Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Introdução
O presente artigo, intitulado Cultura emotiva e moralidades em diálogos:
reflexões em etnografia urbana conjuga três exercícios etnográficos produzidos sobre
sociabilidades urbanas de pequena e média escala. O objeto analítico destas etnografias
é a cultura emotiva e moral expressa nas sociabilidades ordinárias e cotidianas da rua,
1
Graduada em Direito pela Universidade Potiguar – UnP. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais e Humanas - PPGCISH, na UERN. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9227-3601, E-
Mail: winnie.souza@alu.uern.br.
2
Graduado em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Mestrando do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas - PPGCISH, na UERN.
https://orcid.org/0000-0002-8349-6472, E-Mail: angelosousa@alu.uern.br.
3
Doutor em Antropologia (UFPE). Professor Visitante vinculado ao Departamento de Ciências Sociais e
Políticas - DSCP e ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas - PPGCISH, na
UERN. Orcid: http://orcid.org/0000-0002-2437-3149, E-Mail: raoniborgesb@gmail.com.
14
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 14, julho de 2021 ISSN 2526-4702
15
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 14, julho de 2021 ISSN 2526-4702
16
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 14, julho de 2021 ISSN 2526-4702
17
em uma parte do espaço da mercearia ou bodega, ou, ainda, em meio aos caixotes das
bancas da feira.
Os objetos pessoais dos sujeitos, enquanto clientes ou transeuntes no centro,
permanecem sob o cuidado e vigilância dos funcionários dos comércios e feirantes.
Estas são situações percebidas de maneira bastante natural, configurando um acordo
verbal rápido e informal: “ei, olhe aqui minhas coisas”, “vou deixar essas sacolinhas
aqui e venho já”, sendo selados pela outra parte com frases como “pode deixar que aqui
ninguém mexe” ou “aqui tá guardado”. A observação das dinâmicas de interação e
vivências das subjetividades no cotidiano do centro da cidade reflete e evidencia, deste
modo, uma relação entre sujeitos fundamentada na expectativa de cuidado e cortesia por
parte do outro. O que vem a ser um processo intersubjetivo estruturado em um
sentimento compartilhado de confiança percebida e praticada em situações de interação
como parte de uma cultura emotiva local.
Nas sociabilidades observadas em Caraúbas, compreendem-se valorações
compartilhadas de honestidade e confiança como traços positivos ou negativos de
caráter, ressaltados na figura comerciante e do seu estabelecimento, bem como, na
figura do sujeito, como cliente e amigo, que deixa seus pertences na propriedade de
outro. Tais situações evidenciam códigos morais que refletem as dinâmicas de interação
entre os sujeitos em suas construções, discursos e entendimentos coletivamente
apresentados e representados.
É no cotidiano observado no centro da pequena cidade onde os movimentos e
processos dos sujeitos em sociabilidade estabelecem dinâmicas de interação nas quais
construções conceituais como honestidade, integridade, honra e reputação fundamentam
percepções de códigos de conduta situacionais e valores de ordem moral como
elementos organizacionais das estruturas sociais. São sistemas de moralidades
culturalmente construídos e percebidos no cotidiano urbano em jogos e redes dinâmicas
de interação e apresentação do sujeito (GOFFMAN, 2002) nos diferentes espaços
públicos.
Conforme Coelho (2013), a ação do ator social não é a reação a um estímulo ou
causalidades de ordem macro, mas um processo de interpretação ocorrido gradualmente
no curso das situações sociais. Nesse sentido, o sujeito é o ator e habitante do social
complexo que percebe, reflete, interpreta e interage com o seu ambiente, construindo e
desconstruindo cadeias de significado em um processo indeterminado, criativo e fluído.
Herbert Blumer (2013), ao estudar a sociedade como interação simbólica a partir de
George H. Mead analisa o ser humano como objeto de suas próprias ações e dotado de
um self, que age simultaneamente em relação a si mesmo e aos outros. Para o autor “a
vida consciente do ser humano [...] é um fluxo contínuo de autoindicações” (BLUMER,
2013, p. 77) e processo comunicado, sendo no ato de fazer indicações para si que o
indivíduo concebe significados e transforma coisas em objetos.
Sob a análise de Koury (2009), os estudos interacionistas de questões
microssociológicas ensejam a análise dos processos sociais, morais e culturais de
emergência das emoções enquanto categoria analítica de formação e ação social no jogo
inter-relacional. Para o autor, as emoções e sentimentos, como fenômeno e objeto de
investigação antropológica, permitem entender e apreender a noção da subjetividade
quando em vivências e relações tensas entre o social (KOURY, 2004, 2009). Refletir as
dinâmicas sociais no contexto da pequena cidade, sob o ponto de vista dos moradores
locais, é refletir acerca da percepção dos sujeitos, enquanto indivíduo e coletividade, de
um código moral próprio, identificando-os e distinguindo-os entre si, e ao mesmo tempo
reconhecendo significados, questões e valores próprios da cultura emotiva local,
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 14, julho de 2021 ISSN 2526-4702
18
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 14, julho de 2021 ISSN 2526-4702
19
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 14, julho de 2021 ISSN 2526-4702
20
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 14, julho de 2021 ISSN 2526-4702
21
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 14, julho de 2021 ISSN 2526-4702
22
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 14, julho de 2021 ISSN 2526-4702
23
translado a pé, já que as calçadas curtas ou tomadas pelo mato e por materiais de
construção fazem com que os pedestres tenham que dividir espaço com um enorme
tráfego de carro.
O interesse econômico que levou à construção de novas casas no Alto do Sumaré
fez com que, além dessas casas, investissem na abertura de comércios na região, que
atendessem a demanda dos novos moradores. Na rota, foi visto diversos desses pontos
comerciais, mas o que destaco é são os imóveis com várias salas comerciais. As salas
desses imóveis são pequenas, não conseguem receber tantos clientes, mas acreditamos
que esse seja um elemento arquitetônico de um racionalismo capitalista de otimização
dos espaços para o máximo de lucro. Foi possível perceber um número menor de
pessoas utilizando o comércio, mas muitos entregadores, que rodam o bairro, fato que
pode ter sido potencializado pelo período de isolamento social causado pela pandemia
da Covid-19. Os entregadores fazem com que seja possível essa sociabilidade
autocentrada no lar, já que ao passo que eles podem se utilizar do comércio local, eles
não precisam sair na rua, sendo esse um lugar incerto e de potencial perigo. O fato
acima citado trata-se de uma característica de como a cultura do medo se apresenta no
bairro.
Outro imóvel que chamou atenção foi uma base da polícia militar, que se
encontra ao lado da sede da associação comunitária do bairro. Em 2012, essa base
recebeu o projeto de segurança pública chamado Base Integrada Cidadã (BIC), ele
coincidiu justamente com o principal momento de expansão imobiliária do bairro, que
em seu modelo de casa ofertada estava atenta à segurança particular. Assim,
inicialmente podemos falar em um empreendimento público e privado na gentrificação
do bairro Alto do Sumaré, primado pelo discurso da Segurança Pública, que pode acabar
por escolher pessoas e lugares que devem ser segregados para que os moradores possam
desfrutar de segurança. Porém, após o fim do programa BIC, é percebido um latente
discurso da falha da segurança pública, que se fortalece em um discurso maior de falha
do público no bairro, já que vemos ainda lugares sem estrutura de pavimentação, falta
de aparelhos públicos de lazer e de oferta de serviços.
Como apresentado por Lima (2017), estudando o crescimento da violência na
cidade de Mossoró, uma das características do discurso de falha da segurança pública,
foi a adoção para uma resposta pessoal para o problema, fazendo com que as pessoas
que optassem por essa estratégica, se isolassem nos muros e abandonassem os espaços
públicos. Consequentemente, os espaços públicos são descartados como espaços
possíveis para o lazer e ficam sendo visto como lugar de perigo e figuras limiares, além
disso, aquelas pessoas que não têm poder aquisitivo para investir em segurança privada,
ficassem vulneráveis aos atentados da violência urbana.
Imagética de segurança e a sociabilidade em regime de desconfiança
O segundo percurso realizou-se em companhia de uma informante, sujeito do
bairro, essa que chamarei na pesquisa de Ipê. O trajeto do percurso foi feito a partir da
casa dela, passando por locais do bairro dos quais ela achava interessante de ser
mostrado/apresentado.
Ipê relata que chegou ao bairro a partir da vontade de seus pais em ficar mais
próximos às suas famílias, assim, em 2009, adquirem um imóvel e passam a ser
moradores do Alto do Sumaré. Contou que um dos requisitos para escolha da casa era
que ela fosse com laje, impossibilitando que possíveis ladrões tentassem entrar em sua
casa pelo teto: esse requisito seria colocado pela sua mãe.
Outra estratégia para evitar que sua casa seja alvo de roubos, assaltos ou
invasões, foi a instalação de Pega-Ladrão (grades) em suas portas e janelas, fazendo da
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 14, julho de 2021 ISSN 2526-4702
24
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 14, julho de 2021 ISSN 2526-4702
25
Relacional.
Pensa-se também que os conflitos geracionais vêm a partir do momento que Ipê
desenvolve seu próprio Projeto de Vida, a partir de como vem mudando sua Visão de
Mundo e como decodifica o Campo de Possibilidades. Mas que suas aspirações entram
em conflito direto com os da sua família. O primeiro ponto que Ipê apresentou foi a
antiga Unidade de Ensino Infantil do bairro, que se encontra fechada desde antes do
início da Pandemia, tendo suas atividades realocadas para o prédio de uma Escola
privada. Isso me chamou atenção mais uma vez para a relação entre Público e Privado
daquele Lugar. Atento aos imóveis, percebi que a demanda para vagas de Ensino
Infantil é atendida por Instituições privadas, das quais consegui observar 3 e fotografar
2.
Regime de desconfiança e cultura do medo: breves considerações
Pensando a partir do Interacionismo Simbólico, sobretudo a partir do Goffman
(2010, 2011), sabemos que os indivíduos constroem fachadas para suas interações de
face-a-face, que a busca pela preservação da fachada é sagrada nas sociabilidades, onde
se evita relações de engolfamento e de vergonha. A sociabilidade, no lócus dessa
pesquisa, a partir do momento que os indivíduos estão cada vez mais autocentrados em
seu Lar, não estão interagindo em lugares públicos.
Conforme relatou Ipê, ela não conhece seus vizinhos, não sabem o que fazem,
nem interagem. Em uma casa visitada, onde inicialmente dialogou-se sobre o fato de a
rua ter sido uma das primeiras do bairro, a atenção se voltou sobre a casa da frente, já
que a altura do muro havia chamado a atenção. A moradora pediu para que tirasse a foto
(ver figura da imagem 12) dentro da casa dela, abriu o portão apenas o suficiente para
que fosse possível enquadrar a casa.
Ela diz que era melhor assim, pois o seu vizinho da frente poderia não gostar,
não sabia como ele poderia reagir a uma pessoa tirando uma foto de sua casa. O medo
seria criar uma situação limite na vizinhança que desembocasse uma serie de
desconfianças e acusações com um resultado imprevisível. Essa desconfiança se repetiu
no campo, várias pessoas negavam a palavra, não gostariam de falar sobre o tema da
violência, negavam o meu pedido de tirar foto da fachada de suas casas por não poder
presumir minha índole.
Pensa-se que o medo, a desconfiança e o silenciamento permeiam a cultura
emotiva desse lugar; a sensação sentida no bairro é mais de insegurança do que
segurança. As casas cada vez mais muradas e vigiadas dar a sensação de que o
transeunte está passível de sofrer com algum tipo de violência em qualquer hora. As
sociabilidades são contidas dentro das casas que seguem um modelo arquitetônico
atento à linguagem do medo, presente no discurso social, político e midiático. Para uma
convivência com o Outro, os moradores do Condomínio Bella Vista aceitam morar
dentro de um enclave fortificado (CALDEIRA, 2003), mas que lá dentro eles podem ter
interações face-a-face, desfrutam de um espaço comunitário e áreas de lazer (no espaço
privado) ausentes no equipamento público do bairro.
Mesmo com a afirmação que é possível perceber a cultura do medo na cultura
material do bairro, ou seja, modelo de imóveis, disposição de ruas e sufocamento de
parte dos bairros mais antigos, acreditamos que a cultura do medo seja somente um dos
elementos influenciadores do campo de possibilidades da cultura emotiva desse Lugar.
Já que dentro do modelo quase que padrão das casas, foi possível perceber a
inventividade dos indivíduos diante das curvas de vida encontradas dentro das trocas
materiais e simbólicas da sociedade mossoroense, pode ser observado a adaptação de
casas para abertura de estabelecimentos comerciais.
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 14, julho de 2021 ISSN 2526-4702
26
Imagem 12: Foto tirada dentro da casa de uma moradora, após sua advertência de cuidado
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 14, julho de 2021 ISSN 2526-4702
27
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 14, julho de 2021 ISSN 2526-4702
28
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 14, julho de 2021 ISSN 2526-4702
29
fechamento do CAC do Rangel. Nos rumores e fofocas que corriam e correm entre os
moradores, fechava-se o CAC do Rangel para dar lugar a um empreendimento
comercial de maior porte, e maior dignidade, para as atividades econômicas do pulsante
centro comercial da Avenida 02 de Fevereiro.
Como narrou em tom jocoso o pai do G.F., seu G.P. (Senhor de seus 60 anos e
também batizado com o nome que dera ao filho), durante a entrevista semiestruturada
sobre a evolução urbana do bairro, o CAC do Rangel, atualmente ainda uma das
referências simbólicas de maior potência do Varjão/Rangel na cidade enquanto
danceteria e centro recreativo há muito gerido pelo conhecidíssimo e querido Biu do
CAC, fora “...antigamente o prostíbulo popular Minha Deusa...”, local badalado e
bastante conhecido na zona sul da cidade.
Este passado ainda pesa na memória dos antigos moradores do Varjão/Rangel e
da cidade, que associam o CAC do Rangel a uma moralidade violenta e perigosa das
gangues juvenis. Herdeiro, portanto, da moralidade degradada, de devassidão, de
boemia e de jogo do outrora Minha Deusa do antigo lugar Varjão. De acordo com
notícia de Jornal do PBHoje, de 16 de outubro de 2018, o CAC do Rangel fechava as
portas para dar lugar à construção de um banco.
A fonte dessa informação eram internautas, de modo que, mais do que qualquer
elemento de veracidade, apontava para o desejo publicamente expresso dos moradores
em ter no bairro uma agência bancária, pois, como pude registrar nas andanças e
conversas pelo Varjão/Rangel: “Onde só tem casa lotérica é coisa de pobre!” De acordo
com a notícia (PBHoje, 2018):
Casas de show CAC do Rangel e Ponte Preta fecham às portas em
João Pessoa
Duas casas de shows tradicionais da periferia de João Pessoa fecharam às
portas. Uma delas foi demolida e outra deixou de realizar eventos.
O CAC do Rangel, no bairro do mesmo nome, foi demolido nesta terça-
feira (16). No local, conforme internautas, será construído um banco.
A casa, que ficou conhecida como o slogan: “o CAC faz você dançar”, foi
palco de apresentação de grandes artistas como Aldair Playboy, Gil Bala,
Conde do Forró, entre outras atrações musicais.
A Imagem 13 abaixo, capturada da notícia de jornal veiculada pelo PBHoje, de
16 de outubro de 2018, mostra o interior do CAC do Rangel, já em processo avançado
de demolição (teto desfeito e estrutura interna demolida). Esta fotografia circulou em
vários grupos de WhatsApp de jovens do Varjão/Rangel.
Imagem 13: Imagem do CAC em processo avançado de demolição
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 14, julho de 2021 ISSN 2526-4702
30
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 14, julho de 2021 ISSN 2526-4702
31
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 14, julho de 2021 ISSN 2526-4702
32
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 14, julho de 2021 ISSN 2526-4702
33
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 14, julho de 2021 ISSN 2526-4702
34
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 14, julho de 2021 ISSN 2526-4702