavam, mas também
trocavam mercadorias, em escambo ou moeda, como também casavam entre si, estreitando
laços entre elas. Muito embora tais casamentos acontecessem após longas disputas e
acusações morais e de reparação à honra comunitária às investidas amorosas dos jovens
que ousavam desconhecer as fronteiras morais e comportamentais que regiam cada
comunidade.
Vencidas as pândegas de honra, geralmente após conflitos com muita acusação e, às
vezes, mortes, alianças eram construídas gerando novas possibilidades organizativas e de
respeito entre as comunidades envolvidas. Deste modo, os elos internos a cada comunidade
eram expandidos em códigos de aliança variados, sendo, portanto, amigos, compadres e
parentes. Os elos e alianças tecidos em redes de interdependência nas comunidades agora
entrelaçadas não eram de todo harmônicos, mas prenhes de estranhamentos e acusações
advindas da administração de conflitos localizados, nos quais as origens dos comunitários

de ninguém‖; ―o Varjão é mais lá para baixo‖; ―Varjão era naquele tempo‖, afirmam os moradores em suas
narrativas.

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envolvidos eram usadas como ofensas morais por parte dos outros envolvidos, e vice-
versa.
Isso se apresentava, principalmente, no contínuo fluxo e através de constantes levas
de novos membros, em cada comunidade instalada, por meio de redes homofílicas, -
parentes, conhecidos, conhecidos de parentes e de outros conhecidos, - que largavam o seu
lugar de origem à procura de um novo lugar no qual pudessem constituir novos projetos e
garantias de sobrevivência pessoal e familiar. No geral, porém, um reordenamento moral e
territorial era satisfeito e regimes de paz pelas alianças montadas permitiam certo controle
social local pelos próprios comunitários e comunidades em aliança.
Nos anos de 1970, os processos de urbanização e reordenamento da cidade (Maia
2000; Lavieri & Lavieri 1999) desorganizam as comunidades presentes no Varjão: na
grande várzea do rio, bem como para além da várzea, destruindo pequenos sítios e vacarias
que abasteciam a cidade de verduras, legumes e leite, para a construção de grandes
conjuntos habitacionais, onde novos bairros foram se erguendo8. Os agrupamentos
removidos de comunidades destruídas pela intervenção expansionista da cidade se
deslocam para o norte e leste, onde buscam se assentar na faixa ainda não explorada da
várzea e junto às novas fronteiras da mata atlântica.
Aglomeram-se nos espaços desocupados deste estreito território gerando
desconforto e tensão com relação aos comunitários lá residentes, já em frágeis alianças
entre si. Nascem deste modo os atuais contornos do bairro do Varjão, agora constrangido
entre a reserva de mata atlântica, também conhecida como mata do buraquinho, ao leste,
com o bairro de Cristo Redentor a Oeste, com o Bairro de Água Fria ao sul, e ao norte, o
Rio Jaguaribe, que na sua margem norte abriga os bairros de Jaguaribe e Cruz das Armas
(Mapa 1).

Mapa 1 - Varjão/Rangel, suas fronteiras e área de ocupação em 1990 (Arquivo GREM)

8
Cristo Redentor, Geisel, na várzea do Rio Jaguaribe, Bancários, Mangabeira, Valentina de Figueiredo,
adentrando a zona sul da cidade de João Pessoa, entre outros.

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A idéia de bairro vai sendo tensamente instaurada na grande várzea ao sul do rio
Jaguaribe, e constrangida no lugar. A imposição de uma lógica de bairro, enquanto
estruturante do espaço habitado, vai se sobrepondo à idéia vivida e experimentada de
comunidades, motivada pela pressão causada pela expansão da cidade modificando a
paisagem local da zona oeste e sul de João Pessoa. O lugar, assim, vai se tornando um local
cada vez mais urbanizado, e sob o controle da cidade: que investe no espaço urbano
conquistado em termos de disciplinamento das ruas, de legalização das áreas habitacionais
(Macedo 2009), e da construção de vias de acesso para deslocamento da população.
Deslocamento da população, - assentada nos diversos conjuntos habitacionais que deram
origem a distintos bairros -, para o centro da cidade e para os bairros onde se concentravam
uma população de classes média e média alta local.
Entre os anos de 1970 até o ano de 1990 as comunidades do agora bairro do Varjão
foram se conformando com a idéia de bairro, sem perder ao todo a pessoalidade in-tensa
que conformou as levas populacionais que ali chegaram desde as primeiras notícias de
ocupação que se tem da várzea do rio Jaguaribe. Os novos traçados de rua, as vias de
acesso que o cortam no sentido de entrada e saída do bairro para outros locais, o trânsito
intenso que obrigam uma grande população a passar diariamente, pelo menos duas vezes
para ida ou volta do centro ou de outros bairros, caminham para um processo de integração
do Varjão no roteiro urbano e nas preocupações de controle social e de segurança da
administração da cidade.
Nesse período a população local se organiza em levantes reivindicatórios: lutam por
infraestrutura e equipamentos urbanos de lazer, escolar, de saúde, de espaços religiosos e
outros para o bairro (Barbosa 2001). Começa a haver, também, uma busca de integração
dos moradores na rede de empregos oferecidos pela cidade de João Pessoa, e uma
ampliação da luta por emprego, contra a carestia, e outras formas de organização
conjuntamente com outros moradores de bairros e áreas periféricas da cidade.
Nesse período, ainda, são fundadas no bairro associações de moradores e um
Conselho Comunitário dos Moradores (Silva 1984), e há uma integração das suas lutas e
reivindicações com os demais bairros populares da cidade. Este período conforma e dá um
novo sentido ao pertencimento local ao bairro e à cidade em geral. Os moradores trafegam
assim de uma forma mais ou menos autossuficiente de gestão comunitária, para uma forma
nova de integração ao espaço urbano e das lutas mais gerais da cidade.
Neste ínterim, vão se adequando novas formas de inserção, com investimentos
progressivos em um comércio local, supermercados, padarias, feiras livres que vão se
alocando em um mercado público que as abriga, no novo reordenamento do bairro, em
redes escolares e de saúde, em esgotamento sanitário e calçamento de ruas e iluminação
pública. Do mesmo modo que antigos moradores investem em melhoria de suas moradias,
uma diferenciação começa a se estabelecer entre os que conseguiram melhorar de posição
e os que ainda residem em locais de invasão9 (Elias 2000).
A ingerência da cidade também modifica hábitos e costumes locais entre os antigos
comunitários. É bem verdade que uma rede homofílica ainda continua a atuar, atraindo
parentes, amigos e compadres e os que são próximos a eles, que são abrigados em puxados
nos terrenos próximos às residências, mas também são recebidos em pequenos becos
construídos entre muros de duas residências, onde são erguidos quartos para aluguel.
Esses becos e os quartos neles construídos destinam-se a novos moradores que
chegam por conta própria e têm também a função de complementação da renda familiar
dos proprietários, que os alugam aos novos habitantes. Assim, entre duas casas são
9
O pagamento do IPTU – Imposto sobre o Patrimônio Territorial Urbano, ganha, ainda hoje, uma conotação
de status local, entre os que pagam impostos, ou seja, os que ascenderam para uma moradia legalizada, e os
que não pagam, isto é, os que ainda vivem em áreas de invasão (Koury 2014, 2014a).

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construídas uma pequena vila de casas de um único cômodo, onde convive uma família
inteira por unidade e várias famílias. Esses aglomerados de casa são chamados local-mente
de becos.
Assim, a lógica de acolhimento com a qual recebiam os recém-vindos, - e a partir
da qual os mecanismos de dádiva, gratidão e reputação que repercutem de imediato nas
cadeias de interdependência que cruzam as comunidades, em um regime de proteção,
honra e troca de favores -, agora se mescla também com outra lógica: a da submissão do
recém-chegado à lógica monetária, como uma sobrerrenda para a família ou famílias dos
terrenos onde os becos foram construídos. A lógica da honra convive com a lógica do
direito (Berger 2015), a lógica da solidariedade convive com a lógica mercantil.
Os moradores dos becos, assim, possuem uma autonomia relativa em relação ao
proprietário que os abrigou, mas, ao mesmo tempo, se sentem presos em processos de
gratidão e dádiva com os proprietários dos quartos, onde se abrigam. Os quartos são
cedidos como uma dádiva e se espera gratidão daqueles a quem foram permitidos neles
morar. A cessão, como é chamada no bairro, implica em uma contribuição, o aluguel, que
é encarado como uma contradádiva que obriga os moradores novos a favores e gratidão aos
proprietários dos imóveis.
Nos anos de 1990, quando aconteceu a ocupação aqui trabalhada 10, e denominada
pelos moradores mais antigos de invasão, houve uma segunda fragmentação dos códigos
de proteção e honra que norteavam e davam sentido à organização comunitária local. Com
a reorganização das comunidades em bairro e sua assimilação como bairro pelos
moradores, - e a luta por sua integração à cidade e a ampliação da luta por direitos civis, -
os laços comunitários enfraqueceram e se fragmentaram. Tornaram-se mais fluidos, mas,
mesmo assim, a intensa pessoalidade ainda resiste, e que pode ser vista e registrada pela
troca de favores e pela copresença, às vezes opressiva (Prado 1998), dos outros na vida de
cada um.
O processo de fragmentação dos laços e a persistência de uma intensa pessoalidade
convivem, assim, de forma ambivalente e tensa no local. Ao mesmo tempo em que a lógica
individualista inicia um discurso sobre os outros do bairro, a vergonha cotidiana de se
colocar como morador local se manifesta, e ela se dá a cada interação nova, seja dentro ou
fora do bairro. Isso acontece a todo o momento, onde e quando um morador tenha que
explicar a alguém o porquê reside no Varjão, ou se possui amigos no bairro, ou sobre o que
de melhor ou pior o bairro oferece, por exemplo.
São momentos em que a vergonha de ser morador de um bairro considerado
violento, pobre, sujo, pelos moradores de outros bairros, ou pela imprensa local ou nos
mapas de violência policiais cala fundo no morador e nos quais ele tende a ser discreto ou
direto na sua atitude perante o outro, seu interlocutor. Deste modo, a ambiguidade e a
ambivalência ganham espaço.
De forma simultânea, em um mesmo discurso de não tenho amigos no bairro e aqui
nada presta, aparece outro discurso; outro discurso que informa que é no Varjão/Rangel
que reside a maioria dos familiares, de que o lugar é aprazível, fresco, arborizado, de que o
bairro é próximo do centro da cidade, de que é bem servido de ônibus, e, sobretudo, de que
o lugar é um lugar onde obteve apoio sempre que precisou. Do mesmo modo como é um
lugar onde ele, o morador informante, deu apoio aos que necessitavam e que os procurou
ou que ficou sabendo da necessidade e que podia ajudar.
O bairro do Varjão/Rangel, assim, convivia nos anos de 1990, como convive ainda
hoje, com um processo de transição nas formas comportamentais e na etiqueta interacional.
Processo de transição este, às vezes, angustiante, entre regimes de pessoalidade, regidos

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Como continua a acontecer atualmente de forma mais acelerada.

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por códigos explícitos de proteção e honra, e regimes de impessoalidade, regido por


códigos individualistas e de direitos que sublinham, conforme Peter Berger (2015), o
homem contemporâneo.
A relação ódio-amor ao bairro, como o lugar de pertença e como lugar onde reside,
parece conviver cotidianamente com o morador. Assim como um lugar de
envergonhamento, em que o fato de morar no Varjão/Rangel traz consigo para além, a
imagem de residir em um bairro violento e de indivíduos que se matam por qualquer coisa.
Imagem velada desde o primeiro advento de notícias na mídia e configurada no imaginário
da população da cidade de João Pessoa a partir dos anos de 1920, - e mais detida-mente a
partir dos anos de 1970, - quanto às antigas comunidades se reconfiguram e se moldam a
uma figuração nova de bairro, e este bairro inicia o seu processo tenso de integração à
cidade, sob o perfil, quase caricatura, de um bairro problema.
Com a reconfiguração urbana e a transformação das comunidades em bairro nos
anos de 1970, e a internalização e integração dos moradores à cidade e às lutas por
melhoria do bairro, esse imaginário é vivido pelos moradores através dos sentimentos de
constrangimento e de vergonha. O que reforça o estranhamento do morador do bairro sobre
o próprio bairro (o Varjão), tentando se afastar dele e justificando o porquê ainda não o ter
feito. Ao mesmo tempo em que busca se afastar desta imagem e lutar pela construção de
uma nova, em que olhe a si e ao bairro como um lugar plausível, bom de morar e de
pessoas de bem, o Rangel.
Esta ambivalência gera sofrimento social e um manancial de justificações e
desculpas que deem conta dessa distinção entre o bairro Varjão, - expresso na mídia e no
imaginário da cidade como violento, - e o bairro onde mora, - onde investimentos
emotivos, financeiros e de pertencimento foram realizados, e onde se sentem protegidos
pela rede comunitária ainda existente, apesar de fragmentada em seus alcances simbólicos,
- o Rangel. Entre as desculpas e justificações se encontra, nos esquemas de acusações,
outro tipo de morador, visto como aquele que perturba os moradores já estabelecidos. Estes
são, de maneira especial, distinguidos entre os recém-chegados ao bairro, ou entre aqueles
que se estabelecem nos enclaves ou nos aglomerados subnormais, - termo técnico utilizado
pelas políticas públicas brasileira dos anos de 1980 e 1990, - do lugar.
Na acusação cotidiana, estes outros são vistos como os que desestabilizam os
esforços de integração do agora bairro à cidade. Através das acusações a esse tipo de
morador acontece a catarse, bem no estilo durkheimiano, a partir do qual o mal é
diagnosticado e por onde se pode pensar uma lógica moral condizente com as pessoas de
bem que habitam o local.
A dicotomia parece então ser resolvida pela demonização e desfiguração moral do
outro, isto é, dos que vivem nos bolsões de pobreza ou nos recém-chegados. Nesta lógica
acusativa assentar uma desculpa para si próprio e para os outros interlocutores, como uma
espécie de purificação dos moradores como homens de bem, honestos e estabelecidos e
que lutam pela melhoria do bairro como local de pertença e de bem viver.
É nessa época também, os anos de 1970, que se dá um movimento para mudança do
nome do bairro, de Varjão para Rangel (Koury 2014; Barbosa 2015). Movimento este
assumido pela mídia e pela cidade, em geral, que adotou o nome Rangel para designar o
bairro do Varjão.
O bairro, desde então, passou a ser um lugar de dois nomes, um oficial, Varjão e o
outro oficioso, mas desejado, Rangel. Para piorar a situação, consolidando essa dicotomia,
em 1998, a Lei Municipal n. 1574, - que reeditou e atualizou os nomes dos bairros da
capital paraibana, - passou por cima da reivindicação dos moradores e da aceitação da
cidade de mudança de nome do bairro de Varjão para Rangel, e oficializou definitivamente
o nome Varjão como nome do lugar.

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Portanto, invertendo os códigos de liminaridade, o oficial Varjão, é visto pelo


morador como o não bairro, composto por todos aqueles não integrados e contidos nas
acusações dos seus moradores; e o nome oficioso, Rangel, é o nome do coração, dos que se
sentem ajustados ao lugar, como bom de viver, isto é, do bairro agradável e de pessoas
consideradas honestas e de bem. Destarte, o Varjão é o local onde residem todos os que, de
uma forma ou de outra, ameaçam a paz do bairro; lugar utilizado freqüentemente no
sistema acusatório e de justificativa local pelos moradores para acusar o outro morador
visto como fora dos padrões e da moralidade local. Indivíduos estes tidos como diferentes
dos que acusam, isto é, os moradores do Varjão são diferentes dos moradores do Rangel.
Essa catarse aparentemente resolvida nessa ambivalência de nomes, porém, é
motivo de dissenso interno no bairro e de ressentimento em relação à cidade e a imprensa.
Ressentimento moldado em afirmações contidas em vários depoimentos de moradores de
que tanto a imprensa como toda a cidade de João Pessoa ―compraram o nome Rangel‖,
isso desde a sua invenção como caminho para a moralização do bairro, com o movimento
pela mudança de nome nos anos de 1970, e mesmo após a oficialização do nome Varjão
pela Lei Municipal 1574, mas, só para misturar e confundir ainda mais os esforços de
dignificação do bairro pelos moradores.
A compra do nome só serviu para atrapalhar os esforços dos moradores para limpar
o nome do bairro, em seus esforços de integração à cidade: o Varjão foi fundido com o
Rangel nas leituras do bairro feita pela cidade e pela imprensa, trazendo para o Rangel as
mazelas do Varjão. Esse ressentimento do bairro vem à tona e aparece quando a mídia e a
cidade ao admitirem o nome Rangel como o nome do bairro, o adotando nas configurações
e nominações do lugar, não fazem a separação entre Varjão e Rangel, mas utilizam o nome
Rangel como sendo Varjão.
Para os moradores do bairro, ao desprezarem o esforço de significação do lugar
como Rangel, como forma de integração dignificada à cidade, e o misturarem ao Varjão, a
cidade e a mídia apenas transferiram a demonização diagnosticada no Varjão, visto como
bairro violento e indisciplinado, para o Rangel. O que colocou os dois bairros como um
único bairro e seus habitantes como pessoas semelhantes, isto é, violentas, mal-educadas,
indisciplinadas, não civilizadas, enfim.
Por outro lado, o dissenso interno adquire uma conotação ambivalente e quase
esquizofrênica, dependendo do lugar de fala de um morador, o outro morador reside no
Varjão ou reside no Rangel. Assim, qualquer um pode ser acusado de ser de um ou de
outro lugar, não havendo deste modo uma fronteira específica que identifique o morador
do Rangel ou do Varjão, todos são ao mesmo tempo moradores do Varjão/Rangel. Mas, ao
mesmo tempo, todos são Rangel e os outros todos, também, de acordo com o local de onde
parta a indicação acusatória, Varjão (Koury 2014).
Sua manipulação enquanto movimento acusatório ou de justificação depende,
sempre, de quem informa e das impressões que usa para acusar ou se defender. Fronteiras
simbólicas móveis que fazem o bairro ser um local de dois nomes e de muitos lugares, e
onde o outro é sempre aquele que não satisfaz e visto como moralmente frágil, e o eu,
aquele que acusa ou se justifica, como aquele que busca defender o bairro e sempre tido
como moralmente correto e integro. Quando não, vítima direta ou indireta dos outros, que
o faz sentir vergonha de morar no bairro e de ser confundido e embaraçado com a imagem
acusatória da cidade sobre o bairro.

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Tensão entre iguais


Nos anos de 199011, várias famílias vindas de outras partes da cidade de João
Pessoa e do interior do estado ocupam uma área ainda não completamente habitada do
bairro do Varjão/Rangel. Essa ocupação foi considerada, pelos moradores já assentados, e
com posse legal de seus lotes e, - segundo informações dos próprios moradores na época, -
―com investimentos feitos no lugar‖, - como uma invasão.
Ao acordarem pela manhã, os moradores se depararam do lado norte das ruas aqui
trabalhadas com muitas barracas construídas em uma área perto de uma grande depressão
no terreno, próxima à margem sul do rio Jaguaribe. Barracas armadas de muitas maneiras e
formatos: algumas de plástico, outras de pedaços de madeiras, algumas já com estrutura
central armada de um único cômodo para ser colocado o barro, em construção de taipa,
todas, porém, já com delimitações do terreno destinado a cada família que ocupou o
espaço.
As barracas se estendiam pelo terreno e desciam, inclusive, a encosta da depressão.
Os ocupantes tinham reservado uma área comum onde construíram uma espécie de cozinha
coletiva, algumas mulheres já circulavam nos seus afazeres domésticos e os homens na
organização estrutural do lugar, como traçados tortos e estreitos para a circulação das
pessoas no interior da ocupação e delimitação do espaço das suas margens direita e
esquerda adotando as linhas traçadas pelas ruas adjacentes, no sentido vertical [norte-sul]
seguindo até a depressão. Outros se ocupavam da feitura mais firme das barracas
improvisadas na noite anterior. As crianças pululavam de um lado para o outro, alegrando
o ambiente.
A ocupação vivia o momento extraordinário do recém-chegado, ainda com tudo
para organizar e sem um cotidiano plausível. Tudo era novidade, tudo era trabalho, tudo
era disposição para o novo, para o que vier. Do mesmo modo, as ruas próximas a ocupação
acordavam com a quebra da normalidade que compunha o seu cotidiano. Diferente do
extraordinário vivido como novidade e ansiedade pelos novos ocupantes do espaço, os
moradores já assentados viviam outro extraordinário, movido pela surpresa, pela
curiosidade e pela indignação.
Em conversa sobre esse momento com alguns dos entrevistados moradores das ruas
próximas, foi revelado não terem ouvido nenhum barulho estranho durante a madrugada da
ocupação, e se surpreenderam ao abrir as portas de suas residências ao amanhecer. Todos
afirmam a surpresa com o novo cenário que cobria a paisagem até então devoluta da
margem norte da rua, se espraiando pelas seguintes.
Outros falaram da indignação com o fato após a surpresa, e a necessidade de se
conversar sobre o que estava acontecendo e tentar entender e tomar providências. Como
pode ser visto, por exemplo, no depoimento de um entrevistado, pedreiro e um dos
moradores de uma das ruas próximas à ocupação, e um dos mais embravecidos:
Fiquei indignado quando abri a porta da minha casa, saí para comprar pão e me
deparei com um amontoado de barracas pro lado de lá [apontando para o norte]
da rua, nas proximidades da barreira. Fiquei zonzo com a surpresa, como é que
isso se deu e eu nem percebi, perguntei a mim mesmo, pois moro quase em
frente do terreno onde isso tudo se deu, no fim da minha rua. Uma ruma de gente
já estava se acumulando na beira observando a cena [...] uns dois amigos, Seu X
da barraca e Seu Y com a mulher dele, se aproximaram de mim e começaram a
falar do acontecido e perguntaram o que é que nós vamos fazer. Eu disse ‗sei
não, mas a gente precisa se sentar e conversar. Vamos chamar uns outros amigos

11
Como sempre ocorreu, desde os anos de 1920 quando a grande várzea do Rio Jaguaribe é ocupada por
famílias e comunidades inteiras em ondas migratórias. Processo, inclusive, que ainda ocorre até hoje, com a
ocupação ilegal do que resta da reserva florestal local, conhecida como Mata do Buraquinho, onde funciona
um dos limites do Jardim Botânico da cidade de João Pessoa.

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e dez horas lá em casa‘. Todos concordaram e ficaram cada um de chamar mais


conhecidos e moradores das ruas 12 próximas para a reunião. [Quer dizer que o
pessoal da rua X e de outras ruas também foram chamados? Por quê?] Porque a
rua X corta a nossa rua, fica transversal a ela e recorta a nossa rua do terreno que
dá para a barreira e onde estavam alojadas as barracas. E ela é transversal as
outras ruas paralelas a nossa e que termina um pouco mais próxima ou um pouco
mais distante do entorno da depressão no terreno. [Ah!] Essa rua, é uma rua de
moradia, como a minha e outras paralelas, mas também tem muito comércio, e o
pessoal estava preocupado também com o negócio deles. A padaria que compro
pão fica logo de esquina, fica de frente para a rua X e um lado para o terreno
baldio que dá continuidade a nossa rua. [Ah! Está certo, então!]. [...].
Surpresa e indignação são dois termos reativos a um acontecimento inesperado.
Trazem em si respostas emocionais, com configurações psíquicas ou corporais, no
indivíduo ou grupo de indivíduos afetados por eles; ou sociais, nas refutações ou buscas de
respostas coletivas a uma dada situação, cuja ocorrência surpreendeu.
A emoção advinda pela surpresa é sentida tanto como um sentimento positivo
quanto negativo, isso de acordo como o fato e a situação por ela originado atinge o
indivíduo ou grupo. A indignação, por sua vez, é uma emoção que incide nos indivíduos ou
grupos por ela atingidos como um sentimento visto sempre como negativo.
A emoção surpresa sentida como uma emoção negativa prepara o terreno para a
indignação. Esta última sempre referenciada ao conjunto de expectativas em relação a um
determinado contexto ou situação concreta em que o indivíduo, grupo ou comunidade se
encontram. O que pode causar apenas um susto, como também um abalo, um espanto e
assombro, e provoca de imediato13 uma reação de choque, de sobressalto, de perturbação e
de comoção individual, ou, em um processo reativo mais lento, para o sentido de uma
busca coletiva de compreensão e agência sobre o fato que a causou.
Ambos os termos, surpresa e indignação, ou ambas as emoções, são sentimentos
morais. Eles fazem parte de uma cultura emotiva que enreda em si um código de conduta
sociocultural expresso tanto em reação às novidades, quanto como respostas ao elemento
de desconformidade da ação que gerou a surpresa e a indignação em relação ao padrão
aceito como normal em um dado contexto. A indignação, portanto, é uma reação posterior
à surpresa, quando esta última se expressa nos termos de descontentamento em relação a
algum evento que mexe com um determinado código de valores pessoais, social ou
cultural.
A indignação surge, assim, como uma reação espontânea a presença de um ato de
injustiça, de ofensa ou de revolta, praticado diretamente ou indiretamente contra uma
pessoa, grupo ou comunidade. Mas, também, pode ser uma emoção sentida por empatia a
um indivíduo, grupo ou comunidade que sofreu um tratamento considerado incorreto.
A indignação, destarte, processa um maior nível de tensão ou provoca uma
possibilidade aberta para uma crise ou abatimento moral em relação ao ato que causou ou
foi objeto da surpresa. O que provoca um abalo no frágil equilíbrio de valores e de
confiança pessoal ou local, exigindo uma ação reparadora por parte dos envolvidos, - no
caso, os que foram surpreendidos e os que causaram a surpresa e indignação.
Simmel (2014) discute a questão do terceiro elemento como aquele que
complexifica uma relação societária ao apontar para uma necessidade de retomada dos
valores e expectativas instituídos em função das provocações possíveis originadas com o
apare-cimento da novidade trazida pela configuração do fato novo. Fato que desequilibra

12
Neste trabalho se optou por não revelar os nomes das ruas, e usar as ruas próximas com letras. Apenas o
nome da rua principal onde se deu a ocupação se deu um nome fictício para melhor composição do cenário.
O mesmo acontecendo com o nome das pessoas entrevistadas e citadas no texto.
13
Embora possa também ser construída em um processo mais lento.

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os valores e as projeções do si e do outro, - enquanto morador, enquanto olhar da cidade e


da mídia, - constituídos localmente, e sobre os projetos expectados para si e para o local,
vistos como coletivos.
O terceiro elemento, esse outro que surge de forma abrupta e não desejada, assim,
provoca reação de surpresa ou de indignação ao denunciar, com a sua presença, a
fragilidade dos vínculos em que se assentam os conjuntos de expectativas para o local e
das possíveis alianças entre os envolvidos, - no caso, os vizinhos, - e em relação aos
códigos de valores e argumentos morais pensados como instituídos naquele e para aquele
contexto. Denuncia também, no caso específico aqui tratado, o isolamento do bairro ao
conjunto de valores almejados como direitos e esperanças de integração aos códigos de
moralidade da cidade, cenário mais amplo em que se encontra inserido. O que revela a
condição de periferia do bairro e de ser considerado como um lugar ―aonde mora qualquer
um e aonde qualquer um chega e se assenta‖, como objetivado por um entrevistado.
A surpresa e a indignação, portanto, provocam o sentimento do injusto ou da in-
justiça sofrida pelos moradores estabelecidos, em relação ao fato da ocupação, considerada
pelos moradores já assentados como invasão. O fato da ocupação trouxe em si, - impressos
na surpresa e na indignação que provocou, - um alto custo emocional para os indivíduos
envolvidos. O sentimento de injustiça trabalhado por Barrington Moore Jr. (1987)
compreende tal comiseração como uma falência moral e, ao mesmo tempo, como uma
denuncia pública desta falência para os que o sentem.
O sentimento de injustiça assim provoca reações individuais e coletivas ao fato que
o causou nos indivíduos acometidos. Age como se eles estivessem sido atingidos, ou
mesmo agredidos ou atacados por um episódio desestruturador de si próprios, dos seus
projetos, de suas expectativas, de suas projeções, de seus anseios e moralidade. Os
impulsionando a agir, individual ou coletivamente.
O sentimento de indignação se surge como uma reação emotiva à presença de um
ato de injustiça, logo pode se manifestar também de forma racional. O que pode gerar uma
espécie de movimento de indignação e reparação, quando um grupo ou coletividade se
reúne para entender e enfrentar a situação com um projeto de ação racional de defesa dos
seus valores, podendo esta ação ou conjunto de ações adotar um formato ordeiro, - através
de conversa com os causadores do fato, ou de cartas ou manifestações de repúdio junto à
imprensa, ou, até mesmo, de cobranças junto a autoridades e reclamações de ordem
judicial, - ou não (Boltanski 2001; Werneck 2013).
Foi o que aconteceu no episódio aqui trabalhado. Um grupo de moradores, in-
dignados com o fato da ocupação, se junta e tenta criar uma união moral, reunindo
indivíduos com o mesmo sentimento de insatisfação em relação ao fato da ocupação,
gerando um movimento contrário a ela, - e sentida pelos moradores já estabelecidos como
invasão. Este movimento procura reivindicar reparações contra os atos ou efeitos causados
na comunidade afetada pela invasão, e considerados como injustos e desestrutura-dores das
expectativas e valores locais. Injustiça e desagregação em relação a uma variedade de
expectativas: sejam estas financeiras, morais ou éticas, todas elas consideradas danosas ao
bem comum local, ou avaliadas como prejudiciais.
No caso aqui tratado, em uma reunião na casa de um dos moradores mais
indignados14 e um dos puxadores da reunião [como os organizadores se autointitulavam

14
Às 10 horas da manhã a casa ficou pequena, segundo relato no diário de campo, para todos os que queriam
participar da reunião, sendo obrigados a procurar outro local nas redondezas que coubesse a todos. O pátio da
escola próxima foi o local encontrado e ocupado para a reunião que teve início uma hora depois da hora
marcada. Na reunião, um dos organizadores tomou a iniciativa da abertura da sessão relatando os fatos que
abalaram o cotidiano da sua rua e de outras da redondeza, com a ocupação do terreno próximo à barreira, - e
cuja depressão margeia o rio Jaguaribe, - por várias famílias. Nesta reunião tiveram voz, além dos

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em entrevista] ―todos os presentes, - de acordo com sua narrativa, - expressou o seu


descontentamento e muitos revelaram preocupação com a ocupação e os seus ocupantes‖.
Destes, uma boa parte falou dos prejuízos que tal ocupação geraria para os negócios locais
e o receio com desvalorização dos imóveis e a perda dos investimentos realizados, outros
tantos se lembraram das consequências para uma possível e subsequente baixa-estima no
bairro e entre os seus moradores, com dano no já pouco prestígio junto aos outros bairros
fronteiriços ao Varjão/Rangel, e da cidade de João Pessoa como um todo.
Uma outra ruma de pessoas falaram que precisariam tomar uma atitude enérgica
contra os invasores, já que não poderiam contar com os homens do poder para
que isso acontecesse (Depoimento de um dos organizadores da reunião).
Essa configuração de um ordenamento moral se encontra refletida sobre dois
conjuntos de queixas. O primeiro trata em torno de prejuízos possíveis para os negócios
locais e o receio com a desvalorização dos imóveis e a consequente perda dos
investimentos realizados, o segundo conjunto gira em volta de queixas sobre a ampliação
da má reputação do bairro perante si mesmo e aos demais bairros da cidade e à cidade
como um todo, com reflexo sobre a possível e subsequente queda na já baixa-estima local.
Nos dois conjuntos estão presentes as noções de exauteração, de desprestígio e
descrédito, vistos como trazendo consequências negativas para a dignidade e a distinção
locais. O que se encontrava em jogo, nas queixas e reclamações dos moradores mais
antigos, era o conceito de reputação local, do bairro, e por decorrência, de todos os
moradores do Varjão/Rangel.
A reflexão realizada pelos moradores insatisfeitos com a nova ocupação do bairro
era a de que o ato provocaria [se já não tivesse provocado] um aumento da depreciação do
bairro e seus moradores perante a cidade e os bairros próximos. A reputação bem como a
depreciação são conceitos que se estabelecem ou são sentidos através do olhar público ou
da sociedade em torno, e onde se vive.
A reputação, como também, a mancha sobre ela, que torna uma imagem pessoal,
social ou objetal desacreditada, na visão dos moradores, estabelece uma imagem negativa
que interfere junto aos seus esforços de dignificação do bairro e de busca de distinção
(Bourdieu 2007) junto à sociedade maior, isto é, os bairros circunvizinhos e a cidade de
João Pessoa como um todo.
De acordo com a narrativa de uma moradora, dona de uma casa de confecção e
venda de bolos1511 em uma das ruas que fazem limite com a ocupação:
―a má reputação sempre chega aos lugares antes de mim, pois a reputação de
alguém, ou de onde esse alguém mora, é o que os outros pensam dele e do local
onde vive. Dessa maneira, prá nós moradores, que lutamos pela melhoria do
bairro e in-vestimos toda a nossa economia nos investimentos que fizemos no
local, vê esse povo invadindo, é ver todo o nosso esforço indo de água a baixo.
[...] O Rangel que ajudamos a erguer é o Varjão, nessa invasão de novo à solta,
[...] por isso que temos tanta dificuldade de vê a cidade olhar a gente e pro
Rangel com respeito. Nós continuamos como gente ruim, por melhor que se lute
prá mostrar que somos diferentes, e esse bairro é um local e um ambiente
desacreditado... Prá mim, prá sempre vai ser assim... eu, por mim, já teria ido
embora daqui, se não fosse o nosso negocinho. Mas agora, sei não... essa
invasão, esse povo a emporcalhar o ambiente, o dano que a gente tá sofrendo por

organizadores, vários outros moradores locais, comerciantes, e pastores evangélicos de igrejas adjacentes ao
local ocupado.
15
Ainda hoje, casas de confecção e venda de bolos, bem como de salões de beleza, junto a templos das mais
diversas religiões fazem parte da paisagem do bairro. É comum encontrar em uma mesma rua pelo menos
duas ou três casas de bolo ou salões de beleza, assim como templos.

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causa deles, nem o negócio compensa o esforço prá continuar aqui. Sei não...
acho que tô ficando meia desesperançada...‖.
Destarte, a idéia de dano material e de dano moral configurou todo o processo de
arregimentação dos moradores antigos para expulsão dos novos moradores do lugar. De
acordo com Aurélio Buarque de Holanda (1988) o termo dano, tem o significado de mal ou
de ofensa e prejuízo moral ou material.
Nesse diapasão, a diferenciação entre nós e eles, - nominados de esse povo, de
gente que emporcalha o ambiente, - conforma o ordenamento moral que enquadra a
invasão como um prejuízo aos esforços de melhoria do bairro e como um insulto e uma
agressão moral aos moradores já estabelecidos. As queixas, assim, parecem se amoldarem
como insultos moral. Para Cardoso de Oliveira (2005, p. 2), o conceito de insulto moral
aviva ―duas características principais do fenômeno: (1) trata-se de uma agressão objetiva a
direitos que não pode ser adequadamente traduzida em evidências materiais; e, (2) sempre
implica uma desvalorização ou negação da identidade do outro‖.
É sobre esse conceito de agressão moral causados pela invasão que se articulou as
disputas morais entre os moradores. O que propiciou e deu início a um sistema de
desculpas e acusações expondo preconceitos e vulnerabilidades (Goffman 2012a) de
ambos os lados. O que ampliou os dissensos, e as formas de arregimentação de forças para
o disciplinamento moral do bairro. Sente-se, a partir dessa ocupação, um sentimento de
falência do sentido de comunidade que até então perfazia o imaginário dos moradores
locais, desde a década de 1920. Sentimento este que foi se perdendo quando o conceito de
bairro começou a se erigir sobre a noção de comunidade.
É bem verdade, de acordo com vários entrevistados, que dentre os moradores já
estabelecidos, alguns poucos ainda ousaram provocar o sentimento de comunidade e de
esforço solidário para com os novos moradores. Mas, ―só uns poucos se atreveram a agir e
falar em seu nome [dos novos ocupantes]‖.
Segundo um entrevistado16,
―[...] muitos que ali estavam [na ocupação] eram pessoas como nós éramos e
muito de nós já foram pobres, expulsos do seu lugar e sem ter onde ficar. [...]. A
gente devia pensar nisso e, se não ajudar, pelo menos deixar eles ficarem e se
arranjar por lá, como a gente mesmo já fez antes e antes...‖.
Segundo uma entrevistada17,
―teve gente mesmo que chegou a vaiar a gente que falava a favor da permanência
dos novos moradores; e outros ainda gritavam ‗leva eles prá casa‘. E aí a gente e
outros tantos deixamos de falar com eles e tomamos partido dos novos
moradores. Em uma das reuniões, que eu ainda tava presente, depois de muita
confusão, empurra-empurra e palavrões, alguém pediu calma, um e outro
também, mas não teve mais jeito, e a reunião terminou sem haver entendimento
de parte alguma. Foi marcada outra reunião mas só foram os revoltados. A gente
achou melhor deixar prá lá e cuidar de nossas vidas e ajudar os que necessitavam
ajudam, como sempre foi por aqui [...]. Nos outros dias, de fato, alguns dos
moradores levaram algumas famílias da ocupação para as suas casas. Eu mesma
levei duas mães com os filhos, que descobri que eram meus parentes distantes, e
outros tantos levaram parentes ou pessoas que vieram pra aqui recomendados por
parentes ou amigos do interior‖.
Mais tarde permitiram que os acolhidos [como costumam nominar] construíssem
um quartinho ou um puxado por trás da casa deles e lá e de lá reconstruíssem suas vidas.

16
Funileiro e morador antigo de uma das ruas atingidas pela ocupação, e que ficou também ao lado dos novos
moradores.
17
Moradora do lugar desde os anos de 1980, e que esteve desde o início a favor de deixarem os novos
ocupantes em paz e viverem a vida deles, ―como a gente viveu e organizou a nossa‖.

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Mas essa atitude foi tomada por poucos, uma grande parte ficou na ocupação e por lá
começaram a remontar e se misturar no bairro.
Passados um pouco mais de vinte anos é possível ver, hoje, a ocupação já
consolidada. A ocupação se deu acima da rua com traçado horizontal, atingindo todas as
ruas transversais que a cortam. Como se pode ver, pela imagem acima, as ruas foram
ordenadas, dando uma continuidade às demais, e prosseguindo até a depressão (na parte
verde no canto superior da fotografia).
As casas ainda aparentam ser mais pobres do que as da área dos então
estabelecidos. Desde então, é importante frisar, novas ocupações aconteceram, com uma
profusão de casas desordenadas descendo encosta abaixo, em situações de risco.
Ainda hoje, vários moradores do bairro que viveram a tensão da ocupação dos anos
de 1990 não se falam, motivados pelas tensões permanentes vividas de ódio e amor
geradas nesse processo de disputas morais ocasionados pela ocupação. Ainda se acusam e
empurram para os que fizeram parte da invasão como ainda costumam falar, a degeneração
e a fraqueza moral do bairro. Ou se defendem, acusando os acusadores de tentarem viver
uma vida que não possuem, e perder o sentido do melhor que o bairro possui: o espírito de
comunidade e de solidariedade, e de que todos se ajudam quando precisam.
Mas todos são unânimes em afirmar o estigma da cidade sobre os moradores e
sobre o bairro do Rangel, e em sua maioria afirmam que se puderem sairiam do bairro,
mas, em outras circunstâncias, também afirmam que o Rangel é o lugar melhor de se viver:
tranquilo, calmo, bom comércio, boa gente, que costumam se ajudar uns aos outros, e onde
possuem parentes e amigos próximos. Como também, que o problema do bairro é o pessoal
do Varjão, os desocupados, engraçadinhos, desordeiros, violentos, que a cidade costuma
confundir com os do Rangel.
Enfim, modificado e se modificando, o Varjão/Rangel continua um bairro de dois
nomes. Um lugar com disputas morais pungentes, com desculpas e acusações sobre o
processo de morar no bairro, e com uma cultura emotiva tensa e ambivalente. O que perfaz
um ambiente com uma montagem moral complexa e sempre em disputa, recheada de amor
e ódio ao bairro e ao outro habitante, bem como pelo processo de humilhação pelo estigma
com que a cidade trata os moradores e o lugar.
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Borges Barbosa. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v.1, n.2, p. 33-44,
julho de 2017. ISSN 2526-4702.
Tradução
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

A história Natural do Jornal (nos EUA)

The natural History of the Newspaper


Robert Ezra Park
Tradução de Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Raoni Borges Barbosa

Resumo: Neste breve e sarcástico ensaio, Park provoca o leitor com a apresentação do
que denomina história natural do Jornal, passando em vista as cartas de notícias da
aldeia e da pequena cidade; os boletins dos debates e discursos parlamentares; a
imprensa de opinião dos partidos políticos; a imprensa independe como grande
empresa; e a imprensa amarela para o grande público de massa. Park enfatiza o jornal
como fenômeno dinâmico e transintencional, produto e produtor do urbanismo e da
vida urbana. O jornal aparece como instância de controle social, de entretenimento,
como arena político, e como empreendedor moral, ora informando, ora romanceando a
complexidade da vida na metrópole. Palavras-chave: Robert E. Park, jornal, história
da empresa jornalística nos EUA, imprensa amarela, empreendedor moral

Abstract: In this brief and sarcastic rehearsal, Park provokes the reader with a
presentation of what he calls the natural history of the Journal: the news-letters from
the village and the small town; the Bulletins of parliamentary debates and speeches;
the party press; the independent press as a big company; and the yellow press for the
mass public. Park emphasizes the newspaper as a dynamic and transintentional
phenomenon, at once it is a product and a producer of the urbanism and of the urban
life. The newspaper is presented as an instance of social control, of entertainment, as a
political arena, and as also a moral entrepreneur, that sometimes is informing or
romanticizing the social life complexity in the metropolis. Keywords: Robert E. Park,
newspaper, history of the US newspaper business, yellow press, moral entrepreneur

A luta pela sobrevivência


O jornal tem uma história; contudo, da mesma forma tem, também, uma história
natural. A imprensa, desde que existe, não é o produto intencional de um grupo pequeno
qualquer de pessoas viventes, como os nossos moralistas às vezes parecem assumir.
Justamente o contrário, a imprensa é o resultado de um processo histórico em que muitos
indivíduos participaram sem poder prever o produto final que suas respectivas labutas
poderiam tomar.
O jornal, assim como a cidade moderna, não constitui um produto inteiramente
racional. Ninguém procurou desenvolvê-lo tal como ele é atualmente. Apesar de todos os
esforços de indivíduos e de gerações para controlá-lo e moldá-lo segundo suas
preferências, o jornal continuou seu processo de crescimento e de transformação segundo
seus próprios e incalculáveis caminhos.

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O tipo de jornal que existe atualmente é aquele que sobreviveu sob as condições da
vida moderna. As pessoas que podem ser consideradas como os pioneiros do jornal
moderno – James Gordon Bennett, Charles A. Dana, Joseph Pulitzer e William Randolph
Hearst – são aquelas que descobriram o tipo de papel que homens e mulheres leriam e
teriam coragem de publicar.
A história natural da imprensa é a história desta espécie sobrevivente. Trata-se de
uma consideração das condições sob as quais o jornal atual tem se desenvolvido e tomado
forma.
O jornal não é meramente imprenso. Mas circulado e lido. De outra feita não pode
ser considerado jornal. A luta pela sobrevivência, no caso do jornal, tem sido uma luta pela
circulação. O jornal que não é lido cessa em ser uma influência na comunidade. O poder da
imprensa pode ser grosseiramente mensurado pelo número de pessoas que a lêem.
O crescimento das grandes cidades tem incrementado enormemente a dimensão da
leitura pública. O exercício de ler, que foi antigamente um luxo nas zonas rurais, tem-se
tornado uma necessidade na cidade. No ambiente urbano a literaridade é quase tão
necessária quanto a capacidade de falar. Esta é uma das razões para que haja tantos jornais
em línguas estrangeiras.
Mark Villchur, editor do jornal Russkoye Slovo, New York City, questionou seus
leitores sobre quantos deles leu jornais na sua velha pátria. Ele chegou aos seguintes dados:
de 312 correspondentes, apenas 16 tinham regularmente lido jornais na Rússia; 10 outros
costumavam ler, de vez em quando, jornais no Volast, o centro administrativo do vilarejo,
e 12 eram assinantes ou leitores de revistas mensais. Na América, contudo, todos eles
tornaram-se assinantes ou leitores de jornais russos.
Este fato é de interesse porque o imigrante tem tido, primeira e ultimamente, uma
profunda influência sobre o caráter dos nossos jornais nativos. Como trazer os imigrantes e
seus descendentes para o círculo dos leitores de jornais tem sido um dos problemas do
jornalismo moderno.
O imigrante que tem, talvez, adquirido o hábito de ler um jornal em língua
estrangeira vê-se eventualmente atraído para os jornais americanos nativos. Estes são para
ele uma janela para o mundo exterior mais amplo, para além do estreito círculo da
comunidade de imigrantes em que ele é compelido a viver. Os jornais têm descoberto que
mesmo pessoas que podem eventualmente ler não mais que as manchetes da imprensa
diária comprarão a edição de domingo para assim poder apreciar as figuras que ilustram e
comentam as notícias.
Tem-se dito que o mais bem sucedido dos periódicos Hearst, o New York Evening
Journal, ganha um novo corpo de assinantes a cada seis anos. Aparentemente este jornal
recruta seus leitores principalmente dos círculos de imigrantes. Estes jornais graduaram-se
nos periódicos do Sr. Hearst a partir da imprensa em língua estrangeira, e quando o
sensacionalismo destes periódicos começou a saturar o interesse dos leitores, os mesmos,
então, adquiriram um gosto próprio de alguns dos jornais mais sóbrios. De qualquer
maneira, o Sr. Hearst tem sido um grande americanizador.
Em seus esforços em tornar o jornal mais palatável para o consumo dos leitores
menos instruídos, e em encontrar no material jornalístico diário aquilo que excitasse as
inteligências mais broncas, os editores em feito uma importante descoberta. Eles
descobriram que a diferença entre o erudito e o inculto, tida então como profunda, é em
grande medida uma diferença no uso de vocabulários. Em síntese, se a imprensa pode
fazer-se inteligível para o homem comum, a mesma terá ainda menos dificuldades em fazer
entender pelo intelectual. O caráter dos jornais atuais tem sido profundamente influenciado
por esse fato.

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Os primeiros jornais
O que constitui um jornal? Muitas respostas têm sido dadas. Diz-se que é a tribuna
do povo; que é o quarto poder; que é o Paladino das liberdades civis, e etc.
Por outro lado, este mesmo jornal tem sido caracterizado como o grande sofista. O
que os professores populares fizeram por Atenas no período de Sócrates e Platão, a
imprensa tem feito em tempos modernos pelo homem comum.
O jornal moderno tem sido acusado de ser uma empresa comercial. ―Sim‖, afirmam
os senhores dos jornais, ―e o produto que o jornal vende é a notícia‖. Esta é a verdade da
loja. (O editor é o filósofo tornado comerciante). No exercício de tornar a noticia sobre
nossa vida comum acessível para todo indivíduo, para isto ao menos mais que o preço de
uma chamada de telefone temos que receber em troca, torna-se urgente que – mesmo que
na complexa vida do que Graham Wallas denominou de a ―Grande Sociedade‖ – algum
tipo de democracia funcional seja alcançada e mantida.
A noção do gerente de propaganda é, contudo, algo diferente. Para ele o jornal
constitui um medium para a criação de valores de publicidade. O negócio do editor se
resume em providenciar o envelope que abarca o espaço em que o publicitário vende seu
produto. Eventualmente o jornal pode ser concebido como um tipo de carreira comum,
como a linha férrea ou os correios.
O jornal, de acordo com o autor de Brass Check18, é um crime. O brass check é um
símbolo de prostituição. ―O brass check é encontrado em seu envelope pago toda semana –
você que escreve e imprime e distribuiu nossos jornais e revistas. O brass check é o preço
da sua vergonha – você que pega o corpo justo da verdade e o vende na praça do mercado,
que trai as esperanças virginais da humanidade no detestável bordel dos grandes negócios‖.
Este é o conceito de um moralista e de um socialista – Upton Sinclair.
Evidentemente o jornal é uma instituição ainda não completamente entendida. O
que é, ou parece ser, para qualquer um de nós de qualquer era, é determinado pelos nossos
diferentes pontos de vista. Com efeito, não sabemos muito sobre o jornal. Trata-se de
fenômeno ainda não estudado.
Uma das razões pelas quais sabemos tão pouco sobre o jornal é que, da forma que
este atualmente existe, trata-se de uma manifestação bastante recente. Além disso, no curso
de sua história relativamente breve, o jornal tem atravessado sérias marcantes de
transfigurações. A imprensa hoje é, contudo, tudo o que já foi e ainda algo mais. Para
entendê-la devemos observá-la em sua perspectiva histórica.
Os primeiros jornais eram escritos à mão ou feitos de letras impressas; eram
chamados de cartas de notícias. No século dezessete, cavalheiros dos países de língua
inglesa costumavam empregar correspondentes para lhes escrever uma vez por semana
desde Londres as fofocas da corte e da cidade.
O primeiro jornal na América, ao menos o primeiro jornal que sobreviveu às suas
primeiras questões, foi o Boston News-Letter. Este jornal era impresso pelo chefe dos
correios local. A central de correios tinha sido sempre um fórum público, onde todas as
preocupações e assuntos da nação e da comunidade eram discutidos. Era de esperar que lá,
um lugar situado nas proximidades das fontes de inteligência, se é que se pode falar de tal
lugar, emergisse uma experiência comunicativa que redundasse em jornal. Por um longo
tempo a posição de chefe dos correios e a vocação de editor foram consideradas como
inseparáveis.

18
De acordo com a Wikipédia, The Brass Check, publicado em 1919, por Upton Sinclar, expunha de forma
critica e sarcástica a idade do ouro (muckraking) do jornalismo americano. Sinclair alcançou grande
audiência e fama com seu estilo provocativo e com seus ataques ao jornalismo como empresa comercial e e
ao jornalismo do tipo imprensa marrom (yellow press). (Nota do Tradutor).

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Os primeiros jornais eram simplesmente dispositivos para a organização de fofocas,


e é isto que, em uma extensão maior ou menos, os jornais têm permanecido. O alerta de
Horace Greely19 para um amigo que pretendia fundar um jornal interiorano é ainda tão
válido quanto fora outrora.
Parta da concepção clara de que o tema de mais profundo interesse para o
ser humano médio é ele mesmo; próximo disso, ele é mais preocupado
em relação aos seus vizinhos. Ásia e as Ilhas Tongo situam-se muito
depois destes dois temas em suas considerações. Parece-me que a maioria
dos jornais interioranos estão alheios a estas verdades vitais. Se você
pretende assegurar, tão breve quanto possível, um despontar amplo, então
disponha de um correspondente judicial em cada vila e povoado do seu
interior, alguns jovens advogados, doutores, balconistas de loja, ou
assistentes em uma central de correios que prontamente lhe enviarão não
importa o que ocorra no momento em suas respectivas vizinhanças, e que
perfazerão ao menos metade do seu jornal com problemas locais
coletados, então ninguém no interior poderá por muito tempo resolver-se
sem o seu jornal. Não permita que uma nova igreja seja organizada, ou
que novos membros sejam recrutados por uma já existente, que uma
fazenda seja vendida, que uma nova casa seja construída, que um novo
moinho seja posto em movimento, que uma loja seja aberta, ou que
qualquer coisa de interesse para uma dúzia de famílias ocorra, sem que
tenha registrado estes fatos de modo suave, ainda que brevemente, em
suas colunas. Se um trabalhador rural corta uma grande árvore, ou cultiva
uma beterraba gigante, ou colhe uma safra generosa de trigo ou milho,
exponha o fato tão concisa e excepcionalmente quanto possível.
O que Greeley adverte ao amigo Fletcher a fazer com o seu periódico interiorano, o
editor de qualquer jornal urbano, tanto quanto seja humanamente possível fazer, ainda está
tentando realizar. Não é praticável, em uma cidade de 3 milhões de habitantes ou mais,
mencionar o nome de todas as pessoas. Por estar razão a atenção se concentra em figuras
proeminentes. Em uma cidade onde todo tipo de coisa acontece todos os dias, não se faz
possível o registro de qualquer incidente medíocre, ou qualquer variação da rotina da vida
urbana. É possível, contudo, selecionar certos incidentes particularmente pitorescos ou
românticos e tratá-los simbolicamente, bem mais pelo interesse humano destes incidentes
do que pela sua significância individual e pessoal. Nesse sentido, as notícias cessam de ser
inteiramente pessoalizadas e assumem uma forma de arte. As notícias cessam de ser o
registro de fazeres de pessoas individualizadas e tornam-se uma justificativa (account) de
formas e estilos de vida.
O motivo, consciente ou inconsciente, dos escritores e da imprensa em tudo esse
processo é o de reproduzir, tão extensamente quanto possível, na cidade as condições de
vida no vilarejo, no povoado, na aldeia ou na cidadela interiorana. Nas sociabilidades de
pequena escala todos se conhecem reciprocamente. Todos se chamam reciprocamente pelo
primeiro nome. A aldeia era democrática. Nós éramos uma nação de aldeões. Nossas
instituições eram fundamentalmente instituições aldeãs. Na aldeia, a fofoca e a opinião
pública eram as principais formas de controle social.
―Eu preferiria viver‖, disse Thomas Jefferson, ―em um país com jornais e sem um
governo do que em um país com governo e sem jornais‖.
Se a opinião pública deve continuar a governar no futuro assim com fez no passado,
se nós nos propomos a manter a democracia tal como Jefferson a concebeu, o jornal deve
19
Membro destacado do, à época, recém-fundado Partido Liberal Republicano, congressista e editor do New-
York Tribune, Horace Greeley foi um nome destacado na cena jornalística e política do século dezenove nos
EUA. (Nota do Tradutor).

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continuar a nos narrar a nós mesmos. Devemos de alguma forma aprender a conhecer
nossa comunidade e suas narrativas e preocupações da mesma maneira íntima em que nós
os conhecíamos nas aldeias interioranas do país. O jornal deve continuar a ser o diário
impresso da comunidade doméstica. Casamentos e divórcios, crimes e processos políticos,
devem continuar a compor o corpo principal das nossas notícias. Notícias locais são a
matéria ordinária da qual a democracia é feita.
Mas isto tudo, de acordo com o Walter Lippmann, é justamente a dificuldade.
―Como a verdade social é organizada hoje‖, ele comenta, ―a imprensa não está constituída
para mobiliar de uma edição à outra a quantidade de conhecimento que a teoria
democrática da opinião pública demanda... Quando esperamos que a imprensa venha a
suprir tal corpo de verdade, nós empregamos um parâmetro equivocado de julgamento.
Nós entendemos de forma errada a natureza limitada das notícias, e a ilimitada
complexidade da sociedade; nós sobreestimamos nossa própria resistência, nosso espírito
público, e mais que tudo competência. Nós supomos um apetite para verdades não
interessantes que não é descoberto por nenhuma análise honesta do nossos próprios
gostos... Inconscientemente a teoria estabelece o leitor tomado isoladamente como
teoreticamente incompetente, e coloca sobre a imprensa o fardo da realização de o que
qualquer governo representativo, organização industrial, e diplomacia falharam em
realizar. Atuando sobre todos por trinta minutos em vinte e quatro horas, a imprensa é
questionada a criar uma força mística chamada ‗opinião pública‘ que assume as lacunas
nas instituições públicas20.
Evidentemente um jornal não pode fazer por uma comunidade de um milhão de
habitantes o que a aldeia espontaneamente fazia por si mesma através do medium da fofoca
e do contato pessoal. Ainda assim os esforços do jornal em adquirir estes resultados
impossíveis são um capítulo interessante na história dos processos políticos, assim como
na história da imprensa.
Os jornais de Opinião
Os primeiros jornais, os jornais de notícias, não eram jornais de opinião. Jornais
políticos começaram a substituir os jornais de notícias no início do século dezoito. As
notícias com as quais o público leitor mais se preocupava à época eram os boletins de
debates do Parlamento.
Mesmo antes da ascensão da imprensa partidária, certos indivíduos interessados e
curiosos organizaram o negócio de visitar a Galeria dos Estranhos durante as sessões da
Casa dos Comuns de maneira a poder registrar de memória, ou com ajuda de notas
produzidas sub-repticiamente, justificativas dos discursos e das discussões travadas durante
debates importantes. À época todas as deliberações do Parlamento eram secretas, e não foi
até cem anos atrás que o direito dos repórteres de atender às sessões da Casa dos Comuns e
de registrar seus procedimentos foi oficialmente reconhecido. Nesse ínterim os repórteres
eram compelidos a selecionar todas as variedades de subterfúgios e métodos indiretos de
forma a obter informação. É a partir dessas informações, coletada desta forma, que muito
da nossa presente história dos processos políticos ingleses está embasada.
Um dos mais distintos destes repórteres parlamentares foi Samuel Johnson. Uma
tarde, em 1770, assim é narrado o evento, Johnson, com um número de outras
celebridades, estava jantando em Londres. A conversa, então, transformou-se em oratória
parlamentar. Alguém falou de um famoso discurso proferido na Casa dos Comuns pelo
experiente Pitt, em 1741. Alguém mais, entre os aplausos da companhia, citou uma
passagem deste discurso como uma ilustração de um orador que tinha ultrapassado em
sentimento e beleza de linguagem os melhores esforços dos oradores da Antiguidade.
20
Walter Lippmann, Public Opinion, pp. 361-362.

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Johnson, então, que até o momento não participara da discussão, tomou da palavra. ―Eu
escrevi aquele discurso‖, ele afirmou, ―em um sótão na Rua Exeter‖.
Os convidados estavam espantados. A questão lhe foi endereçada, ―Como poderia
este discurso ter sido escrito pelo senhor?‖
―Senhor‖, disse Johnson, ―Eu o escrevi na Rua Exeter. Eu nunca estive na galeria
da Casa dos Comuns senão uma única vez. Cave tinha interesse com os porteiros; ele e as
pessoas empregadas abaixo dele foram admitidas; eles trouxeram os temas da discussão, os
nomes dos oradores, o lado que cada um deles assumiu, e a ordem em que eles se
levantaram, juntamente com as notas dos vários argumentos aduzidos no curso do debate.
A totalidade dos fatos me foi comunicada, e eu compus os discursos na forma que eles
agora dispõem nos ‗Debates Parlamentares‘, e os discursos daquele período estão todos
impressos pela Revista de Cave‖21.
Alguém se comprometeu a elogiar a imparcialidade de Johnson, afirmando que
em seus boletins ele parecia ter gerido a razão e a eloqüência com uma única para ambos
os partidos políticos. ―Isto não é de todo verdade‖, foi a réplica de Johnson. ―Eu salvei
algumas aparências toleravelmente bem; mas eu tomei o cuidado de os cães dos Whigs 22
não terem tomado a melhor‖.
Este discurso de William Pitt, preparado por Johnson na rua Exeter, por longo
tempo manteve um lugar nos livros escolares e nas coleções de oratória. Este é o famoso
discurso em que Pitt respondeu à acusação de ter cometido o ―crime atroz de ser um
homem jovem‖.
Talvez Pitt tenha pensado que pronunciou aquele discurso. De qualquer forma não
há evidência de que ele o repudiou. Devo ainda acrescentar que Pitt, se ele foi mesmo o
pioneiro, não foi o último estadista em dívida para com os repórteres por sua reputação
com orador.
O fato significativo sobre este incidente é que ele ilustra a maneira como, sob a
influência dos repórteres parlamentares, algo como uma transformação constitucional foi
efetuada na natureza do governo parlamentarista. Tão logo os oradores parlamentares
descobriram que eles estavam adereçando não apenas aos seus colegas, mas, indiretamente,
através do medium da imprensa, ao povo da Inglaterra, o caráter total dos procedimentos
parlamentares foi transformado. Através dos jornais todo o país tornou-se capaz de
participar nas discussões em que questões relevantes eram abordadas e enquadradas e a
legislação era promulgada.
Entretanto, os jornais mesmo, sob a influência das muitas discussões que eles
próprios instigavam, tornaram-se órgãos partidários. Então a imprensa de opinião cessou
de ser uma mera crônica da fofoca pequena e veio a ser o que nós conhecemos como um
―jornal de opinião‖. O editor, entretanto, não mais um mero fofoqueiro e um humilde
registrador de eventos, deu por si como a boca de um partido político, desempenhando um
papel nos processos políticos.
Durante a longa batalha pela liberdade de pensamento e de discursar no século
dezessete, o descontentamento popular encontrou expressão literária no panfleto e no
cartaz. O mais notável desses panfleteiros foi John Milton, e o mais famoso desses
panfletos foi o Areopagitica: Uma Defesa da Liberdade da Imprensa Não Licenciada,
publicada em 1646; que foi reconhecida por Henry Morley como ―a mais nobre peça da
prosa inglesa‖.

21
Michael MacDonagh, The Reporters‘ Gallery, pp 139-140.
22
De acordo com a Wikipédia, o Partido Whig foi uma agremiação partidária bastante ativa durante a metade
do Século dezenove nos EUA, logrando contar com quatro presidentes em seus quadros. Formado nos anos
de 1830, os Whigs se situavam na tradição do Partido Federalista, desempenhando, ao lado do Partido
Democrático, um papel central no Segundo Sistema Partidário dos EUA, entre os anos de 1840 e 1860.

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Quando o jornal tornou-se, na primeira parte do século dezoito, um jornal de


opinião, assumiu, assim, a função do panfleto político. A opinião, que anteriormente tinha
encontrado sua expressão em um cartaz, era agora expressa na forma de artigos editoriais
da liderança partidária. O escritor editorial, que herdou o manto do panfleteeiro, agora
assumia o papel de um tribuno do povo.
Foi no desempenho deste papel, como o protagonista da causa popular, que o jornal
capturou a imaginação da nossa intelligentsia.
Quando nós lemos na literatura política de uma geração anterior referências ao
―poder da imprensa‖, é no editor e na equipe editorial, mais que no repórter e nas notícias,
em que se está pensando. Mesmo agora, quando nós falamos da liberdade de imprensa, é à
liberdade de expressão de uma opinião, mais que a liberdade de investigar e de publicar
fatos, que está sendo aludida. As atividades do repórter, sobre as quais qualquer opinião
que é relevante em condições existentes deve provavelmente estar baseada, são mais
frequentemente consideradas como uma infração aos nossos direitos pessoais, e não como
um exercício de nossas liberdades políticas.
A liberdade de imprensa pela qual Milton escreveu a Areopagitica era a liberdade
de expressar uma opinião. ―Dê-me a liberdade‖, ele disse, ―para conhecer, para alterar, e
para argüir livremente de acordo com a consciência, sobre todas as liberdades‖.
Carlyle pensava no escritor editorial e não no repórter, quando ele escreveu:
―Grande é o jornalismo! Não é todo editor capaz um regente do mundo, sendo um
persuasor do mesmo?‖
Os Estados Unidos herdaram da Inglaterra o governo parlamentarista, seu sistema
de partidos, e seus jornais. O papel que os jornais políticos desempenharam nos processos
políticos ingleses foi reeditado na América. Os jornais americanos eram um poder com o
qual o governo britânico tinha que contar na luta das colônias pela independência. Depois
que os britânicos tomaram posse da Cidade de Nova York, Ambrose Serle, que tinha
empreendido a publicação do New York Gazette no interesse dos invasores, escreveu as
seguintes linhas para o Lord Dartmouth em consideração à imprensa política patriótica:
Entre outros mecanismos que tem levantado a comoção presente,
próximo às indecentes heranças dos pregadores, ninguém tinha uma
influência mais extensiva e mais forte que os jornais das respectivas
colônias. Admira-se ver com qual avidez os jornais são procurados, e
quão implicitamente são acreditados pelo grande massa de pessoas 23.
Aproximadamente um século mais tarde, na pessoa de Horace Greeley, editor do
New York Tribune durante a luta antiescravocrata, foi que o jornal de opinião alcançou sua
mais alta expressão na América. A América tem tido melhores homens de jornal que
Horace Greeley, muito embora nenhum, talvez, cujas opiniões exerceram tão amplamente
uma influência. ―O New York Tribune‖, afirma Charles Francis Adams, ―durante aqueles
anos era o maior fator educacional, econômica e moralmente, que este país jamais
conheceu‖.
A imprensa independente
O poder da imprensa, como representada pelo velho tipo de jornal, descansou na
análise final sobre a habilidade de seus editores de criação de um partido para liderá-lo. O
jornal de opiniões está, por sua própria natureza, predestinado a se tornar um órgão de um
partido, ou, pelo menos, um porta-voz de uma escola.
Enquanto as atividades políticas se organizavam na base da vida de uma aldeia, o
sistema partidário funcionava. Na comunidade de aldeia, onde a vida era, e ainda é,

23
George Henry Payne, History of Journalism in the United States, p. 120.

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relativamente fixa e estabelecida, o costume e a tradição forneceram a maioria das


exigências da vida diária. Em tal comunidade, onde cada desvio da rotina ordinária da vida
foi matéria de observação e comentário e todos os fatos eram conhecidos, o processo
político foi, em qualquer circunstância, uma matéria comparativamente simples. Sob estas
circunstancias, o trabalho do jornal, como um coletor e intérprete de notícia, foi, porém,
uma extensão da função na qual foi de outra forma espontaneamente organizado pela
comunidade em si como meio de contato pessoal e fofoca.
Porém, como as nossas cidades se expandiram e a vida tornou-se mais complexa,
acabaram-se aqueles partidos políticos, na ordem de sobreviverem, porém, mantendo uma
organização permanente. Eventualmente, os partidos morais tornaram-se de maior valor do
que as questões relevantes para a determinação de quais os partidos deveriam
supostamente existir. O efeito sobre a imprensa partidária foi o de reduzi-la para a posição
de uma espécie de casa sede da organização partidária. Já não mais se sabia cotidianamente
quais eram as opiniões dos jornais. O editor não mais podia ser um agente independente.
Foi sobre esta subjugada Tribune que Walt Whitman pensava quando cunhou a frase: ―o
editor capturado‖.
Quando, finalmente, as exigências dos partidos políticos, sob as condições de vida
nas grandes cidades, desenvolveram a máquina política, então alguns dos mais
independentes jornais se revoltaram. Esta foi a origem da imprensa independente. O New
York Times foi um dos jornais independentes da época, e que primeiro assinalou e
eventualmente exagerou, com a ajuda de um cartunista, Thomas Nast, o Tweed Ring, o
primeiro e mais ultrajante da maquina política que os partidos políticos deste país
produziram. No presente, há uma ruptura generalizada, particularmente por parte da
imprensa metropolitana, como distinta dos periódicos rurais, da dominação dos partidos
políticos. A lealdade partidária cessou de ser uma virtude.
Enquanto isso, o novo poder político cresceu e se enraizou na imprensa. Este poder
foi incorporado não na equipe editorial e no escritor editorial, mas nas notícias e nos
repórteres. Apesar do fato de que o prestígio da imprensa, neste período, tenha repousado
sobre o seu papel como paladino das causas populares, os antigos jornais deixaram de ser
lidos pela massa da população.
O homem comum está mais interessado em notícias do que em doutrinas políticas
ou ideias abstratas. H. L. Mencken chamou a atenção para o fato de que o homem médio
não compreende mais do que dois terços daquilo que ―vem dos lábios do orador político
médio ou dos pastores‖.
O homem comum, como o Saturday Evening Post descobriu, pensa em imagens
concretas, anedotas, fotografias e parábolas. Ele encontra dificuldades e tem preguiça de
ler jornais que contam ―estórias‖. ―Estórias de notícias‖ e ―estória de ficção‖ são duas
formas da literatura moderna que se tornaram agora bastante similares, de modo que é
algumas vezes difícil distingui-las uma da outra.
The Saturday Evening Post, por exemplo, escreve suas notícias na forma de ficção,
enquanto a imprensa diária frequentemente escreve ficção no formato de notícias. Quando
não é possível apresentar ideias na forma concreta e dramática de uma estória, o leitor
comum gosta delas estampadas em pequenos parágrafos.
É dito que James E. Scripps, fundador do Detroit News, especializado em
periódicos vespertinos em cidades satélites, construiu toda sua sequencia de jornais sobre a
base de princípios psicológicos muito simples, de modo que o homem comum poderá ler
os tópicos do jornal na razão inversa do seu comprimento. O seu método de medir a
eficiência do seu jornal, contudo, é contando o número de tópicos que ele contém. O
periódico que tiver o mais largo número de tópicos seria o mais bem elaborado. Este é

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justamente o reverso do método de Mr. Hearst; o seu jornal tem menos tópicos do que os
demais jornais.
Os velhos jornalistas estão inclinados a apresentarem um desprezo pelas notícias.
Notícias, agora, são para eles simples materiais sobre os quais se baseiam um editorial. Se
Deus permitir que coisas aconteçam que não estejam de acordo com suas concepções de
coisas enxutas, eles simplesmente as cortam. Eles se recusam a assumir a responsabilidade
de deixar os seus leitores lerem sobre coisas que eles sabiam que não deveriam ter
acontecido.
Manton Marble - que foi editor do New York World antes de Joseph Pulitzer
assumir e amarelar o jornal, - costumava dizer que não havia 18 mil habitantes na cidade
de Nova Iorque para quem um bem conduzido jornal pudesse se dirigir. Se a circulação do
jornal excedia aquela cifra, então ele pensava ocorrer algo de errado com o jornal. Antes
Mr. Pulitzer tocar o jornal para frente, a circulação tinha, com efeito, afundado para a cifra
de 10 mil leitores. O antigo New York World preservou o tipo do antigo jornal conservador
marrom da década de oitenta do século dezenove. À época, nas cidades maiores, os jornais
políticos independentes começaram a aceitar este tipo de jornal.
Muito antes do crescimento do que mais tarde foi chamado de imprensa
independente, apareceram em Nova Iorque dois jornais que foram precursores dos jornais
atuais. Em 1883, Benjamin Day, com poucos associados, iniciou um jornal através de
―mecânica e de massas em geral‖. O preço deste jornal era um centavo, porém os editores
tinham a expectativa de transformá-lo em um jornal de ampla circulação e de propaganda,
que manteria o baixo custo do mesmo. No mesmo período, os outros jornais de Nova
Iorque eram vendidos por seis centavos.
Foi, entretanto, o empreendimento de James Gordon Bennett, o fundador do New
York Herald, que organizou o andamento de uma nova forma de jornalismo. De fato, como
Will Irwin disse na maneira adequada que tem sido a escrita dos jornais americanos,
―James Gordon Bennett inventou as notícias como as conhecemos‖. Bennett, semelhante a
alguns outros, contribuiu muito para o jornalismo moderno, e foi um homem sem ilusão, e
por várias razões, talvez, um rude e cínico. ―Eu renuncio a todos os chamados princípios‖,
disse ele no seu anúncio do novo empreendimento. Porém, por princípios ele tinha em
mente, talvez, os editoriais políticos. Sua saudação foi no mesmo período uma despedida.
Ao anunciar os propósitos do novo jornalismo, Bennett deu adeus aos objetivos e às
aspirações dos antigos. Daí em diante os editores foram se tornando novos coletores de
notícias e os jornais apostaram o seu futuro sobre a habilidade da coleta, impressão e
circulação de notícias.
O que são notícias? Isto tem tido muitas respostas. Eu penso que foi Charles A.
Dana que afirmou, ―Notícias são qualquer coisa que o povo pode falar‖. Esta definição
sugere de qualquer modo os objetivos do novo jornalismo. O seu propósito foi imprimir
qualquer coisa que o povo poderia fazer, falar e pensar, para muitos outros que não pensam
até que eles comecem a falar. O pensamento significa, depois de tudo, uma espécie de
conversação interna.
A última versão desta mesma definição é que: ―Notícias são qualquer coisa que
faça o leitor dizer, ‗Gee Whiz!‘ 24‖ Esta é a definição de Arthur McEwen, um dos homens
que ajudou construir os jornais Hearst25. Esta foi também a mesma definição do último e
melhor sucedido tipo de jornal, a imprensa amarela. Nem todos os jornais bem sucedidos
foram, certamente, amarelos. O New York Times, por exemplo, não o é. Porém, o New
York Times não adota ainda um tipo comum de imprensa.

24
‗Gee Whiz‘! É uma expressão americana de surpresa ou entusiasmo [Nota do tradutor].
25
Hearst destacou-se como grande nome da imprensa marrom nos EUA.

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A imprensa Amarela26
Parece que há, como Walter Lippmann observou, dois tipos de leitores. ―Aqueles
que acham o seu próprio modo de vida interessante‖ e ―aqueles que encontram seus
próprios duelos de vida, e desejam viver a mais emocionante existência‖. Há,
correspondentemente, dois tipos de jornais: periódicos editados sobre o princípio de que os
leitores estão principalmente interessados em ler sobre eles mesmos; e periódicos que
editam sob o princípio de que os seus leitores procuram algum escape para a dura rotina de
suas vidas, e estão interessados em qualquer coisa que ofereça a eles aquilo que os
psicanalistas chamam de ―uma fuga da realidade‖.
O jornal provincial, com seu registro de casamentos, funerais, apresentação de
reuniões, jantares de ostras, e tudo o que o pequeno padrão de uma pequena cidade
comporta, representa o primeiro tipo de jornal. A imprensa metropolitana, com a sua
persistente procura de episódios sombrios da vida da cidade para o romântico e pitoresco, e
seu dramático balanço do vício e do crime, e seu incansável interesse no movimento de
personagens de uma mais ou menos mítica classe alta, representa o segundo tipo de jornal.
No último quartel do século dezenove, mais ou menos por volta de 1880, alguns
jornais, sempre nas grandes cidades, foram conduzidos com base na teoria de que as
melhores notícias que um periódico poderia publicar seriam as notícias de morte ou as de
anúncio de casamento.
À época, os jornais não tinham ainda avançado sobre os cortiços, e muita gente que
deu suporte a um jornal vivia em casas, e não em pequenos apartamentos. O telefone não
havia ainda se tornado bem comum de uso popular; os automóveis eram bens distantes e
ainda cercados pelo ineditismo; a cidade era um mosaico de pequenas vizinhanças,
semelhantes à nossa comunidade de língua estrangeira dos dias presentes, nas quais o
morador da cidade mantinha algo do provincianismo das pequenas cidades.
Grandes transformações, contudo, ocorreram. A imprensa independente já
começara a colocar contra a parede alguns dos antigos jornais. Havia mais jornais que
público leitor ou que publicitários a oferecer suporte financeiro. Nesse período e sob essas
circunstancias os homens de jornal descobriram que a circulação poderia ser bastante
aumentada ao se fazer literatura das notícias. Charles A. Dana já tinha feito isso no Sun,
mas havia ainda uma grande parte da população para quem a escrita inteligente de jovem
Mr. Dana era caviar.
A imprensa amarela cresceu em um esforço de capturar para os jornais um público
cuja única literatura disponível era a estória de familiar do periódico ou a novela barata. O
problema era o de escrever as notícias de tal modo que esta fosse apelativa às paixões
humanas fundamentais. A fórmula foi: amor e romance para as mulheres; esporte e política
para os homens.
O efeito da aplicação desta fórmula foi o enorme crescimento da circulação dos
jornais, não apenas nas grandes cidades, mas sobre todo o país. Estas mudanças foram
elaboradas sobre a liderança de dois homens, Joseph Pullitzer e William Randolph Hearst.
Pullitzer descobriu, enquanto era diretor do St Louis Post Dispatch, que a forma de
lutar pelas causas populares não era advogar por elas na página editorial, mas anunciando-
as – escrevendo-as – nas novas colunas do jornal. Foi Pulitzer quem inventou o

26
Nos Estados Unidos, segundo a Wikipédia, ―a expressão yellow press surgiu por causa do personagem
de histórias em quadrinhos The Yellow Kid, criado por Richard Felton Outcault e um dos focos da disputa
entre os jornais New York World e New York Journal American. Como as duas publicações se destacavam
também pela competição levada às últimas consequências, os críticos começaram a se referir a ambas como
imprensa amarela”.

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muckraking27. Uma espécie de jornalismo ativado por Pulitzer, em um período de seis


anos, para converter o antigo New York World, que estava morrendo por inanição quando
ele o tomou nas mãos, no mais falado, se não o jornal com mais ampla circulação na
cidade de Nova Iorque.
Enquanto isso, em São Francisco, Mr. Hearst galvanizou o antigo Examiner para
uma vida nova, tornando-o o jornal mais amplamente lido na Costa do Pacífico.
Foi sob a batuta de Mr. Hearst que a irmã solteira (sob sister) entrou em voga. Esta
é a sua história, como Will Irwin a contou no Collier‟s, em 18 de fevereiro de 1911:
Chamberlain (editor chefe do Examiner) teve a ideia de que o hospital da
cidade se encontrava muito mal administrado. Ele escolheu uma jovem
garota entre os seus filhotes-repórteres e lhe atribuiu a investigação do
caso. Ela inventou o seu próprio método; ela ‗escorregou‘ em uma
calçada, e foi levada ao hospital para tratamento. Ela escreveu a sua
estória ―com um soluço de infortúnio em cada linha‖. Este foi o começo
profissional de ―Annie Laurie‖ ou Winifred Black, e de um departamento
de escritores de jornais. Ela teve vários imitadores, porém nenhum outro
soube explorar tão bem as emoções primitivas de simpatia e piedade; ela
foi a ―escudeira‖ dela própria. Realmente, na descoberta desta simpática
―mulher escritora‖, Hearst estilhaçou a crosta daquilo que estava
procurando.
Com a experiência que ganhou no Examiner, em São Francisco, e com a grande
fortuna que herdou pai, Hearst invadiu Nova Iorque, em 1896. Isso aconteceu depois dele
chegar à Nova Iorque e iniciar o New York Journal, o jornal mais lido nos Estados Unidos
entre os jornais da imprensa amarela.
A principal contribuição de Pulitzer ao jornalismo amarelo foi o muckraking; o de
Hearst foi, principalmente, o ―jazz‖28. Os jornais deste período aplicavam a teoria de que a
sua função era a de instruir a população. Hearst rejeitou esta concepção. O seu apelo foi
dirigido não aos intelectos, mas aos corações. Para ele, os jornais tinham como primeira e
última motivação o entretenimento do público leitor.
Isto se deu no tempo em que a imprensa amarela se engajava na expansão do habito
de leitura de jornais pela massa da população, incluindo as mulheres e os imigrantes, - que,
à época, não liam jornais, - cuja atenção a sessão de anúncios começava a atrair.
A seção de anúncio foi uma criação do jornal de domingo. De qualquer modo, sem
a propaganda que o jornal de domingo oferecia, a seção de anúncio dificilmente alcançaria
a moda que obteve hoje. É importe, nesta conexão, que as mulheres liam o jornal de
domingo antes destes se terem tornado diários. As mulheres eram compradoras.
Foi através do jornal de domingo que o método do jornalismo amarelo foi, pela
primeira vez, completamente trabalhado. Os homens que foram as cabeças responsáveis
por ele foram Morrill Goddard e Arthur Brisbane. Foi ambição de Goddard fazer um jornal
que o homem comum pudesse comprar mesmo se não o pudesse lesse. Ele lançou
fotografias e ilustrações, primeiramente em preto e branco, e depois em cores. Foi no de
Sunday World que a primeira coluna sete apareceu. Seguida da seção de quadrinhos e
todos os demais dispositivos com os quais nós estamos familiarizados para atrair a atenção
de um público de leitores relutantes e cansados.

27
A idade de ouro do jornalismo nos Estados Unidos é associada ao termo muckraking. Este termo conjuga as
palavras turfa (muck) e ancinho (rake). É um termo pejorativo de onde a caneta se torna o ancinho que
revolve a turfa, - isto é, material de origem vegetal, parcialmente decomposto, encontrado em camadas,
geralmente em regiões pantanosas e também sob montanhas, - que se acumula na base da escala social por
causa dos males da alta sociedade.
28
Termo pejorativo indicando jornais com finalidade de entreter, e de matérias dirigidas aos corações.

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Após estes métodos terem sido colocados em prática pelos jornais de domingo, eles
foram introduzidos na imprensa diária. O triunfo final do jornalismo amarelo foi o Heart-
to-Heart Editorials de Brisbane, - uma coluna moralizante e de trivialidades, com meia
página de diagramas e ilustrações como reforço ao texto. Lugar comum em que a máxima
de Herbert Spencer de que a arte da escrita é a economia de atenção, foi completamente
realizada.
Walter Lippmann, em seu recente estudo sobre a opinião pública, chama a atenção
para o fato de que nenhum sociólogo escreveu um livro sobre o processo de seleção
notícias. Pareceu para ele bastante estranho que uma instituição como a imprensa, sobre a
qual esperamos muito e que tem dado tão pouco do que se espera dela, não tenha sido
ainda objeto de um estudo desinteressado.
É verdade que nós não temos estudado os jornais como os biólogos têm estudado,
por exemplo, os insetos das batatas. Porém, o mesmo pode ser dito de cada instituição
política, e o jornal é uma instituição política tanto quanto Tammany Hall ou a câmara de
vereadores são instituições políticas. Nós temos resmungado sobre as nossas instituições
políticas, e algumas vezes nós temos procurado por certos dispositivos mágicos legislativos
para exercitar e expelir os demônios que eles possuem. De forma geral, nós temos nos
inclinado a considerá-los como sagrados e a tratar qualquer crítica fundamental sobre os
jornais como uma espécie de blasfêmia. Se as coisas caminhavam erradamente, não as
instituições, mas as pessoas eleitas para conduzi-las, e uma natureza humana incorrigível,
eram apontadas como as falhas em questão.
Qual, então, seria o remédio para a condição real dos jornais? Não há remédio.
Humanamente falando, os jornais presentes são aquilo que eles são. Se os jornais têm
melhorado, pode ser por causa da educação da população e da organização de uma
informação política e da inteligência. Como Mr. Lippmann bem disse, ―a quantidade
atualmente registrada de fenômenos sociais é pequena, os instrumentos de análise são crus,
e os conceitos frequentemente vagos e pouco críticos‖. Nós temos melhorado nossos
registros e esta tem sido uma tarefa séria. Porém, antes de tudo, nós aprendemos a olhar
objetivamente para a vida política e social e cessado de pensar sobre tudo em termos
morais! No caso, nós temos menos notícias, mas melhores jornais.
A razão real pela as justificativas ordinárias que os jornais comuns oferecem dos
incidentes da vida cotidiana são tão sensacionais, é porque nós conhecemos tão pouco da
vida humana que nós não somos suficientemente hábeis para interpretar os eventos da vida
quando os lemos. É seguro dizer que quando alguma coisa nos choca, nós não a
compreendemos.

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LOPES, José Rogério & PEREIRA, Ângelo Moreira. Patrimônio cultural, turismo e desenvolvimento
local: Estudo de caso da Cidade Velha, ilha de Santiago, Cabo Verde. Sociabilidades Urbanas – Revista
de Antropologia e Sociologia, v.1, n.2, p. 45-60, julho de 2017. ISSN 2526-4702.
Artigo
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

Patrimônio cultural, turismo e desenvolvimento local: Estudo de caso da


Cidade Velha, ilha de Santiago, Cabo Verde29

Cultural heritage, tourism and local development: Case study of the Cidade Velha, Santiago Island,
Cape Verde

José Rogério Lopes


Ângelo Moreira Pereira
Resumo: O artigo objetiva debater o impacto do turismo no desenvolvimento de Cabo Verde,
África, centrando oestudo na valorização do patrimônio cultural da Cidade Velha, Patrimônio
da Humanidade. O Governo do país tem investido na promoção do turismo com o propósito de
atrair investimentos externos e para o desenvolvimento da sua população. Tal investimento
segue as tendências do frame contemporâneo do turismo, organizado na singularidade e
diferenciação dos lugares. Nessa perspectiva, se descreve e analisa os agenciamentos
operadosno desenvolvimento das infraestruturas turísticas em Cidade Velha, buscando
reconhecer os seus impactos na vida dosmoradores. A investigação envolveu análise
documental e incursões etnográficas, nas quaisforam realizadas entrevistas
semiestruturadascom atores da comunidade.As conclusões indicam um descompasso nos
propósitos do projeto de desenvolvimento local, gerado pela tensão entre os agenciamentos
turísticos e as condições precárias de vida da população. Palavras-chave: cidade velha,
patrimônio cultural, turismo, desenvolvimento.

Abstract: The article aims to discuss the impact of tourism on the development of Cape Verde,
Africa, focusing the study on the enhancement of the cultural heritage of the Cidade Velha
(Old City), a World Heritage Site. The government of the country has invested in promoting
tourism in order to attract foreign investment and the development of its population. This
investment follows the trends of contemporary tourism frame, organized the uniqueness and
differentiation of places. In this perspective, it describes and analyzes the agencies operated in
the development of tourism infrastructure in the Cidade Velha, seeking to recognize its impact
on the lives of residents. The investigation involves document analysis and ethnographic raids,
in which were carried out semi-structured interviews with community actors. The findings
show a gap in local development project purposes, generated by the tension between the tourist
assemblages and the precarious living conditions of the population. Keywords: Cidade Velha,
cultural heritage, tourism, development

Cabo Verde é uma República insular localizada na costa ocidental africana, cerca
de 500 km do Senegal, formada por dez ilhas, sendo somente nove delas habitadas30. As
ilhas encontram-se divididas em dois grupos: o de Barlavento (a Norte), composto pelas
ilhas de Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia, S. Nicolau, Boavista e Sal; e as ilhas do
Sotavento (a Sul), com Santiago, Fogo, Brava e Maio, além dos ilhéus não habitados.
29
Os autores agradecem à CAPES o financiamento da bolsa de Mobilidade Internacional que possibilitou a
pesquisa cujos dados parciais são aqui analisados.
30
―O arquipélago ocupa uma superfície de 4033 km², tendo sido encontrado no século XV‖ (PIRES, 2007, p.
23). Das dez ilhas que compõem o arquipélago, somente as ilhas do Sal, da Boa Vista e de Maio são planas.
As demais têm uma topografia de montanhas acentuadas, com formações de escarpas rochosas ou vulcânicas
que podem chegar a 2800 m., como na ilha do Fogo, com vários vales entre elas.

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O desenvolvimento histórico do arquipélago inicia-se em 1460, com a chegada de


portugueses e a fundação da localidade denominada de Ribeira Grande (atual Cidade
Velha), na Ilha de Santiago, que se tornaria capital de Cabo Verde, no século XVI. Trata-se
da primeira cidade construída pelos portugues ao sul do Atlàntico. O desenvolvimento
posterior do país é marcado pelos ciclos das navegações colonizadoras, sobretudo pelo
tráfico de escravos e o comércio de carvão (RODRIGUES, 2011; PIRES, 2007),
implicando em constantes arranjos políticos e mercantis, devido a sua distância de Portugal
e da África (CORREIA E SILVA, 1996).Nesses arranjos, segundo Barros (2016), a
sociedade cabo verdiana passou por processos de decomposição e recomposição, entre os
séculos XVII e XVIII, vindo a configurar-se como uma colônia portuguesa periférica, de
meados do século XIX a meados do XX. O descaso de Portugal com o país gerou períodos
de fome (a chamada Fome dos 1940), desemprego e emigração em massa, e fomentou lutas
pela sua independência (CORREIA E SILVA, 2014).

Figura 1 - Localização do arquipélago de Cabo Verde ( Fonte:


http://www.africa-turismo.com/mapas/cabo-verde.htm.)
Após o processo de independência de Cabo Verde, ocorrido em 1975, o país
instituiu gradativamente os dispositivos de formação de Estado-Nação e passou a elaborar
e implementar seus planos de desenvolvimento, em consonância com sua situação
estratégica. Para além da estrutura portuária que se produziu no país, atualmente, a
República de Cabo Verde configura-se um país desprovido de recursos naturais
(minéricos) e o seu desenvolvimento é dependente de acordos internacionais que
subsidiam os investimentos para a produção de infra-estruturas locais, além das remessas
dos emigrantes31 e das divisas geradas pelo turismo.
Neste último caso, o arquipélago tem sido palco de elevado fluxo turístico, dado ao
seu potencial, constituindo um dos setores com maior dinâmica de crescimento econômico,
na medida em que contribui para a entrada de divisas, bem como para dinamizar o mercado
31
Em Cabo Verde, essa visão se reforça com a tradicional mobilidade da população. Cerca de metade da
população é de imigrantes residentes em outros países, que remetem divisas para as suas famílias. No dia
05/03/2015, a TCV (Televisão de Cabo Verde) exibiu um programa de entrevista com um demógrafo e
pesquisador local, que expôs que o percentual dessas remessas na composição do PIB do país estava em
torno de 10%, mas já representou cerca de 20%. Esses dados foram constatados também pelo DECRP-
Documento de Estratégia de Crescimento e Redução da Pobreza III (2012-2016) (Apud ORTET, 2015, p.
32).

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de trabalho e para promoção de intercâmbios culturais. O turismo representa um dos


principais eixos de desenvolvimento econômico sustentável e com efeitos
macroeconômicos importantes, sobretudo, na formação do Produto Interno Bruto (PIB) do
país. Segundo dados de um estudo promovido pela Curadoria da Cidade Velha (2014, p.
15),
Com a abertura política, os sucessivos governos assumiram o turismo
como principal veículo de desenvolvimento traduzindo-se numa maior
divulgação do destino, na melhoria das infraestruturas de suporte, geração
de emprego e aumento da contribuição para o PIB, autalmente em cerca
de 24%.
E aqui, defendendo a tese de que as populações locais constituem elementos
preponderantes para o desenvolvimento do turismo, e agentes inadiáveis na discussãode
estratégias para a definição do seu desenvolvimento e manutenção, o presente artigo tem
como objetivo debater a agência do turismo como fator do desenvolvimento de Cabo
Verde, centrando o objeto de estudo na valorização do patrimônio histórico e cultural da
Cidade Velha.
O governo da República de Cabo Verde tem investidona promoção do turismo,
desde a década de 1980, com o propósito de aproveitar as potencialidades desta cidade
como veículo para o desenvolvimento da sua população. Nesse contexto, pretende-se
analisar o modo como foram delineadas as etapas para o desenvolvimento das infra-
estruturas turísticas, tendo a preocupação de conhecer possíveis impactos na vida dos seus
moradores.
O turismo e seu frame contemporâneo: a produção das singularidades
O turismo dinâmico do mundo globalizado tem sido um dos principais instigadores
de desenvolvimento econômico e desenvolvimento local, em vários pontos do globo. Na
perspectiva de Irving et al (2005, p. 1), que analisam os significados da sustentabilidade
em planos turísticos,
o turismo apresenta a maior atividade global, com crescimento de 25%
nos últimos 10 anos. Cada vez mais pessoas têm o desejo de viajar e, as
estimativas apontam para 1500 milhões de chegadas internacionais até
2020, mais do que o dobro dos níveis atuais, com tendência crescente em
todas as regiões do mundo, com as maiores taxas previstas no
denominado ―mundo em desenvolvimento‖ […] que, em muitos países, o
turismo doméstico ultrapassa em importância o turismo internacional em
volume e receita, o que acentua ainda o impacto do turismo no cenário
global que, atualmente gera 75 milhões de empregos diretos e 215
milhões de empregos indiretos, o que se traduz em US$ 4.218 bilhões de
produto global e 12% da exportação internacional.
Este acentuado crescimento da atividade turística tem caracterizado o tempo atual
como aquele de maiores deslocamentos de pessoas pelo planeta, fato favorecido pelas
transformações aceleradas dos meios de transporte e comunicação,desde a passagem do
modo de regulamentação fordista para o de acumulação flexível. Segundo Harvey (1992,
p. 140),o modo de regulamentação vigente apoiou-se na ―flexibilidade dos processos de
trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e dos padrões de consumo‖, e se
caracterizou por rápidas mudanças nos padrões do desenvolvimento desigual entre regiões,
criando e incrementando a terceirização e o desenvolvimento industrial de regiões antes
desprovidas destas atividades. Este novo modo de regulamentação enfatiza a rapidez na
solução de problemas e nas respostas especializadas que atendem às mudanças rápidas no
consumo (mudança de giro na produção x giro no consumo), gerando uma ―compressão do

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espaço-tempo‖ na vida social.Assim, as maneiras predominantes e simultâneas pelas quais


experimentamos o tempo e o espaço vêm gerando mudanças profundas nas práticas
culturais, políticas e econômicas, sejam elas globais ou localizadas, com repercussões nas
atividades turísticas.
E apesar de a história revelar que sempre houveram diversas formas de mobilidade
humana, importa reconhecer que, em tempos e contextos distintos, essas formas de
mobilidade produziram ―camadas de experiências e de práticas, acumuladas na história das
caminhadas dos seres humanos [gerando] uma multiplicidade de linhas que se entrelaçan
nesse evento, conferindo-lhe densidade e textura‖ (STEIL, TONIOL, 2016, p. 19).
Assim, a crescente e diversificada mobilidade contemporânea das pessoas em busca
de lugares aprazíveis para descanso e diversão, para conhecimento e auto-conhecimento, e
mesmo trabalho, está longe daqueles deslocamentos turísticos iniciais em busca de
idealizações idílicas ou utópicas, como descritos por Elias (2005).
A partir dessas referências, supomos aqui que se torna necessário, na análise das
formas sociais de mobilidade do turismo contemporâneo, apassagem de um frame
antropológico do movimento, centrado nos deslocamentos humanos aos lugares, para um
frame dos deslocamentos analíticossobre os movimentos humanos (como experiência
contemporânea) naspaisagenshabitadas pelos turistas.
Nascido do mundo moderno, o turismo originou-se na dinâmica da organização do
sistema laboral, onde as elevadas permanências em locais de trabalho traziam desconfortos
para os trabalhadores, que não encontravam momentos e tempos livres para descansar e se
divertir, algo que ganhou maior ênfase com a conquista dos direitos trabalhistas e com o
advento dos meios de transporte e comunicação, permitindo assim, maior mobilidade e
expansão da cultura de massa (MAGALHÃES, 2008). Desde então, a mobilidade no
turismo tem se expandido em todo o mundo, em busca de lugares e situaçõesque
satisfaçam o olhar dos turistas, cada vez mais exigentes (URRY, 1996).
Tendoo lazer e o consumo como mediações predominantes, esta agência do turismo
tem gerado grandes responsabilidades por parte dos países receptores na garantia da sua
sustentabilidade, na criação de condições hospitaleiras para os visitantes e na participação
das comunidades locais nesta dinâmica, constituindo sinergias entrea comunidade local,
por um lado, conhecedora da sua realidade e principal gerenciadora da paisagem turística
e, por outro, os gestores públicos, no desenho de políticas capazes de refletir no
melhoramento da qualidade de vida das populações e na garantia da autenticidade dos
lugares, principal marca do turismo cultural (GRABURN, 2008; YÁZIGI, 2001).
Analisando o turismo e os turistas no mundo moderno, Fortuna e Ferreira (1996)
contribuem com essa compreensão, ao debaterem o lugar das imagens, do estético e do
visual na compreensão do turismo nos dias de hoje, trazendo desafios para a salvaguarda
da ―autenticidade dos lugares‖. Para os autores,
[...] o domínio da imagem e do visual no contexto da cultura moderna
corresponde a uma forma particular de representar o espaço e o tempo.
Ao reduzir o mundo à sua representação visual, a modernidade implica a
contínua espetacularização da sociedade, da cultura, da natureza e da
própria história (FORTUNA, FERREIRA, 1996, p.6).
Seguindo essa elaboração, poderíamos afirmar que os diferentes destinos turísticos
não se distinguem somente pelos serviços e estruturas de lazer que proporcionam, senão
que o fazem pela diferenciação que projetam de uma paisagem turística, como um lugar
singular a ser habitado. E como as definições clássicas de lugar sempre foram insuficientes
para o entendimento e para o planejamento nas escalas do cotidiano e do turismo, Yázigi
(2001) elaborou uma revisão do conceito, em sua relação com a concepção de identidade,

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de forma a firmar a produção da ―singularidade dos lugares‖, como preservação, e partir da


contribuição da fisionomia geográfica local para a construção de uma personalidade:
Reconheço o lugar como uma arrumação que produz o singular, mas
estimo que de modo algum se poderá entendê-lo ou trabalhá-lo sem a
consideração da extensão de seus sistemas. Ele tem uma personalidade
sim, mas não é sujeito. [...]
a questão estaria em se buscar manter os traços ditos naturais, o mais
próximo possível de suas formas originais, numa perspectiva bastante
preservacionista, de forma que uma montanha sempre fosse percebida
como tal, assim como a forma de um rio, a fauna ou até o clima – mesmo
sabendo que suas configurações e significações mudam. Trata-se de
resistir (YÁZIGI, 2001, p. 38 e 40).
Assim, para além de mero dispositivo a ser consumido pela indústria do turismo, a
singularização dos lugares se produz pelos agenciamentos32 dos atores envolvidos nessa
arrumação, incluindo os turistas. E essa arrumação também singulariza espaços construídos
das cidades turísticas, segundo Fortuna e Ferreira (1996, p. 7-8): ―é na minúcia do
exemplar histórico e monumental da cidade, nas suas ruínas e edifícios decadentes, na
exemplaridade histórico-temporal da sua arquitectura, que se vislumbram hoje os traços da
sua singularidade‖.
Com isso, os monumentos históricos e patrimoniais das cidades, sejam eles
expostos como sítios preservados de edicações, sejam expressos em ruínas e vestígios
deixados pelo passado, constituem importantes investimentos a serem feitos para atrair
grandes fluxos de turistas interessados nos produtos singulares dos lugares e, por sua vez,
estes lugares precisam de avultados investimentos em um espírito de sinergia entre as
comunidades locais, os governos e os mercados turísticos, com vista a garantir o seu
potencial e contribuir para a sua crescente procura turística, preservando as potencialidades
locais e agenciando o desenvolvimento das populações.
Nesse sentido, o planejamento turístico em Cabo Verde está atualizado com o
frame contemporâneo:
O diferencial de cada destino reside na sua capacidade de oferecer
produtos singulares capazes de satisfazer os diferentes segmentos da
procura. Neste particular, Cabo Verde não é exceção,posicionando-se
com o seu clima, as praias, a história, a cultura e a ―morabeza‖ das suas
gentes, como fatores diferenciadores (CURADORIA DA CIDADE
VELHA, 2014, p. 8).
Porém, a mobilidade turística que visa o aproveitamento das potencialidades
culturais tem sido também compreendida por diferentes pesquisadores como uma instância
marcada pelo jogo político e por um tipo de consumo pautado pelo espetáculo, onde
poucos ganham, tornando a cultura um recurso mercantilizado, com a finalidade de
satisfazer os fins econômicos do turismo e onde as populações locais não participam dessa
dinâmica, constituindo assim momentos privilegiados para a não garantia da sua
sustentabilidade e desenvolvimento. Segundo Figueiredo (2005, p. 46):

32
A noção de agenciamento segue a concepção esboçada por Yúdice (2006): trata-se de identificar atores que
agenciamrecursos identitários recuperados de uma ―reserva disponível‖ nas trajetórias comuns de suas
formações culturais, em diálogo com modelos culturais (estatais ou de mercado) predominantes na sociedade
globalizada.Esse predomínio se expressa na configuração de um campo de forças performativas a
condicionara ação dos atores que, por vezes, imprimem uma dinâmica de operar agenciamentos nos
intervalosdaqueles modelos.

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nas sociedades contemporâneas a atividade turística aparece como um


novo elemento que se insere na dinâmica cultural e por conseguinte vai
influenciar na produção discursiva e na utilização deste patrimônio.
Tendo as peculiaridades locais (a diferença) como atrativos turísticos,
esta atividade abre a possibilidade do desenvolvimento da alteridade e da
sustentabilidade da comunidade envolvida como também para a
mercantilização do patrimônio, de tal forma que este se torne basicamente
um local para o consumo turístico, desterritorializado, a ser explorado por
poucos.
Ora, para que haja a sustentabilidade turística e um maior aproveitamento das
potencialidades culturais, considera-se de crucial relevância que se desenvolvam políticas a
longo prazo que venham envolver as populações na conservação das potencialidades
locais, fazendo com que essa participação sirva para o seu bem-estar e afirmação. Isso
significa para a população prevenir distorções nas representações sobre os elementos
patrimoniais e garantir que os benefícios provenientes da atividade sejam experimentados
por um maior número de pessoas (FIGUEIREDO, 2005). Neste caso, convém analisar um
pouco os impactos doturismo na Cidade Velha e na vida da comunidade local.
As agências do turismo sobre o patrimônio da Cidade Velha
A Cidade Velha é uma localidade beira-mar que se situa no município Ribeira
Grande de Santiago, a 15km a oeste da cidade de Praia, atual capital de Cabo Verde.
Segundo o Censo cabo verdiano de 2010,possuía1.214 habitantes. Porém, quando somados
os habitantes das 19 localidades que integram o município, o número total de habitantes
chega a 8.315 (CURADORIA DA CIDADE VELHA, 2014, p. 21).
O sítio patrimonial da cidade (Zona Protegida) abriga edificações da primeira
capital da Ilha de Santiago e de Cabo Verde (Cidade de Ribeira Grande), datadas do século
XV ao XVIII, e está cercada por duas localidades que constituem a Zona Tampão do seu
processo de patrimonialização: Salineiro e Calabaceira.
A praça central ainda exibe o Pelourinho do período da escravidão e, pelas suas
ruas centrais (Rua de Banana e Rua Carrera) e secundárias, casas edificadas com pedras
centenárias permitem reconhecer o estilo arquitetônico original de sua fundação e outros
estilos edificados em sua história. Como descrito por Pires (2007), trata-se de uma cidade
que acumula cinco séculos de territórios sobrepostos, em um arranjo híbrido de concepções
urbanísticas33. A Fortaleza Real de São Felipe, no monte que costeia a cidade, e as ruínas
da Igreja da Sé e do Palácio Episcopal, em um monte lateral à baía da Praça, são
referências centrais, assim como a Igreja de N. Sra. do Rosário, algumas ruas adentro do
sítio original, no bairro São Pedro, ou as ruínas da Casa de Misericórdia, antigo hospital
localizado na Rua Direita.

33
Essa afirmação refere-se aos impactos das recentes expansões urbanas na paisagem da cidade, uma vez que
a Cidade Velha passou por planos de ordenamento urbano, em seu desenvolvimento, como mostrou Pires
(2007). Esses planos se estruturaram, desde a passagem do século XV para o XVI, no programa de
reordenamento e modernização da cidade de Lisboa, com o progressivo abandono do estilo manuelino e a
aplicação de princípios urbanísticos racionais que encontram suporte nos elementos espaciais e tipológicos.
Seguindo esses princípios racionais, segundo Pires (2007, p. 47): ―Os efeitos de ordem, ritmo e medida são
alcançados através do alinhamento de fachadas, repetição de vãos contínuos e outros elementos construtivos.
Nota-se a passagem do tipo de pensamento bidimensional para o tridimensional em que é acentuada a
proporcionalidade entre a frente, a profundidade do lote e a altura do objeto‖. Ainda segundo o autor, esses
princípios racionais produzirm normas e posturas urbanísticas que os portugueses utilizaram nos ―territórios
do Atlântico ao Índico, onde, evidentemente, na prática, esses princípios serão objeto de adaptações para
cada caso gerando, assim, a originalidade e a flexibilidade, características do modo português de fazer
cidades‖ (Idem).

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Figura 2: Rua de Banana, com edificações de sua fundação (Arquivo dos autores, 2015).

Figura 3: vista da praia de Cidade Velha, com ruínas ao fundo (Arquivo dos autores, 2015).

Figura 4: Fortaleza Real de São Felipe (Arquivo dos autores, 2015).

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Figura 5: Ruínas da Catedral da Sé (Arquivo dos autores, 2015).

Figura 6: Igreja de N. Sra. do Rosário (Arquivo dos autores, 2015).


O sítio patrimonial da Cidade Velha está passando por revisões e foi implantado,
em 14/03/2015, um projeto que visa garantir sustentabilidade econômica ao mesmo, mas
que acirrou um ambiente de debates entre a Câmara Municipal do Concelho de Praia, o
IPC-Instituo do Patrimônio Cultural, o Ministério da Cultura e a população local.
A pequena localidade é extremamente acolhedora e contém registros de
personagens e atividades econômicas que marcaram os ciclos históricos do país e da
cidade, como os navegadores Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral e Cristóvão Colombo,
o jesuíta Antônio Vieira, o cientista Charles Darwin, além de piratas famosos que pilharam
a cidade, entre os séculos XVI e XVII.Pelo seu porto passaram caravelas transportando
escravos da África para outras partes do mundo, designadamente Europa e continente
americano, transformando-se num importante palco de troca e comercialização de escravos
(CORREIA E SILVA, 2014; PIRES, 2007). Os escravos passavam por Cabo Verde através
de um processo de ladinização e, posteriormente, eram transportados para os seus destinos.
Essa transitoriedade, porém, foi suficiente para promover relações inter-raciais que
constituíram a primeira sociedade crioula. Daí a Cidade Velha se revestir de grande
importância histórica para a humanidade.

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O desenvolvimento singular da então Ribeira Grande de Santiago foi caracterizado


pela sua localização geoestratégica, dos séculos XV ao XVII, tornando-se um importante
entreposto no comércio internacional. Todavia, esse desenvolvimento conhece uma franca
decadência, no século XVIII, devido ao surgimento de outras potências marítimas, como
França, Inglaterra e Holanda, e aos sucessivos ataques de piratas e corsários:
Os alvos visados pelos piratas, eram inicialmente os navios acostados nos
portos, para depois passarem a perpetrar ataques às vilas pilhando tudo e
criando terror entre os seus habitantes. Esses ataques eram praticados em
todas as ilhas habitadas do arquipélago, o que provocava uma sensação
generalizada de insegurança em toda a área (PIRES, 2007, p. 62).
A insegurança dos ataques, entre a população, era acrescida pela percepção de que
a Baía da Ribeira Grande não proporcionava condições satisfatórias para defesa da cidade.
Assim, buscando uma baía mais segura, em finais de 1769 ―a sede do Bispado e o governo
é transferida para a Vila de Praia, que assume a categoria de cidade em 1858‖
(CURADORIA DA CIDADE VELHA, 2014, p. 18). Essa mudança marca a derrocada da
Ribeira Grande, quese torna a Cidade Velha.
Durante o restante de seu período colonial, a cidade mantém-se no ostracismo.
Após a independência de Cabo Verde, os governos nacionais começam a elaborar seus
planos de desenvolvimento, incluindo o potencial turístico do arquipélago como opção
estratégica de atração de investimentos. Assim, em 1980, uma missão da UNESCO visita o
país para auxiliar a inventariar o patrimônio cultural local e inclui a Cidade Velha como
um referente central desse estudo.O processo de patrimonialização cultural que envolveu
esse sítio, assim como outros de Cabo Verde, iniciou com um levantamento realizado por
Lopes Filho (1981), visando otimizar esses patrimônios para o desenvolvimento da
indústria do turismo no país34.
O reconhecimento do potencial turístico da Cidade a reinscreve progressivamente
na agenda política do país. Após os primeiros estudos e investimentos aplicados na
restauração de seu sítio histórico, a localidade é classificada como Patrimônio Nacional
(Decreto nº 119/1990, de 08 de dezembro) e se torna objeto de uma cooperação
internacional entre Cabo Verde, Espanha e Portugal, para a recuperação e o restauro de
suas edificações históricas e a preservação de seu entorno natural, como o Vale da Ribeira
Grande de Santiago, propício para turismo de natureza.
Na sequência dessa reinserção, a cidade volta a integrar uma outorga municipal, o
Município da Ribeira Grande de Santiago (Decreto-Lei nº 63/VI/2005, de 09 de maio)
conjuntamente com a reconstituição do seu Concelho Municipal35 e, em 2006, através de
um contrato de concessão com o Estado de Cabo Verde, a empresa espanhola Proim-Tur
assume a administração do sítio patrimonial da Cidade, encarregada da manutenção e do
desenvolvimento do turismo cultural nesta localidade.
O conjunto dos agenciamentos que se inscrevem na trajetória posterior da Cidade
Velha culminam na elaboração de um dossiê de candidatura da mesma a Patrimônio da
Humanidade, reconhecimento que é atribuído pela UNESCO, em junho de 2009. No
mesmo ano do reconhecimento, o governo do país lança seu ―Plano estratégico do
desenvolvimento turístico de Cabo Verde‖, elaborado pelo Ministério do Turismo,
Indústria e Energia. Neste Plano, o governo do país elaborou um programa que ―pretende
transformar a cultura num recurso estratégico dando especial atenção a valorização do
34
Desde o estudo de Lopes Filho, a Cidade Velha tornou-se um laboratório para implementação das políticas
de turismo cultural no país. Daí a correlação que se busca estabelecer entre o caso estudado e os dados do
turismo em Cabo Verde, em alguns momentos do artigo, sem a pretensão de generalizar a análise.
35
O Concelho Municipal é a instância geopolítica de governo local, em Cabo Verde, que pode incluir mais de
uma cidade. Já as cidades são administradas pelas Câmaras Municipais.

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património cultural e de uma rede de lugares de memória, tendo como centro a Cidade
Velha‖ (CURADORIA DA CIDADE VELHA, 2014, p. 20). Assim, a Cidade torna-se o
núcleo de um conjunto de outros lugares atrativos do país, conectados por ligações
históricas e objetivando alavancar o turismo cultural.
Ocorre que, nesse processo para elevação da Cidade Velha à categoria de
patrimônio histórico da humanidade, segundo Santo (2008), vários foram os olhares e
políticas em torno da construção das infra-estruturas turísticas e a sua divulgação pelo
mundo, tornando-aum produto mercantilizado, onde os fins patrimoniais, turísticos e
identitários se tornaram alvos de sucessivas apropriações, consoante interesses específicos
que, ao fim e ao cabo, valorizam esse patrimônio espectacularizando-o, em busca de
resultados econômicos. Essa concepção é reproduzida, parcialmente, no estudo que a
Curadoria da Cidade Velha promoveu, sobre os impactos do turismo na cidade, entre os
anos de 2009 e 2013. O estudo promoveu uma ampla consulta entre moradores do sítio
histórico da cidade, moradores da Zona Tampão, operadores locais de turismo e
representantes institucionais, que avaliam positivamente o potencial da Cidade Velha para
a promoção do turismo, destacando ―a valorrização e preservação do património cultural‖,
―a melhoria da imagem do destino Cidade Velha‖, ―a melhoria das infraestruturas de
suporte turístico‖ e ―a melhoria da acessibilidade‖ (CURADORIA DA CIDADE VELHA,
p. 60, 64, 67. 69). Por outro lado, o mesmo estudo destacou, entre os consultados, que esse
potencial ―não aumentou as oportunidades de emprego para os jovens‖, ―não tem atraído
mais investimentos ao local‖, ―não melhorou a qualidade de vida e a auto-estima da
população‖, ―não aumentou a renda das famílias‖ e ―não incentivou o empreendedorismo
cultural‖ (CURADORIA DA CIDADE VELHA, p.60, 64, 67. 69).
O desnível dos resultados apresentados pelo estudo dos impactos do turismo na
cidade é interpretado, no documento, por um descompasso entre a realidade
socioeconômica dos moradores da cidade e o incremento dos investimentos nas
infraestruturas turísticas. Segundo o estudo,
30% do total dos residentes tem menos de 15 anos, contrariando a regra
nos centros e sítios históricos onde a população é majoritariamente idosa.
[...] o nível de escolaridade ainda é muito baixo [...] Os agregados
familiares são numerosos [...] O município da Ribeira Grande encontra-se
ente os mais pobres do país. Cidade Velha não foge a regra do município,
embora próximo da capital do país [...] Asatividades do sector primário
como: pesca, agricultura, silvicultura e pastorícia são o principal meio de
subsistência das famílias [...] o nível de rendimento é muito baixo
(CURADORIA DA CIDADE VELHA, 2014, p. 21-22).
Frente a esta realidade e considerando os investimentos nas infraestruturas
turísticas, o estudo conclui:
[...] o turismo não fomenta o desenvolvimento local, quando o destino
apresenta inúmeras debilidades socioeconómicas, como é o caso da
Cidade Velha. {...] esta enfrenta inúmeras fragilidades, nomeadamente a
nível urbanístico e saneamento, que condicionam o nível de vida dos
residentes, interferindo de certo modo, na apreciação que fazem do sector
igualmente no contributo deste no processo de desenvolvimento
(CURADORIA DA CIDADE VELHA, 2014, p. 71).
Assim, o documento sugere que as condições precárias da população local inibem o
desenvolvimento de capacidades e habilidades dos moradores para sua inserção no novo
modelo de desenvolvimento implantado pelo avanço dos investimentos turísticos. Ocorre
que outros fatores descritos no estudo foram desconsiderados nessa avaliação dos impactos
do turismo na Cidade. Sobretudo, queremos ressaltar aqui dois deles, que são interligados:

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os investimentos estrangeiros nas infraestruturas turísticas locais e a baixa participação da


comunidade local nos processos de patrimonialização e de planejamento turístico.
O primeiro fator produz impactos diretos na administração das atividades turísticas,
uma vez que os investimentos são orientados por interesses mercantis. Assim, o estudo
promovido pela Curadoria da Cidade Velha relata que, depois que a empresa espanhola
passou a administrar as atividades patrimoniais e turísticas locais (2009), ―as estatísticas
dos principais estabelecimentos de alojamentos demonstram que até 2011, quase metade
dos hóspedes foram nacionais. [...] A partir de 2012 regista-se uma inversão desta
tendência. Os portugueses passaram a representar a maior percentagem de hóspedes‖
(CURADORIA DA CIDADE VELHA, p.34). Segundo o estudo, a percentagem de
nacionais que se hospedavam na Cidade caiu, em 2012 e 2013, para 27% e 13,6%,
respectivamente, enquanto subiram os percentuais de estrangeiros proporcionalmente 36.
Nesta busca dos turistas estrangeiros à Cidade Velha, verificamos que poucos
atores locais participam dessa dinâmica. Por um lado, os turistas nacionais reduziram seu
tempo de visita à Cidade e são poucos os agentes locais capacitados ou que recebem
incentivos para se inserirnas atividades turísticas. Segundo Cardoso (2012, p.17),
Os nacionais procuram a Cidade Velha durante o fim-de-semana e
aproveitam a visita para procurar serviços de restauração e para visitar os
monumentos. Por sua vez, os visitantes internacionais, na maioria,
chegam sem guias turísticos para visitar os monumentos e, poucas vezes,
procuram os serviços de restauração e de alojamento. Dada a falta de
informação compram ―souvenirs‖ que nada tem que ver com Cabo Verde,
aos comerciantes dos países da costa ocidental africana.
Por outro lado, os investimentos estrangeiros acabam incorporando operadores e
agentes turísticos de fora da comunidade, e do país, com a justificativa da ausência de
capacidades entre os moradores locais. Esse fato é criticado pelos moradores, segundo
entrevistas que realizamos na Cidade, em abril de 201537:
Aqui não temos nenhum guia turístico que é da comunidade, salvo um
senhor da comunidade que dá algumas informações aos turistas, mas ele
agora trabalha na Câmara. Eu acho que isso é mal porque deveríamos ter
guias turísticas da comunidade preparados para este efeito e, com tudo
isso, o que mais me atormenta é poder ver um guia turístico que não é
daqui a dar informações erradas da Cidade Velha aos turistas, e é
lamentável quando deparamos com turistas que vêm nos perguntar onde
fica situado a Igreja São Francisco e nós acompanhamos os guias para
poder apresentar aos turistas (Homem, 33 anos, comerciante, morador da
Rua de Banana).
Assim orientado, o desenvolvimento turístico da Cidade Velha cresce,
gradativamente, produzindo uma paisagem habitada de maneira precária pela população
local, mas atravessada por fluxos de investimentos internacionais orientados para turistas

36
Quando comparados esses dados aos nacionais, vê-se que o fluxo turístico na Cidade Velha segue uma
tendência. Assim, utilizando dados de 2010 do Instituto Nacional de Estatística-INE de Cabo Verde, sobre o
fluxo de turistas no país,Cardoso (2012a, p. 15) afirma que ―O principal mercado emissor continua a ser o
Reino Unidoresponsável por 26,1%dosturistas, seguido da Alemanha, Portugal e Itáliacom 15,8%, 12,8% e
11,9% dasdormidas, respetivamente‖.
37
Durante os meses de março e abril de 2015, os autores realizaram três incursões etnográficas na Cidade
Velha, para observar a dinâmica da vida cotidiana da população e suas interações com turistas, e 10
entrevistas com moradores das ruas centrais da Zona Protegida. As entrevistas foram realizadas em Crioulo e
traduzidas ao português. Esses dados compuseram um projeto de investigaçãoem parceria com pesquisadores
da UniCV - Universidade de Cabo Verde, no quadro do Edital CAPES/AULP de Mobilidade Internacional-
2013.

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estrangeiros. Esse descompasso dificulta a inserção dos moradores locais na dinâmica do


desenvolvimento, mas isso não se constitui o único fator da baixa participação da
comunidade nos processos implementados nesse contexto.
Segundo relatos de moradores locais, a devida participação das pessoas da
localidade na dinâmica turística fica muito comprometida na medida que os gestores locais
os veem apenas como cuidadores dos edifícios, e não, como principais geradores de
atividades que venham a melhorar a sua qualidade de vida.
Eu tive 8 anos a trabalhar com a cooperação espanhola na construção das
pousadas e quando o trabalho chegou ao fim eles juntaram com os
sindicatos e nos deram 20.000 escudos de indenização. Nós reclamamos
mas não temos aonde ir porque os mais poderosos ―grandes‖ reuniram,
como é que conseguimos fazer alguma coisa?
Eu vejo o turismo como uma coisa boa mas nós não ganhamos nada com
isso. Aqui não há formação de pessoas que falam línguas estrangeiras.
Nunca deram alguma formação de línguas. Num lugar que se diz
património e centro do turismo mas não há formação de línguas e ficamos
sem compreender nada de que os turistas estão falando, daí tudo fica
difícil (Homem, agricultor, 38 anos, morador da Zona Protegida).
Eles não falam com as pessoas quando querem fazer alguma coisa. Eles
reúnem entre eles e fazem as reuniões. Há dias fizeram uma festa sobre a
questão do patrimônio e trouxeram alguma atividade com muitas coisas
de loucura sobre cultura e patrimônio. Muitas pessoas não aderem porque
não é a nossa atividade, a nossa atividade é outra e aquilo que fizeram é
deles. Se trata da cultura, mas não aceitamos que venhas nos mostrar uma
coisa que não vives.O IPC poderia nos dar uma formação em línguas
estrangeira, por exemplo, podes ir àIlha do Sal e muitas pessoas falam
inglês, até mesmo crianças. Eu não digo que não há, mas eu não conheço
guias turísticos que são daqui (Jovem, 25 anos,desempregado, morador
da Rua Carrera).
Sobre o projecto que criaram na Cidade sobre a inclusão cultural eu ví na
televisão, mas não há nenhuma socialização com a comunidade e às
vezes eu vejo carros entrando por aqui e as pessoas dizem que se trata de
reuniões no convento, mas não sei do assunto que estão tratando e eles
nunca nos convidam porque são reuniões apenas para ―gentes finas‖
(Jovem, 24 anos, estudante desempregada, moradora da Rua Carrera).
Outra questão em debate, desde 2009, que restringe a particpação da comunidade
na Cidade Velha, diz respeito aos requisitos para salvaguardar suas edificações e
singularidadespatrimoniais, outorgadas pelo Regulamento Orgânico da Câmara Municipal
da Ribeira Grande. Segundo Cardoso (2012a, p. 7), o embate se assenta na definição de
dois procedimentos:
- Qualquer trabalho ou obra que tiver por objeto modificar o estado dos
imóveis está sujeito a autorização nas condições e formas previstas na
respetiva licença de construção. Essa autorização só pode ser concedida
se os trabalhos ou obras se conformarem e estiverem em consonância
com o plano de salvaguarda e de valorização de Cidade Velha.
- Os pedidos de autorização para a realização de trabalhos ou obras, tendo
por objeto a modificação do estado dos imóveis situados em zonas
protegidas abrangidas pelo plano de salvaguarda e valorização, são
dirigidos aos órgãos municipais competentes do local do imóvel, que os

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comunicará obrigatoriamente aos serviços centrais do património cultural


– o Instituto Nacional do Património Cultural de Cabo Verde.
Frente a tais normativas e procedimentos, as reações da comunidade local são
relacionadas

Há muitas pessoas que já abandonaram os seus terrenos e casas quase


prontas porque são constantemente bloqueados quando tentam fazer
algum trabalho (Jovem, 25 anos,desempregado, morador da Rua Carrera).
Desde que nasci, vivi na Cidade Velha, nesta casa na Rua da Banana. Eu
não tive problemas na construção da minha casa porque basta seguir os
seus parâmetros (da Câmara e do IPC), eles não têm nada de impedir.
Como a minha casa é de palha, eu recebi o apoio da Curadoria com a
cobertura. Eles apoiam, mas sem muitas condições, se querem que
moramos em casa de palha eles têm de nos dar condições a nível interno
(Mulher, 45 anos, reconstruiu casa que sofreu incêndio na Rua de
Banana).
Agora nós somos obrigados a colocar telhas na nossa casa e às vezes não
nos dão condições para tal. Nós não estamos num mundo onde podemos
construir casas com essas exigências, porque as pessoas podem atirar
pedras e quebrar as telhas e se de facto estão exigindo isso eles precisam
criar condições e distribuírem telhas para que os jovens possam seguir
essas exigências, as ajudas neste sentido são mínimas (Homem,
agricultor, 33 anos, morador da Rua Carrera).
Assim, as dificuldades geradas pelas condições precárias da população têm causado
perenes inquietações e desconfortos. Fazendo uma análise dos confrontos entre a
população e os gestores locais na salvaguarda das suas autenticidades, Cardoso (2012, p.
29) destaca que
Lamentavelmente é notável o abandono das casas na Rua Banana devido
aos requisitos aplicados aos residentes pelo IPC e pela CMRGS. Essas
exigências podem beneficiar os visitantes, uma vês que poderão
visualizar as casas com os traços tradicionais, contudo, quem lá vive sofre
diariamente. Assim, é urgente uma visão pragmática da realidade que se
vive em Cidade Velha e dar maior atenção ao que foi acordado com a
UNESCO, nomeadamente melhorar a qualidade de vida das populações,
promover um desenvolvimento económico sustentável, promover o
património histórico e cultural, encorajar a implicação dos habitantes e da
democracia participativa, administração local eficaz e transparente e
finalmente, promover a rentabilidade e o desenvolvimento sustentável do
meio ambiente.
Dessa forma, os arranjos de singularidades e diferenciações que os agenciamentos
turísticos produzem na Cidade Velha fazem oscilar as representações de autenticidade e
identidade locais. As concepções locais de autenticidade, partilhadas entre atores do poder
público,da população, e turistas, assentam-se em registros materiais e imateriais da
antiguidade ou fundação da cidade (sua origem e preservação), enquanto as concepções de
identidade são amplamente reconhecidas pela população como registros derivados de suas
ações, tradicionais ou não, pela imersão na rede de relações que se forma em torno do
patrimônio, na experiência cotidiana com os cuidados de sua sobrevivência (sua
manutenção ou privação).

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Considerações finais
O turismo, como se tem debatido atualmente, exige por um lado conjuntos de
condições em vários níveis para o bem-estar e acolhimento dos turistas, e por outro, tem
suscitado perenes inquietações e debates em torno da sua sustentabilidade e do
envolvimento das comunidades no seu desenvolvimento e na valorização das
potencialidades locais. Nesse sentido, considera-se que
[...] a efetiva participação das comunidades locais no processo de
planejamento e gestão da atividade turística parece, portanto, essencial,
pois a população local é conhecedora e vivencia a sua realidade imediata,
sendo capaz de identificar problemas e necessidades, avaliar alternativas,
desenvolver estratégias para proteção e/ou valorização do patrimônio
natural e cultural e buscar soluções para os problemas identificados,
sugerindo caminhos que levem à melhoria da qualidade de vida, ao
fortalecimento da cultura local e ao bem-estar social (IRVING et al,
2005, p. 51).
No caso da Cidade Velha, buscamos evidenciar que a singularidade ali construída é
orientada para o turismo internacional e que essa orientação inclui a comunidade local na
paisagem, mas não nos processos que a singularizam.Os fatores que consideramos aqui
buscam evidenciar que a produção das singularidades e diferenciações dos lugares, operada
pelos agenciamentos turísticos, podem reificar as autenticidades patrimoniais, descolando-
as das identidades a que se referem, resultando que a comunidade acaba se percebendo
como um ―nativo mudo‖ (MENDONÇA; IRVING, 2004).
Nesse sentido, as questões expostas nasentrevistascom os moradores locais podem
ser consideradas como percepções ressentidas (HERZFELD, 2008) 38, ou como
―confirmação social dessa identidade colectiva, que exige não só o reconhecimento da sua
existência mas a demonstração real do respeito por ele‖ (APPIAH, 1998, p. 169).
Frente aos fluxos internacionais de turistas, as demandas dos moradores da Cidade
Velha acentuam a importância do diálogo intercultural:―Nós não ganhamos com turismo e
os turistas ficaram mais pataqueiros (isolados), eles ficaram com medo e não querem ficar
connosco‖ (Jovem, 25 anos, desempregado, morador da Zona Protegida).
Trata-se de compreender, então, que o crescimento do turismo deve assentar-se em
bases dialógicas com as comunidades locais, para que elas também cresçam, uma vez que
―o diálogo molda a identidade que eu desenvolvo enquanto cresço‖ (APPIAH, 1998, p.
170). Sem isso, as singularidades e diferenciações dos lugares produzidas pelos
agenciamentos turísticos tendem a reproduzir essencialismos que servem, cada vez mais, à
mercantilização da diversidade cultural.
Referências
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reprodução social. In: TAYLOR, C. Multiculturalismo; examinando a política de
reconhecimento. Lisboa: Instituto Piaget, 1998, p. 165-179.

38
Percepções ressentidas, ou reconhecimento próprio magoado, é uma expressão que descreve a
representação da intimidade entre população e Estado, como simulacros de relações sociais. Segundo
Herzfeld (2008, p. 23), o distanciamento das relações cara a cara representa-se, no Estado, ―como relações
sociais de catálogo‖, como nostalgia da tradição, da comunidade, e como apartação das ―comunidades
marginais‖, com suas ―linguagens locais de moralidade, costume e solidariedade de parentesco‖. A
sociabilidade real é substituída pela imagem de sociabilidade, ampliada pela transmutação de sentimentos
privados em atos públicos.

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Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia v1 n2 julho de 2017 ISSN 2526-4702


61

BURGESS, Ernest W. O crescimento da cidade: Uma introdução a um projeto de pesquisa. Tradução de


Raoni Borges Barbosa. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v.1, n.2, p. 61-
70, julho de 2017. ISSN 2526-4702.
Tradução
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

O crescimento da cidade: Uma introdução a um projeto de pesquisa


The growht of the city: An introduction to a research project

Ernest W Burgess
Tradução de Raoni Borges Barbosa
Resumo: Este artigo busca apresentar a perspectiva teórica e metodológica aplicada pelo
Departamento de Sociologia da Escola de Chicago em seus estudos sobre o crescimento da
cidade. Entende e descreve os processos de expansão urbana em termos de extensão, sucessão
e concentração da malha urbana e de suas atividades, de modo a poder determinar como a
expansão urbana perturba o metabolismo social urbano em situações em que os processos de
desorganização excedem os de organização do social. O artigo discute e diferencia
conceitualmente as noções de movimento na cidade e de mobilidade urbana, definindo a
mobilidade como a medida de expansão e de metabolismo no urbano, suscetível à formulação
quantitativa precisa e passível de ser considerada quase que literalmente como o pulso da
comunidade. Em síntese, a perspectiva teórico-metodológica apresentada e discutida introduz
os projetos de pesquisa em andamento no departamento de Sociologia da Escola de Chicago.
Palavras-chave: Escola de Chicago, crescimento da cidade, mobilidade urbana, expansão
urbana

Abstract: This article seeks to present the theoretical and methodological perspective applied
by the Department of Sociology of the School of Chicago in its studies on the growth of the
city. It understands and describes the processes of urban expansion in terms of extension,
success and concentration of the urban network and its activities, so as to be able to determine
how an urban expansion disturbs the urban social metabolism in situations in which the
processes of disorganization exceed those of social organization. The article discusses
conceptually the differences between the notions of movement in the city and of urban
mobility, defining mobility as a measure of expansion and metabolism in the urban, which is
susceptible to precise quantitative formulation and that can also be considered almost literally
as the pulse of the community. In summary, the theoretical-methodological perspective
presented and discussed introduces the ongoing research projects in the Department of
Sociology of the Chicago School. Keywords: Chicago school, city growth, urban mobility,
urban sprawl

O fato mais notável da sociedade moderna pode ser considerado o crescimento


urbano das grandes cidades39. Na cidade se registra da forma mais evidente possível as
enormes transformações desencadeadas pela atividade industrial na vida social. Nos
Estados Unidos, a transição de uma civilização rural para uma civilização urbana, muito
embora tenha começado mais tarde do que na Europa, ocorreu, senão de forma mais rápida

39
Texto originalmente publicado como Capítulo II, The growht of the city: An introduction to a research
project, do livro The City, organizado por Robert Ezra Park e Ernest Burgess, e publicado pela primeira vez
em 1925 pela University of Chicago Press, em Chicago.

Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia v1 n2 julho de 2017 ISSN 2526-4702


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e completa, pelo menos mais logicamente em relação às características de uma


sociabilidade urbana.
As manifestações peculiarmente urbanas da vida moderna - o arranha-céu, o metrô,
a loja de departamento, o jornal diário e o trabalho social - são caracteristicamente norte-
americanas. As mais sutis transformações na nossa vida social, que em suas manifestações
mais grosseiras são chamadas de "problemas sociais", ou seja, aqueles fenômenos que nos
alarmam e nos confundem, tais como o divórcio, a delinqüência e o descontentamento
social, tem suas mais veementes expressões nos contextos urbanos de sociabilidade. As
forças profundas e "subversivas" que operaram essas mudanças são medidas no
crescimento físico e expansão das cidades. Esse é o significado das estatísticas
comparativas de Weber, Bücher e outros pesquisadores e estudiosos da cidade, do urbano e
do urbanismo.
Os estudos estatísticos, muito embora enfatizem principalmente os efeitos do
crescimento da malha urbana, evidenciaram algumas características distintivas das
populações urbanas em comparação com as populações rurais. A maior proporção de
mulheres para cada homem nas cidades do que na zona rural; a maior porcentagem de
jovens e de pessoas de meia-idade; a maior proporção de nascidos no estrangeiro; a
heterogeneidade ocupacional se acentua com o aumento do crescimento urbano e altera
profundamente a estrutura social da cidade. Essas variações na composição da população
sãofenômenos indicativos de todas as transformações que ocorrem na organização social
da comunidade. Com feito, fazem parte do crescimento da cidade e sugerem a natureza dos
processos de crescimento e complexificação urbanos.
O único aspecto do crescimento adequadamente descrito por Bücher e Weber foi o
processo bastante óbvio da agregação da população urbana. Um processo quase tão aberto,
o de expansão, tem sido investigado de um ponto de vista diferente e muito prático por
grupos interessados em planejamento urbano, zoneamento e levantamentos regionais.
Ainda mais significativo do que a crescente densidade da população urbana pode ser
considerada a sua correlativa tendência para transbordar as áreas geográficas já ocupadas, e
assim se estender por áreas mais amplas, e incorporar essas áreas em uma vida comunitária
maior. Este artigo trata primeiramente, portanto, da expansão da cidade e, em seguida, dos
processos menos conhecidos de metabolismo e mobilidade urbanos que estão intimamente
relacionados com esta expansão da malha urbana.
Expansão como crescimento físico
A expansão da cidade, da perspectiva dos processos de planejamento, de
zoneamento e de levantamentos regionais urbanos, é quase que exclusivamente
considerada em termos de seu crescimento físico. Estudos de tração abordaram o
desenvolvimento do transporte em sua relação com a distribuição da população em toda a
cidade. Nesse sentido, os levantamentos realizados, por exemplo, pela Bell Telephone
Company e outros serviços públicos tem tentado prever a direção e a taxa de crescimento
da cidade para antecipar as futuras demandas de extensão de seus serviços. No plano
diretor da cidade a localização de parques e de bulevares, assim como o alargamento das
ruas de tráfego e o aprovisionamento de um centro cívico, são todos considerados a partir
do interesse em um futuro controle do desenvolvimento físico da cidade.
Esta expansão territorial de nossas maiores cidades desperta foçosamente a nossa
atenção pelo plano para o Estudo de New York e Arredores, e pela formação da
Associação de Planejamento Regional de Chicago, que estende o distrito metropolitano da
cidade a um raio de 50 milhas, abrangendo 4.000 milhas quadradas de território. Ambos
pretendem mensurar a expansão da malha urbana para lidar com as transformações que
acompanham o crescimento da cidade. Na Inglaterra, onde mais da metade dos habitantes

Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia v1 n2 julho de 2017 ISSN 2526-4702


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vivem em cidades com uma população de 100.000 habitantes ou mais, a expressiva


apreciação da influência da expansão urbana na organização social é expressa do seguinte
modo por C. B. Fawcett:
Um dos acontecimentos mais importantes e marcantes no crescimento das
populações urbanas dos povos mais avançados do mundo durante as
últimas décadas tem sido o aparecimento de uma série de vastos
agregados urbanos ou conurbações muito maiores e mais numerosas do
que as grandes Cidades de qualquer era precedente. Estas formaram-se
geralmente mediante a expansão simultânea de um número de cidades
próximas e vizinhas, cujas malhas urbanas cresceram para fora de seus
limites até que produziram uma coalescência prática em uma área urbana
contínua. Cada uma dessas aglomerações ainda tem dentro de si muitos
núcleos de crescimento urbano mais densos, a maioria dos quais
compreendem as áreas centrais das várias cidades de onde se organizou o
desnvolvimento urbano e essas manchas nucleares conectam-se pelas
áreas menos densamente urbanizadas que começaram como subúrbios de
ca uma dessas cidades. Os subúrbios geralmente são, ainda, um pouco
menos ocupados por edifícios, apresentando, muitas vezes, espaços
abertos em grande quantidade.
Estes grandes agregados de moradores da cidade são uma característica
nova na distribuição da população humana sobre a terra. Atualmente há
de trinta a quarenta cidades que contam com mais de um milhão de
habitantes, enquanto que há apenas cem anos, fora dos grandes centros de
população dos cursos de água da China, não havia mais de duas ou três
cidades que houvesses ultrapassado a marca dos um milhão de habitantes.
Esses agregados populacionais são fenômenos de grande importância
geográfica e social, que produzem novos problemas na organização da
vida e do bem-estar dos seus habitantes e nas suas variadas atividades.
Poucoshabitantes desses agregados populacionais desenvolveram uma
consciência social proporcional à sua magnitude, ou se realizaram
plenamente como agrupamentos definidos de pessoas com muitos
interesses, emoções e pensamentos comuns 40.
Na Europa e na América, a tendência da grande cidade para se expandir tem sido
reconhecida no termo "a área metropolitana da cidade", que em muito ultrapassa os seus
limites políticos, e, no caso de Nova York e Chicago, por exemplo, ultrapassam até mesmo
as linhas limítrofes dos Estados. A área metropolitana pode ser considerada como um
território fisicamente contíguo em que uma proibição legal é acionada, mas pode, ainda,
ser definida pela facilidade de transporte que permite a um homem de negócios residir em
um subúrbio de Chicago e trabalhar no circuito metropolitano, ao passo que permite à sua
esposa fazer compras no Marshall Field e assistir à grande ópera no Audithorium.
Expansão como um processo
Nenhum estudo que aborde a expansão da malha urbana como processo foi
realizado até então, muito embora os materiais para tal estudo e as indicações de diferentes
aspectos do processo estejam contidos nos procedimentos de Planejamento Urbano,
Zoneamento e Levantamentos Regionais. Os processos típicos da expansão da cidade
podem ser melhor ilustrados, talvez, por uma série de círculos concêntricos, que podem ser
numerados para designar as sucessivas zonas de extensão urbana e os tipos de áreas
diferenciadas no processo de expansão da metrópole.

40
Citado do: "British Conurbations in 1921‖, Sociological Review, XIV (April, 1922), III-IV.

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Este gráfico representa uma construção ideal das tendências de qualquer cidade ou
metrópole para expandir-se radialmente a partir de seu distrito de negócios central - no
mapa "The Loop" (I). Em torno do centro da cidade normalmente situa-se uma área em
transição, em processo de invasão por casas de negócios e de fabricação de luz (II). Uma
terceira área (III) é habitada pelos trabalhadores das indústrias que escaparam da área de
deterioração (II), mas que priorizam a acessibilidade ao local de trabalho. Para além desta
zona é a "área residencial" (IV) de edifícios de apartamentos de classe alta ou de distritos
"restritos"exclusivos de habitação unifamiliar. Ainda mais longe, ultrapassando os limites
da cidade, encontra-se a zona de moradores passageiros - áreas suburbanas, ou cidades
satélites, - a uma distância de um passeio de trinta a sessenta minutos do distrito
empresarial central.
Este gráfico evidencia claramente o fato principal da expansão urbana, ou seja, a
tendência de cada zona interna de estender sua área mediante a invasão da próxima zona
externa que lhe abarca. Este aspecto da expansão pode ser chamado de sucessão, um
processo estudado detalhadamente pela ecologia vegetal. Quando este gráfico foi aplicado
à cidade de Chicago, então todas as quatro zonas supracitadas se encontravam em sua
história inicial incluída na circunferência da zona interna, o atual distrito empresarial. Os
limites atuais da área de deterioração não eram, há muitos anos, aqueles da zona agora
habitada por assalariados independentes, e dentro das memórias de milhares de habitantes
de Chicago esta zona abrigava ainda as residências das "melhores famílias". Ao gráfico em
tela dificilmente precisa ser adicionado o fato de que nem Chicago nem qualquer outra
cidade se encaixa perfeitamente neste esquema ideal. Maiores complicações à
representação gráfica do urbano em processo de tranformação são introduzidas pela
dificuldade de situar o lago da cidade, o Rio Chicago, as linhas férreas, as fábricas
históricas na localização do parque industrial, o grau relativo da resistência das
comunidades à invasão, etc.

Além da extensão e da sucessão, o processo geral de expansão do crescimento


urbano envolve processos antagônicos e também complementares de concentração e de
descentralização de fenômenos urbanos. Em todas as cidades há a tendência natural para a
organização do transporte local e externo de modo que estes venham a convergir no distrito
empresarial central. Na seção central de cada metrópole esperamos encontrar as lojas de

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departamento, os edifícios de escritórios dos arranha-céus, as estações de estrada de ferro,


os grandes hotéis, os teatros, o museu de arte, e o salão de cidade. Naturalmente, quase que
inevitavelmente, a vida econômica, cultural e política se concentra aqui. A relação da
centralização de fenômenos urbanos com os outros processos da vida da cidade pode ser
mais ou menos avaliada pelo fato de que mais de meio milhão de pessoas entram
diariamente e saem do "loop" de Chicago. Mais recentemente centros de sub-negócios
cresceram em zonas periféricas. Esses "loops de satélite" não representam, ao que parece, o
"esperado" renascimento do bairro, mas um processo de destacamento de várias
comunidades locais em uma unidade econômica maior. A Chicago de ontem, uma
aglomeração de cidades interioranas e colônias de imigrantes, atravessa um processo de
reorganização urbana pautado em um sistema centralizado descentralizado de comunidades
locais que se coagem em áreas de sub-negócios visivelmente ou invisivelmente dominadas
pelo distrito central de negócios. Os processos atuais do que pode ser considerado uma
descentralização centralizada estão atualmente sendo estudados pelos interessados no
desenvolvimento de redes de lojas, o que, por sua vez, é apenas uma ilustração da mudança
na base da organização urbana41.
O processo de expansão da malha urbana, como vimos, trata do crescimento físico
da cidade e da extensão dos serviços técnicos que tornaram a vida urbana não só habitável,
mas confortável, até mesmo luxuosa. Algumas dessas necessidades básicas da vida urbana
são somente possíveis mediante um desenvolvimento considerável da vida comunitária
humana. Três milhões de pessoas em Chicago dependem, por exemplo, de um sistema
unificado de abastecimento de água, assim como de uma empresa gigante de distribuição
de gás e uma enorme matriz de transmissão de luz elétrica. Contudo, tal como a maioria
dos outros aspectos da vida urbana comunitária, esta cooperação económica é um exemplo
de cooperação sem um mínimo do que o "espírito de cooperação" é comumente definido.
Os grandes serviços públicos fazem parte da mecanização da vida nas grandes cidades e
tem pouco ou nenhum outro significado para a organização social.
No entanto, os processos de expansão urbana e especialmente a taxa desta expansão
podem ser estudados não apenas no crescimento físico e no desenvolvimento do comércio
de bens e de serviços, mas também nas consequentes transformações no contexto da
organização social e nos tipos de personalidade humana que carazterizam o urbanismo. Até
que ponto o crescimento da cidade, em seus aspectos físicos e técnicos, corresponde a um
reajuste natural, porém adequado, na organização social? O que, para uma cidade, é uma
taxa de expansão normal, uma taxa de expansão com a qual as transformações controladas
na organização social podem manter o ritmo com sucesso?
Organização e desorganização social como processos de metabolismo
Essas questões podem ser melhor respondidas, talvez, ao se considerar o
crescimento urbano como resultado de processos de organização e desorganização
análogos aos processos anabólicos e catabólicos do metabolismo no corpo humano. De que
maneira os indivíduos são incorporados à vida de uma cidade? Por qual processo uma
pessoa se torna uma parte orgânica de sua sociedade? O processo natural de aquisição de
repertórios culturais se dá pelo nascimento. Uma pessoa nasce em uma família já ajustada
a um ambiente social específico - neste caso a cidade moderna. A taxa natural de aumento
da população mais favorável para assimilação pode então ser tomada como o excesso da
taxa de natalidade sobre a taxa de mortalidade, mas esta é a taxa normal de crescimento da
cidade? Certamente, as cidades modernas aumentaram e estão aumentando em população a
uma taxa muito mais elevada. No entanto, a taxa natural de crescimento pode ser usada

41
Ver o trabalho de: E. H. Shideler, The Retail Business Organization as an Index of Community
Organization (in preparation).

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para medir os distúrbios do metabolismo causados por qualquer aumento excessivo, como
aqueles que seguiram o grande afluxo de negros do sul em cidades do norte desde a guerra.
De modo semelhante, todas as cidades mostram desvios na composição por idade e sexo de
uma população padrão como, por exemplo, a da Suécia, cuja população não foi afetada nos
últimos anos por qualquer grande emigração ou imigração. Também aqui variações
acentuadas, como qualquer grande excesso do número de machos em relação à proporção
de fêmeas, e vice-versa, ou na proporção de crianças, ou de homens ou mulheres adultos,
são sintomáticos de anormalidades no metabolismo social.
Normalmente, os processos de desorganização e de organização podem ser
analisados como em uma relação reciprocamente direcionada e como uma cooperação em
um equilíbrio dinâmico da ordem social para um fim vaga ou definitivamente considerado
progressista. Na medida em que a desorganização aponta para a reorganização e para um
ajuste mais eficiente, a desorganização deve ser concebida não como patológica, mas como
normal. A desorganização, como processo preliminar à reorganização de atitudes e
conduta, quase invariavelmente configura o grupo de recém-chegados à cidade, e o
descarte do repertório cultural habitual, e muitas vezes do que lhe foi o código de
moralidade, não raramente é acompanhado de acentuado conflito mental e senso de perda
pessoal. Mais frequentemente, talvez, esta transformação que se dá no indivíduo ocorra
mais cedo ou mais tarde na forma de um sentimento de emancipação e de um impulso para
novas metas.
Na expansão da cidade ocorre um processo de distribuição que desloca, classifica e
re-aloca indivíduos e grupos por residência e ocupação. A diferenciação social resultante
da formação cosmopolita da cidade americana em áreas é segue tipicamente um mesmo
padrão, com apenas algumas pequenas modificações interessantes. Dentro do distrito
central de negócios ou em uma rua contígua situa-se o "tronco principal" de "Hobohemia",
o Rialto mais acabado do ator social migrante e sem teto do Middle West 42. Na zona de
deterioração que circunda a seção central de negócios, encontram-se sempre as chamadas
"favelas" e "terras ruins", com suas regiões submersas em pobreza, degradação e doenças e
seus respectivos submundo do crime e do vício. Dentro de uma área em deterioração estão
os distritos das casas de alojamento, o purgatório das "almas perdidas". Perto dali se
encontra o Quartier Latin, onde os espíritos criativos e rebeldes se refugiam. As favelas
também estão superpovoadas ao ponto de transbordarem de colónias de imigrantes - o
Gueto, a Pequena Sicília, Greektown, Chinatown - combinando fascinantes heranças
culturais do velho mundo com suas formas de adaptações americanas. Afastando-se daqui
está o Cinturão Negro, com sua vida livre e desordenada. A área de deterioração, embora
essencialmente um lugar de decadência, de taxas populacionais estacionárias ou
declinantes, é também um lugar de regeneração, como atestam a presença da missão, do
assentamento, da colônia de artistas, dos centros radicais - todos estes obcecados com a
visão de um mundo novo e melhor.

42
Para um estudo des área cultural da cidade, ver: Nels Anderson, The Hobo, Chicago, 1923·

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A zona seguinte é habitada predominantemente por trabalhadores de fábricas e


lojas, por moradores hábeis e econômicos. Esta é uma área de segundo assentamento de
imigrantes, geralmente da segunda geração. É a região de fuga da favela, a Deutschland da
família aspirante de gueto. Deutschland (literalmente "Alemanha") é o nome dado, em
parte por inveja, em parte por escárnio, para aquela região além do Gueto, onde os vizinhos
bem-sucedidos parecem estar imitando os padrões de vida dos judeus alemães. Mas o
morador desta área, por sua vez, olha para a "Terra Prometida" além daquelas fronteiras,
para seus hotéis residenciais, para a sua região de apartamentos, seus "loops de satélite" e
suas áreas de "luz brilhante".
Esta diferenciação em agrupamentos econômicos e culturais naturais conforma e
caracteriza a cidade. A segregação oferece ao grupo e, portanto, aos indivíduos que
compõem o grupo, um lugar e um papel na organização total da vida da cidade. A
segregação limita o desenvolvimento em certas direções, mas o libera em outros. Estas
áreas tendem a acentuar certos traços, de modo a poder atrair e desenvolver o seu tipo de
indivíduos, e assim tornarem-se mais diferenciadas.
A divisão do trabalho na cidade também ilustra processos de desorganização,
reorganização e crescente diferenciação da malha urbana. O imigrante de comunidades
rurais na Europa e na América do Norte raramente traz consigo a habilidade econômica de
grande valor em nossa vida industrial, comercial ou profissional. Contudo, a seleção
ocupacional de maior interesse analítico ocorreu por nacionalidade, fenômeno explicável
mais pelo temperamento racial ou por circunstâncias banais do que pelo lastro econômico
do velho mundo, de modo que se vê como policiais os irlandeses, as sorveterias gregas, as
lavanderias chinesas, os porteiros negros, os zeladores belgas, etc.
Os fatos de que em Chicago um milhão (996.589) de indivíduos empregados
lucrativamente relataram 509 ocupações, e que mais de 1000 homens e mulheres em Who's
Who apresentaram 116 vocações diferentes, oferece uma noção de como na cidade a
minuciosa diferenciação de ocupação "analisa e seleciona a população, separando e
classificando os diversos elementos"43. Esses números proporcionam também uma
indicação da complexidade e da complicação do mecanismo industrial moderno e da

43
Ver: WEBER, Max. The Growth of Cities, p. 442.

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intrincada segregação e isolamento de grupos econômicos divergentes. Interrelacionada


com esta divisão econômica do trabalho se encontra uma correspondente divisão em
classes sociais e em grupos culturais e recreativos. A partir desta multiplicidade de grupos,
com seus diferentes padrões de vida, a pessoa encontra seu mundo social agradável e - o
que não é viável nos estreitos limites de uma aldeia - pode se deslocare e viver em mundos
sociais amplamente separados e, por vezes, conflitantes. A desorganização pessoal pode
ser apenas a incapacidade de harmonizar os cânones de conduta de dois grupos
divergentes.
Se os fenômenos de expansão e de metabolismo indicam que um grau moderado de
desorganização pode facilitar a organização social, estes fenômenos indicam também que a
rápida expansão urbana é acompanhada por aumentos excessivos de doenças, crimes,
desordens, vícios, insanidades e suicídios, tal como demonstram os indices aproximados de
desorganização social. Mas quais são os índices das causas, e não dos efeitos, do
metabolismo social desordenado da cidade? O excesso do aumento atual sobre o aumento
natural da população já foi sugerido como um critério. O significado deste aumento
consiste na imigração para uma cidade metropolitana como Nova York e como Chicago de
dezenas de milhares de pessoas anualmente. Sua invasão da cidade tem o efeito de uma
onda de maré inundando primeiro as colônias de imigrantes, os portos de primeira entrada,
desalojando os milhares de habitantes que transbordam para a próxima zona e assim por
diante até que o momento da onda tenha exaurido a sua força ao alcançar a última zona
urbana. Todo o efeito é o de acelerar a expansão urbana, de acelerar a indústria, de acelerar
o processo de "junking" na área de deterioração (II). Estes movimentos internos da
população tornam-se os mais significativos para o estudo. Que movimento está
acontecendo na cidade, e como esse movimento pode ser medido? É mais fácil, é claro,
classificar o movimento dentro da cidade do que mensurá-lo. Há o movimento de
residência para residência, de mudança de ocupação, de turno de trabalho, movimento de
ida para o trabalho e de retorno à rsidência, movimento para a recreação e para a aventura.
Estes fenômenos legitimam a pergunta: Qual é o aspecto significativo do movimento para
o estudo das transformações nas sociabilidades urbanas? A resposta a esta questão conduz
directamente à importante distinção entre movimento e mobilidade.
Mobilidade como o pulso da comunidade
O movimento tomado isoladamente não é uma evidência de transformação ou de
crescimento urbano. De fato, o movimento pode ser uma ordem fixa e imutável de
movimento projetada para controlar uma situação constante, como no movimento de
rotina: o movimento significativo para o crescimento urbano implica uma transformação
de um movimento em resposta a um novo estímulo ou situação. A transformação gerada
pelo movimento deste tipo é chamada mobilidade. O movimento da natureza da rotina
encontra sua expressão típica no trabalho. A mudança de movimento, ou mobilidade, é
caracteristicamente expressa na aventura. A grande cidade, com suas "luzes brilhantes",
seus empórios de novidades e pechinchas, seus palácios de diversão, seus submundos do
vício e do crime, seus riscos de vida e propriedade por acidente, roubo e homicídio, tornou-
se a região do mais intenso grau de aventura e perigo, excitação e emoção.
O fenômeno da mobilidade, é evidente, envolve transformação, nova experiência, e
estimulação para o novo. A estimulação induz uma resposta da pessoa a esses objetos em
seu ambiente que proporcionam a expressão para os seus desejos. Para a pessoa, como para
o organismo físico, a estimulação é essencial para o crescimento. A resposta à estimulação
é saudável, desde que seja uma reação integral correlacionada de toda a personalidade.
Quando a reação é segmentar, ou seja, separada e descontrolada pela organização da
personalidade, ela tende a se tornar desorganizadora ou patológica. É por isso que a

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estimulação pela estimulação, como ocorre na busca incansável do prazer, participa da


natureza do vício.
A mobilidade da vida urbana, com seu aumento no número e na intensidade dos
estímulos, tende inevitavelmente a confundir e a desmoralizar a pessoa. Pois um elemento
essencial nos costumes e na moralidade pessoal é a consistência, a consistência do tipo que
é natural no controle social do grupo primário. Onde a mobilidade é maior e onde, em
conseqüência, os controles primários se desetrturam completamente, como na zona de
deterioração da cidade moderna, desenvolvem-se áreas de desmoralização, de
promiscuidade e de vício.
Em nossos estudos da cidade se constata que as áreas de mobilidade são também as
regiões em que se encontram fenômenos como delinqüência juvenil, gangues de meninos,
pobreza, criminalidade, deserção da esposa, o divórcio, crianças abandonadas, o vício.
Estas situações concretas mostram por que a mobilidade é talvez o melhor índice do
estado do metabolismo da cidade. A mobilidade pode ser pensada em mais do que um
sentido fantasioso, como o "pulso da comunidade". Como o pulso do corpo humano, é um
processo que reflete e é indicativo de todas as mudanças que estão ocorrendo na
comunidade, e que, portanto, é suscetível de análise em elementos que podem ser
indicados numericamente.
Os elementos que entram na mobilidade podem ser classificados em duas partes
principais: (1) o estado de mutabilidade da pessoa, e (2) o número e tipo de contatos ou
estímulos em seu ambiente. A mutabilidade das populações da cidade varia com a
composição por sexo e idade, o grau de desapego da pessoa da família e de outros grupos.
Todos esses fatores podem ser expressos numericamente. Os novos estímulos a que uma
população responde podem ser medidos em termos de mudança de movimento ou de
contatos crescentes. As estatísticas sobre o movimento da população urbana só podem
medir a rotina, mas um aumentodo movimento da população em uma razão maior do que o
aumento do número da populacão pode mensurar o fenômeno da mobilidade. Em 1860, as
linhas de carro de cavalo da cidade de Nova York transportaram cerca de 50.000.000 de
passageiros44; Em 1890 os trolleycars (e algumas carroças sobreviventes puxadas a cavalo)
transportaram cerca de 500.000.000; em 1921, as linhas suburbanas elevadas, sybterrâneas,
de superfície, elétricas e de vapor levaram um total de mais de 2.500.000.000 de
passageiros. Em Chicago, o total de percursos anuais per capita na superfície e nas linhas
elevadas foram de 164 em, 1890; de 215, em 1900; de 320, em 1910; e de 338, em 1921.
Além disso, os passeios per capita em linhas de vapor e eléctricos suburbanos quase
dobraram entre 1916 (23) e 1921 (41), e o uso crescente do automóvel não deve ser
negligenciado45. Por exemplo, o número de automóveis em Illinois aumentou de 131.140,
em 1915, para 833. 920, em 192346.
A mobilidade pode ser medida não só por essas mudanças de movimento, mas
também pelo aumento dos contatos entre as pessoas. Embora o aumento da população de
Chicago em 1912-22 fosse inferior a 25% (23,6%), o aumento das cartas entregues aos
habitantes de Chicago dobrobrou sua quantidade (49,6%) - (de 693.084.196 para
1.038.007.854)47. Em 1912, Nova Iorque tinha 8.8 telefones por cem habitantes; já em
1922, 16.9 por 100 habitantes48. Boston tinha, em 1912, 10.1 telefones por cem habitantes;
mas dez anos depois, dispuinha de 19.5 telefones por 100 habitantes. Na mesma década, os

44
Adaptaddo de: W. B. Monro, Municipal Government and Administration, II, 377.
45
Ver: ―Report on the Chicago Subway and Traction Commission‖, p.80; e o ―Report on a Physical Plan or a
Unified Transportation System‖, p.391.
46
Dados compilados pela indústria automobilística.
47
Estatísticas da Divisão de Serviços Postais, Correios da Cidade de Chicago.
48
Determinado pelo: Census Estimates For Intercensual Years.

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números de Chicago aumentaram de 12.3 para 2 1.6 telefones por 100 habitantes. Mas o
aumento do uso do telefone é provavelmente mais significativo do que o aumento no
número de telefones. O número de telefonemas em Chicago aumentou de 606.131.928, em
1914, para 944.010.586, em 192249, um aumento de 55.7 por cento, enquanto a população
aumentou apenas 13.4 por cento.
Os valores fundiários, na medida em que refletem o movimento na cidade,
proporcionam um dos índices mais sensíveis de mobilidade. Os mais altos valores de terra
em Chicago estão no ponto de maior mobilidade na cidade, na esquina das ruas State e
Madison, no Loop. Uma contagem de tráfego mostrou que durante o período do rush
31.000 pessoas por hora, ou 210.000 homens e mulheres em dezesseis horas e meia, passou
pelao esquina sudoeste. Por mais de dez anos os valores de terra no Loop foram
estacionários, mas ao mesmo tempo duplicaram, quadruplicaram e até mesmo
sextuplicaram nas áreas estratégicas dos "loops de satélite"50: um índice preciso das
transformações ocorridas. As investigações até o momento parecem indicar que as
variações nos valores das terras, especialmente quando correlacionadas com as diferenças
de aluguéis, oferecem talvez o melhor indicador de mobilidade e, portanto, de todas as
transformações que ocorrem na expansão e no crescimento da cidade.
Em linhas gerais, tentei apresentar a perspectiva teórica e os métodos de
investigação que o departamento de sociologia emprega em seus estudos sobre o
crescimento da cidade, ou seja, descrever a expansão urbana em termos de extensão,
sucessão e concentração; determinar como a expansão perturba o metabolismo quando a
desorganização excede a organização; e, finalmente, definir a mobilidade como medida de
expansão e de metabolismo, suscetível à formulação quantitativa precisa, para que possa
ser considerada quase literalmente como o pulso da comunidade. Em síntese, estas
afirmações introduzem qualquer um dos cinco ou seis projetos de pesquisa em andamento
no departamento de Sociologia da Escola de Chicago51. O projeto, no entanto, no qual
estou diretamente envolvido, se organiza como tentativa de aplicar esses métodos de
investigação a uma seção transversal da cidade - colocar esta área, por assim dizer, sob o
microscópio, e assim estudar mais detalhadamente e com maior controle e precisão os
processos que foram descritos de forma mais geral. Para este propósito, a comunidade
judaica de West Side foi selecionada. Esta comunidade inclui o chamado "Gueto", ou área
de primeiro assentamento, e Lawndale, o chamado "Deutschland", ou área de segundo
assentamento. Esta área tem certas vantagens óbvias para o estudo dos processos de
expansão, de metabolismo e de mobilidade, pois ilustra a tendência de expansão radial do
centro de negócios da cidade. E compõe atualmente um grupo cultural relativamente
homogêneo. Lawndale constitui em si uma área em fluxo, com a maré de migrantes ainda
fluindo dentro do gueto e uma saída constante para regiões mais desejáveis da zona
residencial. Nesta área faz-se também possível estudar como o resultado esperado da alta
taxa de mobilidade em desorganização social e pessoal é contrabalançada, em grande parte,
pela organização comunitária eficiente da comunidade judaica.

49
Retirado de Estatísticas preparadas por R. Johnson, supervisor de trânsito, Illinois Bell Telephone
Company.
50
Durante os anos de 1912-23,o valor fundiário aumentou em Bridgeport de $600 para $1,250; no distrito
Division-Ashland-Milwaukee, de $2,000 para $4,500; no "Back of the Yards," de $1,000 para $3,000; em
Englewood, de $2,$00 para $8,000; em Wilson Avenue, de $1,000 para $6,000; mas o valor fundiário
decresceu no Loop de $20,000 para $16,$00.
51
Ver os seguintes estudos: Nels Anderson, The Slum: An Area of Deterioration in the Growth of the City;
Ernest R. Mowrer, Family Disorganization in Chicago; Walter C. Reckless, The Natural History of Vice
Areas in Chicago; E. H. Shideler, TM Retail Business Organization as an Index of Business Organization; F.
M. Thrasher, One Thousand Boys' Gangs in Chicago: a Study of Their Organization and Habitat; H. W.
Zorbaugh, The Lower North Side: a Study in Community Organization.

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SANTANA, Tarsila Chiara Albino da Silva. Disposições morais, regras de interação e categorias de
acusações: Uma etnografia urbana das condutas públicas de homens com práticas homoeróticas.
Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v.1, n.2, p. 71-84, julho de 2017. ISSN
2526-4702.
Artigo
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

Disposições morais, regras de interação e categorias de acusações: Uma


etnografia urbana das condutas públicas de homens com práticas
homoeróticas
Moral dispositions, rules of interaction and categories of accusations: An urban ethnography of
the public conduct of men with homoerotic practices

Tarsila Chiara Albino da Silva Santana


Resumo: Neste artigo, por um lado, pretendo analisar a regulação da conduta interacional
quando homens com práticas homoeróticas entram na presença imediata uns dos outros, como
um componente da ordem pública. Por outro, pretendo analisar o processo pelo qual esses
atores sociais reagem ao comportamento considerado inapropriado de um outro ator social com
práticas homoeróticas. Na confluência entre esses dois objetivos, a presente análise busca
mapear os componentes rituais na interação social, que se constitui pela possibilidade de
conflito e de acionamento de categorias de acusações que são negociadas pelos diferentes
atores sociais em interação na constituição e manutenção de suas redes de relações. Para tanto,
procuro descrever o conjunto de normas morais que regulam a forma com a qual homens com
práticas homoeróticas performatizam atos que são aprovados e atos que não são considerados
apropriados em bares e boates GLS e festas open bar, na cidade de Recife, Pernambuco,
enquanto um importante aspecto do código social de uma interação face a face ou imediata.
Trata-se, com efeito, de um jogo permanente de semelhança e dessemelhança, organizado a
partir de disputas morais, práticas de desculpas e acusações no qual o sentimento de pertença a
uma identidade sexual parece assinalar para o processo de individualização e diferenciação que
perfazem os ethos, as visões de mundo e as fronteiras simbólicas de uma rede de sociabilidade.
Palavras-chave: homoerotismo masculino, sociabilidades urbanas, regras de interação,
condutas públicas

Abstract: In this article, on the one hand, I intend to analyze the regulation of interactional
behavior when men with homoerotic practices enter into the immediate presence of each other
as a component of public order. On the other hand, I intend to analyze the process by which
these social actors react to the behavior considered inappropriate by another social actor with
homoerotic practices. At the confluence between these two objectives, the present analysis
seeks to map the ritual components in social interaction, which is constituted by the possibility
of conflict and triggering categories of accusations that are negotiated by different social actors
in interaction in the constitution and maintenance of their networks of relations. To do so, I try
to describe the set of moral norms that regulate the way in which men with homoerotic
conducts perform acts that are approved and acts that are not considered appropriate in GLS
bars and nightclubs and open bar parties in the city of Recife, Pernambuco, While an important
aspect of the social code of a face-to-face or immediate interaction. It is a permanent game of
similarity and dissimilarity, organized from moral disputes, excuses and accusations in which
the feeling of belonging to a sexual identity seems to signal to the process of individualization
and differentiation that make up the Ethos, world views and the symbolic boundaries of a
network of sociability. Keywords: male homoeroticism, urban sociabilities, interaction rules,
public conduct

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Neste artigo52, por um lado, pretendo analisar a regulação da conduta interacional


quando homens com práticas homoeróticas entram na presença imediata uns dos outros,
como um componente da ordem pública. Por outro, pretendo analisar o processo pelo qual
esses atores sociais reagem ao comportamento considerado inapropriado de um outro ator
social com práticas homoeróticas. Na confluência entre esses dois objetivos, a presente
análise busca mapear os componentes rituais na interação social, que se constituipela
possibilidade de conflito e de acionamento de categorias de acusações que são negociadas
pelos diferentes atores sociais em interação na constituição e manutenção de suas redes de
relações (BARBOSA, 2015a, 2015b, 2016). Para tanto,procuro descrever o conjunto de
normas morais que regulam a forma com a qual homens com práticas homoeróticas
performatizam atos que são aprovados e atos que não são considerados apropriados em
bares e boates GLS53 e festas open bar, na cidade de Recife, Pernambuco, enquanto um
importante aspecto do código social de uma interação face a face ou imediata.
Devo ressaltar que estou interessada em analisar, particularmente, a ambiguidade da
lógica de pertencimento a uma dinâmica de identificação entre estes atores sociais. Trata-
se, assim, de analisar o jogo de tensão que perpassa as trocas simbólicas e materiais desses
atores sociais em uma interação simbólica mediada por relações de poder (KOURY, 2016).
Nesse sentido, apresento quatros cenas de interação que observei enquanto realizava um
mapeamento situacional do circuito comercial de bares e boates GLS e festas open bar
direcionado para homossexuais masculinos em Recife. Trata-se, assim, de um recorte de
uma pesquisa mais ampla sobre música eletrônica, espacialidade urbana e homoerotismo
masculino, que desenvolvi no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte54. Dado o objeto expresso, neste artigobusco
lançar mão da perspectiva interacionista dos estudos sobre ordem social de Goffman, do
desvio social de Becker e de acusações de Velho; da antropologia interpretativista de
Geertz, a partir dos seus conceitos de ethos e visão de mundo; e dos conceitos de jogos
sérios e poder de Ortner sob a ótica da teoria da prática.
Delimitando perspectivas
Na análise interacional e dramatúrgica de Goffman (2012b), a regulação da conduta
comunicativa constitui um dos componentes rituais na interação social. Interação esta que
se efetiva quando um ator entra na presença imediata de outro, isto é, quando um ator
precisa apresentar a si mesmo- ―eu‖55 - para outro. As unidades naturais da interação,
assim, se configuram no momento da copresença e por causa da copresença. Nesse sentido,
a ordem normativa do comportamento também orienta asrelações sintáticas em uma
interação face a face.

52
Agradeço à Jainara Oliveira a leitura crítica e atenciosa deste artigo. Agradeço ainda aos/às pareceristas
anônimos/as a valiosa leitura.
53
Trata-se de uma sigla criada nos anos 90 para nomear ―Gays, Lésbicas e Simpatizantes‖, originalmente
cunhada como um objetivo mercadológico, e, portanto, rotineiramente usada para definir espaços, produtos,
serviços e locais destinados ao público homossexual.
54
A pesquisa de mestrado em antropologia social foi realizada sob a orientação da Profa. Dra. Lisabete
Coradini e com financiamento da CAPES. Agradeço à Lisabeti Coradini a valiosa orientação e à CAPES a
bolsa outorgada, ver (SANTANA, 2017).
55
Para Goffman (2012, p. 38) os papéis rituais do ―eu‖ possuem uma definição dupla: ―o eu como uma
imagem montada a partir das implicações expressas do fluxo total dos eventos numa ocasião; o eu como um
tipo de jogador num jogo ritual [...] quando os dois papéis do eu são separados, podemos utilizar o código
ritual implícito na preservação da fachada para aprender como os dois papéis estão relacionados‖.

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Quando os atores sociais estabelecem uma interação face a face estes precisam
preservar a ―linha56‖ e a ―fachada57‖ da interação, ou seja, devem saber manter o controle
expressivo entre a forma como se apresentam aos outros e a forma como estes outros os
percebem. Para tanto, os atores sociais precisam escolher o tipo de preservação da fachada
apropriada ao mesmo tempo em que necessitam cooperar para a manutenção da ordem
ritual. Quando um ator entra na presença imediata de outro e apresenta a si mesmo, em um
contato particular, este precisa gerir e regular a impressão que os outros formam a seu
respeito. A interação social, nesse sentido, pressupõe regras para o desempenho de papéis.
Regras estas que orientam e organizam o fluxo da comunicação (GOFFMAN, 2013).
Deste modo, durante o período em que o ator está na presença imediata dos outros,
os papéis desempenhados terão sempre um caráter provisório, os quais influenciam a
definição da situação. A definição projetada da situação, por sua vez, possui um caráter
moral, uma vez que o ator procura elaborar técnicas para controlar a impressão que os
outros recebem da situação, para, assim, projetar um padrão de ação. O comportamento em
lugares públicos (GOFFMAN, 2010), por sua vez, também exige a regulação de atos
comunicativos, expressivos e linguísticos, principalmente, como um componente da ordem
pública. Nesse sentido, são as normas morais que regulam o comportamento de um ator na
presença imediata dos outros.
Sendo assim, o comportamento comunicativo em uma interação face a face pode se
dar de dois modos, a saber, a interação desfocada e a interação focada. A primeira ocorre
na medida em que os atores estão reciprocamente conscientes da presença uns dos outros,
mas não existe um fluxo de comunicação, e, a segunda acontece quando os atoresestão
conscientes da presença uns dos outros e dirigem a atenção para um mesmo foco de
comunicação, de modo a cooperarem mutuamente para a manutenção da ordem ritual. Na
interação, em situação de copresença, o ator social se constitui como um jogador marcado
por uma ordem moral. Assim, este ator concebe uma apresentação de si mesmo para o
outro e busca negociá-la na interação (GOFFMAN, 2013). Estas análises de Goffman
sobre a ordem da interação possibilitam, nesse sentido, entender os modos pelos quais os
atores sociais administram as tensões e mantém o equilíbrio em circunstâncias de
copresença.
As análises mencionadas de Goffman também contribuem para pensar a relação
entre estigma e comportamento desviante (OLIVEIRA, 2016), uma vez que são as
expectativas normativas estabelecidas pela sociedade, para categorizar as pessoas e atribui-
las uma identidade social, que define uma situação de normalidade, de desvio e de
estigmatização (GOFFMAN, 2012a). O estigma para Goffman possui um caráter
relacional, pois não se trata de uma ―essência‖ do caráter do ator social, mas, sim, de
relações de poder. A cisão simbólica entre o ―normal‖ e o ―estigmatizado‖ são, portanto,
perspectivas normativas que se produzem em circunstâncias de copresença nas quais a
ordem social atua na projeção da situação. Os desvios e os comportamentos desviantes
também são percebidos sob esta ótica de análise, uma vez que estes também são definidos
por um conjunto de normas sociais e de atributos impostos como normalidade.
Para Becker (2008), nesse sentido, em sua análise sobre a rotulação do
comportamento, a noção de desvio possui um significado ambíguo: o desvio se constitui

56
Para Goffman (2012, p. 13) a linha ―é um padrão de atos verbais e não verbais com o qual ela [a pessoa]
expressa sua opinião sobre a situação, e através disto sua avaliação sobre os participantes, especialmente ela
própria‖.
57
Para Goffman (2012, p. 14) a fachada é ―o valor social positivo que uma pessoa efetivamente reivindica
para si mesma através da linha que os outros pressupõem que ela assumiu durante um contato particular. [...]
é a imagem do eu delineada em termos de atributos sociais aprovados‖. Nesse sentido, a fachada pessoal e a
fachada dos outros são produtos de uma mesma ordem social.

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pela circunstância em que regras são prescritas e violadas, na mesma medida em que
também implica processos pelos quais os atores sociais violam e fixam regras.Nesse
sentido, o autor dirige sua análise, particularmente, para o entendimento de como as regras
são operacionalizadas de modo efetivo, ou seja, como as regras são mantidas eficazmente a
partir de repetidas tentativas de imposição. Deste ponto de vista, ele sugere que o desvio é
uma criação da própria sociedade, na medida em que a coletividade imputa suas regras, por
sua vez, aqueles que se desviam das regras impostas pela coletividade são acusados de
desviantes. Ou seja, o comportamento desviante não constitui uma ―essência‖ do ator
social, mas, sim, uma rotulação realizada por aqueles que tentam impor suas regras.
Os processos pelos quais os atores sociais são rotulados de desviantes, por terem
violado a aplicação por outros de regras, assim também possibilita entender as reações
destes atores a esse julgamento moral. A forma como cada ator social reage a esta
rotulação, no entendo, depende de cada contexto. Não se trata de uma relação homogênea,
pois as regras são aplicadas de forma desigualentre as pessoas, o que, portanto, envolve
diferenças de poder. A rotulação de um comportamento como desviante depende, deste
modo, ao mesmo tempode quem comete e de quem tenta aplicar a regra: ao tentar impor as
regras a atores sociais particulares, na mesma medida, a coletividade produz o desvio. Este,
assim, é o produto de um processo envolto pelas reações dos atores sociais a rotulação do
comportamento.
Nesse sentido, como analisa Becker, as regras de condutas impostas por uma
coletividade não são partilhadas por todos os atores sociais. Assim, as regras que são
consideradas apropriadas por uma maioria podem não ser apropriadas por outra. Ou seja,
nem sempre as regras operantes efetivas contam com a concordância de todos, o que
demonstra a variação na forma como os atores sociais reagem às regras impostas. Assim
como em Goffman, as análises de Becker apontam para as perspectivas individuais e
coletivas que envolvem a rotulação de um comportamento como desviante. O processo de
imposição de regras a outros e a sua operação efetiva, nesse sentido, se constitui por
relações de poder. Neste processo, aqueles atores que criam as regras e tentam impô-las a
outros são definidos como ―empreendedores morais‖ e aqueles que violam as regras
prescritas são acusados de ―desviantes‖. Portanto, trata-se de um processo relacional e
ambíguo no qual as diferenças de posições são diferenças de poder.
Na esteira das análises de Becker e Goffman, Velho (2002, 2008) assinala que o
estudo do comportamento desviante contribui para entender a relação entre indivíduo e
sociedade. Na sua análise (VELHO, 1985, 1997), a noção de sistemas de acusações
possibilita perceber como a delimitação de fronteiras é negociada pelos diferentes atores.
Fronteiras estas que são delimitadas por meio de processos contraditórios e complexos.
Destes processos, por sua vez, emergem o conflito e a divergência. Para Velho, o desviante
pode ser definido como aquele que realiza uma leitura divergente da relevância da
imposição de uma regra a outro. Portanto, ele permanece dentro da cultura na qual a regra
foi imposta. A ambiguidade do termo desviante também aparece na sua análise, pois, para
o autor, um mesmo ator social ora pode ser uma pessoa ―desviante‖, ora pode ser
considerado uma pessoa ―normal‖. Assim, esta ou aquela situação seria definida pelo
caráter desigual e contraditório do sistema sociocultural.
Deste modo, Velho ressalta que, o desvio é uma construção social. Assim, não
existem comportamentos desviantes dados naturalmente, mas, sim, a partir de uma relação
de acusações entre aqueles que tentam impor as regras e aqueles que tentam violá-las. Ou
seja, trata-se de um confronto entre aqueles que são acusados e aqueles que acusam. Estas
diferenças nas relações de poder entre atores sociais envolvem, assim, um problema
político intimamente vinculado a uma dinâmica de construção de identidade. Este aspecto
político das ações intencionadas dos atores sociais, também, pode ser analisado a partir da

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teoria da prática de Ortner. Na perspectiva de Ortner (2011), uma análise antropológica da


práticadeve se preocuparem elaborar, dediferentes maneiras, análises mais dialéticas sobre
as possíveis articulações entre as práticas de atores sociais e as coerções estruturais
dasociedade e da cultura, com o objetivo de superar a oposição entre a estrutura e a
agência. Nesse sentido, a prática pode ser definida como toda forma de ação que possui
implicações políticas, sejam estas intencionais ou não. A unidade de ação, assim, seria
concebida como atores individuais, estes, por sua vez, seriam divididos em indivíduos
históricos reais e tipos sociais (2007b).
A organização temporal da ação também integra o quadro de análise que caracteriza
uma perspectiva antropológica da prática. Nesse sentido, a ação poderia ser organizada em
termos de tomada de decisões e/ou ―jogadas‖, as quais seriam condicionadas
culturalmenteao mesmo tempo em que seriam elaboradas pelos próprios atores. De modo
que, a ação em si, também, possui estrutura, na mesma medida que, como analisa Ortner, a
ação opera na e em relação à estrutura. Portanto, a ação não deve ser entendida como uma
simples encenação de regras ou normas impostas pelos padrões culturais existentes, mas,
sim, como uma escolha pragmática. Escolha esta que, por sua vez, não pode ser confundida
com um "voluntarismo romântico".
Nesse sentido, para Ortner, a cultura deve ser entendida como o foco de construção
das pessoas. Para que se possa entender a agência, tambémse faz necessário procurar
entender a forma como a cultura produz, modifica e reproduz as pessoas. Sendo assim, a
noção de ―jogos sérios‖ - enquanto uma formação cultural -, orienta a análise da prática,
em duas direções básicas, a saber, a agência de poder e a agência de projetos (2007a).
Assim, a ação poderia ser entendida a partir da intenção ou a intencionalidade e, deste
modo, seria possível entender as relações concretas que se fundamentam em uma dimensão
simbólica. A noção de ―jogos sérios‖, em Ortner, pressupõe assim atores culturalmente
variáveis e subjetivamente complexos. Nesse sentido, ela parece se distanciar de uma
análise utilitarista da ação dos indivíduos, pois, para ela, não seria possível pensar uma
subjetividade complexa destituída de uma dimensão cultural. O que, também, implica
pensar os processos culturais, de modo a entender as dimensões mais amplas da vida social
e não apenas as interações entre os indivíduos.
Deste ponto de vista, Ortner sugere que se pense do geral para o particular, pelo
menos no que se refere às relações entre agência, poder e projetos. Contudo, não se trata de
entender a dimensão cultural como um elemento determinante dos ―jogos sérios‖, mas,
sim, de perceber a relação entre estrutura e agência de forma relacional. Os ―jogos sérios‖,
assim, se constituem por agentes, ou seja, atores autônomos e individualistas. O foco da
análise de Ortner, portanto, será pensar a multiplicidade das relações nas quais os atores
estão envolvidos, uma vez que estes atores não podem agir fora destas relações. Nesse
sentido, a açãotambém está limitada por esta multiplicidade de relações. Os atores têm
agências, contudo, eles não podem agir de forma livre e irrestrita, isto é, a agência não se
concretiza fora de um contexto de solidariedade e/ou poder.
A agência, segundo Ortner, possui pelo menos três componentes básicos, a saber, a
intencionalidade ou não, a universalidade da dimensão cultural e as relações de poder.
Nesse sentido, ela sugere pensar a agência como um processo que implica dimensões
sociais e culturais mais amplas, as quais permitem que os atores façam e refaçam suas
ações constantemente. Assim, a agência como uma ação mais intencionalizada e orientada
para um objetivo se difere das práticas rotineiras, as quais não possuem a intencionalidade
como uma meta central. Nesse sentido, uma pertinente análise sobre a relação entre a
agência e a estrutura também pode ser encontradas nos trabalhos de Velho,
particularmente, a partir das categorias projetos e campo de possibilidades. Em Velho
(1997) as noções de projetoe de campo de possibilidades também permitem perceber a

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relação entre agência e estrutura, de modo a evitar um ―voluntarismo individualista


agnóstico ou um determinismo sociocultural rígido‖ (VELHO, 2003, p. 40), uma vez que
estas noções possibilitam entender as relações entre biografias individuais e os processos
sociohistóricos sem, contudo, esvaziar estas biografias das suas dimensões socioculturais.
Para Velho os atores sociais não são produtos de condicionamentos e de
determinações sociais, portanto, estes não agem de modo inerte. Pelo contrário, os atores
agem através de ações sociais e com base nestas reinterpretam contextos variados e os
modificam. Contudo, assim como nas análises de Ortner, para Velho as ações dos atores
são limitadas por um quadro sociohistórico, ou seja, um campo de possibilidade
circunscrito, a partir do qual os atores fazem escolha e formam suas curvas de vidas, os
seus projetos individuais e coletivos. Nesse sentido, a noção de projeto designa uma
conduta organizada para alcançar um objetivo, assim, esta noção implica em um ator social
que faz escolhas, organiza e projeta caminhos. A noção de campo de possibilidade, por sua
vez, institui o espaço no qual o ator social pode formular e implementar seus projetos
individuais e coletivos. Este par conceitual, deste modo, se aproxima dos conceitos de
agência de poder e agência de projeto de Ortner, os quais, em linhas gerais, se constituem
por relações de poder e pela intencionalidade do ator para atingir determinado fim,
respectivamente. Estas duas formas de agências, contudo, estão envoltas por uma
multiplicidade de relações sociais, ou, por um campo de possibilidade nos termos
conceituais de Velho.
Cenas etnográficas
Na análise perspectiva antropológica de Geertz (2012, p. 93) tem-se que:

[...] os aspectos morais (e estéticos) de uma dada cultura, os elementos


valorativos, foram resumidos sob o termo ―ethos‖, enquanto os aspectos
cognitivos, existenciais foram designados pelo termo ―visão de mundo‖.
O ethos de um povo é o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu
estilo moral e estético, e sua disposição é a atividade subjacente em
relação a ele mesmo que a vida reflete. A visão de mundo que esse povo
tem é o quadro que elabora das coisas como elas são na simples
realidade, seu conceito de natureza, de si mesmo, da sociedade. Esse
quadro contém suas ideias mais abrangentes sobre a ordem.
Partindo desse pressuposto, sob a ótica de uma etnografia urbana, apresento
adiantequatro cenas de interação observadas durante a elaboração de um mapeamento
situacional do circuito comercial de bares e boates GLS e festas open bar direcionado para
homossexuais masculinos na cidade de Recife, que realizeipara a minha pesquisa de
mestrado em antropologia. Mas antes de descrever as cenas etnografadas, faz-se necessária
uma contextualização física e simbólica dos espaços de sociabilidade onde tais cenas
ocorreram. Nesse sentido é importante também ressaltar que, na cidade de Recife, os
espaços voltados para o público homossexual masculino se encontram próximos aavenida
Conde da Boa Vista, principal avenida comercial da cidade.

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Figura 01: Mapa dos espaços etnografados. Fonte: Google My Maps.


Cena 1 - Boate Metrópole

Foto 01: Boate Metrópole. Fonte: Clube Metrópole

A Boate Metrópole fica localizada na rua das ninfas, 125, no centro da cidade de
Recife. Próximo a boate é possível encontrar prédios residenciais, além de outros
estabelecimentos voltado ao público LGBT. A boate conta com seis ambientes, a saber:
pista New York, pista Brasil, Recife night, Escape, AuAu e camarote ostentação. Por ser
considerado um espaço bem localizado, com uma estrutura diversificada e moderna, a

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boate atrai um público bastante heterogêneo. A boate completou 15 anos de atividades em


abril de 2017.
Era uma noite de sábado, do inverno de 2014, quando fui com Júlio e
Marcos para a Boate Metrópole. Na ocasião chamou a minha atenção a
dinâmica presente no Bar Brasil: No palco seis rapazes dançavam de
forma sincronizada músicas de divas do pop music, como Rihanna,
Britney, Lady Gaga, Beyonce. Uma vez que eles não usavam roupas
padronizadas, disse a Júlio que estava na dúvida: se era atração da boate
ou se as pessoas que ali se apresentavam estavam apenas dançando sem
necessariamente se conhecerem. Ele comentou que: “São pessoas
normais, quem quiser é só subir e dançar”. Estava muito perfeito, havia
uma sincronia naquele grupo, não dava para imaginar que não haviam
ensaiado juntos: “As bichas já sabem de todos os passos das músicas,
por isso é tão sincronizado [...]. As bichas são artistas, elas querem ser
artistas, se sentir uma diva”, comentou Júlio. (Diário de campo, Recife,
junho de 2014).

Cena 2 - Boate MKB

Foto 02: Boate MKB. Fonte: Boate MKB

A Boate Meu Kaso Bar (MKB) fica localizada na rua corredor do Bpo 6, Soledade,
em Recife. Próximo a Boate MKB é possível encontrar saunas, cinemas direcionados ao
público homossexual masculino e cabarés, o que leva a essa região se tornar conhecida
como ―mancha do sexo‖. A MKB é um espaço estigmatizado por muitos, principalmente,
por aqueles que frequentam as boates Metrópole e San Sebastian. Por ser frequentado por
um público mais popular, esse espaço é moralmente desvalorizado por ser um ―local que
cheira a sexo‖, ―cheio de garotos de programas‖ e um ―povo que se veste feio‖.
Era uma noite de sábado quando fui com Júlio, Marcos, Hélio e Diego
para a Boate MKB. No palco principal estava tendo as apresentações de
drags e gogo-boy. O dono da boate anunciava as apresentações das drags,
quando perguntou quem estava na boate pela primeira vez, Hélio gritou e

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levantou os braços, correu para frente, mas ninguém o chamou. Enquanto


isso, Marcos e Diego praticamente se escondiam atrás de Júlio, para não
serem convidados a subir no palco. Subiram três pessoas: um rapaz
branco, cabelo loiro, musculoso, com camisa e calça que modelavam seu
corpo. Seu perfil era o que os meninos chamavam de ―barbie‖; uma
menina, de Curitiba; e um rapaz que era de Olinda, negro, musculoso,
que devido a sua cor e ao seu belo corpo era rapidamente classificado
como cafuçu. [...] Deu-se início a uma ―competição‖ para saber quem
dançava melhor. Inicialmente dançaram um funk, depois um samba, mas
o apresentador não satisfeito falou: “vamos chamar quem é bicha de
verdade, porque precisamos de bicha para sambar de verdade e mostrar
para eles como é que se samba”. Neste momento Hélio correu para a
frente levantando os braços e gritava: “Eu, eu”! Mas o apresentador
acabou chamando outros dois rapazes. Quando o primeiro dançou, Hélio
disse: “Arrasou! Se eu tivesse subido era assim que eu iria fazer”. A
performance bem estilo rainha da bateria (o corpo acompanhando a
batida da música), abrindo os braços para dizer que chegou, fazendo
carão e sambando lindamente”. (Diário de campo, Recife, maio de
2015).
Cena 3 - Parada Liberté

Foto 03: Parada Liberté


Fonte: Arquivo pessoal (Recife, setembro de 2016)

A Parada Liberté foi uma festa promovida pela NMprodueeventos na cidade de


Recife onde se privilegiou estilos mais internacionais da música eletrônica, a exemplo do
house e do tribal house. Foi uma festa open bar em comemoração a Pré-Parada da
Diversidade de Recife, realizada no mês de setembro de 2016 ao custo de R$ 80,00 por
pessoa. Na programação dessa festa, havia muita música eletrônica, com as vertentes da
house music, tocadas pelos seis deejays que comandaram as pick-ups, dos quais dois eram
do grupo The Week, a DJ Grá Ferreira e o dj Fábio Marx.

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Era uma noite de sábado quando fui com Otávio e Iago para a festa
Parada Liberté. Os estilos musicais transitavam entre o house, tribal
house, eletro house. Nada de variações de brasilidades nem bagaceira. O
público presente era em sua maioria de homens, que aparentavam idade
superior aos 30 anos, com roupas muito semelhantes, calça jeans colada
ao corpo e camisa apertada que realçava os músculos. No decorrer da
festa alguns rapazes tiravam as camisas, outros dançavam com seus
parceiros, enquanto se abraçavam e se beijavam. Ser uma bicha pintosa
naquele contexto era vista como algo desprestigiado: “Olha parece uma
Jade dançando [comentava Iago, mostrando um rapaz que ―rebolava
loucamente‖, enquanto dançava] (Diário de campo, Recife, setembro de
2016).
Cena 4 – Boate San Sebastian

Foto 04: Entrada Boate San Sebastian Recife.


Fonte: Boate San Sebastian

A Boate San Sebastian foi inaugurada em outubro de 2014, localizada na rua dez de
julho, na zona sul da cidade de Recife. A boate conta com duas pistas: pista principal,
localizada na parte interna e a pista open air. Trata-se de uma filial da boate de Salvador,
Bahia, assim frequentemente tem como atrações cantores baianos, que junto com os
deejays completa a lineup da noite. Por ter a entrada mais cara e ser em Boa Viagem, esta
boate é tida por alguns como a boate mais elitizada da cidade. Atualmente a boate está
fechada, sua última festa foi dia 02 de janeiro de 2016.
Era uma noite de sábado quando fui com Alex e Paulo para a Boate San
Sebastian. Chamava minha atenção a grande presença de homens que
eram rapidamente classificados como ―barbie‖ pelos meus interlocutores.
A boate investia nas apresentações de gogo-boys e deejays que seguiam o
mesmo padrão dos homens que ali estavam. Homens musculosos, em sua
grande maioria brancos e que usavam roupas de marcas. Os estilos
musicais transitavam entre as diversas vertentes da house music.
Chamava a atenção dos rapazes um rapaz que estava segurando uma

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bolsa ―de mulher‖ e se comportava ―de forma nada discreta‖ enquanto


dançava as músicas que eram remixadas pelos deejaysmimetizando as
divas do pop music. (Diário de campo, Recife, outubrode 2015).
Ao descrever estas quatro cenas de interação, procuro assinalar as semelhanças e
dessemelhanças que emergem na produção de uma lógica de pertencimento a uma
dinâmica de identificação entre homens com práticas homoeróticas. Lógica de
pertencimento esta que, como apontam as narrativas dos meus interlocutores e as cenas
observadas, se estabelece na relação entre estilos de vida e as imersões destes atores nas
formas de sociabilidade urbana que o circuito comercial lhes oferece como um campo de
possibilidades. As cenas observadas, nesse sentido, possibilitaram perceber os sentidos de
pertencer a uma dada identidade sexual e a constituição de significados sobre si mesmos e
em relação aos outros. Trata-se de uma dinâmica de identificação que se organiza a partir
das redes de conflito e de solidariedade, as disputas morais e as categorias de acusações
que perpassam as formas de consumir o circuito de bares e boates GLS e festas open
barentre estes atores sociais (VELHO, 1984, 1997, 2003). Circular pelos diversos espaços
de sociabilidade mapeados me permitiu, assim, perceber as diferentes formas de
sociabilidade e as possiblidades de entrecortes entre os marcadores sociais e identitários da
diferença.
Deste modo, os estilos de vida e as identidades sexuais acessadas, assim como os
vínculos e os conflitos que orientam a constituição das redes de relações destes atores
sociais, apontam para o complexo processo através do qual estes atores sociais estabelecem
os vínculos de pertencimento ao mesmo tempo em que delimitam fronteiras morais e
simbólicas. Nesse sentido, as categorias nativas identitárias como ―barbeis 58, cafuçus59,
ursos60 e pintosas61‖, entre outras, aparecem rotineiramente, nas narrativas dos meus
interlocutores, ora como categorias de pertencimento em relação a si, ora como categorias
de acusações para com o outro. A tensão da possibilidade de conflito e de acionamento de
categorias de acusações, deste modo, precisa ser permanentemente administrada e
negociada pelos diferentes atores sociais em interação imediata na constituição de redes de
relações (GOFFMAN, 2012b, 2013).
As categorias identitárias e de pertencimento aparecem, nas narrativas dos meus
interlocutores, como visões de mundo que demarcam suas escolhas pelos espaços de
sociabilidade nos quais circulam e os estilos musicais que preferem escutar nestes espaços.
Escolhas estas que se organizam como ―cercas e pontes‖, ou seja, como formas de
demarcar fronteiras simbólicas, construir suas redes de sociabilidade e elaborar suas
identidades sexuais (VELHO, 1985, 1997). Sendo assim, os meus interlocutores não
partilham das mesmas categorias identitárias e dos seus respectivos sentidos de
pertencimento, ao contrário, eles produzem várias categorias identitárias tanto para si
quanto para os outros (BECKER, 2008), as quais também possuem diferentes sentidos.

58
A categoria ―barbie‖ é tida como o estereótipo do gay voltado ao mercado GLS.Geralmente são homens
brancos, depilados, tatuados, com o corpo musculoso (fruto de longas horas de academia), que usam roupas
de marcas famosas que modelam o corpo e que frequentam as boates mais caras da cidade, sendo geralmente
de classe média e alta.
59
Para meus interlocutores, o ―cafuçu‖ geralmente é associado a homens de camadas populares:“é aquele
negro/moreno que tem aquele jeitão de homem e possui um corpo naturalmente esculpido pela rotina de
trabalho árduo”.
60
Os ―ursinhos‖ são homens que se assemelham a figura do lenhador, de aparência forte (não
necessariamente musculosos, alguns são ―fofinhos‖) e barbudos. Costumam gostar de usar roupa xadrez. No
meu campo, no Santo Bar, tive contato com uma nova categoria, a do ―ursinho moderninho‖:“ali é cheio de
ursinhos moderninhos, barbudos, bem vestidos e usando aqueles óculos de gente intelectual”.
61
―Pintosas‖ geralmente são aqueles homens com traços mais delicados e associados a feminilidade:“homens
que desmunhecam, ou veste roupa de mulher, tem até umas que vão de salto e usam maquiagem na balada”.

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Esta variedade de categorias identitárias, deste modo, os conduz a performatizar


comportamentos variados, que podem ser apropriados ou inapropriados em uma boate
(GOFFMAN, 2010, 2013). Dependendo das regras morais impostas, em cada boate, bar ou
festa. Assim, um mesmo homossexual pode ser na mesma medida um ―empreendedor
moral‖ e um ―desviante‖ (BECKER, 2008), o que define esta ou aquela ―posição‖ será a
natureza particular da interação.
Deste modo, ser uma ―bicha pintosa‖ na boate MKB ou na pista do Bar Brasil da
Boate Metrópole não constitui uma violação das regras morais que orientam as formas de
sociabilidades naquele espaço, mas ser uma ―barbie‖ sim. O contrário, por sua vez, pode
ser visualizado na Boate San Sebastian ou na festa Parada Liberté, onde a categoria ―bicha
pintosa‖ constitui uma categoria identitária desprestigiada, enquanto a categoria ―barbie‖
constitui um símbolo de prestígio. Assim, ser ―bicha‖ em uma boate, ou, ser ―barbie‖ em
outra, pode ser ou não uma violação das regras morais de condutas. A acusação desta ou
daquela conduta como ―desviante‖ vai depender das disposições morais dos atores sociais
entre interação. No meu trabalho de campo, o jogo de interação simbólica e de relações de
poder (GOFFMAN, 2012a; ORTNER, 2007a; 2007b) que visualizo nas boates e nos bares
GLS e nas festas open bar, aponta assim, que, quando os atores sociais pertencem ou se
sentem pertencendo a uma identidade sexual se apresentam como diferença aos outros
atores em relação e, a partir desta diferença, eleselaboram regras de compartilhamento que
orientam suas condutas e trocas simbólicas nos espaços de sociabilidade urbana recortados.
O sentido de pertencer implica, deste modo, nos rastros de análises citadas, um
processo de proximidade e procura de semelhança. Esta, por sua vez, provoca a busca da
assimilação a um estilo de vida, a uma ethos e a uma visão de mundo. Assim, o sentido de
pertencer a um código de conduta moral produz, entre os atores sociais em interação
simbólica, um sentimento de familiaridade e uma rede de sociabilidade que possibilitam
estes atores sociais a se relacionarem entre si e com os outros. Trata-se, portanto, de um
jogo permanente de semelhança e dessemelhança, organizado a partir de disputas morais,
práticas de desculpas e acusações (BARBOSA, 2015a, 2015b, 2016; KOURY, 2016) no
qual o sentimento de pertença a uma identidade sexual parece assinalar para o processo de
individualização e diferenciação que perfazem os ethos, as visões de mundo e as fronteiras
simbólicas de uma rede de sociabilidade.
Considerações finais
Neste artigo, na esteira das análises teóricas elencadas e a partir de breves notas do
trabalho de campo, procurei analisar como homens com práticas homoeróticas, quando
entram na presença imediata uns dos outros, negociam o sentido e as fronteiras do
pertencer a uma identidade sexual em espaços públicos. Para tanto, a análise aqui sugerida
intentou apontar como se organizam os estilos de vida, os ethos e as visões de mundo
destes atores sociais em interação, particularmente, em bares e boates GLS e nas festas
open bar na cidade de Recife. Intentei ainda construir uma análise aproximativa do
interacionismo simbólico e da teoria da prática. Contudo, não busquei realizar uma
discussão exaustiva das várias tendências intelectuais que predominam nos mencionados
campos de conhecimento. Também não pretendi, nesse sentido, fazer uma revisão
bibliográfica minuciosa da produção teórica disponível. Procureitão somente pontuar
algumas reflexões analíticas, particularmente relevantes para o esclarecimento do problema
sugerido.
Com isto, fez-se necessário realizar um conciso passeio pelos conceitos de ordem
social de Goffman, de desvio social de Becker e de acusações de Velho; pelos conceitos de
ethos e visão de mundo de Geertz; e pelos conceitos de jogos sérios e poder de Ortner.
Procurei, assim, assinalar a dinâmica entre agência/estrutura e indivíduo/sociedade não

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como pares conceituais dicotômicos, mas sim como relações duais e simbólicas. Fez-se
possível entender, deste modo, como homens com práticas homoeróticas administram o
processo de interação social e o aspecto simbólico da ação social. Ressaltei,
principalmente, a ação recíproca dos atores sociais sem, no entanto, perder de vista os
sistemas de classificações identitárias que orientam a interação entre estes atores, como
efeito de processos culturais mais amplos.
Referências
BARBOSA, Raoni. Borges. Vulnerabilidades interacionais: uma reflexão etnográfica sobre
as fragilidades da ordem interacional. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14,
p. 57-72, 2015a.
BARBOSA, Raoni. Borges. Medos corriqueiros e vergonha cotidiana. Um estudo em
Antropologia das emoções. Coleção Cadernos do GREM n. 08. Recife/ João Pessoa:
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BARBOSA, Raoni. Borges. Reflexões etnográficas sobre a construção goffmaniana do
ator social. Dilemas, v. 9, n. 3, 2016, p. 421-438.
BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro:
Zahar, 2008.
GEERTZ, Clifford. ―Ethos‖, Visão de mundo e a análise de símbolos sagrados. In: Clifford
Geertz. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, LTC, 2012, p. 93-106.
GOFFMAN, Erving. Comportamentos em lugares públicos: notas sobre a organização
social dos ajustamentos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas a manipulação da identidade deteriorada. Rio de
Janeiro: LTC, 2012a.
GOFFMAN, Erving. Ritual de interação: ensaios sobre o comportamento face a face.
Petrópolis, RJ. Vozes, 2012b.
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis, RJ. Vozes,
2013.
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Quebra de confiança e conflito entre iguais. Cultura
emotiva e moralidade em um bairro popular. Coleção Cadernos do GREM n. 09.
Recife/João Pessoa: Edições Bagaço; Edições GREM, 2015.
OLIVEIRA, Jainara Gomes de. Prazer e risco nas práticas homoeróticas entre mulheres.
Coleção Ciências Sociais. Curitiba: Appris, 2016.
ORTNER, Sherry. Poder e projetos: reflexões sobre a agência. In: Miriam Pillar Grossi et
al. (Orgs.). Conferências e diálogos: saberes e práticas antropológicas. Blumenau: Nova
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ORTNER, Sherry. Uma atualização da teoria da prática. In: Miriam Pillar Grossi et all.
(Orgs.). Conferências e diálogos: saberes e práticas antropológicas. Blumenau: Nova
Letra, pp. 19-44, 2007b.
ORTNER, Sherry. Teoria na antropologia desde os anos 60. Mana, v.17, n.2, p. 419-466,
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SANTANA, Tarsila Chiara Albino da Silva. Música bagaceira e malícia: sentidos erótico-
dançantes da infregatividade entre homens com práticas homoeróticas em Recife. Dossiê
―Paisagens sonoras‖. Revista Equatorial, v. 3, n. 5, 2016, p. 120-154.

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VELHO, Gilberto. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade


contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
VELHO, Gilberto. Desvio e divergência: uma crítica da patologia social. Rio de Janeiro:
Zahar, 1985.
VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de
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VELHO, Gilberto. Becker, Goffman e a Antropologia no Brasil. Ilha, v.4, n.1, 2002, p. 5-
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VELHO, Gilberto. Goffman, mal-entendidos e riscos interacionais. RBCS, v.23 n.68, 2008,
p. p. 145-148.

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PONTES, Williane Juvêncio. Emoções e sociabilidades urbanas: Uma análise compreensiva e histórica
do GREM Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções sobre a cidade de João Pessoa,
PB. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v.1, n.2, p. 85-105, julho de 2017.
ISSN 2526-4702.
Artigo
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

Emoções e sociabilidades urbanas. Uma análise compreensiva e histórica


do GREM Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções
sobre a cidade de João Pessoa, PB

Emotions and urban sociabilities: A comprehensive and historical analysis of the GREM Research
Group on Anthropology and Sociology of Emotions about the city of João Pessoa, PB

Williane Juvêncio Pontes

Resumo: Este artigo mergulha na memória institucional do GREM Grupo de pesquisa em


Antropologia e Sociologia das Emoções para apresentar e discutir um balanço analítico da sua
produção acadêmica sobre a cidade de João Pessoa, Paraíba, entendida como um mosaico
científico sobre o urbano e o urbanismo estudados. Enfatiza, no âmbito de uma produção de
mais de três décadas, o projeto de pesquisa Medos Corriqueiros, a partir do qual busca
comprender o processo de transformação das sociabilidades urbanas da cidade sob a ótica da
Antropologia das Emoções e das tensões entre indivíduo, sociedade e cultura. Palavras-chave:
memória institucional, GREM Grupo de pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções,
cidade de João Pessoa, Projeto Medos Corriqueiros, emoções

Abstract: This article immerses in the institutional memory of the GREM Group of research in
Anthropology and Sociology of Emotions to present and discuss an analytical balance of its
academic production on the city of João Pessoa, Paraíba, understood as a scientific mosaic
about the studied urban and urbanism. It emphasizes, within a production of more than three
decades, the research project Medos Corriqueiros, from which it seeks to understand the
process of transformation of the urban sociabilities of the city from the perspective of the
Anthropology of Emotions and the tensions between individual, society and culture.
Keywords: institutional memory, GREM Research Group on Anthropology and Sociology of
Emotions, city of João Pessoa, Medos Corriqueiros Project, emotions

Este trabalho resulta de um balanço analítico da pesquisa Balanço comparativo da


produção acadêmica da UFPB, Campus I, sobre a cidade de João Pessoa, Paraíba, 1992-
2012, com ênfase para o subprojeto que realiza uma análise compreensiva da produção
acadêmica do GREM sobre a cidade de João Pessoa, a partir do projeto Medos
Corriqueiros: A construção social da semelhança e da dessemelhança entre os habitantes
urbanos das cidades brasileiras na contemporaneidade62. A pesquisa Balanço

62
A partir de agora denominado de Medos Corriqueiros ou MC. Neste balanço objetiva-se traçar um esboço
da trajetória teórico-metodológica da pesquisa maior através do seu subprojeto. Busca-se discutir a trajetória
e os resultados obtidos no decorrer desses 03 anos de atuação da pesquisa ligado ao Programa Institucional
de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC/CNPq-UFPB, dos anos de 2014 a 2017, que redundou na defesa de
uma monografia de término do curso de Ciências Sociais da UFPB em 2017.

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Comparativo, que teve início no ano de 2012 e encontra-se em sua 5ª fase de


desenvolvimento63, é coordenada pelo Prof. Dr. Mauro Guilherme Pinheiro Koury. Conta,
atualmente, com a participação de 01 assistente de pesquisa, de 02 bolsas PIBICs e de 01
voluntário PIVIC64. Esta pesquisa busca realizar um balanço comparativo da produção
acadêmica dos pesquisadores da UFPB I sobre a cidade de João Pessoa, com base temporal
analítica de 1992 a 2012, com acréscimo para o ano de 2016. São analisadas as trajetórias
teóricas, temáticas e metodológicas que se desenvolveram na academia local para
compreender como a cidade é apreendida pelos pesquisadores desta universidade.
A produção acadêmica da UFPB é submetida a uma avaliação crítica com o intuito
de desvendar e identificar o que se discute e se desenvolve nas diversas áreas de
conhecimento que produz sobre a cidade, compreendendo os caminhos teórico-
metodológicos percorridos pelos pesquisadores e os recortes a que a cidade foi submetida.
Objetiva-se construir um banco de dados que comporte a produção desta universidade
sobre a cidade de João Pessoa, integrando-a a uma política de visibilidade, viabilidade e
acessibilidade, de modo a ampliar a discussão sobre a cidade e o urbano no Brasil
Contemporâneo. Bem como incentivar o diálogo entre os pesquisadores da universidade e
contribuir com a eficácia e a eficiência do fazer científico da UFPB.
Esta pesquisa, atualmente, possui três subprojetos em desenvolvimento 65, no
entanto, neste balanço será discutido o caminho teórico-metodológico do subprojeto que
realizou uma análise da produção do GREM, sobre a cidade de João Pessoa, dentro da
linha de pesquisa Emoções e Sociabilidade Urbana - ESU e, mais especificamente, dentro
do projeto Medos Corriqueiros.
Neste subprojeto a produção acadêmica do grupo foi analisada com o intuito de
verificar a trajetória teórico-metodológica do GREM a partir do projeto MC, na busca de
desvendar a cultura emotiva, o mosaico científico (BECKER, 1993) e os mapas simbólicos
construídos sobre a cidade de João Pessoa sob a ótica dos medos corriqueiros. A realização
deste subprojeto possibilitou a construção de uma história do GREM no interior de uma
linha de pesquisa – ESU – e de um projeto específico – MC –, se debruçando sobre o
recorte analítico dos medos corriqueiros. Esta análise contribui para a compreensão da
cidade a partir de um olhar específico da Antropologia e da Sociologia das Emoções. Bem
como auxilia na discussão sobre a relação entre medo e sociabilidade através da análise do
imaginário social do medo do homem comum urbano.
Este balanço analítico do subprojeto se organiza em 03 tópicos de discussão: o
―Balanço da literatura teórico-metodológica‖, a ―Trajetória metodológica‖ e a ―Análise dos
dados‖. No primeiro tópico será brevemente discutida a literatura auxiliar e as pretensões
da pesquisa, de modo a indicar o diálogo entre a pesquisa e a literatura. O segundo tópico
aborda os caminhos metodológicos percorridos para o desenvolvimento das atividades de

63
As fases analíticas da pesquisa são configuradas por ano, conformando 05 vigências de desenvolvimento
científico organizadas dos anos de 2012-2013, de 2013-2014, de 2014-2015, de 2015-2016 e de 2016-2017.
Esta pesquisa terá mais uma fase teórico-metodológica que apreenderá a vigência de 2017-2018, em processo
de julgamento na seleção de bolsas PIBICs/CNPq pela Pró-Reitoria de Pós-graduação - PRPG.
64
Desde o seu início esta pesquisa já contou com a participação de 09 alunos, bolsistas ou voluntariados.
65
São eles: o subprojeto Análise compreensiva e histórica do GREM - Grupo de Pesquisa em Antropologia e
Sociologia do CCHLA – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da UFPB, Campus I, sobre a cidade de
João Pessoa-PB, tendo como eixo analítico a produção da pesquisa Medos Corriqueiros, da linha de
pesquisa, Emoções e Sociabilidade Urbana; o subprojeto Análise compreensiva da produção docente e
discente da Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Geografia do CCEN – Centro de Ciências
Exatas e da Natureza da UFPB Campus I, sobre a cidade de João Pessoa,-PB, entre 1992-2016; e o
subprojeto Análise compreensiva da produção docente e discente da Graduação e do PPGAU – Programa
de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo do CT – Centro de Tecnologia da UFPB Campus I, sobre a
cidade de João Pessoa-PB, entre 1992-2016.

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pesquisa. E no terceiro tópico é realizado uma sistematização analítica dos resultados


obtidos no decorrer destes anos de atividades científica, de 2014 a 2017.
Balanço da literatura teórico-metodológica
Para auxiliar o desenvolvimento da pesquisa, e de seus respectivos subprojetos, é
necessário um arcabouço teórico-metodológico (T-M) que sensibilize o olhar do
pesquisador e o desperte para diálogos com outros autores, levando em consideração à
temática, à teoria, à metodologia e aos seus objetivos de pesquisa.
A literatura trabalhada se debruça sobre o mapeamento da produção acadêmica, a
cidade, o urbano, o lugar e o espaço, a memória social e a memória institucional, a
pesquisa estado da arte, o mosaico científico e a etnografia cooperativa. Este balanço,
assim, é realizado levando em consideração os trabalhos que foram mais presentes na
discussão do subprojeto.
Uma das primeiras discussões realizadas foi em relação a atividade de mapeamento
da produção acadêmica temática, temporal e espacialmente localizada (MOLINA e
GARRIDO, 2010; PATO et al, 2009). O elemento do mapeamento é um instrumento
necessário para a construção de uma identidade, bem como para a compreensão de
tendências temáticas e de trajetórias teórico-metodológicas. As atividades de mapear a
produção abrem possibilidades para a análise de enfoques e perspectivas de um campo de
conhecimento através de um balanço do estado da arte (FERREIRA, 2002).
O mapeamento é uma atividade que possibilita dá visibilidades e acessibilidade à
produção acadêmica através da criação de um banco de dados, ressaltando a preservação
da memória institucional (AYELLO et al, 2008). Este mapeamento é um mecanismo
essencial para a realização do trabalho de campo da pesquisa e para a consecução dos
objetivos de pesquisa. Isso porque é o mapeamento da produção acadêmica do GREM que
permite desvendar os caminhos teóricos, metodológicos e temáticos dos pesquisadores, de
modo a compreender como a cidade de João Pessoa é apreendida a partir dessa produção.
A produção acadêmica da UFPB I constitui a sua memória institucional, que é
acessada através do mapeamento, já que a universidade não disponibiliza um acesso fácil a
sua produção de conhecimento. A pesquisa procura (re)construir a memória da
universidade a partir de um banco de dados que viabilizará estes trabalhos científicos sobre
a cidade de João Pessoa, ampliando o diálogos entre os pesquisadores da acadêmica, de
modo a favorecer a eficácia, a eficiência e a efetividade no fazer científico da UFPB, bem
como para contribuir com a discussão sobre cidade.
A construção do banco de dados para a produção acadêmica da UFPB I constitui o
que Pierre Nora (1993) denominou como lugar de memória material, isto é, um depósito de
arquivos que preserva uma determinada memória. A produção da universidade compõe um
acúmulo de conhecimento sobre a cidade de João Pessoa de 1992 a 2016 – recorte analítico
da pesquisa – que conforma uma memória social (BOSI, 1993) e uma memória
institucional (AYELLO et al, 2008).
De acordo com Ecléa Bosi (1993), as formas de memória social são processos
normativos relacionados ao campo de significações da vida do sujeito que recorda. Os
trabalhos nesse campo de pesquisa permitem um mapeamento da rememorização dos
caminhos trilhados, onde os próximos pesquisadores possam ser auxiliados por estes
trabalhos. Ação que favorece o diálogo entre os pesquisadores da UFPB, bem como na
academia em geral.
Por trabalhar em um campo voltado para a memória social (GONDAR, 2005;
ABREU, 2005; DOBEDEI, 2005), as atividades de pesquisa atentam para uma reflexão
sobre a importância e os sentidos atribuídos às memórias de docentes universitários e a
produção do conhecimento (SANTOS, 2009), levando em consideração as políticas

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educacionais para o ensino superior (SILVA, 2009). Atuando no campo da memória, este
subprojeto sistematiza e disponibiliza um acúmulo de conhecimento sobre a cidade de João
Pessoa a partir da perspectiva dos medos corriqueiros, onde a cidade apreendida sob
diversos aspectos e ângulos peculiares que comportam histórias específicas em cada lugar,
sejam os bairros, as ruas e os parques.
As literaturas trabalhadas trazem uma reflexão sobre a discussão de memória e
cidade, pois aborda a memória institucional da universidade, aqui, particular, a do GREM,
através das produções que enfocam a cidade de João Pessoa como universo de pesquisa. É
nessa reflexão sobre memória, história e cidade que Sandra Pesavento (2008) desenvolve
seu trabalho, mediante uma análise dos lugares que são pontos de ancoragem de
significados e lembranças, criando um imaginário social. A cidade e a centralidade urbana
se colocam como o espaço para a inserção e compreensão dos lugares de memória e de
história.
A cidade e a centralidade urbana também foram discutidas por Dayse Martins
(2013), que toma a cidade de João Pessoa como universo de pesquisa. Martins analisa a
formação de novas centralidades na cidade, onde as compreende enquanto uma mistura de
questões econômicas, políticas e sociais norteadas por um sistema de ocupações
diferenciadas entre os segmentos da população da capital paraibana, onde as classes média-
alta e alta se fixam no setor litorâneo da cidade, que forma uma nova centralidade. Este
processo de constituição de novas centralidades é estabelecido mediante a expansão urbana
pela qual a cidade passa, levando, com isso, o deslocamento do comércio e de certos
serviços básicos do centro histórico para outras localidades (MARTINS, 2013).
O centro da cidade parece entrar em um processo de decadência após o
descobrimento da orla marítima como lugar de moradia, comércio e lazer, tornando-se uma
nova centralidade. No entanto, este lugar de centralidade urbana não consegue substituir
completamente o centro da cidade devido a sua significação histórica para os habitantes e
para a cidade em si (MARTINS, 2013). A cidade, assim, também é um elemento central de
análise, logo que há uma pretensão de compreendê-la através da produção, a fim de
desvendar os mapas simbólicos lançados sobre ela. Neste caminho, são utilizados para
reflexão os trabalhos sobre a questão do urbano (ANTUNES, 2014), tais como: a vida
mental na metrópole (SIMMEL, 1967), teorias sobre o urbanismo (WIRTH, 1967) e a
organização industrial e a ordem moral da cidade (PARK, 1967), disponibilizando um
campo de pensamento acerca da relação com o urbano contemporâneo, com o uso da
cidade (DIÓGENES, 2016) e as tensões que envolvem o indivíduo e a sociedade.
Nesta discussão sobre a cidade também foi trabalhado um conjunto de artigos que
analisam os estudos urbanos na Antropologia. Trabalhos estes, como o de Gilberto Velho
(1980), que objetivaram abrir caminho para a realização de estudos urbanos, na própria
cidade. Bem como aqueles que articulam reflexões e buscam construir caminhos para uma
antropologia da cidade, com a compreensão do fenômeno urbano, que possui relação com
princípios mais abrangentes (FRÚGOLI JR, 2005). Na pretensão de construir essa lógica
mais ampla, de uma antropologia da cidade, também se posiciona o autor José Magnani
(2002), que explora como a etnografia auxilia na compreensão do fenômeno urbano, com
ênfase na dinâmica cultural e nas formas de sociabilidade nas grandes cidades
contemporânea. As literaturas, assim, apresentam-se importantes quanto à temática
trabalhada, abordando a cidade e suas configurações como totalidade e diversidade que
apresentam relações tensas, mas também de acomodação e invenção.
Michel de Certeau (1998) também discute a cidade, tendo em vista o ato de
caminhar e a questão do lugar e do espaço. O ato de caminhar é visto como um ato de
enunciação que faz do lugar um espaço e se relaciona com a cidade através dos seus
movimentos. Em diálogo com este historiador, se faz interessante, entre outros, a discussão

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sobre a conceitualização de lugar e espaço. O espaço é considerado um lugar praticado, ele


possui um sentido específico. Enquanto que o lugar é um espaço simbólico vivido. Os
lugares são identificados, permitem uma memória e um sentido de pertencimentos e
reconhecimento, pois a história do lugar está impregnada por aqueles que o fazem. Os
lugares são os movimentos, dotados de sentidos, das pessoas no espaço. É o lugar leva a
possibilidade de criação de um espaço. Portanto, o lugar é uma configuração instantânea de
posições que implica uma indicação de estabilidade, imperando a lei do próprio. Enquanto
que o espaço é um lugar praticado que leva em consideração os vetores de direção, da
quantidade e velocidade e da variável tempo, não possuindo uma univocidade nem a
estabilidade de um próprio (CERTEAU, 1998).
Discutir sobre o conceito de lugar e de espaço é importante para o exercício
reflexivo do subprojeto, visto que a produção do GREM analisa a cidade de João Pessoa a
partir dos seus lugares, compondo, no conjunto, uma compreensão geral da cidade sob a
ótica dos medos e dos medos corriqueiros. As noções de ―mosaico científico‖ e de
―etnografia cooperativa‖, de Becker (1993) e de Hannerz (2015), servem como um espelho
por onde se desenvolverá a análise compreensiva dos trabalhos desenvolvidos pelo grupo.
Nele, pesquisadores e alunos se colocam em atividades perceptivas de apreensão coletiva
da cidade como um todo, ou em universos e temáticos singulares, mas que, juntos, formam
um quadro geral do guarda-chuva estudado.
A ideia de mosaico científico proposta por Becker, – para análise da experiência de
pesquisa pela Escola de Chicago, tendo a cidade de Chicago como universo sistemático de
análise, – parte da noção da imagem de um mosaico científico, onde cada trabalho
desenvolvido contribui para a compreensão do quadro analisado como um todo. O
conjunto de produção acadêmica que constitui o projeto Medos Corriqueiros se apresenta
enquanto peças singulares que compõem a pesquisa, e indicam o seu contexto geral e, ao
mesmo tempo, dentro deste contexto, se assentam as suas descobertas singulares e
específicas do seu recorte analítico.
Na discussão traçada por Becker, é salientado o acúmulo de conhecimento sobre
um determinado lugar, de modo a indicar as suas singularidades e conexões no processo
formativo do mosaico científico, que implicaria em uma condensação de experiência
solidária e produtiva do fazer social. Ao se partir da ideia de mosaico científico enseja-se o
pressuposto analítico de que a produção acadêmica do projeto guarda-chuva MC possui um
acúmulo de conhecimento sobre a relação entre emoções, cultura emotiva, moralidades e
sociabilidade urbana na cidade de João Pessoa, com ênfase nos medos e os medos
corriqueiros. Este conhecimento acumulado forma um mosaico científico da e sobre a
cidade, apreendendo-a a luz dos medos corriqueiros.
Em diálogo com Howard Becker, Hannerz (2015) desenvolve a ideia de uma
etnografia cooperativa. Ideia esta que contribui para uma leitura contextual da totalidade
analítica do projeto e da cidade, universo de pesquisa maior do GREM. Os trabalhos
etnográficos, portanto, enquanto elementos cooperativos estão em constante colaboração
interna entre seus pesquisadores e formandos, levando a uma compreensão ampla sobre um
determinado lugar, temática, teoria ou metodologia, de uma forma singular. Forma singular
esta onde cada um usa o conjunto de achados de todos e, ao mesmo tempo, amplia o
conhecimento comum, e a singularidade do seu próprio universo e tema trabalhados.
Ao levar em consideração a noção de etnografia cooperativa, onde a produção
acadêmica de um auxilia a compreensão do contexto geral da pesquisa, faz-se necessário o
constante exercício de estranhamento (VELHO, 1978 e DA MATTA, 1978) em relação à
produção, aos subprojetos e ao projeto de pesquisa, para que se possa identificar e traçar as
redes de particularidades, de semelhanças e diálogos que entrelaçam a produção. De modo
que cada produção e cada subprojeto sejam interpretados sempre como possibilidades,

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como algo novo que pode levantar novas questões em relação ao exercício reflexivo de
analisar e compreender o projeto de pesquisa MC. Esta análise permite entender como os
diálogos se estabelecem no interior da pesquisa MC e do GREM, e como se constituem as
particularidades da produção e dos subprojetos, e, qual e como o sentido de cidade é
construído nesta trajetória.
Este balanço T-M da literatura, por fim, buscou traçar conexões analíticas que são
importantes para a compreensão e o desenvolvimento da pesquisa Balanço Comparativo e
do seu subprojeto. Esse exercício de diálogo teórico-metodológico salienta uma questão
importante levantada por esta pesquisa: o fazer científico é coletivo, e sua efetividade e
eficácia se dão através do constante diálogo com outros pesquisadores, seja a partir de
temáticas, de teorias ou metodologias aproximadas. Uma pesquisa é única por seu caminho
analítico, no entanto, ela compõe uma rede de pensamento na academia.
A literatura T-M é fundamental para o desenvolvimento de uma pesquisa, o que
transpassa a necessidade de que os estudos tenham visibilidade e acessibilidade para todos,
seja da academia ou da comunidade em geral. Aspecto que ressalta a importância da
realização de uma pesquisa como a Balanço Comparativo, que busca inserir a produção da
UFPB I em uma política de visibilidade, fomentando a discussão acadêmica no fazer
científico.
Trajetória Metodológica
A trajetória metodológica deste subprojeto se apoia em 03 fases teórico-
metodológicas que está organizada de acordo com a lógica anual do Programa Institucional
de Bolsas de Iniciação Científica – PBIC/CNPq-UFPB, com início no ano de 2014 e
conclusão no ano de 2017. Este balanço é realizado com base nestas 03 fases de
desenvolvimento do subprojeto, que contemplam as vigências 2014-2015, 2015-2016 e
2016-2017. A discussão está sistematizada a partir de cada vigência, de modo a indicar o
caminho metodológico, os instrumentos utilizados e os resultados obtidos no
desenvolvimento das atividades de pesquisa.
A trajetória metodológica da pesquisa Balanço Comparativo e deste subprojeto se
configura através de estágios de pesquisa que condensam os objetivos de cada vigência,
mapeando a complexificação e o afunilamento do subprojeto. Neste sentido, os objetivos
de cada fase se organizam da seguinte maneira:
1. Vigência 14-15: Análise compreensiva e histórica de dois grupos de pesquisa
antigos e ainda em atuação no Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes –
CCHLA da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, Campus I, entre 1992-2012.
2. Vigência 15-16: Análise compreensiva e histórica do GREM – Grupo de Pesquisa
em Antropologia e Sociologia das Emoções do CCHLA da UFPB, Campus I, sobre a
cidade de João Pessoa-PB, entre 1992-2012 [acrescido o ano de 2016].
3. Vigência 16-17: Análise compreensiva e histórica do GREM do CCHLA da
UFPB, Campus I, sobre a cidade de João Pessoa-PB, tendo como eixo analítico a
produção da pesquisa Medos Corriqueiros, da linha de pesquisa, Emoções e
Sociabilidade Urbana, entre 1992-2016.
A vigência 14-15 marca a minha entrada como bolsista de iniciação científica na
pesquisa Balanço Comparativo, bem como e o início do subprojeto e suas preocupações
analíticas66. Neste período as primeiras atividades realizadas foram de mapeamento do CV

66
A criação deste subprojeto é resultado do afunilamento teórico-metodológico da pesquisa, que inicia suas
atividades no ano de 2012.

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Lattes de Koury, sendo um trabalho experimental, feito em conjunto com outra bolsista,
para o desenvolvimento das demais atividades do subprojeto.
Nesta fase a proposta era analisar o GREM e o GREI – Grupo Interdisciplinar de
Estudos em Imagem, dois grupos de pesquisas antigos e ainda em atuação no CCHLA. No
entanto, devido a grande quantidade de produção acadêmica do GREM, este foi escolhido
para análise compreensiva e histórica da produção e da sua trajetória.
As principais atividades desenvolvidas nesta vigência foram de levantamento e de
mapeamento da produção acadêmica, das linhas de pesquisa, dos pesquisadores e dos
alunos ligados ao GREM. A princípio foi realizado o levantamento dos membros que
compõe o grupo, tendo como base o Diretório de Grupos de Pesquisa – DGP e o CV
Lattes, ambos os instrumentos disponíveis na Plataforma Lattes.
Com a obtenção dos dados foi possível construir sistematizações analíticas para
auxiliar o desenrolar dos objetivos da pesquisa. Os pesquisadores, por exemplo, foram
divididos em 02 categorizações: os pesquisadores internos, com um total de 04, e os
pesquisadores externos, com um total de 13. Os pesquisadores externos foram classificados
em outras 02 categorias: aqueles que integram outros Departamentos da UFPB I, com 02
membros, e aqueles que pertencem a outras Instituições de Ensino Superior, com 11
membros. Neste sentido os pesquisadores internos são aqueles que integram o
Departamento de Ciências Sociais e o Programa de Pós-Graduação em Antropologia da
UFPB I, enquanto que os pesquisadores externos são aqueles que integram outros
Departamentos da universidade ou outras instituições.
Outra sistematização foi as fases de desenvolvimento do GREM em sua trajetória
acadêmica. O grupo aponta para 02 fases teórico-metodológicas: a primeira data de sua
formação, no ano de 1994, até o ano de 2009. Durante esse período o grupo possuía um
único pesquisador, concentrando a produção acadêmica sobre Koury e seus orientandos. A
segunda fase tem início no ano de 2010, quando há uma abertura do grupo para novos
pesquisadores e estudantes, ampliando as perspectivas analíticas, os diálogos e o
desenvolvimento de trabalhos coletivos. O desenvolvimento e a sistematização dessas
atividades permitiram a construção de uma pequena história sobre o GREM e sua
organização interna. De modo a apresentar um panorama geral da sua trajetória acadêmica
e contribuição na área da Antropologia e Sociologia das Emoções. Esta vigência 14-15
marca o afunilamento analítico do subprojeto em direção à análise compreensiva da cidade
de João Pessoa a partir do grupo de pesquisa.
A vigência 15-16 se debruça na separação da produção acadêmica sobre a cidade de
João Pessoa e na busca destes arquivos em formato PDF ou impresso para a composição
do banco de dados sobre a cidade, e, assim, para a preservação da memória institucional.
Aqui, o principal obstáculo foi encontrar a produção de Monografias e Dissertações na
Biblioteca Central e nos sites de pós-graduação da UFPB. Além da dificuldade de achar os
artigos em periódicos publicados a mais de 10 anos. Nesta segunda fase teórico-
metodológica do subprojeto o foco foi a produção sobre a cidade, mapeando-a de acordo
com as linhas de pesquisa, os projetos e os pesquisadores do GREM. Devido à
concentração da produção sobre a cidade de João Pessoa se concentrar nos pesquisadores
internos, estes foram escolhidos para análise da produção.
Com essa separação da produção através do seu universo sistemático de pesquisa
optou-se ampliar o recorte temporal do subprojeto e da pesquisa Balanço Comparativo,
compreendendo na análise o ano de 1992 até 2016. Este elemento resultou na realização de
um segundo mapeamento que se debruçou na produção sobre a cidade de João Pessoa. A
partir deste mapeamento foi escolhida para análise a linha de pesquisa ESU, tendo em vista
o seu grande fluxo de produção sobre a cidade, em comparação as outras linhas do grupo.
Dentro da linha ESU, foram selecionados 03 projetos de pesquisa: Fotografia, cidade e a

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percepção dos produtores culturais da cidade (1993-2000); Medos Corriqueiros: A


construção social da semelhança e da dessemelhança entre os habitantes urbanos das
cidades brasileiras na contemporaneidade e Mídia e Moralidade: Uma análise sociológica
do pânico moral e das concepções de justiça desenvolvidas a partir dos noticiários de TV.
Os primeiros projetos são coordenados pelo Prof. Dr. Mauro Koury, enquanto que o último
é coordenado pela Profa. Dra. Simone Brito.
Com a seleção destes projetos deu-se início as primeiras leituras da produção, de
modo a construir fichas resumos e resenhas que objetivam auxiliar a sistematização do
trabalho analítico. Nessas fichas constam informações técnicas, tais como: o título, o autor,
os orientados, o ano de defesa, a titulação, a linha de pesquisa e a banca. Bem como
informações específicas: o assunto principal, o objeto, os objetivos, as hipóteses, os
resultados, a literatura, a metodologia e as referências. Além das informações gerais: o
universo de pesquisa, o resumo, as palavras-chave, as fichas unitermos, a trajetória teórica,
metodológica e temática do trabalho, com o intuito de facilitar a acessibilidade às
informações. Cada ficha-resumo também recebe um número para sua identificação.
Com o início das leituras e dos fichamentos da produção, considerando o grande
fluxo de trabalhos sobre a cidade, foi escolhida para análise a produção acadêmica do
projeto Medos Corriqueiros, onde os trabalhos dos outros dois projetos supracitados
entram como instrumentos de diálogo e apoio para as reflexões produzidas no interior do
projeto selecionado.
No período 2016-2017 a atividade de análise compreensiva da produção acadêmica
do GREM sobre a cidade de João Pessoa encontra-se mais afunilada. Adentra-se na leitura
da produção de artigos em periódicos e anais, de livros e de capítulos de livros. Nesta
vigência resulta na construção de um Trabalho de Conclusão de Curso – TCC. O
mapeamento da produção do projeto MC disponibiliza um panorama analítico sobre os
subprojetos que compõe este projeto maior, denominado de projeto guarda-chuva. A
pesquisa MC é considerada guarda-chuva por ser um projeto amplo que tem, em si, a
possibilidade de aninhar em seu interior vários projetos específicos que, ao mesmo tempo
em que permitem o desenvolvimento autônomo, mas interdependente de cada tema
singular, permite uma constante verificação de uma totalidade imersa nos cruzamentos das
diversas facetas dos subprojetos entre si e no interior do projeto maior.
Neste sentido, o projeto guarda-chuva MC é composto por 07 subprojetos67, que
subprojetos condensam o desenvolvimento e a complexificação teórico-metodológica do
projeto, apresentando um acúmulo de conhecimento sobre a cidade de João Pessoa. Cidade
que é analisada a partir de voos compreensivos da cidade em seu todo, mas também se deu
bairros, ruas, parques e grupos específicos. Nesta vigência foram realizadas as leituras e os
fichamentos da produção acadêmica medos corriqueiros sobre a cidade. A análise da
produção fez-se com o objetivo de desvendar como os conceitos utilizados na pesquisa
foram se complexificando no decorre do seu desenvolvimento, bem como compreender a
trajetória teórico-metodológica do projeto MC. E assim descortinar como a cidade se inter-
relaciona através da produção acadêmica, de modo a identificar o mosaico científico
construído sobre a cidade.
A esquematização dos dados obtidos nesta última fase teórico-metodológico
permitiu sistematizar e construir um mapa conceitual da pesquisa, onde é possível
acompanhar o surgimento e a complexificação dos conceitos na trajetória do projeto

67
Os subprojetos do Projeto MC são os seguintes: O vínculo ritual: um estudo sobre sociabilidade e modos
de vida entre jovens no urbano brasileiro contemporâneo; Parque Solon de Lucena: espaço público,
potencial de urbanidade e desenvolvimento da cidade; Bairro do Roger: história, memória e estigma; Sujeira
e imaginário urbano; Confiança e vergonha: uma análise do cotidiano da moralidade; Sociabilidade e
conflito nos processo de interação cotidiana sob intensa pessoalidade; e Observatório sobre medos.

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guarda-chuva. Esta sistematização dos dados, través de esquemas conceituais, de tabelas,


de gráficos e dos fichamentos, permite desvendar a trajetória teórico-metodológica do
projeto MC, de modo a compreender os diversos recortes a que a cidade foi submetida pelo
grupo dentro do projeto. Bem como escrever uma história da atuação do GREM dentro de
uma linha, Emoções e Sociabilidade Urbana, e de um projeto de pesquisa, Medos
Corriqueiros.
O procedimento metodológico realizado no desenvolvimento deste subprojeto e da
pesquisa Balanço Comparativo possibilitou mapear, organizar e sistematizar a produção
acadêmica do GREM, de modo a demarcar o afunilamento analítico deste subprojeto.
Neste sentido, as 03 vigências teórico-metodológicas da pesquisa, 14-15, 15-16 e 16-17,
apontam para as fases de complexificação temática, teórica e metodológica, que resultou
na conclusão do subprojeto e na confecção de um TCC.
Análise dos dados
As atividades de pesquisa desenvolvidas neste subprojeto resultaram em uma análise
compreensiva e histórica do GREM, que compreende a trajetória temática, teórica e
metodológica do grupo. Discute-se o processo de formação e desenvolvimento deste
grupo, tomando 2016 como o ano base de análise. O grupo é apresentado dentro de uma
análise que se afunila para a linha de pesquisa ESU e para o projeto guarda-chuva MC, no
âmbito do qual se busca compreender como o GREM apreende a cidade de João Pessoa,
análise que é realizada sob a ótica dos medos e dos medos corriqueiros.
O Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções
O GREM foi fundado em 1994 com o intuito de analisar a ―emergência da
individualidade e do individualismo no Brasil urbano contemporâneo, enfatizando a
questão da formação das emoções, enquanto cultura emocional‖ (KOURY, 2014, p.847). É
o grupo mais antigo na área da Sociologia e Antropologia das Emoções, contribuindo
ativamente na luta pela consolidação das Emoções como subárea da Sociologia e da
Antropologia na academia brasileira.
Este grupo nasceu do fenômeno das emoções como subárea disciplinar da
Sociologia e Antropologia. As discussões e análises na composição de um campo analítico
da Antropologia e da Sociologia das Emoções têm início nos Estados Unidos nos anos de
1970, e chega ao Brasil nos anos de 1990. Quatro anos depois, sob influência deste campo,
ocorre à migração de Koury, que voltava seus estudos para o trabalho e sindicalismo,
passando a adentrar cada vez mais no campo da subjetividade até se firmar no campo das
emoções, cultura e sociedade, com a criação do GREM.
O grupo desenvolve estudos que buscam analisar e compreender os modos e estilos
de vida, bem como as representações e o imaginário social constituído pelas formas de
sociabilidade emergentes no urbano contemporâneo brasileiro e ocidental (KOURY,
2016). Neste sentido, agrega pesquisadores e estudantes de pós-graduação e de graduação
que tem o interesse de estudar a relação entre Emoções, Sociedade e Cultura 68.

68
O GREM publica a RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, editada por Koury, e por Koury e
Barbosa a partir do volume 16. Conta com um conselho editorial de vinte e um pesquisadores, sendo
dezesseis nacionais e cinco internacionais. A RBSE pode ser acessada no endereço eletrônico:
http://www.cchla.ufpb.br/rbse/. Como elemento de continuidade, o GREM fundou recentemente uma nova
revista, Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia. É uma revista que tem o objetivo de
ser um espaço de discussão e reflexão sobre o urbano contemporâneo, trazendo análises sobre cidade,
urbanismos e urbanidades. Sociabilidades Urbanas foi fundada no ano de 2017 e teve sua primeira publicação
no mês de março. Pode ser acessada no endereço eletrônico:
http://www.cchla.ufpb.br/grem/sociabilidadesurbanas/. O GREM também publica a Coleção Cadernos do
GREM, com 10 números editados.

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A produção acadêmica desenvolvida integra as suas linhas de pesquisa, assim


como cada pesquisador e estudante nele atuantes. O grupo possui, atualmente, 04 linhas de
pesquisa, a saber: Estudos Teóricos em Antropologia e Sociologia das Emoções (ETASE),
Emoções e Consumo (EC), Emoções, Moralidade e Gênero (EMG) e Emoções e
Sociabilidade Urbana (ESU).
A linha de pesquisa ETASE intenta desenvolver estudos teóricos sobre a relação
Emoções, Cultura e Sociedade. Busca divulgar, aprofundar e refinar o campo analítico da
Antropologia e da Sociologia das Emoções na academia brasileira, contribuindo para o
debate e para a luta pela consolidação das Emoções como subárea da Antropologia e da
Sociologia nas Ciências Sociais mundial. A linha de pesquisa EC tem a preocupação de
analisar como o consumo, entendido enquanto espaço de produção cultural e simbólica,
tornou-se uma esfera de configuração e reconfiguração das formas de expressão de
emoções, identidades e subjetividades dos agentes sociais na contemporaneidade.
EMG é uma linha de pesquisa do GREM que objetiva analisar e compreender a
cultura emotiva e suas relações com a produção de moralidade em uma dada sociabilidade,
o comportamento desviantes nos homens comuns no urbano brasileiro e as implicações
morais nas relações de gênero. ESU é outra linha de pesquisa que tem por finalidade
analisar a emergência de uma nova cultura emotiva no urbano contemporâneo brasileiro,
principalmente a partir da década de 1970, quando o Brasil ganha uma predominância
urbana. Nesta linha se desenvolvem discussões sobre os processos interacionais na cidade,
os modos e estilos de vida e as formas de viver, sentir e narrar à cidade.
ESU é a linha de pesquisa do GREM que mais produziu trabalhos sobre a cidade de
João Pessoa, como universo sistemático de pesquisa. Esta linha surge nos primeiros anos
de atuação acadêmica do grupo de pesquisa, e desenvolve estudos sobre a sociabilidade
urbana, o ideal de progresso, as fotografias do urbano e o sentimento de pertença, bem
como sobre a emoção luto, o sentimento de perda, a noção de morte e de morrer, a emoção
medo, constituindo a cidade de João Pessoa sob a perspectiva da relação entre emoções e
sociabilidade urbana na contemporaneidade brasileira.
A linha de pesquisa ESU
Três projetos foram acolhidos na linha ESU, estes se debruçam sobre a análise da
capital paraibana: Fotografia, pobreza, cidade e a percepção dos produtores culturais da
cidade (1994-2000), Luto e Sociedade no Brasil (1994-2003) e MC (1999-atual).
Fotografia, pobreza, cidade e a percepção dos produtores culturais da cidade foi
um projeto de pesquisa que buscou discutir o homem comum pobre na cidade da Parahyba,
atual João Pessoa, entre os anos de1890 a 1920 (KOURY, 1986, 1988, 2003), e os ideais
de progresso e de desenvolvimento urbano na cidade da Parahyba, através das fotografias
dos anos de 1870 a 1930 (BARRETO, 1996). Bem como analisar a fotografia na cidade, de
1850 a 1950 (LIRA, 1997), com o intuito de acompanhar o itinerário dos fotógrafos que ali
atuavam e de entender como a cidade foi construída a partir do olhar fotográfico da época.
O projeto levantou, ainda, a discussão sobre a percepção da cidade de João Pessoa pelos
seus produtores culturais, nos anos de 1980 a 1990 (HONORATO, 1999). Este projeto
esteve em desenvolvimento no GREM dos anos de 1994 a 2000 e produziu trabalhos que
se debruçam sobre fotografia, cidade, modernização, sociabilidade urbana e sentimento de
pertença, trazendo os primeiros apontamentos sobre a emoção medo e sua influencia nas
configurações urbanas e nas formas de sociabilidade. O projeto serviu como uma pré-fase
organizativa do que veio a se tornar mais tarde o projeto MC.
Luto e Sociedade no Brasil foi o projeto que marcou a transição do grupo para o
campo analítico das Emoções, na Antropologia e na Sociologia. Foi o período da criação e
consolidação do GREM. Este foi um dos primeiros projetos do grupo de pesquisa e teve

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por objetivo analisar e compreender as transformações no comportamento urbano de classe


média, na contemporaneidade brasileira, a partir do processo de luto. Este projeto realizou
coleta de dados nas 27 capitais do Brasil com a finalidade de compreender o imaginário
social em relação ao luto e a dor da perda, onde os indivíduos elaboram definições sobre o
sentimento de luto, da perda, da dor e identificam as mudanças e as permanências nos
costumes e nos rituais da morte e do morrer. Assim, o projeto faz um balanço das
percepções sociais sobre o trabalho de luto no urbano contemporâneo brasileiro. Luto e
Sociedade analisou as atitudes em relação ao fenômeno do luto no Brasil urbano
contemporâneo. Teve por objetivo entender o significado social do luto e o processo de
individuação daquele que o sofre, de modo a desvendar os processos de mudança de
valores e mentalidades em relação ao luto e a morte, apontando para a emergência de uma
nova sensibilidade na sociedade brasileira urbana (KOURY, 2010b).
O projeto MC foi construído através do refinamento analítico de questões
levantadas em ambos os projetos anteriores. A pesquisa MC busca analisar a construção do
imaginário social sobre o medo do homem comum urbano na contemporaneidade
brasileira, a fim de compreender as transformações na construção social da semelhança e
da dessemelhança entre os habitantes da cidade, orientando as formas de sociabilidade
urbana. Neste projeto, os medos, - enquanto medos corriqueiros, - são entendidos como
emoções fundamentais para a elaboração do cotidiano do homem comum urbano. O medo
é compreendido como podendo paralisar, aprimorar ou transformar as trocas materiais e
simbólicas dos indivíduos no processo de interação social. O medo é entendido, assim,
como um elemento social significativo para a configuração e reconfiguração das formações
societárias, pois é uma emoção que está presente em toda e qualquer relação social, se
apresentando como uma força motivadora desse social.
O projeto MC se encontra em desenvolvimento no GREM desde o ano de 1999.
Desde então, vem colaborando com a discussão teórico-metodológica sobre a relação entre
medo e sociedade no Brasil e no ocidente, enfatizando a construção do imaginário social
sobre o medo, e os medos corriqueiros, no homem comum urbano das cidades brasileiras
na contemporaneidade. Este projeto de pesquisa se preocupa em analisar e compreender as
formas de sociabilidade que se desenvolvem sob a ótica dos medos corriqueiros na cidade
de João Pessoa. Leva em consideração as modificações na estrutura e na organização
urbana e societal da cidade e dos seus habitantes.
Apesar de suas singularidades teórico-metodológicas, os três projetos de pesquisa
traçam diálogos sobre o urbano, a pobreza, a cidade, o progresso, as emoções, a
semelhança e a dessemelhança, identificando as transformações na organização societal da
sociedade brasileira, com a emergência de uma nova sensibilidade que influencia as formas
de sociabilidade urbana do país, a partir da década de 1970. Esta linha de pesquisa
pressupõe um olhar específico do GREM sobre a cidade de João Pessoa. Olhar este
configurado a partir da discussão sobre a relação entre emoções e sociabilidade urbana.
O projeto de pesquisa Medos Corriqueiros
O projeto guarda-chuva MC é a pesquisa do GREM que possui a maior quantidade
de trabalhos orientados sobre a cidade de João Pessoa 69. Com início no ano de 1999, o

69
Este projeto tem uma ampla produção acadêmica, entre elas encontram-se os livros Medos Corriqueiros e
Sociabilidade (KOURY, 2005), O Vínculo Ritual: Um estudo sobre sociabilidade entre jovens no urbano
brasileiro contemporâneo, (KOURY, 2006) e De que João Pessoa tem medo? Uma abordagem em
Antropologia das Emoções, (KOURY, 2008). Esses livros analisam e discutem os resultados obtidos no
desenvolvimento da pesquisa, publicizando os trabalhos desenvolvidos no âmbito do GREM. A pesquisa
também produz artigos em periódicos, capítulos de livros, artigos e resumos em anais de congressos, entre
outros. Estes trabalhos apresentam-se como mecanismos que viabilizam as análises e reflexões desenvolvidas
no grupo e que permitem pensar e discutir os conceitos e as categorias trabalhadas, possibilitando aprimorá-

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projeto encontra-se em desenvolvimento e rende uma ampla produção acadêmica sobre a


discussão entre medo e sociedade, inaugurando uma nova esfera de investigação no grupo.
O projeto guarda-chuva analisa a construção do imaginário social do medo no homem
comum habitante da cidade de João Pessoa, com o intuito de desvendar como o medo se
propaga no cotidiano dos habitantes urbanos na contemporaneidade. O medo é entendido
como um elemento social significativo para a configuração e reconfiguração das formações
societárias, encontrando-se presente em toda relação social e se mostrando como uma força
motivadora desse social (KOURY, 2002). O medo não é entendido apenas como um
elemento de subordinação, retraimento e repulsa, mas também como um aspecto
transgressor, inovador, organizador e criador de novas sociabilidades.
O projeto MC propõe compreender a construção social da semelhança e da
dessemelhança entre os habitantes urbanos das cidades brasileiras na contemporaneidade
(KOURY, 2002). O elemento da semelhança e da dessemelhança apresenta-se como um
aspecto fundamental de análise para pensar as novas formas de sociabilidade que se
desenvolvem no urbano contemporâneo. A produção acadêmica do projeto MC
disponibiliza um acúmulo de conhecimento sobre a cidade de João Pessoa, apreendida a
partir da emoção medo. A produção constrói diálogos e cria uma rede de conhecimento
sobre o universo analisado, isto é, a cidade de João Pessoa. Este acúmulo de conhecimento
da produção do projeto MC do GREM sobre João Pessoa contribui para a composição da
imagem de um mosaico científico da cidade (BECKER, 1993). A produção acadêmica
colabora de maneira singular para a compreensão do todo analítico da cidade de João
Pessoa, em que cada estudo é visto como uma peça que constitui este mosaico científico de
onde a cidade é apreendida para análise.
O mosaico científico comporta a produção de estudos que se conectam e dialogam,
permitindo múltiplas comparações de um determinado universo de pesquisa. No mosaico
científico, os estudos que nele se desenvolvem trabalham de forma cooperativa
(HANNERZ, 2015), permitindo, ao mesmo tempo, uma leitura e análise contextual do todo
e de suas partes. O mapa simbólico também apreende os estudos específicos, em
cooperação analítica, para a constituição de uma rede de significados sobre a cidade,
universo de pesquisa, elaborando uma visão geral que condensa as conexões da produção
acadêmica, e as conectam em suas particularidades. A construção deste mosaico científico

las e refiná-las. Além disso, a publicação desses trabalhos incorpora a política de visibilidade e acessibilidade
que se desenvolve no interior do grupo, abrindo caminho para o diálogo com outros pesquisadores,
contribuindo para a discussão acerca do tema na academia e para a eficiência e efetividade do fazer
científico. É importante salientar que a produção acadêmica do projeto Medos Corriqueiros selecionada para
análise nesta monografia se divide, ainda, em Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) e Dissertações de
Mestrado. Entre os TCCs se encontram: Medo na cidade: Uma experiência no Proto do Capim (VILAR,
2001), Tambiá – medo, cultura e sociabilidade: Um estudo sobre o bairro de Tambiá, João Pessoa-PB
(SILVA, 2003), Uma Análise do Bairro de Cruz das Armas Sob a Ótica do Medo (SOUZA, 2003), Tambaú:
Pertença e fragmentação sob uma ótica do medo (SOUSA, 2004), Sob a ótica do medo: Um estudo de caso
no bairro dos Estados, João Pessoa-PB (SILVA, 2004), Convívio e interação social: os códigos de afeição e
de estranhamento, os medos corriqueiros e a sociabilidade em uma rua (CAVALCANTE FILHO, 2005),
Sociabilidade, pertença e medos corriqueiros: Estudo de uma rua no bairro de Valentina de Figueiredo,
João Pessoa – Paraíba (ALMEIDA, 2005), João Pessoa à noite: Um estudo sobre vida noturna e
sociabilidade, 1920 a 1980 (SOUZA, 2005), Memória social e sentimento de pertença: Um estudo sobre o
Parque Solon de Lucena, João Pessoa – PB (SILVA, 2006) e Sociabilidade, Medo e Estigma no contexto
urbano contemporâneo: o bairro do Roger na cidade de João Pessoa – PB (CAMPOS, 2008). Enquanto que
as Dissertações de Mestrado em análise são compostas pelos seguintes trabalhos: Imagens da Cidade: A ideia
de progresso nas fotografias da cidade da Parahyba (1870-1930) (BARRETO, 1996), Fotografia na
Paraíba: Um inventário dos fotógrafos através do retrato (1850-1950) (LIRA, 1997), Se essa cidade fosse
minha... A experiência urbana na perspectiva dos produtores culturais de João Pessoa (HONORATO, 1999)
e Medos Corriqueiros e Vergonha Cotidiana: uma análise compreensiva do bairro do Varjão/Rangel, João
Pessoa, PB (BARBOSA, 2015).

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sobre a cidade é possível devido a configuração guarda-chuva do projeto, que apreende no


seu interior diversos subprojetos. Esta configuração complexa do projeto MC foi possível a
partir do seu afunilamento teórico-metodológico. Afunilamento este que tem início nas
fases pré-organizativas do projeto, que percorre dos anos de 1983 a 1999.
Fases pré-organizativas do projeto MC
A pré-fase do projeto guarda-chuva apreende 16 anos de trajetória acadêmica, de
1983 a 1999, onde a figura de Koury é considerada uma peça chave para a compreensão do
GREM e do projeto MC. Esta fase pré-organizativa foi esquematizada em 02 momentos: o
primeiro comporta os anos de 1983 a 1994, período que dará surgimento ao grupo de
pesquisa. O segundo contempla os anos de 1994 a 1999, período que antecede a criação do
projeto guarda-chuva. De forma sintética, o primeiro momento se debruça sobre o campo
da subjetividade, onde é tomado como foco analítico o projeto Fontes para a História da
Industrialização do Nordeste: 1889-1980. Este projeto objetivava resgatar e preservar a
memória e a produção do conhecimento científico sobre o Nordeste brasileiro, com relação
ao trabalho e a indústria. Buscou-se compreender a evolução do trabalho e da indústria na
região Nordeste e a sua relação com a urbanidade, as manifestações políticas do
empresariado e o papel que o Estado tomava em relação a este empresariado, bem como, a
formação da classe trabalhadora na região, levando em consideração suas condições de
vida e de trabalho e suas manifestações de reivindicação e política.
Neste período Koury desenvolvia seus estudos voltados para a questão de classe, do
trabalho, da disciplina, do sindicalismo, dos movimentos sociais, da problemática do
trabalho sob o capital, da cidadania e das graves rurais. No início dos anos de 1990 inicia-
se o processo de passagem de Koury, lançando diálogos entre a subjetividade e as emoções
– com as emoções ainda subsumidas no contexto mais amplo da subjetividade –, com
discussões sobre luto e sociedade no Brasil urbano, mas ainda relacionados com o trabalho
e o associativismo. Os principais conceitos discutidos neste primeiro momento são os de
homem comum pobre, de discurso modernizador, de trabalho, de disciplina, de classe
trabalhadora, de luto e morte, de industrialização e de sindicalismo. Este arcabouço
conceitual norteia as análises nesta fase teórico-metodológica que se processam até o ano
de 1994.
A influência dos estudos no campo das emoções vai aos poucos remodelando os
problemas de pesquisa e o arcabouço T-M de Koury, que se firma no campo com a criação
do GREM. Este elemento marca o segundo momento da fase pré-organizativa do projeto,
que se desenvolve dos anos de 1994 a 1999. Neste momento é discutida a trajetória
acadêmica com ênfase na influência da Antropologia e da Sociologia das Emoções, de
modo a traçar um panorama dos aspectos temáticos, teóricos e metodológicos desta fase.
São analisadas duas linhas de pesquisa centrais para o GREM nesta fase: a linha
Fotografia, Cidade e Pertença (FCP) e Processo de Luto e Morte no Brasil Urbano
Contemporâneo(PLMBUC). Os estudos desenvolvidos pelo grupo se concentravam no
interior destas duas linhas de pesquisa, que dão base à constituição do projeto guarda-
chuva MC. Na linha de pesquisa FCP se discute questões relacionadas à cidade e a
fotografias, conformando as preocupações analíticas do projeto Fotografia, pobreza,
cidade e a percepção dos produtores culturais da cidade. Na linha PLMBUC se discute
questões sobre o processo de luto, a morte, o morrer e a dor da perda, condensando os
objetivos e análises do projeto Luto e Sociedade no Brasil.
Neste segundo momento o arcabouço conceitual de análise é constituído pelos
conceitos de cidade, de pobreza, do ideal de progresso, da modernização urbana, da
pertença, da memória, do homem comum, do sentimento de perda, do luto, da dor, da
morte, do morrer e da nova sensibilidade urbana. Estes conceitos apontam para uma

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complexificação da primeira fase e redundam em uma nova complexificação que leva ao


surgimento do projeto MC. Estes dois momentos que configuram as fases pré-organizativas
são responsável pelo afunilamento e complexificação temática e teórico-metodológica que
resultou na criação do projeto guarda-chuva MC, que apreende os anos de 1999 a 2016.
Nestes 17 anos de atuação acadêmica, a trajetória do projeto aponta para fases T-M que
marcam a sua complexificação e a constituição do seu arcabouço conceitual.
As fases T-M do projeto é norteada pelos seus subprojetos, que elaboram um
caminho teórico-metodológico singular para analisar a cidade de João Pessoa, de modo a
indicar particularidades e, ao mesmo tempo, cooperando para a construção do projeto
guarda-chuva e a compreensão da cidade. O projeto guarda-chuva MC possui, em sua
trajetória teórico-metodológica, 03 fases de desenvolvimento analítico: 1) a construção e
consolidação de um arcabouço conceitual para análise, demarcando a primeira fase
acadêmica, de 1999 a 2008; 2) o refinamento temático, teórico e metodológico da pesquisa,
com o surgimento de novos conceitos e subprojetos, que identificam a segunda fase, de
2009 até os dias atuais; 3) e a necessidade de sistematização dos resultados do projeto,
através de um balanço analítico, na composição de um observatórios sobre medo e cidade,
compondo a terceira fase, de 2012 até os dias de hoje.
A pesquisa MC possui um leque conceitual que indica o surgimento, o processo de
desenvolvimento, a complexificação e os desusos dos conceitos na sua trajetória teórico-
metodológica. O conceito medos corriqueiros é o eixo central de análise do projeto,
dialogando com outros conceitos e categorias que se apresentam como importantes na e
para a sociabilidade urbana contemporânea dos habitantes da cidade de João Pessoa. Os
conceitos de medos, de medos corriqueiros e de pertença perpassam toda a produção do
projeto guarda-chuva. Mesmo quando não aparece enquanto foco analítico, os medos
corriqueiros se manifestam no diálogo com outros conceitos. Os medos e os medos
corriqueiros, assim, dialogam com categorias que se apresentam como importantes para
compreender as formas de sociabilidade e o imaginário social sobre medo, dos habitantes
da cidade de João Pessoa. Neste sentido, as categorias de memória, de mídia (online,
impressa ou televisiva), de violência, as estatísticas policiais e a juventude são discutidas
no interior da sua produção.
O arcabouço conceitual do projeto guarda-chuva indica o desenvolvimento teórico-
metodológico da pesquisa, marcada pelos seus subprojetos, e aponta, assim, para as
transformações, o refinamento e a complexificação analítica do projeto MC durante a sua
trajetória acadêmica. O leque conceitual do projeto é composto por um conjunto de
conceitos considerados principais para a análise da pesquisa, indicando as particularidades,
as semelhanças e os diálogos que se desenvolve no interior do projeto e dos seus
subprojetos. Este projeto desenvolve sua análise a partir dos conceitos de medo, de medos
corriqueiros, de pertença, de homem comum, de pessoalidade, de individualismo, de
individualidade, de nova sensibilidade urbana, de confiança, de confiabilidade, de lealdade,
de cultura emotiva, de fidelidade, de segredo, de traição, de coragem, de semelhança, de
dessemelhança, de controle social, de sujeira, de sentimento de segurança, de amizade, de
estranhamento, de pânico moral, de estigma, de embaraço, de vergonha, de
constrangimento, de fofoca, de ressentimento, de estratégias de evitação e de fronteira. As
pesquisas individuais e os subprojetos onde se encontram inseridas indicam cada fase
teórico-metodológica do projeto MC. A análise desta produção acadêmica permite, deste
modo, desvendar e compreender o desenvolvimento e o refinamento conceitual e analítico
do projeto guarda-chuva. De modo a acompanhar o andamento e a complexificação desta
pesquisa.

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Discussão geral do mosaico científico sobre a cidade de João Pessoa


A produção acadêmica do projeto guarda-chuva MC se apresenta como um
conjunto de etnografia cooperativa (HANNERZ, 2015) para a compreensão e leitura
contextual da cidade de João Pessoa, sob a ótica dos medos corriqueiros. Esta produção
disponibiliza um mosaico científico sobre a cidade e seu desenvolvimento urbano
contemporâneo, a partir do imaginário social dos medos. Permite pensar a cidade, as suas
remodelações espaciais e sociais e as formas de sociabilidade emergentes nesse processo
de configuração e reconfiguração urbana.
Analisar a produção é se inserir na memória institucional do GREM, através do
projeto MC, de modo a identificar como o grupo compreende a relação entre emoções e
sociabilidades urbanas na cidade de João Pessoa. Apresenta uma reflexão sobre a cidade e
uma contribuição para a discussão sobre medos e sociedade no urbano contemporâneo
brasileiro. Analisar a cidade de João Pessoa sob a ótica dos medos corriqueiros é
compreender os contornos que a cidade pode assumir através de suas formas de
sociabilidade e cultura emotiva. Formas de sociabilidade e cultura emotiva este que
caracterizam os lugares e a cidade como um todo: entrecruzando lugares e espaços sociais,
como os bairros, as ruas e os parques, e configurando-os em um ambiente de tensão e
pertença que caracterizam os lugares em si e os lugares no interior da cidade.
As análises desenvolvidas no interior do projeto MC identificaram a emergência de
uma nova sensibilidade no urbano contemporâneo brasileiro com ênfase para a cidade de
João Pessoa (KOURY, 2009). Nova sensibilidade que vem se desenvolvendo a partir da
década de 1970. Esta emergência de uma nova sensibilidade se dá de forma simultânea
com o crescimento do processo de individualidade e individualismo na sociabilidade
brasileira urbana, rompendo ou transformando as formas de sociabilidades baseadas em
laços tradicionais de pessoalidade e semelhança. A cidade, de acordo com o projeto, vive
um processo de individualização crescente, principalmente nos bairros de classe média e
média alta, o que parece ter aumentando a solidão, a dessemelhança, a indiferença e a
ocorrência de uma valorização do espaço privado em detrimento do espaço público
(KOURY, 2008). No entanto, a cidade também vivencia formas de sociabilidades pautadas
em modelos de solidariedade afetivas que se baseiam na pessoalidade e na semelhança,
com intensa interação relacional no ambiente público, principalmente nos bairros
populares (BARBOSA, 2015; KOURY, 2016a).
As formas de sociabilidades da cidade de João Pessoa mesclam elementos
tradicionais e modernos de maneira ambivalente e tensa. Em geral, mas apresentando-se
enquanto inadequação e tensão, nos bairros de classe média e média alta se desenvolve
uma crescente individualização, enquanto que nos bairros populares as relações são
pautadas em certa solidariedade, sem escaparem, também, da emergência de relações
baseadas na impessoalidade, mas em um grau menor do que nos lugares que as classes
abastadas residem. O processo de modernização na cidade de João Pessoa parece fomentar
relações baseadas no medo do outro, agora estranho, que começa compartilhar os espaços
que os habitantes que se consideram tradicionais na cidade (KOURY, 2008).
O projeto MC analisa o imaginário social dos habitantes da cidade de João Pessoa a
partir do seu lugar de fala, que norteia a sua experiência. Os sujeitos figuram o seu
imaginário sobre medo na cidade de acordo com o bairro onde moram e o lugar que
frequentam, de modo a possibilitar várias visões sobre a cidade, e imersões no seu interior.
Há várias experiências sobre medos e medos corriqueiros de acordo com o lugar analisado,
onde o imaginário social do sujeito é configurado seja como de vítima potencial da
violência crescente na cidade, devido ao crescimento urbano desordenado, seja a partir dos
aglomerados subnormais na cidade. Seja, ainda, como vítima direta do imaginário social da
cidade sobre o bairro em que moram, sendo categorizados como mais ou menos violento,

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fomentando estratégias de salvaguardar a face do bairro e de seus moradores, e indicando o


outro como a fonte do caos (KOURY, 2010).
Analisar as representações sociais sobre o medo dos habitantes da cidade de João
Pessoa permite, assim, compreender a sua configuração e reconfiguração na sociedade
local, de modo a desvendar como são construídos os significados de pertencimento e
exclusão, as transformações dos lugares e as formas de sociabilidade e interação entre os
indivíduos neles inseridos, o que leva a análise da conformação tensa de cada lugar e de
como os indivíduos e grupos foram afetados pelas transformações sofridas no urbano
contemporâneo da cidade.
O projeto MC faz uma ampla análise sobre a cidade de João Pessoa a partir da ótica
dos medos corriqueiros. Para isso faz uso de um leque conceitual imprescindível para a
análise das formas de sociabilidade pautadas nos medos corriqueiros que se desenvolvem
na cidade. A trajetória conceitual do projeto de pesquisa é essencial para o seu
desenvolvimento, bem como para a compreensão do mapa simbólico traçado pelo projeto,
de modo a desvendar a cultura emotiva da cidade e seus códigos de moralidade. A
produção acadêmica do projeto MC constitui um mapa simbólico sobre a cidade de João
Pessoa, isto é, uma forma específica de estudar a cidade e seus lugares a partir de uma
determinada temática. O mapa simbólico é a síntese das reflexões do GREM sobre João
Pessoa, apreendida, recortada e estudada, pelo projeto em análise nesta monografia, a partir
da ótica dos medos corriqueiros.
Através do projeto se apreende a cidade de João Pessoa a partir dos pequenos
enfretamentos cotidianos dos seus habitantes, seja entre os moradores do próprio bairro ou
rua, de outros bairros ou da cidade como um todo (KOURY, 2016a). A análise do projeto
MC permite compreender como os medos e os medos corriqueiros se propagam no
cotidiano dos habitantes da cidade de João Pessoa. Nele, a cidade é apreendida sobre
diversos aspectos e ângulos peculiares que comportam histórias específicas em cada lugar,
sejam as ruas, os bairros e os parques. A cidade de João Pessoa é composta por lugares
singulares que interagem entre si e com outros no cotidiano da cidade, e onde os habitantes
configuram o jogo de interações individuais e grupais que tecem as formas de
sociabilidade, de memória e de história. A produção acadêmica do projeto MC compõe
uma rede significados sobre a cidade de João Pessoa, apresentando um acúmulo de
conhecimento sobre ela. A partir da análise desta produção acadêmica, este subprojeto
buscou compreender a forma como a cidade é apreendida pelo GREM, a fim de identificar
as mudanças sócio-espaciais da cidade, principalmente a partir da década de 1970, e a
constituição do imaginário social sobre o medo do homem comum urbano, bem como sua
relação com as formas de sociabilidade que se desenvolvem na capital paraibana.
João Pessoa é uma cidade que sofre um processo de modernização e transformação
urbana que modifica as suas formas de sociabilidade. Modificação que se dá devido à
emergência de uma nova sensibilidade urbana que mescla elementos tradicionais e
modernos, mas que acaba por romper com alguns laços afetivos da solidariedade
tradicional, aumentando a individualização nas relações sociais. O projeto guarda chuva
MC, assim, se apresente como um arcevo de conhecimento científico sobre a cidade de
João Pessoa a partir da perspectiva dos medos e dos medos corriqueiros, apreendendo, em
sua produção acadêmica, elementos do passado e do presenta da cidade.
Considerações Finais
Neste trabalho buscou-se realizar um balanço analítico deste subprojeto que integra
a pesquisa Balanço Comparativo, apreendendo os 03 anos de atividades de pesquisa, de
2014 a 2017, desenvolvidas junto ao GREM e a PRPG, através da bolsa PIBIC/CNPq-
UFPB. Este balanço sistematiza a trajetória teórico-metodológica do subprojeto e os seus

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resultados de pesquisa, que deu corpo a um TCC, defendido no dia 31 de maio de 2017. A
pesquisa maior que este subprojeto integra objetiva realizar um balanço comparativo da
produção acadêmica Universidade Federal da Paraíba, Campus I, sobre a cidade de João
Pessoa, abordando os anos de 1992 a 2016. Pretende compreender como a cidade é
apreendida pelos pesquisadores da instituição, desvendando os mapas simbólicos
construídos sobre e através dela. Com o intuito de desenvolver uma análise de como as
diferentes áreas acadêmicas da universidade revisita a cidade, cruzando como esses
diversos olhares se interligam, se cruzam e se diferenciam, apreendendo as redes de
significados criadas pela instituição sobre a cidade.
Este subprojeto desenvolveu uma análise compreensiva e histórica do GREM,
sobre a cidade de João Pessoa, a partir da linha de pesquisa Emoções e Sociabilidade
Urbana, com ênfase para o projeto guarda-chuva Medos Corriqueiros. O balanço
compreensivo da produção do grupo disponibiliza uma análise da cidade, de modo a
descortinar as suas mudanças no decorrer dos anos e a construção de mapas simbólicos
sobre ela, desvendando a cultura emotiva da cidade. Objetivou-se realizar uma avaliação
crítica da produção do GREM com enfoque analítico nos medos corriqueiros, a fim de
desvendar os caminhos teóricos e metodológicos traçados pelo projeto MC no seu
desenvolvimento, com o intuito de compreender as mudanças analíticas, conceitual e de
método pela qual o projeto passou no decorrer dos anos, descortinando a que recortes a
cidade de João Pessoa foi submetida e como ela é apreendida pelo grupo.
A produção acadêmica deste projeto de pesquisa discute o papel dos medos, dos
medos corriqueiros, da pertença, da violência, da semelhança e dessemelhança, da
amizade, da vergonha, da fronteira, da fofoca, do segredo, da confiança, da confiabilidade,
da lealdade, da traição, do conflito social, da individualidade, da impessoalidade, entre
outros. Este leque conceitual da pesquisa possibilita uma ampla visão da cidade, bem como
a compreensão das formas de sociabilidade que nela se desenvolvem, tendo como pando de
fundo as representações sociais sobre a cidade de João Pessoa e os medos corriqueiros do
homem urbano contemporâneo local, constituindo um mosaico científico (BECKER, 1993)
sobre a cidade a partir da perspectiva dos medos corriqueiros. O acúmulo de conhecimento
que o projeto guarda-chuva possui sobre a cidade de João Pessoa indica as singularidade e
conexões da cidade através de seus bairros, das ruas, dos parques e dos circuitos de lazer.
Constitui a cultura emotiva da cidade, é o que acaba por constituir o mosaico científico
beckeriano. No mosaico científico (BECKER, 1993) tem-se a produção de estudos que se
conectam e dialogam, permitindo múltiplas comparações, com a possibilidade de integrar
um projeto mais amplo, seja uma teoria, uma temática ou uma pesquisa, como é o caso do
projeto MC, aqui em análise.
Este subprojeto mergulhou na memória institucional (AYELLO et al, 2008) do
GREM como forma de elaborar uma análise compreensiva sobre a totalidade do projeto
MC, e, assim, desenvolver uma avaliação crítica da produção acadêmica do projeto e do
GREM como forma de analisar o processo de surgimento, desenvolvimento e
complexificação teórico-metodológico do projeto de pesquisa MC. A memória
institucional do grupo foi acessada através do levantamento, mapeamento, leitura e
fichamento da produção, em que se corporifica a sua trajetória acadêmica. Esta análise da
memória do GREM foi feita com ênfase no projeto MC, que possibilitou desvendar a
trajetória conceitual e teórico-metodológica do grupo a partir da perspectiva do projeto.
Analisar a produção acadêmica do projeto MC é se inserir na memória institucional do
GREM e compreender a sua dinâmica e trajetória acadêmica, bem como a maneira como o
grupo apreende e recorta a cidade de João Pessoa nos seus estudos. Este grupo de pesquisa
desenvolve seus trabalhos sobre a relação entre emoções, cultura e sociedade, e se debruça
na análise da lógica do cotidiano, da cidade e das emoções. De modo a entender as formas

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de sociabilidade no/do urbano contemporâneo e discutir as relações sociais no/do cotidiano


do homem comum urbano brasileiro.
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LISDERO, Pedro & PELLÓN, Ignacio. Identidades, conflicto y basura. Hacian um mapeo de los rtimos
de la accíon colectiva en la ciudad de Córdoba. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e
Sociologia, v.1, n.2, p. 107-124, julho de 2017. ISSN 2526-4702.
Artigo
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

Identidades, conflicto y basura. Hacia un mapeo de los ritmos de la


acción colectiva en la ciudad de Córdoba
Identidades, conflitos e lixo. Uma reflexão sobre o mapeamento dos ritmos da ação coletiva na
cidade de Córdoba, Argentina

Identities, conflicts and rubbish. A reflection on the mapping of the rhythms of collective action in
the city of Córdoba, Argentina

Pedro Lisdero
Ignacio Pellón

“(...) a favela é o quarto de despejo da cidade, porque lá jogam homens e lixo, que
naquele espaço se confundem, coisas imprestáveis que a cidade deixa de lado”.
(Carolina María de Jesús, Quarto de despejo, 1960)

Resumen: El presente trabajo se interesa en los cirujas en tanto sujetos habitan y ―sobreviven‖
en/desde los bordes de las sociedades latinoamericanas. Trabajadores que abocados a recuperar
lo desechado para resolver la reproducción biológica-social diaria aparecen ubicados siempre
frente ante al ―abismo social‖. A partir de fuentes secundarias disponibles, el escrito se orienta
a mapear los ritmos de las acciones colectivas protagonizadas por cirujas en la ciudad de
Córdoba, en un período que abarca más de cuatro décadas. Para ello, se propone realizar
algunas aclaraciones de carácter teórico-metodológicas en función de fundamentar una mirada
acerca del conflicto social, de la utilización de fuentes secundarias, y de la posibilidad de
establecer ciertos ritmos de la acción colectiva como herramienta analítica. Luego se presenta
una periodización posible de la acción colectiva ponderando lo que se observa, lo que pasa y el
sentido que los actores le imprimen a la acción. Para finalizar, se reflexiona en torno a una
posible agenda de investigación que busque sintetizas algunas de las lecturas que se
desprenden de la periodización presentada. Palabras clave: Acción colectiva – Conflicto
social – Basura – Identidad

Abstract: The present work is interested in the cirujas as subjects inhabit and "survive" in /
from the edges of Latin American societies. Workers who are trying to recover what is
discarded to solve the daily biological-social reproduction are always located in front of the
"social abyss". From available secondary sources, the paper is oriented to map the rhythms of
collective actions carried out by cirujas in the city of Córdoba, in a period that covers more
than four decades. To this end, it makes some theoretical and methodological clarifications in
order to base a glance on social conflict, the use of secondary sources, and the possibility of
establishing certain rhythms of collective action as an analytical tool. Then it presents a
possible periodization of collective action by weighing what is observed, what happens and the
meaning that the actors print to action. Finally, we reflect on a possible research agenda that
seeks to synthesize some of the readings that emerge from the periodization presented.
Keywords: collective action, social conflict, rubbish, identity

Desde la literatura a los textos académicos, la figura del ―ciruja‖ ha convocado una
mirada que excede ―al personaje‖, evocando lo que él mismo encarna de la sociedad en que
se inscribe. Ya el famoso tango ―El ciruja‖ de 1926, con música de Ernesto de la Cruz y
letra de Alfredo Marino, comenzaba a pintar un sujeto situado en el contexto de los
―arrabales‖ porteños de principio de siglo XX, donde una de sus características

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significativas era la de estar siempre dispuesto en los bordes: de la ley, del trabajo, etc…
Salvando las abismales distancias, la cita de Carolina María de Jesus, de su también
famosa obra ―Quatro de despejo‖, publicada en Brasil en 1960, también describe un
contexto de límites, esto es, un paisaje alejado de los beneficios prometidos por la
modernidad, donde los protagonistas – como la propia basura – son ―dejados de lado‖.
Pareciera entonces, que el ciruja que capta nuestra atención como sociedad, aún
desde hace tiempo, encarna en su propia existencia una serie de interrogantes que devuelve
la mirada acerca de los bordes, de los límites que conectan los procesos de estructuración
con las realidades cotidianas que viven los sujetos que transitan el ―filo‖ de la re-
producción. Quienes habitan el arrabal porteño, tanto como las favelas de Sao Paulo de la
década del 60, encarnan los límites de la vida en sociedad, de las formas moralmente
adecuadas de ser-estar, de las maneras productivas de existir para el trabajo y el consumo.
Adviene entonces la idea de que interrogándolos podríamos tener una respuesta acerca de
por qué se configuran tiempos-espacios sociales habitados por hombres que se confunden
con ―cosas desechables‖ (basura). Y al mismo tiempo, que dicha pregunta nos abre la
puerta a un juego de tensiones a partir de las cuales se hace posible interpretar procesos
sociales cuyos alcances exceden estas realidades particulares.
Sin embargo, incluso más allá de las continuidades relatadas, debemos aceptar las
abismales distancias entre ambas imágenes presentadas (arrabales y favelas). Si los sujetos
portan en su propia identidad de carne y hueso las complejas tensiones que con-forman un
equilibrio inestable entre continuidad y ruptura (esto es lo que nos indica la propia idea de
borde/límite), deberemos reconocer también que las particularidades de cada ―aquí y
ahora‖ otorgan igualmente una dinámica específica en la configuración de los aludidos
procesos. El trabajo que aquí presentamos retoma en parte esta dialéctica proponiéndonos
mapear, a partir de una serie de fuentes secundarias, los ritmos de la acción colectiva
protagonizada por los cirujas en la ciudad de córdoba. La conceptualización en tanto
acción colectiva, como expondremos más adelante, tiene que ver con una opción teórica
(MELUCCI, 1994; SCRIBANO, 2004) que se propone realizar una hermenéutica del
conflicto social, partiendo de experiencias colectivas para interpretar algunos rasgos
significativos de los procesos de producción y re-producción de lo social (GIDDENS,
2003). Esta propuesta general es deudora de una serie de investigaciones que fundamentan
e ilustran esta forma de comprender a las sociedades a partir del conflicto como
epifenómeno (SCRIBANO, 2004; LISDERO, 2007; 2019), y particularmente de algunos
desarrollos específicos en torno a las acciones colectivas de los cirujas en la ciudad de
Córdoba (VERGARA, 2010; LISDERO y VERGARA, 2010, 2015).En este sentido, el
trabajo que aquí se presenta se inscribe en la continuidad de las pesquisas aludidas, y busca
de manera general complejizar un mapeo sobre el cual se viene trabajando desde hace
años.
Así, para sintetizar un recorrido inicial que nos permita presentar de manera general
aquello sobre lo que queremos profundizar en este artículo, podríamos mencionar que las
primeras experiencias colectivas de cirujas en la ciudad de Córdoba datan de la década del
setenta. Posteriormente, y recuperando algunas redes de relaciones de este caso pionero,
las organizaciones del sector re-aparecen en la década del noventa, caracterizando la
actividad con la basura como una práctica vinculada a una estrategia laboral familiar,
orientada a la reproducción social de dicha unidad doméstica (Se.A.P., 1996;
BERMÚDEZ, 2006). El contexto de la misma, estaba signado por procesos de ruptura de
la relación salarial, informalización, desregulación, flexibilización y precarización del

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trabajo. Allí la expansión y formación de nuevas cooperativas – especialmente las de


trabajo70 – aparecen como una alternativa ante la ―ausencia‖ del Estado (FAJN, 2002).
Con la crisis de 2001-2002, el fenómeno cartonero ―emerge‖ como imagen de la
pobreza y como ―problema social‖ en la agenda pública. Se observa, entonces, un
corrimiento de la atención del cirujeo como actividad individual-doméstica en crecimiento
hacia la multiplicación de los colectivos de recuperadores de residuos (VERGARA y
GIANNONE, 2009). A partir de allí, la organización de estos sujetos en cooperativas de
trabajo no solo es naturalizada sino también recomendada y ―deseable‖ (FAJN, 2002),
creencia que se reproduce en consonancia con las políticas públicas, los medios de
comunicación y las ciencias sociales. A continuación, nos interesa complejizar esta
primera mirada presentada, particularmente re-construyendo los ―ritmos‖ de la acción
colectiva de cirujas71 en la ciudad de Córdoba. Previo a lo cual realizaremos algunas
aclaraciones de carácter teórico-metodológicas en función de fundamentar nuestra mirada
acerca del conflicto social, de la utilización de fuentes secundarias, y de la posibilidad de
establecer ciertos ritmos de la acción colectiva como herramienta analítica. Para finalizar,
reflexionaremos en torno a una posible agenda de investigación que busque sintetizas
algunas de las lecturas que se desprenden de la periodización presentada.
Reflexividad, acción colectiva e identidades: notas teórico-metodológicas
Antes de comenzar la tarea propuesta, debemos hacer explícito – aunque de manera
breve – un punto de partida relevante para comprender el camino argumentativo que
presentamos aquí. En esta dirección, nos interesa destacar el carácter reflexivo del
conocimiento en un doble sentido: en primer lugar partimos de la compresión de la práctica
científica como producto de relaciones situadas que – aunque con diferentes ―texturas‖ –
no pueden ―desconectarse‖ de las formaciones sociales en las que se inscriben. Podríamos
decir, entonces, que las teorías sociales se constituyen en testimonios epocales y que los
investigadores devienen actores-testigos inscriptos en configuraciones sociales complejas.
En segundo lugar, lo anterior debe conjugarse con la aceptación de que los individuos
poseen la capacidad de poner en el centro de la reflexión su propia acción, disputando el
sentido sobre la misma y sobre ―sí mismos‖. Así, debemos aceptar que las teorías
construidas son parte interesada en la aludida disputa, tanto como los investigadores
constituyen agentes involucrados en los propios procesos sociales estudiados. Se desprende
de aquí que la realidad social se construye como espacio donde se encuentran/des-
encuentran la mirada teórica con la mirada de los propios actores.
Particularmente en el campo de los estudios sobre la acción colectiva, los debates
teórico-metodológicos re-avivan constante, y a veces recurrentemente, diversas
problemáticas asociadas a la práctica de conocimiento de las protestas sociales,
movimientos sociales, etc., en el horizonte de ―doble hermenéutica‖ planteada hasta aquí.
En efecto, si concebimos específicamente que la pregunta por la acción colectiva se
estructura como un interrogante sobre los propios sentidos de la acción, hacer explícito que
la nuestra (como investigadores) es una mirada interesada, que además convive con la
mirada que tienen los propios actores sobre sus prácticas, es un posicionamiento que en sí
mismo contiene una serie de consecuencias para las agendas de investigación.

70
En Argentina, la cifra de 629 mutuales y cooperativas creadas durante la década de 1970, asciende a 1.147
durante 1980, llegando a 2.121 para el último período del siglo XX (FAJN, 2002).
71
En el presente trabajo utilizaremos indistintamente los términos ciruja, carrero y cartonero. Aunque las tres
nominaciones hacen referencia a sujetos que viven de la recuperación de residuos priorizaremos la utilización
de cirujas por entenderse como la auto-denominación predominante que refiere al ―viejo oficio‖ de recuperar,
en calles y basurales, objetos con algún valor de uso o de cambio. Por su parte, los cartoneros se especializan
en recolectar residuos derivados de la industria papelera; mientras que los carreros, generalmente, combinan
actividades de cirujeo, cartoneo y traslado de basuras -entre otras- en carros traccionados por equinos

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Para lo que nos importa en este trabajo, este punto de partida nos ayuda a
fundamentar la posibilidad de realizar un ejercicio concreto de re-construcción de los
―ritmos‖ de la acción colectiva protagonizadas por los cirujas en la ciudad Córdoba, a
partir de la tensión de las voces de ―agentes‖ e ―investigadores‖ inscriptas en una serie de
soportes que devienen datos secundarios: informes de pesquisas previas sobre los casos
cordobeses, entrevistas realizadas en el marco de los aludidos trabajos, y notas de los
medios de comunicación donde se publican las ―voces‖ de los actores involucrados en los
conflictos estudiados. En función de este posicionamiento podríamos preguntarnos
entonces: a. ¿por qué nos interesaría escrudiñar el sentido de la acción colectiva de los
cirujas?; b. ¿cómo es posible reconstruir los sentidos de la acción desde estas fuentes
(secundarias)?; y c. ¿qué vamos a ―mirar‖ y en qué sentido nos interesa mapear los ritmos
de las mismas?Para comenzar a responder estos interrogantes, aunque de manera
introductoria y parcial, nos valdremos de los desarrollos realizados en el marco de una
serie de equipos de investigación donde se inscriben y de las cuales resultan deudoras las
reflexiones que se expresan a continuación72.
a. En primer lugar, desde la mirada que aquí se presenta, sostenemos que los fenómenos
colectivos, entendidos como el ―(…) resultado de múltiples procesos que favorecen o
impiden la formación y el mantenimiento de las estructuras cognoscitivas y los sistemas de
relaciones necesarios para la acción‖ (MELUCCI, 1994, p.155), no pueden concebirse
como una unidad empírica, como una ―realidad dada‖, sino que debe indagarse cómo se
configuran los diferentes componentes en lo que se nos aparece como una ―supuesta
unidad‖. En la acción colectiva conviven múltiples orientaciones, que involucran a
diversos niveles de la sociedad y a diferentes periodos históricos, de manera que es
necesario mantener abierto interrogantes acerca de: ―(…) si existen dimensiones de las
nuevas formas de acción que debemos atribuir a un contexto sistémico distinto (…)‖
(MELUCCI, 1994, p.125). En esta dirección, consideramos a las acciones colectivas como
"profetas" que comunican sobre los cambios y las transformaciones que se están
produciendo en los procesos por medio de los cuales se produce y re-reproduce la
sociedad.Volviendo al caso de la acción colectiva protagonizada por cirujas, en otros
lugares hemos analizado acerca de las redes conflictuales y los mecanismos de obturación
y emergencia de las acciones colectivas (LISDERO y VERGARA, 2010), como así
también en lo referido a las protestas y vivencias ante la implementación de nuevas
políticas de gestión de la basura en la provincia de Córdoba (LISDERO y VERGARA,
2015).
b. El sentido puesto en juego por los sujetos (tanto los cirujas, como los investigadores
que se han ocupado de indagar las experiencias colectivas) constituye entonces un lugar
―sensible‖ desde donde acceder – como testimonios – a los procesos sociales que nos
interesan: las acciones colectivas. Tal como hemos observado, en tanto la disputa por el
sentido de la misma deviene una dimensión del propio objeto (conflicto), explicitar
nuestros puntos de partida respecto de cómo ordenaremos la tríada conformada por las
voces-de-los-cirujas, las teorías-sobre-la-acción-colectiva-de-los-cirujas, y nuestras-propia-

72
De modo abreviado, hacemos referencia a investigaciones realizadas por el grupo de estudios sociales
Serafín Trigueros de Godoy (centrado en el conflicto por la basura en la ciudad cordobesa de San Francisco y
dirigido por Adrián Scribano) (AIMAR, GIANNONE, LISDERO, 2007); el proyecto de investigación
―Cuerpos, sensaciones y conflicto social. Acciones colectivas y Prácticas expropiatorias (Córdoba post-crisis
2001)‖ (VERGARA y GIANNONE, 2009), también dirigido por Scribano; las producciones de Gabriela
Vergara (2009, 2010, 2014) vinculadas a la acción colectiva y el trabajo en mujeres recuperadoras de
residuos; las pesquisas realizadas por Pedro Lisdero (2009, 2013) referidas al conflicto social y la acción
colectiva en casos de procesos de sindicalización en contextos de precarización laboral (empresas
recuperadas y call centers); entre muchos otros que han aportado en la construcción de este ―acervo
colectivo‖.

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mirada, deviene una tarea imprescindible para comprender el cómo trabajar estas fuentes
secundarias. Desde la perspectiva que abordaremos aquí, definiremos a los datos a partir
del registro de una observación realizada (por el mismo u otro investigador) en contextos
de producción diferentes, a los cuales se los pretende inscribir en una oportunidad
determinada. Consecuentemente, el ―análisis secundario de datos cualitativos‖ se
comprende como ―el procedimiento mediante el cual un investigador utiliza información
registrada por otros, reconstruyendo su descripción y sistematización desde una estrategia
de indagación diferente a la original‖ (SCRIBANO y DE SENA, 2009, p.105)73. En este
sentido, las investigaciones, entrevistas y las notas periodísticas que seleccionamos aquí
hacen parte de un corpus analítico que trasluce el juego de tensionalidades que se fueron
configurando entre las experiencias y los discursos construidos sobre las mismas. En su
conjunto, y haciendo explícitas las condiciones en las que se los consideran, estos datos
secundarios habilitan una vía posible para cumplimentar el objetivo propuesto: resultan los
ritmos de la acción colectiva protagonizada por cirujas en la ciudad de Córdoba.
c. Finalmente, debemos aclarar el lugar que ocupa el conflicto social en nuestra
comprensión de la acción colectiva de los cirujas. Así, definimos conflicto social como la
disputa de dos o más actores por la apropiación de un bien que se estime valioso; y
entendemos que en nuestras sociedades operan en formas de ―redes de conflictos‖, que no
son más que prácticas históricamente construidas que implican la concatenación de una
serie de conflictos-prácticas anteriores conectadas entre sí (SCRIBANO, 2003). Los
distintos momentos de la acción, suponen entonces instancias de latencia, donde están
operando conflictos que forman parte de una compleja urdimbre y que operan como ―las
condiciones de la acción‖: una red de conflictos da posibilidades de visibilidad social a
otra.A su vez, la acción colectiva tiene además como condición la existencia de un marco
de referencia común a los integrantes del colectivo o identidad colectiva, que les permita
elaborar expectativas, evaluar las posibilidades y límites, y a su vez ser reconocido en sus
demandas de subjetividad dentro del colectivo. Esta definición interactiva está siempre en
construcción, de manera tal que los individuos implicados en la acción, se definen a sí
mismos y a su entorno (otros actores, recursos, oportunidades y límites) de acuerdo con
procesos que implican interacción, negociación y la oposición de orientaciones (conflicto).
Es precisamente en este punto donde resulta necesario, para poder comprender la
complejidad implícita en las más diversas formas en que se manifiestan estos conflictos,
distinguir la conflictividad de la acción de su estructuración témporo-espacial. Es necesario
entonces plantear una estrategia para registrar los ―ritmos‖ con que se reconfiguran
continuamente la relación entre estos espacios. Esto permite captar la complejidad de la
acción colectiva, evitando el sesgo de concentrarse en los momentos de visibilidad de la
misma, e identificando lo que ocurre, lo que es observado, y la significación que esto
implica (SCRIBANO, 2003). En este sentido, distinguimos distintos momentos de la
acción colectiva de los cirujas, los cuales expresan relaciones entre: las expresiones del
conflicto, los distintos episodios que asumen las redes conflictuales y las manifestaciones
de la acción colectiva. En la primera instancia (expresiones) se produce la disputa por los
intereses y las valoraciones en juego, reorientando la red conflictual. Estos
reposicionamientos a niveles estructurales poseen un carácter ―orientador‖ para las

73
Tal como observan Scribano y De Sena, las investigaciones con datos secundarios suelen ser subestimadas
(a pesar de su relevancia, incluso para los clásicos de la sociología) o relegadas al campo de las
investigaciones de tipo cuantitativas (2009, p.102). Sin embargo, las investigaciones cualitativas más actuales
comienzan a interesarse sobre las ventajas de la utilización de estas fuentes. Entre ellas, se pueden destacar la
reducción de los efectos que la presencia del investigador pudiese ocasionar en la obtención de los datos, la
economía de tiempos y recursos de la investigación, y principalmente, la posibilidad de formular diferentes
preguntas relacionadas a los objetivos actuales de la investigación.

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prácticas que se observan durante los episodios, los cuales son acciones públicas que
expresan el estado del conflicto. Aquí se ponen en evidencia las redes conflictuales en
tanto posiciones antagónicas de los actores, como así también su constitución y visibilidad
identitaria. Por último, las manifestaciones son acciones colectivas que los actores
muestran como mensaje de visibilidad, lo que observamos como la forma, y como tal, son
resultantes del espacio público constituido entre expresiones y episodios. Durante las
manifestaciones se re-produce la identidad del colectivo, disputando el sentido de la
acción. (SCRIBANO, 2003)
Resumiendo, preguntarnos por los ―ritmos‖ de la acción colectiva de los cirujas
implica para nosotros hacer críticas algunas miradas extendidas en el campo de estudios
sobre estos sujetos, que se ―enfocan‖ en el período que va desde 2001 en adelante,
vinculando particularmente las experiencias surgidas con la noción de ―crisis‖ o
―resistencia‖. En su lugar, aquí nos interesa abrir la reflexión en torno a un período más
extenso, dejando abierto el debate referido a la posibilidad de establecer tiempos y espacios
en función de las emergencias sugeridas por la propia lógica identitária asociada a la
acción colectiva. En este sentido, la pretensión de establecer una periodización en función
de los ritmos aludidos tiene que ver, para nosotros, con la posibilidad de indagar las
tensiones entre continuidad y cambio social que involucran los fenómenos sociales
indagados, es decir, proponer una hermenéutica de la conflictividad social abierta al
componente ―profético‖ (MELUCCI, 1994) que componen estos actores. La posibilidad de
disponer de un corpus de datos secundarios brinda una oportunidad significativa para la
tarea aludida.
Hacia una periodización de las “cooperativas” de cirujas: episodios del conflicto
En este apartado conceptualizaremos una periodización posible de la acción
colectiva de los cirujas en la ciudad de Córdoba teniendo en cuenta las discusiones y
puntos de partida desarrollados en el apartado anterior. Establecemos para ello un periodo
general que abarca desde las primeras experiencias conocidas en la década del setenta,
hasta la complejidad de la acción en la actualidad (2016). Pero antes de avanzar, debemos
aclarar que la reconstrucción que presentamos no resulta exhaustiva respecto de la
totalidad de las experiencias instanciadas en la ciudad de Córdoba, ni se pretende tampoco
exponer de manera ampliada todas las dimensiones que implicaría realizar una
caracterización profunda de cada colectivo y sus acciones. En su lugar, hemos escogido
como estrategia de presentación, acotar el análisis en busca de sintetizar algunas de las
condiciones conflictuales vinculadas al surgimiento de las cooperativas de cirujas, en tanto
instancias que condensan las inversiones identitarias, y posicionamiento público de actores
colectivos dinámicos. Precisamente ante la dificultad vinculada a la complejidad que
asumen las ―emergencias‖ relevadas en los datos secundarios74, nos interesa poder

74
Las fuentes secundarias consultadas para la elaboración de este apartado son las siguientes: una cartilla
producida por integrantes del Servicio a la Acción Popular (Se.A.P) hacia fines de los años 80, en donde
junto a ex trabajadores de ―El Huanquero‖ se busca recuperar y reconstruir la experiencia de esta cooperativa
que funcionó entre 1971 y 1983 (Se.A.P., s/d); una investigación realizada por el Equipo de Cirujeo del
Se.A.P. durante el primer lustro de 1990, que persigue alcanzar un mayor conocimiento del sujeto ciruja
desde la identidad y la cultura (Se.A.P, 1996); un informe orientado a identificar las organizaciones de
recuperadores de residuos en la ciudad de Córdoba post-crisis 2001, realizado por integrantes del Programa
de Estudios sobre Acción colectiva y Conflicto social (VERGARA y GIANNONE, 2009); entrevistas en
profundidad a informantes clave; artículos digitales de diarios locales y nacionales; documentos producidos
por organismos estatales, entre otros. Los criterios analíticos de las mismas se desprender de lo expuesto en
el apartado anterior, es decir, se buscó en cada documento indagar acerca de la configuración de las
valoraciones sobre los bienes, definición de los agentes y de los colectivos en disputa, descripción de las
experiencias colectivas significativas enfatizando las nominaciones, relación con las políticas públicas, entre
otras condiciones significativas de la acción colectiva. Debe anotarse que las fuentes consultadas no

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establecer los ―ritmos‖ de la acción como una primera instancia analítica del proceso, y
para lo cual reconstruimos y presentamos ciertas experiencias paradigmáticas 75 de cada
episodio.
Primer episodio: las experiencias pioneras (1971-2000)
En la ciudad de Córdoba, la primera experiencia cooperativa de cirujas inició en la
década del 70. Cuando dos Asistentes Sociales llegan a Villa Inés para abocarse a la
organización de una comisión vecinal, en ese recorrido, se reconoce que “la mayoría de
los vecinos de Villa Inés vivía, como hoy, del cirujeo” (Se.A.P., s/d: 5). De allí surge la
idea de conformar una cooperativa de trabajo: “El Huanquero”76. En 1971, la Cooperativa
“Huanqueros”, conformada por cirujas y técnicos77, firma un convenio con la
Municipalidad de Córdoba a diez años para la explotación de la basura. Para ello, se
consiguió prestado un campo perteneciente a otra empresa y ubicado en el camino a Villa
Posse, aunque al poco tiempo el proyecto se mudó a otro campo situado en el camino a Los
Molinos (zona suroeste de la capital).
Cada mañana, un colectivo transportaba a los cooperativistas de cinco villas hasta
el predio en donde trabajaban recuperando materiales reciclables entre los desperdicios
descargados por los camiones municipales. El dueño del campo, por su parte, se
usufructuaba a partir del aprovechamiento de la basura en la cría de porcinos78. Si bien el
trabajo era “pesado”, riesgoso y el margen de ganancia era bajo, las cantidades
recuperadas permitían que cada uno “ganara bien” y la cooperativa anduviese “a todo
trapo” (Se.A.P., s/d). A partir del golpe de Estado de 1976, la situación de Huanqueros
empeoró drásticamente: la “gente de afuera”79se fue ausentando, dejando un vacío en el
Consejo de Administración – “…al final, el consejo era una sola familia, no había control
de nada!” (Se.A.P., s/d, p.17). También comenzaron a discontinuarse los “subsidios y
ayudas” provenientes del Ministerio de Asuntos Sociales, y la municipalidad no renovó el
convenio: “Trabajamos hasta el último día del convenio. Después entró ASEO80 y ya no

resultaron uniformes respecto de la información contenida, sino que por el contrario, la diversidad evidenció
algunas ausencias significativas. Sin embargo, en su conjunto, los documentos de investigación, tanto como
las notas periodísticas (y las voces de los actores contenidos en ambos soportes), resultan instrumentos
valiosos para ir re-tramando ―pistas‖ (Scribano, 2013) acerca de los ritmos más extensiones de la acción
colectiva de los cirujas.
75
Aquí lo paradigmático no se vincula a la noción de ―tipo de ideal‖ weberiano, ni es un caso
―representativo‖, sino que se trata de experiencias donde se expresan las tendencias – siempre dinámicas –
que caracterizan la singularidad del período destacado; y cuya ponderación debe realizarse en la
tensionalidad que presenta con los casos seleccionados para los otros episodios presentados.
76
Entre las explicaciones posibles acerca del surgimiento de Huanqueros se distinguen dos componentes: por
un lado, la zona de Villa Inés y la vecina villa San José, en las inmediaciones del río Suquía en el sector este
de la ciudad, fue el espacio para la instalación de curtiembres, frigoríficos y lavaderos de trapos, actividades
que se relacionan con la presencia de cirujas desde tiempos remotos. Por otro lado, otros sostienen que “la
idea salió del Movimiento Villero – organización que agrupaba a la mayoría de las villas de la ciudad en la
década del 70.- y el Ingeniero Peretti fue el que la tiró” (Se.A.P.; s/d, p.5).
77
“Los que llegaban de afuera eran gente allegada a tender la mano a la gente villera, para que la villa
progrese...” (Se.A.P. s/d,p.14). “Si cuando había que elegir [para la conformación del Consejo de
Administración] eran siempre los mismos. Eran siempre ellos, Jatib, Rodríguez, era gente de afuera. Ellos
no trabajan en el campo con nosotros…” (ídem).
78
“El campo estaba dividido en dos sectores; un día tiraban la basura de un lado y los chanchos comían de
ahí, y del otro lado nosotros cirujeabamos lo que habían limpiado los chanchos” (Se.A.P, s/d,p.9).
79
“Los abogados, médicos y A[sistentes]. Sociales que trabajan en el Huanquero se empezaron a ir. Así, los
cirujas tuvieron que tomar tareas que nunca habían hecho” (Se.A.P., s/d: 17).
80
Hacia fines del año 1981, el servicio de higiene urbana de la ciudad de Córdoba es licitado en favor de la
firma Aseo (WasteManagment International y Sociedad Macri), beneficiándose con dicha licitación hasta el
año 1984. En el año 1982, Aseo también resulta adjudicataria de la licitación para la construcción del primer

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hubo forma de poder renovarlo. La Municipalidad no quería saber nada con el


Huanquero…” (Se.A.P, s/d, p.18). Así los registros de la actividad de la cooperativa
comienzan a diluirse, hasta que re-aparecen algunas referencias a la experiencia en
instancias de conformación de otras cooperativas en los años 90 (Coop. Villa Inés).
Luego de un período de latencia, hacia 1989, la crisis de la hiperinflación da lugar a
la expansión de merenderos, comedores y compras comunitarias81, por lo cual, entre
grupos de pobladores y organizaciones sociales se van agrupando creando ―comisiones‖ y
―cooperativas‖. En el barrio de Villa Urquiza, miembros del Servicio a la Acción Popular 82
acompañan el proceso organizativo83 de un grupo de “cirujas históricos”(EE
17/11/2017)84, a partir de donde surgirá la Cooperativa de Trabajo ―Los Carreros‖ Ltda.
El debate era, qué tipo de organización se quería hacer, si una cooperativa
o un sindicato. Entonces hubo ahí un año de laburo, en donde, se trabajó
con los cirujas que, las características de las dos organizaciones, y cuál
era el perfil organizativo que para ellos era más fácilmente. Y finalmente,
ellos se definieron […] por una cooperativa, de trabajo y servicio. […] lo
que ellos se imaginaban era saltar el intermediario, que la cooperativa le
comprara a los carreros, saltear el intermediario, que la cooperativa se
vinculara directamente con la fábrica. (Entrevista exploratoria,
17/11/2016).
Lo que inicialmente se pensaba como la Cooperativa de Trabajo y Consumo de
Cirujas de Villa Urquiza, dio lugar a la constitución formal de ―Los Carreros‖, obteniendo
la personería jurídica provincial en 1993. La formalización permite conseguir los recursos
para adquirir un salón multiuso donde se realizan actividades de alfabetización,
capacitación en oficios, biblioteca popular y diversas tareas recreativas. Conjuntamente, se
avanzaba hacia la construcción de una planta para procesar el material recuperado en las
calles (Se.A.P., 1996).
En el año 1995, durante la intendencia de Rubén Martí, se implementan en Córdoba
varias políticas ―ambientalistas‖85, entre ellas, la construcción de una planta de

relleno sanitario de Córdoba, en jurisdicción de la vecina localidad de Bouwer (municipio de unos 2.000
habitantes, colindante al sur de la capital provincial) (Pellón, 2016).
81
“… básicamente, ese año [1989] que la explosión de las copas de leche, los comedores, las compras
comunitarias, porque… por „la hiper‟” (Entrevista Exploratoria, 17/11/2016)
82
Organización constituida por profesionales cordobeses durante el primer lustro de 1980, cuya principal
fuente de financiamiento provenía de agencias de cooperación internacional que apoyaban iniciativas
orientadas a la recuperación del tejido social post-dictadura (EE, 17/11/2017; Se.A.P., 1996).
83
“Cuando empezó la dictadura, la militar, empezamos a organizarnos. Las mujeres, a veces con algunos
chicos más grandes. Empezamos, porque nos quitaron los carros y empezamos a trabajar con catres. Así
sobrevivimos. Y cuando vino la democracia… Ahí hicimos una juntada de carros, para que no nos los quiten.
Mire usted: primero los militares nos dejaron sin ningún carro. Después, cuando llega la democracia,
nosotros ya habíamos comprado carros porque estábamos movilizados. Pero empezaron a corrernos y a
quitarnos los carros. Entonces nos juntamos todos‖ (Entrevista a Chinina, Presidenta de Coop. ―Los
Carreros‖, en VERGARA y GIANNONE, 2009, p.21).
84
“…son cirujas históricos. O sea, no son los, los recicladores de los 90, no son... personas que comenzaron
a ponerle palabra a su oficio cuando ya estaba instalado el tema del medioambiente, del reciclado. No
existían en esa época el tema del reciclado, y la discusión sobre el medioambiente. Eso vino del 93 en
adelante” (EE, 17/11/2016). Cabe destacarse, que la entrevistada, complejiza la distinción entre cirujas
―tradicionales‖ y ―nuevos‖ cartoneros (distinción utilizada, por ejemplo, en BERMÚDEZ, 2006).
85
En 1993 la firma del Pacto Federal Ambiental significa la instrumentación del ―Programa 21‖, aprobado
por en la Conferencia de las Naciones Unidas para el Medio Ambiente y Desarrollo (Río de Janeiro, 1992),
entre otras acciones, coloca las problemáticas ambientales dentro de las agendas políticas nacional y
provincial (Aimar, Giannone y Lisdero, 2007). Posteriormente, Rubén Martí (Unión Cívica Radical)
implementa políticas municipales inspiradas en el ―modelo de Curitiba‖, de allí su mote de ―Intendente
Verde‖. En este sentido, uno de los programas más ―emblemáticos‖ fue el Basura Inorgánica da Comida

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clasificación de residuos inorgánicos junto al relleno sanitario ubicado en Bouwer


(localidad ubicada al sur de Córdoba). La empresa Cliba (Grupo Roggio), concesionaria
del servicio de higiene urbana, queda a cargo de la construcción de la planta de
clasificación y, conjuntamente, comienza a prestar el nuevo servicio de recolección
diferenciada de residuos. Para el funcionamiento operativo de la nueva planta se conforma
la Cooperativa “Villa Inés”, organización ―derivada‖ de la experiencia de Huanqueros (EE
17/11/2017) y vinculada a la Unión de Organizaciones de Base 86.
La planta de clasificación de residuos inorgánicos, ubicada dentro del predio del
relleno sanitario municipal, es presentada como:
…una alternativa que, además de contribuir a la ecología y medio
ambiente, permite una salida económica aceptable a unas 40 familias de
cirujas de la cooperativa Villa Inés. (…) los miembros de la cooperativa
se limitan a ―seleccionar‖ el material. Esto es, eligen lo que sirve y lo que
no, pero no transportan la mercadería, como si hacen los carreros (LVI,
8/4/1998)87
Por otro lado, ―Los Carreros‖ de Villa Urquiza mantiene en funcionamiento su
planta en donde acondicionan, acopian, compran y comercializan residuos reciclables y sus
diversas actividades comunitarias (VERGARA y GIANNONE, 2009).
Somos un grupo de 30 a 35 mujeres. Teníamos una beca de la nación de
$920.
Hay comedores de medio día y de noche, atendemos a más de 90 abuelos,
y además a familias, discapacitados, niños. Tenemos los comedores y
además acercamos comida... Reunimos a familiares directos, buscando el
apoyo familiar.Hacíamos todo el trabajo; ahora se nos cortaron todos los
proyectos. Pedimos que el gobierno convierta en hogar de día. Todos los
días pedimos a través de notas en los negocios del barrio. Cocinamos con
fuego para no decir que esto se cierra o que bajamos los brazos…
Logramos comunicarnos con los dispensarios del barrio. La gente de
nutrición da clases, reuniones y apoyos en la planificación familiar,
también en odontología y diabetes. (Entrevista a Chinina Zamora, en
VERGARA y GIANNONE, 2009, p.25)
Segundo Episodio: la expansión de las experiencias cooperativas y el surgimiento de la
protesta (2001-2008)
Hacia el año 2001, la creciente cantidad de personas abocadas a la recuperación de
residuos en la vía pública llama la atención diversos sectores, quienes presentan la

(“BIDA”) vigente entre 1996-1997, orientado a entregar bolsones de verduras a los sectores más
empobrecidos a cambio de bolsones de cartón, plásticos y otros reciclables (ver La Voz del Interior,
7/5/2011, ―Los que paran la olla con el reciclado de basura‖. Versión digital. Disponible en:
http://www.lavoz.com.ar/ciudadanos/cordoba-ciudad/que-paran-olla-con-reciclado-basura Fecha de consulta
10/04/2017).
86
En 1992, se constituye en Córdoba la Unión de Organizaciones de Base por los Derechos Sociales
(UOBDS), espacio que nucleó a más de 100 organizaciones. En función del reconocimiento social de esta
organización los gobiernos provincial y municipal establecen con la UOBDS una ―Mesa de Concertación de
Políticas Sociales‖ que funcionó entre 1995-1997. La Voz del Interior (7/11/2001) ―Cooperativa teme perder
reciclado de basura.‖ Versión digital. Disponible en:
http://archivo.lavoz.com.ar/NotaAnterior.asp?nota_id=65610&high=car Fecha de consulta: 10/04/2017.
87
La Voz del Interior (8/4/1998) ―Rebelión de cirujas. Compás de espera para una protesta de los carreros‖,
por Rubén Curto. Versión digital. Disponible en: http://archivo.lavoz.com.ar/intervoz/98/04/08/ig_n3.html
Fecha de consulta: 10/04/2017.

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actividad como un “trabajo informal”88. Ese mismo año, se celebra en Córdoba (en la
localidad de Saldán) un Congreso Nacional de Cirujas, organizado por el Banco Mundial y
la Fundación Conciencia. De lo trascendido, puede destacarse que participaron
representantes de ―Los Carreros‖ y de ―Villa Inés‖, y resulta relevante la nominación de
recuperadores urbanos de basura para referir a los sujetos ocupados en la actividad. En el
marco de este espacio, se ―recomienda‖ adoptar una forma gremial como alternativa a ―los
expulsados‖ de la economía formal, así como también la “necesidad de nuclearse como
arma de supervivencia” para conseguir mejores ingresos. Se destaca asimismo las
―ventajas‖ de aprovechar otras actividades derivadas de la ―recuperación‖, dado que “los
cordobeses son especialistas en el transporte de ramas y escombros” (Página 12:
1/9/2011)89.
La ―cercana‖ relación de los cirujas de Córdoba con las ramas y los escombros, al
menos en ese momento en particular, está vinculada a la re-negociaciones en desarrollo
entre la Municipalidad de Córdoba y dos empresas de Grupo Roggio (actor empresario
local, con mucha presencia en la obra y servicios públicos). Ante la aguda crisis
económica, el gobierno local decide reducir el gasto público, por lo cual Cliba
(concesionaria del servicio público de higiene urbana) y Taym (concesionaria del servicio
de mantenimiento de espacios verdes) reducen significativamente la calidad, frecuencia y
áreas de cobertura (LVI: 4/11/2001) 90. En ese marco, municipio propone instalar 18
―escombreras‖ dentro del ejido urbano para la descarga de basura por parte de las empresas
de alquiler de contenedores y cirujas. Se re-configura, entonces, la relación del Estado con
los cirujas, como una suerte de ―aliados estratégicos‖ ante el recorte de servicios. No
obstante, ―esto no significa que los carreros puedan circular libremente por la ciudad.
Como hasta ahora, tendrán prohibido transitar por avenidas e ingresar a la zona de
exclusión [microcentro].‖(LVI: 4/11/2001: palabras de Heriberto Martínez, funcionario
municipal a cargo de la iniciativa)91.
A mediados del año 2002, siendo el cirujeo una de las postales urbanas de la crisis
que atravesaba el país, se manifiestan una serie de conflictos referidos al uso legítimo del
espacio urbano (VERGARA y GIANNONE, 2009). Por medio del Decreto N° 111/02, el
gobierno municipal establece que “los trabajadores del cartón” deberán dejar sus carros y
caballos en los márgenes del río Suquía (rio que atraviesa la ciudad de Córdoba, y cuyos
puentes flanquean el acceso al centro) y podrán ingresar al centro con carros manuales,
traccionados por ellos mismos (BERMÚDEZ, 2006). Entre las restricciones a la actividad
de los cirujas, en general, el municipio enfoca sus esfuerzos en restringir el ingreso de
estos sujetos al área central de la ciudad, definida abiertamente como ―zona de exclusión‖:
Queremos equiparar las condiciones en que trabajan los carreros. No
puede concebirse que algunos usen camionetas y caballos para transportar
el cartón recogido, mientras que otros deban valerse por sí mismos. (LVI:

88
La Nación (1/7/2001) ―El cirujeo se convierte en trabajo informal.‖ Versión digital. Disponible en:
http://www.lanacion.com.ar/316594-el-cirujeo-se-convierte-en-trabajo-informal Fecha de consulta:
10/04/2017.
89
Página 12 (1/9/2001) ―Unidos por la basura. Crónica de un congreso nacional de cirujas que organizó el
Banco Mundial‖, por Dandan, A. Versión Digital. Disponible en: http://www.pagina12.com.ar/2001/01-
09/01-09-23/PAG29.HTML Fecha de consulta: 10/4/2017
90
La Voz del Interior (4/11/2001) ―La crisis obligará a reciclar la basura.‖ Versión digital. Disponible en;
http://archivo.lavoz.com.ar/NotaAnterior.asp?nota_id=64934&high=car Fecha de consulta: 10/4/2017
91
―Habrá escombreras en 18 puntos de la ciudad‖. Publicado: 4/11/2001. Disponible en:
http://archivo.lavoz.com.ar/NotaAnterior.asp?nota_id=64937&high=car Fecha de consulta: 10/4/2017

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24/08/2002. Palabras de Javier Boldrini, Director de Higiene Urbana


municipal)92.
El 19 de julio y el 17 de agosto de 2002, un grupo de cirujas de villa Sangre y Sol
protagonizan dos manifestaciones importantes para comprender las reconfiguraciones
operadas en los procesos identitarios tanto como en las re-orientaciones de las redes de
conflicto que las preceden/presiden: se trata de dos eventos de protestas callejeras
importantes, los cuales se dirigen en contra de las medidas tomadas por el gobierno
municipal encabezado por Germán Kammerath (Unión por Córdoba). Estas acciones
públicas serán el puntapié de lo que luego se conformará como la Cooperativa de Trabajo
“Cartoneros Organizados”, con sede en villa Sangre y Sol (con personería jurídica desde
2004) (BERMÚDEZ, 2006). La inclusión del término ―cartonero‖ estaría vinculada a fines
estratégicos, acordados entre loscirujas y miembros de la Asociación Civil Raíces 93. Se
busca por un lado distinguirse de ―Los Carreros‖ de Villa Urquiza y, por otro, se orienta a
convocar a recuperadores de residuos en general (BERMÚDEZ, 2006; VERGARA y
GIANNONE, 2009).
Promediando el año 2006, la Cooperativa de Trabajo y Vivienda “San José”, en
vinculación a A.C. Raíces, implementa un proyecto para poner en funcionamiento una
planta de reciclado. Al año siguiente, un grupo de familias de barrio Marqués de
Sobremonte Anexo, con asesoramiento del Mo.Ca.R94., constituyen la Cooperativa de
Trabajo “Reciclado e Inclusión”. Al poco tiempo, se conforma la Cooperativa de Trabajo
de Recicladores “Cor-Cor”, orientada al reciclado de plástico. Está última organización
comparte algunos proyectos y actividades junto a ―Los Carreros‖ y ―San José‖,
enmarcados en la Asociación Nacional de Trabajadores Autogestionados (ANTA-CTA).
En este marco, es fundada también la Cooperativa de Trabajo “Movimiento de Carreros
Unidos”. Durante este período, las cooperativas de cirujas vinculadas al Mo.Ca.R. y a la
A.C. Raíces protagonizan numerosas acciones que se inscriben, principalmente, en redes
conflictuales vinculadas a las políticas públicas de reciclado. En las demandas e iniciativas
implementadas, el Estado municipal aparece como principal antagonista y actor con el cual
negociar las ―articulaciones‖. A principios de 2008, dirigentes de este sector logran
participar en tanto ―representantes del movimiento de carreros‖ en el diseño de las bases y
condiciones para los pliegos de licitación del servicio público de higiene urbana,
contemplando la creación de plantas de reciclado y el reconocimiento social de la
actividad.
Tercer Episodio: las cooperativas de cirujas como actores relevantes en/de las políticas
públicas (2009-2016)
En el año 2009, durante la intendencia de Daniel Giacomino (Frente Cívico y
Social), la Municipalidad de Córdoba crea la firma Córdoba Recicla Sociedad del Estado
(CReSE) como solución al conflicto por la licitación del servicio de higiene urbana (que
hasta ese momento fue prestado por Cliba). La municipalización de los servicios de
recolección y enterramiento de residuos sólidos urbanos fue acompañada también por la
puesta en funcionamiento de una planta de clasificación de residuos. Para el
92
Declaraciones de Javier Boldrini, Director de Higiene Urbana de la Municipalidad de Córdoba, en Diario
La Voz (24/08/2002).
93
A.C. Raíces se constituye en el año 2003, en el marco político-estratégico de la Central de Trabajadores de
la Argentina (CTA). En 2006, dicha organización participará en la conformación del Movimiento Nacional
de Cartoneros y Recicladores (Mo.Ca.R), parte del Movimiento Federal Social Ambiental (Mo.Fe.S.A.),
integrado por la Asamblea Ciudadana por los Derechos Humanos, el Frente Transversal Nacional y Popular y
agrupaciones como Barrios de Pie, Libres del Sur y Evita, entre otras (Vergara y Giannone, 2009).
94
En un marco de demandas por mayor participación en gestión de los resiudos, el 4 de noviembre de 2006,
el Mo.Ca.R realiza su primer encuentro en Córdoba (Vergara y Giannone, 2009).

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funcionamiento de esta planta, CReSE realizó acuerdos con ―Cartoneros Organizados‖,


―Reciclado e Inclusión‖ y Fundación El Faro (LVI, 20/8/2009)95. Durante ese mismo año,
el municipio también celebra un convenio con ―Carreros Unidos‖, para el mantenimiento y
ordenamiento de 25 basurales re-funcionalizados como puntos de transferencia
transitorios, a cambio del pago de 50 subsidios de unos mil pesos mensuales:“Vamos a ser
una especie de inspectores en 25 basurales de la ciudad. Vamos a impedir el ingreso a
grandes camiones, camionetas y vehículos particulares” (Héctor González, presidente de
―Carreros Unidos‖, enLVI, 2/9/2009).96
En septiembre de 2010, se inicia un nuevo micro-ciclo de protestas en rechazo de la
iniciativa municipal de multar a los vecinos que ―den trabajo‖ a los carreros por el traslado
de basura: estas manifestaciones remarcan un re-posicionamiento de las redes
conflictuales. En distintos días se manifiestan miembros de ―Cartoneros Organizados‖ y
―Carreros Unidos‖. Esta última cooperativa, también demandará una mayor participación
en el circuito ―formal‖ de la basura y en el reconocimiento de su actividad como servicio
público (LVI, 5/10/2010).97 En noviembre de 2010, unos 40 carros son movilizados y
cortan el tránsito en las cercanías a la Casa de Gobierno de la Provincia para demandar un
subsidio para el mantenimiento de sus caballos. Esta será la manifestación ―fundante‖ de la
Cooperativa de Trabajo de Carreros y Recicladores “La Esperanza”, integrada por cirujas
que provenientes de otras experiencias (tales como ―Carreros Unidos‖), otros sin
experiencias asociativas, y profesionales-militantes del Encuentro de Organizaciones
(EO)98. A mediados de 2011, habiéndose constituido formalmente como cooperativa y
luego de varias acciones de protesta callejera, ―La Esperanza‖ gestiona sus primeras nueve
―becas‖ para el cuidado de basurales. “Hemos formado una cooperativa. Ya hemos venido
unas siete, ocho veces. Hay carreros que no tienen trabajo porque Crese lo absorbe”
(Carlos Andrada, presidente de ―La Esperanza‖, en LVI, 1/7/2011).99 Gradualmente, la
cantidad de socios de la cooperativa irá aumentando al mismo ritmo de las nuevas becas
otorgadas por el municipio a través de CReSE.
Hacia fines de 2011 asume la intendencia Ramón Mestre hijo (Unión Cívica
Radical), y una de las primeras acciones adoptadas consiste en concesionar el servicio
público de higiene urbana (por fuera del proceso formal de licitación) a las firmas LUSA y
COTRECO, re-configurando significativamente el panorama empresarial vinculado al
tratamiento de la basura. Por otro lado, entre las metas de gobierno se incluye la
elaboración de un ―Plan de organización y manejo‖ de los cirujas de la capital cordobesa,
el cual incluye tareas de censo, registro y organización. En una serie de informes realizados
por el municipio, se reconoce que las ―zonas críticas‖ de actividad son en la vía pública y
en los basurales a cielo abierto. Ante esto, los informes ―técnicos‖ recomiendan “no

95
La Voz del Interior (20/8/2009) ―Fuerte polémica por el reciclado de residuos secos en la base Mitre‖.
Versión digital. Disponible en: http://archivo.lavoz.com.ar/nota.asp?nota_id=543831 Fecha de consulta.
10/04/2017. El Faro se encontraba estrechamente vinculada a la entonces concejala Mónica Cid, habiendo
ocupado ésta la presidencia de la fundación.
96
La Voz del Interior (2/9/2009) ―Carreros intervendrán en basurales a cielo abierto‖ Versión digital.
Disponible en: http://archivo.lavoz.com.ar/nota.asp?nota_id=555992 Fecha de consulta: 10/04/2017.
97
La Voz del Interior (5/10/2010) ―Nuevo reclamo de los carreros frente al municipio‖. Versión digital.
Disponible en: http://www.lavoz.com.ar/noticias/politica/nuevo-reclamo-de-los-carrerosFecha de consulta:
10/04/2017.
98
Actualmente, el Encuentro de Organizaciones integra la Confederación de Trabajadores de la Economía
Popular (CTEP) y ―La Esperanza‖, de la Federación Argentina de Cartoneros y Recicladores (FACyR-
CTEP). Debe mencionarse a principios del año 2017, la mencionada federación incorporó el término
―carreros‖ en su denominación, luego de la palabra ―cartoneros‖ (FACCyR).
99
La Voz del Interior (1/7/2011) ―La protesta de carreros terminó con tres detenidos‖. Versión digital.
Disponible en: http://www.lavoz.com.ar/ciudadanos/protesta-carreros-termino-con-tres-detenidos Fecha de
consulta: 10/4/2017.

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perseguirlos”100, sino incluir a aquellos que estén organizados en cooperativas y


vincularlos laboralmente a la ―fracción seca‖ de los residuos sólidos urbanos. Para ello, se
crea un Registro de Cooperativas de Recuperadores Urbano (RECOOP)101.
En este nuevo contexto, CReSE reduce sus responsabilidades quedando a cargo de
la disposición final de la basura y de los Centros Verdes (actualmente, son cuatro las
plantas de clasificación de residuos). Las tareas de recuperación, clasificación y
acondicionamiento de los reciclables se realizan mediante contratos entre CReSE y
―Cartoneros Organizados‖, ―Cor-Cor‖, y las cooperativas “Solidar” y “Jóvenes
Emprendedores”. En 2013, el gobierno local firma un convenio específico con la
Universidad Católica de Córdoba con el objetivo de relevar y diagnosticar las instituciones
de la economía social involucradas en el manejo informal de residuos “y de las inscriptas
en el RECOOP, de sus miembros y de los territorios en los que habitan y trabajan” (UCC,
s/d, p.4). El informe provisorio señala que de la población relevada, los socios de ―La
Esperanza‖ representan el 71,6% del total ; que un 36% de los carreros cobran una ―beca‖;
y que el 63% del total afirma que aceptaría otra alternativa laboral a la
recuperación/recolección (UCC, s/d).
Posteriormente, la articulación entre la municipalidad y las cooperativas de carreros
que trabajan en los puntos de transferencia transitorios (o ―puntos verdes‖) es desplazada
desde la Secretaría de Ambiente-CReSE a la Subsecretaría de Desarrollo Social. Hacia
fines de 2014, las tres cooperativas de cirujas más ―influyentes‖ por su capacidad de
protesta callejera (―Carreros Unidos‖, ―La Esperanza‖ y una cooperativa ―en formación‖
de la organización Barrios de Pie) (DAD, 22/5/14)102se encuentran vinculadas (gestionan y
cobras ―becas‖) al Programa “Servidores Urbanos”103:
…a mí en ese momento me habían transferido todos los carreros que
estaban en los puntos verdes y que no tenían ninguna actividad, y que
cobraban una beca sin realizar ninguna contraprestación. (Entrevista a
funcionario municipal encargado del programa, 26/01/2017).
A principios de 2015, el trabajo de los ―Servidores Urbanos‖ ya es todo un ―éxito‖
y es presentado en los medios de comunicación como una vía legítima de recaudación
financiera estatal104. Inicialmente, desde la Subsecretaría Desarrollo Social de la
Municipalidad se asignaron tres cuadrillas de ―servidores‖ a tres Centros de Participación
Comunal (CPC), organismos de descentralización de la gestión municipal (―Ruta 20‖,
―Monseñor Pablo Cabrera‖ y ―Argüello‖) para desmalezamiento y limpieza de espacios
privados. A medida que se van sumando otras cooperativas de cirujas (como ―Crecer‖,
―Manos Unidas‖) y “organizaciones sociales”, las cuadrillas de ―servidores‖ cubren los
doce CPC que integran la ciudad y otras dependencias municipales (como las direcciones

100
Municipalidad de Córdoba (2012) ―Contenidos críticos propuestos para la confección del pliego‖. Servicio
Público de Higiene Urbana. Octubre de 2012. Córdoba. En dicho documento se exhiben dos opciones
respecto a los ―recuperadores urbanos‖: “Se llaman al SPHU”.
101
Adhieren al RECOOP, de manera provisoria, 11 cooperativas: ―Cartoneros Organizados‖, ―Solidar‖, ―La
Esperanza‖, ―Los Carreros‖, ―Cor-Cor‖, Riveras del Suquía, ―Carreros Unidos‖, ―Crecer‖, ―Sumando
Hogares y Espacios Urbanos‖, ―Nuestro Futuro‖ y ―Jóvenes Emprendedores‖.
102
Día a día (22/5/2014) ―Le quieren poner el cascabel a las carretas‖. Versión digital. Disponible en:
http://www.diaadia.com.ar/cordoba/le-quieren-poner-cascabel-carretas Fecha de consulta: 10/4/2017.
103
El proyecto ―Cuerpo de Servidores Urbanos Comunitarios‖ es implementado por Daniel Giacomino,
mediante el Decreto N° 856 del 15 de marzo de 2007, estando destinado a cooperativas de trabajo de
―naranjitas‖ (cuida coches). El 18 de junio de 2014, Ramón Mestre (h), mediante el Decreto N° 1.786, amplía
el programa dejándolo abierto a cualquier tipo de cooperativa que sea necesaria para realizar toda actividad
de incumbencia municipal.
104
La Voz del Interior (2/4/2015) "Baldíos: limpieza y multas a dueños‖. Versión digital. Disponible en:
http://www.lavoz.com.ar/cordoba-ciudad/baldios-limpieza-y-multas-duenos Fecha de consulta: 10/4/2017.

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120

de Ambiente, Deportes, Emergencia Social, Control Integral, etcétera). En este sentido, lo


―novedoso‖ de esta política estatal pasa por el ―descubrimiento‖ de que los cirujas poseen
energías y capacidades para el trabajo que pueden ser ―puestas en valor‖ a partir de este
plan en actividades que poco tenían que ver con el objeto sociales de las asociaciones que
los nuclean, y donde se prioriza la necesidad de que ―deje el carro‖ y consiga ―ingresos
fijos‖:
Para lograr que el carrero tenga una alternativa de trabajo dejando el
carro había que quitarle horas de trabajo en otra actividad laboral,
digamos, sino no pueden subsistir. Entonces, ese era el criterio: que las
horas que trabajaran como becarios de Servidores Urbanos, son horas que
nosotros entendemos que no están en el carro, por lo menos la mayoría.
Por eso se logra hacer estos convenios con las cooperativas. (EE,
26/01/2017).
La difusión de este Programa se va asociando a la vinculación progresiva con otras
cooperativas del sector: se suman entonces las cooperativas ―Manos Unidas‖ (conformada
por un grupo de carreros de la zona de Ruta 20, asesorados por un funcionario municipal
del área de Economía Social), ―Luna Nueva‖ (conformada mayormente por trabajadores de
la zona este de la ciudad y militantes del EO) y la Cooperativa de Cartoneros-Recicladores
―Podemos‖ (conformada por cirujas de villa Los Galpones y militantes del EO). En esta
dirección, al cierre del año 2016 el municipio se encuentra empleando a unas 500 personas
– en gran mayoría carreros – “para todo tipo de servicio de trabajo municipal o algún tipo
de trabajo municipal” (EE, 26/01/2017) que poco – o muchas veces nada – tienen que ver
con la recuperación de residuos y el reciclaje de materiales.
A modo de apertura: aportes para agenda de discusión
A lo largo del presente trabajo, nos hemos propuesto continuar con una tarea
investigación que venimos desarrollando desde hace algunos años, la cual se vincula con la
posibilidad de mapear las lógicas de la acción colectiva y los procesos identitarios
protagonizados por los cirujas de la ciudad de Córdoba. En este caso, dicha actualización
se valió de la recuperación de una serie de fuentes secundarias como estrategia válida para
la tarea emprendida. Pero además, avanzamos en la periodización de las experiencias
relevadas, partiendo de una serie de supuestos orientados a priorizar la distinción entre ―lo
que pasa‖, ―lo que vemos que pasa‖ y ―lo que los actores interpretan sobre lo que pasa‖. En
este último sentido, en tanto parte de las fuentes consultadas constituyen cartillas productos
de investigaciones previas, debimos adoptar una serie de precauciones a los fines de no
disolver las identidades reunidas en el corpus, así como tampoco reducir la doble
hermenéutica adoptada como punto de partida. En otras palabras, para la reconstrucción
que realizamos, reconocimos desde el comienzo que la información que estamos
organizando se encuentra mediada por una serie de construcciones teóricas que no resultan
pasivas sino que en sí mismas deviene parte del objeto de nuestro análisis, en tanto los
investigadores así como los cirujas y nosotros mismos (también los periodistas de las
muchas notas adoptadas) constituyen actores interesados en el conflicto por la apropiación
simbólica del sentido de la acción. En esta dirección, podríamos presentar de manera
resumida los episodios construidos de la siguiente manera:

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121

Pero nos interesa aquí poder dar un paso más en el análisis de la periodización
construida, dejando abierto unos interrogantes que conecten a las lógicas emergentes de la
acción colectiva de cirujas con una agenda de discusión posible. En esta dirección, el
sentido de la conflictividad asociada a las experiencias relevadas y presentadas de manera
agrupada en tres episodios, implica enfocarse en las dimensiones de la interacción

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122

orientadas a la construcción de una ―subcultura‖ (MELUCCI, 1994). Es decir, nos interesa


concentrarnos en las relaciones cotidianas que operan como mediadoras de la
―reproducción‖ de las estructuras sociales; antes que explicar la constitución de las
cooperativas como actores político específicos, cuyo sentido de la acción pudiese leerse,
solamente, en términos de una lógica instrumental y/o su impacto directo en el sistema
administrativo-político (MELUCCI, 1994, p.136).Nos interesa –en su lugar- recuperar
interrogantes que abran el juego respecto de las orientaciones de la acción a partir de las
cuales es posible cualificar el sentido antagonista de los procesos conflictivos, y al mismo
tiempo, explorar la capacidad que tienen las actividades y procesos organizativos relevados
para ―comunicar‖ sobre las ―nuevas lógicas‖ que se configuran en nuestra sociedad.
Es en función de esta perspectiva que dejamos planteado, a modo de apertura, los
siguientes interrogantes como una posible agenda (abierta) para la discusión:
a- Implicancias de la naturalización de la “herramienta cooperativa”: aunque aquí no
se ha enfatizado en la indagación de los sentidos específicos de la herramienta cooperativa,
en otros lugares hemos explorado algunos sentidos concurrentes entre la expansión de las
cooperativas y ciertos procesos flexibilizadores encarnados en las lógicas emergentes de
las transformaciones del mundo del trabajo, tanto como de procesos des-movilizadores que
implican la oclusión y desplazamiento del conflicto en/por las cooperativas (SCRIBANO y
LISDERO, 2009; LISDERO y VERGARA, 2010). Si bien la reconstrucción de los
episodios parece mostrar cierta aceleración en la expansión de la estrategia cooperativa
como lógicas de procesamiento de la acción colectiva, resulta relevante preguntarse en este
contexto ¿qué implicancias tiene que la ―herramienta cooperativa‖, tal como se instancia
en estos ―aquí y ahora‖, se convierta en el ―destino inexpugnable‖ de toda lógica colectiva?
b- La estrategia de los Estados: ¿inclusión o regulación? Otro de los signos emergentes
de la reconstrucción realizada es el lugar preponderante que ocupan ―las políticas públicas‖
en la configuración de las formas de la acción colectiva, y consecuentemente, en los
procesos identitarios que las soportan. Al respecto, en otros espacios hemos explorados
cómo ciertas políticas públicas relacionadas a la basura se vinculan y tienen efectos
significativos en la configuración de unas sensibilidades que operan naturalizando ciertas
conflictividades, y particularmente ocultando unos ―otros‖ determinadores, como por
ejemplo aquellos que ―ponen la sangre‖ en el monumental proceso de reciclado (LISDERO
y VERGARA, 2015).En este sentido, podríamos preguntarnos, entre otras: ¿cuál es el
saldo de las políticas públicas en términos de los procesos organizacionales, o aún, en la
configuración de las valoraciones acerca de los usos del cuerpo de los cirujas?
c- El lugar del trabajo: “trabajo digno”, “trabajo reproductivo” o “subsidiano”
(SCRIBANO, 2017): estrechamente vinculado a lo anterior, se impone un debate en torno
a la reconfiguración de la antigua discusión entre trabajo y ocupación. Efectivamente, una
lectura desapercibida podría asociar el aumento de la cantidad de cooperativas con la
expansión de un proceso de ruptura con la escisión de trabajo-mercancías y trabajo-uso. Es
decir, la tendencia que parece materializarse en el gráfico 1 podría estar sugiriendo una
directriz a partir del cual aquellos quienes no tienen más que las energías de sus cuerpos
para aportar en los procesos de producción comienzan a re-apropiarse del sentido
excedentarios que tiene su propio trabajo, enfatizando la relación más ―antropológica‖ del
mismo en tanto sentido de intercambio y de auto-transformación de sí-mismo y su entorno.
Sin embargo, la creciente vinculación de las cooperativas como ―poleas‖ de tracción de las
políticas públicas devuelve una imagen que se contradice con la tendencia sugerida. En
este sentido, podríamos preguntarnos ¿cuáles son los sentidos del trabajo puestos en juego
en una cooperativa de recicladores que no recicla; y cuál es el lugar que ocupa la
aplicación de políticas públicas en la reconfiguración de los tiempos-espacios-sentidos del
trabajo?

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123

Sin intención de cerrar discusiones, la periodización presentada, tanto como las


preguntas formuladas quieren ser puestas a disposición de futuras investigaciones,
apostando a un diálogo que posibilite abrir el juego a las lógicas emergentes de la acción
colectiva.
Bibliografía
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posible, Polis [En línea], 41 | 2015, Publicado el 20 septiembre 2015, consultado el 12
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125

VERGARA, Gabriela. ―Yo sí, pero mis hijos no‖: un análisis entre la soportabilidad y el amor filial en
mujeres recuperadoras de residuos (Argentina). Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e
Sociologia, v.1, n.2, p. 125-135, julho de 2017. ISSN 2526-4702.
Artigo
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

“Yo sí, pero mis hijos no”: un análisis entre la soportabilidad y el amor
filial en mujeres recuperadoras de residuos (Argentina)105
“Eu, sim, mas meus filhos, não”: uma análise entre a suportabilidade e o amor filial em mulheres
recicladoras de residuos (Argentina)

"I, yes, but my children, no": an analysis between support and filial love in women waste recyclers
(Argentina)

“…si yo he pasado necesidades no quiero que mis hijos lo pasen, porque


uno piensa en la calle y sale a buscar pan de los niños, no de uno”
(Entrevista a mujer recuperadora, 2008, Córdoba).

Gabriela Vergara
Resumo: Este artigo discute as práticas de aprovisionamento de bens de consumo e de
alimentos, assim como as percepções de trabalho em relação à própria ocupação presente e ao
futuro das crianças e de mulheres catadoras de lixo, em três cidades argentinas. Os
pressupostos teóricos de uma sociologia dos corpos e emoções são usados para articular os
conceitos de cidades, corpos e sociabilidades. Para fazer isso, em um primeiro momento,
pressupostos teóricos, ligando cidades, o capitalismo e a segregação, são retomados. Ele
descreve brevemente o fenômeno dos recuperadores. Em segundo lugar, o conceito de ―tramas
corporales‖ é apresentado, e sua relação com a sensibilidade, sociabilidade e experiências para
entender as práticas e percepções. Em terceiro lugar, práticas de aprovisionamento de bens de
consumo e alimentos juntamente com as percepções de trabalho em relação à própria ocupação
presente e ao futuro das crianças são analisados, en entrevistas a mulheres catadoras de lixo, na
três cidades argentinas. Finalmente, o artigo sugere que as práticas e percepções no contexto de
―sensibilidades descartáveis‖ e ―sociabilidades individualistas‖ presentes tensões entre
―soportabilidad‖ e práticas intersticiais, que têm laços fora da lógica da mercadoria. Palavras-
chave: sociabilidade, trabalho, percepções, lixo

Resumen: En este artículo se analizan prácticas de aprovisionamiento de bienes de uso y


alimentos junto con percepciones del trabajo respecto a la ocupación propia presente y, de los
hijos en el futuro de mujeres recuperadoras de residuos sólidos urbanos, de 3 ciudades
argentinas. Se utilizan los supuestos teóricos de una Sociología de los cuerpos y emociones
para articular los conceptos de ciudades, cuerpos y sociabilidades. Para ello, en un primer
momento se retoman supuestos teóricos, que vinculan ciudades, capitalismo y segregación. Se
describe brevemente, el fenómeno de los recuperadores. En segundo término, se presenta el
concepto de tramas corporales, y en su relación con las sensibilidades, sociabilidades y
vivencialidades para comprender las prácticas y percepciones. En tercer lugar, se analizan
prácticas de provisión, prácticas de alimentación y percepciones del trabajo en los pliegues del
presente propio y futuro de los hijos, en entrevistas a mujeres recuperadoras de residuos de 3
ciudades del interior de Argentina. Por último se plantea que prácticas y percepcionesen

105
Una versión preliminar de este artículo fue presentada en la Jornada de Estudio ―Circulaciones incómodas:
perspectivas comparadas sobre la producción de jerarquías, fronteras y regulaciones sociales en torno al
reciclado y reuso de materia descartada‖, que se realizó el 19 de Mayo de 2016, en la Universidad Nacional
de Quilmes.

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contexto de ―sensibilidad de los desechables‖ y ―sociabilidades individualistas‖ presentan


tensiones entre la soportabilidad y prácticas intersticiales, las cuales mantienen vínculos por
fuera de la lógica de la mercancía. Palabras clave: sociabilidades, trabajo, percepciones,
residuos

Abstract: This article analyzes practices of provision of goods and food along with
perceptions of the work regarding the present occupation, and of the children in the future of
urban garbage recyclers women, from three Argentine cities. The Theoretical assumptions of a
Sociology of bodies and emotions are used to articúlate the concepts of cities, bodies and
sociabilities. To this end, Theoretical assumptions, which link cities, capitalism and
segregation, are taken up in the first place. It describes briefly the phenomenon of recuperators.
Secondly, it presents the concept of ―tramas corporales‖, and in its relation with the
sensibilities, sociabilities and experientialities to understand the practices and perceptions.
Third, we analyze practices of provision, feeding practices and perceptions of work in the folds
of the present and future of the children, in interviews with urban garbage recyclers women
from three cities in the interior of Argentina. Finally, it is posed that practices and perceptions
in the context of "sensibilidad de los desechables" and "individualistic sociabilities" present
tensions between social bearability and interstitial practices, which maintain ties outside the
logic of the commodity. Keywords: sociabilities, work, perceptions, waste

Las calles son las arterias de las ciudades106. Son parte del sistema circulatorio de
un espacio artificial cuya carne es de hormigón y acero (BAUMAN, 1999). Eran el lugar
de paso, en las urbes de la industrialización sustitutiva, por donde los obreros iban y venían
en bicicletas, desde sus casas a las fábricas y viceversa. Las calles terminaban allí donde la
propiedad privada de los medios de producción establecía límites tajantes entre el adentro
y el afuera con carteles de ‗prohibida la entrada‘. La desarticulación de aquel modo de
producción y la relativización del modelo de varón proveedor se combinaron con cambios
en el mercado de trabajo, el aumento del desempleo, subempleo y el cuentapropismo
(NEFFA, 2003) por lo cual las calles se transformaron en escenarios de proliferación de
ocupaciones diversas, pero unidas por un rasgo común: la precariedad y la informalidad.
Una de estas ocupaciones es la recuperación de residuos la cual se puede realizar en otro
espacio vinculado de manera opuesta a la ciudad: los sitios de disposición final (rellenos
sanitarios, basurales a cielo abierto).
Las transformaciones urbanas y laborales afectan las formas de interacción, los
(des)encuentros en co-presencia, pero también las vivencias particulares de los agentes –de
aquellos que van al centro de la ciudad a comprar ropa a una tienda de marca, o de quienes
buscan en la misma tienda pilas de cartones para su reciclaje-, y las formas de sentir, ver y
oler el mundo. En este contexto es que indagamos ciertas prácticas y percepciones del
trabajo de mujeres recuperadoras de residuos sólidos urbanos, de tres ciudades argentinas.
En cuanto a prácticas nos referimos a la provisión de bienes de uso y a la alimentación, que
habitualmente solemos asociar al trabajo de reproducción que predominantemente realizan
mujeres en los espacios domésticos. En cuanto a percepciones del trabajo nos ubicamos en
aquellos esquemas de clasificación y apreciación que operan entre la ocupación propia
presente y la ocupación de los hijos futura.
En este artículo nos proponemosproblematizar dichas prácticas y percepciones de
mujeres recuperadoras desde la configuración de las sociabilidades actuales.
Para ello, en un primer momento se retoma la mirada sobre ciudades, capitalismo y
segregación y se describe brevemente el fenómeno de los recuperadores.En segundo
término, se presenta la trama conceptual entre sensibilidades, sociabilidades y
vivencialidades desde una sociología de los cuerpos/emociones. En tercer lugar, se

106
El presente artículo se inscribe en el marco del plan de trabajo aprobado por CONICET, ―Sensibilidades en
tensión: Trabajos, acciones colectivas y mujeres. Un análisis desde la estructuración social en San Francisco
y Villa María (2002-2016)‖.

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analizan prácticas de provisión, prácticas de alimentación y percepciones del trabajo en los


pliegues del presente propio y futuro de los hijos, en mujeres recuperadoras de residuos de
3 ciudades del interior de Argentina (en la provincia de Córdoba, nos referimos a Córdoba
capital y San Francisco, en tanto que de la provincia de Santa Fe a Rafaela).
Por último se plantea que prácticas y percepciones en contexto de sensibilidad de
los desechables y sociabilidades individualistas se tensionan paradojalmente entre la
soportabilidad (que neutraliza conflicto presente)y prácticas intersticiales que actualizan
vínculos que operan por fuera de la lógica de la mercancía, no instrumentales. La
indagación en clave de vivencialidades podría echar luz acerca de las tensiones entre una
subjetividad inscripta en el salir adelante y el sacrificio por otros que se metamorfosea
desde las sociabilidades capitalistas como impedimento para otras articulaciones colectivas
y potencialmente disruptivas.
Capitalismo, ciudades y cuerpos
En este apartado damos cuenta de las tramas entre capitalismo, ciudades y cuerpos
para inscribir de manera contextual las prácticas y percepciones de las mujeres
recuperadoras.
El espacio es parte de los modos de apropiación de los agentes y de sus propiedades
(BOURDIEU, 1999), por lo tanto, las ciudades crean y protagonizan ―las medidas, densi-
dades y volúmenes que las condiciones materiales de existencia le otorgan‖ (SCRIBANO,
2013, pág. 144). Por ello, si bien la segregación social podría ser entendida a priori como el
grado de separaciónentre grupos, expresa las desigualdades intrínsecas al
capitalismo,derivadas de la distribución diferencial del ingreso y de losvalores de la renta
del suelo. Esto en las ciudades latinoamericanasse impregna con los vínculos neocoloniales
que conforman la racialización, la segregación clasista y la relación colono-colonizado. Es
decir que la segregación socio-espacial es una de las dimensiones de los procesos de
estructuración social del capitalismo actual en las ciudades del Sur Global. En este marco
se identifican dos dimensiones relevantes. Por un lado, el lugar (como posición y
condición) ocupado por los cuerpos de los agentes socialesen las ciudadesalerta acerca de
las pertenencias a clases o fracciones identificar a qué clase pertenecen, siguiendo el
supuesto de que la apropiación diferencial del suelo ubica a las clases bajas en terrenos de
bajo valor, contaminados, inundables, sin posibilidad de contar con servicios públicos,
distantes o de difícil acceso (SUNKEL, 1984).Por otro, la movilidad de los agentes es un
―síntoma‖ de la segregación socio-espacial, la cual se evidencia en prácticas y procesos de
diferenciación, desigualdad y desencuentros entre clases sociales que logran visibilizarse
como manifestaciones expresivas de conflictos que emergen en medio de las tensiones
entre la estructuración social, la estructura social y las sensibilidades (CERVIO &
VERGARA, 2017).
En clave de una sociología de los cuerpos/emociones podemos identificar otra
dimensión que atraviesa las anteriores, dado que el cuerpo guarda, construyey mantiene en
sus tramas las lógicas de la estructuración capitalistaque configura en modos particulares
de sentir el mundo, la ciudad,el barrio. En otro lugar (VERGARA & FRAIRE, VANINA,
2017) hemos advertido una conexión estrecha entre prácticas, sensibilidades ycondiciones
objetivas. La seclusión espacial se hace y rehace a cadamomento en la cotidianidad, en los
sentires, en las sensaciones, enlas percepciones, en los horizontes de posibilidades de
dónde ir apasear y dónde sentirnos menos incómodos. Una suerte de correspondenciaentre
prácticas del sentir y movilidades en ciertos lugares de la ciudad, muros mentales y
encapsulamientos que la ciudad, a partir de suslímites, márgenes y bordes, es capaz de
construir en sus habitantes.

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Como vimos, las ciudades se fragmentan en zonas claramente identificables en


términos de clases sociales. Esto implica que en este espacio social, los agentes se ubican y
posicionan junto con sus propiedades - cosas apropiadas - en función de ciertos lugares
relativos y distancias, lo cual se expresa casi regularmente en el territorio: por el lugar
donde está - clase social -, por la posición relativa - temporal o permanente, del rico
respecto al más rico o respecto a un pobre- y por la extensión que ocupa - el agente y sus
propiedades, como la superficie de las viviendas, el tamaño de sus vehículos-. De allí que
la correspondencia entre cuerpo y mundo en el espacio social sea completa y mutua, pues,
―[l]o que está comprendido en el mundo es un cuerpo para el cual hay un mundo‖
(BOURDIEU, 1999, pág. 179).En el siguiente apartado presentamos la trama conceptual
que articula a los cuerpos/emociones.
Cuerpos y sociabilidades
Desde una sociología de los cuerpos y las emociones los procesos de
fragmentación, sociosegregación o seclusión se combinan con determinadas formas de
percibir y sentir laciudad, con experiencias particulares de lo urbano, sean los lugaresde
trabajo, de esparcimiento o de residencia. Dichas experienciasse configuran con y desde el
cuerpo, que es el principio y fin de los intercambios y encuentros con otros, es lo que
permite a los agentes existir e interactuar, aún en las situaciones actuales de mediación
tecnológica y virtual. No hay sujeto, acción ni relación social posible sin cuerpo.
Superando la escisión cartesiana entre cuerpo-alma y emoción-razón, la Sociología mostró
el modo en que la subjetividad se constituye en y por el cuerpo, en que las condiciones
materiales de existencia son estructurantes de la corporeidad, la forma en que el cuerpo en
su dimensión más socialmente biológica adquiere el porte, los gestos y las expresiones
sociales.
Por ello, la corporeidad abarca los procesos orgánicos, sociales y subjetivos que son
las principales aristas que conforman las tramas corporalesen tanto disposiciones de
acción, reservorio de saberes y prácticas ‗siempre a la mano‘, disposiciones configuradas
en la interpenetración de dimensiones socioculturales, subjetivas/identitarias y orgánicas, a
lo largo deuna biografía y del lugar ocupado por el agente (VERGARA, 2012). El cuerpo
visto en el tiempo, permite la configuración de una biografía como condensación y síntesis
de las vivencias y experiencias que articulan a su vez, lo particular e individual de cada
agente con los procesos sociohistóricos en los que ha vivido. El cuerpo en el espacio,
supone lugares en tanto posiciones, condiciones y disposiciones de acción, desde donde
también se constituye la forma de conocer y sentir el mundo.Desde las categorías de
espacio y tiempo, afectado por la historia biográfica y social junto con las condiciones
estructurales de una sociedad en particular todo agente se comporta desde y a través de su
materialidad corpórea.
Lo anterior destaca el interés en la materialidad de las prácticas, en las vivencias
sociales-subjetivas que configuran determinadas percepciones, emociones, y
sensibilidades. No hay lenguaje sin un sujeto conformado en su trama ―materialmente‖
bio-social que viva (en) el mundo, que lo conozca, lo sienta y experiencie.
Ahora bien, en términos geo-políticos, los cuerpos en el capitalismo constituyen el
lugar privilegiado donde se asienta la conflictividad y el orden. La realización efectiva de
la regulación involucra mecanismos y dispositivos que contribuyen a la soportabilidad
social (SCRIBANO, 2007). Lo antes expuesto permite delinear una mirada sociológica
crítica del capitalismo donde los sujetos se vuelven mercancías, justamente por su
condición corporal. Las relaciones entre cuerpos y capital se basan principalmente en la
capacidad de los primeros de aportar energías, pero también en las formas en que por el
segundo, se distribuyen y garantizan las condiciones de apropiación de los alimentos que,

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por ejemplo, permiten sostener un nivel de correspondencia entre las energías biológicas y
las energías o capacidades sociales de acción.
Las posibles tensiones entre lo social, subjetivo y orgánico se articulan con las
sociabilidades, las vivencialidades y las sensibilidades. Estas últimas se definen a partirde
la relación entre percepciones, emociones y sensaciones que seconstruyen socialmente
desde y para las políticas de los sentidos, con las tramas y prácticas del sentir, del querer.
Las vivencialidades son vectores de la experiencia de un agente en particular en el
marco de ciertas sociabilidades. Estas por su parte, dan cuenta de los modos de interacción
que los agentes viven y con-viven en inscripciones institucionales tales como las formas de
familias, de enseñanza-aprendizaje, las formas de justicia o las reglas de aceptación,
(SCRIBANO, 2013). En un sentido simmeliano, las sociabilidades resultan del encuentro
de culturas subjetivas, las cuales a través (y a partir) de intercambios creativos conforman
un ‗nosotros‘ que objetiva y da significados a una sociabilidad particular, situada, la
cultura objetiva (KOURY, 2016).
Las tres categorías traman un plexo heterogéneo y diverso y, atravesando las tramas
corporales, pueden generar tensiones. Una forma que pueden adquirir son los
desencuentros entre lo que Simmel denominó cultura subjetiva y objetiva. Otra forma es a
partir de los mecanismos de soportabilidad social que pueden ser sostenidos por
determinadas sociabilidades y políticas de los cuerpos/emociones.
Prácticas y percepciones de madres proveedoras
Ser proveedora, en el caso de las mujeres recuperadoras no es solo desarrollar un
trabajo productivo en el mercado de trabajo, sino que también abarca la obtención en las
calles o en los lugares de disposición final (basurales, rellenos sanitarios) objetos y
alimentos para el uso o consumo dentro del hogar. En el continuo que enlaza hogares y
calles, la obtención de alimentos y objetos de uso les permite resolver las necesidades del
hogar y compensar los exiguos precios de los materiales reciclables con lo que podríamos
llamar ―ganancias extras‖. En este sentido, las prácticas y percepciones se articulan en una
autogratificación que compensa el trabajo y pueden contribuir a la conformación de una
sensibilidad de los desechables (VERGARA, 2014), es decir, un complejo de emociones y
percepciones que reflejan una particular manera de vivir y sentir el mundo estando natural
y desapercibidamente a disposición de los objetos, viviendo de lo que otros tiran.
Ahora bien, la noción de trabajo puede implicar lo realizado para la satisfacción de
las necesidades; trabajo que puede ser reducido por el desarrollo de las fuerzas productivas
o tecnología. Esta noción excluye la satisfacción de otro tipo de necesidades tales como
libertad, felicidad, cultura. Si en lugar de pensar en un obrero industrial asalariado blanco,
se considera a una mujer, se asume que su trabajo tiene dos facetas: es una carga pero a la
vez fuente de felicidad, autorrealización. Los hijos pueden darle problemas pero su trabajo
nunca es alienado o muerto, aun cuando fuera abandonada por ellos, ese dolor es más
humano que la fría indiferencia que un obrero tiene frente a sus productos o mercancías,
tanto las que produce como las que consume (MIES, 1994). Desde esta consideración
teórica del trabajo como fuente potencial de felicidad nos preguntamos si es posible
identificar en las prácticas de las mujeres recuperadoras -junto con la soportabilidad social,
fantasmas y fantasías sociales-, algún tipo de práctica intersticial que se desconecta de la
lógica mercantil.
En otro lugar (VERGARA, 2015) hemos analizado percepciones del trabajo
vinculadas a la provisión del hogar que poseen las mujeres recuperadoras, tensionando de
algún modo el modelo clásico que asignaba dicha tarea al varón. En el siguiente apartado
retomamos prácticas de provisión, de alimentación y percepciones del trabajo en los
pliegues del presente propio y futuro de los hijos.

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Los objetos que recuperan su valor de uso


Aunque resulte contradictorio a la dicotomía producción/reproducción, las mujeres
recuperadoras perciben su responsabilidad sobre el trabajo reproductivo –en sus tres
dimensiones- recorriendo las calles en busca de objetospara poder resolver diferentes
demandas del hogar. Los objetos-mercancías según los usos y trayectorias pueden ser: a)
los materiales destinados a la venta en los depósitos; b) lo que se da y reparte a familiares y
vecinos; c) los materiales que se desvían de la venta para ser transformados vía técnicas de
reciclaje (como el tejido artesanal de PET), en otros objetos para luego ser
comercializados; d) la basura cuando definitivamente se desecha, y, e) los objetos para
usos domésticos y consumo. Tanto el desvío de objetos como su ―captura premeditada‖ (es
decir, cuando de antemano se sabe que no son vendibles para el reciclaje) se conecta con
prácticas de aprovisionamiento del hogarque abarcan desde ropa, comida, útiles hasta
utensilios de cocina:
―M.: sí, yo sí, eso lo he hecho varias veces [hurgar las bolsas], saco
platos, vasos ..ya me traje como dos o tres floreros / E: ¿ah sí? / M: sí,
cosas que venden ahí por el centro ya, he sacado platos, tazas, vasos…
algunos me llaman, alguna gente me dan así, cubiertos todo eso (M,
2008, San Francisco).
Las mercancías por desvío son aquellas que están inicialmente protegidas del
intercambio mercantil pero luego re-insertadas, mientras que las ex –mercancías, son
retiradas, temporal o permanentemente del mercado. En este caso, vemos primero objetos
desechados, que luego se convierten en mercancías por desvío, aunque no re-inscriptas
estrictamente en un intercambio económico, sino que recuperan su valor de uso.
Los esquemas de clasificación, apreciación y anticipación de los objetos-
mercancías buscados o recibidos en las calles entablan estrechas relaciones con las
responsabilidades del trabajo reproductivo vueltas prácticas cotidianas de las mujeres
recuperadoras. Tal es el caso de la provisión de comida:
―.. al ratito que cirujié ahí un montón de ropa, ¿no sé por qué tiran tanta
ropa así la gente? poleras, camperas, pantalones, vestidos pa chicos (…)
esa es la diferencia, que usted trabaja en un lugar no cierto, usted tiene
que ir a comprarse la ropa, tiene que ir a comprarse el calzado .. en
cambio nosotros tenemos todo ahí .. tenemos todo, lo único que tenemos
que comprar, el azúcar, ni yerba porque la yerba también nos dan‖ (I.,
2006, San Francisco).
―T.: porque ellos me daban el azúcar, la yerba, fideos que se rompían, así
..todo bien preparado y me daban. Yo a la comida nunca me faltó con el
carro‖ (T., 2008, Córdoba).
Los alimentos para el consumo familiar -incluido el caballo, en el caso de familias
que disponen de un carro con tracción a sangre-, conforman circuitos de distribución de
fuentes de energías, fuentes que resultan del azar, de lo que se encontró en el día, tanto en
las calles como en los sitios de disposición final. Estas prácticas contribuyen a la
conformación de una sensibilidad de los desechables, en tanto naturalización desde los
sentidos visuales, táctiles, olfativos y gustativos de vivir de lo que otros-tiran.
Prácticas del (no)comer
En el reverso de las prácticas de provisión que incluyen alimentos advertimos
prácticas del comer que aparecen cuando hay escasez. El hambre, en sus tipos e
intensidades, además de la inanición marca los cuerpos muchas veces de manera
desapercibida, es decir, con efectos que serán visibles a futuro, condicionando funciones

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corporales. Esto es particularmente llamativo en la carencia de nutrientes pese a que se


haya ingerido alimentos (por ejemplo, hidratos de carbono). Cuando el hambre opera como
política de los cuerpos puede ser inscripta en la lógica del capitalismo neocolonial, cuya
depredación de bienes comunes impacta en las posibilidades presentes y futuras de
apropiación de nutrientes que permiten funciones cognitivas, emotivas, motrices, entre
otras básicas (SCRIBANO, HUERGO, JULIANA, & EYNARD, Martín, 2010). El hambre
constituye una estrategia de disciplinamiento o domesticación más efectiva que la coerción
legal, una(o)presión que actúa silenciosa y pacíficamente moviendo a esfuerzos y
sacrificios intensos (Morandé, 1984)o bien, que conduce al adormecimiento debido a las
faltas de energía paradisponer del propio cuerpo. Así pues, queda de manifiesto la relación
entre comida y vida, dado que ―[e]l riesgo de la no-reproducción biológica comienza en el
riesgo de la inanición.La línea que divide la vida y la muerte está pintada con los colores
de la alimentación‖ (SCRIBANO, 2005).
Las condiciones materiales/estructurales de existencia de las familias de
recuperadores de residuos transitan habitualmente por los senderos de la comida escasa y
la certeza de que en las calles o en el basural algo se podrá encontrar. Uno de los lugares
más frágiles en este contexto es la desnutrición infantil como una de las marcas sintomales
de las fallas constitutivasde un sistema que expropia recursos generando con esto, una
desigualdad estructural yestructurante. Es además un vértice en el que confluyen, la
enfermedad y la alimentación - o, mejor dicho, su ausencia parcial o total-. Es un síntoma
de la presencia de laorganicidad y de sus relaciones con la presentación social de los
cuerpos y la subjetividad. Por ello, las energías sociales dependen de las energías
corporales, con lo cual la deficiencia nutricional, marca un horizonte de relacioneshumanas
débiles, que afectan el desplazamiento social, las trayectorias de clase y laregionalización
de la vida (SCRIBANO, 2005).
Las carencias y necesidades suelen traspasar momentos coyunturales -tal
comopuede ser un periodo de crisis- y volverse ‗crónicas‘, cotidianas, naturalizadas,
hastaconvertirse en ‗ausencias sistemáticas‘ que torsionan las condiciones de reproducción
de lapoblación. En el revés de esta situación, la comida se convierte en el ‗techo‘ de los
sueñosdiarios:
J: es lindo porque no te falta nunca de comer, porque siempre te hacés
negocios de un restaurante o de una panadería y vos sabés que vos
siempre vas a esos lugares ysiempre vas a tener la comida del día (J.,
2008, Córdoba).
‗Hacerse negocios‘ significa unaprecaria capacidad de apropiación, de apenas, un
acuerdo que garantiza la provisión decomida, una comida transitoria que alcanza para el
día, pero que ya con eso basta paraque la actividad sea valorada estéticamente como
‗linda‘. Feo es el hambre; lindo es podercomer. Lo estético se conecta con las presencias y
ausencias que delatan los polos del‗siempre‘ y el ‗nunca‘. Los negocios garantizan comida
para que nunca falte.El ‗comer‘ como posibilidad que se trata de garantizar al menos para
los hijos - y también para los caballos - da cuenta del inestable equilibrio entre lo que se
ingiere y gasta.
La domesticación de los cuerpos sociales a través de sus necesidades orgánicas,
comoel hambre, implica una reconfiguración y un desdibujamiento de los requerimientos
nutricionales de acuerdo con la edad para garantizar el crecimiento, como así tambiénotros
gustos, otros hábitos alimenticios:
R: lo que comen los otros bebés que son chiquitos, viste que tienen la
posibilidad detener su papillita de esto, el juguito, la manzanita, no, ellos
no, ellos no, ellos comenigual que nosotros, lo que podemos, lo que

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agarramos de la calle, lo que nos da la gente (…) ellos se van, se van


criando así (R.,2008, Córdoba).
Los ‗otros bebés‘ son los bebés de otras clases sociales que tienen la posibilidad de
acceder, como a cualquier otra mercancía, a los alimentos adecuados para las etapas
delcrecimiento. En el fragmento, se equipara como en una cadena de equivalencias,
algoque resulta en la impotencia: lo que pueden es lo que agarran y esto es lo que ‗les dan‘,
configurando así, las condiciones objetivas de reproducción mínima de loscuerpos de sus
hijos. Las comidas también configuran las relaciones entre familiares o vecinos que se dan
en los hogares:
―M: o guisa, así, no, pongo un poco yo, un poco mi hermana, ponemos
así para los gastosde la casa / M.A.: y acá lo único que tenemos que
comprar nosotros, la carne y la verdura nomá,porque fideo, tomate, todo
eso / M: eso viene en los bolsones, la sal, el puré de tomate, viene en los
bolsones, la harina,fideo, todo, normalmente tengo que comprar el pan o
la carne nomás‖ (M. y M.A., 2008, San Francisco).
‗Poco‘ es lo que abunda en estos hogares; poco es lo que se reúne de los distintos
aportes cuando las familias son numerosas. La apelación al superlativo ‗bolsón‘ se
contrapone conlas experiencias cotidianas de estas mujeres de convivir con la escasez,
pues esto que parece grande, amplio, extenso, muestra sus límites en las ausencias: hay que
comprar la carne, el pan, la verdura, los alimentos perecederos, aquellos que poseen alto
valornutricional y también un costo elevado.La comida llega a los hogares de las
recuperadoras desde diversas fuentes. Una de ellas, sonlos bolsones alimentarios otorgados
por entidades estatales u otras instituciones, también vía el solidarismo en las calles -tanto
de los comercios como de particulares-, o bien, de loque se encuentra tirado en los cestos
de residuos. En este marco hemos identificado otro tipo de prácticas que se entablan con
los hijos, tal como lo relata una mujer recuperadora:
C.: a veces es porque no haces los tiempo, y es duro eso de encontrarte
con … o tenes un plato de comida eso te pasa como persona, porque por
ahí vos tenes un plato de comida y decis se los dejo para mis hijos...
nosotros por ahí somos mujeres que más de una vez tenemos muchas
horas de trabajo y vamos sin comer... y no es solamente yo, todas mis
compañeras … que dejan el plato de comida para sus hijos y tenes que ir
a trabajar toda la tarde sin comer...(C, 2013, Rafaela).
Ceder la comida para los hijos se inscribe en una trama de sociabilidades,
vivencialidades y sensibilidades particulares. Forma parte de las inscripciones corporales
de la maternidad (no sólo biológica) como disposición a garantizar la vida otra persona, de
las sensaciones vivenciadas de hambre en la propia biografía y de sentidos y energías que
se reacomodan entre emociones y carencias. Retomaremos estas prácticas en el cruce con
las percepciones que abordamos en el siguiente apartado.
Percepciones del trabajo presente y futuro
En tanto modos naturalizados de organizar las impresiones, las percepciones
contienenuna dimensión social, una constitución anclada en los entramados de
intersubjetividadesque median las interacciones. Esta organización parte de esquemas
acumulados desdeexperiencias previas que se ponen en acto, reproduciéndose no sin
modificaciones oalteraciones. La organización selectiva de las impresiones se da a partir
delentrecruzamiento, solapamiento y acoplamiento de esquemas de clasificación, de
apreciación y de anticipación. Estos últimos ponen en acto dicotomías de clasificación y
apreciación que resultan deexperiencias, prácticas, percepciones pasadas; son el elemento

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temporal que expresan laforma en que las percepciones se forman, consolidan o modifican
en el tiempo. Es larelación pasado-presente-futuro que atraviesa los modos en que
distinguimos y apreciamosel mundo, sus objetos, sus fenómenos, sus imprevistos, sus
desajustes. A su vez, losesquemas de distinción-valoración se convierten con el paso del
tiempo, en nuevos orenovados esquemas anticipatorios. Unos y otros se complementan,
articulan, y desplazanpudiendo al mismo tiempo reforzar, afianzar o contradecir otras
percepciones o, algúncomponente de las mismas. Repasemos algunos fragmentos de
entrevistas que dan cuenta de percepciones del trabajo que las mujeres realizan en presente
y las tensiones que emergen cuando clasifican esta ocupación en relación a sus hijos:
C.H.: yo el sacrificio lo estoy haciendo para ellos que después mañana o
pasado me van a decir `oh mamá tenías razón, me hinchó tanto ¿eh? para
que estudiara ..gracias a ella estoy .. o sea trabajando en este lugar o estoy
haciendo ..´ ¿eh? es todo para ellos no es para mí, (C.,2008, San
Francisco)
C: … yo quiero, no que ellos... el día de mañana que se casen, que tengan
su familia sean felices / E.: y donde te gustaría a vos que ellos trabajen?
... si ellos tuvieran posibilidad de trabajar en lo mismo que vos ... / C.: no,
no, nosé, no porque no se vayan a animar … pero uno viste que apunta a
que ellos tenga algo un poco mejor que vos en la vida, me entendes? que
al ser el trabajo, aparte que puedan entrar mejor remunerados (C, 2013,
Rafaela)
O. : y bueno... no me gustaría que mis hijos terminen allá pero yo estoy
bien con lo que hago, no se si será la costumbre o que... (…) E: y por qué
me decis vos esto de que no de que te gustarían que ellos hagan otra cosa,
digamos que puedan... que es lo que a vos te gustaría para ellos ? / O: y
algo mejor, porque que se yo, el plan están estudiando... yo siempre
quisieran que no terminen allá como yo, (…) por ahí les digo yo termine
allá [en el relleno] porque no sé, no me quedaba otra cosa… (O, 2013,
Rafaela)
E.: y con tus hijos ¿cómo es esta cuestión de la basura? a vos te
gustariaque … que alguno si tuviera posibilidad de hacer lo mismo que
vos opreferis que trabajen en otros lugares? cómo es eso ? / S.: no, no me
gustaría / E: no ? / S.: no porque es muy sacrificado el trabajo allá (…) no
porque es muy sacrificado el trabajo, yo lo hago a mí me gusta, pero a
ellos no (S, 2013, Rafaela)
Las tramas corporales configuran percepciones particulares de la propia biografía
que trama con las emociones un estado de resignación y acostumbramiento. Es un pasado y
un presente desde donde conviven de manera contradictoria el deseo de futuro para los
hijos y las formas de clasificar y apreciar la ocupación actual, en las calles, en el relleno
sanitario. Así, el trabajo presente se asienta en un conjunto de esquemas que por momentos
parecen opuestos. Es el orgullo por el trabajo y el desagrado por las condiciones, por el
esfuerzo, por la remuneración. Pero además esta contradicción se rearticula y complejiza
cuando entran en juego esquemas de clasificación y apreciación entre los buenos/malos
trabajos para los hijos (que tengan vacaciones pagas, que tengan buena remuneración, que
tengan cobertura médica). Parámetros de la sociedad salarial casi inexistentes para ellas, y
seguramente para sus hijos también.
Las tramas corporales entonces se ven atravesadas por las sociabilidades del trabajo
asalariado por un lado, de la maternidad indelegable por otro. Las sensibilidades de los
desechables actualizan emociones que conviven tensionalmente entre el orgullo y la
vergüenza, entre la alegría y la resignación. Las vivencialidades ponen de manifiesto en el

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desplazamiento temporal los deseos y expectativas, cuando no, las propias


autoculpabilizaciones y auto-responsabilizaciones.
En el apartado final, ponemos en relación estas categorías intentando formular
interrogantes a este plexo de percepciones y prácticas presentes en las mujeres
recuperadoras.
A modo de cierre
Las sociabilidades actuales transitan entre los pliegues de la desconfianza, el
autoencierro y denegación como rechazo social, en el marco de cromatizaciones según
clases sociales. En este contexto, hemos indicado cómo además en las mujeres
recuperadoras se hacen presentes dimensiones de sociabilidades que orientan formas de
interacción filial basadas en el cuidado. Esta contradicción entre tendencias hacia una
sociabilidad individualista versus una sociabilidad orientada a otros sujetos próximos
atraviesa las tramas corporales actualizando prácticas de modos diversos. En el primer caso
consolida la fragmentación de las acciones colectivas, neutralizando el conflicto que en los
casos analizados tienen que ver con el modo intensivo y extensivo de expropiación de
energías corporales. Esto deriva en la soportabilidad, en el acostumbramiento, en la
resignación, tal como vimos en el párrafo anterior, en las percepciones del trabajo propio
presente.
En el segundo caso, habilita a la formación de prácticas del querercomo el amor
filial, esto es donde se reconectan las relaciones de ego con alter que el capitalismo coagula
en la mercantilización. ―[E]l amor como práctica intersticial involucra la energía de saberse
con otro en el mundo en tanto trampolín para la acción‖ (Scribano, 2010, pág. 252),es decir
que contradice la resignación –porque las relaciones con otros son objeto de deseo,
desplaza la primacía de la necesidad, suspende el extrañamiento y la alienación.
En el plexo que tejen las sociabilidades y sensibilidades atravesando las tramas
corporales, nos interrogamos por prácticas y percepciones en contexto de sensibilidad de
los desechables y sociabilidades individualistas.El análisis de las prácticas de provisión y
del (no) comer, junto con las percepciones del trabajo presente/futuro propio y de los hijos
nos permite alertar acerca de la posible convivencia o solapamiento entre la
soportabilidad(que neutraliza conflicto presente)y las prácticas intersticiales que actualizan
vínculos que operan por fuera de la lógica de la mercancía. La indagación en clave de
vivencialidades podría echar luz acerca de las tensiones entre una subjetividad inscripta en
el salir adelante y el sacrificio por otros que se metamorfosea desde las sociabilidades
capitalistas como impedimento para otras articulaciones colectivas y potencialmente
disruptivas.
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MARMANILLO, Jesus. A cidade na perspectiva durkheimiana: Notas sobre a modernidade e


morfologia social. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v.1, n.2, p. 137-150,
julho de 2017. ISSN 2526-4702.
Artigo
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

A cidade na perspectiva durkhemiana: Notas sobre a modernidade e


morfologia social
The city in the Durkhemian perspective: Notes on modernity and social morphology

Jesus Marmanillo
Resumo: O presente artigo visa apresentar a perspectiva durkheimiana tanto no âmbito
temporal da modernidade e suas implicações sociais no ambiente urbano, quanto por meio do
método da morfologia social que pode ser pensado para diferentes contextos. Para tanto, partiu-
se dos clássicos ―As regras do método Sociológico‖ e ―Divisão social do trabalho social‖,
assim como de alguns estudos de Maurice Halbwachs, Paul Henry Chombart de Lauwe e
Marcel Mauss para demonstrar como a perspectiva durkheimiana pode ser utilizada e pensada
para os estudos de agrupamentos sociais nas cidades, e em outros espaços. Considerou-se
também um conjunto de autores como Giddens (2002, 1991), Aron (1999), Breton (2015),
Emirbayer (1996), Rodrigues (1984), Sell (2010), Collins (2009) por serem especializados nos
temas da modernidade e da Sociologia clássica. Entre outras coisas, verificou-se que tal
perspectiva teórica compreende a sociedade urbana e outros tipos de sociedade enquanto
organismos complexos nos quais a compreensão da morfologia e fisiologia não podem ser
apartados das características dos grupos e dos locais onde se instalam. Palavras-chave:
Durkheim, solidariedade orgânica, modernidade, morfologia social

Abstract: The present article aims to present the Durkheimian perspective both in the temporal
scope of modernity and its social implications in the urban environment, as well as through the
method of social morphology that can be thought for different contexts. In order to do so, we
start with the classics "The rules of the Sociological method" and "Social division of social
work", as well as some studies by Maurice Halbwachs, Paul Henry Chombart de Lauwe and
Marcel Mauss to demonstrate how the Durkheimian perspective can be used And designed for
studies of social groupings in cities, and in other spaces. It was also considered a set of authors
such as Giddens (2002, 1991), Aron (1999), Breton (2015), Emirbayer (1996), Rodrigues
(1984), Sell Modernity and classical sociology. Among other things, it has been found that
such a theoretical perspective comprises urban society and other types of society as complex
organisms in which the understanding of morphology and physiology can not be separated
from the characteristics of the groups and the places where they are installed. Keywords:
Durkheim, organic solidarity, modernity, social morphology

Para Collins (2009), Durkheim entendia que o conteúdo básico da Sociologia é a


História, pois somente tomando para a análise um longo período de tempo e espaço seria
possível coletar informações comparativas suficientes para compreender quais as
condições que determinam as estruturas que constituem a sociedade. Nessa linha, o
presente artigo visa apresentar a perspectiva durkheimiana, tanto no âmbito temporal da
modernidade e suas implicações sociais no ambiente urbano, quanto por meio do método
da morfologia social que pode ser pensado para diferentes contextos espaçotemporais. Para
tanto, partiu-se dos clássicos ―As regras do método Sociológico‖ e ―Divisão social do
trabalho social‖, assim como de alguns estudos de Maurice Halbwachs, Paul Henry
Chombart de Lauwe e Marcel Mauss para demonstrar como a perspectiva durkheimiana
pode ser utilizada e pensada para os estudos nas cidades. Além destes autores, considerou-

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se também um conjunto de estudiosos contemporâneos como Giddens (2002, 1991), Aron


(1999), Breton (2015),Emirbayer (1996), Rodrigues (1984), Sell (2010), Collins (2009) e
outros que ofereceram importantes contribuições e interpretações sobre a perspectiva de
Émile Durkheim e sobre a modernidade.
Para compreender tais obras em relação aos aspectos de tempo e espaço das
cidades, o artigo foi organizado em quatro tópicos, nos quais serão abordados: 1) o
contexto urbano e moderno de David Émile Durkheim; 2) a cidade enquanto resultado da
divisão social do trabalho; 3) a cidade no viés da morfologia social; e 4) a apresentação de
um estudo de morfologia social na sociedade esquimó.
Contexto urbano e moderno de Émile Durkheim
O sociólogo francês David Émile Durkheim nasceu em 15 de abril de 1858, na
cidade de Épinal que pertence ao departamento de Vosges, o qual fica localizado entre a
Alsácia e a Lorena – região próxima à fronteira com a Alemanha. De família judia, ele foi
rabino até o momento em que se mudou para Paris, local onde deu continuidade aos
estudos primários e graduou-se em Filosofia na École Normale Superiéure, em 1882.
Segundo Sell (2010), entre 1885 e 1886, ele fez uma viagem de estudos na cidade de
Berlim, na Alemanha. Em 1887, foi nomeado professor de Pedagogia e Ciências Sociais da
Faculdade de Bordeaux, no Sul da França. Em 1906, tornou-se titular da cadeira de
Ciências da Educação e Sociologia na Universidade de Sorbonne, em Paris – local onde
viveu até seus últimos dias, em 1917.
Pode-se dizer que essa transição entre os séculos XIX e XX possibilitou a esse
sociólogo a observação de inúmeros conflitos que, entre outras coisas, apontam diferentes
projetos de sociedade e sinalizam o cenário urbano parisiense experienciado por ele. Tal
transição pode ser pensada por meio da Imagem 1, que traz o registro de uma das regiões
mais antigas de Paris, localizada na Îlê de La Cité. Trata-se da primeira área de ocupação
que remonta aos tempos medievais, mas que, na fotografia, expõe uma série de anúncios
de trabalho e comércio, um carro de mão, uma carroça, roupas estendidas na janela de um
prédio residencial e um homem de terno e gravata, ou seja, um estilo de vida que passou a
caracterizar o século XX.

Uma rua da Île de la Cité, em 1900 (Paris). Fonte: Eugène Atget107

107
http://flashmag.tn/photos/mode/joaillerie/tendance-joaillerie-2017-ile-de-la-cite-paris-1900-eugene-atget-
mimbeau-tumblr-co/ acessado em 13 de janeiro de 2017.

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Entre várias coisas, o contexto nacional daquele período foi marcado pela Guerra
Franco-prussiana, entre 1870 e 1871, que, ao que tudo indica, motivou-se em torno dos
territórios da Alsácia e da Lorena, ricos em carvão e minério de ferro. Uma consequência
disso foi a Comuna de Paris, pois não concordando com os pactos firmados depois desse
conflito, a classe operária francesa tomou o poder e desenvolveu um governo proletário
com características socialistas, que durou de 18 de março a 28 maio de 1871 até ser
reprimida violentamente por Louis Adolphe Thiers.Sobre esse período na França, sabe-se
que,
[a]pesar dos traumas e efeitos sociais que assinalaram [...], o final do
século XIX e começo do século XX correspondem a uma certa sensação
de euforia, de progresso e de esperança no futuro. Se bem que os êxitos
econômicos não fossem de tal ordem que pudessem fazer esquecer a
sucessão de crises (1900-01, 1907, 1912-13) e os problemas colocados
pela concentração, registrava-se uma série de inovações tecnológicas que
provocavam repercussões imediatas no campo econômico. É a era do aço
e da eletricidade que se inaugura, junto com o início do aproveitamento
do petróleo como fonte de energia – ao lado da eletricidade que se
notabiliza por ser uma energia limpa, em contraste com a negritude do
carvão, cuja era declinava, e que ao lado da telegrafia, marcam o início
do que se convencionou chamar de segunda revolução industrial, qual
seja a do motor de combustão interna e do dínamo. (RODRIGUES,
2001p. 9).
Embora não se fale explicitamente das cidades, o contexto histórico e biográfico de
Durkheim aponta um conjunto de aspectos que fazem referência aos processos urbanos, a
começar pela ―concentração‖ populacional (Imagem 1) e migração para as capitais–
exemplificada pela própria trajetória do autor. Todas as ―inovações‖ nos campos da
comunicação e da tecnologia, assim como na exploração do carvão e do petróleo, podem
ser compreendidas como elementos fundamentais e necessários para a consolidação de
uma sociedade industrial e também urbana.
Têm-se, assim, por um lado, o contexto de emergência de novas classes, atreladas a
novas formas de trabalho, à situação de desemprego, ao pauperismo e à migração para as
cidades. Por outro lado, houve a resistência frente ao Modelo Taylorista (1912) de
exploração do trabalho, resultando na criação da Conféderátion Générale du Travail
(CGT) (ROGRIGUES, 2001). Nessas entrelinhas, entende-se que as cidades eram
associadas diretamente a esse modelo de desenvolvimento econômico, com todas as
implicações sociais e políticas que ele significava.
Pode-se ter uma ideia do urbano e da sociedade industrial vivida por Émile
Durkheim, por meio das obras de Émile Zola e Victor Hugo que trazem descrições do
contexto social das ruas parisienses, da indústria de carvão e do conjunto habitacional
operário DeuxCent-quarante, apresentando diálogos e conflitos entre percepções da antiga
ordem e do pauperismo que marcou o século XIX na França. A Paris moderna também
pode ser percebida na poesia de Baudelaire e no urbanismo do Barão de Haussmann e nas
fotografias de Charles Marville108, que cuidadosamente documentou o programa de
modernização desenvolvido por George Eugéne Haussmann (BERMAN. 1849;
BENJAMIN, 2009).

108
http://www.slate.com/blogs/behold/2014/02/26/photos_document_paris_modernization_in_the_exhibition
_charles_marville_photographer.html Acessado em 16 de fevereiro de 2017.

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Tinha-se um contexto de aberturas de largas ruas e avenidas que se conectavam as


antigas ruas estreitas e que traziam um delineamento medieval (imagem-1). Essa visão de
produção de espaços amplos estava diretamente ligada ao fluxo cada vez maior de pessoas
e sinalizava bem as mudanças econômicas e estéticas que marcavam a ―modernidade‖.
Embora essas mudanças urbanas possam ser visualizadas por meio de uma e de intelectuais
e especialistas, um ponto comum entre eles é a valorização do espaço da ―rua‖, locais onde
se concentravam lojas, pedestres e transeuntes.
Por meio da leitura Lefebvre (2001) é possível que tais mudanças paisagísticas
nasceram na esteira do processo de industrialização, da extração de carvão e de todas as
produções tecnológicas, classificadas natural e indiscutivelmente como inovações e marcas
da modernidade. Para ser mais preciso, pode-se retomar o pensamento de Giddens (2002,
p. 21) quando nota que a ―modernidade‖ pode ser entendida como aproximadamente
equivalente ao ―mundo industrializado‖, relacionado a um contexto de mercantilização da
força de trabalho e da construção de uma vida social ―moderna‖ nas cidades.
Embora Émile Durkheim não tenha a questão do urbano e das cidades como algo
explícito em suas análises, é importante dizer que é possível perceber em sua Sociologia
certo entusiasmo em relação à economia urbana, especificamente em seus processos de
divisão do trabalho social. Se formos pensar o lugar das cidades modernas no livro ―Da
Divisão do Trabalho Social‖ (1999), sem sombras de dúvida, ela será mais bem visualizada
nas sociedades que se caracterizam por uma elevada especialização e divisão do trabalho.
Nessas sociedades, ocorrem mais divisões das funções e, consequentemente, mais
interdependência entre as partes, gerando o que ele chamou de ―solidariedade orgânica‖.
Trata-se assim de uma forma de solidariedade que era característica das sociedades, por
ele, denominadas complexas (européias), e que é explicada em comparação às sociedades
que desenvolvem formas de solidariedade mecânica, baseadas na similitude das funções,
ou seja, nas sociedades percebidas como primitivas.
Sobre isso, Collins (2009) comenta que esse autor clássico demonstrava interesse
pela Antropologia por acreditar que essa ciência permitiria visualizar as diferentes
condições por meio das quais as sociedades tribais eram contrastadas com as sociedades
modernas. Nota, ainda, que mesmo considerando a História, na análise de longos períodos
de tempo e espaço, Durkheim ―fez relativamente poucas comparações de sociedades
históricas reais; em virtude de sua crença em uma evolução linear‖ (COLLINS, 2009, p.
160)
Para Emirbayer (1996), os críticos de Durkheim observam que esse autor retratou a
transição para o mundo moderno por meio de uma teoria evolucionista pautada no
deslocamento entre os dois tipos de solidariedade em suas respectivas sociedades (simples-
complexa). Para compreendermos essa associação entre cidade, solidariedade orgânica e
divisão do trabalho, é importante considerar que, para Durkheim (1999), a concentração e a
densidade populacional são variáveis fundamentais em todo o processo, pois funcionam na
razão de que, quanto maiores forem essas variáveis, maior será a divisão do trabalho e,
consequentemente, mais especializações são formadas. Assim, não por acaso, considera-se
que as ―variações na densidade social são o principal elemento determinante de todos os
aspectos da teoria de Durkheim‖. (COLLINS, 2009, p. 162)
Observando o livro ―Divisão do trabalho social‖, tem-se a impressão de que esse
autor buscou analisar sua época em relação a um contexto mais agrário, característico de
uma antiga ordem, combatida veementemente durante as revoluções burguesas
(FLOREZANDO, 1982 SOBOL, 1976). A cidade industrial pode ser pensada, assim, como
um devir histórico e como resultado de um desenvolvimento determinado pela divisão do
trabalho social que acaba trazendo consigo uma série de outras classificações.

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Assim, a modernidade de Durkheim é pensada nessa transição entre a cidade


moderna super concentrada e a vida rural expressa nas grandes extensões de terra e baixa
concentração populacional. A cidade industrial e moderna é, para ele, aquela das
sociedades mais volumosas, compreendidas como mais avançadas, e aquelas onde ocorria
a maior divisão do trabalho. O entusiasmo com as cidades e com essa transição é bastante
claro no seguinte trecho:
Em nossas sociedades cristãs, a cidade se mostra desde a origem, pois as
que o Império Romano deixara não desapareceram com ele. Desde então,
elas só cresceram e se multiplicaram. A tendência dos campos afluírem
para as cidades, tão geral no mundo civilizado, nada mais é que uma
continuação desse movimento; ora, ela não data de hoje: preocupa os
estadistas desde o século XVII (DURKHEIM, 1999,p.254)
A observação histórica do autor reforça uma ideia de transição dos vastos campos
com poucos trabalhadores para uma tendência progressiva das cidades e suas
concentrações de operários, migrantes e estudantes, ou seja, de diversos tipos de pessoas.
Essa explicação de Durkheim, oriunda de um esquema teórico-metodológico amparado no
conceito de divisão do trabalho social, é a própria descrição daquele contexto, que surge
como inevitável. Traz, assim, a cidade como caminho irreversível dentro de uma
interpretação binária pautada nos antagonismos: cidade - campo; e moderno-antigo.
As cidades na perspectiva da divisão do trabalho social
Nessa narrativa sobre a modernidade, a densidade populacional foi o elemento
chave para Émile Durkheim. Isso porque ele acredita que a divisão do trabalho progride
quando um maior número de indivíduos estiver em contato, pois gera um contexto que lhes
possibilita agirem e reagirem uns em relação aos outros. E é justamente nessa linha de
pensamento que defende, que
[...] as cidades sempre resultam da necessidade que impele os indivíduos
a manterem constantemente o contato mais íntimo possível uns com os
outros; elas são como pontos em que uma massa social se contrai com
mais força que em outras partes (DURKHEIM, 1999,p. 254)
Trata-se de uma necessidade que pode ser suprimida pela interdependência, que é
marca da solidariedade orgânica. Ele explica que essa densidade e seus progressos não
resultam diretamente das mudanças econômicas, mas que ambos os aspectos são
condicionados. Tal afirmação possibilita refletir se de fato a cidade moderna é moderna,
porque concentra pessoas, ou se precisa concentrar pessoas para se tornar moderna?
Embora não se possa responder de forma substancial a esse questionamento, temos a
certeza de que para os estudos durkheimianos a definição de cidade moderna é amparada
diretamente no aspecto quantitativo.
Por meio dos estudos de Aron (1999), verificou-se que as variáveis de volume,
densidade material e densidade moral são fundamentais para a compreensão da divisão do
trabalho social e seus efeitos. Por volume, ele compreende o número de indivíduos que
pertence a uma sociedade, ou seja, quanto mais indivíduos, mais volumosa a sociedade
será. O autor explica que o volume só pode gerar diferenciação de acordo com as
densidades materiais e morais: a primeira corresponde ao número de indivíduos em relação
a uma dada superfície; e a segunda, é ocasionada pelos meios de comunicação (ARON,
1999).
Para Durkheim (1999), com uma maior densidade (material e moral), isto é, com
uma maior concentração de indivíduos e maior rapidez da comunicação, ocorre a supressão
e a diminuição de vazios que separam os segmentos sociais, favorecendo a intensidade de

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relações sociais e intrassociais. Com o adensamento, ocorre também a heterogeneização da


sociedade, por meio da especialização das funções que não está apartada da especialização
dos espaços, pois a variedade de meios produz diferentes aptidões que garantem a
especialização em sentidos divergentes. Por conta disso, é possível compreender que a
―luta pela vida é mais ardente‖ (DURKHEIM, 1999, p.263) e, diferentemente de uma
perspectiva darwiniana de conflito, possibilita uma maior divisão do trabalho em
sociedades volumosas e densas, já que a diferenciação de trabalhos pode ser compreendida
como um elemento inibidor da concorrência. Sobre isso, Aron explica:
Quanto mais numerosos os indivíduos que procuram viver em conjunto,
mais intensa a luta pela vida. A diferenciação social é a solução pacífica
da luta pela vida. Em vez de alguns serem eliminados para que outros
sobrevivam, como ocorre no reino animal, a diferenciação social permite
a um número maior de indivíduos sobreviver, diferenciando-se. Cada um
deixa de estar em competição com todos, podendo assim ter um papel e
preencher uma função. (ARON, 1999, p. 296)
Nesse sentido, a cidade - suas indústrias e suas densidades - apesar de todas as
mazelas escritas por Émile Zola e Victor Hugo, é vista por Émile Durkheim como um
fenômeno social que também pode gerar coesão por meio das diferentes formas de trabalho
e funções. Sobre isso, é importante destacar que, para Giddens (1991, p.13), ―Durkheim
acreditava que a expansão ulterior do industrialismo estabelecia uma vida social
harmoniosa e gratificante, integrada através de uma combinação da divisão do trabalho e
do individualismo moral‖.
Dessa forma, se por um lado Émile Durkheim (1999) busca dar continuidade ao
trabalho de Comte de demonstrar que a divisão do trabalho social, mais do que algo
extremamente econômico, se prestava como condição essencial da vida social, afirmando
que ―[s]e nos especializamos, não é para produzir mais, e sim para podermos viver nas
novas condições de existência que nos são criadas‖(IDEM,p. 274); por outro, admite que a
maior produtividade é um resultado do fenômeno da especialização.Em um exercício mais
reflexivo, seria importante não esquecer que essas ―novas condições‖ são próprias da
lógica industrial e que existem em relação a outros modelos de economia e sociedade.
O discurso evolutivo sobre as cidades é percebido, de forma mais clara, no texto ―A
preponderância progressiva da solidariedade orgânica e suas consequências‖. Nele, Émile
Durkheim (1999) oferece uma narrativa detalhada sobre as cidades em diversos momentos
da História. Por meio do estudo de Fustel de Coulanges, ele discorre sobre as cidades
greco-romanas, enfatizando o caráter religioso destas e a solidariedade baseada na
homogeneidade da divisão do trabalho. Da Idade Média, destaca que as cidades
possibilitaram o fluxo de mercadorias, estrangeiros e mercadores, gerando um movimento
que fragilizava a segmentação social. Explica que burguês e citadino foram sinônimos
durante esse período e que, em alguns casos, como na Alemanha, as cidades formaram-se
em torno dos mercados que possuíam poder de atração para agrupar pessoas que
compunham uma primeira população urbana, constituída majoritariamente por artesãos e
mercadores. Essas cidades foram tuteladas, primeiramente, por senhores de terras e depois
se organizaram em comunas que possuíam uma organização política autônoma. Segundo o
autor,
[a] cidade torna-se, na medida do possível, o centro eclesiástico, político
e militar das aldeias vizinhas [...]. Ela aspira a desenvolver todas as
indústrias para abastecer o campo, do mesmo modo que procura
concentrar em seu território o comércio e os transportes. Ao mesmo
tempo, no interior da cidade, os habitantes são agrupados de acordo com

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sua profissão; cada corporação de ofício é como uma cidade que tem sua
vida própria. (DURKHEIM, 1999, p. 172)
O ponto chave da citação é a capacidade de concentração, de centralização e,
consequentemente, de aumento da densidade, tomando como referência uma ―aspiração‖
histórica de industrialização e de divisão do trabalho determinada espacialmente entre
cidade e campo. Além disso, ressalta o desenvolvimento da divisão no interior da própria
cidade, destacando a importância de considerarmos as composições sociais que constituem
o espaço urbano. Tal abordagem morfológica possibilita demonstrar que Durkheim (1999)
fornece um conjunto conceitual focado em diferentes níveis de análise, pois, se por um
lado, ele considera que as diferentes cidades acabam se especializando de acordo com suas
características específicas (cidade universitária, comercial etc.), mantendo relação entre si;
por outro lado,
[e]m certos pontos ou certas regiões, concentram-se as grandes indústrias:
construção de máquinas, fiações, manufaturas de tecidos, curtumes, altos
fornos, indústria açucareira, que trabalham para todo o país. Aí se
estabeleceram escolas especiais, aí a população operária se instala, aí a
construção das máquinas se concentra, enquanto as comunicações e a
organização do crédito se acomodam às circunstâncias particulares.
(DURKHEIM, 1999, p. 173).
Nesse sentido, tanto a caracterização mais geral das cidades, quanto a dos tipos de
população, serviços e atividades que se concentram em certos ―pontos ou regiões‖ são
classificações que devem ser tomadas não apenas como dados prontos resultantes de um
devir histórico, pois se trata de um método de classificação pautado na análise das
características sociais dos habitantes e no delineamento espacial dos agrupamentos por eles
formados.
Cidades na perspectiva da morfologia social
Para Collins (2009), um importante método explicativo proposto por Durkheim é o
da morfologia social, focado nas relações estruturais entre as pessoas. Para compreender a
noção de morfologia social durkheimiana é necessário remeter-se ao capítulo ―Regras
relativas à constituição dos tipos sociais‖, presente no livro ―As regras do método
sociológico‖. Nesse capítulo, o autor explica que as sociedades são constituídas por partes
que se juntam umas com as outras, cujo resultado varia de acordo com a natureza do
número de elementos que as compõem e da forma como se combinam. Considerando que
tais aspectos se manifestam diretamente nos fatos gerais da vida social, Émile Durkheim
explica que a tarefa da morfologia social é buscar, justamente, a construção de tipos sociais
a partir de tais critérios, tomando por base a construção de classificações orientadas pelas
características essenciais, cruciais e decisivas das amostras selecionadas.
Nesse sentido, é possível pensar não só que a composição de uma grande cidade
pode ser formada por um conjunto de bairros cujos aspectos espaciais fazem referência às
características essenciais de seus habitantes, mas também que cada bairro está inserido no
sistema urbano de acordo com uma lógica de divisão do trabalho social. A cidade, assim, é
uma imagem direta da sociedade e da maneira como ela se materializa nas paisagens
urbanas.
Essa abordagem da Sociologia francesa do início do século XX teve continuidade
por meio de alguns discípulos de Émile Durkheim que se dedicaram à análise das
morfologias das cidades. Segundo Sáez (2002), dois importantes nomes dessa continuidade
foram Maurice Halbwachs e Paul Henry Chomart de Lauwe. O primeiro realizou pesquisas
sobre preços de terrenos urbanos, distribuição dos problemas de extensão e ordenação

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urbana entre 1908 e 1920, e o segundo focalizou a evolução da aglomeração urbana de


Paris e a adaptação dos homens e seus habitats na cidade.
Sabe-se que, em 1939, Maurice Halbwachs apresentou, no XIV Congreso
Internacional de Sociología do Instituto de Investigaciones Sociales de Rumanía, a
comunicação ―A estrutura urbana nas grandes cidades‖. No material, ele expõe que é
possível observar que nas grandes cidades e cidades mais antigas, as divisões em bairros e
distritos acabam correspondendo a uma diversidade de funções dentro do ―corpo urbano‖.
Assim, o autor destaca os bairros de comerciantes, de ourives, de curtidores e de artesãos
de diversas especialidades; o distrito militar; de magistrados distritais; os bairros ricos;
favelas; etc. Locais justapostos que, com o passar do tempo, vão perdendo a
individualidade e se confundindo progressivamente uns com os outros, graças à ação das
pessoas que atravessam os limites dos bairros, mesclando-se em outros grupos
(HALBWACHS, 1939). Como exemplo desse processo, Halbwachs cita o caso de Paris:
Consideremos, por ejemplo, la evolución de París a este respecto. Hubo
un largo período anterior al siglo XVIII en que la cohesión de París
estaba basada sobre su estabilidad, sobre la inmovilización de sus
habitantes en un espacio restringido. En aquel tiempo, el conjunto de
barrios de la ciudad -apretados unos contra otros, poco numerosos y cada
uno de ellos bien caracterizado- constituía un conjunto mucho más
integrado, mostrando una unidad mucho mayor que cuando la ciudad se
amplia súbitamente y ha de renunciar a sus antiguos hábitos sin haber
dado aún con nuevos. (HALBWACHS, 1939, p.23)
Retomando o aspecto da densidade, a citação chama atenção para a relação entre a
variável espacial e a capacidade de coesão, ou seja, em situações de ausência de
mobilidade em espaços menores, há uma tendência para a coesão, já no sentido oposto, a
ampliação dos contatos possibilita a obtenção de novos hábitos. A relação entre essa
perspectiva da morfologia social com alguns autores da Escola de Chicago é tão forte que a
citação de Halbwachs pode ser facilmente visualizada nas palavras de Robert Park, quando
discorre sobre as lógicas que relacionam a planta da cidade com a organização local. Para
este autor:
A facilidade de meios de comunicação e transporte, que possibilita aos
indivíduos distribuir sua atenção e viver ao mesmo tempo em vários
mundos diferentes, tende a destruir a permanência e a intimidade da
vizinhança. Por outro lado, o isolamento das colônias raciais e de
imigrantes nos assim chamados guetos e nas áreas de segregação
populacional tendem a preservar e, onde exista preconceito racial, a
intensificar a intimidade e solidariedade dos grupos locais e de
vizinhança. (PARK, 1967, p. 37)
Nesse sentido, nota-se que, seja nas mudanças do século XVIII para o XIX em
Paris, seja nos guetos norte-americanos do século XX, as variáveis relacionadas à
densidade, ao tamanho territorial e à comunicação ainda orientam a forma de abordar o
fenômeno urbano. Isso para não falar que Park (1967) também parte da divisão do trabalho
para explicar efeitos morfológicos em termos de organização social e constituição de
vizinhanças. Em linha semelhante, Burgess (1948, p.362) explica que ―[a] divisão do
trabalho na cidade ilustra igualmente a desorganização, a reorganização e o aumento da
diferenciação‖, detalhando esse argumento nos casos da expansão urbana e formação de
zonas concêntricas onde viveriam os trabalhadores da indústria, as classes altas, os
moradores dos guetos etc.
Retornando para a comunicação de Halbwachs (1939), ele chama a atenção para a
possibilidade de identificar, na cidade moderna, trechos que caracterizam outras

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temporalidades históricas109, possibilitando assim construir uma verdadeira narrativa que


demonstra o desenvolvimento da complexidade urbana. Para ele, um assentamento urbano
é como um organismo cuja formação depende de fatores históricos e das necessidades da
sociedade que o constitui. Dessa maneira, deixa claro que não se trata, simplesmente, de
uma justaposição de bairros e funções, mas da identificação de camadas sociais. Explica
também que o coração e a substância desse organismo não são visíveis à primeira vista.
Outro sociólogo de influência durkheimiana que buscou analisar a relação entre
espaço urbano e características sociais foi Paul Henry Chombart de Lauwe, autor que se
dedicou à análise da evolução da aglomeração urbana parisiense, além de realizar estudos
das habitações e dos grupos sociais na cidade, buscando, assim, uma morfologia de acordo
com características sociais como profissão, prática religiosa, preferências políticas e outras
que possibilitassem caracterizar o habitante urbano de Paris (CHATELAIN, 1966; FREI,
2001).
Segundo Le Breton (2014), há um diálogo direto entre esse autor e os pesquisadores
da Escola de Chicago, de forma que ele é quase sempre relacionado a essa perspectiva
norte-americana. É possível que essa semelhança esteja ancorada numa matriz comum,
fundamentada na perspectiva durkheimiana de morfologia social. Por meio da análise do
artigo ―Organização social no meio urbano‖ (1967), nota-se que ele busca compreender as
mudanças nas cidades por meio da observação das estruturas, instituições (empresas,
famílias, sindicatos, associações etc.) e grupos sociais (étnicos, por idades,
socioprofissionais e outros). Uma abordagem que sinaliza, perfeitamente, a relação entre
morfologia social e fisiologia social provavelmente transmitida nos ensinamentos de seu
professor Marcel Mauss, já que, para ele,
[n]a realidade, numa sociedade, não há mais do que duas coisas: o grupo
que a forma, ordinariamente, sobre um solo determinado, de uma parte;
as representações e os movimentos deste grupo, de outra parte. Isso
significa que, de um lado, há só fenômenos materiais: números
determinados de indivíduos de tal idade, em tal instante, em tal lugar; e,
de outro lado, entre as idéias e as ações desses homens comuns nesses
homens [SIC], aquelas que são ao mesmo tempo, o efeito de sua vida
comum. E não há nada a mais. Ao primeiro fenômeno, o grupo das
coisas, corresponde a morfologia, estudo das estruturas materiais; ao
segundo fenômeno corresponde a fisiologia social, isto é, suas funções e
o funcionamento dessas funções. (MAUSS, 2001, p. 57)
A citação permite pensar a expansão urbana enquanto forma e funcionamento, ou
seja, características sociais e composições sociais em relação às possibilidades de
associações e ações dos grupos e do funcionamento das microssociedades analisadas. A
explicação parece caracterizar uma realidade social por meio de duas camadas: uma
interna, no âmbito da forma, e outra externa, que possibilita o estabelecimento de relações
funcionais para a existência dos grupos formados e em formação.
Em boa sintonia com os outros autores citados até então, Chombart de Lauwe
(1967) considera também as relações de comunicação, de isolamento e entre instituições
como elementos importantes para a evolução das estruturas da morfologia das cidades. Ele
observa que as principais abordagens sobre estudos urbanos podem ser orientadas pela
ecologia, que quase se confunde com morfologia, estudo da evolução das estruturas
sociais, dos comportamentos e das representações, imagens e modelos culturais.
Situando temporalmente os recortes de estudo, esse pesquisador deixa bastante
claro que tais orientações são destinadas à observação em países em via de
109
A Imagem 1, localizada na Île de la Cité dá um exemplo, já que representa um trecho com características
medievais que é integrado na moderna Paris.

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industrialização, onde as mudanças sociais ocorrem em grande velocidade, e ressalta que


há uma convergência entre os estudos urbanos da Sociologia francesa e os da Escola de
Chicago, como é possível notar nas próprias palavras dele:
Os grandes estudos de Sociologia Urbana do século XIX e do início do
século XX,ressaltam certos aspectos permanentes da evolução no quadro
das sociedades industriais.Quer se trate das observações de Spencer ou de
Durkheim sobre a importância do aumento de volume, densidade e
heterogeneidade, retomada por certos autores como Louis Wirth,ou dos
trabalhos de Weber sobre a formação de um novo tipo de homem e sobre
a independência mais e mais acentuada com respeito às condições
geográficas, ou ainda dos estudos de Sombart sobre a evolução das
cidades na Idade Média, constatamos progressivamente certa
convergência de concepções. (CHOMBART DE LAUWE, 1967, p.123)
De fato, a convergência apontada por Chombart de Lauwe é a explicação possível
para a continuidade do pensamento de Durkheim sobre as concepções contemporâneas da
Sociologia urbana. Por esse caminho, pode-se compreender, porque a moderna civilização
econômica adaptada ao modelo das grandes cidades (HALBWACHS, 1939) ―deve sua
existência à praça do mercado em volta da qual foi erigida‖ (PARK, 1967, p. 37). Isso
significa que ambas as concepções de cidade foram pensadas, antes de tudo, como
resultantes de todos os aspectos que compõem as sociedades onde predomina a
solidariedade orgânica.
Segundo o explanado, a ―evolução‖ da cidade moderna está diretamente atrelada à
capacidade de concentração e densidade no sentido de formação de um território urbano.
Emergindo atrelada à solidariedade orgânica, ela se expressa por meio de morfologias que
apontam processos de mudança e adaptação, e a própria ―evolução‖ em relação ao urbano
moderno e ao feudal tradicional. Dessa forma, a justificativa da cidade moderna não surge
pronta e como um dado natural da sociedade, mas no diálogo com um mundo rural
classificado e hierarquizado no âmbito da divisão do trabalho social. Para esclarecer mais
essa oposição binária, convém destacar os estudos de Giddens (2002), já que ele se refere
ao termo ―modernidade‖ para pensar instituições e comportamentos que foram
estabelecidos na Europa após o feudalismo, cujos impactos tomaram proporções mundiais
durante o século XX.
Pelo que foi observado nessa breve análise de textos de Émile Durkheim, Maurice
Halbwachs e Paul Henry Chombart de Lauwe, existem diferentes possibilidades analíticas
que transitam pela análise geral da sociedade moderna, na explicação do crescimento da
cidade de Paris e das habitações dos operários do referido local. Tal constatação vai ao
encontro da interpretação de Collins (2009) quando percebe que a tradição durkheimiana
possui uma posição central, pois ―[s]e aplica tanto às macroestruturas de larga escala da
sociedade, quanto às microestruturas de pequena escala ou rituais‖(COLLINS, 2009, p.
167).
A morfologia social na sociedade dos Esquimós110
Quando se coloca a necessidade de pensar a contextualização do modelo
durkheimiano para contextos diferenciados, vem à mente a conclusão de que o trabalho de
construção e reflexão da morfologia urbana não pode ser desenvolvido sem que antes se

110
Embora não se trate de uma sociedade que possa se enquadrada como moderna e urbana, nos interessa
ressalta o método da morfologia social para os estudos de agrupamentos. Nos estudos de Antropologia
urbana, autores como Foote Whyte, José Guilherme Cantor Magnani e outros tem ressaltado a importância de
contextualizar os estudos clássicos de antropologia nas pesquisas urbanas. Exercício que possibilita refletir
sobre as questões da alteridade (mínima), dos métodos e abordagens sobre grupos urbanos.

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147

priorize um afastamento das pré-noções do espírito (DURKHEIM, 2012) e da história


social das categorias do espírito humano (MAUSS, 2003). Um trabalho exemplar nessa
linha foi o estudo ―Ensaio sobre as variações sazonais das sociedades esquimós: estudo de
morfologia social‖ de Marcel Mauss. Esse autor deixa claro que busca compreender como
eles se estabelecem no solo, quais são os volumes e as densidades dessas populações, de
que maneira se distribuem e quais os conjuntos de coisas que servem de base para a vida
coletiva deles (MAUSS,2003). Para tanto, sistematiza o estudo em torno dos aspectos
constantes das populações analisadas (morfologia geral), das alterações geradas em relação
às estações do ano (morfologia sazonal) e das causas das variações e dos efeitos destas.
Mauss (2003) observa que, entre os esquimós, há um conjunto de habitações,
lugares de acampamento, de caça marítima e terrestre, pertencentes a um número de
indivíduos. Essa característica constante é classificada, por ele, como um ―assentamento‖,
compreendido como uma forma de unidade territorial, linguística, moral e religiosa que é a
base da morfologia esquimó.
Para explicar a dupla morfologia da sociedade analisada, ele demonstra como os
assentamentos apresentam diferentes características conforme a estação. De modo
geral,aponta as diferenças de habitações e seus conteúdos, em termos de diferentes
organizações sociais, de densidade e dispersão, de direitos patriarcais e política coletiva, de
posses individuais e regime comunitário nas duas estações, para explicar como existem
relações de conflito e coexistência das formas mais individuais e coletivas ao longo dessas
transições sazonais. Pode-se dizer que eletraz uma análise de morfologia social nos mais
diferentes níveis, já que, partindo das variáveis de densidade e dispersão, analisa: 1) a
distribuição das habitações e suas características de acordo com as regiões; e 2) a evolução
das famílias para microssociedades de acordo com as diferentes formas de habitação e as
estações do ano.
Por meio desse estudo, é possível compreender que qualquer alteração que seja
realizada nos regimes de condensação e dispersão dos esquimós pode trazer desequilíbrios
na organização social deles, na vida religiosa e jurídica e no regime dos bens. Nessa
perspectiva, faz sentido que o povo esquimó tenha, como afirmou Mauss (2003), um forte
apego pelas tradições e fortíssima relação com a natureza que os cerca, pois qualquer
alteração que possa influenciar a morfologia de inverno alteraria diretamente a situação
onde ocorrem as festas religiosas, a transmissão de conhecimentos para as gerações mais
novas e a valorização da ideia coletiva do grupo. Enfim, imaginar que esses aceitassem
recursos que lhes possibilitassem mais individualidade nos tempos de inverno, no contexto
esquimó, é o mesmo que pensar a eliminação de importantes elementos de coesão do grupo
e a degeneração do mesmo.
Deixando clara a importância do afastamento das pré-noções, observa-se que esse
estudo oferece uma importante agenda de pesquisa para quem deseja investigar outras
formas de agrupamentos humanos e problematizar outras possibilidades de ordenamento
urbano, colocando como primeiro passo a identificação das unidades morfológicas e a
compreensão delas em relação às necessidades e características do grupo e de suas relações
com a natureza. Por esse caminho, é possível inserir a problematização sobre as coerções e
tensões entre a natureza geral e coletiva da idéia de moderno e os processos de integração
dos diferentes grupos na cidade.
Se a indústria foi o grande símbolo da cidade moderna, não se pode afirmar que
esse pensamento possa ser aplicado a qualquer contexto social, sob pena de reforçar visões
pautadas no plano das idéias, e ofuscar a observação sobre as características sociais das
populações.

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148

Conclusão
Sendo filho de seu próprio tempo, Émile Durkheim não só interpretou uma série de
mudanças sociais utilizadas para caracterizar a modernidade europeia, mas também foi um
entusiasta e otimista desse processo e suas implicações nas novas formas de organização
social. Tendo vivido em contextos urbanos franceses e alemães, pode-se dizer que a
―matéria-prima‖ das observações dele partem da sua própria trajetória de vida que, entre
outras coisas, foi marcada por um processo de mudanças que parece ter sido interpretado
pelo autor por meio das duas formas de sociedades e solidariedades.
A cidade moderna, em Durkheim, é a expressão da solidariedade orgânica e é
resultante de um processo temporal linear, explicado por meio de variáveis relacionadas ao
volume e à densidade das populações, e das implicações dessas em termos de organização
e morfologia social em diferentes períodos. Observou-se que tais estudos foram
desenvolvidos pelos discípulos desse teórico clássico e aplicados a investigações de
morfologia social dos campos da História, Sociologia urbana e Antropologia,
demonstrando, assim, uma série de possibilidades de aplicações e diálogos dentro do
conjunto conceitual durkheimiano.
Embora a perspectiva dessa Sociologia moderna receba críticas por conta de um
viés linear de História ou do seu modelo binário de comparação, é importante destacar que
é possível obter outras possibilidades de abordagens de vertente microssociológica,
ancoradas nas especificidades dos grupos analisados, como foi o caso de Marcel Mauss e a
pesquisa da morfologia social na sociedade esquimó. Nota-se, assim, que seria um erro
considerar toda a perspectiva apenas como uma fonte de conhecimento histórico de um
determinado momento da Sociologia.
Assim, ainda que a contemporaneidade do método da morfologia social seja algo
facilmente visível nos estudos dos autores norte-americanos como Robert Park, Ernest
Burgess, Louis Wirth e outros, é importante destacar que o viés durkheimiano possibilita
perceber as cidades não apenas no que elas possuem em comum devido aos processos de
mudanças ocasionados nas cidades modernas, mas também no que possuem de específico e
associado a outras formas de relação com a natureza. Trata-se, assim, de um rico
referencial teórico que não pode ser deslocado das regras relativas à observação dos fatos
sociais e das diferentes possibilidades desenvolvidas pelos seguidores desse importante
estudioso clássico.
Pensando em termos epistêmicos, não se trata de contextualizar a experiência
histórica de Émile Durkheim para outros contextos, mas exercitar a capacidade de pensar
diferentes espaços e tempos de acordo com as condições históricas e sociais que lhes dão
sustentação e trabalhar criticamente o conjunto conceitual legado dessa tradição
sociológica. Enfim, escapando de quaisquer rótulos e críticas infundadas, o presente estudo
demonstrou que a cidade na perspectiva durkheimiana se funda, antes de tudo, na
complexidade da formação desse ―organismo‖ que, além de possuir uma morfologia e uma
fisiologia internas, também não pode ser analisado sem que se considerem as condições
externas (espaços e tempos) nas quais se desenvolve.
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151

ASSIS, Renan Lubanco. Os limites da integração urbana: a força física como um recurso legítimo de
manutenção da ordem em um bairro periférico da cidade de Campos dos Goytacazes. Sociabilidades
Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v.1, n.2, p. 151-163, julho de 2017. ISSN 2526-4702.
Artigo
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

Os limites da integração urbana: a força física como um recurso legítimo


de manutenção da ordem em um bairro periférico da cidade de Campos
dos Goytacazes – RJ111
The limits of urban integration: physical force as a legitimate resource for maintaining order in a
peripheral neighborhood of the city of Campos dos Goytacazes - RJ

Renan Lubanco Assis112

Resumo: Este artigo se propõe pensar nos efeitos dos limites da integração na rotina dos
moradores dos bairros de expansão urbana. Para tal empreendimento o trabalho contou com
um trabalho etnográfico em um bairro da cidade de Campos dos Goytacazes – RJ. Para refletir
sobre o tema proposto o artigo mobilizará dois importantes referenciais teóricos que tem em
comum uma longa trajetória de pesquisas em bairros periféricos de regiões metropolitanas. Os
referidos autores são Lúcio Kowarick e Luiz Antônio Machado da Silva. Ambos partem de um
mesmo referencial empírico para pensar nas condições de vidas que os moradores de áreas
periféricas da cidade estão submetidos, seja pela marginalidade produzida pelo sistema
produtivo incapaz de empregá-los, no caso do primeiro autor, seja pela marginalidade
produzida por uma integração débil para o segundo. Após a discussão teórica entraremos em
uma discussão empírica para pensarmos no modo como os moradores de um bairro de
expansão urbana da cidade de Campos dos Goytacazes legitimam o uso da força na resolução
ou evitação de conflitos. Palavras-chave: violência urbana, valentia, retaliação letal,
sociabilidade violenta

Abstract: This article intends to think about the effects of the limits of integration in the
routine of the residents of the neighborhoods of urban expansion. For this project the work had
an ethnographic work in a neighborhood of the city of Campos dos Goytacazes - RJ. To reflect
on the proposed theme the article will mobilize two important theoretical references that have
in common a long trajectory of research in peripheral neighborhoods of metropolitan regions.
These authors are Lúcio Kowarick and Luiz Antônio Machado da Silva. Both start from the
same empirical reference to think of the living conditions that the inhabitants of peripheral
areas of the city are subjected to, either by the marginality produced by the productive system
incapable of employing them, in the case of the first author, or by the marginality produced by
integration Weak for the second. After the theoretical discussion we will enter into an
empirical discussion to think about how the residents of a neighborhood of urban expansion of
the city of Campos dos Goytacazes legitimize the use of force in the resolution or avoidance of
conflicts. Keywords: urban violence, bravery, lethal retaliation, violent sociability

111
A primeira versão deste artigo fora apresentada Grupo de Trabalho: Segregação social, políticas públicas e
direitos humanos, coordenado por Pedro Bodê e Marcos Cezar Alvarez, no XVII Congresso Brasileiro de
Sociologia.
112
Doutor em Sociologia Política Pela Universidade Estadual do Norte-Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf).

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152

Era noite, por volta das dezenove horas, o ônibus que embarquei, Jockey sentido
Santa Rosa, estava repleto de passageiros. Muitas pessoas estavam de pé, inclusive eu. Ao
meu lado duas senhoras de meia idade, ambas de cor negra, vestindo saias de algodão,
blusas de Oxford e uma delas usava um lenço na cabeça. Ambas usavam sandálias sem
salto e possuíam cada uma, uma sacola plástica, mas não aparentavam ser de compras, e
sim artigos pessoais. Estavam como quem volta do trabalho.
Assim como as duas senhoras, havia muitas e muitos no coletivo, mas estas me
chamaram atenção não pela descrição que fiz no primeiro parágrafo, mas pela conversa
que estavam tendo. Eu estava ao lado atento, como quem estava de plantão aguardando um
―evento‖ para colocar em meu caderno de campo. Elas estavam conversado como todos os
outros passageiros. No coletivo os passageiros conversavam em tom alto e faziam
brincadeiras como se todos fossem íntimos, que era um fato, pois aquela situação, que era
apenas uma parte do meu trabalho etnográfico, para aqueles passageiros, integrava as suas
vidas cotidianas.
Os assuntos são diversos e sem nenhuma discrição, o que tornava o meu trabalho de
observação mais simples. Não era necessário um olhar tão atento, ou uma aproximação
muito grande para poder ouvir uma conversa. Estar próximo te garantia não somente um
bom áudio, mas ainda, a participação, pois estar próximo é estar quase que sujeitar-se a um
bate papo, mesmo que não possua nenhum conhecimento prévio das pessoas que compõe o
lugar. Eu entrava no coletivo em direção ao meu campo para a realização de entrevistas e
me via envolvido em conversas com pessoas que nunca havia tido contato. Confesso que
demorei duas idas a campo para tomar consciência de que meu trabalho já se iniciava no
coletivo.
Retomando as duas senhoras, estas estavam em uma conversa com um tom de
angústia. Ambas estavam ao meu lado. Uma delas se queixava do seu neto ter sido atacado
por um cachorro, e ao se dirigir ao ―dono‖ do cachorro para falar sobre o ocorrido, recebeu
a seguinte resposta: ―da próxima vez, vai engolir ele inteiro‖. A reclamante se sentiu
ofendida pelo tom de voz do ―dono‖ do cachorro, que não se mostrou consternado com a
situação.
Após a resposta do proprietário do cachorro, ela se sentiu ―injuriada‖ e resolveu
prestar uma queixa na delegacia de polícia. Relatou que ao fazê-la, o agente responsável
por coletar seu depoimento agiu com ar jocoso, o que a levou a sentir-se ainda mais
inconformada com a situação. Ela relatava o caso para a sua companheira com um tom de
voz inconformado. Afirmou haver saído humilhada, pois não pôde ―contar nem com a
polícia‖. Ela intercalava frases de conforto; ―deus está vendo‖ com de injúria; ―não
podemos contar nem com a polícia‖.
Com toda a situação já vivenciada por ela, que apenas era a relatora do caso no
momento em que eu estava escutando, havia ainda a sua família, que segundo ela, estava
―inconformada‖. Após toda a família se sentir mobilizada pela situação não resolvida, ela
relatou que ―Leonardo113‖, no caso, seu sobrinho, havia ido à casa dela para saber o que
estava acontecendo. Ela afirmou ter ficado ―preocupada com o que ele ia fazer‖ e preferiu
não contá-lo a situação. Neste caso, o recurso de resolução do conflito adotado por
Leonardo seria a ―violência letal‖, conteúdo de uma sociabilidade cuja força física
coordena a ação (Machado da Silva, 2008).
Esta apresentação foi uma mera ilustração do que será tratado neste trabalho, cuja
―violência letal‖ é acionada como um dispositivo de controle da violência. A frase inicial
deste parágrafo é uma aparente contradição, pois a violência como recurso para conter a
violência não faz muito sentido se o mundo que temos a mão se resume a ―violência‖ e

113
O nome adotado aqui não é o mesmo mencionado por ela, e sim, fictício.

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―não violência‖. A violência, como destacou Machado da Silva (2004; 2008), não é um
conceito, e sim, um objeto. Neste caso, assim como todo objeto, ela deve ser situada e
interpretada nos seus ―próprios termos‖.
O presente artigo será dividido em três momentos; no primeiro, estabelecerei um
breve diálogo com duas abordagens teóricas acerca da vida urbana a partir dos anos 1960,
sobretudo, no que diz respeito aos imigrantes, moradores de bairros de áreas de expansão
da cidade e dos territórios de ―favelas‖ e ―bairros de expansão urbana‖. Intentarei fazer
uma análise das diferentes demandas de temas de pesquisa em diferentes momentos da
cidade. Esta reflexão será fundamental para uma reflexão dos limites da capacidade de
integração114 dos novos moradores de uma cidade na vida urbana.
O segundo momento do texto irá contemplar a expansão urbana da cidade de
Campos dos Goytacazes e como esta expansão possibilitou aos migrantes uma ação
bandeirantista rumo às áreas outrora denominadas rurais ou mesmo suburbanas da cidade,
neste caso, bairros de expansão urbana. A experiência de afastamento da área central
possibilitou aos novos habitantes do lugar a coordenação de ações em um ambiente cuja
utilização da força era um recurso legítimo de evitação e/ou resolução de conflitos.
Por fim, intentarei fazer uma reflexão acerca dos contornos situacionais do controle
da ―violência‖ no bairro via ―violência letal‖, prática que afeta, sobretudo, atores que
recorrem ao uso da força como modo de resolver os seus conflitos. Atores que ―matam‖, e
ao mesmo tempo, ―morrem‖, uma vez tornarem-se passíveis de serem mortos sem que as
causas possam ser objeto de uma investigação, potencializando assim, a frequente
resolução de conflitos no interior do bairro, onde a violência letal é um recurso disponível a
mão.
Limites da integração urbana
Interessa-me aqui uma reflexão sobre como a violência se tornou passível de uma
série de reflexões situadas, cuja categorização da mesma é atrelada a outra categoria social.
Podemos começar exemplificar a noção de violência urbana que trago aqui. Este conceito
fora elaborado por diversas mãos que se propuseram estudar situações denominadas
violentas, sobretudo, na cidade. Dentre as principais referências, gostaria de limitar a meu
recorte teórico no Rio de Janeiro e em São Paulo, cujos principais referenciais mobilizados
por aqui, serão respectivamente, Machado da Silva e Lúcio Kowarick, pois ambos
possuem em comum uma atuação de longa data em pesquisas que contemplam ―camadas
populares urbanas‖.
Com relação a ausência dos demais autores que abordam a violência urbana no
Brasil, venho de antemão pedir desculpas ao leitor por não situá-los aqui. Esta falta se dá
não somente por um recorte regional, mas ainda, pelas limitações do autor em obter um
quadro mais geral de discussão. Quem sabe em um empreendimento futuro, com uma
equipe, possa conseguir abordar os principais referenciais sobre violência urbana no Brasil.
Intentarei refletir neste tópico acerca os quadros de referências mobilizados pelos
autores mencionados no primeiro parágrafo, porém não deixarei de adentrar em
referenciais que dizem respeito ao tema proposto neste trabalho, sobretudo, que abordem
questões que dizem respeito ao meu campo específico, no caso, a debilidade da integração
dos migrantes do interior na vida urbana de Campos dos Goytacazes.
Venho de antemão abrir um parênteses para esclarecer que a noção de integração
empregada aqui não diz respeito a uma falta de acesso total a vida urbana, pois seria
ignorância da parte do autor pressupor que os moradores de favelas e bairros de expansão

114
Quando me refiro a este conceito parto de uma gama de debates iniciados pela sociologia urbana da Escola
de Chicago, que se debruçou sobre estudos que tocavam a integração de imigrantes na sociedade norte-
americana.

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não são integrados à vida urbana. Há uma integração, porém, com diferentes limitações.
Estas tornam débil o acesso das camadas populares à vida urbana. No entanto, estas atuam
e criam mecanismos que coordenam a atuação.
No tocante ao pesquisador Luiz Antônio Machado da Silva, toda a apresentação
que eu fizer será dispensável diante da ―sociografia da sociologia urbana brasileira‖
realizada por Freire e Rocha (2010). As autoras fazem uma surpreendente reflexão da
relação de pesquisa de Luiz Antônio Machado da Silva na cidade, o que lhe confere um
título de sociólogo especializado em estudos sobre ―camadas populares urbanas‖ (Machado
da Silva, 2016).
A construção das autoras sobre a sociologia de Luiz Antônio Machado da Silva,
que eu me arriscarei a classificar como sociologia machadiana, fornece um quadro de
referência basilar não somente para pensar em uma sociologia urbana brasileira115, mas os
diferentes momentos enfrentados pelas camadas populares urbanas; as que vivenciam
diretamente os efeitos da periferização das cidades.
Machado da Silva, em um primeiro momento, se debruçou em pesquisas que
tocavam na relação das camadas populares com mercado de trabalho. Neste caso, o
―mercado formal‖ e o ―mercado não formalizado‖ (1971, p. 13); o primeiro, amparado pela
―lei da estabilidade‖; o segundo, carente de um reconhecimento jurídico. A sua sociologia
se deparou com um momento sensível para as cidades brasileiras. Este momento estava
intimamente relacionado às incertezas dos migrantes que estavam adentrando na região
metropolitana do Rio de Janeiro. O principal quadro de referência que mobilizou a
pesquisa de Machado da Silva de então foi o limite da integração urbana (apesar deste não
assumir tal posição), a saber; a limitada capacidade de oferta de recursos para os novos
―citadinos‖, que se viam amontoados nas áreas afastadas ou irregulares da cidade, e em
situações de ―clandestinidade‖ laboral possibilitada pela ausência de uma fiscalização de
pequenas empresas que funcionavam, geralmente, em áreas de ―favela‖ ou ―bairros de
expansão urbana‖ (op. cit. p. 22). Neste caso, os limites da integração da cidade diz
respeito a inserção no mercado de trabalho.
Não é o meu objetivo fazer aqui uma resenha do autor, mas situá-lo nos pautas de
pesquisas colocadas pelas diferentes experiências vivenciadas por outras cidades não
metropolitanas. Campos dos Goytacazes, apesar de ser uma cidade média de interior,
experimentou o fenômeno migratório campo-cidade desde os anos de 1940. Este fato se
deu por esta ser uma cidade que possuía maior potencial de absorção da mão de obra entre
as cidades vizinhas.
Retomando a discussão principal deste tópico, em 1967 Machado da Silva publicou
o artigo intitulado ―A vida política da favela‖, e pelo que me parece, naquele momento o
autor estava diante das principais categorias analíticas: ―trabalho‖, ―emprego‖,
―marginalidade‖, ―participação política‖, entre outras mais, relacionadas aos quadros de
referências de então. Após os anos 1980, os estudos sobre as camadas populares urbanas
estavam sendo delineados por outras demandas definidas pela realidade estudada:
movimentos sociais e violência urbana que atingem o cerne a integração limitada na vida
urbana.
No primeiro momento da pesquisa do Machado da Silva (1971, 2010) a integração
urbana relacionava-se às políticas de emprego; apontando como estas não alcançavam
grande parte dos moradores das ―áreas de favela‖ e ―bairros da expansão urbana‖. As
citadas localidades continuam sendo referenciais de pesquisa, porém, não somente
relacionadas ao emprego, mas ainda, a ―violência urbana‖. Com a nova temática ―violência

115
É importante ressaltar que Machado (1971, p. 7) reconhece as limitações do ―poder generalizador do
modelo‖ apresentado em seu trabalho, pois esta se deu em um contexto metropolitano. Portanto, alguns
cuidados devem ser observados, pois o próprio autor adverte a peculiaridade de seu referencial empírico.

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urbana‖ Machado da Silva (1994 e 1995) dá início a uma nova fase, porém, continua a
contemplar o mesmo problema, que é a débil integração dos moradores das áreas de
expansão urbana. Nesta nova fase é que ele irá elaborar o conceito de ―sociabilidade
violenta‖, uma sociabilidade ―contígua à ordem política convencional‖ (Machado da Silva,
2002, p. 233).
A noção de ―sociabilidade violenta‖ elaborada por Machado da Silva contempla a
ação social coordenada por meio da utilização da força como um recurso final na resolução
de conflitos. A ―sociabilidade violenta‖ é um conceito que afirma uma ausência de uma
regulamentação estatal-jurídica nas favelas cariocas, objeto analítico do referido autor. Na
ausência da ―ordem convencional‖ é que surgem novos atores reconhecidos como
legítimos na coordenação dos conflitos locais, porém, o principal recurso utilizado para
obtenção de interesses é a força, que pode levar inclusive, a retaliação letal e por fim, a
morte (Machado da Silva, 2008, p. 41-44).
Quando trato da ―ausência da ordem convencional‖, termo utilizado pelo próprio
Machado da Silva (2002), não me refiro aos estereótipos construídos sobre a ausência de
Estado e a ―presença‖ de um ―poder paralelo‖ decorrente da ausência deste. O Estado se
faz presente, como afirma Machado e Leite (2008, p. 50). A questão posta por Machado
em sua noção de ―sociabilidade violenta‖ se centra em uma coordenação de ações daqueles
que convivem diretamente com estes grupos, no caso, os moradores das áreas
desfavorecidas (Machado da Silva, p. 77-78) da cidade, seja em ―favelas‖, seja em bairros
mais afastados da área central, localizados principalmente nas áreas de expansão da cidade.
Em outro quadro de referências de pesquisas sobre a cidade, neste caso, a
metrópole paulista, emerge o Lúcio Kowarick, cujo referencial de pesquisa é o mesmo de
Luiz Antônio Machado da Silva; o trabalho, sobretudo, nas periferias da cidade. Esta
proposta não intenta levantar uma reflexão crítica sobre ao modo como os pesquisadores
trabalham, e muito menos, realizar comparações entre os conceitos que os mesmos
cunharam no decorrer de suas pesquisas, mas os quadros de referências mobilizados para o
desenvolvimento das pesquisas urbanas com os seguintes recortes analíticos: trabalho;
moradia; movimentos sociais; e violência urbana.
Em 1975, em seu artigo ―Capitalismo e marginalidade na América Latina‖, Lúcio
Kowarick aponta a marginalidade como inerente à acumulação de capital do ―sistema
capitalista‖. Ele estabelece uma relação entre migração campo-cidade e marginalidade.
Ele, no citado trabalho, faz menção à intensidade da migração na América Latina como um
todo, comparando o processo da América Latina com a Europa, onde a migração ocorrera
de modo menos intenso do que a realidade latino-americana.
Quando o autor se refere à Europa apresenta a Grã-Bretanha descrita por Erick
Hobbsbawn, onde o sistema produtivo empregou os ―socialmente marginalizados‖.
Kowarick (1975, p. 82) menciona o trabalho de Hobsbawn não interessado em
compreender se o ―grau de pauperização‖ dos europeus eram maiores ou menores do que o
da América Latina. Seu principal interesse foi destacar a absorção da mão de obra dos
trabalhadores urbanos e, consequentemente, a ampliação do trabalho assalariado.
Em 1979, Kowarick cunhou o conceito de ―Espoliação urbana‖. Em 1975,
Kowarick já havia publicado um trabalho com Brandt intitulado ―Crescimento e pobreza‖,
deslocando as suas orientações de uma perspectiva mais geral do ―sistema capitalista‖ para
questões urbanas, no caso, as ―contradições urbanas‖, uma vez ser a cidade o lugar do
desenvolvimento da indústria moderna. Telles (2010, p. 58) faz uma excelente
apresentação dos momentos cruciais da pesquisa do Kowarick, cujas temáticas centrais
desse momento pairavam sobre ―moradia popular‖, no caso das ―autoconstruções‖,
―trabalho‖, relações entre o ―arcaico‖ e o ―moderno‖, entre outros referenciais que eu
relaciono aos limites da integração dos migrantes na cidade, que na perspectiva

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kowarickiana, relacionava-se a marginalidade inerente ao crescimento do capitalismo, que


fora incapaz de ampliar o trabalho assalariado para além dos trabalhadores qualificados da
cidade; excluindo assim os migrantes do campo. A estes últimos restariam os
―subempregos‖.
Nos anos 1970 e 1980. Kowarick realizou estudos sobre os movimentos sociais
urbanos, o que incluía trabalhadores de fábricas e moradores de bairros da cidade de São
Paulo. No trabalho intitulado ―Caminhos do encontro: as lutas sociais de São Paulo na
Década de 70.‖, Kowarick estabelece uma relação entre a luta do ―movimento operário‖ e
a ―luta por moradias‖. Uma questão importante levantada por ambos, é que até o início da
década de 1980, os atingidos pelo que eu convencionei chamar de limites integração a vida
urbana eram basicamente os moradores de ―favelas‖ no caso carioca, ou ―bairros
periféricos‖, no caso paulista. No entanto, na década de 1980, inicia-se uma nova fase. Em
1982, Kowarick (1982, p. 33) chamou de ―rotinização do medo‖, no caso, a ―violência
urbana‖, o que o autor classificou no momento como não sendo específico das periferias,
mas um ―problema‖ enfrentado pelos ―habitantes da cidade‖.
Na discussão do parágrafo que antecede, Kowarick inicia seus estudos sobre a
violência urbana baseado em dados estatísticos coletados na grande São Paulo. Em 2000,
em ―Desventuras da cidadania‖, Kowarick abre uma reflexão sobre a ―periferia‖ como
sendo o ―mundo da subcidadania‖, uma vez que os habitantes ―desses locais‖ se encontram
expostos ao risco de morte, o que lhes obriga a fazer ―pactos com criminosos‖, que vai
desde a ―lei do silêncio‖ até o ―pagamento de empresa‖ a ―organizações criminosas‖
(Kowarick, 2002, p. 25).
No tocante a sua passagem pelas teorias da marginalidade, trabalho, movimentos
sociais e, por fim, violência urbana, Kowarick não deixa de observar o referencial teórico
inicial de sua pesquisa, no caso, as condições de assalariamento e empregabilidade. Os
temas foram diversificados, mas há um pano de fundo, inclusive, tanto em Kowarick,
quanto em Machado da Silva: o limite da integração dos migrantes na cidade, uma
entidade incapaz de absorver todas as populações que adentram em seus limites territoriais.
Quais foram os quadros de referências comuns entre ambos? A promessa de uma
cidade que possibilitaria uma ascensão econômica de grupos oriundos do interior, ou
provenientes de outros Estados que ainda não ofereciam o potencial de industrialização
presentes nessas duas grandes cidades do Sudeste. Machado da Silva (1971) em sua
discussão acerca da ―marginalidade‖, cujo ―coração ecológico‖ era a favela, relatou as
especificidades de uma cidade incapaz de ―formalizar‖ todos os seus moradores,
sobretudo, os recém-chegados.
O núcleo duro deste artigo é a periferização das áreas desfavorecidas da cidade,
sobretudo, habitadas por migrantes. Não é necessário fazer uma análise muito profunda
para perceber a discrepância de recursos disponíveis em novas áreas de expansão urbana e
as áreas já ocupadas pelos que Blanc e Assis (no prelo) denominam ―famílias
tradicionais116‖. Estes últimos são citadinos em seus efeitos.
Diante dos diferentes temas levantados até aqui, mediante a mobilização dos
autores mencionados, é que coloco o meu quadro de referência de pesquisa: o limite da
integração na vida urbana. Para este fim mobilizarei uma discussão sobre o uso da força
como um recurso legítimo para resolver ou evitar conflitos.

116
Blanc e Assis. (no prelo)

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“Para viver aqui naquela época tinha que ser valente”: o uso da força como um
possível recurso de resolução e/ou evitação de conflitos.
O trecho citado no título desta seção foi retirado do trecho de uma entrevista
realizada no bairro de Custodópolis, localizado ao norte do município de Campos dos
Goytacazes – RJ. O bairro está situado no terceiro subdistrito da cidade, em Guarus. Em
outro trabalho (2013) tratei das categorias morais de desqualificação do citado subdistrito,
e consequentemente, do bairro. O bairro até o início do século XX não era reconhecido
como um bairro de moradia, mas sim, uma propriedade rural. O bairro fora criado
oficialmente nos anos 1930, quando o proprietário da terra repartiu os terrenos em
pequenos lotes e loteou, criando assim uma espécie de autofinanciamento (Assis, 2016).
Porém, nos anos 1920, um grupo formado por ex-escravos e migrantes da zona rural
chegaram à localidade e instalaram casas feitas de bambu, cipó, barro e palha, o que
acabou designando a região como ―Cidade de Palha‖ (Juncá, 2008; Azeredo, 2012).
A partir de então a localidade passou a se chamar ―Cidade de Palha‖. Após a
análise das entrevistas realizadas, sobretudo com os moradores mais antigos do bairro, e
analisando sistematicamente a estrutura do mesmo, pode-se perceber que a sede da
fazenda, atualmente, Praça José Dias Nogueira, foi onde a formação do bairro começou.
Observando os mapas do lugar, as primeiras ruas e ouvindo meus interlocutores, que de
forma análoga, relatam histórias do bairro, pude concluir que o bairro surgiu da sede
fazenda, não de modo progressivo acompanhando o crescimento da área urbana. O limite
da área urbana e o bairro era separado por grandes propriedades rurais, portanto, uma área
que possuía uma difícil comunicação com o núcleo urbano da sede do município.
O bairro assim como muitas outras áreas de expansão da área urbana recebeu
diversos movimentos migratórios da área rural do município. Todas as famílias que moram
no local possuem um ponto de gravitação: a roça, neste caso, o interior rural. Todos os
interlocutores que tornaram possível este artigo possuem ―parentes na roça‖. As
experiências na cidade são contadas por diferentes faixas etárias. O título desta seção fora
extraído de um trecho da entrevista de uma das filhas do antigo capataz da ―fazenda de
Custódio‖. Ela, nascida de parteira em uma ―casinha velha‖, onde morava com seus pais,
brincava nos canaviais, onde seus irmãos se ―escondiam com medo de apanhar‖ do pai,
que em algumas situações, ―os colocava no tronco‖, onde ―apanhavam até sangrar‖. Nos
anos 1980, ela vivenciou a morte de um dos irmãos, morto pelo ―crime violento‖, e
também vivenciou a ―retaliação letal‖ do seu outro irmão, que ―acertou‖ no responsável
pela morte irmão.
O sogro de Ângela, de acordo com o seu relato, foi nomeado ―subdelegado de
polícia‖ por ―ser valente‖. A valentia era uma competência para viver no bairro, que
segundo a sua classificação; era ―bravo‖. Em relatos de outros moradores do bairro, o seu
sogro é classificado como ―covarde‖, pois ―matava na facãozada117‖.
A família de Ângela possui um histórico no bairro que lhe confere uma ―reputação‖
de pertencer a uma ―família antiga‖. Pertencer a uma ―família antiga‖ lhe confere um
acúmulo de experiências, dentre estas, podemos destacar aqui a capacidade de ser um
―portador‖ em potencial da ―sociabilidade violenta‖, dada a mesma ter sido um recurso
possível na resolução ou evitação de conflitos.
O reconhecimento da violência como um dispositivo de resolução de conflitos era
uma prática legítima no discurso de Ângela por ela viver em uma localidade até antão,
classificada como suburbana oficialmente, que neste caso, não dizia respeito apenas a falta

117
O facão era um instrumento muito utilizado no corte da cana, uma vez ser área de canavial. Por ser um
instrumento cortante, era muito utilizado na prática do ―crime violento‖.

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recursos materiais requeridos em um bairro habitado, havia ainda, a ausência de recursos


simbólicos que tornavam o lugar uma ―terra de ninguém‖. Conviver na ―terra de ninguém‖
era adotar a ―violência letal‖ caso fosse necessário. A força física não era um recurso
apenas para a resolução de conflitos, mas a garantia de manutenção da integridade física e
patrimonial como destaca no trecho de um relato de Ângela:
Meu pai era bem esperto, antes não tinha banco, não tinha assaltante.
Fazia as coisas com as próprias mãos. Na minha época já teve muito isso
[como as pessoas lidavam com isso?] hoje é a lei do coisa, né? [se
referindo ao direito penal] Antes era a lei mesmo de assassinato, matava...
Antes sobrevivia o mais forte, quem tinha um poder aquisitivo melhor...
maior, mais temido. Não tinha lei, né (tinha, mas ninguém seguia a lei
[Fala de sua filha mais nova durante a entrevista])! TODO MUNDO
ANDAVA ARMADO! Ninguém tinha porte de arma, mas andava
armado.
A declaração de Ângela situa uma ordem violenta na qual a ―sobrevivência era do
mais forte‖, neste caso, daquele que se dispunha a usar a retaliação letal se fosse necessário
em uma resolução de conflitos. O ator inserido neste quadro deveria oferecer provas de que
iria retaliar se fosse necessário; uma situação quase hobesiana, na qual o sentimento de
insegurança poderia se converter em medo e como consequência deste, uma retaliação
letal. Ela, provavelmente, acumulou estas experiências não apenas observando o seu sogro
e pai, mas também, por ―perder‖ um irmão vítima do ―crime violento‖ em decorrência de
uma discussão envolvendo ―gado‖, pois era criador de gado no local.
Como pesquisador tenho compreensão de que Ângela possa estar cometendo alguns
excessos ao fazer a afirmação de que ―todo mundo andava armado‖, mas ao fazer tal
afirmação, me fornece um mundo possível experimentado por ela, pois as suas
representações sobre o lugar no seu tempo é exatamente como ela verbaliza, o que não
quer dizer que isto seja uma descrição exata do lugar. Foi um lugar experimentado por ela,
que experimentou a ―violência‖ dentro de sua casa quando muito nova, ao presenciar seus
irmãos sendo colocados no ―tronco‖ pelo pai. A violência nesse caso passa ser um recurso
possível, seja no interior da casa, quando os pais utilizam a violência física e simbólica
como instrumento corretivo, seja ela no espaço público, quando os conflitos são resolvidos
por meio de retaliação letal.
As situações descritas por Ângela possibilitam-me pensar na ―violência‖ como um
recurso legítimo de uma ordem moral, cuja resolução de conflitos, bem como inexistência
destes, está relacionada a ela, que inclusive, não é representada como ―violência‖, e sim
―valentia‖. A integração limitada do bairro tornou a violência um recurso, não um
problema.
A grande questão aqui colocada é que, em áreas não integradas completamente na
cidade todos os moradores convivem em um regime de ―medo‖ e ―desconfiança‖, o que
Machado da Silva (2004, p. 78) classifica como sendo a ―implantação‖ mais ―perversa‖ da
―sociabilidade violenta‖. Porém os atores deste regime, pelo menos, onde obtive os dados
empíricos deste artigo, cada um lançará mão de um recurso para ―sobreviver‖, e o ―medo‖
afligirá aqueles que não estão dispostos a aderir à moralidade colocada. A família de
Ângela sofreu retaliação letal, mas também utilizou do mesmo recurso para outras
situações de insegurança. Todos podem ser subordinados, mas também perigosos em
potencial, uma vez que cada qual mobilizará o recurso que tem à mão, que pode ser a
―valentia‖ própria, ou a ―valentia‖ de um ente querido, como o caso de Leonardo, primeiro
relato deste artigo.
Os autores mobilizados por mim no início apresentavam referenciais extremamente
importantes para que eu pudesse pensar no meu objeto para além de uma discussão

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corrente sobre a violência urbana. Esta, a partir da trajetória de Ângela, assim como de sua
família no bairro, passa a ser compreendida por mim como um objeto contíguo a uma série
de práticas, e não falo de uma ausência estatal, como é corrente em abordagens que
insistem na existência de um ―poder paralelo‖. A violência urbana é tecida em um
cotidiano que está na cidade, mas não é um citadino. Há ainda autores que mobilizam a
noção de ―subcidadania‖ para explicação da violência. Na verdade, a cidadania, assim
como a ausência do Estado tem sido explicações convincentes, mas não coerentes.
Pensar na ―violência urbana‖ é entender a situação na qual ela está inserida, e se é
que ela e considerada ilegal pelos que a praticam. A violência, sobretudo praticadas por
atores classificados como perigosos, já ganhou uma série de categorizações, que vão desde
uma realidade ontológica a comportamentos desviantes. A situação presente neste artigo
situa a retaliação letal como uma atitude normativa de um determinado grupo não
integrado efetivamente na cidade, portanto, convivendo em seus limites. Neste caso a
retaliação letal é uma consequência de falta de coragem ou violação dos estatutos do
quadro.
“Quem mata morre”: o “portador” e “atingido” pela “sociabilidade violenta”.
Eu sempre me impressionei com a adequação dos bordões em diferentes situações
nas quais ele é utilizado. Sempre são simples, mas trazem consigo uma série de
referenciais amplamente compreendidos pelos atores que vivenciam o quadro no qual o
bordão é utilizado. O bordão tem uma série de finalidades explicativas. Um conceito
define tudo que quereremos dizer em poucas palavras, ou apenas uma, o que torna o
trabalho descritivo reduzido.
No caso do bordão e o do conceito, vejo semelhanças interessantes entre ambos.
Assim como os conceitos, os bordões situam o utilizador de tal ferramenta em um lugar no
mundo, seja das ideias, seja social. Utilizar a palavra ―estrutura‖, por exemplo, pode te
colocar em um lugar no mundo das ideias, sobretudo, sociológicas e antropológicas.
Utilizar o bordão ―quem mata morre‖, coloca o ator que o proferiu em um quadro no qual o
causador da morte de outrem é passível de ser morto, neste caso, sujeito às regras do crime
(Misse, 2010). Neste caso, aquele que mata é passível de ser morto.
Era seis de janeiro do ano de 2015, havia acabado de realizar uma entrevista e após
o término da entrevista fui a uma lanchonete no Parque Nova Campos, bairro vizinho ao
que estava realizando a entrevista. Estava eu, a proprietária da lanchonete, seu irmão e
mais um morador do bairro, sentados e conversando assuntos triviais.
Após, aproximadamente, meia hora de conversa, chega um primo do esposo da
proprietária da lanchonete (que eu chamarei de Fred), juntamente com o cunhado da
mesma. O Primo de seu esposo parecia apreensivo. Ele havia acabado de presenciar uma
tentativa de homicídio de um jovem de mais ou menos quatorze anos, segundo sua
estimativa. Ele relatou que, ao ver o jovem caído no chão, foi chamar o vizinho para que
este prestasse socorro, uma vez não possuir carro para ele mesmo fazê-lo. Disse perplexo,
que ao falar com o seu vizinho, este o interrompeu para dizer que iria pagar os picolés que
estava devendo a ele. Isso o deixou mais perplexo, pois enquanto ele se via correndo contra
o tempo, o vizinho estava preocupado em pagar uns picolés que comprou com ele.
Finalmente o vizinho prestou o socorro, mas segundo Fred, o jovem morreu a caminho do
hospital.
Após ele relatar o evento, as pessoas que estavam ali não aparentavam estarem
surpresas com a situação. O único que aparentou comoção foi Fred. Nem o seu
acompanhante estava interessado no assunto. O Irmão da proprietária da lanchonete

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começou a lhe fazer perguntas sobre o jovem, e ele disse que morava nas ―casinhas‖ 118 e
era ―bicho também‖, ―já estava matando‖. Com o desenrolar da conversa ele soltou o já
citado bordão: ―quem mata morre‖.
A partir da apresentação da situação na qual o jovem foi morto e a baixa
repercussão da morte entre os moradores do bairro em que eu estava, que fica apenas a
duas quadras do local do crime, pode-se concluir que há uma legitimidade de uma
sociabilidade violenta quando o que lança mão dessa prática também é afetado por ela.
―Quem mata‖ é passível de ser ―morto‖, pois parte-se do pressuposto que a sua morte será
resultado de um ―acerto de contas‖, não uma atitude ―violenta‖. A partir desta expressão
podemos adentrar em uma reflexão sobre os diferentes atores sociais presentes em um
bairro que sofrem processos de periferização continuamente.
A periferização é tomada por mim como um efeito da integração urbana débil dos
bairros de expansão. Neste processo, os seus moradores, o que inclui o jovem morto,
sofrem com um processo de diferenciação em relação aos outros citadinos, sobretudo,
aqueles que moram em bairros onde estão as ―famílias tradicionais‖. Nestes últimos, a
situação relatada por Fred seria contemplada com um debate institucionalizado, via meios
de comunicação e poder público. A morte não seria um ―acerto de contas‖, mas um
―problema‖ de segurança pública, quiçá, público.
O fator explicativo de tal situação pode ser contemplado com noção de um ―regime
de desumanização‖ (Freire, 2010), que neste caso, torna o morador do bairro periférico um
desumano. Este fato não é nenhuma novidade, pois movimentos sociais e sociólogos estão
cada vez mais empenhados em trazer à tona situações nas quais os territórios de favelas e
bairros populares são menos atendidos por órgãos do poder público.
Uma palavra que considero relevante para pensar o quadro apresentado neste tópico
é a palavra ―violação‖. Esta está relacionada à desobediência de algum acordo, o que torna
aquele que viola passível de punição. Na situação do jovem tratado neste tópico, ele foi
punido com a violação dos seus direitos como um integrante da humanidade, porém, não
percebido do mesmo modo por aqueles que presenciaram Fred estarrecido com a situação.
Retomando a discussão inicial deste tópico, o uso do bordão para explicar o fato
ocorrido evidencia uma sociabilidade cuja violência é um recurso disponível para a
resolução dos conflitos, o que torna o jovem não um ―morador‖ inocente, mas em um
―bandido‖, portador e afetado em potencial pela ordem violenta. O Bordão de Fred
poderia ter sido: ―quem mata vai para a cadeia‖, mas o seu enquadramento cognitivo
correspondeu à situação em curso em um bairro que sofre um processo constante de
periferização.
Considerações Finais
Retomando algumas discussões feitas no presente artigo, porém, não esgotando as
possibilidades, gostaria de finalmente fazer uma síntese. Em primeiro lugar, é importante
uma reflexão sobre a cidade pensando em suas diferentes temporalidades, não extraindo o
objeto de um projeto teórico mais amplo. As discussões sobre a ―violência urbana‖ devem
ser pensadas como uma questão relacionada à incapacidade de integração plena do projeto
cidade, uma vez esta não ter sido capaz de tornar todos os seus moradores citadinos. Em
segundo lugar, é necessária uma inserção empírica profunda no objeto denominado
violência, pois o campo teórico poderá fazer com que a capacidade de reflexão empírica
fique comprometida com as generalizações que acabam construindo oposições e não
contiguidade entre as práticas sociais aparentemente contraditórias se observadas em sua

118
Conjunto habitacional Morar Feliz, situado no bairro Novo Eldorado, entre os bairros Nova Campos,
Bandeirantes e Santa Rosa, Eldorado e Jardim Ceasa.

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superfície. Por fim, buscarei uma breve reflexão sobre os ―portadores‖ e ―afetados‖ pela
ordem violenta vivenciada nos bairros de expansão.
No tocante a integração urbana, mobilizei no primeiro parágrafo duas discussões
que estavam localizadas em quadros de referências comuns; a incapacidade da cidade em
tornar todos os seus moradores citadinos, no caso, possuidores de todos os recursos
disponíveis na cidade. É importante remarcarmos aqui os diferentes problemas envolvendo
a vida na cidade, que entre os anos 1960 e 1970, estavam ancorados em discussões
relacionadas ao mercado de trabalho que não foi capaz de formalizar todos os
trabalhadores urbanos. Já entre os anos de 1980 e 1990, o quadro foi o surgimento de
movimentos sociais com pautas de reivindicações de melhores condições de trabalho e
moradia. Ainda dos anos de 1990, até o presente momento, vigora intensamente uma
discussão que toca na violência urbana cujo conteúdo se resume ao crime violento
praticado, sobretudo, dentro dos bairros periféricos e favelas.
No tocante ao uso da força como um recurso possível para a resolução ou evitação
de conflitos, é basilar um entendimento de situações específicas, nas quais os novos
trabalhadores urbanos se colocavam ao acessarem a cidade em bairros completamente
desurbanizados. Nestas áreas é importante pensar a retaliação letal como um recurso.
Nestas situações as competências de ―sobrevivência‖ são rígidas, diferentemente da cidade
instituída com leis formais que não conseguem regular efetivamente as áreas periferizadas,
o que faz com que haja um cuidado para não violar as regras tecidas situacionalmente. A
ordem é garantida com uma ação potencialmente violenta.
Se estabelecermos uma comparação entre as diferentes temporalidades do bairro de
Custodópolis, assim como os outros bairros vizinhos apresentados aqui, um fator que
perpassa os citados bairros é a ―ordem violência‖. Desconstruindo algumas abordagens
correntes que resumem a violência na periferia ou nas ―favelas‖ ao tráfico de drogas, a
temporalidade do bairro analisada até aqui demonstrou que a utilização da força como
resolução de conflitos é um recurso que independe da do tráfico de drogas, uma vez ser
anterior a este.
As reflexões trazidas mostram contiguidade de práticas com as do morador comum
que não é portador da sociabilidade violenta. Contiguidade com a comunidade que legitima
a violação de quem é violento, ou mesmo, permanecendo em silêncio diante das situações
de injustiça que permitem com que grupos vivam em uma ordem violenta e instituída como
se não fosse uma violação contra a humanidade dos demais moradores do bairro, uma vez
que estes não se sentem afetados diretamente.
Todo empreendimento levantado até aqui é para demonstrar o objeto de ―violência‖
no mundo da vida, onde este é mobilizado de acordo com interesses específicos de
determinados grupos, sejam estes ―valentes‖, antigos capatazes de fazenda, ―bandidos‖,
que utilizam a violência como um ―recado‖ para moralizar o lugar, ou mesmo como
―retaliação‖ entre ―facções‖ rivais, que substituíram o termo ―valentia‖ pelo termo
―disposição‖, que indica quem está disposto ou não a ser portador da sociabilidade
violenta.
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―Violência urbana‖ e experiências públicas de familiares de vítimas ―no interior‖ do estado do Rio de
Janeiro. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v.1, n.2, p. 165-185, julho de
2017. ISSN 2526-4702.
Artigo
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

“Violência urbana” e experiências públicas de familiares de vítimas “no


interior” do estado do Rio de Janeiro
“Urban violence” and public experiences of victims’ relatives “on the countryside” of the state of
Rio de Janeiro

Jussara Freire
Diogo da Cruz Ferreira
Viviany Férras da Motta dos Santos Soares
Tayná Santos
Resumo: Este artigo apresenta considerações exploratórias de uma pesquisa em andamento
que tem como objeto as experiências públicas de familiares de vítimas de homicídios
relacionados com os modos de problematizar ―a violência urbana‖ em Campos dos Goytacazes
(cidade do estado do Rio de Janeiro). O objetivo do presente artigo é, de um lado, apresentar
como se configura uma linguagem da ―violência urbana‖ em uma cidade média qualificada
como ―interiorana‖. Por outro lado, apresentaremos as primeiras considerações sobre
experiências de familiares após a perda de seus filhos assassinados por narcotraficantes e os
recursos que mobilizam para lidar com este luto, em um contexto urbano marcado pela
inexistência de movimentos sociais, coletivos ou outras instituições que poderiam ouvir e/ou
ancorar denúncias de mortes de vítimas de conflitos entre narcotraficantes por familiares. Desta
forma, procuramos compreender como se articulam a linguagem da ―violência urbana‖ em um
contexto extra-metropolitano com ―os processos de investigação‖ no sentido de Dewey (2003)
e nos inspirando dos modos segundo os quais Quéré e Terzi (2015), Stavo-Debauge e Trom
(2004), Breviglieri (2008) e Menezes (2014), retomaram esta proposta da filosofia pragmatista
conduzidos por familiares que são atualmente nossos interlocutores. Palavras-chave: processo
de investigação, política habitacional, violência urbana, luto, familiares de vítimas.

Abstract: This article presents the exploratory considerations of an ongoing research that has
as object the public experiences of relatives of victims of homicides related to the ways of
problematizing "urban violence" in Campos dos Goytacazes (city of the state of Rio de
Janeiro). The aim of this article is, on the one hand, to present how a language of "urban
violence" in an average city qualified as "interiorana" is configured. On the other hand, we will
present the first considerations about family experiences after the loss of their children
murdered by drug traffickers and the resources they mobilize to deal with this mourning, in an
urban context marked by the absence of social movements, collectives or other institutions that
could hear and/or anchoring allegations of deaths of victims of drug-trafficker conflicts by
relatives. In this way, we seek to understand how the language of "urban violence" is
articulated in an extra-metropolitan context with "research processes" in the sense of Dewey
(2003) and inspiring us in the ways in which Quéré and Terzi (2015), Stavo-Debauge and
Trom (2004), Breviglieri (2008) and Menezes (2014), have taken up this proposal of the
pragmatist philosophy led by family members who are currently our interlocutors. Keywords:
investigation process, housing policy, urban violence, mourning, family of victims

A pesquisa em andamento, cujo projeto fundamenta este artigo, partiu de nosso


estranhamento quanto à ―ausência‖ de arenas públicas (CEFAÏ, 2000) problematizando as
mortes de moradores de ―periferias‖ de Campos dos Goytacazes (cidade média do interior

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do estado do Rio de Janeiro) relacionadas com a criminalidade violenta desta cidade.


Observávamos inicialmente um contraste entre mob ilizações coletivas de luta contra a
violência institucional, das quais participavam movimentos de familiares de vítimas de
violência policial, na cidade do Rio de Janeiro (BIRMAN e LEITE (2008); ARAUJO
(2008); FREIRE e TEIXEIRA (2017); FARIAS (2007), isto é, em contexto metropolitano,
em relação ao que identificávamos inicialmente como ―ausência‖ de movimentos sociais
em Campos (contexto extra-metropolitano do mesmo estado).
Como detalharemos posteriormente, o debate público campista vem dando cada vez
mais visibilidade ao ―aumento de homicídios‖ decorrentes de conflitos entre
narcotraficantes da cidade de Campos dos Goytacazes que afetam, em particular,
moradores de favelas e de novos conjuntos habitacionais edificados no quadro do
programa habitacional ―Morar Feliz‖. A ―violência urbana‖119 é, neste caso, associada
exclusivamente aos confrontos entre personagens tidos como ―traficantes de drogas‖ ou
―bandidos‖. Diferentemente do caso da cidade do Rio de Janeiro, o personagem do policial
é também ausente das formas de tematizar o problema ―violência urbana‖ em Campos,
outro importante contraste em relação aos modos segundos os quais este problema se
configura no contexto extra-metropolitano do Rio de Janeiro (Campos se tornando, no caso
deste trabalho, um caso particular de uma cidade média possível). Nos jornais locais dados
estatísticos que já levantamos, bem como nas conversas cotidianas desta cidade, ainda
observamos que a categoria ―auto de resistência‖, por exemplo, não aparece como ―um
problema da cidade‖ relacionado com aquele da ―violência urbana‖ 120.
Estas primeiras observações conduziram a primeira autora em propor uma pesquisa,
em continuidade com seus trabalhos anteriores – que abordavam exclusivamente contextos
metropolitanos do estado do Rio de Janeiro (FREIRE, 2010; FREIRE, 2014; FREIRE,
2016 e FREIRE, 2017) - sobre as experiências públicas de familiares de vítimas de
homicídios ―no interior‖ cujas mortes são também problematizadas ―como consequência
da violência urbana‖. Devido à atuação profissional desta autora no campus da
Universidade Federal Fluminense em Campos dos Goytacazes, propôs-se, na presente
pesquisa, descrever e interpretar as experiências públicas de familiares após a perda de
seus filhos assassinados por narcotraficantes e os recursos que mobilizam para lidar com
este luto, em um contexto urbano marcado por uma ausência de movimentos sociais,
coletivos ou instituições que poderiam ancorar denúncias de mortes de vítimas de conflitos
entre narcotraficantes. Desta forma, propusemos analisar ―os processos de investigações‖
no sentido de Dewey (2003) (inspirando-nos também nos modos segundo os quais Quéré e
Terzi (2015); Stavo-Debauge e Trom (2004); Stavo-Debauge (2012); Breviglieri (2008) e
Menezes (2014), retomaram esta proposta da filosofia pragmatista) conduzidos por estes
familiares, procurando restituir as tramas e os engajamentos destes atores após à perda do
filho morto. Em outros termos, a proposta é de analisar as avaliações, qualificações e
experiências de familiares que perderam seus filhos assassinados por traficantes e como

119
Sobre a categoria ―violência urbana‖, aludimos a uma linguagem que expressa uma categoria nativa do
que se entende por violência e às decorrentes justificativas que emergem no debate público no que tange ao
uso da força desmedida. Assim como a ―metáfora da guerra‖ de (LEITE, 2012), ―A gramática da ―violência
urbana‖ altera profundamente os termos dos conflitos sociais, com os atores passando a discutir, no plano
ordinário (e não em sua dimensão institucional) das relações interpessoais, quem (pessoa e/ou grupo) não se
qualifica como portador de direitos. (MACHADO DA SILVA, 2015, p. 10).
120
Evidentemente, isso não significa que não existe violência policial em Campos, mas, neste momento da
pesquisa, ainda não muito poucos elementos para concluir sobre as formas como ela se apresenta na cidade.
No entanto, como a pesquisa trata de problematização da ―violência‖ do ponto de vista dos atores que
participam da elaboração do debate público, a falta de visibilidade da violência policial torna-se um primeiro
elemento da pesquisa a ser desenvolvido posteriormente.

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estas se articulam com uma linguagem da ―violência urbana‖ de uma cidade média, caso
particular do possível, neste caso, Campos dos Goytacazes.
O problema desta pesquisa se articula com aquele que os quatros autores exploram
ou exploraram em trabalhos anteriores: Jussara Freire, integrante do Coletivo de Estudos
sobre Violência e Sociabilidade (CEVIS), participou da pesquisa ―Vida sob cerco‖
coordenado por Luiz Antonio Machado da Silva (Machado da Silva, 2008) e neste quadro
havia analisado, com a equipe deste grupo de pesquisa, os engajamentos, recursos e
competências políticas de ―líderes comunitários‖ de favelas do Rio de Janeiro e de mães de
vítimas de violência policial para acessar o espaço público. Viviany Soares, por sua vez, no
quadro de sua participação em duas pesquisas do grupo Cidades, espaços públicos e
periferias, coordenado por Jussara Freire, ainda enquanto aluna de graduação participou de
duas pesquisas abordando, em um caso, a reconfiguração da sociabilidade urbana após
grandes empreendimentos em Campos (em particular, o Porto do Açu) e, em outro, os
modos segundos os quais moradores desta cidade problematizavam a ―violência‖ 121. Tayná
Santos analisou, de 2015 a 2016, interações entre funcionários públicos e ―usuários‖ em
situação de atendimentos em unidades de saúde, de Campos focalizando o problema da
pesquisa nas tensões e conflitos que emergem e nos modos de administrá-los122.
Atualmente, Tayná Santos é bolsista de iniciação científica em novo projeto de pesquisa,
coordenado por Jussara Freire, cuja proposta é descrever e interpretar a trama do
―problema violência urbana‖ em Campos dos Goytacazes 123. Diogo Ferreira da Cruz, por
fim, após ter etnografado as configurações da sociabilidade em um conjunto habitacional
de uma pequena cidade de Minas Gerais, que se alteraram ao longo do tempo diante do
aumento das ameaças e uso da força por narcotraficantes, estuda atualmente as formas de
habitar de moradores de um dos conjuntos do programa Morar Feliz em Campos dos
Goytacazes no quadro de sua tese de doutorado em andamento124. Nesta atual pesquisa,
propomos dar continuar a estas experiências e dar desdobramentos aos resultados de nossas
pesquisas anteriores, mas focalizando-nos doravante nas implicações da modalidade de
reconhecimento da ―sociabilidade violenta‖125 (Machado da Silva, 2010) em uma cidade
121
Freire Jussara e Santos, Viviany (2012). Os grandes empreendimentos da expansão universitária a na
região norte-fluminense: reconfiguração da sociabilidade e novos problemas públicos. 2012 (projeto
coordenado por Jussara Freire e financiado como bolsa de Iniciação Científica da Fundação Carlos Chagas
Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro- FAPERJ): Santos, Viviany, Construindo a
Sensação de Insegurança em Campos dos Goytacazes: o ponto de vista dos moradores. Trabalho de
conclusão do curso de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense Proteção social e Política
Habitacional em Campos dos Goytacazes. O Programa Morar Feliz sob uma perspectiva interdisciplinar.
122
Freire, Jussara e Santos, Tayná (2016) ―Vulnerabilidades da experiência citadina e acesso aos espaços
públicos urbanos em cidades do norte-fluminense‖ (projeto coordenado por Jussara Freire e financiado como
bolsa de Iniciação Científica PIBIC/PROPPI/UFF – 2015/2016).
123
Freire Jussara e Santos, Tayná (2017). Tramas da ―violência política‖ em Campos dos Goytacazes: grupos
de extermínios, narcotraficantes e milícias (projeto coordenado por Jussara Freire e financiado como bolsa de
Iniciação Científica PIBIC/PROPPI/UFF – 2016/2017).
124
A pesquisa do autor é financiada pela Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de
Janeiro (FAPERJ).
FERREIRA, Diogo da Cruz. Das consequências do programa minha casa minha vida na sociabilidade de um
condomínio em uma cidade média de Minas Gerais. 2015. 101 f. Dissertação (Mestrado em Políticas Sociais)
– Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Centro de Ciências do Homem (UENF),
Campos dos Goytacazes, 2015.
FERREIRA, Diogo da Cruz. Habitar um conjunto habitacional popular em Campos dos Goytacazes/RJ: a
experiência do programa ―Morar Feliz‖ do Novo Jockey. 2016. Projeto (Doutorado em Políticas Sociais),
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Centro de Ciências do Homem (UENF), Campos
dos Goytacazes, 2016.
125
Sobre a noção de sociabilidade urbana e sua articulação com a linguagem da violência urbana, remeto-me
às contribuições de Machado da Silva (2010). Segundo este autor: (...)a partir do reconhecimento de uma
―sociabilidade violenta‖, a linguagem dos direitos deixou de articular de maneira unívoca o conflito social (e

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―do interior‖ no que tange às formas de experimentar e vocalizar, por familiares, perdas de
―seres queridos‖ (DIAZ, 2014). Procuramos ainda compreender como os relatos destes
atores se entremeiam com a elaboração de uma linguagem da ―violência urbana‖
elaborada, neste caso, em uma cidade média extra metropolitana.
Desde o ano de 2016, os autores e outras recém integrantes do grupo Cidades,
espaços públicos e periferias – CEP28, coordenado por Jussara Freire (em particular
Carolina Mello, Pâmela Martins e Thayná Araújo, alunas do curso de graduação em
ciências sociais da UFF/Campos, que estão também recentemente compondo a equipe de
pesquisa) se distribuíram diferentes eixos da atual pesquisa que se fundamenta na
articulação de três técnicas de pesquisa:
- uma análise documental levantando, sistematizando e analisando: a produção
científica referente aos temas da pesquisa; dados socioeconômicos da população residente
em Campos; - dados do Instituto de Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro e do
Mapa da violência (2016); - matérias jornalísticas (em jornais locais, Folha da Manhã, o
jornal Terceira Via, o Diário e o Campos 24 horas e, eventualmente na imprensa escrita e
televisiva nacional) de 2008 a 2017, período que encobre as diferentes etapas de execução
do programa Morar Feliz em Campos e do programa das UPPs na cidade do Rio de
Janeiro. Com estas informações, procuramos organizar as matérias por temáticas segundo
os assuntos relacionados com a criminalidade violenta, a ―violência urbana‖, o programa
Morar Feliz e as intervenções policiais na cidade e reconstituir a trama discursiva do
problema insegurança no debate público.
- Uma observação em situação (e de situações): Iniciamos uma observação in situ
(CEFAÏ, 2010), isto é, de situações da vida cotidiana nas quais familiares problematizam e
buscam lidar com as perdas de seus filhos. Nesta observação que se encontra ainda em fase
inicial, procurando acompanhar as rotinas destes atores em suas casas, nos seus
deslocamentos pela cidade, nas suas atividades profissionais e nas suas relações de
vizinhança. Diante de algumas informações que surgiram neste primeiro momento da
pesquisa de campo (com recorrência nas conversas com nossos atuais interlocutores),
embora não tenhamos ainda iniciado esta etapa da observação, destacamos que planejamos
acompanhar familiares nas igrejas católicas e evangélicas freqüentadas por algumas dentre
eles (mães, pais e irmãos). Com esta observação, nosso objetivo é de compreender os
processos de investigações dos familiares que não implicam uma exclusiva relação de face
a face com o pesquisador, bem como descrever o ambiente do bairro, as formas de habitar
nos conjuntos, suas relações de vizinhança e as rotinas destes familiares.
- conversas e relatos de vida: partindo da técnica de relato de vida (Hannerz, 1989 e
Thomas e Znaniecki, 2004 [1918-1920]), propusemos retomar as trajetórias singulares de
familiares que aceitaram tecer trocas com os pesquisadores (mães em particular, mas
alguns irmãos de vítimas também receberam algumas das autoras) para buscar apreender as
possíveis correlações entre as situações de perda, os diferentes laços de parentescos, os
engajamentos dos familiares ao longo de seus trabalhos de luto, as temporalidades do luto
avaliadas pouco após o assassinato ou a posteriori, os recursos encontrados ao longo do
tempo para lidar com estas perdas, ou ainda, a trajetória dos sofrimentos vivenciados pelos
familiares em curto, médio e longo prazo. O relato de vida é, neste caso, entremeado com a
observação in situ e certamente, em momento mais avançado da pesquisa de campo, ambos

os medos a ele associados), passando a competir com a linguagem da violência urbana, que tematiza os
sentimentos difusos de insegurança que pesam sobre as expectativas de prosseguimento pacífico das rotinas
diárias e geram a mentalidade de ―segurança apesar dos outros‖, no lugar da ―segurança com os outros‖, para
usar as conhecidas expressões de Bauman (2001, 2000) na sua interpretação do ―inimigo próximo‖.
(MACHADO DA SILVA, 2010, p. 288).

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se confundirão (são atualmente separados pelo fato de que nossa entrada, ainda recente, se
deparou com a dificuldade de conhecer, em Campos, familiares que geralmente preferem
não publicizar suas experiências). No entanto, em função da natureza das experiências (no
limite do dizível) que são problematizadas pelos familiares, evitamos rigorosamente
apresentar estas situações como uma ―entrevista‖, preferindo propor outra técnica
metodológica, a da ―conversa‖ entre familiares e pesquisadoras, em um movimento de
busca de maior simetria entre conversadores (mesmo que a plena simetria seja
evidentemente inatingível pelo fato de que alguns dos conversadores serem qualificados,
pelos nossos interlocutores de acadêmicos). Em resumo, os relatos de vida são aqui
apresentados como situações de conversas para auxiliar o analista na compreensão da
experiência das perdas dos familiares. Sendo conversas, as trocas não são orientadas por
exigências de eixos ou ―roteiros de entrevistas‖, mas pelo pressuposto do que é possível
compartilhar estes tipos de experiências sem forçar a orientação do relato do locutor pelo
analista na direção das exigências de sua pesquisa, o que também flexibiliza a fala e a
escuta dos participantes destas situações. Se uma entrevista é geralmente um momento fixo
na temporalidade da vida de uma pessoa (mesmo que seja possível o analista procurar o
entrevistado para elucidar pontos no relato levantado mas que costuma ser de todo modo
pontual e referenciado a um momento anterior tido, pelo analista como chave), a conversa
é um jogo lúdico de sociação, retomando Simmel (no caso desta pesquisa, evidentemente,
o lúdico da conversa e o trágico da experiência dos familiares se confundem
inexoravelmente), uma forma interacional que permite diminuir imperativos normativos
em relação àquela que seria apresentada como uma ―entrevista sociológica‖ por todos os
participantes da situação. A conversa torna-se ainda uma forma ética que nos parece
reduzir níveis de exigências metodológicas em relação ―à entrevista‖ para poder falar
(sobre) e ouvir sofrimentos e dores a partir dos quais se tematizam assuntos
particularmente sensíveis como a morte de um filho ou de um irmão (os familiares com os
quais conversamos até então são mães, irmãos ou irmãs), mais ainda aquela que decorre
dos contextos que analisamos: uma terrível interrupção de cursos de vida e de trajetórias
familiares que é sistematicamente problematizada pelos nossos interlocutores. A conversa
ainda acolhe o ―desabafo‖ da dor sem que seja previsto ou priorizado, a priori, seus
sentidos pelo analista. Na conversa, assuntos, fluxos discursivos e emocionais em aberto
emergem constantemente e, no caso em análise, vêm nos oferecendo ferramentas
compreensivas a partir das quais podemos acompanhar como familiares, em Campos,
exploram e investigam o evento crítico (ARAÚJO, 2007; 2015) que segue a perda de um
―ser querido‖ (DIAZ, 2016).
Habitação, criminalidade violenta e “violência urbana”: consequências do debate
público em Campos dos Goytacazes para familiares de vítimas.
Alguns moradores da cidade do Rio de Janeiro costumam apresentar fortes
emoções (ódio e desprezo, em particular) quando é pronunciado, por lá, o nome de
Campos dos Goytacazes: a cidade pode ser qualificada, por muitos deles, como lugar do
―atraso‖, ―dos Garotinhos‖, do ―fim do mundo‖, ―do deserto‖, etc.
Paralelamente, Campos é o mais extenso município do estado do Rio de Janeiro
(4.032 km²), divido administrativamente em vinte distritos, e tem a mais numerosa
população do interior, estimada em 487.186 habitantes (IBGE, 2016). Os royalties
representam a principal fonte de arrecadação e recursos municipais126. No entanto, estas
fontes diminuíram significativamente após a queda do preço do petróleo e da diminuição
do volume de negócios da Petrobras a partir de 2015. Além das drásticas mudanças
municipais geradas pela ―crise do petróleo‖, que justificavam segundo seus
126
Ver: CRUZ, TERRA, (2015).

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administradores municipais a interrupção de uma série de políticas sociais em torno das


quais programas municipais foram planejados, como o programa habitacional Morar
Feliz127 - central na nossa análise-, pode-se ainda destacar o novo quadro de administração
municipal com a vitória recente do candidato do Partido Popular Socialista (PPS), Rafael
Diniz, nas eleições municipais de 2016. O atual prefeito, em uma campanha eleitoral
explicitamente apresentada como o ―fim da era Garotinho‖ por ele e pela opinião pública, é
eleito após dois mandatos de Rosângela Barros Assed Matheus de Oliveira (―Rosinha
Garotinho‖, prefeita de Campos, de 2009 a 2017) com uma expectativa de profundas
mudanças de formas de governo pelo seu eleitorado. Com efeito, o atual prefeito havia
prometido, desde o momento de sua campanha, uma ruptura sobre as ―tradicionais‖ formas
de governar a cidade. Após sua posse, a imediata integração de professores universitários,
pesquisadores e alunos das principais instituições acadêmicas de Campos na sua equipe
gestora parece representar, para este prefeito, o início do caminho desta ―grande
transformação‖.
Paralelamente, no debate público, em escala estadual e nacional, Campos vem
sendo ainda recentemente apresentada como uma das cidades ―mais violentas do estado‖
quando José Mariano Beltrame exercia ainda o cargo de Secretário de Segurança do Rio de
Janeiro (2007-2016) (In: NF Notícias 20/05/2016 e, muito recentemente, em junho de
2017, tal pauta se reforçou com o programa de Fernando Gabeira que propôs um
documentário sobre a ―violência em Campos‖ exibido no canal Globo News). Destacamos
ainda outra série de matérias na imprensa nacional e regional que apresenta Campos como
uma ―das cidades mais violenta do interior‖, como é o caso, por exemplo, de um noticiário
televisivo da Inter TV/região serrana (In: G1, 02/02/2017) durante o qual são apresentados
dados do Instituto de Segurança (ISP) de 2016 em tom alarmante: o número de homicídios
dolosos era de 168 em 2015 e se elevou em 272 casos em 2016 na cidade de Campos 128.
No programa de Fernando Gabeira supracitado, este jornalista abre o documentário
destacando também o ―ranking‖ das ―cidades mais violentas‖ do mundo (―Campos dos
Goytacazes é 19º no ranking mundial de violência‖) e a taxa de homicídio da cidade ―47
por cem mil habitantes‖ (número citado sem referência às fontes no documentário), o que
tornaria ―proporcionalmente‖ a cidade Campos ―mais violenta‖ do que aquela do Rio de
Janeiro.
Ainda vale destacar que, na imprensa local, os assuntos ―criminalidade‖ e
―violência‖ são fortemente localizados em áreas específicas de Campos: favelas, bairros
mais distantes do centro (como o bairro Travessão, situado a cerca de 30 km do centro da
cidade) e conjuntos habitacionais localizados em diversas áreas periféricas (literalmente,
em relação ao centro) deste município. Com efeito, entre estas e outras matérias da
imprensa local e regional analisadas, já é nítido que as notícias sobre criminalidade
violenta se referem recorrentemente ao distrito de Guarus 129 (pejorativamente qualificado

127
O programa Morar Feliz foi criado em 2009. O projeto inicial pretendia entregar a moradores da cidade,
até 2012, 5.426 casas populares em 10 bairros tidos como ―periféricos‖ (Penha; Jockey; Tapera; Parque
Prazeres; Santa Rosa; Eldorado; Travessão; Lagoa das Pedras e Aldeia), e, até 2016, a meta seria de criar
mais 4.574 até 2016. Foram assim construindo 18 conjuntos habitacionais, mas a meta da segunda etapa não
foi atingida; em ambas as fases, a prefeitura contratou a construtora Odebrecht Serviços de Engenharia e
Construção Hoje, cerca de 32 000 pessoas residem nas 6.500 casas destes conjuntos (OSEC) (FREITAS,
RIBEIRO, 2013).
128
Estou ainda levantando os dados de segurança pública e em fase de sistematização. Estes resultados serão
apresentados na dissertação.
129
Guarus é um distrito da Cidade de Campos que compreende toda a área que se localiza na margem
esquerda do Rio Paraíba do Sul aglomerando vários bairros.

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―do outro lado‖ por muitos moradores da cidade)130; favelas não necessariamente ali
localizadas, mais próximas do centro (como a Favela da Baleeira, Margem da Linha da
Tapera e Tira-Gosto); bairros da ―Baixada Campista‖131 da planície e/ou conjuntos
habitacionais ―Morar Feliz‖ (que podem ter proximidade com estes dois outros
residenciais). É ainda nítida a criminalização destes moradores na opinião pública, ou
ainda, a encenação de uma maior ―agressividade‖ nestes territórios. Por exemplo, em uma
matéria de 2016 do jornal Terceira Via, intitulada ―Confira o mapa da violência em
Campos‖, o comandante do oitavo batalhão o entrevistado Marco Aurélio Pires Louzada
afirma:
―Os bandidos de Guarus são mais agressivos entre si. Na área da
Delegacia do Centro existe mais uma coordenação dos criminosos. Eles
agem de maneira mais ordenada porque têm os freios inibitórios. Aqui,
eles podem sair pela rua atirando. Os moradores vêem, conhecem quem
atirou e conhecem quem morreu, mas não falam nada porque têm medo.
Aqui, eles são mais agressivos entre si e com a população também‖.
(TERCEIRA VIA, 19/12/2016)
A ordem moral (PARK, 1973) de Campos é frequentemente apresentada pelos seus
moradores sob o ângulo dos ―dois lados‖ do Rio Paraíba que atravessa a cidade. O ―outro
lado‖, o da margem esquerda do Rio Paraíba, corresponde ao início do distrito de Guarus,
ampla área moral que era exclusivamente associada à ―violência urbana‖ e ao ―mundo do
crime‖ por muitos moradores da cidade antes da execução do programa Morar Feliz. Tal
programa tornou estas fronteiras espaciais e morais mais complexas pelo fato de que seus
conjuntos habitacionais se localizam em diferentes áreas da cidade, geralmente distantes do
centro, mas em pontos opostos que não correspondiam necessariamente à lógica ―dois
lados‘ do rio Paraíba do Sul.
Em suma, se os modos segundo os quais moradores de Campos problematizam os
―dois lados‖ do Rio Paraíba apresentam uma dimensão da configuração da segregação
urbana em Campos, não podemos negligenciar as novas territorialidades geradas pelo
programa Morar Feliz (AZEVEDO, TIMÓTEO, ARRUDA, 2013) por elas alterarem
significativamente a morfologia desta cidade. Além disso, o programa Morar Feliz em
Campos teve uma forte incidência na redefinição das áreas morais tidas como violentas e
nas novas formas de definir as favelas e estes ―novos territórios‖ como ―problemas da
cidade‖. Os sentidos conferidos às favelas partiam das representações sobre territórios em
geral correspondentes aos ―aglomerados subnormais‖, retomando os termos do IBGE.
Paulatinamente, estes sentidos vêm se entremeando com as representações sobre os
conjuntos habitacionais criados no quadro do programa Morar Feliz. Desta forma, se o
censo do IBGE (IBGE, 2010; SIQUEIRA, 2016) aponta para a existência de 27 favelas em
Campos, ―as casinhas de Rosinha‖, apelido comum para se referir a estes 18 conjuntos
habitacionais, são outras áreas residenciais que aumentaram recentemente o número de
―territórios da pobreza‖.
Após a mudança dos moradores (em muitos casos, removidos de favelas e/ou
―áreas de risco‖ da cidade) em diferentes momentos do interstício 2009-2015, nestes
conjuntos, novos boatos se espalham aos poucos pela cidade; crimes ocorreriam
privilegiadamente nestas áreas (assaltos, estupros de mulheres, assassinatos, comércio de
drogas, expulsão de moradores, desovas etc.). Houveram ainda casos de expulsão de

130
Sobre as representações campistas do distrito de Guarus e as avaliações morais relacionadas com o
habitar neste ―outro lado‖ do Rio, ver Assis (2016).
131
Zona geográfica, de planície, do município de Campos que abrange cinco distritos (aqueles localizados
entre o distrito sede e a orla): Goytacazes, São Sebastião, Tocos, Santo Amaro, Mussurepe.

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moradores por traficantes por vezes noticiados na imprensa local 132. A circulação destes
boatos vem também aumentando fortemente a sensação de insegurança dos moradores da
cidade e reconfigura, desde 2009, o problema ―violência‖ em Campos, como Barros (2012)
apontava no ano em que defendeu sua monografia. Na nossa pesquisa de campo, iniciada
no final do ano de 2016, osatuais interlocutores que acompanham de perto os conflitos
existentes em um ou vários conjuntos habitacionais edificados no quadro do programa
Morar Feliz - comprometemo-nos em não identificá-los, por óbvias exigências éticas -, foi
frequentemente questionado (por eles) os modos de ―selecionar‖ os beneficiários das casas
do conjunto sem nenhuma consideração sobre as consequências de reunir moradores nestes
em áreas residenciais anteriores ―controladas‖ pelas até então duas ―facções de tráfico‖ da
cidade (em junho de 2017, momento em que escrevemos este artigo, houve uma indicação
por jornais locais de que tais facções se ―uniram‖ e alguns moradores, interlocutores
nossos, identificaram uma redução imediata de conflitos urbanos relacionados com a
criminalidade violenta da cidade).
Pode-se ainda observar um novo movimento moral no que tange à tematização da
―violência urbana‖ em Campos após a execução do projeto de Unidades de Polícia
Pacificadoras (UPPs) na cidade do Rio de Janeiro, iniciada em 2009, ano que correspondia
também ao início do Programa Morar Feliz. De 2011 a 2012, em sua etnografia dos cafés
comunitários e do conselho comunitário de segurança pública, Barros (op. cit.) observou
progressivas alterações nos modos de problematizar ―a violência‖ em Campos e, em
particular, um movimento que tendia a responsabilizar as UPPs pelo aumento da violência
em Campos. Nesta direção, estas formas de qualificar as UPPs como grande responsável
do aumento da criminalidade em Campos ressignificava também ―a violência urbana‖ a
partir de ―uma expansão do mundo do crime‖ (FELTRAN, 2011). Articulando as
diferentes matérias já levantadas com o trabalho de Barros (op. cit.) e de Barros e Freire
(2012), uma avaliação coletiva passa a marcar o debate público: ele, ―o mundo do crime‖
da cidade do Rio, teria assim chegado ao ―interior‖ e estava ―ocupando‖ os conjuntos
habitacionais do programa Morar Feliz. Pode-se destacar que outro importante aspecto da
―ocupação do tráfico‖ nos conjuntos era problematizado a partir da copresença de ―facções
opostas‖ em alguns dos conjuntos do Morar Feliz.
Em sua análise sobre a circulação juvenil de moradores de periferias de Campos,
Siqueira (2016) propôs um mapeamento dos territórios da cidade ―controlados‖ por
facções de narcotraficantes. A autora identifica uma fronteira simbólica entre dois outros
lados da cidade, desta vez dividida (também geograficamente) pelo Canal Rio Macaé (mais
conhecido na cidade como ―Beira Valão‖). Os territórios nos quais drogas são
comercializadas de um lado da ―Beira Valão‖ seriam ―controlados‖ pela facção Amigos
Dos Amigos (ADA) e, do outro, pelo Terceiro Comando Puro (TCP). Segundo a autora,
essa rivalidade iniciou-se nos anos 1990, período de importantes conflitos entre ―gerentes‖
do tráfico de drogas das duas principais favelas da cidade: a favela Baleeira (―controlada‖
pela ADA) e a (Tira Gosto, pelo TCP). Semelhantemente às análises de Farias (In:
Machado da Silva, 2008), a autora observa também fortes restrições de circulação dos
jovens moradores destas favelas na cidade quando estes temem frequentar um dos dois
lados da ―Beira Valão‖ e justificam seus medos pela presença de facções opostas.

132
Pode-se apreender a repercussão do caso da expulsão de uma família do conjunto habitacional do bairro
Eldorado, que ocorreu no dia 22 de setembro de 2012, notadamente em matérias dos sites de informações da
cidade de Campos dos Goytacazes: A matéria do site Ururau (particularmente consultado na cidade) ―Família
é expulsa da própria casa por traficantes no Eldorado‖ (24/09/2012) In
http://www.ururau.com.br/cidades21762 ou aquela do jornal Terceira Via: ―Família é expulsa de casa por
traficantes em Campos ― (24/09/2016) In: http://177.184.3.226/noticias/campos-dos-
goytacazes/5586/familia-e-expulsa-de-casa-por-traficantes-em-campos-

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173

Apresentamos resumidamente, nesta sessão, algumas das principais dimensões que


substanciam, em Campos, o problema ―violência urbana‖. A articulação destes aspectos é
central para fundamentar o problema de nossa pesquisa por ela permitir apresentar o
ambiente moral - isto é, parte de uma dimensão ecológica (PARK,1945) destes conjuntos
habitacionais e do problema ―violência urbana‖ em Campos - das investigações (DEWEY,
op. cit.) de familiares de vítimas após a perda de seus filhos. Ao acompanhar a trama do
problema ―violência‖ desta cidade, observamos uma conexão de sentidos relacionada com
as progressivas formas de problematizar a segregação urbana em Campos que cada vez
mais parece se articular com os modos de elaborar e publicizar, recentemente, a ―
―violência urbana‖ em Campos: diferentes divisões geográficas da cidade que se associam
paulatinamente com fronteiras simbólicas fundamentadas nas ―disputas de facções‖ que
contribuiria para a multiplicação de modos de ―dividir‖ a cidade (neste sentido, as
fronteiras da ―beira rio‖ ou da ―beira valão‖ vêm sendo fortemente marcadas, como alguns
trabalhos acadêmicos apontam (como Siqueira, op. cit.), por respectivos ―controles
generalizados‖ (não em territórios circunscritos, e sim em extensas zonas da cidade) de
grupos de narcotraficantes na cidade em função de ―áreas de atuação do tráfico‖ em
expansão; logo, a criminalidade violenta e suas representações adquirem central relevância
para a compreensão da produção de novas formas de segregação urbana; uma política
habitacional (o programa municipal Morar Feliz) que aproximou moradores originários de
territórios residenciais associados a ―facções do tráfico‖ opostas, que exerceriam um
controle passado territorialmente circunscrito e, quando moram literalmente juntos (por
meio do referido programa), a copresença residencial destes moradores em ―novos
territórios‖, agora misturados, e geraria conflitos imediatos e inevitáveis pelas
identificações de seus moradores com as ―facções‖ que ―dominavam‖ suas áreas
residenciais de origens, independentemente da distância ou aproximação com drogas e/ou
com tais grupos.; tal política se elabora ainda em um pano de fundo de recursos
municipais marcados por repasses de royalties (que contribuíram para uma representação
de Campos como uma cidade rica e decadente após a ―crise do petróleo‖, tocando a corda
sensível de elites campistas que defendem um projeto ―de modernidade‖ e, com ele, de
―desenvolvimento‖133); e, por fim, as ―UPPs do Rio‖ na capital do estado que teriam . Os
empilhamentos (ARAÚJO, 2016) destes ―pacotes interpretativos‖ (Gusfield, 1981)
contribuíram para ressignificar paulatinamente a linguagem da ―violência urbana‖ em
torno de um de seu importante repertório e personagem, ―o bandido‖, o qual era tido, após
as UPPs, como fugitivo da metrópole.
O aumento do número de homicídios em Campos destacado no debate público (que
se confirma nas conversas com atuais interlocutores, apesar da ausência de produção de
dados sistematizados sobre a relação entre estes homicídios e os novos conflitos que
emergiram após as mudanças dos moradores nos conjuntos do programa Morar Feliz) não
se acompanhou de indignações no que tange às ―vítimas do tráfico‖, ou senão de modo
muito excepcional. Talvez a indiferença quanto ao aumento destes tipos de homicídios, não
mensurável oficialmente, possa sugerir uma naturalização ou grande evitação de
problematizar as consequências dos conflitos armados na cidade. Além disso, a dinâmica
associativa da cidade é fortemente marcada pelas oposições de movimentos de base,
associações de moradores em particular, à administração municipal dos anos 70, que
representava interesses de elites agrárias e da indústria canavieira:
―A administração pública local, enquanto representante dos interesses das
tradicionais elites agrárias associadas à indústria canavieira, era vista
como o principal alvo na luta pela democratização das estruturas de poder

133
Cf. Cruz, 2003.

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174

no município. Em função deste processo de mobilização, as associações


de moradores que eram apenas duas na década de 1970, chegaram a
representar 45% do total das entidades associativas criadas durante a
década de 1980‖ (FONTE).(AZEREDO, op. cit. p. 48).
Criada em 1983, a Federação das Associações de Moradores e Amigos de Campos
(FAMAC) contribuiu para uma série de mobilizações na cidade que tiveram fortes
repercussões, como aquelas contra os aumentos abusivos do IPTU (op. cit.). No entanto,
AZEREDO (2008) a drástica diminuição de associações de moradores na década de 90
associada, neste trabalho, ao personagem de Anthony William Matheus de Oliveira:
―Neste sentido, um fator que merece destaque na conjuntura campista é a
ascensão política de Anthony William Matheus de Oliveira, o Garotinho,
cuja liderança no movimento denominado de ―Muda Campos‖ serviu
para que se tornasse prefeito do município. O Movimento ―Muda
Campos‖ articulava diferentes segmentos da sociedade civil organizada,
entre eles, o próprio movimento associativo de bairros representado pela
FAMAC. Para Franco (2006), as eleições municipais de 1988
constituíram um marco importante da história política de Campos dos
Goytacazes, na medida em que iniciaram um período no qual Anthony
Matheus, o Garotinho, se tornou o maior articulador ―da política
municipal. Esta posição foi mantida por 15 anos, onde Garotinho se
tornou praticamente imbatível eleitoralmente. No entanto, Franco postula
que as tradicionais práticas de dominação política, associadas à elite
agrária canavieira, foram substituídas a partir de 1988 ―por um enorme
clientelismo montado a partir da inviabilidade eleitoral das antigas formas
de dominação pessoal e do vultoso montante de recursos orçamentários
possível com o advento dos royalties do petróleo‖ (Franco, 2006:73).
Para Franco, este clientelismo pode ser identificado nas numerosas
contratações para a prestação de serviços públicos, através das
nomeações para os cargos em DAS (Cargo de Direção e
Assessoramento). Deste modo, é importante ressaltar que a retração na
atuação do movimento de bairros coincidiu com a ascensão política de
Anthony Garotinho na política local, podendo representar o momento
inicial de cooptação das principais lideranças comunitárias pela
administração pública‖ (AZEREDO, op. cit. 49)
O autor sugere uma retomada deste movimento de base no meado da década de
2000. Porém, as mobilizações das associações são atualmente pouco visíveis na cidade. No
âmbito de pesquisas sobre o tema das mobilizações coletivas e da construção de problemas
públicos em Campos, na década de 2000, desenvolvidas por membros do grupo Cidades,
espaços públicos e periferias (CEP28), observamos a presença de associações de
moradores em Cafés Comunitários ou no Conselho de Segurança Pública. Neste caso, seus
representantes abordavam problemas particulares do bairro (como os ―buracos nas ruas‖ ou
problema de iluminação do bairro), mas nunca tocavam em público o assunto das mortes
provocadas por conflitos de tráfico de drogas, mesmo nos bairros mais afetados por esta
forma de letalidade. Estas observações motivaram a proposta de analisar as experiências
públicas de moradores de Campos para compreender como lidam com a morte de
familiares no ambiente apresentado nesta seção. Se os canais de denúncias parecem (de
acordo com o que estamos observando) escassos, as conversas que realizamos com mães e
irmãos apontam para outros formatos de engajamentos dos familiares de vítimas de
Campos. Desta forma, propomos dar continuidade a este mapeamento na atual pesquisa,
mas focalizando-nos agora nas implicações da modalidade de reconhecimento da

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175

―sociabilidade violenta‖134 (MACHADO DA SILVA, 2010) no que tange às formas de


experimentar e vocalizar, por familiares, perdas de filhos, em contexto extra metropolitano.
A orientação do debate público sobre ―a violência em Campos‖ aponta para as formas
segundo as quais uma cidade do ―interior‖ (categoria que usualmente se distancia de
conflitos geralmente aproximados a conflitos metropolitanos) apresenta indicadores e
posições em ranking estaduais, nacionais e mundiais que competiria com índices de
criminalidade violenta, geralmente associados à grande cidade. Este é um dos motivos
pelos quais Campos dos Goytacazes torna-se, também, um bom caso para pensar..
Soares (op. Cit.) analisou os recursos emotivos mobilizados por gestores
públicos e ―usuários‖ do programa municipal de habitação Morar Feliz. O estudo desta
autora se focalizou nas diversas formas de justificar este programa por funcionários da
prefeitura da ―era Garotinho‖, que freqüentemente recorriam a uma gramática de
necessidade. Esta gramática e as orientações da prefeitura de alojar emergencialmente
moradores que residiam em ―áreas de risco‖ foram determinantes para selecionar os
beneficiários prioritários na primeira fase do programa Morar Feliz. Desta forma,
retomando o nome do programa, a autora procurou analisar os sentidos conferidos à
―felicidade‖ dentre outras emoções apresentadas em público que promovia esta política
habitacional e as formas de agradecimentos pelos seus moradores que podiam ser
divulgadas na imprensa regional. Em vez dos ―usuários‖ perceberem o acesso à moradia
como um ―direito social‖, retomando a categoria de certos funcionários da prefeitura,
tantas as demandas por habitação quanto o reconhecimento da política após a concessão da
casa de seus beneficiários eram marcados, nesta época, pela sensação de serem
―presenteados‖ pela prefeitura e, mais particularmente, por ―Rosinha‖ (apelido do prefeito
durante seus dois mandatos, de 2009 a 2017) ou por Deus. Frequentemente, a casa recém
adquirida era tida como ―dádiva ―pelos moradores e, na opinião pública, se multiplicavam
agradecimentos à ―Rosinha‖ e a ―Deus‖ (SOARES, 2014). A pesquisa foi concluída em
2014 no momento em que o ―assunto violência‖ relacionado com estes novos conjuntos
habitacionais aparecia ainda timidamente no debate público campista.
No entanto, observamos posteriormente importantes alterações no que tango às
formas de qualificar o programa Morar Feliz após a pesquisa de Soares. Por este motivo,
propusemos em seguida compreender os atuais enquadramentos cognitivos do ―problema
habitação na cidade‖ que correspondem aos momentos em que os conjuntos passaram a ser
associados ao ―recrudescimento da violência em Campos dos Goytacazes‖ (cujo auge,
situamos aproximada e temporalmente, nos três últimos anos seguindo as novas pautas que
surgiram no debate público da cidade). Aos poucos, estes lugares eram tidos como áreas de
concentração do tráfico de drogas, de assassinatos e, mais amplamente, da condensação da
criminalidade violenta. Os conflitos letais eram associados ao fato de que moradores
originários de ―áreas controladas por facções opostas‖ estavam doravante reunidos e
convivendo em mesmos conjuntos habitacionais ―do Morar Feliz‖. Em todos estes
momentos, as indignações de familiares de vítimas (compartilhadas por alguns atores
atuando em serviços públicos e com casos de mortes de jovens moradores de periferias
serem cotidianamente noticiados) era, em todos os momentos, ausente deste debate.

134
Sobre a noção de sociabilidade urbana e sua articulação com a linguagem da violência urbana, remeto-me
às contribuições de Machado da Silva (2010). Segundo este autor: (...)a partir do reconhecimento de uma
―sociabilidade violenta‖, a linguagem dos direitos deixou de articular de maneira unívoca o conflito social (e
os medos a ele associados), passando a competir com a linguagem da violência urbana, que tematiza os
sentimentos difusos de insegurança que pesam sobre as expectativas de prosseguimento pacífico das rotinas
diárias e geram a mentalidade de ―segurança apesar dos outros‖, no lugar da ―segurança com os outros‖, para
usar as conhecidas expressões de Bauman (2001, 2000) na sua interpretação do ―inimigo próximo‖.
(MACHADO DA SILVA, 2010, p. 288).

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Nas nossas conversas atuais, os familiares problematizam constantemente a


incapacidade ou a impossibilidade de vocalizar estas experiências de injustiça em Campos.
Desta forma, comparando os relatos de algumas mães de vítimas de violência policial no
quadro da pesquisa coordenada por Luiz Antonio Machado da Silva (2008) com aqueles
atualmente analisados, procuram-se compreender os contrastes entre diferentes formas de
engajamento de atores mobilizados em arenas de publicização ou os seus impedimentos.
Em resumo, estamos procurando descrever e interpretar momentos em que familiares
apresentam ao pesquisador os ―casos‖ de seus filhos (sem que estes se tornam ―públicos‖,
pelo menos na aceitação cívica do termo), questionando os modos de tematizar a
―violência urbana‖ no debate público do Rio de Janeiro. Porém, diferentemente do que foi
explorado anteriormente (FREIRE, 2010 e FREIRE, 2017), esses atores abordam a
problemática da não participação na arena de publicização mobilizada para denunciar
casos de vítimas de violência policial, de milicianos e de traficantes. Mesmo quando são
convidados a integrar coletivos de familiares de vítimas (os quais são localizados na região
metropolitana), não conseguem ou não podem se engajar na arena. Preferindo evitar a
política, no caso em análise, por serem frequentemente ameaçados e com dificuldade,
senão impossibilidade, de situar suas experiências de injustiça nesse horizonte de
publicização, se refugiam no silêncio e na resignação. ―Desgastados‖, ―exaustos‖ e, por
vezes, ―resignados‖ — tais são alguns dos termos que aparecem nos atuais relatos —, eles
descrevem a impossibilidade, a recusa ou a falta de força para se engajar na arena e, aquém
disso, de depositar uma queixa que iniciaria uma investigação policial. Alguns apresentam
suas incredulidades em relação ao tratamento de suas perdas no horizonte da ―justiça dos
homens‖. Outros, muitas vezes ameaçados de represálias, avaliam que seus filhos
(particularmente se estes moravam na rua, usavam drogas ou eram próximos de traficantes)
eram particularmente expostos ao risco de serem assassinados. Em dois casos, familiares
comentaram que a morte do filho já era anunciada quando este ainda estava vivo.
Nessas conversas com dez mães (duas dentre elas convidaram também outros
filhos, irmãos de vítimas para nossos encontros), observou-se ainda um ponto comum entre
esses relatos: em tais circunstâncias, a fé do familiar permite se defrontar com a ameaça do
esquecimento do filho assassinado, como se permitisse que a família não venha a
desmoronar e que a mãe se mantenha viva (nem que seja para cuidar dos outros filhos
vivos). Abordam momentos em que a participação política é rigorosamente evitada e onde
se coloca paralelamente a questão de pertencimento às comunidades religiosas. Se a
esperança na ―justiça dos homens‖ é (também) perdida, é em torno daquela depositada na
―justiça divina‖ que se desenham outras formas de participação, distantes da ―forma de
denúncia pública‖ (BOLTANSKI, 1990) ou de um regime de justificação (BOLTANSKI e
THÉVENOT, 1991). Exacerbam-se, então, intensos engajamentos em comunidades
pentecostais a partir dos quais se recompõem ―a dignidade‖ (termo recorrentemente
mobilizado nos relatos) da família e a do filho morto e se elaboram outras formas de
vocalizar a perda, não mais orientadas na direção da ―justiça dos homens‖.
Considerações Finais: os públicos religiosos: luto, experiência pública e fé
Como já anunciamos desde o início, o presente artigo procurou apresentar os
problemas de uma pesquisa recentemente iniciada, que nos pareceram importante publicar
mesmo em estágio tão inicial pelo fato de que diferentes questões que já emergem ao longo
da pesquisa de campo nos conduzem em retomar substantivamente questões de ordens
metodológicas, analíticas e teóricas.
Problematizar a violência urbana como linguagem remete a um recorte
socioantropológico fortemente marcado, no debate acadêmico do estado do Rio de Janeiro,
pelas contribuições de Luiz Antonio Machado da Silva e de Michel Misse. Apesar das

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diferenças substantivas entre essas contribuições, a problematização da violência urbana


como linguagem permite privilegiar a compreensão das representações sobre a violência
urbana e como estas incidem nos ordenamentos sociais da cidade do Rio de Janeiro, em
particular que se estende, na nossa proposta, ―ao interior‖, (mesmo considerando suas
variações e ressignificações em tal contexto).
O problema desta pesquisa ainda se elaborou a partir da proposta de Quéré e Terzi
(2015) e Diaz (op. cit.) denominaram de sociologia da experiência pública. Considerando o
―público‖ como uma forma e uma modalidade de experiência, esta sociologia se focaliza
no estudo empírico da organização prática de experiência (op. cit.). Como é também o caso
destes autores, inspiramo-nos ainda em diversas contribuições de Dewey (notadamente The
Public and Its Problems, 1927), porém considerando recentes críticas de pesquisadores em
relação a esta obra, que também dialogam com a antropologia capacitaria de Paul Ricoeur.
No plano da sociologia, alguns pesquisadores (como Breviglieri, 2017) observam certa
naturalização em outras pesquisas pragmatistas (mesmo eles se reconhecendo nesta
abordagem) aos modos de tomar como taken for granted um caminho do reconhecimento,
que dialogam com a obra de Dewey e de Goffman no que tange ao pressuposto das
competências ou capacidades dos atores. A principal crítica se focaliza nas formas como
vem sendo problematizado o agir em um horizonte de reconhecimento. Neste caso, ―o
público‖ emerge, se constitui e se organiza em torno de uma investigação a partir de uma
situação indeterminada possa exercer algum controle sobre transações cujas consequências
o afeta indiretamente. No entanto, diferentemente da ―sociologia dos problemas
públicos‖135, inspirada nas obras de Dewey e iniciada a partir das contribuições de Gusfield
(1891)136, frequentemente voltadas para os modos de perceber, identificar e problematizar
uma situação indeterminada, há alguns anos, diferentes autores vem questionando ―o
otimismo‖ desta sociologia. Com efeito, Quéré e Terzi (op. cit.), retomando observações
empíricas realizadas em grande maioria em contexto francês ou de países vizinhos,
avaliam que Dewey supervalorizou ―os choques‖ (cognitivos) que gerariam uma ruptura
nas rotinas dos atores e orientariam então a operação de definição ―situação problemática
em sua qualidade imediata‖, (isto é, ―embaralhada, conflituosa, desordenada‖ etc.‖,
Dewey, 1983 [1938]).
Retomando o trabalho de Stavo-Debauge (2012), estes autores ainda apontam para
o fato de que aqueles que sofrem deste ―choque‖ não seriam sempre atores capazes de
avaliar, em momentos turvos, a positividade gerada pelo estímulo gerado pela situação
problemática, isto é, de tornar-se ―problematizadores‖ e ―exploradores‖ (em alusão aos
modos segundo os quais Dewey percebe o público como uma ―comunidade de
exploradores‖). Stavo-Debauge (op. cit.) e os autores supracitados destacam as situações
em que os atores podem estar profundamente incapazes de se deparar com tal ―choque‖ e
de encontrarem então a energia que despertaria o início de uma investigação. Freire
(2013), analisando algumas de suas pesquisas empíricas a posteriori, ainda observa que a
percepção, identificação e problematização de uma situação tida como problemática não se
encerra necessariamente em um processo de publicização, mais ainda em, contexto
brasileiro no qual as modalidades de uso da força desmedida são profundos obstáculos para
muitas modalidades de engajamentos em mundos cívicos. Em diálogo com os trabalhos de
Stavo-Debauge (op. cit.) e de Breviglieri (2008), mas partindo de um contexto carioca e
fluminense da ação coletiva, a autora (2017) ainda observou que em situações de ação
coletiva marcadas pelo uso da força desmedida (Brodeur, 2004), muitos dos atores que
defendem causas em prol de moradores de favelas e de periferias se deparam com uma

135
Sobre a Sociologia dos problemas públicos, Cf., dentre outros, Cefaï e Joseph, 2002 e Cefaï, 2013.
136
Para uma apresentação da obra de Guslfied e suas articulações com problemas públicos em contexto
brasileiro, cf Freire, 2016.

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série de obstáculos e ameaças de represálias que tornam árduos um esforço associativo na


forma de uma arena ―pública‖ (por este motivo, a autora prefere se referir, nos casos
analisados por ela de ―arena de publicização‖, que permite dar conta que a problematização
coletiva da situação indeterminada é ela também, indeterminada). Neste sentido, a evitação
do tratamento de certos assuntos ou o exit (tal como Freire (2016) problematizou a partir
da obra de Hirshman) dos atores em compor estas arenas, como é o caso dos familiares de
Campos, precisam ser retomados a partir do trabalho de significação (Snow apud Freire,
2016) das pessoas e entremeado com uma análise do quadro de forças em jogo, e logo de
ameaças que pesam no processo de investigação, o que contribui para uma compreensão
sociológica de públicos – sem privilegiar a articulação entre formas cívicas (no sentido de
Boltanski e Thévenot, 1991) e ação coletiva.
Desta forma, Quéré e Terzi (op. cit.) observam que as situações indeterminadas não
resultam sempre na constituição de um público de investigadores, dispostos para
questionar e experimentar soluções inéditas. Afirmam que as situações indeterminadas
podem ainda atiçar temores, mais ainda quando são suscitados pela ameaça de um conflito
interno (o que também se articula com a proposta de Freire, mesmo que a autora não
problematize nestes termos a questão da ameaça, por ela partir das formas como os atores
definem, em situações de conversa, o que é a ameaça, mas sendo de todo modo vivenciada
como ―interna‖):
―Quando tal maneira de se deparar com problemas transformam-se em
rotina, a coletividade tende em se instalar em uma postura defensiva de
encolhimento de modo que os problemas que emergem, longe de
desestabilizá-la apenas conforta mais ainda os preconceitos os mais
enraizados e nos costumes mais rotineiros‖. (QUÉRÉ e TERZI, op. cit.
p.8, tradução nossa)
Estas observações conduzem os autores em focalizar a noção de situação
indeterminada no conjunto de ―dinâmicas experimentais‖ (op. cit. P. 17) durantes as quais
o que denominam de ―comunidades desestabilizadas‖ se converte paulatinamente em
público para reconfigurar instituições e engajar ―um trabalho de valiação (valiation) e de
avaliação‖ (idem, ibid.) – reorientando assim o problema de Dewey -, trabalho que não é
mais taken for granted. Desta forma, sustentam que o público é indissociável da
experiência de problematicidade cuja compreensão partiria da inteligibilidade endógena
das atividades pelos quais os atores organizam e geram as situações da vida cotidiana, em
suma da ―accoutability‖, tal como proposto por H. Garfinkel.
Ainda destacamos os modos segundos os quais Quéré e Terzi definem ―o público‖,
que – no nosso entendimento - parece escapar de muitas das tendências atuais em reduzir
esta noção a um plano estritamente institucional ou, mesmo quando problematizado por
autores que se situam em uma herança da obra de Dewey, de uma associação exclusiva do
termo com a ideia de ―comunidade de investigadores‖. Segundo Quéré e Terzi, ―(...) Toda
experiência, desde que seja inteligível, pode ser tida como pública no sentido de que ela
pode estruturar, encobrir uma forma inteligível e logo observada e descrita enquanto tal
apenas se ela incorpora mediações públicas‖ (op. cit., p. 20). Para fundamentar esta
afirmação, os autores recorrem a Wittgenstein que negava a possibilidade de existir uma
linguagem privada e lembram que o próprio Dewey preconizava que a observação de um
evento era necessariamente associada ―às características publicamente determinadas na
linguagem, algo ‗apreendido sob condições sociais e públicas‘ [DEWEY, 1943 3 1938,
apud QUÉRÉ; TERZI]‖ (op. cit. p. 21). Estas definições ainda dialogam com a obra de
Goffman que também propôs partir de uma noção particularmente elástica do ―público‖,
que se formaria no momento em que haveria uma relação de face a face entre pelo menos
dois atores corporalmente em co-presença, logo consciente da reciprocidade de sua

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visibilidade137. Desta forma, o que une os autores supracitados, é que esta sociologia ―da
experiência pública‖ toma como cerne modalidades de organização social em conjunto, o
que implica problematizar a ordem pública a partir do esforço de descrever modalidades de
coordenações do ponto de vista dos atores e de suas ―accountabilidade‖. No caso desta
pesquisa, como a copresença corporal é permeada por um pano de fundo de forças que
representam rotineiramente uma ameaça à vida, a plasticidade do que se define por
―público‖ nos parece representar uma condição da execução do projeto. Com efeito, nas
primeiras conversas exploratórias que realizamos, os relatos apontam para uma recusa dos
familiares com os quais conversamos de orientar suas ações, após as mortes dos filhos e/ou
irmãos, na direção de denúncia pública ou de participar da arena de publicização ―dos
familiares de vítimas‖. Em quase todos os casos das conversas desta atual pesquisa, mães
e/ou irmãos problematizaram os modos de lidar com suas perdas a partir de novos ou da
intensificação de investimentos (para aqueles que já participavam de igrejas pentecostais)
em comunidades pentecostais. Por este motivo, se seguirmos uma definição do ―público‖
elaborada a partir de eixos analíticos cívicos ou institucionais, ou de um plano sociológico
e normativamente definido, perderíamos a possibilidade de compreender como estes
engajamentos podem traduzir outras modalidades de engajamentos públicos do ponto de
vista de familiares, os quais, por sua vez, não se voltam para planos institucionais, de
denúncia pública ou de outras formas de ação coletiva ―tradicional‖ no sentido sociológico
convencional do termo (como seria o caso, por exemplo, de atores integrarem a arena de
publicização ou movimentos sociais contra os públicos mais fortes que problematizam ―a
violência urbana‖ e articulam tal assunto como combate aos ―bandidos‖).
Paralelamente na literatura pragmatista, a questão da incapacidade dos atores tende
a ser eventualmente associada à ideia de um encolhimento (repli) de si que pode
eventualmente se traduzir na busca de um fechamento comunitário (mas que talvez, na
nossa leitura, não exclua a dimensão eminentemente pública dos engajamentos
encolhidos). Por exemplo, Quéré e Terzi procuram demonstrar que dadas situações
indeterminadas e os modos de se deparar com problemas se convertem em rotina ―a
coletividade tende e se instalar em uma postura defensiva de encolhimento de modo que os
problemas que emergem, longe de desestabilizá-la, como vimos, a conforta mais ainda nos
seus preconceitos os mais enraizados e nos seus hábitos mais rotineiros‖ (op. cit., p. 8)
Neste sentido, ainda que estes autores propõem criticar a ideia que marca o
pragmatismo americano – filosófico e sociológico -, a questão da incapacidade do agir
parece convertida em uma modalidade de encolhimento do (s) ator (e) s – não sendo neste
caso um problema de inação, mas de momento em que o refúgio voltado para si parece
tornar-se uma outra capacidade mínima, diante da incapacidade de agir. Nestes termos,
como hipótese que procuramos explorar nas atuais e próximas etapas da nossa pesquisa e
em relação ao objeto e problema que propomos aqui, se o encolhimento não seria uma
versão interpretativa de crítica ao modelo de competência dos atores. Parece-nos também
que tal pressuposto declina também o convite de problematizar a emergência de públicos
religiosos, porém centrais em contexto brasileiro marcado por uma fluidez entre
engajamentos religiosos e engajamentos cívicos. Neste sentido, a ―justiça divina‖, quando
a voz não pode ser compartilhada com homens, pode apontar para sentidos bastante
impensados sobre outras formas de elaboração de públicos.

137
Se as definições do público deveriam partir do conjunto da obra Goffmaniana, observa-se que Goffman
define explicita e insistentemente o público como copresença corporal em Goffman (2011 [1967]). O autor
chama, no livro Ritual de a atenção para a centralidade de focalizar o olhar sociológico nos corpos em
copresença, pois esta é a característica a partir da qual é possível ler o problema da visibilidade recíproca e os
decorrentes ajustamentos dos atores às situações, problema que também atravessa o conjunto de sua obra.

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180

Por este motivo, procuramos atualmente compreender, a partir de nossas conversas


com familiares, os sentidos de justiça que correspondem com os engajamentos e/ou
encolhimentos em comunidades religiosas (católicas e, principalmente, evangélicas). Neste
momento da pesquisa, como já apresentamos, estamos observando que o engajamento e
encolhimento nas comunidades religiosas se repete nos relatos dos familiares pelo fato de
que a aproximação com a justiça divina é nitidamente um dos poucos caminhos que
permite lidar com uma perda insuportável e não denunciável por medo de ameaças e de
represálias. Parece-nos que tal experiência corresponde a um momento chave dos
processos de investigação que estamos tentando reconstituir, o da perda de ―fé na justiça
dos homens‖. Paralela e muito excepcionalmente, no caso de uma mãe com a qual uma das
autoras conversou, a impossibilidade da ―busca por justiça‖ é acompanhada de uma
resignação generalizada, que gerava também uma recusa de pertencer à comunidade
religiosa apesar de ter sido inúmeras vezes convidadas para participar de cultos
evangélicos e católicos. Neste caso, a vida desta mãe seguia com uma profunda indignação
no limite do dizível e do compartilhável, que não se convertia em um processo de
investigação pelo impacto da perda e da avaliação de que ―nada poderia ser feito‖.
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RESENHAS

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BARBOSA, Raoni Borges. Do Social ao Público: Uma etnografia do Espaço Público e dos Públicos a
partir de uma Sociologia Pragmatista. Sociabilidades Urbanas: Revista de Antropologia e Sociologia,
v1, n2, p. 189-195, julho de 2017. ISSN 2526-4702.
RESENHA
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Do Social ao Público: Uma etnografia do Espaço Público e dos Problemas


Públicos a partir de uma Sociologia Pragmatista

From the Social to the Public: ethnography of Public and Public Problems from a Pragmatist
Sociology

FREIRE, Jussara. Problemas públicos e mobilizações coletivas em Nova Iguaçu. Rio de


Janeiro: Garamond, 2016, p. 380.

Em sua recente obra, intitulada Problemas públicos e mobilizações coletivas em


Nova Iguaçu, Freire apresenta uma descrição densa (GEERTZ, 1989) da sua experiência
de quatro anos, de 2002 a 2005, na sociabilidade militante de esquerda em Nova Iguaçu, na
Baixada Fluminense. No interior de uma perspectiva pragmatista que combina as tradições
francesa, americana e alemã no debate sobre a ação e a construção social da realidade, a
autora buscou problematizar o processo coletivo de gênese, organização, publicização e
preservação de problemas sociais no espaço público e nas arenas públicas da sociabilidade
urbana etnografada, onde estes problemas sociais se tornam problemas públicos.
O interesse de Freire, com efeito, está justamente no processo de transformação
coletiva e transintencional do problema social em problema público. Operação complexa
que implica a mobilização de atores sociais em redes de solidariedade, cooperação,
disputas e discórdias. Operação que provoca, ainda, a mobilização de tramas simbólicas e
de dispositivos para a definição das situações de insatisfação, vergonha e estigma social em
agenda política e em projeto de intervenção no social.
Fortemente influenciada pelas leituras de Joseph, Cefaï, Boltanski, Latour,
Goffman e Machado, assim como pela convivência com nomes destacados da academia
brasileira, principalmente a do Rio de Janeiro, Freire mostra-se sensível para a observação
e análise do fenômeno urbano, - periférico e estigmatizado como violento, - enquanto lugar
de formação de arenas públicas, e de públicos, compostos por selves individuais e
coletivos em luta por reconhecimento social, político e cultural.
Joseph, na leitura de Freire, aparece como um filósofo do concreto que explora a
experiência citadina cotidiana, seus mundos sensíveis, seus problemas práticos
situacionalmente definidos, suas formas sociais cooperativas e conflituais, assim como
seus ambientes morais e de críticas. A experiência citadina, nesse sentido, é percebida a
partir dos públicos e das arenas públicas, estas últimas identificadas, na Baixada
Fluminense e em Nova Iguaçu, com base em metacategorias como Saúde, Saneamento
Básico, Mobilidade Urbana, Moradia e Cultura.
Freire enfatiza o processo de pesquisa como uma experiência de tensão entre o que
foi aprendido na academia francesa e a forma de aplicação desse aprendizado em um
campo de pesquisa no Brasil, onde as noções de público, de democracia e de organização
social da violência política e da violência urbana tiveram que ser percebidos para além de
uma perspectiva comparada. Com efeito, a autora apresenta ao leitor a sua experiência nas

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redes acadêmicas e de interlocuções entre Brasil e França, possibilitadas, entre outros, pelo
Programa Capes–Cofecub de análise de conflitos e instituições democráticas em uma
perspectiva comparada, em que Freire desenvolveu estudos de graduação e mestrado sobre
os usos sociais das praias de Ipanema e Copacabana e obre a participação popular nas
políticas urbanas na cidade do Rio de Janeiro.
Ainda sobre as suas redes de interlocuções e intercâmbios acadêmicos, Freire cita o
seu engajamento no LEMETRO – Laboratório de Etnografias Metropolitanas e no
CEVIS – Coletivo de Estudos sobre Violência e Sociabilidade, bem como o seu
doutoramento em sociologia na IUPERJ sob a orientação de Machado da Silva. Este
conjunto de experiências em etnografia urbana e em estudos das gramáticas da violência
política e da violência urbana no Rio de Janeiro é integrado por Freire com base nas noções
de Joseph e de Cefaï de público e de espaço público. Para Cefaï, na leitura de Freire, o
público é entendido como processo de publicização e como agenciamento de práticas de
associação, de cooperação e de comunicação, que pode ou não vir a institucionalizar-se;
enquanto que para Joseph, ainda nessa leitura pragmatista de Freire, o espaço público é
definido não normativamente como um mundo sensível, onde ocorrem processos de
―publicização citadina‖.
Nas palavras de Freire, a proposta sociológica de Joseph e, por extensão, de Cefaï,
pode ser sintetizada como segue:
De Habermas a Goffman, atravessado por Park, Mead e Tarde, dentre
outros, o espaço público tal como problematizado por Joseph se refere
tanto aos ajuntamentos/agrupamentos e relações de face a face, aos
pontos de contatos entre multidões, aos modos de acessá-lo, ao espaço de
debate (incluindo o desentendimento), a mobilidade e a circulação, aos
transtornos e embaraços, à atenção e ―cognição distribuída‖, à circulação
e os agentes (humanos e máquinas) que podem facilitar seu acesso ou
dificultá-lo, aos selves e outros generalizados. (FREIRE, 2016, p. 51).
Nesse sentido, a autora classifica a sua pesquisa como uma etnografia dos públicos,
e também como uma microssociologia próxima aos princípios teórico-metodológicos do
interacionismo simbólico. Pesquisa, portanto, pautada na observação e na descrição densa
das formas sociais de circulação de agentes humanos e não-humanos e dos processos de
comunicação ordinária dos mesmos, assim como da produção de lugares, com suas
respectivas cargas morais e emocionais, por e para estes agentes.
A proposta de etnografia dos públicos possibilita, assim, a crítica do horizonte
político da vida cotidiana a partir das verdades dos atores sociais que a produzem 138. Este
objetivo, enfaticamente expresso na pesquisa de Freire, se apresenta de forma acentuada
nos vinte e um relatos de vida que a autora produziu com personagens dos diversos
coletivos das arenas públicas da sociabilidade militante etnografada.
Estes relatos de vida, - ao permitirem o acesso ao vocabulário de motivos (MILLS,
1940)139 destes agentes em exercício de definição coletiva de problemas sociais, - também
significaram o estudo diacrônico das tramas de construção dos problemas sociais em
problemas públicos, dos motivos individuais em motivos coletivos, do sentimento de
138
Freire define a sua filiação metodológica com uma bricolagem de princípios e procedimentos pragmatistas,
como o Situacionismo Metodológico (JOSEPH) e sua Etnografia das Situações, a Descrição Densa
(GEERTZ), a Observação Participante (FOOTE WHYTE), a Observação Flutuante (PÉTONNET) e a
Etnografia dos Públicos (CEFAÏ, 2013). Boltanski e Boltanski e Thévenot, com suas análises das
competências de atores sociais em ações cotidianas; Garfinkel, com sua noção de ator competente; Ricoeur,
com sua Antropologia das capacidades humanas; o Pragmatismo americano de James, Dewey, Peirce, Mead;
o interacionismo e o interacionismo-simbólico da Escola de Chicago, representados por Becker, Goffman,
Gusfield, Kitsuse e Spector, compõem ainda influências marcantes na filiação metodológica de Freire.
139
Ver a tradução do artigo de Mills (1940) na RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção.

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pertença à cidade, do engajamento político e do investimento na definição e na resolução


das situações problemáticas em torno das quais se organizam as esferas públicas. A
complementação metodológica dos relatos de vida foi feita mediante análise documental
dos arquivos e dos objetos dos coletivos de sociabilidade militante pesquisados, de modo a
acessar os sentidos de justiça que orientavam os quadros cognitivos e, por conseguinte, o
trabalho de definição de situações de atores competentes.
A pesquisa de Freire, com efeito, realizou, ainda, uma proposta de observação
participante de tempo longo: quatro anos no total. Durante a estadia entre vários coletivos
da sociabilidade militante de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, a autora destaca os
dados etnografados nas sedes do MAB - Federação de Associação de Moradores de Nova
Iguaçu, do PT, PCdoB, PSB, PSOL e de Movimentos Políticos e Culturais da cidade,
assim como da convivência com militantes profissionais e ocasionais em espaços de
cultura e lazer popular.
A análise do trabalho de definição de situações problemáticas e da trama de
construção de problemas públicos, no âmbito da sociabilidade militante, revelou um forte
sentimento de pertença e de necessidade de reconhecimento como montagens morais e
emocionais corriqueiras entre os atores sociais ligados aos movimentos político-culturais e
entre os moradores da Baixada Fluminense, em geral. O ressentimento, - enquanto
experiência cotidiana de acúmulo de humilhações e de situações de constrangimento e de
vergonha, - foi também percebido por Freire como um dos elementos motrizes nos
processos de definição da situação.
A etnografia dos públicos de Freire, nesse sentido, provoca o leitor desde o início
da obra, quando a autora explora cenas de descaso do Estado com a mobilidade urbana,
com o saneamento básico, com a violência política e urbana expressa na falência da
Segurança Pública, com a precariedade da Saúde Pública e com a seletividade da Justiça. A
lama nas ruas em dias de chuva torrencial, o hábito de usar sacos plásticos para proteger os
sapatos e as barras das calças, a proteção das portas frontais das casas em forma de barra
para que a lama não adentre as residências, o ônibus lotado, os engarrafamentos, a
violência física e simbólica contra a mulher, o medo da polícia e do olhar esquivo,
debochado ou chocado do morador da Zona Sul, estes e outros recortes do cotidiano do
morador ordinário de Nova Iguaçu são apresentando por Freire como matéria-prima para
as narrativas sobre a Baixada Fluminense.
A construção de narrativas públicas e dramáticas de moralização e ofensiva
civilizatória sobre a Baixada, assim como as definições da situação e dos problemas sociais
para a reivindicação do reconhecimento do lugar como moralmente digno e culturalmente
diverso e rico, ambos estes processos utilizam-se dos mesmos elementos corriqueiros de
tensão, vergonha, humilhação e ressentimento para a desculpa de si e a acusação do outro.
Freire, nesse sentido, buscou explorar as zonas frontais, laterais e traseiras dos públicos e
das arenas públicas da sociabilidade militante e do discurso estigmatizante que vem da
Zona Sul para a Baixada Fluminense.
As situações liminares, cinzentas e suspensas do ato público, quando este, por
exemplo, mobiliza estratégias de segregação de platéias, de cenários e de informações
sensíveis, são abordadas no contexto de uma gramática política condizente com os
dispositivos de ordem pública instituídos com a Constituição de 1988. Novas formas de
apresentação, de vocalização e de apresentação de si foram instituídas no jogo
democrático, repercutindo como modos de ajustamento e de justificação da ação coletiva
aos quadros públicos atuais, em que reivindicações, sentidos de justiça e competências
políticas são recursos de imposição de condutas e de narrativas em fóruns híbridos de
sociabilidade militante e sociabilidade urbana mais ampla, alcançando públicos e
dispositivos de publicização (jornal, passeata, ato público) de grandes proporções.

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A incerteza e a vulnerabilidade interacional marcam, portanto o ato público, cujos


sentidos são móveis e podem mesmo surpreender os atores sociais que o engendraram.
Freire discorre sobre as vulnerabilidades interacionais e institucionais como
vulnerabilidades inerentes às experiências urbanas dos citadinos e como vulnerabilidades
da ordem pública. Nesse sentido, destaca o fato de os problemas sociais serem postos
reiteradamente no espaço público por atores sociais competentes, mas não encontrarem
respostas socialmente satisfatórias mesmo quando são transformados em problemas
políticos e geram agendas políticas de intervenção e de ofensiva civilizatória.
No entender de Freire, a vulnerabilidade e a incerteza do ato público resultam da
pluralidade de intereses e de estratégias de integração e de vocalização dos mesmos.
[...] trata-se de compreender como o espaço público se constrói no curso
de um intenso trabalho de problematização coletiva e de definição de
assuntos prioritários a partir de diferentes quadros cognitivos ou morais
que modelam um mundo público marcado por sequencias próximas ao
longo das quais a tomada de voz desse tipo de coletivo não é taken for
granted. (FREIRE, 2016, p. 63)
O objetivo da pesquisa, neste diapasão, não foi o de buscar uma racionalidade
instrumental na produção de problemas sociais e de sua consequente transformação em
problema público, mas o de descrever públicos em situação, isto é, a trama de problemas
públicos nas arenas públicas etnografadas a partir da análise dos repertórios de uma
gramática política e das competências dos atores sociais em jogo nas sociabilidades
militantes. O que, por sua vez, implica em analisar as formas de vocalização dos públicos
estudados em suas trajetórias de luta por reconhecimento. De acordo com Freire:
O objeto deste estudo diz respeito à constituição de públicos, que se
formam (e podendo se evaporar repentinamente) em torno de assuntos
avaliados como problemáticos e prioritários por fóruns híbridos.
Proponho observar a transformação de quaisquer agrupamentos em
públicos, como modalidade de forma social (SIMMEL, 1971) de
comunicação regular entre integrantes de uma corrente contínua de
informações e de excitações contínuas (TARDE, 1901). (FREIRE, 2016,
p. 63)
Não se trata de um estudo sobre a cidade de Nova Iguaçu, ou sobre a Baixada
Fluminense, ou de um estudo sobre movimentos sociais. A pretensão tampouco foi a de um
estudo sobre a racionalidade da ação coletiva ou de sua vinculação com representações
coletivas ou arranjos institucionais, mas, reitera Freire, de um estudo da ordem pública em
processo intermitente de autoconstrução.
A ordem pública é entendia como o palco interacional de atores sociais
competentes, no sentido garfinkeliano, de modo que a emergência dos públicos é
compreendida a partir dos sentidos de justiça que estes atores sociais competentes,
individuais e coletivos, constroem na dinâmica de intercâmbios materiais e simbólicos, na
medida em que definem as situações e as enquadram moralmente como problemáticas.
Como pessoas se encontram e arenas públicas se formam para definir situações
problemáticas, publicizar suas vozes e reivindicar soluções políticas? Como se dá o
processo de publicização de vozes de coletivos de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense?
Como se formam os quadros cognitivos e morais dos atores competentes nas situações
problemáticas que eles assim definem? Como se dá a apropriação de problemas sociais no
espaço público, onde assumem, de fato, a conotação de espaço público?
Estas questões complexas e de grande densidade teórico-metodológica orientaram o
deslocamento de Freire em campo. A sua condição de estrangeirice, - de ator social que
não dispõe de mapas mentais estabelecidos sobre a cidade e sobre seus moradores, - de

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certa forma lhe empurrou para a vida social de pesquisador em tempo integral, munido de
diário de campo e em constante produção de bancos de imagens, de gravações de áudio e
vídeo e de acompanhamento das lideranças dos coletivos de sociabilidade militante.
Este exercício frenético de pesquisar e de acessar o sentido íntimo da sociabilidade
militante etnografada significou o afastamento de redes de sociabilidade não ligadas à
pesquisa, assim como uma sinergia poderosa na construção recíproca de afetos.
Constrangimentos e embaraços na interface entre vida privada e vida pública de
pesquisador, com isso, foram inevitáveis, ainda mais em um campo de pesquisa marcado
por múltiplos interesses e por arenas públicas fragmentadas.
O papel do pesquisador, nesse sentido, foi instrumentalizado pelos atores sociais
que se buscava observar e analisar. Nas palavras de Freire:
[...] a aceitabilidade da presença do etnógrafo, a atenção que lhe é dada e
a sua inserção em sociabilidades de seu campo podem ser também
interpretadas como uma das competências dos atores. [...] Minha
presença podia ser lida ora como meio de denunciar ―o que acontece na
Baixada‖ no debate público, ora como meio de contribuir para a
organização e divulgação da memória e causas do MAB, ora como autora
de um estudo que poderia permitir facilitar a denúncia coletiva dos
problemas da cidade ou ―assessorar o movimento‖.
[...] Esse papel certamente se relacionava com a possibilidade de
contribuir par a publicização dessas vozes no debate público, no espaço
acadêmico [...]. (FREIRE, 2016, p.70-71).
Freire organizou a presente obra em um capítulo introdutório, um capítulo teórico,
dois capítulos de descrição densa e um breve capítulo de considerações finais. As
ferramentas teóricas da autora são apresentadas no capítulo II – Problemas públicos,
pragmatismo e a guinada “pragmática” em sociologia: o recorte analítico da pesquisa,
em que discorre sobre a sua leitura de escolas e tradições sociológicas e antropológicas, e
da filosofia social, que convergem em levar a sério as competências dos atores ordinários e
de descrever e interpretar as situações do ponto de vista dos actantes, ou seja, como estes
definem a situação, como mobilizam sentidos de justiça e modos de justificar.
Neste capítulo, Freire precisa os conceitos de situação, de dispositivo, de problemas
sociais, de ação pública, de arenas públicas, de ordem pública e de problemas públicos
como operações morais e cognitivas publicizadas e vocalizadas de atores sociais
competentes. As sociologias da ação (sociologia das operações críticas, sociologia dos
problemas públicos, sociologia pragmatista) e a descrição densa, argumenta Freire,
permitem ao observador analisar a mobilização de competências e capacidades de atores
sociais críticos e reflexivos para a construção de arenas públicas, onde problemas sociais
são vocalizados e tornam-se problemas públicos.
Freire, em sua leitura de Gusfield sobre a distinção do conceito de social do
conceito de público, enfatiza que o problema definido situacionalmente percorre uma
carreira de dramatização pública com base em uma narrativa de mudança e transformação
do social. O problema público implica em uma dramatização dos fatos tidos como
problemáticos para a justificação da seleção e da prioridade no espaço público e para a
opinião pública.
Nas palavras de Freire:
Os protagonistas das arenas públicas são ―dramatizadores‖ e avaliadores
do assunto considerado problemático por eles em cada sequencia da
elaboração do problema público. Um problema público apresenta
qualidades dramáticas, cerimoniais e ritualísticas que constituem o foco
da observação dos problemas públicos de Gusfield.

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[...] Gusfield se concentra nas performances, competências, visibilidade e


encenações de arenas públicas. O que importa não é tanto a veracidade
dos fatos, mas as performances dramatúrgicas de pessoas ou de arenas
públicas de modo que um problema se torne um drama público, a ser
tratado com prioridade. (FREIRE, 2016, p. 102-103).
Não se trata, com efeito, em sua pesquisa, de uma sociologia das representações
sociais, de modo que o interesse do pesquisador se situa em enfatizar as definições da
situação e a formação de públicos, de arenas públicas e de problemas públicos por parte de
agentes humanos e não humanos em interação. Esta perspectiva teórico-metodológica
refuta, assim, a noção culturalista e determinista do ator social como cultural dope.
No capítulo III – Ser da “Baixada Fluminense”: de uma identidade social a uma
gramática política, Freire faz uma análise das classificações morais sobre a ―Baixada
Fluminense‖ quando da sua mobilização nas arenas públicas, destacando os sentidos de
justiça dos atores sociais militantes. Apresenta, com isso, uma análise da identidade social
e do sentimento de pertença ―Ser da Baixada‖ e de como estes elementos compõem uma
gramática política e recursos de ação coletiva e de formação de problemas sociais e de
problemas públicos.
A Baixada Fluminense é definida como uma ―mega-área moral‖ de forte conotação
negativa, onde pesa o estigma da favela e onde o olhar estigmatizante da Zona Sul é
encarado com ironia, cinismo e desprezo como formas de lidar com a visão negativa de si
no olhar do outro. As reações emocionais e morais do morador da Zona Sul em relação à
Baixada Fluminense, e à cidade de Nova Iguaçu, são de piadas e deboches, de ficar
horrorizado e com medo, ou de mostrar desolação e compaixão.
A associação do lugar Baixada, por parte de Zona Sul, à breguice, ao ser cafona, ao
ser povão e outros marcadores estéticos, domésticos e linguísticos, envergonha e humilha o
morador da Baixada, que organiza a sua vida na passagem contínua de mudança de um
mundo social para outro (da Baixada à Zona Sul), freqüentando a casa e os espaços de
moradia do outro. A partir desta experiência, em que as distâncias sociais convivem com as
proximidades físicas, o morador da Baixada passa a perceber-se e valorar-se negativamente
a partir de um código binário que qualifica dois modelos distintos de humanidade.
O projeto de morar bem, de ser reconhecido em seus direitos trabalhistas, sociais e
civis, por exemplo, tensiona a relação entre empregada doméstica e patroa, situada em um
regime de proximidade e de familiaridade, mas de abismos sociais impossíveis de serem
desconsiderados. As relações cotidianas são perpassadas por vulnerabilidades interacionais
e pelo choque entre as duas regiões morais, Baixada E Zona Sul, e seus respectivos
personagens, isolados, por exemplo, por espaços de higiene e por noções de sujeira e
perigo.
Nas palavras de Freire:
[...] o estranho da casa é aquele que não possui a gramática (discursiva,
gestual e de manuseio) dos objetos domésticos ou, mais simplesmente,
que não conhece suas regras. Se, no espaço público, somos mais
tolerantes em relação aos acidentes gramaticais (BREVIGLIERI, op. cit.),
pelas próprias características do regime de proximidade a gramática da
casa é quase sagrada. A situação do objeto aqui descrito aponta também
para o fato de que o uso do objeto na casa é muito diferente em relação ao
projeto do morar. Para esta empregada, como para muitas outras pessoas
que conheci em Nova Iguaçu, o objeto da casa ―tem que ser prático‖, o
seu teor estético existe, obviamente, mas seu principal critério apreciativo
é a praticidade. (FREIRE, 2016, p.145-146).

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Os discursos sobre a baixada, com efeito, enfatizam categorias morais degradadas, como
cidade-dormitório, lugar violento e lugar brega e cafona.
No capítulo IV – Arenas públicas e mobilizações coletivas em Nova Iguaçu, Freire
faz a descrição de algumas arenas públicas da Baixada Fluminense a partir de seus
personagens e de seus modos de problematização das situações corriqueiras. Apresenta,
então, os vinte e relatos de vida e o diário de campo de diversas reuniões de coletivas
frequentados, conectando-os com as arenas públicas e os públicos ali constituídos.
Nas considerações finais, em que Freire traz ao leitor uma experiência de revisita ao
campo de pesquisa, passados quase dez anos, a autora constou de um movimento de
eclipse ou ocultação de algumas arenas públicas presentes na primeira fase da pesquisa,
entre os anos de 2003 e de 2005, e a emergência de outras. Em síntese, Freire lança a
hipótese de que uma sociabilidade militante fortemente politizada e que disputava o Estado
foi substituída por uma sociabilidade militante mais ligada à ―causa da Cultura‖.
Muito embora persista, na Baixada Fluminense e em Nova Iguaçu, o problema da
vulnerabilidade da experiência política, - própria de uma sociabilidade urbana
estigmatizada, - e o mapa moral da Baixada Fluminense, para fora, seja, ainda, de pobreza,
crime e violência, a sociabilidade militante parece ter abandonado a estratégia de contrapor
esse discurso estigmatizante com o discurso da riqueza e diversidade cultural da Baixada.
Na nova fase da pesquisa, conclui Freire, despontam públicos e arenas públicas estético-
artístico-culturais, como o hip hop os saraus periféricos, que buscam denunciar a violência
urbana e a violência política que enfraquecem a Baixada a partir do argumento da Baixada
como lugar estético, assumindo, contudo, que o problema da Baixada se cruza com o
problema da favela, a ser resolvido pelas Unidades de Polícia Pacificadora.

Raoni Borges Barbosa


Referências
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos
Editora, 1989.
WRIGHT MILLS, C. Ações situadas e vocabulários de motivos. RBSE – Revista
Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 15, n. 44, p. 10-20, 2016.

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PONTES, Williane Juvêncio. Etnografias urbanas sobre presença e medos na cidade: Uma resenha.
Sociabilidades Urbanas: Revista de Antropologia e Sociologia, v1, n2, p. 197-199, julho de 2017. ISSN
2526-4702.
RESENHA
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

Etnografias urbanas sobre pertença e medos na cidade: Uma resenha


Urban ethnographies about belonging and fears in the city: A review

KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Etnografias Urbanas sobre Pertença e Medos na


Cidade. Estudos em Antropologia das Emoções. Coleção Cadernos do GREM n. 11.
Recife: Bagaço, João Pessoa: Edições GREM, 2017.

Estudos em Antropologia das Emoções é o subtítulo do número recém-publicado da


Coleção Cadernos do GREM, Etnografias Urbanas sobre Pertença e Medos na Cidade, de
autoria do antropólogo Mauro Koury. O livro compreende estudos desenvolvidos na cidade
de João Pessoa-PB desde os anos de 1980 até a atualidade, comportando resultados de 37
anos de pesquisa, discutidos dentro de um novo olhar, mas que mantém a essência do
trabalho original, realizando balanços comparativos em recortes mais recentes. Neste livro,
Koury constrói um mosaico científico da cidade de João Pessoa através de etnografias
urbanas que discutem as configurações da cultura emotiva, da pertença, dos medos e da
moralidade a partir do imaginário do homem comum urbano. Os capítulos que dão corpo a
este livro – que discutem a pertença, o homem comum pobre, o controle social, a
fotografia, o medo, os medos corriqueiros, os códigos morais, a intensa pessoalidade, as
justificativas morais, as formas de sociabilidade e outros – cooperam para a construção de
um mosaico científico de João Pessoa, isto é, um olhar específico de discussão e
compreensão da cidade enquanto sociabilidades urbanas, a partir da perspectiva das
Emoções.
Neste livro se discute, principalmente, os conceitos de pertença e medos, enquanto
medos corriqueiros, que são analisados dentro do contexto mais amplo da cultura emotiva.
Cultura emotiva esta que se baseia sobre as emoções no jogo situacional e sua influência
na prática comum da troca relacional, individual ou grupal, que gera entendimentos,
compartilhamentos e situações determinadas, mas que são passíveis de atualização e
reconstrução no jogo interacional. A pertença é o elemento básico de discussão, sendo
relacionada com os medos e os medos corriqueiros ―como processos de interação cotidiana
e de inserção dos moradores à cidade, ao bairro, à vizinhança e a si próprio‖ (p. 7). É
dentro desta perspectiva que se posicionam os 09 capítulos do livro, onde Koury analisa a
vivência cotidiana do homem comum urbano e o seu imaginário social, em que configura o
sentimento de amor e de desamor à cidade. Koury discute o sentido de pertencer, a noção
de ser e estar em mundos sociais de um lugar específico, onde se processa a elaboração da
compreensão do eu enquanto nós. O lugar é tomado como elemento intrínseco de pertença,
que constitui o local enraizado na pessoa enquanto cultura emotiva. Dentro dessa discussão
se coloca a problemática de como pensar a pertença em uma sociabilidade moderna, onde
surge o temor da fragmentação, ocasionado pela transformação do lugar público, que deixa
de ser um lugar comum dos homens e passa a ser o lugar das coisas e de sua circulação.

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Em que a crescente atomização do mundo e do homem parece gerar um sentimento


melancólico e de desconhecimento na relação do homem com o seu lugar.
O processo de crescimento urbano modificou os hábitos e costumes da cidade, se
processando uma tensão e inadequação nas formas de sociabilidade, que mesclam ele-
mentos tradicionais e modernos. De acordo com o autor, este crescimento urbano é re-
sultado da preocupação com o ideário de progresso e maquiamento urbano, que se inici-
aram na década de 1920 e tiveram seu ápice a partir dos anos de 1970.
Analisando as fotografias e as crônicas de Walfredo Rodriguez, Koury discute
sobre a glorificação do progresso, permeada pelo olhar nostálgico de Rodriguez sobre a
cidade fotografada, e sobre os sentidos de provar o espaço, este, por sua vez, tomado como
patrimônio, onde a cidade só pertence a alguns. De acordo com o autor, Rodriguez
apresenta o processo de reforma urbanística como visão de progresso e embelezamento,
com códigos de valorização do patrimônio, das tradições e das normas locais, em que o
traçado urbano e a beleza da cidade são capturados na fotografia como paisagem
humanizada. O progresso, assim, é sentido e buscado como uma extensão da tradição, isto
é, como uma modernização conservadora. Nas lentes de Rodriguez a pobreza só aparece
como tipos populares que caracterizam o aspecto pitoresco do urbano em transformação,
onde a população se restringe às figuras da elite local. Há uma ausência do homem comum
no roteiro sentimental da cidade que o fotógrafo Rodriguez elabora, de modo a construir,
como salienta Koury, um retrato conservador da Parahyba. O homem comum pobre, assim,
aquele homem e mulher livre, que vive na cidade, despossuído de bens e proprietário de
sua força de trabalho (KOURY, 2017), é visto no discurso modernizador enquanto figura a
ser controlada e disciplinada. O trabalho aparece como o elemento disciplinador, sendo por
meio dele permitido que o homem comum pobre ―integre‖ o quadro social, pois sem o
trabalho este homem é visto como um sujeito perigoso à composição social. Koury indica
que o processo de expansão e ocupação da cidade se deu através do controle, da submissão
eda exclusão do homem comum pobre. Neste sentido, modernização da cidade acompanha
os interesses e a manutenção da oligarquia no poder. O discurso modernizador e o ideal de
progresso que fomentaram o processo de crescimento urbano da cidade influenciaram as
formas de sociabilidade, os modos e estilos de vida dos moradores e os hábitos e costumes
da cidade. Esta nova configuração que surgecom as transformações urbanas provoca uma
tensão no sentido de pertencer e fomenta o signo do medo do outro.
Apesar de possuir redes relacionais de intensa pessoalidade, Koury salienta que o
crescimento da cidade fomenta relações cada vez mais individualizadas e baseadas no
medo do outro estranho que habita a cidade. O medo, assim, faz parte do cotidiano do
imaginário da cidade, de modo a provocar desconfiança, conflito e estranhamento que
reflete no processo de mudança de hábitos. Mas que, por outro lado, também provoca
proximidade e semelhança, mesclando o moderno e o tradicional no jogo interacional. O
autor analisa os medos e medos corriqueiros como temores imaginários e reais que são
vivenciados e propagados, individual ou coletivamente, pelo homem comum urbano,
interferindo no seu cotidiano. Neste sentido, Koury identifica o medo expresso pelos
habitantes da cidade e o classifica em três categorias: a falta de fé, a falta de confiança e
receio de errar e a falta de segurança pessoal ou familiar. Os principais medos informados
para esta categorização foram os de violência, de instabilidade do futuro, de solidão e
envelhecimento, dos castigos de Deus e de deslealdade. Sendo a violência o principal
medo sentido pelos moradores da cidade.
A violência enquanto expressão do que se sente medo é apontada por Koury como
referente à fragmentação dos laços comunitários na cidade. Nesse processo de
modernização o sentimento da cidade, como um todo, é de fragmentação das relações
sociais, onde o medo parece construir uma cultura de fechamento ao outro, que passa a ser

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olhado como estranho e sob suspeita. É nesta perspectiva que o autor discute a questão da
pertença, das redes de solidariedade em processo de fragmentação e dos medos sociais
cotidianos. Nos dois capítulos o autor realiza uma análise sobre solidariedade, pertença,
medos corriqueiros e intensa pessoalidade em dois bairros populares da cidade de João
Pessoa: o Varadouro e o Varjão/Rangel. Ambos estigmatizados no imaginário da cidade
como bairros violentos e perigosos. O discurso de justificativa para salvaguardar a face dos
moradores e do bairro paira sobre o outro, o estranho, que traz os temores para dentro do
bairro.
No bairro do Varadouro Koury analisa as maneiras de superação do medo do outro
e as estratégias de solidariedade. Apesar dos moradores indicarem o bairro como um lugar
bom de viver, o discurso também é envolto de um saudosismo em relação ao passado do
bairro, hoje em decadência, gerando um sentimento de perda. Este processo de decadência
denunciado pelos moradores é, ao mesmo tempo, o elemento que possibilita a permanência
destes no bairro. Tendo em visto que é uma área marginalidade, mas de grande valor na
cidade, onde uma revitalização do lugar promoveria uma retirada destes moradores. No
bairro do Varjão/Rangel, considerado um dos 10 bairros mais violentos da cidade, o autor
discute as configurações de justificativas e acusações no bairro através da sua dupla
nomenclatura: Varjão (oficial) – que está associado a violência, sendo o ambiente do outro,
aqueles considerados engraçadinhos e marginais – e Rangel (oficioso) – adotado pelos
moradores na busca de se livrar do estigma da cidade, sendo um lugar tranquilo, familiar e
de trabalhares. É analisada, assim, a tentativa de salvar a face do bairro e dos seus
moradores, o que faz com que estes moradores construam estigmas de lugares e indivíduos
dentro do bairro.
A violência urbana se apresenta como a tônica dos discursos na e sobre a cidade,
principalmente pela mídia local, que contribui na construção do imaginário social do medo
e do sentimento de descriminação e exclusão social nos moradores dos bairros
estigmatizados por esse imaginário da cidade. Processa-se uma vivência cotidiana no ato
de amor e de desamor à cidade, fomentando o sentimento ambivalente da pertença. Koury
compreende que ―pertencer é uma noção vivida pela tensão entre o ontem e o hoje, entre o
eu e o outro, entre a solidariedade e o medo e entre o si situar e ver e hierarquizar os outros
e ser por eles situados‖ (p. 150). O autor apresenta a cidade de João Pessoa em processo
contínuo de modernização e crescimento urbano, que mescla elementos tradicionais e
modernos nas suas formas de sociabilidade. Aspectos que causam uma transformação nos
hábitos e costumes da cidade, que passa, aos poucos, de um lugar de reconhecimento para
um lugar de estranhamento e evitação do outro. A cidade é analisada enquanto polifonia,
como espaço imaginado e do imaginário, compreendida a partir do seu aspecto relacional.
A análise de Koury aponta para as várias visões que existem sobre a cidade, onde
esses olhares são definidos a partir do lugar de fala, da experiência e da realidade social de
cada indivíduo. Neste sentido a cidade de João Pessoa é constituída por um conjunto
diverso de habitantes que vivem a cidade de diferentes maneiras, seja de forma semelhante,
distinta ou até antagônica. Esta resenha discutiu o livro Etnografias Urbanas sobre
Pertença e Medos na Cidade conforme uma elaboração possível do mosaico científico que
este estudo permite construir sobre a cidade, na ótica da pertença e dos medos/medos
corriqueiros, a partir da relação entre emoções, cultura e sociedade. Este livro se apresenta
como um importante instrumento para o estudo e a compreensão da cidade de João Pessoa,
sendo uma leitura significativa para dialogar e construir problemáticas de pesquisa, bem
como para inserção no campo da Antropologia das Emoções e da Antropologia Urbana.

Williane Juvêncio Pontes

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SOBRE OS AUTORES
Ângelo Moreira Pereira
Graduado em Ciências Sociais, UNICV - Universidade Pública de Cabo Verde. E-Mail:
angelo.pereiracj@gmail.com.
Diogo da Cruz Ferreira
Doutorando em Políticas Sociais do PPGPS/UENF. Membro do Grupo de Pesquisa
Cidades, Espaços Públicos e Periferias (CEP28). E-Mail: cruzdiogo@yahoo.com.br.
Ernest W. Burgess
Nascido em 1886 e falecido em 1966, Burgess destacou-se como um dos clássicos da
terceira geração Escola de Chicago. Seus estudos em Sociologia e Antropologia Urbana
destacam uma preocupação com os mundos sociais da Metrópole Chicago em processo de
urbanização e de modernização.
Gabriela Vergara
Doutora em Ciências Sociais. Pesquisadora Adjunta do CONICET na Universidad
Nacional de Villa María, Córdoba, Argentina (CONICET-UNVM). Pesquisadora do CIES
(Centro de Investigaciones y Estudios Sociológicos) e do GESSYCO (Grupo de Estudios
Sociales sobre Subjetividades y Conflicto) da Universidad Nacional de Villa María
(Córdoba, Argentina), e Docente da UCES (Universidad de Ciencias Empresariales y
Sociales), Sede Rafaela (província de Santa Fe, Argentina). E-Mail:
gabivergaramattar@gmail.com.
Ignacio Pellón
Mestrando em Trabalho Social com ênfase em Intervenção Social (FCS-UNC), Diplomado
Superior em Desenvolvimento Local, Territorial e Economia Social (FLACSO, Argentina)
e Licenciado en Comércio Internacional (Universidad Siglo 21). Integrante do Programa
de Estudos sobre Ação Coletiva e Conflicto Social (CIECS - CONICET y UNC).
Pesquisador do Centro de Investigaciones y Estudios Sociológicos (CIES) e membro da
equipe editorial de Onteaiken. E-Mail: pellonignacio@gmail.com.
Jesus Marmanillo
Doutor em Sociologia pelo PPGS da Universidade Federal da Paraíba. Professor na
Universidade Federal do Maranhão. E-Mail: jesusmarmanillo@hotmail.com.
José Rogério Lopes
Doutor em Ciências Sociais (PUC-SP), Professor dos PPGs em Ciências Sociais Unisinos,
RS, e em Desenvolvimento Regional da UFT, TO. Bolsista em Produtividade em Pesquisa
CNPq. E-Mail: jrlopes@unisinos.br.
Jussara Freire
Professora do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense.
Professora permanente do Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Regional,
Ambiente e Políticas Públicas – PPGDAP /UFF. Professora colaboradora do Programa de
Pós Graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte-Fluminense Darcy
Ribeiro (PPGPS/UENF). Membro do Coletivo de Estudos sobre violência e sociabilidade

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(CEVIS). Coordenadora do Grupo de Pesquisa Cidades, Espaços Públicos e Periferias


(CEP28). E-Mail: jf@id.uff.br.
Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Professor Doutor do PPGA da Universidade Federal da Paraíba. Coordenador do GREM –
Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções. Editor da RBSE – Revista
Brasileira de Sociologia da Emoção. Editor da Sociabilidades Urbanas – Revista de
Antropologia e Sociologia. Editor da Série de Livros Cadernos do GREM, na mesma
Universidade. E-Mail: maurokoury@gmail.com.
Pedro Lisdero
Graduado em Sociologia, (Universidad Siglo XXI, Argentina). Doutor em Estudos Sociais
da América Latina, com ênfase em sociologia (Centro de Estudios Avanzados -
Universidad Nacional de Córdoba, Argentina). Pesquisador do ―Consejo Nacional de
Investigaciones Científicas y técnicas‖ (CONICET). Co-Diretor do Programa de Estudos
sobre Ação Coletiva e Conflito Social – ―Centro de Investigaciones y Estudios sobre
Culturas y Sociedades‖ (CIECS - CONICET y UNC). Professor da ―Universidad Nacional
de Villa María‖. Coordenador do ―Estudios Sociológico Editora‖ - ―Centro de
Investigaciones y Estudios Sociológicos‖ (CIES). Membro do Latin American Journal of
Studies on Bodies, Emotions and Society (RELACES) e do Latin American Journal of
Social Research Methodology (RELMIS) e da equipe editorial de Onteaiken. E-Mail:
pedrolisdero@gmail.com
Raoni Borges Barbosa
Doutorando pelo PPGA da Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisador do GREM –
Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções, na Universidade Federal
da Paraíba. Editor da Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia.
Editor assistente da RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção. Editor assistente
da Série de Livros Cadernos do GREM. E-Mail: raoniborgesb@gmail.com.
Renan Lubanco Assis
Doutor em Sociologia Política pelo PPGSP da Universidade Estadual do Norte-Fluminense
Darcy Ribeiro (UENF). Membro do Laboratório de Estudos da Sociedade Civil e
Estado/LESCE. E-Mail: renanlubanco@gmail.com.
Robert Ezra Park
Nascido em 1864 e falecido em 1944, Park destacou-se como um dos clássicos da segunda
geração da Escola de Chicago. Seus estudos em Sociologia e Antropologia Urbana ficaram
famosos por desenvolver conceitos como ordem moral, região moral e ecologia humana,
assim como por abordar a questão urbana e o urbanismo a partir da cidade de Chicago e de
jornais da época em uma perspectiva naturalista das micro-interações humanas.
Tarsila Chiara Albino da Silva Santana
Mestranda em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Pesquisadora bolsista
pela CAPES. E-Mail: tarsila.chiara@gmail.com.
Tayná Santos
Graduanda em Ciências Sociais (UFF), bolsista PIBIC/UFF e membro do Grupo de
Pesquisa Cidades, Espaços Públicos e Periferias (CEP28). E-Mail:
taynasantosb2@gmail.com

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Viviany Férras da Motta dos Santos Soares


Mestranda o do PPGPS/UENF e membro do Grupo de Pesquisa Cidades, Espaços Públicos
e Periferias (CEP28). E-Mail: Vivianyfms@hotmail.com.
Williane Juvêncio Pontes
Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Paraíba. Bolsista do GREM –
Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções. E-Mail:
williane_pontes@hotmail.com.

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