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SOUZA, Winnie Alves de; SOUSA, Ângelo

Gabriel Medeiros de Freitas; BARBOSA,


Raoni Borges. Cultura emotiva e moralidades
em diálogos: reflexões em etnografia urbana.
Sociabilidades Urbanas - Revista de
Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 14, pp. 13-
33, julho de 2021, ISSN 2526-4702.
COMUNICAÇÕES COLIGADAS
https://grem-grei.org/numero-atual-socurbs/

Cultura emotiva e moralidades em diálogos: reflexões em etnografia urbana


Emotional culture and moralities in dialogues: reflections on urban ethnography

Winnie Alves de Souza1


Ângelo Gabriel Medeiros de Freitas Sousa2
Raoni Borges Barbosa3

Resumo: O presente estudo se propõe a pensar as emoções e as moralidades a partir da


apreensão das vivências cotidianas nas cidades em pequena, média e grande escala, como
parte integrante de uma cultura emotiva local expressa e percebida nos diferentes lugares.
Dividido em três momentos, o estudo se debruça sobre os percursos etnográficos realizados
nas cidades de Caraúbas (RN), de Mossoró (RN) e de João Pessoa (PB), no nordeste
brasileiro, sintetizando percepções e reflexões acerca das sociabilidades do ordinário
urbano, onde se tem problematizado os rituais de confiança e desconfiança, medo e
vergonha, pertença e estigma, em diálogos processuais tensos e complexos nos imóveis e
corredores das cidades. Palavras-chave: experiências etnográficas, sociabilidades urbanas
de pequena e média escala, culturas emotivas, confiança, medo, estigma
Abstract: The present study has as propose to think the emotions and moralities from the
apprehension of experiences in the daily life of cities in small, medium and big scale, as a
part of a local emotional culture expressed and perceived in different spaces. Divided in
three moments, this study focuses on the ethnographic paths taken in the cities of Caraúbas
(RN), Mossoró (RN) and João Pessoa (PB), in Brazilian northeastern, synthesizing
perceptions and reflections about the sociability of the ordinary urban, where the rituals of
trust and mistrust, fear and shame, belonging and stigma have been problematized, in tense
and complex procedural dialogues at buildings and city corridors. Keywords: ethnographic
experiences, urban sociabilities in a small and medium scale, emotional cultures,
confidence, fear, stigma

Introdução
O presente artigo, intitulado Cultura emotiva e moralidades em diálogos:
reflexões em etnografia urbana conjuga três exercícios etnográficos produzidos sobre
sociabilidades urbanas de pequena e média escala. O objeto analítico destas etnografias
é a cultura emotiva e moral expressa nas sociabilidades ordinárias e cotidianas da rua,
1
Graduada em Direito pela Universidade Potiguar – UnP. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais e Humanas - PPGCISH, na UERN. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9227-3601, E-
Mail: winnie.souza@alu.uern.br.
2
Graduado em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Mestrando do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas - PPGCISH, na UERN.
https://orcid.org/0000-0002-8349-6472, E-Mail: angelosousa@alu.uern.br.
3
Doutor em Antropologia (UFPE). Professor Visitante vinculado ao Departamento de Ciências Sociais e
Políticas - DSCP e ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas - PPGCISH, na
UERN. Orcid: http://orcid.org/0000-0002-2437-3149, E-Mail: raoniborgesb@gmail.com.
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do bairro, da praça, do mercado público, do centro comercial, da danceteria, dos


loteamentos habitacionais e de outros tantos lugares em que se produzem as
identificações sociais e os rituais de confiança e desconfiança, de medo e vergonha, de
pertença e estigma, de orgulho no trabalho e no lazer do urbano brasileiro ainda em
processo tenso, ambivalente e complexo de modernização conservadora das relações
sociais, do traçado material de imóveis e corredores urbanos e de produção de
reciprocidades econômicas, políticas e culturais entre as cidades.
Na primeira parte do artigo, intitulada Cultura emotiva em pequenas cidades:
reflexões sobre confiança no cotidiano urbano em Caraúbas-RN, são apresentadas
reflexões e construções iniciais da pesquisa etnográfica em desenvolvimento no
município de Caraúbas-RN. Trata-se de experiência que objetiva compreender a cultura
emotiva e as relações de confiança nas sociabilidades da feira pública e
estabelecimentos comerciais da cidade. Com a pesquisa em campo são percebidas
demonstrações de atitudes e produções de discursos dos moradores no hábito de deixar
compras e pertences pessoais sob a vigilância e cuidado de terceiros.
A partir da observação participante nos espaços públicos e conversas informais,
nota-se a construção e valoração de um ideal de confiança nas interações locais, que
pode ser entendido como a expectativa de cuidado e cortesia por parte do outro. Por fim,
destaca-se o desafio de registrar fotograficamente as performances e apresentações dos
sujeitos locais.
Na segunda parte do artigo, intitulada A cultura do medo a partir de modelos
arquitetônicos de imóveis em Mossoró-RN, será abordado o modelo arquitetônico de
casas e imóveis e a sua relação com a Cultura do Medo no bairro Alto de Sumaré, em
Mossoró – Rio Grande do Norte. O bairro foi anexado ao perímetro urbano da cidade a
partir de uma lei municipal em 1980, antes disso, era considerada zona rural do
município.
A cultura do medo diz respeito às mudanças simbólicas no Brasil, construídas a
partir da linguagem da violência que cria um medo do outro relacional, medo de
atentados físicos, morais e materiais. Parte-se do pressuposto que a cultura do medo
muda as sociabilidades de um bairro e leva a um investimento em mais segurança para a
casa dos moradores. Além disso, pensamos que o modelo das casas constrói uma
imagem sobre o lugar, sobretudo em valorização do espaço e de estigmas dele, mudando
a sua paisagem urbana, fortalecendo a linguagem do medo. O objetivo é compreender se
a cultura do medo constrói uma imagética arquitetônica nos imóveis do Alto de Sumaré,
em Mossoró – RN.
A terceira e última parte do artigo, intitulada “O CAC faz você dançar”:
etnografando sonoridades marginais em uma cultura emotiva estigmatizada, sintetiza
algumas percepções e questionamentos produzidos ao longo de uma etnografia
(BARBOSA, 2015 e 2019), entre os anos de 2012 e 2019, no bairro do Varjão/Rangel,
na cidade de João Pessoa – PB. À época, os interesses teóricos giravam em torno do
fenômeno das emoções e das moralidades na construção cotidiana de uma cultura
emotiva intensamente estigmatizada pela cidade oficial, mas não menos efervescente
em termos simbólico-interacionais de produção artístico-cultural com a marca Rangel
pelos empreendedores morais, políticos e culturais deste bairro popular. Essa
efervescência, - recortada desde eventos musicais juvenis, falas de artistas locais e
imagens comerciais produzidas pela danceteria CAC do Rangel, - é aqui problematizada
como material etnográfico para se pensar as sonoridades marginais do bairro do
Varjão/Rangel.

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Cultura emotiva em pequenas cidades: reflexões sobre confiança no cotidiano


urbano em Caraúbas-RN
Uma mistura de barulhos anuncia o início de mais um dia trabalho. As buzinas
dos mototaxistas subindo e descendo a rua com passageiros ou encomendas, carros de
som com propagandas e anúncios de ofertas do supermercado e ainda, vez ou outra, o
carro da funerária informando uma missa ou velório. É a trilha sonora que ganha vida e
compõe o cotidiano do centro da pequena cidade de Caraúbas. A complexidade e a
simplicidade coexistem nas ruas de cidade, uma urbanidade de pequeno escala no
interior do Rio Grande do Norte, onde se percebem sociabilidades em um espaço urbano
que se mostra, conforme Blanc (2016) para além da pouca amplitude ou densidade
demográfica. A vida na cidade parece transitar entre a calmaria do campo e o
nervosismo da grande cidade (SIMMEL, 2009), em um lugar que transforma seus
espaços e sons, mas ao mesmo tempo conserva suas relações e interações sociais.
Mais do que um aglomerado urbano de escalas reduzidas (KOURY e
BARBOSA, 2020), a pequena cidade se constitui como espaço sociointeracional
provocador de construções, desenvolvimentos e reflexões dos sujeitos, enquanto
indivíduo e coletividade, relacionando aspectos sociais, culturais, emocionais e morais
próprios de suas realidades. Em Caraúbas, enquanto espaço recortado e observado na
atual discussão, nota-se uma urbanidade em transformação percebida sob óticas
distintas como, por exemplo, uma significante parcela da população tem acesso à
internet ou televisão a cabo, serviços recentemente ofertados na cidade, mas ainda
cultiva hábitos como o sentar-se nas calçadas nos fins de tarde.
As ruas de calçamento (Imagem 1) e uma infraestrutura ainda em construção
compõe o cenário de vivências marcadas por intensa pessoalidade e proximidade, em
situações cotidianas de familiaridades e modos de vida onde o parentesco, o afeto,
valores religiosos e tradicionais mantém a sua força em demonstrações de atitudes e
produção de discursos identificáveis entre os habitantes da região. São paixões, crenças,
preconceitos que de maneira orgânica perduram por gerações, construindo,
instrumentalizando e hierarquizando os membros de um grupo social e seus agentes
(COMPARATO, 2006), nos movimentos, processos e apresentações dos sujeitos em
seus espaços.
Imagem 1: A lateral do Banco

Fonte: Imagem produzida pela pesquisadora, 2020


Caraúbas, com cerca de 20.000 habitantes e nas suas configurações de pequeno
urbano, possui lojas, banco, mercado, açougue público e a quase totalidade dos
estabelecimentos comerciais situados no centro do município. Nessa parte da cidade
alguns estabelecimentos comerciais existem a mais de uma geração, em negócios
passados de pai para filhos ou netos, cujos clientes também compram no mesmo local
há anos: as bodegas e mercearias que vendem de tudo um pouco, como alimentos não

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perecíveis básicos, materiais de construção e rações para animais domésticos ou de


pequeno porte (Imagem 1). São espaços onde vendedores e clientes mais antigos
mantém uma relação que está além da mera troca superficial de mercadorias e dinheiro
(SIMMEL, 2004), mas que tem como fundamento a proximidade e amizade
desenvolvida ao longo de anos.
Situação semelhante é observada, também, na feira pública da cidade (Imagem
3), evento que ocorre uma vez por semana, aos sábados. A feira popular existe e resiste
há décadas, reunindo não apenas habitantes da própria região, mas também moradores
das comunidades próximas e até mesmo de outras cidades. Apesar de a feira ser
realizada semanalmente, não fazendo parte da configuração diária da cidade, observou-
se que alguns feirantes mais antigos, assim como os vendedores dos comércios
tradicionais, também desenvolveram relações de proximidade com os seus clientes,
percebidas em diálogos informais, conversas soltas sobre as amenidades locais ou
brincadeiras e jocosidades mútua.
Imagem 2: “Sujeitos de Caraúbas (2)” – Tradicional bodega da cidade

Fonte: Gurgel, A. 2020


Imagem 3: A feira e bancas de frutas e verduras

Fonte: Martins, A. 2020


Os espaços públicos da feira e os estabelecimentos comerciais tradicionais da
cidade mostram-se como campo heterogêneo e palco de sociabilidades diversas, em
espaços onde se percebe a construção de um discurso compartilhado sobre um ideal de
honestidade e um entendimento coletivo de confiança, como valorações coletivamente
partilhadas. Nos dias de maiores movimentos do comércio, é comum observar sujeitos
que, quando com muitas sacolas de compra, encomendas pesadas ou então precisa ir até
um local mais distante (e falam “preciso ir ali resolver um negócio”), param nos locais
onde tem maior familiaridade e deixam suas sacolas e até pertences pessoais guardados

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em uma parte do espaço da mercearia ou bodega, ou, ainda, em meio aos caixotes das
bancas da feira.
Os objetos pessoais dos sujeitos, enquanto clientes ou transeuntes no centro,
permanecem sob o cuidado e vigilância dos funcionários dos comércios e feirantes.
Estas são situações percebidas de maneira bastante natural, configurando um acordo
verbal rápido e informal: “ei, olhe aqui minhas coisas”, “vou deixar essas sacolinhas
aqui e venho já”, sendo selados pela outra parte com frases como “pode deixar que aqui
ninguém mexe” ou “aqui tá guardado”. A observação das dinâmicas de interação e
vivências das subjetividades no cotidiano do centro da cidade reflete e evidencia, deste
modo, uma relação entre sujeitos fundamentada na expectativa de cuidado e cortesia por
parte do outro. O que vem a ser um processo intersubjetivo estruturado em um
sentimento compartilhado de confiança percebida e praticada em situações de interação
como parte de uma cultura emotiva local.
Nas sociabilidades observadas em Caraúbas, compreendem-se valorações
compartilhadas de honestidade e confiança como traços positivos ou negativos de
caráter, ressaltados na figura comerciante e do seu estabelecimento, bem como, na
figura do sujeito, como cliente e amigo, que deixa seus pertences na propriedade de
outro. Tais situações evidenciam códigos morais que refletem as dinâmicas de interação
entre os sujeitos em suas construções, discursos e entendimentos coletivamente
apresentados e representados.
É no cotidiano observado no centro da pequena cidade onde os movimentos e
processos dos sujeitos em sociabilidade estabelecem dinâmicas de interação nas quais
construções conceituais como honestidade, integridade, honra e reputação fundamentam
percepções de códigos de conduta situacionais e valores de ordem moral como
elementos organizacionais das estruturas sociais. São sistemas de moralidades
culturalmente construídos e percebidos no cotidiano urbano em jogos e redes dinâmicas
de interação e apresentação do sujeito (GOFFMAN, 2002) nos diferentes espaços
públicos.
Conforme Coelho (2013), a ação do ator social não é a reação a um estímulo ou
causalidades de ordem macro, mas um processo de interpretação ocorrido gradualmente
no curso das situações sociais. Nesse sentido, o sujeito é o ator e habitante do social
complexo que percebe, reflete, interpreta e interage com o seu ambiente, construindo e
desconstruindo cadeias de significado em um processo indeterminado, criativo e fluído.
Herbert Blumer (2013), ao estudar a sociedade como interação simbólica a partir de
George H. Mead analisa o ser humano como objeto de suas próprias ações e dotado de
um self, que age simultaneamente em relação a si mesmo e aos outros. Para o autor “a
vida consciente do ser humano [...] é um fluxo contínuo de autoindicações” (BLUMER,
2013, p. 77) e processo comunicado, sendo no ato de fazer indicações para si que o
indivíduo concebe significados e transforma coisas em objetos.
Sob a análise de Koury (2009), os estudos interacionistas de questões
microssociológicas ensejam a análise dos processos sociais, morais e culturais de
emergência das emoções enquanto categoria analítica de formação e ação social no jogo
inter-relacional. Para o autor, as emoções e sentimentos, como fenômeno e objeto de
investigação antropológica, permitem entender e apreender a noção da subjetividade
quando em vivências e relações tensas entre o social (KOURY, 2004, 2009). Refletir as
dinâmicas sociais no contexto da pequena cidade, sob o ponto de vista dos moradores
locais, é refletir acerca da percepção dos sujeitos, enquanto indivíduo e coletividade, de
um código moral próprio, identificando-os e distinguindo-os entre si, e ao mesmo tempo
reconhecendo significados, questões e valores próprios da cultura emotiva local,

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destacando-se os entendimentos e sentimentos de confiança compartilhados entre os


moradores da cidade.
Desafios do caminhar metodológico
O cotidiano das pequenas cidades, como abordado por Koury e Barbosa (2017),
mostra-se como espaço de inquietações conceitualmente rico e um locus diferenciado,
onde a observação empírica é favorecida em razão das próprias dimensões geográficas
do espaço. De tal maneira, é do estudo das sociabilidades e espaços de interação
cotidiana da pequena cidade que se busca compreender como os contextos e sujeitos
locais se articulam para a construção e o entendimento compartilhado sobre um ideal de
confiança entre os sujeitos locais, percebido e praticado em situações habituais.
Nota-se que o conceito de confiança é uma expressão do sentir do sujeito, sentir
esse que perpassa toda uma construção e interação das vivências e narrativas sociais. E
esse é um dos pontos no qual essa pesquisa ainda em desenvolvimento tem se mostrado
desafiadora: como capturar esses momentos de expressões do sentir? As construções e
entendimentos dos sentimentos de confiança observados nas caminhadas pela cidade
não se mostram de maneira explícita e dada, mas sim, como constituintes expressas nas
situações de interação entre os sujeitos, nas formas de gestos, olhares ou frases soltas
ditas em diálogos apressados...
Assim, em meio aos percursos etnográficos indaga-se a respeito de como
registrar fotograficamente as performances e apresentações cotidianas na feira livre e
comércios locais de modo a capturar os momentos de cortesia e cuidado, por vezes
expressos de maneiras silenciosas, singelas e naturais. O posicionamento de uma
pesquisa observante em um espaço de proximidades e familiaridades mostra-se,
também, desafiador no receio de mitigar certos aspectos das interações percebidas.
Como exemplo, tem-se a dificuldade na abordagem de uma situação cotidiana com uma
câmera, de modo que os sujeitos envolvidos não se sintam intimidados ou invadidos,
mas, ainda assim, seja possível capturar a subjetividade das emoções e sentimentos nas
interações cotidianas e ordinárias (Imagem 4).
Imagem 4: Vendedor de guarda-sol em dia de feira

Fonte: Imagem produzida pela pesquisadora, 2018


Considerações Momentâneas
Tendo como orientação teórico-metodológica a etnografia urbana, essa pesquisa
está englobada no eixo das sociabilidades e da cultura emotiva em pequenas cidades.
Sob o ponto de vista dos moradores locais, buscou-se observar o entendimento do
sujeito e habitante local, em suas agências e movimentos, na construção de um
sentimento de confiança, sentimento esse estabelecido e compartilhado como parte de
um código moral que reflete valorações da cultura emotiva percebida nas estruturas e
interações sociais, em sistemas de moralidades vistos no cotidiano urbano em
apresentações e representações do sujeito nos diferentes espaços públicos. Ao longo do

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trajeto de pesquisa, ainda em desenvolvimento, nota-se a construção e valoração de um


ideal de confiança nas interações locais, que pode ser entendido como a expectativa de
cuidado e cortesia por parte do outro. Ainda, ressalta-se que a relação com a construção
de imagens visuais e registros fotográficos tem se mostrado um caminho metodológico
bastante desafiador, mas essencial para capturar e compreender os modos de vida e
práticas locais dos moradores da cidade, de modo que seja possível expressar
visualmente as performances em construções e apresentações cotidianas que evidenciem
as emoções e sentimentos compartilhados socialmente, em especial no tocante às
percepções de confiança.
A cultura do medo a partir de modelos arquitetônicos de imóveis em Mossoró-RN
O Alto do Sumaré
O bairro Alto do Sumaré, em Mossoró-RN, antes dos anos 1980 era considerado
perímetro rural do município, e que a partir de uma lei municipal, foi anexado ao urbano
do município, junto a outras regiões. Em suas proximidades encontra-se a base 34 da
Petrobrás, cujo funcionamento levou à ocupação do bairro a partir dos anos 1990,
loteando terras e atraindo a infraestrutura estatal.
Segundo Pinheiro (2007), nesse momento Mossoró tinha uma economia baseada
na prestação de serviço, principalmente em um setor comercial e varejista, atendendo
toda a região Oeste do Rio Grande do Norte e atendendo as demandas geradas pelo
setor salineiro, da fruticultura e petrolífero. Assim, a atração realizada pela Petrobras
para os bairros adjacentes à sua base não era feita somente pelos trabalhadores diretos
da base, mas de prestadores de serviço terceirizado do setor, do comércio local dos
bairros e trabalhadores domésticos. Nota-se que desde o primeiro momento, devido às
diversas ocupações e lugares de onde esses moradores provinham, a população do
bairro era bastante heterogênea.
Entende-se o bairro enquanto um Lugar formado a partir da Ecologia Humana
(PARK, 1979) da cidade de Mossoró, que a partir da sua dinâmica de trocas simbólicas
e materiais formaram o bairro. Pensando também que o bairro é formado a partir das
sociabilidades dos seus moradores dentro de uma cultura subjetiva, mas também a partir
de uma cultura objetivada em relações institucionais. E que até antes o Alto do Sumaré
era entendido como uma região rural da cidade, então possivelmente ainda guardava
conteúdo de sociabilidades típica dessas regiões. No ano no qual essa pesquisa foi
realizada, observou-se em uma mesma rua um terreno com criação de animais e
plantação e na sua frente um condomínio de destaque no bairro.
O primeiro contato com o bairro se deu em meados de 2005, quando uma das
minhas tias maternas se mudou para lá. Então, dentro dessa teoria vivida (PEREIRA,
2019), utilizo das minhas recordações para reconstruir um tempo inicial do bairro. O
Alto do Sumaré era pouco ocupado, as casas dividiam espaço com grandes terrenos
baldios, sendo uma região com bastante vegetação. As casas em sua maioria tinham
uma entrada com contato direto para a rua ou tinham seu perímetro marcado por
cercados de madeira.
Esta pesquisa foi realizada a partir de um trabalho de campo marcadamente
etnográfico e com a produção de um acervo fotográfico de imóveis do bairro, buscando
construir uma narrativa a respeito da imagética do bairro formada a partir do modelo
arquitetônico desses imóveis. Outra ferramenta bastante utilizada foi o Google Earth,
dando acesso ao mapeamento feito do bairro, desde ruas a imagens aéreas, sendo
possível acessar imagens coletadas no passado pela empresa desenvolvedora do
programa. Podemos observar, graças ao Google Earth, a transformação do bairro num
período de 17 anos, como veremos abaixo:

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Imagem 5: Imagem de satélite do Alto do Sumaré em 2003

Fonte: Google Earth, 2020


Imagem 6: Imagem de satélite do Alto do Sumaré em 2020

Fonte: Google Earth, 2020


Podemos perceber a urbanização do bairro a partir do loteamento e do
desmatamento da região. A parte norte do bairro é marcada pelo conjunto habitacional,
que normatizam o modelo das casas e o traço das ruas. Além desse modelo de casa na
parte norte, é possível observar quadrantes de casas com as mesmas características
arquitetônicas em outras regiões do bairro. Também é possível perceber que esse
desenvolvimento é uma tendência da região, já que ela se apresenta também nos bairros
vizinhos, diferenciando-se pelo modo de urbanização, pelo agente fomentador e pelas
classes ocupantes.
Segundo Nascimento (2013), a expansão imobiliária do bairro do Alto do
Sumaré começou a partir de 2010 com casas financiadas pela Caixa Econômica Federal
dentro do programa Minha Casa Minha Vida. Sendo no Sumaré casas voltadas à faixa 2
e 3 do programa. Desde seu projeto arquitetônico as casas atendem as necessidades da
Cultura do Medo latente da sociedade brasileira, atender essas demandas parecem
inerentes para o mercado imobiliário e para a classe que se classifica como público-
alvo.
Segundo Caldeira (2003), a cultura do medo diz respeito às mudanças simbólicas
no Brasil, construídas a partir da linguagem da violência que cria um medo do outro
relacional, medo de atentados físicos, morais e materiais. Essa cultura leva a um
investimento em segurança privada, como: Cerca elétrica, instalação de câmeras,
aumento do tamanho de muros, contratação de segurança privada e mudança para

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condomínios fechados. Podemos ver essas características nas casas de conjuntos


habitacionais do Alto do Sumaré e que não está presente em outros conjuntos do
PMCMV, vejamos abaixo:
Imagem 7: Casas financiadas pelo PMCMV no Alto do Sumaré

Fonte: Imagem produzida pelo pesquisador, 2020


Vimos nesses conjuntos que os cuidados com a segurança vêm no projeto da
casa, como uma necessidade inerente para os compradores que buscam a casa própria.
Então, os imóveis têm como partes essenciais o muro, a cerca elétrica, o portão de
garagem para transportes pessoais. Tais elementos parecem naturais para a formação de
uma casa no contexto atual, então ele está presente nos imóveis das outras faixas do
PMCMV?
Imagem 8: Conjunto Jardim das Palmeiras, em Mossoró-RN

Fonte: Jornal de Fato, 2019


Na imagem 8 acima, vemos o Conjunto Jardim das Palmeiras, construído à
margem da BR 304, ficando o Alto do Sumaré na margem posterior, a distância entre os
conjuntos é de aproximadamente 2 quilômetros. Ele surge a partir da erradicação da
Favela do Tranquilim, sendo seus moradores deslocados para essa região da cidade.
O projeto inicial não conta com muros, muito menos com a instalação de cerca
elétrica e garagem. Ficando a cargo do morador construir, caso deseje, uma casa
murada. Vemos a partir dessa diferenciação dos modelos de casas ofertados dentro do
mesmo programa governamental, a diferenciação voltada a uma classe, sendo
diferenciada a partir da faixa econômica.
Assim, as pessoas das classes mais abastadas podem se sentir mais atraídas
devido ao muro, ao portão e garagem e à cerca elétrica, resguardando um cuidado com a
segurança, representando uma questão subjetiva, de moralidade de uma classe baseada
na cultura do medo no urbano contemporâneo brasileiro. Assim, vemos que o conjunto
Jardim das Palmeiras, pertencente ao PMCMV, está mais próximo aos conjuntos
habitacionais dos anos 2000, que erradicaram a favela em Mossoró, do que as casas dos
conjuntos do Alto do Sumaré, com construção no mesmo período. Como podemos
comparar a partir da imagem 9 abaixo.

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Imagem 9: Conjunto Parque das Rosas em 2011

Fonte: Google Earth, 2020


Mesmo com uma composição estética de portas, janelas e telhado similares entre
o Conjunto Jardim das Palmeiras e os conjuntos do Alto do Sumaré, vemos que nas
disposições dos elementos que formam a casa, no seu acesso à rua e delimitação do
terreno, o Jardim das Palmeiras está mais próximo aos modelos dos anos 2000. Essa
coleção de imagens, com efeito, nos permite inferir elementos morais e emocionais
centrais na história do bairro e em suas sociabilidades estigmatizadas pela cidade de
Mossoró e amedrontadas pelo discurso de violência local.
A observação e o trabalho de campo realizado para a pesquisa foram feitos a
partir de trajetos dentro do Bairro Alto do Sumaré, com percursos que cortavam o
bairro, procurando além dos conjuntos, partes mais antigas e conseguir acesso ao maior
tipo possível de disposição arquitetônica das casas. O primeiro percurso foi percorrido
mais vezes: ia da entrada do bairro a partir do Posto de Combustível à margem da BR
304, percorrendo a rua Manoel Amâncio Rebouças Neto até o condomínio Bella
Residence. Esse percurso, como foi observado, parece ser uma das rotas mais comuns
dos moradores do bairro, já que é visto um grande tráfego de carros e a instalação de
diversos comércios ao longo desse logradouro do bairro.
Um elemento que chamou a atenção diz respeito a progressão das casas ao longo
do percurso, da parte inicial dele, é observado diversas casas populares, algumas ainda
no modelo de conjunto habitacional dos anos 2000, já que nessa parte do bairro, houve
uma ocupação inicial irregular, construindo-se uma favela, o modelo das casas do
conjunto que urbanizou a região é similar à mostrada na foto do Conjunto Parque das
Rosas. Mas ao longo que se percorre, vemos fachadas de casas maiores, mais fechadas e
com um maior investimento em segurança. Assim, essas casas mais simples parecem ter
ficado sufocadas entre as maiores, nas arestas e em ruas que nem mesmo ainda
receberam pavimentação.
A rota faz com que se atente às casas de grandes muros e portões e aos comércios
nas ruas pavimentadas, mas em todo o percurso, sobretudo no início, era possível ver as
ruas sem calçamento, becos e vielas estreitas, algumas sem saída, com casas dos dois
lados, ficando entre grandes casas. Nesses lugares, que à primeira vista podem ser
ignorados, era possível encontrar casas mais simples, sem fachada de segurança privada,
casas com porta direto para a rua, que no máximo contam com grade em suas portas e
janelas.
Na rota principal era difícil ver pessoas sociabilizando com os vizinhos nas
calçadas ou na rua, era muito mais fácil vê-las trabalhando em pequenos
estabelecimentos comerciais ou limpando a calçada. Mas com olhar voltado para essas
ruas adjacentes, era possível ver uma interação entre os indivíduos, cadeira na calçada
ou conversas no pé da porta.
No percurso foi possível perceber como aquele caminho não é convidativo ao

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translado a pé, já que as calçadas curtas ou tomadas pelo mato e por materiais de
construção fazem com que os pedestres tenham que dividir espaço com um enorme
tráfego de carro.
O interesse econômico que levou à construção de novas casas no Alto do Sumaré
fez com que, além dessas casas, investissem na abertura de comércios na região, que
atendessem a demanda dos novos moradores. Na rota, foi visto diversos desses pontos
comerciais, mas o que destaco é são os imóveis com várias salas comerciais. As salas
desses imóveis são pequenas, não conseguem receber tantos clientes, mas acreditamos
que esse seja um elemento arquitetônico de um racionalismo capitalista de otimização
dos espaços para o máximo de lucro. Foi possível perceber um número menor de
pessoas utilizando o comércio, mas muitos entregadores, que rodam o bairro, fato que
pode ter sido potencializado pelo período de isolamento social causado pela pandemia
da Covid-19. Os entregadores fazem com que seja possível essa sociabilidade
autocentrada no lar, já que ao passo que eles podem se utilizar do comércio local, eles
não precisam sair na rua, sendo esse um lugar incerto e de potencial perigo. O fato
acima citado trata-se de uma característica de como a cultura do medo se apresenta no
bairro.
Outro imóvel que chamou atenção foi uma base da polícia militar, que se
encontra ao lado da sede da associação comunitária do bairro. Em 2012, essa base
recebeu o projeto de segurança pública chamado Base Integrada Cidadã (BIC), ele
coincidiu justamente com o principal momento de expansão imobiliária do bairro, que
em seu modelo de casa ofertada estava atenta à segurança particular. Assim,
inicialmente podemos falar em um empreendimento público e privado na gentrificação
do bairro Alto do Sumaré, primado pelo discurso da Segurança Pública, que pode acabar
por escolher pessoas e lugares que devem ser segregados para que os moradores possam
desfrutar de segurança. Porém, após o fim do programa BIC, é percebido um latente
discurso da falha da segurança pública, que se fortalece em um discurso maior de falha
do público no bairro, já que vemos ainda lugares sem estrutura de pavimentação, falta
de aparelhos públicos de lazer e de oferta de serviços.
Como apresentado por Lima (2017), estudando o crescimento da violência na
cidade de Mossoró, uma das características do discurso de falha da segurança pública,
foi a adoção para uma resposta pessoal para o problema, fazendo com que as pessoas
que optassem por essa estratégica, se isolassem nos muros e abandonassem os espaços
públicos. Consequentemente, os espaços públicos são descartados como espaços
possíveis para o lazer e ficam sendo visto como lugar de perigo e figuras limiares, além
disso, aquelas pessoas que não têm poder aquisitivo para investir em segurança privada,
ficassem vulneráveis aos atentados da violência urbana.
Imagética de segurança e a sociabilidade em regime de desconfiança
O segundo percurso realizou-se em companhia de uma informante, sujeito do
bairro, essa que chamarei na pesquisa de Ipê. O trajeto do percurso foi feito a partir da
casa dela, passando por locais do bairro dos quais ela achava interessante de ser
mostrado/apresentado.
Ipê relata que chegou ao bairro a partir da vontade de seus pais em ficar mais
próximos às suas famílias, assim, em 2009, adquirem um imóvel e passam a ser
moradores do Alto do Sumaré. Contou que um dos requisitos para escolha da casa era
que ela fosse com laje, impossibilitando que possíveis ladrões tentassem entrar em sua
casa pelo teto: esse requisito seria colocado pela sua mãe.
Outra estratégia para evitar que sua casa seja alvo de roubos, assaltos ou
invasões, foi a instalação de Pega-Ladrão (grades) em suas portas e janelas, fazendo da

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imagética da casa, próxima a imagéticas de lugares onde o cuidado é para que as


pessoas não fujam, não que para que não entrem.
Imagem 10: Porta da frente da casa de Ipê

Fonte: imagem produzida pelo pesquisador, 2020


Ipê relata também que a família adotou um cachorro para que servisse de cão de
guarda para a casa. O que faz pensar que a sociabilidade do medo diz respeito a uma
relação entre humano – animal que também é transformada, uma reificação da vida
animal, para que ele sirva de mais um artifício que afaste possíveis criminosos.
No caso de Ipê, foi desenvolvido uma relação de companheirismo com o seu
cachorro, dizendo ela que o seu cão é muito mais um companheiro e uma forma de
demonstrar e receber afetos. Além de que ter um cachorro fez com que ela pudesse ter
acesso a sociabilidades que antes ela não tinha, podendo ser vista e ver as pessoas ao
passear com sua companheira, ter conversas a respeito de cachorros.
Imagem 11: Janela lateral da casa de Ipê

Fonte: imagem produzida pelo pesquisador, 2020


Ao sair de casa, a conversa entre Ipê e sua mãe chama atenção para a Visão de
Mundo (VELHO, 2003) deles. A mãe aconselha Ipê a ter cuidado, sobretudo porque
estávamos com um equipamento fotográfico. Ela vê a rua como um constante perigo,
como um lugar que devemos estar em constante atenção e cuidado, construir uma
fachada simples, que não chame atenção para possíveis criminosos.
Ipê relatou que vê exagero nos conselhos da mãe, que não só aconselha, mas que
desenvolveu um Projeto de Vida para eles em um Campo de Possibilidades (VELHO,
2003), que sempre esteve permeado pela Cultura do Medo. Assim, Ipê não pode sair
para onde quiser, não pode passar o tempo que quiser e as ligações da mãe sempre
servem como uma tentativa de lembrar esse Projeto de Vida pautado pelo medo.
Relatando também sentimentos de Medo, Ansiedade, e Angústia ao ter que sair de casa,
já que desde nova esteve inserida em uma sociabilidade de medo com o Outro

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Relacional.
Pensa-se também que os conflitos geracionais vêm a partir do momento que Ipê
desenvolve seu próprio Projeto de Vida, a partir de como vem mudando sua Visão de
Mundo e como decodifica o Campo de Possibilidades. Mas que suas aspirações entram
em conflito direto com os da sua família. O primeiro ponto que Ipê apresentou foi a
antiga Unidade de Ensino Infantil do bairro, que se encontra fechada desde antes do
início da Pandemia, tendo suas atividades realocadas para o prédio de uma Escola
privada. Isso me chamou atenção mais uma vez para a relação entre Público e Privado
daquele Lugar. Atento aos imóveis, percebi que a demanda para vagas de Ensino
Infantil é atendida por Instituições privadas, das quais consegui observar 3 e fotografar
2.
Regime de desconfiança e cultura do medo: breves considerações
Pensando a partir do Interacionismo Simbólico, sobretudo a partir do Goffman
(2010, 2011), sabemos que os indivíduos constroem fachadas para suas interações de
face-a-face, que a busca pela preservação da fachada é sagrada nas sociabilidades, onde
se evita relações de engolfamento e de vergonha. A sociabilidade, no lócus dessa
pesquisa, a partir do momento que os indivíduos estão cada vez mais autocentrados em
seu Lar, não estão interagindo em lugares públicos.
Conforme relatou Ipê, ela não conhece seus vizinhos, não sabem o que fazem,
nem interagem. Em uma casa visitada, onde inicialmente dialogou-se sobre o fato de a
rua ter sido uma das primeiras do bairro, a atenção se voltou sobre a casa da frente, já
que a altura do muro havia chamado a atenção. A moradora pediu para que tirasse a foto
(ver figura da imagem 12) dentro da casa dela, abriu o portão apenas o suficiente para
que fosse possível enquadrar a casa.
Ela diz que era melhor assim, pois o seu vizinho da frente poderia não gostar,
não sabia como ele poderia reagir a uma pessoa tirando uma foto de sua casa. O medo
seria criar uma situação limite na vizinhança que desembocasse uma serie de
desconfianças e acusações com um resultado imprevisível. Essa desconfiança se repetiu
no campo, várias pessoas negavam a palavra, não gostariam de falar sobre o tema da
violência, negavam o meu pedido de tirar foto da fachada de suas casas por não poder
presumir minha índole.
Pensa-se que o medo, a desconfiança e o silenciamento permeiam a cultura
emotiva desse lugar; a sensação sentida no bairro é mais de insegurança do que
segurança. As casas cada vez mais muradas e vigiadas dar a sensação de que o
transeunte está passível de sofrer com algum tipo de violência em qualquer hora. As
sociabilidades são contidas dentro das casas que seguem um modelo arquitetônico
atento à linguagem do medo, presente no discurso social, político e midiático. Para uma
convivência com o Outro, os moradores do Condomínio Bella Vista aceitam morar
dentro de um enclave fortificado (CALDEIRA, 2003), mas que lá dentro eles podem ter
interações face-a-face, desfrutam de um espaço comunitário e áreas de lazer (no espaço
privado) ausentes no equipamento público do bairro.
Mesmo com a afirmação que é possível perceber a cultura do medo na cultura
material do bairro, ou seja, modelo de imóveis, disposição de ruas e sufocamento de
parte dos bairros mais antigos, acreditamos que a cultura do medo seja somente um dos
elementos influenciadores do campo de possibilidades da cultura emotiva desse Lugar.
Já que dentro do modelo quase que padrão das casas, foi possível perceber a
inventividade dos indivíduos diante das curvas de vida encontradas dentro das trocas
materiais e simbólicas da sociedade mossoroense, pode ser observado a adaptação de
casas para abertura de estabelecimentos comerciais.

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Imagem 12: Foto tirada dentro da casa de uma moradora, após sua advertência de cuidado

Fonte: Imagem produzida pelo pesquisador, 2020


Na oportunidade, um dono de comércio relatou a adaptação da sua casa para ser
um ponto comercial, fez com que ele “se transformasse em seu próprio patrão, fazendo
seu próprio tempo e escolhendo como trabalhar”, um discurso do empreendedor,
pautado no sucesso pessoal e meritocrático. Tal como foi possível perceber um discurso
a respeito do medo de decair economicamente, de ‘ficar parado’, de sair desse status
sociais que já havia adquirido.
A inventividade dos indivíduos não diz respeito somente a uma curva de vida e
metamorfose de projeto diante crises econômicas enfrentadas. É possível também
perceber que aproveitam oportunidades geradas pela falta de oferta de serviço público
no bairro, sendo destacado nesse momento a oferta de educação infantil. Como
podemos observar nas fotos seguintes. Onde eles adaptam seus imóveis para que se
trabalhe com um serviço que está faltando em oferta pública.
Então em linhas gerais podemos dizer que os dois elementos descritos acima
fazem parte de um discurso de falha do Poder Público, de enfraquecimento da Res
Pública e o fortalecimento da capacidade da iniciativa privada de atenderem as
necessidades dos moradores do bairro. Mostrando uma falha e distanciamento do
projeto coletivo e público de se morar no mesmo bairro para o projeto individual e as
relações vistas como operativas do ponto de vista mercadológico, a exemplo disso o
direito universal à educação que deve ser garantido pelo Estado sendo substituído pela
iniciativa pessoal de investir na abertura de um colégio particular de ensino infantil,
necessitando assim a reforma de seu imóvel, alicerçado no direito à propriedade
privada.
Esse pensamento vai de encontro com a descrição de Lima (2017), mostrando
que a estratégia de projeto individual superando projetos públicos, não diz respeito
somente à segurança pública, mas à uma crescente individualização e psicologização na
população brasileira. No bairro alvo de nosso estudo, a imagem de bairro seguro está
embasada nessa concepção de resposta individual ao problema, mas visto a partir de
uma outra óptica, o bairro passa uma imagética de segregação social, de abandono dos
espaços públicos e de ruas pensadas a partir da lógica dos automóveis, não
deslocamento a pé. Com um constante investimento nas casas, como uma fachada
pública atenta à segurança, mas também embelezamentos que buscam uma estética de
bairro de classe média. Mesmo que isso ignore uma realidade socioeconômica mais
ampla do bairro, encontrado nas casas mais simples que estão escondidos nos becos,
vielas e ruas sem provimento público.
Assim, a imagética do bairro muda conforme o ponto de vista adotado: bairro
com casas seguras, rua insegura que deve ser rapidamente percorrida, espaços públicos
abandonados e segregação social.

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“O CAC faz você dançar”: etnografando sonoridades marginais em uma cultura


emotiva estigmatizada
Este ensaio sintetiza algumas percepções e questionamentos produzidos ao longo
de uma etnografia (BARBOSA, 2015 e 2019), entre os anos de 2012 e 2019, no bairro
do Varjão/Rangel, na cidade de João Pessoa – PB. À época, os interesses teóricos
giravam em torno do fenômeno das emoções e das moralidades na construção cotidiana
de uma cultura emotiva intensamente estigmatizada pela cidade oficial, mas não menos
efervescente em termos simbólico-interacionais de produção artístico-cultural com a
marca Rangel pelos empreendedores morais, políticos e culturais deste bairro popular.
Essa efervescência, - recortada desde eventos musicais juvenis, falas de artistas locais e
imagens comerciais produzidas pela danceteria CAC do Rangel, - é aqui problematizada
como material etnográfico para se pensar as sonoridades marginais do bairro do
Varjão/Rangel.
O estilo de vida periferia: a indigenização do capitalismo
O Varjão/Rangel chama a atenção por ter desenvolvido um mercado interno em torno
de festas voltadas para os moradores do bairro, de modo que conta, hoje, com um conjunto de
marcas que distinguem artistas e casas populares de espetáculo. Em 2015, conforme
registrado em diário de campo do dia 25 de agosto, ao realizar o passeio habitual pelo
bairro do Varjão/Rangel, foi possível presenciar a produção artística independente por
parte de jovens moradores em um estúdio improvisado. Produção esta que é também
distribuída no bairro e nos bairros populares adjacentes pelos carrinhos de música que
vendem CDs e DVDs, avidamente consumidos pelos jovens locais. Interessa notar,
ainda, nesse sentido, que não raras vezes foi possível presenciar jovens ouvindo e
dançando a música própria do bairro.
No bairro se desenvolveu, assim, de forma bem-sucedida, um mercado para CDs e
DVDs produzidos de forma independente pelos jovens moradores. Estes mesmos jovens vêm
se articulando nos últimos dez anos no sentido de produzir artistas, estilos e produtos musicais
com a marca Rangel – CAC do Rangel, que já atinge praticamente todos os bairros populares
da cidade de João Pessoa.
O bairro se caracteriza, portanto, por uma vocação expressiva para o comércio e
para a oferta de serviços organizados no âmbito da família, de modo que conta com um
mercado público no formato reduzido das feiras do interior, com mercadinhos variados
e com muitos estabelecimentos que produzem e vendem bolos, tapiocas, sordas, frangos
e ovos, temperos e legumes e etc. Produtos típicos do interior podem ser encontrados no
Varjão/Rangel, assim como todas as novidades eletrônicas que circulam pelos mercados
informais das grandes cidades brasileiras: desde os ‘paus do selfie’ até CDs e DVDs
mais badalados do momento, piratas, que se agregam a outros de artistas locais,
vendidos em carrinhos de música pelo bairro ou em pequenas lojas, também no bairro,
que se especializam na venda de CDs e DVDs de filmes, músicas e outros.
A produção e a circulação de bens típicos do interior da Paraíba e de outros
estados adjacentes sedimenta uma vinculação orgânica entre o estilo de vida do interior,
vivenciado intensamente pelas primeiras gerações que ocuparam o Varjão/Rangel, e o
cotidiano da vida atual no Varjão/Rangel, na cidade grande. Cotidiano este em que as
gerações mais novas se esforçam no sentido de reconhecimento e integração material e
simbólica na cidade de João Pessoa, sem, contudo, renunciar a um repertório simbólico
próprio da cultura emotiva do bairro. Percebe-se, assim, não somente um confronto
geracional entre os moradores, mas também uma mudança da lógica do
empreendimento moral por parte dos moradores em relação ao bairro e à cidade. Por um
lado, o discurso modernizante da cidade é aceito pelos moradores mais jovens como

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parâmetro de integração social e mobilidade no urbano mais amplo de João Pessoa,


mas, por outro lado, esses jovens buscam um tipo de afirmação como cultura emotiva
ou ethos local (GEERTZ, 1978).
Essa ambivalência, expressa no amor e ódio ao lugar, é também verificada em
uma postura de ressentimento e ironia como fachada individual no bairro e como
resposta às investidas morais e simbólicas da cidade sobre o bairro. Este jogo de
fachadas e de empreendimentos morais estabelece uma dinâmica de tensão e de
negociação permanente entre os próprios moradores do Varjão/Rangel e dos moradores
em relação à cidade de João Pessoa.
As manifestações da cultura popular no local a partir das festas de ursos
carnavalescos, reisado, tribos, pastoris, e outros, por exemplo, são esforços de recriação e de
mobilização, no Varjão/Rangel, de um processo de negociação constante dos códigos do
antigo e fragmentado estilo de vida do interior e do novo estilo de vida na cidade grande
como antigo revivido. Processo este que se abastece da tecnologia e das formas de consumo
da cidade grande, através da circulação pela indústria de consumo como cultura popular, e
pela tecnologia e vias de acesso a redes de consumidores além do bairro, desde igrejas, até o
poder público que os abastece de recursos e etc.
Organiza-se, destarte, uma rede de trocas e circulação de bens de mão dupla: a
recriação da cultura nativa, de um lado, reabastece a cultura até então fragmentada de onde
vieram os moradores do bairro; e a integração material e simbólica deles, via cultura
popular, nos códigos modernizantes da cidade de João Pessoa. Tem-se, aqui, um exemplo
de indigenização das práticas de consumo (SAHLINS 1997a e 1997b), onde tecnologias são
absorvidas, mas reelaboradas como produção nativa de sentidos. Sentidos estes que são
incorporados nas redes de trocas materiais e simbólicas entre os moradores do próprio
bairro e a população pobre da cidade de João Pessoa.
Trata-se de uma forma criativa de inserção material e simbólica na cidade a
partir da circulação do estilo de vida da periferia como argumento moral e para o
consumo. O impulso desse movimento se dá, por exemplo, no sentido de os jovens do
bairro serem absorvidos na cultura musical e artística da cidade a partir de um lugar de
fala, o Varjão/Rangel, que a um só tempo atualiza o discurso de amor e ódio do
morador pelo bairro: um espaço de perigos e de estigmas, mas também de pessoalidade
e de pertença.
Sahlins sustenta a tese da indigenização do capitalismo de modo a afirmar que a
‘cultura’, em uma acepção plural e distributiva, permanece o objeto empírico por excelência do
conhecimento antropológico e do fazer etnográfico, haja vista que a expansão capitalista
promovida pelo ocidente não destrói a organização simbólica da ação e da experiência
humanas, seus valores e significados, localmente alicerçados. Com efeito, argumenta Sahlins, o
ecúmeno global cristalizado em redes densas e complexas de fluxos não logrou se homogenizar
no sentido de extinguir a realidade local que heterogeniza, ressignifica e se apropria destes
mesmos fluxos. Com estes conceitos, Sahlins tensiona a dinâmica atual de reprodução material
e simbólica na modernidade globalizada ao reconhecer o papel destacado das culturas nativas
na construção de uma estrutura translocal e transcultural de modernidade. O autor, assim, rompe
com análises economicistas e com sociologias clássicas que definem a modernidade capitalista
como projeto unilateral do colonizador e que desconhecem o papel criativo e subversivo da
desobediência epistêmica do saber local.
O CAC faz você dançar!: etnografando imagens e sonoridades marginais
O avanço da integração econômica do Varjão/Rangel na cidade de João Pessoa, -
dissociada, porém, da integração moral e emocional tão ansiada pelos moradores, - pode
ser também observada, nesse processo de conclusão do campo de pesquisa, no repentino

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fechamento do CAC do Rangel. Nos rumores e fofocas que corriam e correm entre os
moradores, fechava-se o CAC do Rangel para dar lugar a um empreendimento
comercial de maior porte, e maior dignidade, para as atividades econômicas do pulsante
centro comercial da Avenida 02 de Fevereiro.
Como narrou em tom jocoso o pai do G.F., seu G.P. (Senhor de seus 60 anos e
também batizado com o nome que dera ao filho), durante a entrevista semiestruturada
sobre a evolução urbana do bairro, o CAC do Rangel, atualmente ainda uma das
referências simbólicas de maior potência do Varjão/Rangel na cidade enquanto
danceteria e centro recreativo há muito gerido pelo conhecidíssimo e querido Biu do
CAC, fora “...antigamente o prostíbulo popular Minha Deusa...”, local badalado e
bastante conhecido na zona sul da cidade.
Este passado ainda pesa na memória dos antigos moradores do Varjão/Rangel e
da cidade, que associam o CAC do Rangel a uma moralidade violenta e perigosa das
gangues juvenis. Herdeiro, portanto, da moralidade degradada, de devassidão, de
boemia e de jogo do outrora Minha Deusa do antigo lugar Varjão. De acordo com
notícia de Jornal do PBHoje, de 16 de outubro de 2018, o CAC do Rangel fechava as
portas para dar lugar à construção de um banco.
A fonte dessa informação eram internautas, de modo que, mais do que qualquer
elemento de veracidade, apontava para o desejo publicamente expresso dos moradores
em ter no bairro uma agência bancária, pois, como pude registrar nas andanças e
conversas pelo Varjão/Rangel: “Onde só tem casa lotérica é coisa de pobre!” De acordo
com a notícia (PBHoje, 2018):
Casas de show CAC do Rangel e Ponte Preta fecham às portas em
João Pessoa
Duas casas de shows tradicionais da periferia de João Pessoa fecharam às
portas. Uma delas foi demolida e outra deixou de realizar eventos.
O CAC do Rangel, no bairro do mesmo nome, foi demolido nesta terça-
feira (16). No local, conforme internautas, será construído um banco.
A casa, que ficou conhecida como o slogan: “o CAC faz você dançar”, foi
palco de apresentação de grandes artistas como Aldair Playboy, Gil Bala,
Conde do Forró, entre outras atrações musicais.
A Imagem 13 abaixo, capturada da notícia de jornal veiculada pelo PBHoje, de
16 de outubro de 2018, mostra o interior do CAC do Rangel, já em processo avançado
de demolição (teto desfeito e estrutura interna demolida). Esta fotografia circulou em
vários grupos de WhatsApp de jovens do Varjão/Rangel.
Imagem 13: Imagem do CAC em processo avançado de demolição

Fonte: Jornal PBHoje, de 16.10.2018, modificada pelo pesquisador

Em diário de campo do dia 16 de outubro, pude registrar o sentimento ambíguo


de vergonha e orgulho do morador, - ao ser provocado por um personagem externo à
sua rede de confiança, - sobre suas possíveis ligações afetivas e experiências prazerosas
no CAC do Rangel. Afirmações do tipo:
Oxe! Deus me livre! Nunca fui. Ali só dava o que não prestava;

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Eu também não vou sentir falta nenhuma,


davam uma ideia do potencial de contágio do CAC do Rangel como lugar de vergonha e
símbolo de desvalor da sociabilidade Varjão/Rangel sob o olhar estigmatizante da
cidade de João Pessoa. Tal qual a notícia supracitada, falava-se muito vagamente do que
viria ocupar aquele espaço tão central no cotidiano do bairro, talvez um banco ou
mesmo um residencial de maior porte e que representasse os novos tempos de um
Rangel mais visível e valorizado como parte da fachada da cidade oficial. Para todos os
efeitos, contudo, do CAC do Rangel restava somente os escombros e uma fachada
envergonhada desfigurada, como mostram as Imagens 12 e 13.
Imagem 14: Fachada do CAC do Rangel em processo de demolição

Fonte: Imagem produzida pelo pesquisador


Assim que o CAC do Rangel, - enquanto recurso técnico-social que possibilitara
a construção de vários personagens artísticos do Rangel para toda João Pessoa, - deveria
ceder espaço, na paisagem urbana, mas, sobretudo, afetiva do bairro, para um
estabelecimento comercial de respeito e prestígio. O quanto isto significava uma perda
de referências morais e emocionais para o Varjão/Rangel, principalmente para o jovem
pobre urbano que organizava sua vida em torno das possibilidades locais de
sociabilidade de lazer, fica mais evidente em um desabafo jocoso e anônimo de um
frequentador assíduo do CAC do Rangel, cuja performance foi registrada em áudio e
exaustivamente compartilhada nos grupos de WhatsApp. Apresentado ao pesquisador
por um jovem que tinha avós no Rangel e que, “... somente por isso frequentava...” o
bairro, e que, também somente por isso, chegou a visitar o “... CAC do Rangel, mas só
uma única vez, - porque Se você mexesse com qualquer ali, já era queimação. Muita
alma sebosa ia tirar onda no CAC. Dá pra mim não!”, - segue abaixo a transcrição do
material:
Bicho, agora a crise afetou demais, pô! A gente tem que fazer alguma
coisa nessa política! Olha aonde chegou a crise, pô: no CAC do
Rangel, pô! Quem é a gente, pô, agora, no dia de domingo, no virote?
É o único lugar do mundo, bicho, que todo mundo ia, era o CAC do
RangeL! Cerveja a doi real, pô! As bichinhas com a suvaqueira que
pega até em boneca de plástico... O caba passa o dia todin bebendo,
fedendo, o caba ia po CAC. Lá o cara botava um kit de rum montilla
com a coca e as bichinhas já chegava dançano perto do caba, parecia
uma cobra na areia quente... Como é que pode, meu irmão, um
negócio desse? Olha pa essa imagem (refere-se à imagem da Imagem
13), pô! Quem foi ali sabe! Dá vontade de chorar, pô! (Suspiro
profundo.) Era o melhor lugar do mundo, pô! As sapatãozinha tudo se
beijando, depois beijava o caba... O cara botava um kitizin daquele de
vodka, pô, com a fanta laranja, sabor caganêra... Era as nega tudo
rindo para a cara do cara, pô, dançando com o caba, que era uma
dança exclusiva: aquela dança que bota a mão por trái do pescoço do
caba e fica se requebrando até o chão, pô! Os caba atrái de matar o
caba, o caba querendo fugir... Era o único lugar do mundo que todo
mundo dava certo, era ali, pô! O caba pegava as bichinhas, beijava na
boca... Ninguém tinha crise, não, pô! Olha agora aonde chegou a crise,

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pô: no CAC do Rangel, pô! Vamo fazer um abaixo-assinado... vamo


fazer alguma coisa, pô, o mundo tá se acabando! É foda, pô, é foda!
As sonoridades marginais que caracterizavam o CAC do Rangel enfatizavam,
nesse sentido, a batida forte, enérgica e sincopada com muita repetição do paredão em
altíssimo volume, assim como a mensagem irreverente, transgressora, direta e
sexualizada dos DJs que chamam a multidão para a dança e sacodem a galera, como no
bordão acalorado de Gil Bala, autodenominado o Rei do Batidão,
Tá Osso, Tá Tenso (Gil Bala):
Essa eu fiz Para as novinhas/ Que o namorado/ Não dava atenção (2x)/
Deixa essa bad de lado/ E vem curtir/
O rei do batidão (2x)/ Aproveita e faz um snapgram/ Pra ele te ver
Descendo até o chão (2x).
Percebe-se, assim, nessa descrição densa, a dinâmica interacional dos jovens no
CAC do Rangel, e o quanto aquele espaço materializava um metarrelato simbólico das
sociabilidades de lazer do Varjão/Rangel como um todo, mas também das hierarquias,
posições sociais e códigos de moralidade do bairro. Para ali acudiam os jovens
moradores como personagens estilizados de uma pobreza urbana envergonhada, mas em
luta por reconhecimento e afirmação de seus próprios códigos de conduta e
comportamento. O CAC do Rangel era o local em que performatizavam práticas
corporais, formas de se vestir, musicalidades e danças, jogos de sedução e valentia, -
alguns até redundando, às vezes, em atritos com feridos e mortos, - próprios do estilo de
vida de uma pobreza urbana contemporâneas, mas ainda capaz de se articular em torno
de tradições, memórias e temporalidades próprias.
Apontamentos derradeiros…
No CAC do Rangel, o jovem morador se mostrava como agente reflexivo e
criativo da cultura emotiva densa, tensa e ambivalente do bairro Varjão/Rangel, em
pleno domínio de uma antiguidade de memórias afetivas e de signos de pertença, de
modo que, apesar das acusações estigmatizantes, sentia-se à vontade e valorizado
naquele lugar. A demolição do CAC do Rangel, em síntese, trouxe à discussão cotidiana
entre os moradores, por estas razões, os riscos e perigos do avanço da integração
econômica, mas não moral e emocional, do bairro às exigências da cidade oficial. Se,
por um lado, o lugar Varjão/Rangel de certa forma via-se a partir de então mais afastado
do CAC do Rangel, um elemento de embaraço e envergonhamento constante para o
morador do bairro por fim extinto; por outro lado, aquela sociabilidade urbana
ambivalente em sentimentos de vergonha e orgulho, de pertença e estigma, via-se
consideravelmente diminuída em suas potencialidades expressivas e de produção
simbólica para a identificação social, haja vista a longa e rica carreira moral do CAC do
Rangel como celeiro de talentos locais e impulsionador do estilo de vida da periferia,
bem como sua inegável importância como lugar se conforto e segurança para as festas
da juventude do bairro do Varjão/Rangel.
Considerações finais
Mesmo que em cidades de escalas diferentes, as pesquisas tratadas nesse
trabalho seguem a trilha da análise do urbano contemporâneo brasileiro sob o enfoque
microorientado. Isso oportuniza a ênfase nos atores e agentes sociais que dão vida as
cidades, aqui apresentados no vendedor da feira ganha confiança dos seus clientes, na
jovem universitária que se desenvolve dentro de uma Cultura Emotiva e Visão de
Mundo atenta à cultura do medo e no jovem periférico desenvolve uma rede de

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sociabilidades e de sentidos a partir do lazer. Esses exemplos mostram a diversidade


possível no urbano contemporâneo brasileiro, sendo no contexto da pesquisa o urbano
nordestino. Mostrando que não existe um modo homogêneo de se enquadrar um lugar
como urbano, mas que devemos estar atentos à diversidade de expressões e de
heterogeneidade dos papéis sociais em uma sociedade complexa.
De forma diferente, os três campos chamaram atenção para o modo como no
urbano contemporâneo se perpassa tempos, como tradições são mantidas e como o novo
se apresenta. Em Caraúbas, o ritmo da pequena cidade é rompido pelos ruídos da
movimentação e da atividade urbana, que apesar de tanto deslocamento, os moradores
mantêm laços sociais primários fortes. No Alto do Sumaré, a chegada dos conjuntos
habitacionais da faixa 2 e 3 do PMCMV não alterou o modelo de casas que estavam ali
desde a ocupação do lugar, mesmo o maior condomínio divide rua com um terreno
usado pra criar gado, criando assim uma imagética de vários bairros dentro de um, de
estigmatização de algumas partes em prol de um sentimento de segurança. No
Varjão/Rangel vemos como a tradição e a tecnologia se relacionam, de como a tradição
pode ser parte da estratégia de rememoração e de preservação de um antigo
Varjão/Rangel. Essa pesquisa, portanto, vai de encontro a quem tenta homogeneizar o
nordeste brasileiro, que tenta caricaturar o nordestino; vai contra o empreendedorismo
moral e da memória que cria a imagética de um nordeste apenas fundiário, oligarca e
conservador. Contra isso, apresentaram-se as dualidades, as similaridades e as
singularidades que compõem o urbano, a complexidade de cada universo estudado, seja
ele toda a cidade ou apenas uma parte dela.
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