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Volume 5 – Número 13 – março de 2021 – ISSN 2526-4702

Artigos
Identificações religiosas entre jovens carismáticos em Bezerros-PE – pp. 9-19
Resumo/Abstract
Maria Patrícia Lopes Goldfarb; George José Castelo Branco de Oliveira

Civilizados pela boa forma urbana? Os conjuntos habitacionais da era COHAB-GB/CHISAM e seu projeto de governo de
disciplinarização dos pobres – pp. 21-32
Resumo/Abstract
Wellington da Silva Conceição

“De que família você é?” O médio e o pequeno urbano e rituais de interação – pp. 33-46
Resumo/Abstract
Manuela Blanc; Renan Lubanco Assis

“Guerra ao coronavirus” como regime de engajamento “em urgência”: uma análise do combate à pandemia – pp. 47-62
Resumo/Abstract
Igor Perrut

A mutação do espaço público: sociabilidades na Praça da Paz, João Pessoa – PB, antes e durante a pandemia do coronavírus – pp.
63-79
Resumo/Abstract
Camila Andrade; João Nunes

A Antropologia das Emoções – pp. 81-115


Resumo/Abstract
Catherine Lutz; Geoffrey M. White - Tradução de Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Emoções e fotografia – enleio sobre uma fotografia anônima de caixões populares para enterros de crianças- pp. 117-124
Resumo/Abstract
Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Aniversário do Bharbixas no Mineirão: experiência, futebol gay, mercado e direito à cidade – pp. 125-136
Resumo/Abstract
Vanrochris Helbert Vieira

Cultura alimentar como objeto das políticas culturais: o caso brasileiro (2003-2016) – 137-146
Resumo/Abstract
Lina Luz Cavalcanti; Alexandre Barbalho

Territorios en disputa en Entre Ríos: extractivismo urbano y protesta ambiental – 147-169


Resumen/Resumo/Abstract
Marcelo D’Amico; César Pibernus
Documentos
Apresentação/Presentation – pp. 173-176
Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Chicago, experiência étnica – pp. 177-209


Resumo/Abstract
Maurice Halbwachs - Tradução de Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Resenhas
Resenha do livro Tempos de Pandemia – pp. 213-220
Fanny Longa Romero

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Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
Sobre a Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia

Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia é uma revista acadêmica do Grem-Grei,


grupos de pesquisa em antropologia e sociologia, e interdisciplinar em imagens. Tem por objetivo debater
as questões de formação do self e de culturas emotivas nas sociabilidades urbanas contemporâneas na
perspectiva teórico-metodológica das Ciências Sociais, sobretudo a antropologia e a sociologia.

Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia se propõe o esforço de construção de


uma rede acadêmica de discussão e reflexão sobre o urbano contemporâneo, em especial o brasileiro, de
uma perspectiva interacionista e figuracional da antropologia e sociologia, de modo a enfatizar o
exercício de análise da cidade enquanto comunidade paradoxal e espaço societal de intenso conflito entre
cultura objetiva e subjetiva na qual emerge a individualidade moderna.

O fazer antropológico e sociológico se direciona, nesta proposta teórico-metodológica, para o esforço de


observação e análise da formação da cultura emotiva, dos códigos de moralidade e do self de atores
sociais situados como agências criativas e produtoras de um espaço interacional e intersubjetivo urbano
específico.

Problematiza, portanto, a dimensão processual da construção e desconstrução das cadeias de


interdependência que se manifestam socialmente enquanto objetificação de conteúdos subjetivos trocados
pelos atores sociais.

As consequências desta exigência teórico-metodológica podem ser percebidas na preocupação, quando do


fazer etnográfico e da observação micro-orientada das formas e conteúdos sociais, do registro das tensões
e dos vínculos de solidariedade e conflito entre os interactantes no formato de encontros, pertença,
confiança, traição, medos, angústias, vergonhas, ressentimentos, humilhações, sofrimento, e ainda todo
um conjunto extenso de emoções e gramáticas morais que perfazem as práticas e o imaginário cotidiano e
ordinário dos atores sociais na cidade.

Estas emoções revelam, entre outros, as disputas morais e os códigos de moralidade em jogo nos sistemas
de posição que organizam as fronteiras e hierarquias simbólicas e materiais entre as unidades
interacionais sob análise.

A agenda teórico-metodológica e os interesses temáticos abrigados na proposta de publicação


da Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia vem sendo amadurecidos em uma
rotina de pesquisa de quase quatro três décadas desenvolvida no Grem-Grei, grupos de estudo e pesquisa
em antropologia e sociologia das emoções e interdisciplinar em imagens. Sociabilidades Urbanas –
Revista de Antropologia e Sociologia parte também da experiência acumulada nos quase vinte anos de
publicação sobre emoções da Rbse – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, fundada e editada por
Mauro Koury e também sediada no Grem-Grei.

Neste ínterim, Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia se situa em uma tradição
acadêmica de pesquisas e reflexões em antropologia e sociologia sobre o indivíduo, o social e a cultura da
perspectiva das emoções e da imagem, de modo a enfatizar esta proposta no campo das sociabilidades
urbanas.

Mauro Guilherme Pinheiro Koury


Editor

Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
Editor e Conselho Editorial

Editor: Mauro Guilherme Pinheiro Koury (Grem-Grei/PPGA-UFPB)


Conselho Editorial: Cláudia Turra Magni (UFPEL); Cornelia Eckert (UFRGS); Gabriel
D. Noel (Argentina – UNSAM); João Martinho Braga de Mendonça (UFPB); Jussara
Freire (UFF); Lisabete Coradini (UFRN); Luís Roberto Cardoso de Oliveira (UNB);
Luiz Antonio Machado da Silva (UERJ) – In Memorian; Luiz Gustavo P. S. Correia
(UFS); Maria Cláudia Pereira Coelho (UERJ); Maria Cristina Rocha Barreto (UERN);
Pedro Lisdero (Argentina – CONICET); Roberta Bivar Carneiro Campos (UFPE);
Rogério de Souza Medeiros (UFPB); Simone Magalhães Brito (UFPB).

Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia


Publicação Quadrimestral do GREM/UFPB
ISSN 2526-4702
E-Mail: socurb@grem-grei.org

Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
Expediente

Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia é uma revista


acadêmica do GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções.
Tem por objetivo debater as questões de formação do self e de culturas emotivas nas
sociabilidades urbanas contemporâneas na perspectiva teórico-metodológica das
Ciências Sociais, sobretudo a antropologia e a sociologia.
O GREM-GREI é uma unidade bipartida. São grupos conjugados de pesquisa e estudo
sobre emoções e imagens nas áreas de Antropologia e Sociologia.
The Urban Sociabilities – Journal of Anthropology and Sociology is an academic
journal of GREM – Research Group on Anthropology and Sociology of Emotions. It
aims to discuss the issues of self and emotive cultures formation in contemporary urban
sociabilities in the theoretical-methodological perspective of Social Sciences,
specifically with de anthropology and sociology.
GREM-GREI is a split unit. They are combined groups of research and study on
emotions and images in the areas of Anthropology and Sociology.

Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia / GREM-GREI – Grupos de Estudo e Pesquisa em


Antropologia e Sociologia das Emoções e Interdisciplinar de Estudos em Imagem, v. 5, n. 13, março de 2021.

João Pessoa – GREM, 2017.

(v.1, n.1 – março/Junho de 2017) – Revista Quadrimestral ISSN 2526-4702

Antropologia – 2. Sociologia – 3. Antropologia Urbana – 4. Sociologia Urbana – Periódicos – I. GREM – Grupo de


Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções. Universidade Federal da Paraíba

BC-UFPB
CDU 301
CDU 572

Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
ARTIGOS

Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
GOLDFARB, Maria Patrícia Lopes;
OLIVEIRA, George José Castelo Branco de.
Identificações religiosas entre jovens
carismáticos em Bezerros-PE. Sociabilidades
Urbanas, Revista de Antropologia e
Sociologia, v. 5, n. 13, pp. 9-19, março de
2021, ISSN 2526-4702.
ARTIGO
https://grem-grei.org/numero-atual-socurbs/

Identificações religiosas entre jovens carismáticos em Bezerros-PE


Religious identifications among charismatic young people in Bezerros-PE

Maria Patrícia Lopes Goldfarb∗


George José Castelo Branco de Oliveira∗∗

Resumo: O artigo é resultado de pesquisa realizada durante o mestrado - PPGCS / UFCG,


e tem como objetivo analisar como se constrói o pertencimento religioso entre os jovens
católicos do município de Bezerros-PE, no âmbito do catolicismo Carismático. Os jovens
se reúnem semanalmente na capela Nossa Senhora do Rosário, na cidade citada. Entre
outros aspectos da identidade religiosa, vemos como esses jovens buscam o sagrado;
concepções de pecado e santidade; e como elas se relacionam com o tradicionalismo da
Igreja Católica e a influência de elementos pentecostais. Em termos de metodologia,
fizemos observações diretas em reuniões do grupo e entrevistas com os jovens católicos da
paróquia selecionada, estratificada pela sua participação no grupo ‘Resgate’. Palavras-
chave: juventude, identidade, renovação carismática católica
Abstract: This article is the result of research carried out during the master's -PPGCS /
UFCG, and aims to analyze how religious belonging is built among young Catholics in the
municipality of Bezerros-PE, within the scope of Charismatic Catholicism. Young people
meet weekly in the chapel Nossa Senhora do Rosário, in the city mentioned. Among other
aspects of religious identity, we see how these young people seek the sacred; conceptions
of sin and holiness; and how they relate to the traditionalism of the Catholic Church and the
influence of Pentecostal elements. In terms of methodology, we made direct observations at
group meetings and interviews with young Catholics in the selected parish, stratified by
their participation in the ‘Rescue’ group. Keywords: youth, identity, catholic charismatic
renewal.

Introdução
Este trabalho é fruto de uma pesquisa cujo objetivo central consistiu em analisar
formas de religiosidade juvenil católica, mais especificamente entre jovens católicos
carismáticos. Teve como recorte empírico uma das paróquias da cidade de Bezerros,
localizada a 100 km da capital do estado de Pernambuco.


Docente do DCS/CCHLA/PPGA/UFPB, Líder do Grupo de Estudos Culturais-GEC, Orcid:
https://orcid.org/0000-0003-4627-6486. E-Mail: patriciagoldfarb@yahoo.com.br.
∗∗
Doutorando no PPGA/UFPB, membro do GEC. Orcid: https://orcif.org/0000-0002-2080-7018. E-
Mail: georgecastelobranco@hotmail.com.
10

Para isso se buscou identificar modos de pertença religiosa dos jovens Católicos
carismáticos, analisando o processo de ‘busca da santidade em meio às noções de
“pecado”. Trata-se de jovens que participam do ‘Grupo de Oração Resgate’ da
Renovação Carismática Católica1. A pesquisa foi realizada na paróquia de Nossa
Senhora do Rosário, onde são realizadas as reuniões do Grupo Carismático de Oração
denominado de ‘Resgate’.
Buscamos compreender estes jovens como parte da RCC, onde os jovens são
concebidos como: “... alguém mais propenso a atitudes heróicas e virtuosismo
religiosos, que busca a ‘santidade’ (MARIZ, 2005, p. 256). Observamos que o modelo
de religiosidade dos jovens católicos carismáticos se aproxima do modelo da ascese
intramundana, como proposto por Weber em termos típico-ideais em relação à ética
protestante, e exercitada, com as devidas especificidades históricas, sociais e culturais,
pelos pentecostais evangélicos no Brasil.
Conforme a literatura consultada, tomamos a religiosidade como um aspecto da
realidade social, o que possibilita compreender aspectos da nossa sociedade. Como
afirmam Adjair Alves e José Roberto Ferreira (2012, pp. 63-66):
A religiosidade se mostra fecunda como condutora e precursora das
ações sociais, já que, partindo dela, os indivíduos podem atribuir
sentidos a sua existência e pautar suas escolhas em meio a valores. (...)
Por ter esta um conjunto de significados que permite ao homem dar
sentido e fundar seu mundo frente ao sagrado, assim como o profano,
ela tem se constituído em um dos principais vetores do
comportamento humano ao longo do tempo e do espaço.
Deste modo, concebemos a capacidade de simbolizar o mundo através da
construção de significados relativos a diversos aspectos da experiência humana, como
os símbolos religiosos, dramatizados em rituais e relatos míticos; que representam para
seus adeptos o mundo, a vida emocional e as formas de comportar-se (GEERTZ (1978).
Para a realização da pesquisa atentamos para construções identitárias entre
jovens integrantes do grupo de orações (GOR)2, especialmente naquilo que consideram
caminho para “santidade”.Neste artigo tratamos da pesquisa feita com um grupo
religioso na paróquia de Bezerros, cidade de tradição religiosa católica. Trata-se do
grupo “Comunidade de Aliança Resgate” - CCAR3, de vertente carismática.
Assim, foram observadas reuniões semanais do grupo, que duravam em média
02h30min. Essas reuniões envolviam uma intensa carga emocional, com a utilização de
cânticos, gestualidade corporal acentuada, tais como palmas, coreografias simples e
momentos de ‘êxtase espiritual’.
A pesquisa nos mostrou como as religiões surgem como uma dentre as
possibilidades de construções identitárias e de integração juvenil ao mundo social. “Ela
é um espaço no qual os/as jovens viverão, aguardando dela a indicação do "norte" para
sua vida cotidiana” (FERNANDES, 2013, p.80), o que é aqui analisado através da
identidade católica carismática entre jovens.

1
Passamos a usar a sigla RCC.
2
GOR significa Grupo de Orações Resgate.
3
Comunidade Carismática de Aliança Resgate, onde foi feita a pesquisa.

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Juventude e religiosidade
A identificação religiosa também constitui uma importante forma de identidade
social juvenil, mesmo em meio a um contexto marcado pela intensificação do trânsito e
pluralismo religiosos (HERVIEU-LÉGER, 2008).
Como é apontada por diferentes autores no campo das ciências sociais, a pós-
modernidade não representou o desaparecimento da religião, tornando-se cada vez mais
plural e multiforme. A família também é uma instituição incentivadora na trajetória
religiosa de muitos jovens. (CARDOSO, 2013 apud FERNANDES, 2013, p. 71)4.
A juventude consiste numa categoria geracional ou etária, composta por
subjetividades e modos de vida específicos, de acordo com cada grupo social. Nesta
fase é vivida de acordo com o desempenho de papéis sociais específicos e atitudes
correlatas, exigindo certos ritos de passagem para a fase adulta. É sabido que o
matrimônio, filhos e o trabalho servem como aferidores da fase adulta e saída da fase
juvenil (PAIS, 1990).
Obviamente não deixamos de considerar a juventude em sua diversidade; em
função de diferentes pertenças: de classes, situações econômicas, culturais, de gênero,
oportunidades ocupacionais, etc.
Para Foracchi (1972, apud SOFIATI, 2011, p. 13), a “juventude é, ao mesmo
tempo, uma fase da vida, uma força social renovadora e um estilo de existência, sendo
que cada sociedade constitui o jovem a sua própria imagem”. Como a autora,
defendemos o uso do termo no plural, para a compreensão da multiplicidade de
formatos de identidades e sociabilidades juvenis.
Isto posto, consideramos a diversidade de "juventudes" no campo religioso
brasileiro, e neste caso entre os católicos que, como afirma Novaes (2004 apud
FERNANDES, 2013, p. 78):
Acompanhando recortes como classe, gênero, raça ou cor, local de
moradia, opção sexual, estilo ou gosto musical, também a religião
pode ser vista como um dos aspectos que compõem o mosaico da
grande diversidade das juventudes brasileiras.
Para Mariz (2005), a subjetividade da juventude contemporânea tanto pode levar
os jovens a não ter como ter ‘muita’ religião. Em todo caso, os movimentos religiosos
são meios importantes de socialização da juventude nos anos 2000, onde se destaca o
pentecostalismo de "terceira onda" e a RCC (CARDOZO, 2010).
Uma característica dos jovens que se inserem em denominações religiosas é a
busca por pertença ao grupo. As instituições religiosas proporcionam a seus integrantes
a reflexão, os questionamentos e os debates sobre a conduta humana, moldando os
comportamentos dentro e fora do espaço eclesial. Vale ressaltar também a construção de
formas específicas de vivências juvenis, gerada pelas práticas comunitárias religiosas,
proporcionando demarcações de territorialidade juvenis.
Este modelo de regulamentação da vida sob inspiração religiosa é o que Weber
chamou de ascetismo intramundano:
Os cristãos ‘eleitos’ estão no mundo apenas para aumentar a glória de
Deus, obedecendo a seus mandamentos com o melhor de suas forças.
Deus, porém, requer realizações sociais dos cristãos, por que Ele quer

4
Cardoso (2013) utiliza-se da expressão Underground Cristão, como classificação de grupos juvenis que
constroem redes de sociabilidades, através de micro comunidades emocionais ligadas por meios de
expressões artísticas como o white heavy metal, o gospelpunk, o christian hip hop, o gospel emo, o gótico
cristão, a capoeira gospel, dentre outras.

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que a vida social seja organizada conforme Seus mandamentos, de


acordo com tais propósitos. (WEBER, 2009, p.90)
O Brasil possui uma vasta diversidade de religiões e credos religiosos, conforme
nos mostra os censos do IBGE (2010). No intuito de conter a diminuição de fiéis,
principalmente para as denominações pentecostais e neopentecostais, a igreja católica
faz surgir nos anos de 1970 a Renovação Carismática Católica, com uma proposta de
marcada pela ênfase nos dons do Espírito Santo, em um estilo mais dirigido à
experiência religiosa emocional, tendo como um dos principais alvos o segmento dos
jovens (CARRANZA, 2009).

Notas sobre a Renovação católica carismática


O pentecostalismo católico desenvolve-se nos inicialmente nos EUA através de
um movimento religioso que buscava o avivamento do Espírito Santo, demonstrado
principalmente pelo ‘dom de Línguas’. O movimento agrupava fiéis de várias
denominações, proporcionando interações diferenciadas nas celebrações (CAMPOS,
1995).
Scheeben lança em 1880 a Teologia dos charismata, obra em que destaca ‘a
ação singular do Espírito Santo na formação da vida cristã’ (SYNAN, 2001). Um
importante fator para o sucesso inicial da RCC foi o movimento ecumênico Adhonep,
sob a liderança de um leigo do estado da Califórnia, Demos Shakarian. Nesse
movimento emergiu o a ideia de “chamado” de católicos para serem pregadores da ‘boa
nova do Espírito Santo’ (HOCKEN, 2011, p.293). A partir daí foram sendo introduzidas
na Igreja Católica técnicas emocionais que levavam ao reavivamento da fé.
Embora não caiba neste artigo uma exegese da história da Renovação
Carismática Católica, é importante destacar, conforme aponta Hocken (2011), que está
localiza-se no contexto da "segunda onda pentecostal" também chamada de pentecostal
revival5. Interessante que as primeiras lideranças dos carismáticos católicos eram em
sua maioria jovens universitários, que absorvem as propostas do Concílio Vaticano II,
em sua busca de ‘novas formas de evangelização’.
Nesta seara, a Igreja Católica vai desenvolvendo semelhanças com os
pentecostais evangélicos, pela ênfase no estudo da Bíblia e no estímulo à manifestação
dos carismas (dons do Espírito Santo), dentre os quais os de cura e de exorcismo, como
ênfase do ‘poder de Deus’; mas diferenciando-se deles pelo culto a Maria, sem que se
questionem as bases mais gerais da hierarquia institucional católica.
Nos anos 70 a RCC lança suas bases estruturais no Brasil, com a proliferação
dos ‘grupos de oração’, a formação dos Conselhos e Secretarias, criando normatizações
burocráticas entre os carismáticos católicos no país. A partir daí o movimento passa por
um crescimento notável, com destaque na mídia e na sociedade em geral.
Seguindo o modelo dos pentecostais evangélicos, os carismáticos só consideram
“cristãos” a partir do ‘batismo no Espírito Santo’, muitas vezes denominado como
“segundo batismo”, acompanhado pelo ‘dom de Línguas’ (PRANDI, 1997).
Como se observou na pesquisa, os carismáticos se encontram nas reuniões dos
Grupos de orações, que são conduzidas por leigos, embora algumas realizassem
encontros de missa/louvor que contam com a presença de um sacerdote. Muitas vezes

5
Conceito formado a partir do evento ocorrido no dia 14 de abril de 1906 na Igreja Holiness, da Rua
Azusa, em Los Angeles, Califórnia, sob a liderança do pregador Willian Joseph Seymour, no qual seus
integrantes tiveram o contato com o Espírito Santo, ao falarem em línguas (glossolalia), ‘repouso do
Espírito’, dentro de uma efervescência idêntica à descrita na Bíblia como vivida pelos discípulos de Jesus
Cristo, após sua ressurreição (em Atos, capítulo 2).

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são denominadas “missas de cura” ou “missa de Renovação”, com objetivos


específicos. Vale destacar que a ‘cura’ não está restrita aos aspectos físicos, mas
também ao espiritual, ligados um ao outro.
É evidenciado nas reuniões da RCC um alto conteúdo catártico, pela crença na
cura através do uso dos dons do Espírito Santo. Outra característica observada refere-se
à constante menção ao nome do diabo enquanto ‘inimigo a ser vencido’ e ‘tentação a ser
superada na vida’ (FRESTON, 1994 apud SOUZA, 2007, p. 79).
Percebe-se uma preocupação em enfatizar os elementos do catolicismo
tradicional, por parte dos adeptos da RCC, como forma mesmo de demonstração para a
cúpula da Igreja Católica de que está sendo seguida uma linha normativa mestra, o que
lhes renova a permissão para atuarem dentro da Igreja, embora com a RCC, estes
católicos passam a poder experienciar uma religiosidade mais marcada pela vivência do
caráter místico da religião, e com um maior apelo ao sobrenatural.

Identidade religiosa juvenil em Bezerros-PE


A Comunidade Carismática Aliança Resgate surgiu no ano de 1998, no contexto
da expansão do movimento da Renovação Carismática Católica no Brasil nos anos 90.
Surge em Vitória de Santo Antão, localizado a 53 km de Bezerros, expandindo-se
depois, no formato de ‘células’, para as cidades pernambucanas de Caruaru, Bonito e
Bezerros.
Não representa apenas uma célula religiosa, mas objetiva ser também uma
comunidade de vida, segundo seus coordenadores. Está organizada por ministérios: de
música; de pregação; de intercessão e de acolhimento. É liderada pelo fundador, Sérgio
Erilson, e pelo coordenador de célula de Bezerros, o Sr. Erivan Joventino. Afirma ter
como propósito de carisma a restauração de vidas “desviadas” do cristianismo.
Nas terças-feiras à noite são feitos louvores e em outros dias da semana são
desenvolvidas outras atividades como: Retiros de Cura Interior; Encontro de Casais com
Cristo, Retiros de Casais, Balada do Senhor Jesus; Noite de louvores específicos, como
o de Pentecostes e pregações do evangelho em escolas, presídios e hospitais. A maioria
das ações da CCA Resgate é registrada e divulgada nas redes sociais.
O surgimento da CCAR é relatado como sendo fruto da inspiração divina, o que
é visto entre os participantes dos grupos e comunidades como motivo de orgulho. É
comum identificar os membros das CCVA pelo uso de cruzes e crucifixos, como um
sinal de pertencimento e distintividade.
Entre os jovens era comum um discurso de ascese intramundana, aliada a um
tipo de missão, pensada como incumbência de levar a fé para outras pessoas. A noção
de que possuem “missão de evangelizar”, no sentido de abraçarem um novo formato de
catolicidade a partir do desenvolvimento de vocações, apresenta a necessidade de um
engajamento na prática da fé.
Os jovens reconhecem o fundador como personagem importante e centralizador,
a partir de seu reconhecimento como portador de carisma fundamental da comunidade.
Já a busca da santidade passa pela atração da radicalidade do modelo de
religiosidade proposto. As pessoas geralmente procuram o preenchimento de um "vazio
existencial" e veem no engajamento à comunidade a solução pragmática para este
‘problema’.
A noção de santificação pessoal tem uma relação muitas vezes mais forte com o
"mundo terreno" do que com o "mundo espiritual". Neste cenário de santificação está a
abstinência de álcool, cigarros, do sexo antes do casamento; das festas ‘mundanas’; do
uso de algumas formas de vestimentas consideradas vulgares, etc. Há toda uma forma
discursiva de regras comportamentais que deve ser seguida.

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Mas nem tudo é restritivo, pois há entre os jovens um sentido de comunidade,


isto é, a partilha de uma pertença religiosa que os orienta e os igualam através da
partilha de moralidade e comportamentos correlatos (WEBER, 2009).
Por meio de entrevistas6 e de observação participante com os jovens observamos
que não é objetivo destes a transformação política da sociedade, mas a mudança interior
e individual, seguindo um programa de vida no qual a espiritualidade e a fidelidade
doutrinal e moral católicas constituam o eixo central (VALLE, 2004, p. 102).
No tocante a diferenciar-se de um catolicismo mais tradicional, embora não seja
abertamente falado, fica subtendido nas entrevistas que a forma de vivenciar a fé, a
partir do viés dos carismas faz a diferença, o que não implica deixar de ser católico:
Eu tinha esta vontade de entrar na carismática! Acho que a Igreja
católica precisaria sim desta renovação. Ficava achando interessante a
forma que os evangélicos pregavam, iam a outros lugares para isto,
além das igrejas. Na comunidade Resgate, vivo esta forma mais viva
do cristianismo, sem deixar o catolicismo, já que sou católica desde
nascença. (Franciele, 21 anos, participante da CCAR)
Como podemos perceber, os carismas são tidos como a “Renovação” do
catolicismo mais tradicional.
Algumas vezes já me confundiram com evangélica. Parece que por
ser da carismática, o povo acha que a gente é evangélica. É como que
um católico praticante não pudesse ser católico. Sou católica sim e
não deixo de ser. (Elaine, 19 anos, participante da CCAR).

Nas falas se reconhece semelhanças com os evangélicos pentecostais, mas


destaca o culto à Maria como ponto de diferenciação. Observe que se configura,
conforme vemos acima, o fiel carismático como um “católico praticante”, em
diferenciação ao católico litúrgico. Observamos nas entrevistas uma constante menção à
obediência hierárquica ao pároco e ao cultivo do ‘respeito às normas diocesanas’, mas
destacam o protagonismo da RCC na paróquia, no que se refere à atração de outros fiéis
jovens que ‘voltam à Igreja’.
Há um tempo, nós éramos vistos como os “evangélicos” da Igreja
Católica. Muitos estranham a nossa forma de louvor, de ir até àqueles
que precisam das palavras do evangelho. Somos um grupo da Igreja
mais ativo, mas fazemos parte de uma mesma Igreja. (Ednaldo, 28
anos, Coordenador da CCAR)
Algumas pessoas falam de como o louvor da Renovação carismática se
apresenta como ponto de atração, prática que muitas vezes é exercida por um leigo, o
que acaba provocando um conflito de lealdades, com uma obediência dividida entre às
lideranças da comunidade carismática Resgate e o pároco.
Logo quando entrei na Resgate, estranhei muito. Apesar de ter sido
atraída pelo louvor, a alegria, o jeito mais descontraído, estranhava
quando o evangelho estava sendo pregado por uma pessoa que não era
um padre. Era muitos anos no catolicismo tradicional... Mas agora,
compreendo que o dom da palavra Deus concede a quem ele quer.
(Sandra, 24 anos, participante da CCAR)

6
Foram entrevistadas 11 pessoas da comunidade, sendo 07 homens e 04 mulheres, com idade entre 17 a
30 anos.

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A CCAR, como outros movimentos que emergem da Renovação Carismática,


possui um relativo grau de autonomia em relação à hierarquia da Igreja, constituindo-se
como um outro espaço de expressão em que se destacam as insatisfações com o
tradicionalismo católico, que se manifesta com pároco, por exemplo.

Eu acho o padre muito exigente com a comunidade tem hora. O que


seria do catolicismo se não fosse a Renovação? (Sandra, 24 anos,
participante da CCAR)
Muitas vezes somos cobrados para ir à missa, mas aqui nos louvores
da comunidade tenho um maior contato com Deus. Acho a missa
muito "parada", não me empolga. Tudo bem que é a palavra de Deus
naquele momento... Mas não podemos ser criticados por estarmos
mais nas reuniões da carismática. O importante é que não deixamos
de ser católicos. (Roberto, 19 anos, servo da comunidade Resgate).
Alguns jovens apontam a participação na RCC como um momento de “fervor”,
de entrega total ao louvor, que se apresenta como diferente e específico, do que
Durkheim (1996) chamou de efervescência religiosa, que contagia pela intensidade do
encontro entre os participantes e o “Espírito Santo”. Este encontro é descrito como
“forte demais”, um tipo particular de “adoração”, embalada por músicas, cantos, falas
em línguas e curas.
O exercício da ascese intramundana na RCC no Brasil, difundido principalmente
nas camadas jovens do movimento se dá pela sistematização do simbolismo-moral em
torno do ‘Por Hoje Não’ vou pecar (PHN). Surgido na Comunidade Canção Nova, hoje
a maior comunidade carismática católica do Brasil divulga o PHN como meta de vida
para seus membros, especialmente te os jovens, o que observamos na CCAR.
Há um cultivo de um estado de alerta contra o pecado contido nas tentações
oferecidas pelo ‘mundo’, por meio de uma rotinização da religiosidade, não apenas
como um compromisso sociocultural, mas também como uma possibilidade de imersão
em um estado individual e efetivo do ser católico.
A função da religião é orientar os fiéis a procurar uma vida com
menos pecado, já que sem pecado nenhum, só Jesus Cristo. Penso que
o mundo precisa conhecer mais os ensinamentos do evangelho; muitas
coisas de ruim que estão acontecendo com os jovens, é a falta de
seguir uma religião. (Valdir, 31 anos, coordenador da CCAR).
O PHN cria uma atmosfera de constante vigilância sobre o pecado e o ‘mal’,
muito característico dos movimentos de vertente pentecostal, justificando a necessidade
do engajamento religioso, traduzido em autocontrole. O funcionamento do PHN, no
sentido de contribuir para a permanência dos jovens no movimento é possível graças à
construção de uma rede de eventos a ele relacionados, tais como as baladas, retiros,
palestras, encontros etc. Nessas atividades veem a oportunidade para a criação de laços
de sociabilidade católicas juvenis.
A adesão ao PHN leva os jovens à configuração de uma nova identidade, na qual
uma perspectiva da consideração do hoje como horizonte de julgamento moral de si e
dos outros é estabelecida. Sobre este aspecto, Sofiati (2011) afirma que O PHN reforça
essa realidade de indeterminação, ensinando o jovem a um contínuo autocontrole, dado
pela definição do ‘hoje não’.
A análise religiosa weberiana, no que se refere à relação das religiões
salvacionistas com os aspectos de ordem mundana, apresenta motivações que algumas
religiões construíram sobre a rejeição do mundo. Neste sentido, o PHN está

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caracterizado como “arma” de combate às vicissitudes do mundo, como também de


fortalecimento da adesão dos jovens do movimento carismático católico.
Weber (1979) enfatiza que a comunidade religiosa, através de seu caráter
fraternal, constrói uma perspectiva dicotômica, com o mundo daqueles que seguem as
diretrizes morais do grupo e o daqueles que estão fora deste ordenamento, “os não
salvos”.
O conflito com o elemento erótico se dá pautado nas discussões sobre
sexualidade, com uma concorrência ainda maior quando se trata de jovens que são
adeptos das experimentações em relacionamentos sexuais e afetivos. A CCAR enfatiza
a perspectiva do PHN, fazendo o uso de seus símbolos, como as camisetas, adesivos, e
da sigla. A luta contra o ‘pecado’ é um elemento central, como vemos nos trechos das
entrevistas abaixo:
O pecado está em nossas mentes. O ‘mundo’ oferece muitas
oportunidades para o ‘pecado’. A Igreja nos orienta a não pecar. É
difícil, já que as coisas corretas são mais penosas de serem cumpridas
(Silvana, 19 anos, participante da CCAR)
Aqui na Resgate nós orientamos que é preciso resistir à sedução que o
‘mundo’ oferece. Não que a pessoa que é um religioso praticante não
seja pecadora, mas a vivência na disciplina do evangelho de Jesus
Cristo nos fortalece. A pessoa tem que escolher se vai servir ao mundo
ou a Deus. Muitas festas, como a de carnaval, por exemplo, tem
muita depravação, drogas, desrespeito... Quando buscamos a Cristo de
forma verdadeira, não só de “fachada”, como muitos se dizem
cristãos, mas praticando, estando realmente envolvidos, nos afastamos
do ‘pecado’. (Ednaldo, 28 anos, coordenador da CCAR)
Os integrantes da CCAR possuem uma consciência do pecado enquanto algo
relacionado a comportamentos e regras morais que predominariam no ‘mundo’. A
vivência religiosa é a antítese do mundo, o que exige disciplina e transformação moral e
subjetiva.
Toda Semana eu vou a igreja. Na terça-feira, à reunião de louvor da
Resgate; nos sábados e domingos, à missa. Se não viermos ficamos
distantes da religião. É na Igreja que escutamos a palavra, que nos
concentramos para as orações. Nos louvores da Resgate, através das
músicas e palestras, sentimos o “fervor do Espírito Santo”. (Cleiton,
26 anos, participante da CCAR)
Quando eu não posso vir a Igreja, por algum motivo sério, eu fico
sentindo muita falta. Tanto da missa, e principalmente das reuniões da
Resgate. Nelas a alegria de louvar a Deus nos faz melhor. O
verdadeiro católico não pode viver faltando à Igreja (Ygor, 17 anos,
participante da CCAR)
Existe entre os integrantes da CCAR o pensamento de que é necessária a
participação constante das atividades da Igreja Católica. A frequência semanal às
missas, reuniões de louvores e eventos promovidos pela paróquia e principalmente pela
Comunidade, para que a fé ser reforçada e o pecado combatido. Essa ênfase na
importância da participação nas atividades eclesiais favorece a criação de laços
comunitários, construindo redes de sociabilidade, as quais contribuem para a
permanência na comunidade e se fortalece a atmosfera de controle destinado a produzir
um efetivo engajamento de seus integrantes. Observamos na CCAR o funcionamento
de uma ‘polícia da assiduidade’, exercida pela liderança mas também pelos participantes

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entre si. A inconstância na às atividades significa um desvio moral, sendo associada à


‘perdição’.
Entre os jovens há um destaque para as orações assíduas, como parte do
processo da pertença carismática. O fiel do movimento carismático convertido –
batizado no Espírito Santo –, ou em processo de conversão, tem na oração um dos
fatores essenciais para tal propósito. A oração se constitui no caminho, no meio em que
o fiel é chamado a usar sua criatividade e para se comunicar com Deus.
O discurso de contenção pela proibição do fumo e consumo de bebidas
alcoólicas, juntamente com os hábitos sexuais e vestuário e também figuram como
fundamentais nas discussões relacionadas ao pecado e na produção da identidade do
jovem carismático para o grupo analisado.
Usava algumas roupas inadequadas antes de entrar no grupo Resgate,
tinha intenção de chamar a atenção dos outros, me sentia bem quando
os rapazes ficavam olhando. Hoje quero que me olhem não só pelo
visual, mas sim pela minha essência, por outras qualidades. Hoje
tenho consciência que estava enganada. Sou feliz do jeito que me
visto atualmente. (Elaine, 19 anos, integrante da CCAR)
O sexo tem que ser praticado com a pessoa certa, e isto, só se tem a
certeza, quando somos abençoados por Deus, através do casamento.
(Cleiton, 26 anos, participante da CCAR)
Eu e meu namorado esperamos o momento de casar. Achamos que
devemos ter paciência no Senhor, mesmo que isto seja muitas vezes
difícil. Mas vale a pena o sacrifício. Só assim estaremos agradando a
Deus e com nossa consciência tranquila. (Silvana, 19 anos,
participante da CCAR)
Os jovens atestam que suas famílias aprovam a participação na comunidade
carismática, uma vez que a concebem como o lugar de aprimoramento comportamental
e moral, cujo engajamento religioso implica num disciplinamento não mundano;
embora reconheçam a existência de conflitos com alguns familiares por conta da
restrição na participação em eventos sociais ou festas.
Como em muitas outras formas de associação social, fazer parte deste grupo de
orações, mais particularmente, e da comunidade carismática permite a construção de
fortes laços e formas de reconhecimento e de integração a um credo, suas práticas e
moralidades. As reuniões, as formas específicas de louvar, as músicas, os retiros
espirituais e as formas de sociabilidade produzem este sentido de pertencimento e de
conjunto.
Por fim observamos que o sentido de conversão, traduzido na ideia de “batismo
no espírito”, representa importante elemento na constituição da identidade carismática,
narrado como tendo efeitos comportamentais, sociais e psicológicos sobre os
indivíduos. O batismo no espírito santo é um demarcador da efetivação da pertença
carismática, visto como o resultado do atingimento de níveis ideais de dedicação e
lealdade em relação a Deus. Essa experiência é referendada pelo recebimento dos
carismas, elevando o fiel a um patamar de grande êxtase, por ter sido merecedor de tais
dons, em um processo que equilibra o “sacrifício” e o “merecimento”. A partir desta
condição o carismático passa a se ver e ter um status de reconhecimento formal na
comunidade religiosa à qual pertence.

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Considerações Finais
Como vimos, a identidade católica carismática dos jovens em Bezerros-PE é
construída por discursos e práticas de autocontrole, como as propostos pelo PHN,
pensadas enquanto parte de um processo de conversão continuada.
Devido às características de insegurança e incertezas, próprias desta etapa etária,
na definição e formação da personalidade desta fase da vida; tais jovens são instados a
produzir transformações comportamentais que os afastem do ‘pecado’. Assim, não basta
apenas frequentar a missa ou a reunião do louvor. É preciso incorporar a busca da
“santidade”, que consiste não apenas aos momentos específicos das reuniões religiosas,
mas em uma agência proativa contínua, a ser efetivada aonde quer que o indivíduo vá.
Essa seria a diferença entre estar e ser religioso.
Em linhas gerais, compreendemos que a juventude se constitui na força motriz
da paróquia de Bezerros, ao qual se destaca a Comunidade Resgate, que mostra a força
do movimento carismático sobre os jovens católicos. A Comunidade Resgate clama
pela constante renovação, que foi a sua pauta fundacional, baseada numa autonomia
relativa em meio a uma permissão “vigiada”.
A prática religiosa deve ser compreendida através da subjetividade juvenil, que
reinterpreta e resignifica os símbolos sagrados. Por ser a vida mundana tão tentadora e
tão efêmera, o catolicismo carismático se apresenta como um universo que alia o
tradicional com o moderno, a medida que nele os jovens podem cantar, louvar, dançar,
etc., sem deixarem de ser católicos.
Na comunidade e no grupo estes jovens encontram segurança, a crença na
transformação pela santificação, a partilha de credos, valores e suas demandas juvenis,
emergidas em um mundo cada vez mais plural e dinâmico, como também de incertezas
sobre o futuro cada vez maiores, às quais as instituições religiosas buscam atender.

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Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
CONCEIÇÃO, Wellington da Silva.
Civilizados pela boa forma urbana? Os
conjuntos habitacionais da era COHAB-
GB/CHISAM e seu projeto de governo de
disciplinarização dos pobres. Sociabilidades
Urbanas, Revista de Antropologia e
Sociologia, v. 5, n. 13, pp. 21-32, março de
2021, ISSN 2526-4702.
ARTIGO
https://grem-grei.org/numero-atual-socurbs/

Civilizados pela boa forma urbana? Os conjuntos habitacionais da era


COHAB-GB/CHISAM e seu projeto de governo de disciplinarização dos
pobres
Civilized by good urban form? COHAB-GB / CHISAM era housing developments
and their government project to discipline the poor

Wellington da Silva Conceição∗

Resumo: O texto traz uma análise das práticas de disciplinarização da pobreza presentes
em políticas públicas de moradia popular, especialmente aquelas destinadas à moradores
removidos de favelas entre as décadas de 1940 e 1970 na cidade do Rio de Janeiro. De
modo mais específico, analisam-se as estratégias de disciplinarização e normatização
presentes na remoção e realocação de favelados para conjuntos habitacionais construídos e
administrados pela COHAB-GB e pela CHISAM nas décadas de 1960 e 1970. Percebe-se
que esse projeto publico parte de uma crença nos princípios da arquitetura e do urbanismo
(traduzidos pela ideia da “boa forma urbana”) como estratégia de adaptação dos pobres à
valores morais e urbanos, tornando-os dóceis ao projeto desenvolvimentista nacional.
Palavras-chave: habitação popular, gestão governamental, conjunto habitacional, boa
forma urbana
Abstract: This text presents an analysis of the practices of disciplining poverty present in
public policies of popular housing, especially those aimed at residents removed from slums
between the 1940s and 1970s in the city of Rio de Janeiro. More specifically, the
disciplinary and normative strategies present in the removal and relocation of favelados
(slum dwellers) for housing estates built and managed by COHAB-GB and CHISAM in the
1960s and 1970s are analyzed. It is noticed that this public project starts from a belief in the
principles of architecture and urbanism (translated by the idea of “urban good form”) as a
strategy for adapting the poor to moral and urban values, making them docile to the
national developmental project. Keywords: public housing, government management,
popular housing, good urban form

Introdução

Desde o final do século XIX as moradias populares na cidade do Rio de Janeiro


se tornaram um problema público e, mais que público, um problema de governo1. A


Sociólogo. Doutor em Ciências Sociais (PPCIS-UERJ); Professor adjunto da Universidade Federal do
Tocantins (UFT); Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (UFMA); e,
Coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Territórios Populares e suas Representações
(LaTPOR-UFT). Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9172-6189; E-Mail: wellingtoncs@mail.uft.edu.br.
22

presença dos cortiços, percebida como incômoda no final do séc. XIX, marcou o
iníciode uma história de relações tensas entre o Estado e as formas moradia popular.
Nesse primeiro momento o modo de lidar com tal problemática era a remoção
autoritária, deixando os pobres ao léu, e assim aconteceu com os moradores dos cortiços
localizados no centro do Rio de Janeiro. Essa prática de expulsão dos mais pobres
resultou na criação de outras formas de habitação popular nos morros da cidade, que
receberam o nome de favela - por conta daquele que foi identificado como o seu
primeiro caso (o morro da Favella, hoje morro da Providência), - e as favelas se
constituíram como uma opção de moradia não só para os pobres urbanos expulsos do
Centro da cidade, mas também para os muitos migrantes oriundos dos interiores e de
outras regiões do Brasil, em busca de melhores condições na capital federal.
A partir da década de 20, as favelas se tornaram o grande problema público e de
governo no Rio de Janeiro. Pensava-se no incomodo de tais habitações percebidas como
feias e anti-higiênicas em uma cidade que era remodelada tendo Paris como referência.
Mas os pobres tinham seu papel nessa cidade em (re)construção e em um país em
desenvolvimento. Tendo a escravidão como forte referência para a sua formação, a
sociedade brasileira adquiriu um ethos hierárquico que produziu demandas profissionais
que não poderiam ser supridas pelas camadas média e alta da sociedade. O pobre tinha
um papel essencial nesse processo como mão de obra barata e disponível para os
serviços “baixos”. Era preciso não mais deixar essa população “ao deus dará” e sim
realizar uma gestão eficiente, para que pudessem ser disciplinados e se tornarem úteis
ao projeto desenvolvimentista.
As políticas de moradia sempre tiveram um papel essencial nesse processo de
gestão2 da população pobre do Rio de Janeiro: todas as propostas governamentais de
moradia popular destinadas aos habitantes de favelas (em especial aquelas que
culminavam na remoção destes) incluíam claros projetos de disciplinarização. Todas
traziam, por meio de um controle direto, de uma proposta educativa ou por um conjunto
de normas, um enredo civilizatório que marcava a passagem do indivíduo da condição
de “favelado” para a de “cidadão”.
As estratégias de gestão da população pobre na cidade por meio das políticas de
moradia se deram de diversas formas nesse pouco mais de um século de história das
habitações populares e de seus conflitos no Rio de Janeiro e no Brasil. Os diferentes
projetos governamentais que procuraram dar conta do “problema favela” caminharam
em dois movimentos distintos: Os projetos voltados para a adequação do espaço de
moradia3 e os processos voltados para a realocação dos seus moradores e consequente

1
Uso a categoria problema de governo tendo como referência Michel Foucault. Segundo este pensador, a
forma de poder estruturante nesse nosso momento histórico, que é a governamentalidade, preocupa-se
com a ampla condução não só dos indivíduos, como faz o poder pastoral, mas também os toma
coletivamente no conjunto da população. A condução dos grupos, especialmente àqueles que apresentam
certo grau de periculosidade à lógica da governamentalidade, torna-se um problema degoverno no seu
projeto de condução da ordem. Cf. Foucault (2008a, 2008b, 2010).
2
Ao falar de gestão, remeto-me a outra categoria foucaultiana. A gestão governamental, a forma de exercício de
poder vigente, é marcada pela preocupação ativa de controlar a população por meio de dispositivos de segurança,
considerados mecanismos essenciais nesse processo (Ver FOUCAULT, 2008b). O biopoder – uma invenção da
gestão governamental- se utilizará das técnicas micro do poder disciplinar, de controle do individuo, mas vai agir
também no macro, no controle da população. O biopoder não vai se ocupar só do corpo, mas de um conjunto formado
pelo somático, o psíquico e a consciência dos homens. A disciplina e o controle, ainda segundo Foucault, continuarão
sendo concebidas como ações eficientes nesse processo de gestão, pois possibilitam tornar os corpos submissos,
dóceis, tendo as suas capacidades (em termos econômicos de utilidade) aumentadas.
3
Entre esses projetos, ressalto os mais significativos (em ordem cronológica): SERFHA – Serviço de Recuperação de
Favelas e Habitações Anti-Higiênicas (décadas de 50e 60), administrado pelo governo do Distrito Federal até 1957 e
depois pela Secretaria de Serviço Social do Estado da Guanabara em 1961 (atuava na urbanização das favelas);

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reaproveitamento do espaço. Esses movimentos não se deram em um processo de


sucessão cronológica, mas aconteceram ora separados, ora juntos, em diferentes
momentos da história.
Reconheço, entre as diferentes políticas de remoção e realocação de moradores
das favelas no Rio de Janeiro, três em que se manifestaram sistematicamente projetos de
gestão e disciplinarização dos pobres: os parques proletários (na década de 1940), a
cruzada São Sebastião (1950) e os Conjuntos habitacionais construídos e administrados
pela COHAB-GB e pela CHISAM (1960 e 1970) 4. O primeiro, uma iniciativa de estado
da prefeitura do Distrito Federal, tratava-se da construção e administração de parques
provisórios onde os removidos das favelas passariam por uma “readaptação fiscalizada”
(segundo Victor Moura, médico que coordenou o projeto) para aprenderem e aderirem
aos valores de civilidade e higiene antes de seguirem para residências permanentes, que
acabaram por nunca existir. O segundo tratou-se de um projeto liderado pelo bispo
católico Hélder Câmara e que teve como sua principal realização a realocação de
moradores da extinta favela da Praia do Pinto (no Leblon) para um conjunto
habitacional popular dentro do mesmo bairro. O projeto, de iniciativa da Igreja Católica,
mas com apoio do Estado, apostava em uma educação na moral religiosa católica como
forma de inserir os antes favelados dentro de uma normatividade urbana5. A terceira,
sem uma proposta de disciplinarização tão explicita como as anteriores (que contavam
com fiscalizações, instruções coletivas e outras coisas) apresenta um projeto civilizador
que tem no espaço urbano ordenado o seu principal dispositivo. Esse espaço urbano não
só é capaz de receber novos moradores como também pode inseri-los em uma
determinada lógica urbana. As três diferentes políticas de moradia se orientaram por
uma escala de valores pautada por uma ordem moral tradicional da “boa educação” da
“higiene” e do “trabalho” ou do “bem morar” que era imputada aos seus destinatários
buscando torná-los “corpos dóceis” (FOUCAULT, 2008c) para um projeto
governamental.
Nesse texto tomarei para análise o projeto de remoção e realocação de
moradores de favelas do Rio de Janeiro efetivado pela COHAB-GB e pela CHISAM
nas décadas de 1960 e 1970, pensando como este se insere em uma lógica da gestão
governamental e de controle das populações. O texto tem como suas principais fontes
uma pesquisa bibliográfica sobre a temática, além da consulta a documentos públicos do
período e uma pequena parte dos dados que produzi em pesquisa de campo no Conjunto
Habitacional Cidade Alta em Cordovil, um dos mais conhecidos resultados dessa
política pública.

Os conjuntos habitacionais da COHAB-GB e CHISAM: história e análise da


política pública

CODESCO – Companhia de Desenvolvimento de Comunidades – do Governo do Estado da Guanabara, que atuou na


urbanização de uma favela de Brás de Pina na década de 60 (em plena ditadura militar); Projeto Rio, do governo
federal, que em 1978 urbanizou parte da Maré; O Programa Cada família um lote, no governo Brizola (década de 80)
que tratou das regularizações fundiárias; O Favela Bairro, programa municipal da década de 90 com o apoio
financeiro do BID, e nos últimos 3 anos, o PAC-Favelas (estado) e o Morar carioca (município) que com verbas
advindas principalmente do PAC (programa do governo federal) atuam tanto nas melhorias urbanas das favelas como
na realocação de parte dos moradores.
4
COHAB-GB: Companhia de Habitação Popular do Estado da Guanabara. CHISAM: Coordenação de Habitação de
Interesse Social da Área metropolitana do Grande Rio. Sobre tais instituições e seus papéis, ver BRUM (2012) e
VALLADARES (1980).
5
Sobre os Parques Proletários, vale conferir os trabalhos de: CARVALHO (2003); GOMES (2009). Sobre a Cruzada
São Sebastião, conferir: SIMÕES (2010) e SLOB (2002).

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As décadas de 1940 e 1950 formaram os anos dourados do crescimento e da


expansão imobiliária na Zona Sul do Rio de Janeiro. Liberar terrenos dessa área para o
mercado de imóveis para atender a uma demanda crescente passou a ser de interesse dos
principais agentes econômicos do país. Nesse contexto chegamos na década de 1960,
período da história carioca marcado por uma intensa ação política em favor da remoção
de favelas. Governador, Carlos Lacerda tornou tensa sua relação com as favelas por
abraçar essa política de remoção e a transferência de seus moradores para conjuntos
habitacionais6. Tal projeto, pensado inicialmente para todas as favelas da cidade,
continuou concentrando (nos governos Lacerda e Negrão de Lima) suas ações na
remoção das favelas da Zona Sul, o que reafirmava que, além do objetivo de livrar a
cidade das favelas por sua condição histórica e social, o mercado imobiliário
influenciava diretamente essas decisões. Um exemplo dos rumos da especulação
imobiliária na Zona Sul e suas consequentes transformações na geografia e no cotidiano
da cidade foi o caso da Selva de Pedra, condomínio construído no espaço onde estava a
favela da Praia do Pinto, no Leblon, até 1969.
As políticas públicas pareciam ceder cada vez mais aos interesses dos grupos
dominantes ao invés de promover a integração social junto aos mais pobres. Mas, para
além dos interesses do mercado imobiliário, outras duas questões também tiveram
grande importância na condução do processo remocionista, servindo inclusive como
justificativa para as suas ações.
A primeira seria o estigma remetido à favela e aos seus moradores, que os
impediam de serem inseridos no novo projeto de (re)construção da cidade. Em função
disso, era preciso tirar os favelados do campo de visão nas áreas nobres da cidade, além
de afastá-los das classes mais favorecidas. Tal estigma afirmava cada vez mais a leitura
do favelado como um pré-cidadão, necessitado da intervenção estatal, e essa visão
incitava boa parte da população, especialmente entre as classes média e alta, a apoiar o
remocionismo autoritário praticado pelos governos estadual e federal nas décadas de 60
e 70. Diante de todo esse contexto, a formação de um imaginário social que justificasse
o extermínio das favelas e uma remoção arbitrária de seus moradores se consolidava.
A segunda questão seria a desarticulação da identidade do favelado e de sua
consequente força política. A categoria ‘favelado’ ganhava uma importância política a
partir da década de 50. Tal condição de destaque advinha da capacidade de organização
dos moradores das favelas aliada ao seu grande potencial quantitativo enquanto
eleitores. Em 1960, já formavam 10,2% dos eleitores do Estado da Guanabara. Muitos
políticos de vários partidos, para angariar votos, atribuíam a si mesmos o título de
defensores da favela. Os favelados, por conseguinte, aproveitavam-se dos interesses
desses políticos para conseguirem proteção contra as forças hostis. Quanto à
organização, nas lutas contra as remoções e outras ações arbitrárias, foram fundados
sindicatos e associações que empregam o nome favelado como categoria de afirmação,
como uma identidade politicamente construída, e não como termo pejorativo (é o caso
da “Coligação de Trabalhadores Favelados do Distrito Federal”, fundada em 1957 (Cf.
BURGOS, 2004, p. 30). O golpe militar e o fim das eleições diretas para presidente e
governador fizeram com que as favelas perdessem seu potencial eleitoral e assim
ficassem sem protetores.
Para manter sobre controle essa parte da população não bastava o uso da
violência: o Estado precisava desarticular essa força política e capacidade de
organização que os favelados conquistaram. Era necessário discipliná-los dentro do
6
A adoção dessa postura política provavelmente ocasionou a derrota do candidato de Carlos Lacerda nas urnas, em
1965. Seu rival nas eleições, Negrão de Lima, teria sido eleito por sua política de urbanização de favelas por meio do
SERPHA, realizada durante o período que foi prefeito da cidade (1956 e 1957). Cf. Burgos (2004).

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novo projeto de cidade. Acabar com as favelas e promover as remoções, além de ser
considerada uma estratégia para livrar a cidade de habitações percebidas como não-
higiênicas, não-estéticas e desordenadas, também se apresentava como uma tática capaz
de desarticular o favelado enquanto identidade política e social. Destruir a favela e
inserir essa população no cruel anonimato da cidade, - através dos conjuntos
habitacionais dispersos pelas Zonas Norte e Oeste da cidade, - seria uma forma de
efetivar esse processo.
Criado todo o arsenal de um imaginário e um contexto político favorável a tal
ação, era preciso criar os elementos necessários para pôr em prática esse projeto de
extermínio das favelas. No início da década de 60, mais precisamente em 1962, o
governador Lacerda criava a COHAB-GB, uma instituição com a finalidade de realizar
o trabalho de erradicação das favelas (cf. BRUM, 2012, p. 60). Tal órgão teve grande
atuação nos períodos entre 1962 e 1964, quando promoveu as primeiras grandes
remoções conduzindo os moradores para os primeiros conjuntos habitacionais, muitos
deles ainda chamados de Vilas7. Depois desse período, as ações perderam força e os
trabalhos de remoção e realocação continuaram acontecendo, mas de forma espaçada e
pontual. Após o fim do Governo de Lacerda, Negrão de Lima manteve de forma
moderada as ações da COHAB, e diferente do seu antecessor, promoveu outras ações
junto às favelas: em 1968 criou a CODESCO, que atuava na urbanização de algumas
delas.
Em 1968 surgia a CHISAM. A sua criação marcou um novo período na relação
entre governos e favela, de centralização e uniformização das ações em favor da
extinção das favelas e da remoção de seus moradores. A criação da CHISAM foi uma
intervenção do governo federal para ditar uma política única para o estado da
Guanabara e o estado do Rio de Janeiro. Era um órgão do Ministério do Interior, ligado
diretamente ao Banco Nacional de Habitação (BNH), tendo condições para realizar seus
trabalhos com um gordo orçamento à disposição. A COHAB-GB passou a ficar
subordinada a CHISAM, e essas duas instituições foram as principais responsáveis pelo
programa de remoção de favelas no Rio de Janeiro em proporções até então não vistas.
Com a coordenação da CHISAM o projeto de remoção e realocação de
favelados sofria profundas modificações. Sobre o trabalho da COHAB foram feitas
sérias críticas, que levaram os gestores, nessa nova etapa, a mudar importantes detalhes
no plano de ação. As duas principais mudanças foram a opção pelas construções
verticais (prédios) em vez das casas: “Sua razão foi puramente social: Exigindo os
conjuntos de apartamentos menos áreas para construção, seus custos forçosamente
seriam inferiores aos das unidades isoladas, as ‘vilas’ - , fator significativo se
considerada a baixa renda familiar dos futuros mutuários” (GOVERNO DO ESTADO
DA GUANABARA, 1969, p. 37). E, a outra importante mudança, foi a opção por
constituir “comunidades integradas” (Ibid., p. 51), ou seja, de transferir os favelados
para locais equipados não somente com casas mas também com outros equipamentos
públicos como saneamento básico, fornecimento de luz e água, escolas, hospitais,
oportunidades de trabalho etc. Essa última mudança se apresentou, segundo
informações do Texto Rio Operação Favela (de autoria do Governo do Estado da
Guanabara com o fim de divulgar os trabalhos realizados pela COHAB e CHISAM), a

7
“Datam desse período os conjuntos habitacionais de Vila Aliança e Vila Kennedy, primeira e segunda gleba, Cidade
de Deus (primeira gleba) e Vila Esperança, Lar do Empregado Doméstico e o Conjunto de Álvaro Ramos, mais de
6000 unidades, situadas em regiões afastadas do centro urbano. Somavam-se a esses outros 885 apartamentos em
conjuntos menores, destinados à classe média, e o parque proletário de Nova Holanda, com 667 casas de madeira”
(GOVERNO DO ESTADO DA GUANABARA, 1969, p. 20).

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partir das críticas feitas por aqueles que não aceitavam a remoção. Somente nessas
condições, na cabeça de seus executores, as remoções poderiam não mais ser rejeitadas.
Para que as remoções acontecessem no ritmo esperado, as funções foram
distribuídas. A secretaria de Serviços Sociais, que já atuava junto com a COHAB, ficou
responsável pelos levantamentos socioeconômicos preparatórios da remoção. A
COHAB cabia as tarefas de: projetar os conjuntos habitacionais, encomendar sua
construção, fiscalizar e comercializar as unidades habitacionais. A CHISAM coube a
coordenação do processo, o planejamento e a execução do programa. Ao BNH, garantir
o investimento necessário para a construção dos conjuntos. Por vezes, incomodada com
alguns dos serviços de suas parceiras, a CHISAM passava a tomar a frente do trabalho
ou exigir alterações (Cf. VALLADARES, 1981, p. 36-37).
É preciso ressaltar que todos esses passos, esquematicamente bem elaborados,
não foram eficientes e nem rigorosamente utilizados durante o processo. Percebem-se
“erros” no projeto (do ponto de vista da gestão governamental) desde os seus primeiros
passos, quando o morador no levantamento socioeconômico mentia sobre a sua renda e
o número de moradores na casa (para conseguir um apartamento maior ou melhor
localizado), até os últimos trâmites, como foi o caso de moradores que não pagaram
sequer uma prestação. Mas o não cumprimento dos passos estabelecidos não partiu só
dos moradores: após o grande incêndio de 1969 na favela da Praia do Pinto, diante da
urgência de remover aqueles que não tinham mais onde ficar, a CHISAM optou por unir
algumas das etapas planejadas e compactar seus processos.

Um projeto disciplinar dissolvido em concreto armado: a “boa forma urbana” e a


gestão da pobreza urbana carioca

Diante do que foi apresentado, fica claro que a primeira ação da gestão
governamental foi à separação espacial das diferentes classes sociais, separação essa
que foi acompanhada de levantamentos socioeconômicos que permitiram manter os
favelados sob os auspícios de diferentes registros. Mas podemos identificar ainda um
processo disciplinador na política de remoção, realocação e administração dos conjuntos
habitacionais construídos pela COHAB-GB e a CHISAM. É preciso ressaltar que,
apesar da violência presente nas remoções, temos um projeto de disciplinarização e
controle bem mais sutil no interior dos conjuntos habitacionais do que os encontrados
nos parques proletários e na Cruzada São Sebastião, que contaram com a vigilância
constante - pelo menos nos primeiros anos - de um administrador/fiscal encarregado
pelo Estado ou pela Igreja Católica. Também não estava previsto para os conjuntos
habitacionais uma série de regras e normas que fosse explícita e do conhecimento de
todos. As formas de disciplinarização que estiveram presentes nesse processo foram
marcadas principalmente pela expectativa de mudança das consciências e
comportamentos dos favelados quando inseridos nos equipamentos do universo urbano
que, por sua vez, permitiriam a adesão aos “valores civilizados”. Apresentarei, a seguir,
algumas práticas disciplinadoras que identifiquei nesse processo de mudança e moradia
nos conjuntos habitacionais.
A primeira delas, anterior às remoções, é uma campanha governamental em
favor da casa própria, que atingia todas as classes sociais, não só aquelas para qual se
dirigiam as remoções autoritárias. Tal campanha até hoje impacta o imaginário das
classes populares, que têm na aquisição da casa própria uma das suas principais metas
de vida. Ao mesmo tempo, e essa mensagem já se dirigia especificamente aos favelados,
o Estado reforçava a ideia de que, quem morava em loteamentos irregulares, não era
dono da casa e do terreno em que habitava e, portanto, não era proprietário. Essa
campanha em favor da propriedade serviria não só para motivar a ida para o conjunto

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habitacional – onde compraria sua casa em condições facilitadas - mas também,


segundo Brum (2012, p. 91-92), para criar um “sentido de propriedade”, essencial para
normalizar o uso capitalista do solo urbano em uma cidade em expansão imobiliária e
ainda com vários espaços “fora da ordem”.
Uma outra, e talvez a principal prática disciplinadora de acordo com a
perspectiva de seus operadores, seria o contato com o próprio espaço: a boa forma
urbana seria redentora por si mesmo, capaz mudar comportamentos, de transformar o
favelado em cidadão. Se os médicos tiveram um papel de destaque para pensar a
moradia popular no caso dos parques proletários, os arquitetos e urbanistas se tornaram
as figuras chaves a partir da década de 608. No Brasil, como apontam Mello e Vogel
(1983), especialmente a partir da década de 50 (tendo a construção de Brasília como um
marco) formou-se uma geração da arquitetura e do urbanismo brasileiro com grande
projeção no cenário nacional e internacional. Influenciados pelo positivismo, se
comprometeram com a ideia da existência de uma “boa forma urbana” (Ibid., p. 52).
Essa ideia partia do princípio de que a técnica, que só os iniciados possuem, é capaz de
identificar o melhor uso do espaço da cidade. Acreditavam que suas técnicas “valem
para a humanidade inteira, configurando uma espécie de ‘lei natural’ da sociedade que o
intelecto atento e adestrado (e cartesiano) pode revelar e compreender” (Ibid., p. 52).
Aqueles que não têm a técnica “precisam da mão paternal e condutora. Como os
necessitados de uma certa tutela benevolente e iluminada poderiam pensar e construir
um modo de vida verdadeiramente racional e progressivo se não fosse por essa
orientação esclarecida?” (Ibid., p. 52).
Se a boa forma urbana era capaz de disciplinar a cidade, de inseri-la na ordem
natural das coisas, era capaz de disciplinar também os favelados. Na cabeça de seus
executores – técnicos da arquitetura e do urbanismo e gestores públicos – os conjuntos
habitacionais se constituíam no principal elemento de ordenação da vida do favelado,
como um dispositivo disciplinador por excelência. As palavras do Arquiteto Giuseppe
Badolatto, responsável pela criação das plantas dos apartamentos da Cidade Alta,
deixam clara essa crença:
Você entrava num barraco da favela e (...) defecavam na rua! Jogavam
detrito na rua. Não tinha água, não tinha luz, não tinha esgoto (...).
Então, você colocar essas famílias em um espaço urbanizado, mesmo
sendo uma casinha pequena, um apartamento pequeno, mas com luz,
água, esgoto (...) é meio caminho andado (Apud: BRUM, 2012, p. 55).
Nesse discurso, os hábitos ruins parecem ser mais relacionados aos problemas
de desordem urbana do local do que à índole dos moradores. É como se estivesse
implícito: se não tem esgoto, defecar na rua é uma consequência. Se nos outros
processos ressaltava-se uma falta de educação para os hábitos civilizados, parece que
nesse momento se destaca uma falta de viabilidade para os mesmos, problemática que
uma organização da cidade e estruturação de bairros populares poderia resolver.
A crença da redenção pela boa forma urbana também fica clara na fala de Sandra
Cavalcante, Secretária de Serviços Sociais no Governo Lacerda - que esteve à frente dos
processos de remoção para os conjuntos habitacionais, - e depois presidente do BNH
por um curto período de tempo:
8
Nessa nova lógica de ação para pensar os problemas da habitação popular, com destaque dos arquitetos
e urbanistas, até os problemas de higiene estariam submetidos ao planejamento urbano, tanto que, ao
invés das “habitações salubres”, conceito utilizado por Victor Tavares de Moura para pensar os parques
proletários e as futuras habitações populares, temos o projeto das “comunidades integradas” (GOVERNO
DO ESTADO DA GUANABARA, 1969, p. 51-54), que se preocupa com a coleta de esgoto, o
fornecimento de água e de luz, os equipamentos públicos, a geração de empregos na região, etc.

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Até hoje eu sou desconfiada em relação aos projetos que pretendem


cuidar das favelas, mas que, pela vitória esmagadora dessa filosofia
que se instalou, acham que as favelas devem continuar a existir e
apenas devem ser urbanizadas. Eu achava, e acho ainda, que não é a
favela que tem que ser urbanizada. Quem tem que ser urbanizado é o
favelado. Uma das condições para um favelado se urbanizar, para se
desfavelizar, é sair daquela paisagem e daquele entorno. Exatamente
como uma pessoa que, saindo do interior, vem para a cidade grande.
Chega ali e encontra uma outra realidade. Se ele sai daquele fim de
mundo, sem água, sem luz, sem nada, ele vai querer mudar. Vai
querer ser incorporar ao progresso (Apud: FREIRE; OLIVEIRA,
2002, p. 88).
A introdução a uma nova forma de habitar configuraria, no caso dos favelados, a
adesão a uma nova forma de vida tão radical como a opção de trocar a vida do interior
pela da cidade grande. Ao usar a expressão “quem tem que ser urbanizado é o
favelado”, creio que mais do que falar da inserção no universo citadino, Cavalcanti
ressalta uma adesão disciplinada aos valores urbanos, diferente do que acontecia nas
favelas.
Gilberto Coufail, coordenador geral da CHISAM no período analisado,
apresenta uma crítica aos projetos de urbanização de favelas exatamente por não serem
capazes de provocar essa mudança de vida:
A urbanização das favelas do Escondidinho, Mangueira, Pavão e
Pavãozinho (...) com a mudança, teriam seus ocupantes deixado de
viver e pensar como favelados? As urbanizações nas favelas
anteriormente citadas fizeram com que aquelas favelas deixassem de
ser favelas? Ou seus moradores deixassem de ser favelados? (Apud:
BRUM, 2012, p. 82).
A adesão à boa forma urbana por parte desses moradores removidos seria mais
do que simplesmente aderir a um projeto, seria uma oportunidade do sujeito mostrar
seus valores, seu caráter, do que ele realmente é capaz diante do convite para adentrar à
civilização que lhe fora oferecido por meio da mudança de endereço. Muitos moradores
aderiram a esse discurso, usando inclusive a capacidade de adaptação como forma de
classificar os seus vizinhos. Tal questão fica explicita nos depoimentos do Sr. Lino (ex-
morador da Praia do Pinto, morador da Cidade Alta e um dos meus principais
informantes na pesquisa que realizei entre 2005 e 2008 para a iniciação científica e
monografia) que seguem:
Quando nós chegamos à Cidade Alta, isso aqui tudo com cheirinho de
massa fresca, foi a mesma coisa que chegasse ao céu! Isso era tudo
ajardinado, cada jardim bonito. Maravilhoso, excelente. Lugar de
gente. Nós saímos da Selva pra vir pra dentro de uma cidade de pedra,
lugar de gente.
Muitas das pessoas que chegaram aqui chegaram sem nada porque
queimou tudo. Pouca gente salvou coisa. Tentou salvar a pele. Aí, as
mulheres choravam porque perderam tudo. Outras riam, porque
conseguiram salvar as coisas e pegaram um apartamento novinho. As
pessoas de bem diziam o seguinte: “até que enfim que agora nós
vamos ter banheiro e água”. Coisa que a gente não tinha lá; tinha que
carregar. E ainda tinha gente xingando o governo (Apud:
CONCEIÇÃO, 2008, p. 61).

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A fala desse morador, uma entre tantas opiniões registradas sobre a remoção,
apresenta alguém convencido pelos possíveis benefícios do projeto civilizador em foco
nessas novas construções. Ao usar a expressão “lugar de gente” deixa claro como a
estrutura presente nas favelas não lhe concedia a oportunidade de ser humano, até
mesmo porque morava na “selva”, lugar dos animais não domesticados e, portanto,
perigosos. Em outra expressão utilizada, “pessoas de bem”, o Sr. Lino demonstra seu
juízo de valor negativo sobre aqueles que não aceitaram a remoção e assim negavam a
possibilidade de tornarem-se “gente” que o Estado lhes oferecia. Na adesão dos
moradores, esse projeto governamental ganha capilaridade, pelo menos como proposta
ideológica9.
Uma terceira face desse projeto disciplinador presente na política dos Conjuntos
Habitacionais é a formação e a condução para o mercado de trabalho, face essa que se
encontra alinhada com o projeto de gestão governamental de inserir essa população
pobre como corpos dóceis na campanha desenvolvimentista do Estado, como mão de
obra para as funções rejeitadas pelas classes mais favorecidas. Quanto à condução para
o mercado de trabalho, o principal objetivo era transformar as proximidades dos
conjuntos habitacionais em áreas preferenciais para sediar fábricas e indústrias. Estas
poderiam absorver a mão de obra disponível na região. A oportunidade de emprego na
proximidade não só estimularia o desenvolvimento local e nacional como reforçaria a
operação de distanciar os favelados da Zona Sul da cidade, que sequer precisariam
continuar a trabalhar nessa região da cidade. Também imputaria a essas pessoas, cada
vez mais, a identidade de trabalhador – identidade esta relacionada à valores como
honestidade, esforço, obediência –, útil para o projeto disciplinar em andamento. Como
aponta Brum:
A questão da transferência dos favelados para as zonas industriais
envolvia a promoção social do favelado dentro da ordem capitalista,
em que a superação do favelado como marginal conjugam: A troca de
barraco na favela pelo apartamento no conjunto com a ruptura com os
“bicos”, subempregos ou mesmo o desemprego para a inserção desse
no mercado formal de trabalho como mão-de-obra minimamente
qualificada e disciplinada (BRUM, 2012, p. 105).
Quanto à formação para o mercado de trabalho, vale destacar o papel que a Ação
Comunitária do Brasil (ACB) teve junto aos conjuntos habitacionais da era
CHISAM/COHAB. Sobre a ACB, esta instituição
foi criada em 1966, por grandes empresários, sob a inspiração da
Action International, com sede em Nova York, fundada em 1961 (...)
Se o papel da ACB num primeiro momento era o da urbanização de
favelas através do ensino da autoajuda aos favelados, com atuação em
várias favelas, a partir de 1970, sob os auspícios da CHISAM, o papel
da instituição passou a ser o de “adequar” os favelados nos conjuntos
da COHAB-GB, através de atividades sócio-culturais e qualificação
profissional (Ibid., p. 103).

9
Destaco que muitos outros moradores removidos, especialmente aqueles que resistiram para sair da
favela, percebiam a vida no conjunto habitacional por outro ângulo, apontando severas críticas ao projeto.
Ressaltavam, por exemplo, a distância do trabalho e do lazer (que permaneciam na Zona Sul), a
insuficiência dos equipamentos públicos disponíveis no novo bairro, a separação dos familiares e vizinhos
com quem formavam uma rede de solidariedade. Ver: BRUM (2012), CONCEIÇÃO (2008 e 2015) e
NASCIMENTO (2003).

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Essa formação dita como “qualificação profissional” ia além de ensinar um


ofício: buscava promover uma integração social inserindo-os na lógica dos valores
normativos presentes no mundo do trabalho e no universo urbano. Ao mesmo tempo
que uma moradora aprendia a trabalhar com costura industrial era socializada nos
hábitos de higiene tidos como normais, que deveria adotar a partir de então no ambiente
de trabalho e também em seu apartamento. Tudo o que a boa forma urbana não
conseguiu fazer de imediato pelo ex-favelado, a ACB estava lá para fazer.
Em 1975 a CHISAM encerrou seus trabalhos. Os resultados da política dirigida
por esta entidade foram a destruição de cerca de 60 favelas e a remoção de
aproximadamente 100 mil pessoas para 39 conjuntos habitacionais10. Desde 1972, a
política remocionista se esvaziava aos poucos, já que o BNH passava a usar parte dos
seus recursos disponíveis para financiar projetos habitacionais para as classes média e
alta, prática necessária diante do rombo causado pelos “calotes” dos moradores dos
conjuntos habitacionais populares. Outro motivo que colaborou com o encerramento
desses trabalhos: a intenção de continuar removendo favelas diminuíra, pois, como
apresenta Burgos (Op. Cit.), o objetivo de desmantelar organizações políticas de
favelados já poderia ser dado como cumprido e a presença de uma nova categoria de
excluídos, os moradores dos conjuntos habitacionais, ajudaria a fragmentar essa
identidade. O projeto disciplinador parece ter fracassado à medida que esses locais
passam a ser identificados como favelas e seus moradores como favelados11.

Conclusão

Esses três modelos de habitação popular dos quais falamos (parques proletários,
Cruzada São Sebastião e conjuntos habitacionais) se afirmaram claramente como
projetos disciplinares. Mesmo guardadas as suas diferenças, relacionadas ao contexto
sócio histórico ou até mesmo as agencias promotoras, percebe-se facilmente algumas
características nesses processos que mostram uma certa paridade nessas ações enquanto
dispositivos disciplinares. Aponto algumas delas.
Todos cultivaram uma prática de registros para garantir maior eficácia no
processo de controle. Essa política não colaborava só para o controle individual de
pessoas e famílias, mas, também, criava dados para análises estatísticas que permitiam
uma gestão dos indivíduos enquanto população. Segundo Foucault, as estatísticas têm
um papel chave na governamentalidade, pois “são todos esses dados e muitos outros
que vão constituir agora o conteúdo essencial do saber soberano. Não mais, portanto,
corpus de leis ou habilidade em aplicá-las quando necessário, mas conjunto de
conhecimentos técnicos que caracterizam a realidade do próprio Estado” (FOUCAULT,
2008b, p. 365).
Os removidos sempre foram entendidos como “beneficiados”, mas nunca lhes
foi dado o protagonismo para decidir e até definir os rumos tanto da mudança de
localidade quanto da mudança de vida. Sempre esteve nas mãos de outros agentes - o
médico, o arquiteto, o assistente social, o religioso – decidir por suas novas moradias e
escolher um novo modelo de conduta.

10
O número de conjuntos habitacionais inclui também os que foram construídos pela COHAB-GB entre
1962 e 1968. No período 1968-75, foram construídos 24 deles.
11
Segundo Nascimento (2003), em 1998, o Programa Pró-Morar da prefeitura do Rio de Janeiro
classificou o conjunto habitacional Cidade Alta como “área favelizada”. Os critérios que fizeram com que
recebesse tal classificação foram: pouca iluminação, presença forte e naturalizada do tráfico e a má
conservação dos prédios e apartamentos.

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Todos esses projetos gestaram a ideia um novo homem: o civilizado, o cristão, o


urbano. Para isso, imputaram uma escala de valores, explícita nos casos das normas de
condutas dos parques proletários e da Cruzada e implícita no caso da “boa forma
urbana” dos conjuntos habitacionais. Esse novo homem surgiria com a transformação
de regras em “hábitos internalizados” (ELIAS, 2011, p. 103). Esse favelado
hipoteticamente disciplinado tinha um lugar especifico no projeto desenvolvimentista da
nação enquanto trabalhador, e por mais que se administrasse sua adesão a valores dos
grupos dominantes, ainda era tratado de forma subalterna nesse projeto.
Essas políticas efetivas de controle e disciplinarização para as camadas
populares presentes nesses projetos se tornaram visíveis especialmente nas formas de
(res)socialização dos ex-favelados nos novos ambientes de moradia. Uma leitura
estigmatizada dessas pessoas e suas práticas exigia deles uma normatização das formas
de agir (e até de pensar), que era totalmente desarticulada das suas práticas sociais e
culturas, sempre consideradas incivilizadas, criminosas ou pecaminosas. Interessante
ressaltar que essa normatização, mesmo que fosse aceita e até aplicada, não colocava os
ex-favelados em iguais condições a dos outros moradores da cidade. Tais iniciativas
alimentavam uma posição subalterna, tentando convencer os pobres da sua condição de
mão de obra barata no projeto desenvolvimentista nacional. Os projetos citados –
partindo das expectativas dos seus financiadores e executores - fracassaram como
prática de disciplinarização e controle dos pobres. Essas formas de moradia foram
reconfigurados pela agencia dos seus moradores, aproximando suas práticas de gestão
do espaço com aquelas existentes nas favelas, fato que permitiu uma recorrente
identificação desses territórios como favelas, até mesmo por parte do Estado.

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ARTIGO
https://grem-grei.org/numero-atual-socurbs/

“De que família você é?” O médio e o pequeno urbano e rituais de


interação
"Which family are you from?" Medium and small cities and interaction
rituals

Manuela Blanc∗
Renan Lubanco Assis∗∗

Resumo: Este artigo se propõe a analisar rituais de interação em espaços públicos a partir
de observações sistemáticas realizadas em dois contextos urbanos distintos em termos de
extensão, número de habitantes e modos de conduta pública: as cidades de Campos dos
Goytacazes e Aperibé, situadas nas regiões Norte e Noroeste Fluminense, respectivamente.
Partindo de dados coletados em duas pesquisas de campo autônomas e da análise de uma
situação vivenciada juntamente pelos autores, esta investigação buscará dialogar com
abordagens clássicas e contemporâneas em torno do estabelecimento de comportamentos
em lugares públicos e os conflitos morais que neles emergem. O foco nos modos de
conduta pública em cidades de médio e pequeno porte culmina em um estudo comparativo
por contrastes e que visa finalmente a compreensão dos rituais de interação face a face em
contextos cognitivos marcados pela pessoalidade. Palavras-chave: Cidade pequena; cidade
média; pessoalidade; cadeia de reputação.
Abstract: This article proposes to analyze interaction rituals based on floating and
ethnographic observations, carried out in two different urban contexts in terms of size,
number of inhabitants and modes of public conduct: the cities of Campos dos Goytacazes
and Aperibé, located in the North and Northwest Fluminense, respectively. Based on data
collected in two autonomous field surveys and the analysis of a situation lived together by
the authors, this research will seek to dialogue with classic and contemporary approaches to
the establishment of behaviors in public places and the moral conflicts that emerge in them.
The focus on public behavior in small and medium-sized cities culminates in a comparative
study of contrasts and finally aims at understanding the rituals of face-to-face interaction in
cognitive contexts marked by a high personality. Keywords: small town; middle town, high
personality, reputation chain

Uma anedota e alguns ensaios analíticos


Sentados em um restaurante requintado em um bairro nobre da cidade de
Campos dos Goytacazes, somos observados pelo senhor ao lado. Mais à frente, um


Doutora em Sociologia Política, coordenadora do Grupo de Pesquisa Diretório do CNPq Cidades,
Espaços Públicos e Periferias e professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal
do Espírito Santo. Orcid: http://orcid.org/0000-0003-0595-7875. E-Mail: manu_uenf@yahoo.com.br .
∗∗
Doutor em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro e
(UENF) e coordenador de pesquisa na Universidade Vila Velha (UVV). Orcid: https://orcid.org/0000-
0002-4051-7587. E-Mail: renanlubanco@gmail.com .
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grupo de jovens composto por brasileiros e estrangeiros ocupava outra mesa. Todos
conversavam muito, em alto tom e de forma entusiástica. Quando o rapaz vai ao
banheiro, o Sr. Ao lado aproveita para puxar assunto com a moça: “Brasileiro é muito
bobo, né? Adora dar trela pra estrangeiro… quando a gente viaja, eles não estão nem aí
pra gente, e, quando eles vêm, fica todo mundo paparicando1…”
O comentário sobre o grupo de jovens serviu como ritual de aproximação que
deu ensejo a uma longa sabatina: “Você não é de Campos, não é?”, pergunta à moça:
“Moro em Campos há dez anos, mas sou do interior do Estado”, ela respondeu. “Sabia!
Você não parece ser daqui [...] Mas o que você faz?” - completou. “Eu trabalho na
UENF”, responde a moça, de forma superficial. Diante da chegada do rapaz, ele
prossegue: “E você?”, ao que o rapaz respondeu: “Sou daqui, nascido e criado aqui”.
Sem titubear, chega-se ao ponto: “De qual família você é?”, pergunta o curioso.
Desconcertado, o rapaz responde, se referindo ao seu sobrenome. Frustrado
diante do desconhecimento e, portanto, da ausência de um referencial capaz de
enquadrar o rapaz em seu sistema de classificação, o Sr. Ao lado decide por inverter a
lógica e acionar a sua própria cadeia de reputações (BLANC, 2017a): “Você conhece
Miguel Chenol2?”, pergunta, se referindo ao rapaz que seria o seu filho. O sobrenome,
conhecido em toda a cidade e região, foi identificado mesmo pela moça forasteira,
enquanto o seu portador, especificamente, permanecia pessoalmente desconhecido a
ambos os interpelados.
Diante da insistência do senhor em se fazer identificar, o rapaz prosseguiu,
forçando a memória para tentar reconhecer aquela pessoa com alguém de quem algum
dia ao menos ouvira falar. Em meio a tentativas frustradas, o próprio Sr., agora
efetivado3 como um Sr. Distinto foi indicando redes de relações do filho, até que
finalmente este fora lembrado. Relativamente satisfeito, explica: “Eu não sou Chenol,
Chenol é a minha ex-mulher, ela é filha de Antônio Chenol”, finalizou, quase lamentado
o fato de não ter adicionado o nome do sogro ao seu no ato do casamento.
Essa situação será aqui remontada, bem como os dados obtidos por ambos os
autores deste artigo em suas pesquisas individuais, com o objetivo de analisarmos,
agora conjuntamente, os rituais de interação em espaços públicos urbanos em sua
complexidade. Destacamos deste modo como esses modos de conduta pública operam
situacionalmente, acionando um regime do próximo (BLANC, 2017b), mas, ao mesmo
tempo, se remetendo a referenciais que extravasam as situações de copresença.
Thévenot (2006) define o regime de familiaridade como situações nas quais a
propriedade atribuída aos atores humanos e não humanos envolvidos se caracterizam
por um engajamento cuja dinâmica depende fortemente de indícios pessoais ou locais,
incidindo sobre modos de agir pautados em um princípio intersubjetivo. Trata-se, nos
termos do autor, de um princípio de ação restrito e com baixo grau de generalidade,
portanto.
Por espaço público nos referimos às diversas situações rotineiras e quotidianas
nas quais se constituem interações regidas pelas regras da visibilidade mútua, assim

1
As citações de relatos correspondem a aproximações entre o que foi dito e o que fora documentado em
caderno de campo com base no diálogo estabelecido em condição de observação flutuante (PÉTONNET,
2009).
2
Os nomes são todos fictícios.
3
A categoria efetivação será aqui utilizada com base em Werneck (2012) que, inspirado em uma
sociologia pragmatista, a propõe como categoria de entendimento dos processos de concretização de uma
“ação para a produção de efeitos, para a geração de consequências”, nesse caso, o reconhecimento da
“notoriedade” da cadeia de reputação da qual o senhor ao lado, agora distinto, pertence (em análise
também inspirada em Blanc, 2017).

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como define Freire (2005, p. 44). Constituem-se como espaços de fluxos e de encontros,
de estabelecimento de relações de copresença e que são abertos e acessíveis por
definição, mesmo que a sua acessibilidade possa ser objeto de contestação, sobretudo no
que se refere aos seus usos e significados (Goffman, 2010). Dadas as implicações de
uma noção de público como um conjunto indiscriminado de atores em copresença,
parte-se do princípio lógico de que a impessoalidade é seu modo de conduta típico,
inferência lógica que vem sendo colocado em questão pelos resultados das pesquisas de
Blanc (2013, 2017a, 2017b) e Assis (2016 e 2021, no prelo), o que aqui será
demonstrado.
Opondo-se a uma lógica impessoal, o regime de familiaridade seria limitado, em
seu potencial de influência, à convergência situacional de entidades sociais conectadas
mutuamente para além da situação por laços de um caráter particularizante: a própria
capacidade de discriminar-se mutuamente: ou o que se reconhece como pessoalidade.
Essas relações podem se desenrolar em espaços públicos, evidentemente, mas tal
fenômeno é percebido, nessa perspectiva, como um processo de apropriação, pelos seus
usuários, dotando-os de um caráter semipúblico (GOFFMAN, 2010), ou seja:
necessariamente confrontando com o que seria um modo de conduta pública passível de
generalização.
Vimos observando, ao longo dos rituais de interação que analisamos, em nossas
pesquisas de tese e em seus produtos, como os efeitos de um regime do próximo podem
assumir, ao contrário, o caráter de “convenção de grande alcance cognitivo e moral”
(segundo os termos de Martins (2016), com base em Laurent Thévenot (2006),
definição basilar a um regime do público, seu suposto oposto). Deste modo, irá reger
não apenas um princípio de ação restrito e com baixo grau de generalidade, mas influir
no estabelecimento de modos de conduta publica de um alcance mais amplo, quiçá
potencialmente generalizante4, em dado contexto.
Nossas pesquisas vêm evidenciando formas de conduta pública marcadas por
diferentes níveis de pessoalidade, passíveis de incidir sobre as modalidades de ação para
além da situação5. Estes dados evidenciam, finalmente, a complexidade com que se
constituem tais contextos cognitivos, nos servindo como pistas para pensar os rituais de
interação em público em sua complexidade.
Partimos de um exercício de confrontamento conceitual da própria noção de
espaço público utilizada por esses autores para estabelecer uma interlocução com os
dados coletados em situações nas quais os atores experimentam diferentes formas de
notoriedade.
A notoriedade é aqui definida como produto de um exercício de discriminação,
envolvendo o estabelecimento de uma forma de reconhecimento mútuo pressuposta na
singularidade do ser (os indivíduos enquadrados segundo tal referencial em dada
situação), “mas que de fato refere-se não à sua pessoalidade, mas aos elementos
considerados como significativos em torno da construção da sua imagem perante os
outros” (BLANC, 2013, p. 14). Os dados aqui selecionados nos permitem avançar
quanto ao entendimento dos processos através dos quais a construção dessas

4
Sobretudo quando está em questão o reconhecimento de pessoas públicas ou superpessoas, assim como
o problematizado por Blanc (2013).
5
Define-se, em William Thomas (1905, 1919, 1923, 2006), como atividade em curso e cuja definição
envolve um conjunto de atos passíveis de exames e deliberações. Goffman (2012) aposta ainda em uma
definição da situação para além da atividade em curso, sendo ela mesma avaliada pelos atores em
copresença. Em Thévenot e Boltanski (1991), a situação é definida como um ordenamento de interação
entre pessoas e objetos em um ambiente imediato (VANDEMBERGUE, 2006).

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notoriedades se articula ao estabelecimento e manutenção do que a autora denomina


cadeias de reputação.
As cadeias de reputação operam justamente no processo de enquadramento dos
atores na situação a partir de referenciais coletivamente estabelecidos, como um estoque
de conhecimento compartilhado sobre pessoas através das suas redes de relações. Deste
modo são acionados os sobrenomes de família, mas não apenas, como pretendemos
demonstrar.
A centralidade dos sobrenomes como referenciais ao posicionamento dos atores
em rituais de interação simboliza a marca da pessoalidade (PRADO, 1998). É um
elemento de diferenciação cujo valor é dado não pelo seu conteúdo - uma boa ou má
reputação -, mas seu potencial de abrangência - o quanto permite a alguém ser
(re)conhecido. A notoriedade representa, deste modo, o exercício de uma reputação
pública, uma forma de reconhecimento pautada no conhecimento mútuo (direto ou
indireto) e que culmina com o estabelecimento de uma relação de confiança pela
proximidade, mesmo que relativa. O fato de se estar inserido em uma cadeia de
reputação confere aos seus membros um posicionamento, torna-os próximos, dotando-
os de uma estima por familiaridade. Ela pode ser sinônimo de um sobrenome, mas, mais
do que isso, reflete um processo relacional de construção de um repertório
compartilhado.
Assis (2021, no prelo) demonstra como, no contexto de um bairro popular da
cidade de Campos dos Goytacazes, outros referenciais podem assumir a centralidade
dos sobrenomes de família na identificação das cadeias de reputação locais, mas que em
muitos casos extravasam igualmente o contexto do bairro.
Identificadas através de sobrenomes de famílias, relações de afiliação a tais
grupos ou a partir de referenciais de outra ordem, mas que permitem a vinculação de
pessoas como parte de uma mesma comunidade abstrata, as cadeias de reputação se
diferenciam pela capacidade de se autonomizar. Constituem-se desse modo como
conteúdos objetivos6, incidindo sobre os modos de conduta públicos.
A noção de espaço público desenvolvida para se analisar as relações sociais
decorridas em contextos urbanos se define a partir dos próprios pressupostos definidores
de uma experiência “propriamente” urbana. Mais do que a uma oposição entre urbano e
rural, essas categorias se referem a determinados padrões de convívio e coexistência que
emergem em dado momento e que, nas cidades, deveria incidir sobre modalidades de
conduta pública específicas.
Analisar a cidade como um contexto de coexistência entre moralidades é
deparar-se continuamente com processos classificatórios entre grupos de reputação com
maior ou menor potencial de abrangência (ou reconhecimento público) e com as
estratégias acionadas por cada um deles em suas modalidades actanciais. O que
encontramos, em termos gerais, são indicativos de que essas reputações são recursos
úteis em diferentes situações de copresença, servindo aqueles que as possuem como
uma ferramenta de ação e que pode instaurar um regime de proximidade, mesmo entre
desconhecidos diretos. A pessoalidade, deste modo, é aqui destacada como um recurso,
assim como o demonstrado por Blanc (2017b), servindo ao posicionamento dos atores
em diferentes situações de copresença, em conformidade com os dados obtidos por
Assis (2021, no prelo).

6
Em referência a Simmel (1979), referimo-nos a um referencial capaz de extravasar as situações de
copresença, sendo reconhecidos em um caráter mais amplo como parte do que Schütz (1979) definirá
como estoque de conhecimento compartilhado, outra noção que é cara à definição de cadeia de
reputações, aqui acionada.

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Tomamos aqui dados coletados em dois espaços de observação de diferentes


dimensões e nos quais os processos de discriminação mútua ou de classificação moral
(ASSIS, 2021, no prelo) foram observados de diferentes maneiras, apresentando
resultados analiticamente complementares. Em Aperibé, os modos de conduta pública
foram objeto de análise a partir da observação sistemática em espaços públicos de lazer.
Em Campos dos Goytacazes, os processos de classificação moral de um bairro, e seus
respectivos moradores, foram objeto de análise a partir da história de ocupação do
território e das trajetórias individuais de alguns dos seus moradores.
Em ambos os contextos, a pessoalidade aparece em diferentes situações, seja no
interior de processos discriminatórios que desqualificam moralmente os outros, seja
como recurso actancial. Neste sentido, falar em gradações de notoriedade nos permite
avaliar o potencial de abrangência de determinadas cadeias de reputação (melhor
posicionadas e, portanto, de maior influência), bem como os efeitos que a aproximação
entre grupos mutuamente (re)conhecidos assume a nível das relações recíprocas.

Os dados em comparação por contrastes: a cidade média e a origem histórica das


reputações consolidadas
A cidade de Campos dos Goytacazes localiza-se na região Norte do Estado do
Rio de Janeiro e possui uma população estimada de 477. 208 habitantes, de acordo com
os dados do último censo do IBGE (2010). Trata-se do maior município em extensão
territorial do Estado, refletindo em suas largas fronteiras o seu passado com forte
presença da monocultora da cana de açúcar para fins de exportação (FARIA, 1986). A
cidade foi uma das principais produtoras de açúcar do país e os efeitos da cultura da
cana ainda se mostram presentes no imaginário local. Cultura da cana é uma expressão
nativa, mobilizada positivamente, por quem se autointitula seu representante, e
negativamente, por seus críticos, se referindo a um ethos vinculado ao passado
escravista e monocultor da cidade. É interessante observar como essa vinculação com a
cultura da cana diz respeito menos a antecedentes históricos dos atores que a acionam
do que a reprodução de tais valores pelos diferentes grupos que se sucedem como
distintos nesse contexto: os membros da “sociedade campista” (CUNHA, 2007).
A crise do setor sucroalcooleiro acelerou o processo de êxodo rural por volta da
década de 70 e, ainda mais intensamente, na de 90, devido à busca por inserção no
mercado de trabalho ofertado pelo crescente setor petrolífero (TERRA, 2007).
Recentemente a cidade foi impactada pela construção do Complexo Industrial e
Portuário do Açu, localizado no município vizinho de São João da Barra, pela
implantação da Usina Termoelétrica de São Francisco do Itabapoana, bem como pela
nova política de distribuição de royalties do petróleo.
Tais processos de reestruturação da produção na cidade e região contribuem para
evidenciar os aspectos ecológicos que constituem tal contexto sociação, marcado pela
atração de diferentes grupos sociais para a área urbana da cidade. Na medida em que
sofre alterações em seu estilo demográfico, novos atores passam a compartilhar de seus
espaços públicos, bem como os redefinem. Tais mudanças incidiram sobre distintos
rearranjos e a emergência de conflitos intergrupais.
Além das alterações na sociabilidade local colocada pelos grandes
empreendimentos industriais, a cidade vem se consolidando nas últimas décadas como
pólo universitário, endereço de mais de 10 instituições de ensino superior, dentre elas
duas universidades publicas: a Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) e a
Universidade Federal Fluminense (Uff). A primeira alterou a dinâmica da localidade
possibilitando o delineamento de uma região moral em seu entorno, mancha de
sociabilidade universitária na qual jovens, sobretudo os migrantes estudantis

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temporários, reconstroem um redes de relações paralelas às já presentes na cidade (vide


BLANC, 2009). A segunda, situada em uma área central da cidade, inaugurou,
sobretudo em seu processo de expansão pós-REUNI, um viver junto como uma
experiência de tensão entre estudantes e campistas, tensão esta agravada pelo fato de
que s segundo grupo apresentaria uma determinada resistência aos estrangeiros,
segundo Costa e Freire (2015).
Corroborando tais considerações, Mamani (2016, p. 56) destaca que
as atitudes urbanas cotidianas e as relações de vizinhança em relação
aos que vêm de fora dificultam o estabelecimento de laços mais
duradouros, apenas possíveis se integrados a círculos de relações
locais já estabelecidas - seja das famílias, ou de 'novos' que se
relacionam entre si, restritos, de todos os modos, à socialização em
círculos reduzidos e estreitos.
Deste modo, esse contexto urbano é caracterizado por uma sociabilidade
fechada, a saber, um estabelecimento de laços de confiança restritos aos círculos
econômicos e familiares da cidade. Logo, uma atitude antipática no trato com o
estrangeiro (MAMANI, 2016).
Assim também Assis (2016), analisando as disputas travadas entre moradores de
um bairro estigmatizado de Campos e as demais áreas da cidade, demonstra como os
primeiros são historicamente alvo de desconfiança e desqualificação moral pelas
famílias tradicionais locais, ocupando a posição de outro, em contraposição ao nós, “os
campistas”.
Em meados do século XX, as análises de Alberto Lamego (1942, p. 317) sobre
Campos dos Goytacazes já colocam em evidência o caráter conflitivo com que os
grupos locais se relacionavam entre si. Enquanto os antigos proprietários de terras,
grupos dotados de uma moralidade permeada por um ethos de tipo aristocrático, são
percebidos como “gente ilustre e classe restrita da velha nobreza pautada na formosa
tradição familiar de cultura e elegância”, os demais grupos sociais emergentes são
descritos pelo autor como os “novos ricos gozadores e sem fé”.
Os resquícios morais deixados pela cultura da cana e as organizações sociais que
lhe são características referem-se aos status atribuídos às famílias detentoras de grandes
propriedades, à presença marcante do trabalho escravo e aos tipos sociais mais
valorizados neste contexto: os “senhores de engenho”, e posteriormente, os usineiros.
Esses últimos estavam associados ao que Pinto (1995) denomina “nobreza campista” e
que, no processo de urbanização da cidade, passaram a viver em solares e viajavam “na
medida do possível para o Rio de Janeiro [capital do estado] importando hábitos e
costumes” (LAMEGO, 1995, p. 97).
Os diferentes momentos históricos passíveis de serem remontados na cidade vão
conferir destaque à posição diferenciada assumida por determinados grupos em
detrimento de outros e aos conflitos vivenciados por essas diferentes gerações de
notórios e suas respectivas características. Se retomarmos o diagnóstico do Padre
Francisco Pizarro (apud SAINT-HILAIRE, 1974), podemos sugerir que, mais do que
um demonstrativo de que esses grupos mantêm historicamente uma notoriedade, tais
evidências sinalizam para o ideal de reputação pública acionado por grupos sociais
sucessivos ainda na atualidade. Mais do que a base de tais reputações, o que se manteve
perene foram os processos de discriminação mútua ainda acionados por grupos em
diferentes posições de notoriedade nesse contexto: as tais famílias cujo sobrenome se
deve reconhecer.
Neste caso, ser senhor de engenho é muito mais do que possuir terra, é assumir
uma reputação pública valorizada nos quadros de referências compartilhados no

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município, o que nos remete ao nosso distinto Sr. Distinto, protagonista da cena que
abre este artigo, e à cadeia de reputação que lhe sustenta, datada de menos de meio
século. Comprar terras, mesmo quando o investimento inicial e que conferiu ascensão
econômica envolve outros tipos de empreendimentos, como é o caso dos Chenol, é
investir na posse de um bem simbólico e se engajar na construção de um ethos
específico. Ser um notório, finalmente, é possuir uma reputação pública capaz de
garantir uma posição diferenciada em dado contexto, mesmo que exclusivamente
simbólica ou indireta (vide nosso interlocutor, cuja distinção se deu através da sua
vinculação, pelo casamento, a uma família de renome).
Em tal contexto, a posição de uma cadeia de reputação não está dada por uma
condição meramente econômica, mas ainda a um referencial de “civilidade” cujas
influências se estendem aos membros mais próximos de sua rede de relações, assim
como o apresentado por Freyre (2003), ainda em uma Campos dos Goytacazes colonial.
Esta breve digressão histórica nos permite remontar o surgimento de parte dos
sobrenomes de prestígio que se sustentam ainda na Campos atual e compreender como,
neste contexto, a falta deles7é capaz de conferir aos demais atores uma condição de
ordinariedade em potencial.
As novas configurações que emergiram em Campos dos Goytacazes nas últimas
décadas não garantiram a eliminação das figuras do senhor de engenho e do usineiro no
imaginário local. As reestruturações econômicas ocorridas na região desde o “tempo
áureo” sucroalcooleiro analisado por Pinto (1995) implicaram na combinação de
moralidades que se agregaram ou emergiram deste então, em coexistência com tais
espectros mitológicos. Observa-se não apenas como os sobrenomes permanecem como
referenciais de enquadramento dos atores neste contexto, tendência evidenciada também
em nosso outro espaço de coleta de dados, mas como essas cadeias de reputação
constroem em torno de si uma áurea ainda marcada pelos elementos de distinção que
lhes são anteriores.
Ainda assim, no contexto dos bairros, notoriedades são construídas e articuladas,
senão através do acionamento dos sobrenomes de famílias, das ocupações ou das
trajetórias biográficas no lugar, como o demonstrado por Assis (2021, no prelo).

A pequena cidade e os processos sucessivos de efetivação de reputações


A contraposição dessas reflexões analíticas com aquelas propiciadas pelo
contexto pequeno urbano da cidade de Aperibé, no interior da região Noroeste
Fluminense, nos permite avançar na compreensão dos processos através dos quais tais
cadeias de reputação se estabelecem e efetivam8, bem como se sucedem e conflitam
entre si. Ao mesmo tempo, a comparação por contrastes contribui para a compreensão
dos processos de autonomização de tais conteúdos nos imaginários locais no que se
refere à emergência de novas cadeias de reputação, bem como para o entendimento da
diversidade com que estas podem se constituir em termos de abrangência e redefinição
ao longo do tempo e dos espaços (geográficos ou simbólicos).

7
Referimo-nos aqui a falta de um sobrenome dotado de uma reputação pública, atores que “estão sujeitos
a uma negação da ‘individualidade de sua existência’” e, portanto, excluídos das formas predominantes
de sociação, como salienta Blanc (2013, p. 23): são sujeitos “sem reputação” no que se refere ao seu
potencial de estabelecimento de um reconhecimento mútuo em situações sociais mais amplas.
8
O conceito de efetivação, desenvolvido por Werneck (2012) nos favorece a apreensão das ações em um
plano a partir do qual o que está em jogo é a mobilização prática dos recursos acessíveis em dada
situação. A concretização das ações perpassa dessa forma a definição da situação pelos atores em relação
e dos efeitos passíveis a dada forma de direcionar-se.

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Os nativos da cidadezinha de pouco mais de dez mil habitantes refletem em seus


relatos e relações vínculos pautados em hierarquias estruturadas em sistemas de
reconhecimento mútuo cuja efetividade está dada em critérios de proximidade direta -
ou, mais adequadamente, por escalas temporais de convívio (as trajetórias biográficas
de seus moradores sendo, aqui, particularmente centrais). Observou-se como essa
população é estável, representada em quase 70% por pessoas nascidas no local, além do
considerável contingente de habitantes nascidos em cidades vizinhas ou em outras
unidades da mesma federação (BLANC, 2013).
As famílias representam em sentido prático os grupos que são reconhecidos no
local ou em regiões próximas através de sobrenomes. Essas se tratam, sobretudo, de
referências de classificação simbólica que são utilizadas em favor de redes específicas
ou em situações específicas e tal empreendimento pode envolver exercícios de
reconstituição genealógica que remontam tantas gerações quantas forem necessárias,
sempre que se visa estabelecer um vínculo de proximidade com o outro. Da mesma
forma, este sistema é capaz de agregar não apenas membros de uma rede de parentesco,
como todos aqueles que a ela se vinculam, classificando os visitantes da cidade a partir
daquele que o recebe em sua casa ou o apresenta em público, assim como o Sr. Distinto
nos demonstra em seu contexto.
Por mais que algumas cadeias de reputação reflitam pertencimentos familiares
que remontem ao passado, ou mesmo a um passado longínquo, os modos de conduta
pública apresentados pelos habitantes de Aperibé evidenciam os reajustamentos
cotidianos através dos quais notoriedades se constroem e seus conteúdos são
redefinidos. Tais procedimentos, contínuos e flexíveis, alimentam esses repertórios
compartilhados, potencializando a capacidade de influência das cadeias já efetivadas e,
sobretudo, a ascensão de novas redes de pertencimento. O conhecimento é
constantemente restabelecido, favorecendo um processo contínuo de surgimento de
novos grupos de atores e possibilitando a expansão progressiva da sua notoriedade. A
abrangência desses referenciais, finalmente, reflete o grau de (re)conhecimento
alcançado por esses diferentes grupos e em diferentes situações, o poder da sua estima,
ou sua notoriedade. Superar os limites das interações face a face e alcançar uma
reputação pública é tornar-se conhecido para além das fronteiras da própria cidade.
Neto e Caíque são dois dos mais recentes ilustres da cidade, içados da condição
de relativa ordinariedade do ser a uma condição de notoriedade de abrangência regional.
Há aproximadamente quinze anos os irmãos abriram um bar em um ponto até então
residencial de uma das principais ruas da cidade, estabelecimento esse que se inseriu no
mapa de sociabilidade local lançando a oferta de “torre de chopp9”. Os primeiros cinco
minutos de fama estavam garantidos, mas ainda lhes restava o desafio de se fixarem no
repertório de sociabilidade local.
A superação desta condição efêmera foi garantida inicialmente graças a fatores
diversos, envolvendo desde a reestruturação das vias públicas de circulação da cidade,
que tornou o bar o centro da sociabilidade noturna local durante um tempo10, o potencial
de inovação apresentado por esses empreendedores, até a efetivação deste
estabelecimento como parte do percurso local de circulação. “Dar uma voltinha”em
Aperibé em algum momento tornou-se sinônimo de dar uma voltinha no Bar SS.

9
Este utensílio é capaz de conservar a temperatura do líquido colocado em seu interior e permite que a
bebida seja servida em maiores quantidades à mesa, permitindo ao próprio cliente se reabastecer quando
considerar conveniente.
10
Processo este que culminou com alterações significativas nas práticas de sociabilidade noturna locais,
assim como o desenvolvido anteriormente por Blanc (2017).

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Nesse processo, os rapazes ampliaram a sua estima social: começaram a namorar


as filhas de duas famílias reputadas na região11, foram convidados a entrar para a Loja
Maçônica local12, noivaram e se casaram com as notórias namoradas, e começaram a
constituir uma reputação pública cuja abrangência parte deles, se assenta neles e,
sobretudo, no já notório bar.
É curioso observar como os membros da comunidade local logo começaram a
veicular informações com relação a sua origem, remontando suas trajetórias biográficas
na cidade: o bairro no qual foram criados, sua cadeia genealógica, bem como a sua
possível vinculação com demais famílias da cidade. O casamento e a entrada na
maçonaria são ao mesmo tempo símbolos de consagração de um empreendimento de
inserção pública e de reconhecimento da nova posição ocupada, mas que não implica na
elevação do seu nome de família ao patamar de referencial compartilhado. São notórios,
são nativos e se tornaram referência na cidade, mas não têm sobrenome, ou ao menos tal
sobrenome não alcançou abrangência suficiente para se tornar um referencial válido.
“Os meninos do Bar” SS simbolizam a vivacidade com que se estabelecem as
cadeias de reputação, representam os reajustamentos cotidianos entre grupos e as
posições que ocupam. São símbolos de moralidades periféricas emergindo no contexto,
mas não sem conflito ou sequer segundo os mesmos padrões.
Alguns eventos em suas trajetórias elucidam as disjunções entre estratégias de
notoriedade e valores, como o fato de os rapazes terem se casado em cerimônias
simples, familiares e discretas, abrindo mão de um grande festejo. Os casamentos
representam rituais de passagem que acionam formas de exposição pública e de
potencial de consumo, bem como demonstrativos da abrangência das redes de relações.
A cerimônia finalmente marca o estabelecimento de um elo entre redes de
pertencimento (VAN GENNEP, 2011). Renunciar a tal ritualização é ir de encontro a
um determinado padrão de exposição pública e consolidação dos laços estabelecidos.
Da mesma forma, a posição que ocupam é mediada pelo estabelecimento
comercial que possuem e que lhes serve de referencial público diante da ausência de um
sobrenome conhecido na região, mas a forma como administram o estabelecimento
pode ir de encontro com os padrões de sociabilidade locais: “Nós não vamos mais lá,
eles nos tratam como se não nos conhecessem”, tivemos a oportunidade de ouvir de um
casal local certa vez. Sua notoriedade recém adquirida de algum modo rompe com uma
lógica de reputações pré-estabelecida e seu modo de conduta é símbolo e estopim para
os conflitos que vão emergir da coexistência entre diferentes moralidades.
Do mesmo modo, o potencial de abrangência - ou de fazer-se conhecer para
além da situação - apresentado por essas cadeias de reputação emergentes ainda é muito
limitado em comparação com aqueles observados entre as famílias tradicionais. Esses
grupos irão compartilhar do espaço público até então dominado pelos demais, muitas
vezes se sobrepondo a esses em termos de potencial de abrangência local, mas as suas
identidades ainda não se estabeleceram necessariamente como conteúdos

11
Neste caso, dizer que são famílias de boa reputação significa que as moças eram conhecidas e
reconhecidas amplamente pela comunidade local como membros de uma cadeia de reputação específica e
cujas qualificações e membros possuem um considerável grau de influência por proximidade.
12
A integração à comunidade maçônica se apresenta como ritual de reconhecimento elucidativo em tal
contexto. De uma forma geral, a admissão requer uma indicação expressa por um dos membros atuantes e
a consideração da candidatura deste pelos demais membros de determinada Loja, bem como
procedimentos rituais que podem envolver desde entrevistas a pesquisas em torno das reputações dos
candidatos, sendo concluído com rituais coletivos e fechados de caráter preparatório e uma cerimônia de
iniciação (PIROZI, 2013). Receber um convite para a maçonaria representa, nesse contexto, adquirir uma
condição de notoriedade no interior de um grupo que conta com membros das principais cadeias de
reputação familiares da cidade.

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autonomizados das relações estabelecidas face a face, e são essas que os efetivam em
dado momento.

Ritual de (re)conhecimento mútuo


O questionamento do sobrenome, que abre nossa discussão através da pergunta
“De que família você é?”, é um convite para que o outro se situe no interior de um
regime de familiaridade, produzindo uma atmosfera de proximidade mesmo entre
desconhecidos. Ao mesmo tempo, declarar-se membro de uma cadeia de reputação -
mesmo que por matrimônio, como no caso do nosso notório interlocutor -, é uma forma
de fazer-se conhecer, ou reconhecer, através do acionamento da estima13 que essa
possui. Interessamo-nos por processos de aproximação capazes de instaurar uma lógica
relacional pautada em critérios intersubjetivos. O questionamento ”de que família você
é?” remete a um referencial compartilhado, que extravasa as situações de copresença, a
um conteúdo de caráter objetivo, mesmo que em dado contexto. Mas esse não foi o
único recurso que observamos as diferentes gradações de notoriedade observadas nos
contextos de sociação incidindo sobre os agenciamentos em diferentes situações.
Diante da incapacidade dos presentes em corresponder aos referenciais que
domina, o nosso distinto interlocutor redirecionou a sua estratégia de aproximação para
outros tipos de pertencimento: neste caso, a profissão.
A profissão acaba por conferir um norte que superficialmente vai de encontro ao
pertencimento familiar, porque aparentemente centrado nos pertencimentos individuais.
Mas, na verdade, evidencia reajustamentos no que diz respeito aos conteúdos
referenciais ao conhecimento mútuo ao longo do processo de diferenciação do próprio
contexto urbano. Não se refere apenas à atividade profissional realizada, mas aos
possíveis círculos sociais nos quais se circula, e a redes de relações, portanto,
estabelecidas em outras escalas de valores. Tanto uma quanto a outra forma de
reconhecimento busca enquadrar pessoas a pertencimentos sociais, nesse caso,
mediados por vínculos, e à reputação pública que esses possuem.
O fato de ter apresentado o “seu sobrenome”, àquele que era nativo da cidade, e
ter questionado a profissão, daquela que era de fora, evidencia como nosso distinto
inquisidor domina a complexidade desse sistema classificatório. Da mesma forma, em
momento algum mencionou a sua profissão, apesar de ter conversando sobre questões
íntimas, como o processo de separação matrimonial que estava vivenciando. Ele estava
vinculado a um nome - no caso, sobrenome - e, mesmo que não o possuísse
diretamente, o herdara: senão do atual ex-sogro ou da futura ex-esposa, do próprio filho.
Ele estava vinculado a uma cadeia de reputação e isso lhe confere uma posição
diferenciada naquele contexto de sociação (e uma conta no restaurante14).
A tal “mania que todos têm de serem ‘senhores de engenho’”(Pizarro apud
Saint-Hilaire, 1974: 201), observada pelo padre Francisco Pizarro e, posteriormente por
Saint Hilaire, se traduz, no caso do Sr. Distinto, em uma existência na qual a pertença
familiar - e a uma cadeia de reputações - subordina a sua condição de indivíduo. É
importante destacar como esses grupos se estabeleceram de forma sucessiva nos
contextos aqui analisados, negociando a efetividade dos seus posicionamentos sociais e

13
O conceito de estima pública é aqui acionado como elemento de diferenciação em um regime
hierarquizado de valor. Este envolve o estabelecimento de uma forma de reconhecimento pressuposta na
singularidade do ser, mas que nesse caso refere-se não à sua pessoalidade, mas aos elementos
considerados como significativos em torno da construção da sua imagem perante os outros, ou seja, a sua
inserção em uma cadeia de reputação, assim como o definido por Blanc (2017).
14
Devidamente ”pendurada”, ao invés de paga ao final da prestação do serviço.

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lutando pela manutenção da sua posição notória – como nos destaca ele próprio e sua
vinculação relativa a uma cadeia de reputações em nada intacta15.
Assim como observamos, a pergunta “De que família você é?” é um recurso aos
notórios, reproduzido entre ordinários em outras modalidades, ou exclusivamente
quando diante de alguém que se crê pertencer a uma cadeia de reputação de grande
abrangência (e, portanto, já reconhecido como tal). Do mesmo modo, assim como no
ritual do “você sabe com quem está falando?” (DaMATTA, 1981), esses atores podem
acionar conexões com membros destas redes como estratégia de reconhecimento por
proximidade.
Enquanto recurso de interpelação do outro a posicionar-se através das suas
cadeias de reputação, a expressão sinaliza para o caráter intersubjetivo desses modos de
conduta pública. Fazer-se reconhecer é uma forma de reinserção na situação e que ao
mesmo tempo a redefine.

Considerações Finais
Tais contrastes entre contextos evidenciam como alguns conteúdos apresentam
uma maior capacidade de se autonomizar, tendendo a ser mais perenes do que outros.
Vínculos entre cadeias de reputação aproximam pessoas, mas como membros de grupos
e no interior de classificações. Os conteúdos autonomizados em cadeias de reputação
familiares se apresentam como referenciais de maior influência entre os casos aqui
analisados, por outro lado, a garantia de uma posição distinta se reverte em
posicionamentos que se enquadram segundo uma lógica que é anterior às situações,
inferindo sobre as suas definições e, portanto, sobre a definição das posições que serão
ocupadas pelos atores em copresença: garante um lugar, mas o objetiva segundo
expectativas dadas pelo conteúdo do repertório de conhecimento mútuo que articula.
Destacamos finalmente como tais contrastes evidenciam a complexidade com
que objetividade e subjetividade se combinam em diferentes contextos e situações
sociais, inferindo sobre o posicionamento dos atores e os modos de conduta no espaço
público aos quais devem corresponder. A autonomização de conteúdos de caráter
pessoalizado assume a condição de referencial objetivo, tanto no que se refere aos atores
que se vinculam a tais cadeias de reputação quanto ao seu potencial de extrapolar as
relações sociais nas quais se assenta. Mesmo a pessoalidade, nestes casos, pode assumir
ares de objetivação, sempre que acionada para além das fronteiras da proximidade
direta.
Esses rearranjos entre grupos reputados ou emergentes evidenciam a
coexistência de moralidades distintas no que se refere aos procedimentos de
classificação por conhecimento mútuo. Por outro lado, o desafio vivenciado pelos
garotos do Bar SS se distingue daquele experimentado pelos notórios de bairro de
Campos. A notoriedade alcançada pelos donos do bar da cidade pequena os insere no
cenário local com uma abrangência mais ampla, que compete diretamente com as
cadeias de reputação familiares, pois se comunica com elas no espaço público da
pequena cidade. O sucesso do seu empreendimento comercial, sua ocupação, os
posiciona na cidade e na região, e não apenas em suas relações imediatas. O potencial
de autonomização dos referenciais que embasam a sua estima pública é potencializado
pela proeminência de uma cultura subjetiva que é abrangente por si mesma, permitindo

15
Referimo-nos com a expressão ao conteúdo da reputação, neste caso, manchado, como se diria em
expressão popular, pelos escândalos envolvendo as atividades da empresa do sogro e a sua posterior
falência.

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a novos atores alcançar um reconhecimento público amplo, mesmo que em termos


diferenciados ou por um curto período de tempo.
Àqueles que não possuem um sobrenome que os apresente sequer no interior de
suas relações cotidianas, restam ainda formas de pessoalidade de baixa abrangência,
mas marcadas por uma maior valorização de suas individualidades. Sempre se pode ser
filho de alguém, e alguém conhecido é sempre mais próximo do que o ilustre
desconhecido, por mais que se seja conhecido apenas no próprio bairro.
No contexto do bairro, Assis (2016 e 2021, no prelo) observa como as
ocupações são capazes de conferir aos atores uma reputação pública, garantindo-lhes
uma forma de notoriedade nuclear que irradia entre os membros mais próximos de sua
rede familiar e de relações. Senão membros da família X, estes podem ser enquadrados
como filhos ou amigos de Seu João sapateiro. A situação de ordinariedade é superada na
imediata inserção na situação, tendo como potencial, nesses casos, a construção de uma
reputação de baixa abrangência, mas nem por isso menos incisiva nas práticas
cotidianas. Cabe-nos avaliar o potencial de abrangência de tais referenciais, bem como o
seu potencial de autonomização, favorecendo a ampliação de tais formas de
notoriedade. Mas, diante de tal possibilidade, toda ordinariedade implica simplesmente
em questões de grau, contexto e situação.
De que família você é? É uma modalidade de reconhecimento público na qual o
pertencimento se torna um elemento de diferenciação social e a sua aplicação aos mais
diversos contextos observados ao longo das nossas pesquisas individuais demonstra o
potencial intersubjetivo das relações estabelecidas em espaços públicos – nada
impessoais.

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análise do combate à pandemia. Sociabilida-
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ciologia, v. 5, n. 13, pp. 47-62, março de 2021,
ISSN 2526-4702.
ARTIGO
https://grem-grei.org/numero-atual-socurbs/

“Guerra ao coronavirus” como regime de engajamento “em urgência”: uma


análise do combate à pandemia
“War against coronavirus” as an engagement regime “in urgency”: analysis of the
pandemic fight

Igor Perrut∗

Resumo: O artigo analisa o uso da metáfora da guerra no contexto da pandemia de covid-


19 no Brasil, apresentando uma reflexão sobre os sentidos efetivados pelo uso metafórico
do termo tratando-o como um índice daquilo que, inspirado pela análise de regimes de
engajamento de Thévenot (2016[2006]), chamo de um regime de engajamento “público”
“em urgência”. Travo diálogo com alguns trabalhos sobre a “metáfora da guerra” nos
contextos de violência urbana, e através de um levantamento de ocorrências do motto em
alguns dos principais veículos de imprensa online (como Globo e Folha de São
Paulo),apresento uma discussão sobre os possíveis sentidos subjacentes ao uso da metáfora.
Como resultado, indico a junção entre a “gramática civil” e a “gramática militar” presente
no uso atual do termo – dimensões estas que usualmente são tratados por uma partição
analítica – e delimito uma lógica de ordenamento das ações pautada mais na cooperação
entre atores do que na justificação do uso desproporcional da violência. Palavras-chave:
metáfora da guerra, pandemia de covid-19, regime de engajamento em urgência
Abstract: The article analyzes the “war metaphor” use in the covid-19 pandemic context in
Brazil, presenting an analysis of the effectivated meanings related to the metaphorical use
of the word, treated here, inspired by Thévenot's analysis of engagement regimes (2016
[2006]), through what i call it an “urgent” engagement regime. Based on a dialogue with
“war metaphor” sociological production in the contexts of urban violence and through a
survey of this motto occurrences in some of the main online press vehicles (such as Globo
and Folha de São Paulo), the following discussion underlie the use of the war metaphor
making an analytical partition between the “civil grammar” and the “military grammar”
present in the term and point a logic of ordering actions based more on cooperation between
actors than on disproportionated use violence. Keywords: war metaphor, covid-19
pandemic, engagement regime “in urgency”

Introdução
No que pareceu uma vinculação exagerada para alguns e certeira para outros, a
palavra “guerra” foi recorrentemente usada no início do combate à pandemia de covid-


Sociólogo e mestrando bolsista (CNPQ) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) no
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA). É membro integrante do NECVU
(Núcleo de Estudos da Cidadania e Violência Urbana) e do Urbano (Laboratório de Estudos da Cidade).
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7792-5584 E-Mail: igor_perrut@hotmail.com
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19, para designar e dar conta de definir os esforços, tanto no Brasil como no mundo a
fora, de contenção da pandemia e do alastramento do vírus. Presente em discursos de
autoridades, em conversas cotidianas e em matérias de jornal o início de tal momento
pandêmico era muitas vezes interpretado por tal motto, que sugeria que “travávamos
uma guerra” na qual todos os esforços deveriam ser empregados contra algo que,
invisível, contagioso e com capacidade de proliferação gigantesca, havia nos deixado
em casa, reforçado nossa preocupação com a higiene e com o contato social, ao mesmo
tempo que deixado as autoridades em um perene estado de tensão.
Bem, tratar metaforicamente algo como “guerra” não é uma operação nova e
tampouco específica do caso dessa pandemia. Aliás, como aponta Urry (2000, p.22),
tratar metaforicamente algum aspecto do fluxo social é um aspecto, se não usual entre
os indivíduos, um tanto quanto já reconhecido das reflexões sociológicas. Segundo ele,
fazemos isso em uma série de contextos e, não somente circunscrita a relação entre os
atores sociais em suas vidas cotidianas, as metáforas são inclusive empregadas pelo
próprio discurso raciocinativo das teorias sociológicas (LINDEMAN, 1924, p.43),
cabendo questionar quais são as condições pelas quais uma metáfora se figura como
uma boa ou má representação de uma realidade, tanto pela ciência quanto no seu uso
comum. Dito isto, ainda que a nomeação metafórica dos esforços de combate da
pandemia tenha sido cunhada pelo termo “guerra”, é digno de nota que uma série de
outros contextos contemporâneos de enfrentamento a alguma coisa tem sido descrito
pelo mesmo motto, como a “guerra às drogas”, a “guerra política” do Brasil ou mesmo
o “estado de guerra” de algumas das cidades brasileiras, tratando-se principalmente dos
conflitos armados relacionados a violência urbana.
Partindo-se daí, há uma série de contextos que são reconhecidamente
relacionados ao uso metafórico da palavra, tendo estes, ainda que diferenças, preservado
um mesmo sentido que, superficialmente, aponta para a noção de um combate
extremado de certa duração temporal, visando à completa mitigação do opositor. Tendo
ela mesma uma produtividade (Idem, p.23), analisar a metáfora da guerra relaciona,
assim, uma série de situações distintas em que a palavra é tomada como uma boa
representação da definição de situação1 pelos atores, tendo em seu uso um espaço para
criação de significados e interpretações mesmas dessas situações.
Por conta disso, o intuito deste artigo é compreender como e por que os atores
têm utilizado o termo “guerra” para circunscrever os acontecimentos referentes ao
combate da pandemia do novo coronavírus, identificando que elementos são valorados e
interpretados a partir dessa operação discursiva de definição promovida pelas pessoas,
cotidianamente. Proponho uma análise que pontue os sentidos efetivados2 pelo uso da
1
Definição de situação, tal como formulada por Thomas (1923), é aquela que se refere a um recorte no
tempo-espaço em que os atores sociais, por meio de suas operações cognitivas, identificam elementos
valorativos pelos quais interpretam suas ações e produzem, a partir disso, efeitos práticos no mundo
através da gestão que fazem de si e dos dispositivos dispostos no contexto, tendo em vista esses princípios
utilizados para tal definição. Segundo ele, “antes de qualquer ato de comportamento autodeterminado há
sempre um estágio de exame e deliberação que podemos chamar de definição da situação. Na realidade
não só os atos concretos são dependentes da definição da situação, mas toda uma conduta de vida e a
personalidade do próprio indivíduo derivam, gradualmente, de uma série de tais definições" (idem, p. 42)
2
Efetivação, aqui, se refere a discussão desenvolvida por Werneck (2012) sobre a capacidade
metapragmática dos atores no modelo de economia das grandezas de Boltanski e Thévenot (1991).
Segundo ele, trata-se de uma “radicalização da pragmaticidade” presente no modelo sociológico
pragmatista, questionando-se qual é a verdadeira produção de efeitos (portanto, de consequências) da
adoção de certos princípios morais que passam a orientar as ações dos atores em alguma situação. Assim,
uma ação é efetiva quando realmente produz efeitos no mundo, no sentido de que “uma vez que tenha
ocorrido, o que fez com que ela pudesse produzir consequências (o que, em última instância, significa que
ela ocorreu)?” (WERNECK, 2016, p. 178).

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palavra “guerra” especificamente nas definições voltadas aos contextos da pandemia,


dado que o que importa é não o emprego metafórico da palavra em si – visto como uma
operação social genérica e compartilhada entre os atores (URRY, 2000, p.24) – mas sim
os sentidos subjacentes ao seu uso neste caso em específico, em suas relações próprias
com a definição da situação da pandemia, desvelando como esse combate metaforizado
é socialmente constituído, avaliado e efetivo na produção das sociabilidades e
sentimentos neste contexto.
Assim, analiso os usos da metáfora da guerra a partir de um levantamento de
notícias relacionadas ao período de isolamento aqui no Brasil, focalizando
principalmente àquelas notícias que utilizavam do motto seja nas chamadas das
reportagens (lide) ou mesmo no correr dos textos das reportagens, tendo como recorte
os meses de março até junho, em razão da notável diminuição do uso da palavra nos
veículos midiáticos selecionados para a análise – tais como O Globo; Folha de São
Paulo e Uol que, em geral, são veículos de maior circulação e confiabilidade. Ainda que
sendo cada vez menos utilizada, os meses analisados parecem apontar para uma relativa
saturação dos sentidos relacionados ao uso da metáfora da guerra, durante a pandemia,
uma vez que o padrão começou a se repetir já em fins de junho, induzindo um ponto
ótimo em que novos dados não alteram substantivamente a reflexão aqui produzida.
Ademais, a adoção de um tratamento da chamada sociologia pragmática
(BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991; BOLTANSKI, 2009; BARTHE et. al, 2016) se
mostrou pródiga para esta tarefa de interpretação da metáfora da guerra, justamente por
se definir como uma abordagem baseada nas operações de qualificação promovidas
pelos próprios atores, tendo o processo de construção social da realidade um caráter
necessariamente moral, que pauta critérios de seleção quanto ao que é certo ou errado, o
que está conformado à validade desse critério ou não.A partir do uso e das qualificações
envolvidas no emprego do termo e atento à possibilidade de que ele sirva tanto para
descrição dos fenômenos vivenciados pelos atores quanto para “dar conta” e levar
adiante as situações por eles avaliadas, busco relacionar o “esforço de guerra” do
combate à pandemia à uma operação analítica que chame a atenção para a atuação de
duas gramáticas morais distintas que, por vezes sobrepostas, apontam para uma
qualificação do uso do termo “guerra” como aquele que delimita uma necessidade de
integração de combate a uma ameaça, uma reposta a uma modulação do mundo, mais
do que ao uso desproporcional da violência – o que tem sido geralmente apontado como
um aspecto consensual de análise principalmente pela literatura sociológica da
violência.
Por isso, se a guerra foi recorrentemente uma palavra empregada como metáfora
de combate ao coronavírus, chamo a atenção para o fato de que ela, como resultado de
uma avaliação moral dos atores, implicava também uma moralização das práticas e
relações sociais durante este contexto de pandemia (CHILDRESS, 2001, pp. 185-186),
efetivando ações em consonância aos seus sentidos contextualizados. Em meu caso,
trato esse esforço de circunscrição da realidade como um índice daquilo que, inspirado
pela análise de regimes de engajamento de Thévenot (2016[2006]), chamarei de um
regime de engajamento “em urgência”, enquadrando a efetivação do uso da metáfora
percebido na análise das notícias por sua relação com a vívida necessidade de manter as
pessoas engajadas no combate e controle da pandemia, ressaltando-se, naquele
momento, um plano de contenção da pandemia essencialmente baseado na importância
de adoção e colaboração com as medidas sanitárias e restritivas de circulação entre as
pessoas, por parte de toda a população brasileira.

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A metáfora da guerra em sua partição analítica: da guerra como ação violenta


extrema à guerra como ordenamento das ações de combate
Considerando-se uma partição analítica sobre a “metáfora da guerra”, tal como é
empregada nesse contexto de pandemia, observo, como disse, a constituição de duas
gramáticas3 distintas e ordenadas sobre uma mesma definição: uma que dá conta da
“experiência militar” da guerra e outra que se refere a sua “experiência civil”. No
primeiro caso, o espelhamento metafórico diz respeito a uma gramática diretamente
ligada à “linha de frente do combate”, tal como os soldados a experimentam: Há uma
construção moralizada de um outro, um inimigo externo, e tem lugar a legitimação da
mobilização da força desproporcional, a violência (WERNECK, TALONE, 2019), onde
se está às voltas da conquista de território. No segundo caso, porém, a imagem
metafórica alude aos bastidores de um contexto de conflito e a forma como a população
a experimenta: uma alteração radical da rotina; um estado de privação e a necessidade
de entrega da agência a um tutor (na guerra real, ao Estado).
Das reflexões sociológicas mais clássicas sobre a “guerra”, como um
enquadramento do uso da violência direcionada estrategicamente a um inimigo com
propósito de legitimação de combate e controle do adversário (CLAUSEWITTZ,
1996[1832]; ARON, 2002[1962]), até esforços mais recentes de compreensão dos usos
metafóricos da noção em contextos contemporâneos de violência urbana (LEITE, 2012;
PERRUT, 2018; GRILLO, 2019)4 – que pontuam o quanto seu uso constrói certos
repertórios simbólicos que personificam o problema de segurança pública em certos
sujeitos sociais5 e acabam justificando certos atos violentos como a “regra do jogo”, isto
é, como algo normal – a metáfora da guerra mobilizada publicamente tem sido
analiticamente destrinchada principalmente em sua dimensão militar, pouco relacionada
à dimensão civil. Como já dito, ainda que tratar metaforicamente qualquer outra coisa
como “guerra” seja perfeitamente cabível a uma série de outras situações, a reflexão
sobre o uso da “guerra” neste contexto da pandemia de covid-19 delimita uma
coordenação diferente entre estas duas dimensões gramaticais, tanto a militar quanto a
civil, sem privilegiar uma à outra. Dessa forma, os contornos pelos quais a metáfora é
aqui analisada apontam outros sentidos subjacentes ao que recorrentemente tem sido
3
Segundo Freire (2013), gramática designa um conjunto de regras ambientadas baseadas na necessidade
de ajustamento entre um princípio de ação (conteúdo moral) e o contexto da interação (dispositivos e
coisas do mundo), sendo o reflexo do trabalho de definição de situação dos atores e um ambiente na qual
as competências são ajustadas, enquadrando e avaliando o desempenho dos atores na situação.
4
Num contexto de violência urbana, fica claro o quanto as análises do uso do “metafórico da guerra”
servem como chave de leitura de certos esforços baseados tanto na construção do agenciamento da figura
do inimigo (aqueles que devem ser combatidos) quanto nos esforços efetivamente armamentistas para o
enfrentamento desses sujeitos (operações militares, policiais etc.). Nesse sentido, a “metáfora da guerra”
delimita uma série de operações pensadas, principalmente, a partir do estabelecimento de uma gramática
militar, em que certos enquadramentos morais justificam certas ações autoritárias, racistas e diretamente
conflituosas com relação a certos perfis citadinos.
5
No caso específico da pandemia, Araujo (2020) chama a atenção para o quanto o uso da metáfora pode
levar ao “acirramento de tensões, racismos e autoritarismos” e à personificação de certos sujeitos sociais
como àqueles responsáveis pela proliferação do vírus. A partir dessa reflexão, é digno de nota o quanto
certas acusações têm sido feitas contra chineses e a China — vide os recentes ataques do deputado
Eduardo Bolsonaro (sem partido) e do ex-ministro da educação, Abraham Weintraub –. Soma-se a autora
Acácio Augusto, professor de Ciência política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que
produziu um texto contrário à adoção do termo em tempos de pandemia, bem como Sophie Mainguy,
médica francesa que ganhou destaque ao colocar-se publicamente contrária à adoção da noção de guerra
pelo presidente Macron, na França, principalmente pelo racismo subjacente ao uso do termo.
(Ver em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/03/27/Guerra-guerrilha-ou-resili%C3%AAncia-
3-vis%C3%B5es-sobre-a-pandemia)

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produzido com relação à noção metafórica da palavra guerra, principalmente no plano


da violência urbana.
Portanto, o uso da metáfora da guerra não será trabalhado aqui somente como
índice de um “estado de exceção”, tal como o de Agamben (2005), por mais que a
associação pareça a mais evidente. Ainda que implique certa definição de um contexto
através da noção de exceção, descrevendo um “estado de calamidade” que circunscreve
uma situação, um estado das coisas, e valora e da conta de certos movimentos de
combate à algo(sendo estes tanto institucionais quanto cotidianos), não nos parece que o
governo brasileiro tenha buscado utilizar a pandemia como instrumento
propositadamente político para implantar o terror e o medo generalizados – sendo
justamente o contrário, dado que se buscou tentar provar que “está tudo bem” inúmeras
vezes – bem como tratar a exceção como paradigma ordinário de governo faz escapar,
novamente, a gramática civil, justamente a dimensão que proponho não só estar
articulada à metáfora da guerra como produzir efetividade no ordenamento e na
definição da pandemia,esta deixada de lado a medida que a “exceção” direciona
prioritariamente o seu olhar para o governo e a governabilidade.
Partindo dessa diferenciação inicial, analiso a metáfora da guerra não somente
como a representação de uma ação violenta de ampla escala direcionada a um alvo
(embora ela aqui também seja), mas também como situação na qual os atores que não
estão na “linha de frente” do conflito também adotam e são objeto de uma série de
medidas, o que, em nosso caso, tem envolvido as noções de higienização constante de si
e de objetos, assim como a necessidade de contribuir para o isolamento mantendo-se as
taxas de contágio a um patamar seguro, vislumbrando o chamado “achatamento da
curva”. Deste modo, a gramática civil aparece também como protagonista deste esforço
de reflexão, dando margem aos inúmeros esforços que lidam indiretamente com esse
enfrentamento da pandemia, seja na privação da rotina, na busca por segurança ou na
contribuição para a mobilização de recursos que dêem conta de sanar os problemas
relacionados à pandemia, desde usar máscaras até manter-se isolado em casa.
Tomando a “guerra” como uma “forma” (no sentido simmeliano) busco entender
como seu uso metafórico pode, a depender de seu ponto de partida gramatical, espelhar
diferentes registros, estes que ora apontam riscos operacionais do combate, pensando
logisticamente suas ações violentas, e ora permitam compreender de que maneira os
atores interpretam e valoram o que acontece em suas experiências indiretas referentes ao
combate, a partir de sua experiência propriamente civil. Portanto, faço deste um
exercício radicalmente compreensivo (WEBER, 1992) e não moralista (WERNECK,
2012) quanto àquilo que se refere à conformação de nossos tempos como aquele
marcado por uma “guerra contra o coronavírus”, sem que, necessariamente, isso
represente a defesa pela adoção do termo ou a inscrição de qualquer juízo de valor sobre
seu uso.
Deste modo, minha pergunta quanto à efetividade do uso da noção na definição
de situação da pandemia é feita menos com vistas a responder como o uso da metáfora,
em sua dimensão militar pura6 nomeia certos agentes como pólos moralmente
opositores e dá margem as ações atrozes do Estado, e mais direcionada a pensar a
pandemia como uma situação em que as duas dimensões gramaticais estão em jogo,
conjuntamente mobilizadas pela metáfora, expurgando-se as tentativas de humanização
do pólo inimigo (o vírus). Faço aqui uma análise da metáfora da guerra que toma para si
não apenas a violência como único registro possível das ações, mas também uma outra

6
E que tem sido usado, principalmente, para pensar sobre contextos de violência urbana (LEITE, 2012);
como já dito.

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forma de coordenação onde outros registros trabalham em conjunto,segundo uma lógica


de ordenamento própria, a ser destrinchada.

Destrinchando as marcas da guerra: sentidos da metáfora do combate ao


coronavírus
Como marcado anteriormente, realizei um levantamento de notícias que
utilizavam deste motto no intuito de mapear os sentidos subjacentes ao uso da “guerra”
como metáfora, tendo realizado um recorte sobre as fontes de imprensa disponíveis
online e utilizado somente de jornais com maior visibilidade e confiabilidade pública,
tais como CNN Brasil, Folha de São Paulo, O Globo e Uol, ou então de sites
relacionados à centros de pesquisa e informação ligados diretamente ou não ao governo,
tais como os sites da Fiocruz e do Planalto. Sob este recorte, observo que data do dia 16
de março a primeira reportagem que utilizava da metáfora da guerra no combate à
pandemia, ecoando o pronunciamento de Macron, presidente da França, que fala em
“guerra sanitária” (CNN,16/03/2020). No mesmo dia, a Joven Pan vincula artigo de
opinião do empresário Carlos Wizard, que fala da necessidade de um grande “pacto
nacional” no combate à pandemia e define a situação como uma “guerra sem tiros,
bombas ou mísseis” (WIZARD, 16/03/2020). Dois dias depois, o ministro da defesa
Fernando Azevedo garante o apoio das Forças Armadas ao combate da pandemia,
justamente por se tratar de uma “guerra”, em sua visão. Ainda na mesma data, Trump,
presidente dos Estados Unidos, “invoca a lei de guerra” para aumentar a produtividade
da indústria no fornecimento dos equipamentos de higiene necessários às equipes
médicas (O GLOBO, 18/03/2020).

Fonte: Imagem vinculada ao site do governo (gov.br) na seção específica do Ministério da Defesa

É digno de nota que a partir daí inúmeras outras reportagens começam a utilizar
da metáfora da guerra, sendo notável a massificação do motto ao vincular as notícias
referentes ao coronavirus principalmente entre os dias 27 de março até meados de abril.
É curioso notar que, de fins de abril até início de maio, a metáfora ganha sua conotação
militar mais forte, demonstrando exemplos de como certos arranjos na sociedade
(hospitais de campanha e medidas de controle da população) tem garantido certos
resultados na contenção da pandemia, demonstrando o grau com que as políticas de
contenção do governo têm sido bem sucedidas, apontando algumas lacunas e resultados
até então alcançados. Ainda nesse mesmo período, no início de abril, é curioso o fato de
que a ideia de “guerra” parece ter influenciado um movimento que buscava dar uma
conotação mais real ao termo, dado que começaram a surgir notícias que falavam sobre
a situação de países efetivamente em guerra – tais como a Síria, Líbano dentre outros –

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e como o coronavirus tente a deteriorar a já precária situação destes locais (PRESSE,


09/04/2020). Há também algumas notícias sobre “ex combatentes de guerra” ou sobre
pessoas que viveram no mundo “pós guerra” e que, apresentados como “heróis”,
também sobreviveram à doença (ARAUJO, 14/04/2020).
Apontando-se ou as inúmeras “operações de guerra” que definem a adoção de
medidas institucionais de combate a pandemia, tais como medidas econômicas; ou os
“esforços de guerra” que tem feito parte do cotidiano da quarentena no Brasil e no
mundo, se referindo às atitudes tanto individuais quanto coletivas que visem mitigar a
proliferação do vírus, reparei que, grande parte das notícias analisadas geralmente
mobilizava a noção de guerra para uma descrição não apenas das providências
institucionais relacionados à gestão da pandemia como também para destacar alguns dos
sentimentos relacionados a esse contexto – como a bravura dos médicos e enfermeiros,
o controle do pânico e a abnegação de ficar em casa, chegando-se inclusive a falar dos
“desafios geracionais” que a “guerra” colocava (DULCI, 22/04/2020). Isso ganhou mais
força principalmente em fins do mês de abril e início do mês de maio, quando se
começa a perceber que a adesão ao isolamento é cada vez mais reduzida no Brasil
(GARCIA; LIMA, 22/05/2020).
Se, de um lado, a metáfora cabe bem à adoção da cloroquina pelo então
presidente Bolsonaro, para quem "pior do que ser derrotado [na guerra] é a vergonha de
não ter lutado." (MAIA, 20/05/2020); por outro lado ela serve como um horizonte que
justifica e estimula o apoio da população na adoção de todas as medidas sanitárias, para
“vencer batalhas” cotidianas até que se “vença a guerra” (LEITE, 10/06/2020). Surge
então o que me parecem ser os dois pólos gramaticais que sustentavam as notícias que
utilizavam da noção da guerra como metáfora: ora estas encaminhavam informações
sobre as medidas governamentais e institucionais dessa crise sanitária, ora se utilizava
desse contexto para relatar os sentimentos e opiniões que alguns atores (como médicos,
economistas e civis) relacionavam à pandemia, ressaltando-se as medidas que cada um
pode tomar em prol do coletivo e ressaltando-se a necessidade de não perder o foco,
mantendo-se no permanente combate à pandemia.
Tendo acompanhado as notícias sobre o coronavirus que utilizavam da metáfora
da guerra desde o dia 16 de maio, encerrei a análise destas no dia 10 de junho, quando
constatei que o motto passou a ser cada vez menos frequente e, quanto utilizado, não
apresentava nenhum novo sentido ou vinculação subjacente. Observei, assim, que a
metáfora da guerra própria ao contexto de pandemia de covid-19 nomeava um esforço
de combate geralmente relacionando-o com dois aspectos: um que é pautado nas
operações logísticas do controle da situação e o outro baseado nas atitudes individuais
valoradas positivamente para a contenção dos danos causados pelo vírus. Assim,
enquanto um pólo aponta para o arranjo institucional dos dispositivos úteis ao combate,
tendo a guerra como metáfora do emprego estratégico dos recursos econômicos e
políticos possíveis, o outro qualifica os esforços dos indivíduos que nele estão, tendo a
guerra o caráter de um estado de exceção onde os atores coordenam suas ações dando
um sentido de ajustamento à urgência e seriedade do contexto, geralmente apontando a
disposição em aceitar medidas de restrição de liberdade acompanhadas da valorização
da bravura dos que estão na “linha de frente do combate”.
Como ilustração deste primeiro aspecto, pode-se citar o caso dos governadores
da Região Nordeste do Brasil, que afirmavam que o país vive “um momento de guerra”
(GALVANI, 25/03/2020) e precisava adotar medidas sanitárias rígidas. Também há o
governo federal, que chama planos econômicos de “pré e pós-guerra” (FLOR,
26/03/2020) enquanto o Congresso aprovava o cognominado “orçamento de guerra”
(VENTURA et.al, 03/04/2020). Havia também empreendedores e representantes da

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indústria que anunciam medidas como parte de seus “esforços de guerra” (TERRA,
26/03/2020), e as notícias relacionadas à construção dos hospitais de campanha, cujo
esforço tinha a ver com a rápida necessidade de esvaziamento das UTIs e a criação de
novas unidades intensivas de tratamento (CANZIAN, 20/03/2020). No cenário político
mais amplo, o filósofo camaronês Achille Mbembe (BERCITO, 30/03/2020), que
cunhou o termo “necropolítica”, assumiu haver uma clara posição de combate, citando a
“guerra” como uma das formas pelas quais os políticos tentam lidar com a incerteza do
mundo característica deste momento.
Já sob segundo aspecto vinculado à metáfora, se apresentava em geral notícias
baseadas na conscientização da gravidade da situação, como, por exemplo, a entrevista
do médico brasileiro Drauzio Varella, que costuma contar com cadeira cativa na fala
pública sobre saúde no país, cuja fala reforçava a necessidade de se proteger e “levar a
sério” o vírus (UOL, 03/04/2020). Aqui se fala da “chegada da guerra” e como as
equipes médicas lidaram emocionalmente com a situação (RODRIGUES
et.al.12/05/2020), atores esses geralmente descritos como “na linha de frente” do
combate que necessitavam contar com o apoio da população (TAVARES,13/04/2020),
justamente para não terem mais sobrecarga de trabalho.“Preparar-se para a guerra”
(SAFATLE, 20/04/2020) envolvia ter noção do quanto a pandemia é grave, o que
relaciona não só a postura dos políticos, convocados a “dar o exemplo” (AGUIAR,
02/05/2020), como a dos cidadãos, que não podem deixar de aderir ao isolamento como
única forma de “não perder a guerra” (CARVALHO, 06/05/2020).
A guerra comunicou em duas escalas, sendo uma delas voltada ao enfrentamento
do vírus e a outra à solidariedade entre pares. Se o registro militar é nitidamente
apresentado pelas notícias, somando-se movimentos industriais, médicos e políticos que
dêem conta de minimizar os impactos tanto econômicos quanto sanitários da pandemia
— o que inegavelmente abre margem para ações radicais, senão discriminatórias
(ARAUJO, 2020) — acredito que o registro civil também é fortemente apresentando,
vinculado à noção de privação excepcional da rotina e da necessidade de abnegação e
ampla colaboração para a “vitória” (isto é, a contenção da pandemia). Por isso, muito
embora ela esteja presente, é para além da gramática militar que acredito que a metáfora
foi empregada, dando conta também das maneiras pelas quais os atores “civis” — isto é,
os cidadãos comuns não envolvidos diretamente coma “linha de frente” dos “combates”,
como médicos, enfermeiros e trabalhadores de atividades essenciais — têm sido
convocados a integrar seus esforços de controle na circulação do vírus, ou mesmo a se
sensibilizar com a gravidade da situação.
Apontando um estado de urgência (CALHOUN, 2004) no que se refere à
necessidade de resolver um estado problemático do mundo o mais rápido possível, antes
que ele venha a piorar, apresentam-se aqui reflexos da noção de que a normalidade do
mundo não é taken for granted, buscando oferecer respostas às rápidas mudanças
provenientes da pandemia. Ao analisar tal cenário, “definir a situação” por meio da
noção de “guerra” se provou não apenas recorrente em sites de notícia como também
efetivo ao nomear esforços institucionais e servir como meio de explicação da realidade
pelos atores, convocando sua participação na definição dessa realidade. Assim, essa
delimitação de sentidos e a efetivação das ações e avaliações têm, como vimos,
mobilizado tanto repertórios militares quanto civis, o que aponta na direção de um
regime de engajamento no plano (THÉVENOT, 2008 [2006]) tomado em “urgência”.

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Da urgência de se engajar no combate à pandemia


Após o levantamento das notícias em que tal metáfora é empregada, ficou
evidente que o fato da palavra guerra estar sendo recorrentemente utilizada estava
relacionado não somente com a descrição do aspecto institucional do confronto como
também à necessidade de coordenar ações sob a mesma lógica de urgência,
comunicando a situação de uma mesma forma para todos. Defendo que o frequente uso
do termo “guerra” durante a pandemia apresentou uma passagem da metáfora da guerra
situada apenas num plano militar para o uso da metáfora da guerra mediada por duas
gramáticas (militar e civil), o que se percebeu pela análise da mobilização pública da
metáfora. Nela, os atores definem as situações recorrendo-se à situação de calamidade e
privação na qual se dá o confronto, o que não parece ter sido algo levado em
consideração em algumas das recentes análises críticas sobre tal questão
(PENNINGTON, 2020; ARAUJO, 2020).
A ampliação das significações da palavra “guerra” que aqui se apresenta, indica
de que forma seu uso dá conta efetiva de certas situações do mundo, socialmente
avaliadas, e como as “definições dos atores” também são “reais em suas consequências”
(THOMAS, 1938 [1928], p. 572). Nesse sentido, observo a atuação da metáfora em um
registro no qual se constrói a agência de um inimigo externo (o coronavírus) buscando-
se a legitimidade de atos de força desproporcional de ataque (afinal, é preciso matar o
microorganismo) pelo reconhecimento de que o que está diante de nós é um desafio de
vida ou morte, ao mesmo tempo fazendo com que, em alguns momentos, a metáfora
busque representar uma experiência semelhante à da população comum em períodos de
conflito: legitima-se a força desproporcional relacionada ao conflito falando-se também
da necessidade de colaboração de todos, pautando-se também a adoção de medidas
radicais de intervenção do Estado nas vidas das pessoas, especialmente no aspecto
econômico, e de medidas agressivas de saúde (como achatamento da curva de
infectados), implicando uma alteração radical da rotina. Assim, ficar em casa, trabalhar
de outra forma, talvez perder o emprego e não ter contato com outras pessoas,
independente dos tipos de festividade ou ocasiões são aspectos que, em algum grau,
deve ser compartilhado entre todos. Trata-se de um estado de privação, com acesso
limitado a bens e serviços, de subsistência, inclusive, circunscritos em um engajamento
conjunto em prol do bem comum que, por vezes, associa consigo sentimentos de bravura
e benevolência para a produção efetiva de tal coordenação de ações.
Como já aludi, então, estamos diante de uma situação mergulhada em um
regime de engajamento no plano (THÉVENOT, 2008[2006], p. 15) “em urgência”, cuja
escala tem a ver com a tomada de decisão por parte de atores, tanto institucionais quanto
civis/individuais (mas estes, sempre tomados no plural), no intuito de ordenar a crise da
pandemia — dos cuidados diários de prevenção ao vírus às medidas econômicas
necessárias ao seu enfrentamento, guiando-se por um ideal de bem comum. Contudo,
este plano é embebido de certa temporalidade na qual a situação de guerra ao
coronavírus, isto é, esse recorte de certa duração temporal que nomeia esse esforço e
produz certas sociabilidades, produz a integração ações sobre um mesmo quadro
situacional, quase como um “ethos comunitário” (Idem, p. 19), funcionando como um
“marco de percepções” (Idem, p. 30) no que se refere a ordenar condutas distintas e
garantir sua conveniência (THÉVENOT, 1990) num mesmo momento, rápida e
continuamente, segundo uma temporalidade na qual não há tempo a perder.
A mobilização da urgência institui um regime que coordena ações de indivíduos
distintos permitindo com que estes “façam o comum”, convergindo a agência desses
atores segundo um registro de ação coletiva pautado principalmente sobre dois pilares:
na mobilização dos recursos extraordinários disponíveis, saindo-se de uma lógica de

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(re)investimento de reservas (HIRSCHMAN, 1973) e adentrando-se uma lógica de


possível pleno emprego e, talvez, gasto indiscriminado para solucionar a crise (cujo
retorno é não necessariamente financeiro); e na garantia do bem-estar da maior parte
possível da população, ideal que sustenta os esforços de mitigação dos impactos sobre a
vida por meio de um critério de eficiência e benevolência, que envolve a suspensão da
rotina e um ordenamento sobre estas, calcadas na noção da “urgência” do combate nesta
“guerra ao coronavirus” e no “pensar no outro”, mitigando a proliferação do virus.
A abordagem pragmática dos regimes de engajamento nos ajuda a pensar de que
maneira os atores sociais, em meio a pandemia, articulam suas ações em torno de um
marco conveniente de ações voltadas à contenção da circulação do vírus e do
agravamento das exceções por ele causadas, o que parece se espelhar no uso metafórico
da guerra – que convoca todos a frearem a circulação de covid-19. Seguindo Thévenot,
trata-se de fazer uma sociologia sobre as montagens do mundo e não sobre a
subjetividade dos atores, ou seja, a questão aqui é reparar o nexo entre as
individualidades e os pertencimentos coletivos chamando a atenção para a construção
de “quadros vivos” (THEVENÓT, 2008[2006], p.63) que se originam nas situações
vivenciadas pelos atores e apontam para referências comuns segundo as quais os atores
orientam sua interação. Desse modo, pensar a definição do enfrentamento da pandemia
como uma guerra delimita uma modalidade, um “marco de juízo” (op. cit, p. 46),
segundo a qual a situação da pandemia é ordenada segundo certa lógica de orientação da
participação dos atores na urgência do combate.
Segundo o autor,

Este enfoque lleva a desplazar la atención consagrada a los estados


mentales para centrarla en la identificación de cosas o índices
materiales que intervienen en la acción y sostienen su identificación.
Pero esas referencias tampoco pueden considerarse como datos a
priori en un mundo natural (...) Se consolidan al mismo tempo que se
delimita la acción, en el cierre de um juicio revisable (THEVENÓT,
2008[2006], p. 119)
A guerra, sob a perspectiva do regime de engajamento “em urgência”, torna-se
um dispositivo de conveniência que recobra a atenção dos atores sobre o papel que estão
convocados a cumprir. A experiência de quarentena e a garantia de que são adotadas as
medidas cabíveis e positivamente avaliadas nesse quadro de integração de condutas —
ambas dimensões importantes no estabelecimento de um regime de coordenação de
ações (THÉVENOT, 2008[2006]) — são então aspectos de um regime que modula as
ações não apenas por conta de um ataque ao inimigo, mas também pela tentativa de
controle das incertezas e da possibilidade de piora do cenário, num exercício de
coordenação dos esforços de contenção dos estragos da pandemia e de convocação da
maior parte da população à participação nesta tentativa. Nesse caso, falar em regime de
engajamento de combate a pandemia tem a ver com uma análise atenta as formas pelas
quais as condutas dos atores se estabilizam em ordens duráveis, traçando-se alguns
marcos de percepção que se relacionam as ações dos atores e garantam a adoção de
posturas de combate cabíveis ao problema pandêmico. Saímos aqui do questionamento
do que as ações, tomadas individualmente, fazem com relação à pandemia, e passamos a
nos perguntar como estas ações são condensadas sob uma mesma lógica, constituindo-
se uma dimensão efetivamente social do problema.
“Guerra”, aqui, vira sinônimo de “agir com urgência e em conjunto”, acionando-
se ao mesmo tempo um registro militar de dispêndio de recursos e um registro civil de
cerceamento da rotina em prol do bem comum, construída sob a lógica de controle da

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circulação do vírus disposta em uma situação caracterizada pela urgência de garantir a


proteção dos indivíduos e evitar ainda mais mortes. Busca-se a resolução da situação
problemática através da delimitação de marcos de interação entre os atores, que se dá na
definição problemática de uma situação e a articula sob um regime que acata as
deliberações que privam de liberdade os atores e busca as coordenar como um modo de
experiência comum entre os atores – sem, contudo, impedir a existência de uma
pluralidade de outras lógicas de coordenação que, inclusive, podem servir de crítica à
forma com que o combate ao covid-19 tem tomado: seja não contribuindo com a
quarentena ou mesmo criticando o grau de alarde com que a pandemia fora tratada –.
Por sua vez, é digno de nota que a ideia da existência de um regime no qual os
atores apontam uma situação catastrófica e urgente também não é nova e tampouco
exclusiva do momento da pandemia, bastando olhar a extensa produção do sociólogo
Chateauraynaud sobre alertas e transformações do discurso dos atores em contextos de
crise (2011, 2013, 2017). Expoente do escopo pragmático da sociologia, o autor
qualifica o fenômeno que circunscreve analiticamente também como “regime”, mas isto
se faz de uma maneira diferente da minha, pautada sobremaneira em Thévenot (2008
[2006]): no caso dele, trata-se, antes de mais nada, de identificar como os atores
articulam entre si projeções de futuro – “regimes de enunciação do futuro”
(CHATEAURAYNAUD, 2017, P.166) – a partir das interpretações e análises das
provas apresentadas pela definição das situações em que estão envolvidos no presente.
A ideia de regime, aqui, aparece como um marco analítico tomado por uma
“temporalidade longa” (CHATEAURAYNAUD, 2013) que permite ao autor identificar
não somente como os atores rompem com o estado de rotina, lançando um “alerta” e um
“discurso catastrofista” (CHATEAURAYNAUD, 2017), como também como eles
produzem “trajetórias argumentativas” (CHATEAURAYNAUD, 2011) que,
constantemente, transformam a validade dessas provas segundo diferentes desenhos de
futuro, modulando-as segundo diferentes pretensões.
Nesse sentido, a questão premente não é como os atores tornam-se plural mas
como os discursos sobre o futuro são coordenados no presente e definem a situação,
uma vez que o “reengajamento do passado é indexado ao mesmo tempo sobre as
propriedades da situação e sobre as transformações visadas, ou recusadas, pelos
protagonistas em presença” (CHATEAURAYNAUD, 2017, p. 8). Falando-se
especificamente de um “regime de urgência”, o autor define a lógica da ação dos atores
analisando como as visões sobre um futuro ainda distante ou próximo de acontecer
perdem ou ganham força no campo argumentativo, a depender das temporalidades
relacionadas a certas tomadas de decisão, fazendo com que “o presenteísmo domine”
(Idem, p. 169). Tal fenômeno denominado “engajamento”, para o autor, é
principalmente o do enquadramento de uma dinâmica das controvérsias e argumentos
que circulam e se condensam nas situações – uma configuração das controvérsias –
enquanto o que analiso é justamente o engajamento entre os atores e a busca pela
coordenação de ações entre eles, tomadas no plural e pautadas pelo consenso da
gravidade da situação e não necessariamente por sua disputa argumentativa. Acredito,
assim, que enquanto Chateauraynaud analisa o processo de disputa discursiva e de
tomada de decisão, eu analiso um modo de estar no mundo e de relacionar com ele,
tendo a decisão de combater a pandemia pontuada pela sua própria efetivação e
andamento, enquanto ela mesma é colocada em prática, ainda que isso não inviabilize
uma análise dos discursos que o compõe.
No caso da pandemia, guardadas as semelhanças quanto às distintas projeções
de futuro e a necessidade de tomar decisões rápidas e eficazes, quando falo de regime de
engajamento “em urgência” qualifico o fenômeno da urgência sob o viés do grau de

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engajamento dos atores, analisando a operatividade de uma lógica de integração das


ações que marca, publicamente, fronteiras para as ações das pessoas e maneiras de
cooperar com o controle da pandemia e, assim, de compor o social. Dito isto, me
importa menos as operações argumentativas de definição da catástrofe, segundo as quais
as avaliações da situação são disputadas pelas projeções de futuro, e mais a forma como
os atores delimitam as situações segundo as referências comuns intersubjetivamente
estabelecidas na definição da situação, apresentando a situação problema da pandemia
em sua relação intrínseca com a lógica de coordenação dos envolvidos nela.
Parece-me que essa integração de condutas se dá num cenário em que o futuro,
ainda que seja objeto de discussão, é tratado pari passu ao grau de integração,
vinculação e colaboração entre os atores, no presente, seja pela discussão sobre a adesão
ao isolamento para evitar o aumento do número de contágios, sobre respeitar ou não a
quarentena ou mesmo em acreditar no vírus e em suas consequências danosas,
aumentando-se ou diminuindo-se o número de adeptos do isolamento. Ainda sob tal
lógica de ordenamento, como característico de um estado de urgência (OPHIR, 2012),
apresenta-se a possibilidade iminente de piora do cenário, o que reforça ainda mais a
necessidade de estar ajustado a esse engajamento, mantendo-se permanente a lógica da
integração.
Esclarecida a comparação entre ambas as dimensões possíveis de análise do
fenômeno, trato a metáfora da guerra na pandemia como sinônimo de um regime de
engajamento em urgência, por ela apresentar 1) Uma coordenação de ações pensadas
por um temporalidade da imediatez, dada a incapacidade de prescrever seu término e a
necessidade de tomadas rápidas de decisão, que tem o intuito de sanar 2) uma situação
definida como problemática, que, a partir de seu enquadramento, leva à 3) a
apresentação do cerceamento da rotina, da tomada de medidas extraordinários como
fundamentos do combate a pandemia que 4) necessitam ser positivamente valorados
nessa conjunção de ações, angariando o máximo de cooperação entre os atores e
fazendo que suas atitudes sejam sensíveis às medidas sanitárias de restrição da rotina.
Como apontam Mouzinho e Freire (2020, p.5), ao olharem o caso francês,

de um lado, a guerra é um repertório argumentativo mobilizado para


coagir cidadãos e forçá-los à obediência. Por outro, a associação entre
“guerra” e “estado de urgência sanitária” orienta muitas das pautas do
debate público. Essas pautas, por sua vez, passaram a alertar sobre
seus efeitos na continuidade do “estado de direito” que o transitório
“estado de crise sanitária” ameaça(ria?). Em outros termos, “o estado
de urgência” poderia ser um momento de experimentação de
restrições de liberdades individuais, como a livre circulação dos
franceses, sem controle do Parlamento, que poderia se prolongar
Concordo aqui com a ideia de que a “guerra” funciona como um aparato
institucional que visa a obediência dos cidadãos, me questionando, entretanto, sobre o
tom com que esse argumento tem sido mobilizado e refletindo sobre o quanto a
obediência, marcada pela restrição às liberdades,passa também pelo sentimento de
colaboração em prol de um “bem maior” e da convocação da atuação dos atores à
contribuírem para o controle da pandemia e a “fazer a sua parte”, ao invés de
meramente serem contidos pelas medidas de exceção do Estado. Ao menos nas notícias
que analisei, falar da guerra era quase como mostrar como todos faziam parte dela.
Através do regime de engajamento no plano em urgência, a “guerra ao coronavírus”
parece dar conta não apenas de nomear uma situação urgente que é acompanhada de
esforços institucionais de contenção de danos, como também da integração dos esforços
de diferentes escalas (“civis” ou “militares”) pautada sobre a temporalidade na qual o

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bem de todos (WERNECK, 2012) é uma máxima moral – e a contenção dos danos um
objetivo claro da situação em que as condutas se integram e se coordenam, o que pode
ser realizado somente a partir da colaboração de todos. Nesse caso, trata-se da vívida
necessidade de abnegação, onde “na guerra, temos dois caminhos pessoais que
determinam o coletivo: nos tornarmos melhores do que somos ou nos tornarmos piores
do que somos” (BRUM, 25/03/2020).
Portanto, a metáfora da guerra, na modulação do regime que aqui proponho,
amplia as escalas do combate fazendo com que não apenas o governo tenha
responsabilidades para com a pandemia, visto pelas lentes do uso da força
desproporcional, mas toda a população – onde a gramática civil estipula um processo de
definição pelos próprios cidadãos, levando em conta a integração de suas ações sob o
objetivo de contenção da pandemia. Ainda que isso possa levantar suspeições quanto às
consequências de normalizar um estado de exceção, tomo como objeto a necessidade de
cooperação subjacente ao uso da metáfora, baseada na máxima moral da saúde de todos
e na responsabilização de poucos em detrimento da colaboração de todos.

Conclusão
Passando-se do uso nativo (“guerra”) para o uso analítico (“urgência”), a
partição da forma-guerra compõe um exercício interpretativo que aponta o quanto, na
prática, a palavra tem dado conta de certos sentidos, notadamente o de urgência e
abnegação, que acabam por definir, interpretar e delimitar os esforços de enfrentamento
desta crise sanitária. Se há uma “guerra contra o coronavírus”, há rotinas abaladas,
medidas institucionais sendo tomadas com celeridade (o que ultrapassa os protocolos
burocráticos de uma situação normal) e a adoção de uma série de comportamentos que
visam a mitigação da proliferação e contágio pela doença e que são acompanhados de
valorações sobre sua conveniência na situação pela qual passamos.
A efetivação da palavra guerra é aderente a um sentido de urgência que delimita
certa produção e reprodução de ordens no imaginário social (CALHOUN, 2004, p. 17)
referindo-se, principalmente, à realização de um esforço coordenado na tentativa de
reaver um estado anterior de normalidade (os ditos “tempos de paz”). A metáfora da
guerra, pensada a partir do regime de engajamento “em urgência”, que instituído sob a
lógica de coordenação nesta situação problemática se pauta por dois registros
gramaticais, um “civil” e outro “militar”, sem que estes sejam sobrepostos um ao outro.
Assim, ao mesmo tempo em que se aponta a presença de uma situação
problemática, espelhada tanto na gramática civil quanto na militar, também se delimita
um ordenamento das ações baseada na necessidade de contenção de danos (OPHIR;
2012, p. 42) — como “achatar a curva” do contágio — espelhando ao mesmo tempo
uma urgência moral e de coordenação, representada pela abnegação e colaboração com
as medidas sanitárias, e uma dispositividade política, em que medidas rápidas têm de ser
tomadas, preservando-se ao máximo às vidas humanas. Agir em regime de urgência,
nesse caso, dá conta da integrar ações para se lidar com um estado problemático do
mundo, buscando minimizar seus efeitos de impacto por meio da valorização dos
sentidos da abnegação e da proatividade em tomar medidas que preservem vidas e dêem
conta de resguardá-las, até a volta da “normalidade”.

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2526-4702.
ARTIGO
https://grem-grei.org/numero-atual-socurbs/

A mutação do espaço público: sociabilidades na Praça da Paz, João Pessoa


– PB, antes e durante a pandemia do coronavírus∗
The mutation of public space: sociability in Praça da Paz, João Pessoa-PB, in the
before and during the coronavirus pandemic

Camila Andrade∗∗
João Nunes∗∗∗

Resumo: A pandemia de Covid-19 nos trouxe um cenário onde o distanciamento social é


uma das principais medidas para a proteção da vida humana. O espaço público, qualificado
precisamente por ser um local de encontro e troca entre pessoas, se vê então sob ameaça.
Este estudo objetivou investigar os impactos da crise sanitária nas dinâmicas sociais e
espaciais da Praça da Paz, em João Pessoa – PB. Para tal, realizou um comparativo entre o
uso e sociabilidades deste espaço público antes (2019) e durante (2020) a pandemia, se
utilizando dos conceitos de Magnani (2002) de pedaço e mancha para compreender as
interrelações entre mundos sociais diversos e suas manifestações no espaço. Sustentou-se
nas acepções teórico-metodológicas de múltiplas realidades inferidas por Schütz (1945,
2019) para desenhar as particularidades temporais e nos conceitos de Goffman (2010, 2012)
sobre interações sociais no espaço público. Sendo uma pesquisa empírica e qualitativa,
realizou diários de campo, registros fotográficos, entrevistas e reflexões acerca das
dinâmicas socioespaciais verificadas. Percebeu-se que os grupos sociais praticantes de
exercício e/ou que utilizam a praça com os filhos, atrelados à prática de atividades
relacionadas à saúde, convergem para uma normativa de ética moral, tendo passado a
ocupar a praça em pedaços maiores do que grupos mais disruptivos, como os jovens e os
traficantes. Observou-se que o medo e constrangimento causados pela possibilidade do
contágio constituíram condutas nas quais o indivíduo legitima as próprias ações a partir das
ações de seu próximo. Palavras-chave: espaço público, Covid-19, sociabilidades, Praça da
Paz
Abstract: The Covid-19 pandemic brought us a scenario where social distance becomes
one of the main measures for the protection of human life. The public space, qualified
precisely for being a place for people to meet and gather, is then under threat. This study
aimed to investigate the impacts of the coronavirus health crisis on the social and spatial
dynamics of Praça da Paz, in João Pessoa – PB. To this end, it made a comparison between
the use and sociability of this public space before (2019) and during (2020) the pandemic,


Produzido originalmente como trabalho final para a disciplina Sociologia Urbana, ministrada pelo Prof.
Dr. Mauro Guilherme Pinheiro Koury, durante o semestre 2019.2, e reatualizado a partir da realidade de
pandemia por Covid-19 durante os semestres 2020.1 e 2020.2, com orientação também do Prof. Dr.
Mauro Koury.
∗∗
Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Universidade Federal da Paraíba. Orcid:
https://orcid.org/0000-0002-6900-1971. E-Mail:cbandradez@gmail.com.
∗∗∗
Graduando em Arquitetura e Urbanismo; Universidade Federal da Paraíba. Orcid:
https://orcid.org/0000-0002-3565-9097. E-Mail:joaovno1@gmail.com.
64

using Magnani's concepts (2002) of piece and spot to understand the interrelationships
between diverse social worlds and their manifestations in space. It was supported by the
theoretical and methodological meanings of multiple realities inferred by Schütz (1945,
2019) to draw the temporal particularities of each moment and in the concepts of Goffman
(2010, 2012) about social interactions in public spaces. Being an empirical and qualitative
research, it carried out field diaries, photographic records, interviews and reflections on the
verified socio-spatial dynamics. It was noticed that the social groups that practice exercise
and / or use the square with their children, linked to the practice of activities related to
health issues, converge to a norm of moral ethics, having started to occupy the square in
pieces bigger than more disruptive groups, such as young people and traffickers. It was
observed that the fear and embarrassment caused by the possibility of contagion constituted
conducts in which the individual legitimizes his own actions based on the actions of his
neighbor. Keywords: public space, covid-19, sociabilities, Praça da Paz

Considerações iniciais
“O espaço público é a primeira vítima fatal”. Essa é a sentença que Beiguelman
(2020) enuncia em ensaio sobre a chamada “coronavida”. Se o espaço público configura
o lugar onde desde sempre ocorrem os contatos físicos, os encontros, as aglomerações;
diante de uma pandemia ele passa a ser potencialmente contagioso e, portanto, o
primeiro a ser sacrificado. O custo desse acontecimento é, obviamente, generalizado,
todavia há algo de subjetivo em sua dimensão, sendo determinada, também, a depender
do lugar que o espaço público ocupa em nossas vidas.
Fruto de um trabalho realizado em 2019, voltado ao potencial das diversidades
coexistentes no espaço público – em suas relações, intersecções, conflitos – e na forma
espacial que as dinâmicas de cada grupo social determinam, decidiu-se, este ano, dada a
chegada violenta de um vírus que se tornou pandemia, valer-se desse estudo para
investigar o espaço público e seus atores sob essa nova ótica, refletindo sobre o objeto
em dois universos temporais próximos, contudo em contextos distantes.
Sendo a pandemia por Covid-19 um acontecimento recente, ainda em curso e,
também por isso, com escassa quantidade de esforços compreensivos acerca dele, este
trabalho se propõe a realizar uma comparação qualitativa entre o antes e o durante a
pandemia das dinâmicas espaciais e sociais da Praça da Paz, situada na cidade de João
Pessoa – PB. Faz-se, então, uma análise espacial que enfoca a ocupação da praça pelos
grupos significadores daquele espaço em dois momentos, bem como se realiza reflexões
subjetivas sobre as interrelações entre eles.
Lefebvre (1999) utiliza a palavra liberdade com letra maiúscula para descrever a
simbologia de “liberdade conquistada” que há muito se atrela ao espaço urbano. No
contexto, se referia ao espaço urbano como pólo oposto ao campo. Aqui, colocam-se em
questionamento as possibilidades de prevalência dessa Liberdade num espaço público
que foi–não obstante a regência das muitas normativas sociais sobre ele – acrescido de
tensões provocadas pela possibilidade adventícia de contágio – diminuída pelo uso da
máscara que entra em jogo para proteger do vírus, mas nesse processo oculta relevantes
engajamentos de face (GOFFMAN, 2010) para a comunicação, conferindo outros
conflitos nessa sociabilidade.
A importância da sociologia no entendimento do espaço se firma no pensamento
de que o físico, por si só, não constitui estrutura suficiente para justificar, de forma
direta, comportamentos e condutas. Estes são antes induzidos em termos culturais e
sociais, para depois ser expressado nas sociabilidades que ocorrem no espaço público.
Sobre isso, Georg Simmel (2013, p.75) reflete:

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Um perímetro geográfico de umas tantas milhas quadradas não forma


um grande império; quem o faz são as forças psicológicas que mantêm
os habitantes de tal região politicamente coesos a partir de um ponto
central dominante. (SIMMEL, 2013, p. 75)
Assim, objetivou-se compreender como uma crise sanitária, que tem como
recomendação primordial o distanciamento social, atinge o espaço público enquanto
produtor e produto da realidade e, para além, explorar sobre as afetações do
comportamento humano na praça decorrentes dessa privação da sociabilidade.
Partindo de caráter comparativo, o estudo usou como base a etnografia urbana
da Praça da Paz feita pelos autores entre os meses de junho e agosto de 2019. A
interrelação espacial dos mundos sociais presentes nesse ambiente público o inferiu
como lugar evocativo das diversas formas de coexistir com assemelhantes. Utilizando
como base teórico-metodológica as acepções acerca das múltiplas realidades de Alfred
Schütz (1945, 2019), as aproximações, de natureza empírica, foram postas como contra-
realidades temporais, assumindo as ações sociais, designadas pelos conceitos de
Goffman (2010, 2012), da primeira observação como base para a segunda – isto é, o
durante a pandemia.
Uma das crises sanitárias mais graves, causada pela gripe espanhola, aconteceu
há mais de cem anos, em 1918. Pela distância contextual que esse espaço de tempo
define, e que implica intensas transformações nos âmbitos mais diversos (econômicos,
urbanos, tecnológicos, comunicacionais) e, portanto, por ser uma situação de cotidiano
atípico, o procedimento da segunda observação inferiu também nas construções de
significado nas realidades dos pesquisadores, uma vez que também foram sujeitos desse
espaço público marcado por novas moralidades.
Nesse sentido, a segunda exploração, tanto observada como experienciada,
ocorreu do fim de abril até a última semana de agosto de 2020, e pautou as observações
da realidade cotidiana da praça através de um esquema verificativo de confirmações
e/ou replicações dos tratos sociais e comportamentos que foram observados em 2019.
Os diferentes agrupamentos de indivíduos encontrados em ambas as análises
foram categorizados em mundos sociais de acordo com semelhanças comportamentais e
disposição espacial. Essas situações, nas duas temporalidades, foram representadas, para
além de suas acepções subjetivas, no mapa da Praça da Paz, tendo algumas das escalas
etnográficas de Magnani (2002) – pedaço, mancha – como os fatores de apresentação.
As duas observações se deram entre a variação de turnos e dias da semana, em
busca de compreender os usos e o fenômeno sociourbano que designa a Praça da Paz.
Contudo, foram algumas as alterações entre os modelos antes e o durante a pandemia de
investigação, se fazendo necessários a ausência das entrevistas dos atores da praça e o
distanciamento social como a ética urbana desse segundo período tão dessemelhante.

Revisão bibliográfica

Espaços públicos e pandemia

Sendo a primeira experiência integrada de uma organização social, política e


principalmente urbana, a pólis grega estabeleceu-se por séculos como aparato para a
fundação e ordenamento de cidades. Seus espaços eram marcados pela atribuição de
função social e política, a exemplo da ágora; ponto físico de encontro onde opiniões e
decisões eram manifestadas. Siqueira e Ferreira (2015) versam sobre a consolidação da
opinião pública por meio da articulação entre recursos intelectuais e espaços urbanos,
fomentando a comunicação e transformando a vida coletiva a partir das decisões ali
tomadas.

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Mumford (2004) define o encontro comunal como “a função mais antiga e mais
persistente” da ágora. Essa noção converge com a função da Praça da Paz, que tem o
princípio ativo de sociabilidade atravessando boa parte dos usos, senão todos,
identificados em 2019, antes do coronavírus. Em 2020, após o coronavírus, podemos
afirmar que o espaço público, da forma que o conhecíamos antes, não existe mais.
A reprodução do espaço público, como aponta Pádua (2007), se manifesta
produzindo espacialidades inseridas numa lógica capitalista inerentemente reprodutível
(onde realiza e reproduz). Nisso, é notável que a crise da pandemia também se
manifeste por essa mesma lógica. A premissa do “estamos todos juntos nisso”, que
prega um impacto social do coronavírus generalizado, acaba por não ser verdadeira,
como estabelece Harvey (2020); com os governos tomando ações por vezes
questionáveis, recai às classes mais baixas uma maior vulnerabilidade, incluindo a
destinação – forçada – ao espaço público, agora periculoso.
Em meio às orientações de prevenção à Covid-19 da Organização Mundial de
Saúde (OMS) para que as pessoas deixem esse espaço público e fiquem em suas casas,
a crise financeira agravou a situação trabalhista e o aumento da inadimplência de
moradias. Contudo, no Brasil os despejos e remoções forçadas (MARINO, 2020)
continuaram. Atuando através do que Rancière (2014) chama de escândalo da
democracia, o poder econômico, fundido perfeitamente ao político, implanta uma
governança que atua na cidade de acordo com as necessidades das elites econômicas e
políticas. O resultado já é conhecido, pessoas que não têm para onde ir e recorrem à
ocupação dos espaços públicos – como praças – de maneira ainda mais intensa, sendo
essa uma realidade ocorrida na Praça da Paz.
Passados mais de seis meses desde o primeiro diagnóstico de Covid-19 no país,
dentre períodos de quarentena, lockdowns em algumas cidades, flexibilização das
medidas de isolamento e reabertura do comércio e serviços, os espaços públicos
voltaram a ser frequentados.
No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro, que foi caracterizado como o líder do
movimento negacionista da crise do coronavírus (FRIEDMAN, 2020), reduziu a
gravidade do Covid-19 desde o seu surgimento, demitiu ministros que seguiram as
medidas sanitárias e caracterizou como “gripezinha” a doença que – durante a
elaboração deste trabalho – já levou mais de 120 mil vidas apenas no Brasil. Nesse
cenário, a defesa do isolamento social e do seguimento das medidas de segurança
sanitária ficou a cargo das esferas estaduais e municipais.
Com um governo federal regido por ações consideradas necropolítica1, a
situação calamitosa permanece desequilibrada, o que mesmo para quem possui
condições – econômicas, trabalhistas, habitacionais – de realizar o isolamento social,
após mais de seis meses nesse modelo de vida virtual, respostas psicológicas (TAYLOR
et al., 2020) dificultam o mantimento deste, e é principalmente (mas não só) sob esse
pretexto que os espaços públicos voltam a ser utilizados mesmo sob um cenário tão
delicado.
Uma crise que abrange tantas esferas e recortes sociais encerra tendo como
denominador comum emoções, como as de ansiedade, medo e tristeza, que “[...]
moldam o humor cotidiano, afetam as relações pessoais, e ampliam as crises individuais
no enfrentamento do novo momento situacional vivenciado” (KOURY, 2020). O espaço
público, palco da diversidade de pessoas em níveis de classe, gênero, raça, idade,
origem etc., é potencializado como abundante objeto de análise na medida em que

1
Achille Mbembe (2017) se baseia na noção de biopoder de Foucault para discutir a política de morte
adotada pelo Estado, na qual a construção e a propagação da ideia de um inimigo a ser eliminado
conferem-lhe a soberania, exercendo-a, à medida que dita quem deve morrer ou deixar viver.

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novas tensões como a possibilidade de contágio, o estigma de responsabilidade


responsabili coletiva
(ou da falta dela) e até a dificuldade de identificação – física ou emocional – do outro,
proporcionada pelo uso de máscara, compõem novas particularidades que redesenham
as tramas sociais e as paisagens urbanas (Figura 1).

Figura 1 -Praça da Paz sendo vivenciada durante a pandemia. Fonte:: Autores (2020)

Praça da Paz: mundos, intersecções, sociabilidades


Com a finalidade de compreender as relações existentes entre o objeto e os
pensamentos difundidos pelos sociólogos que realizaram investigações
investigações sobre o meio
urbano, faz-se,
se, aqui, necessária exploração sobre o contexto espacial e histórico no qual
a Praça da Paz se insere. O Bairro dos Bancários nasce, em 1980, sob o desígnio de
destinação a uma população com renda superior a um salário mínimo, mínimo sendo
compatível, na teoria, com a estrutura oferecida. Sobre isso, Cruz (2011, p.42) relata:

O bairro dos Bancários ainda permanece com o status de bairro típico


para absorver uma população que tenha um padrão alto de consumo e
que foi se valorizando nas nas últimas décadas, em seus aspectos
imobiliários e de equipamentos urbanos, a partir de ruas arborizadas,
com residências bem arquitetadas, lojas, vias de acesso para ônibus de
transporte coletivo e saneamento. (CRUZ, 2011, p. 42)
Tem-se,
se, então, um fator condicionante para qual seria o público “ideal”
frequentador deste espaço. A classe social é, segundo Park (1973), um mundo social por
si só, interferindo diretamente no todo – sendo diferenças entre esses mundos um
edificador das tensões dos conflitos de classe; um sistema que age como uma das
intersecções entre pessoas que fazem daquele espaço um lugar e, portanto, condiciona a
produção social realizada.
Magnani (2002) discorre sobre diferentes escalas da pesquisa etnográfica,
fornecendo mecanismos de aprimoramento
aprimoramento das metodologias utilizadas nesse tipo de
estudo. A primeira conceituação que expõe é a de pedaço, que consiste em uma
referência espacial onde há a presença regular de grupos cujo reconhecimento e
comunicação entre eles acontecem através de códigos.digos. Já a mancha, implica maior
constância quanto à referência espacial, sendo a relação entre equipamentos, edificações
e vias de acesso que marcam determinada prática. Nesse alinhamento, a Praça da Paz
constituiria uma mancha da cidade de João Pessoa, posto que a produção social ali

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existente seja em muito determinada pelos equipamentos e configuração espacial – isto


é, por aspectos fixos.
Na utilização da praça, percebe-se a presença regular de alguns atores, definidos
a grosso modo em razão da produção espacial que realiza: homens idosos, jovens,
famílias, praticantes de atividades físicas, traficantes e vendedores ambulantes. Esses
atores e suas ocasiões sociais2 relevantes à narrativa do fenômeno da praça foram os
atributos para a definição de cada mundo social. Observou-se, ainda, que o horário do
dia é agente determinante para tal regularidade. São grupos enfáticos em suas
diferenciações, pois cada ator social implica determinada ocupação espacial na praça
durante diferentes turnos, definindo, assim, pedaços.
Como aponta Wirth (1973), o indivíduo pode pertencer aos mais variados
mundos sociais, já que estes são referentes a esferas independentes da sua
personalidade. Assim, é possível que, apesar de terem sido colocados como grupos
presumivelmente desassociados, haja, ainda, indivíduos que pertençam a mais de um
grupo, em diferentes horários do dia ou em diferentes fases da vida.
Esse apontamento relaciona-se com a construção das dimensões elaboradas por
Schütz (1945, 2019), em que existe um número infinito de realidades com
características próprias que partem de lugares e vivências diferentes. Essas múltiplas
realidades também são assertivas através da temporalidade, em estado de mutação
constante. Ao contrapor dois espaços temporais de um espaço público, se vê
significados diferentes e abrangências na socialização que também devem se
diferenciar, especialmente quando se refere a mudanças temporais associadas a um
cenário de pandemia.
Ao refletir sobre a criação cultural, Agier (2011) entende que esta se dá através
das memórias, trocas diretas entre pessoas de origens diferentes, sendo construída a
partir de “(...) olhares cruzados que põem em jogo diferenças de gostos, de estilos de
vida e de comportamentos. O conjunto desses critérios resulta de uma configuração
global de valores morais à escala da cidade”. Esse pensamento contempla diretamente a
localização geográfica da Praça da Paz, vide a existência do campus sede da
Universidade Federal da Paraíba nas suas proximidades configurando um relevante pólo
de atração ao bairro, para onde pessoas de diferentes localidades, tanto da Paraíba como
de fora dela, se estabelecem em João Pessoa para estudar. A amplitude de equipamentos
oferecida e a consequente variedade de atividades possíveis também constituem
elementos decisivos na diversidade dos grupos sociais que ocupam a praça. Aqui já se
tem construído um cenário público diferente de quando o bairro fora planejado.
Um ponto relevante a se mencionar durante o processo de abordagem das
correlações existentes em campo são os conceitos acerca do processo de individualidade
na sociedade. Simmel (1907) comenta que a liberdade individual é provinda do
processo de interação entre indivíduos sociais, fomentando uma espécie de cultura
subjetiva. No entanto, é a não harmonicidade, o aspecto conflitual gerado a partir da
instabilidade dessas relações, que compõe o inverso: a cultura objetiva.
Na realidade da Praça da Paz, o processo de individualização é recorrente pelo
grande leque de possibilidades (podendo também chamar de usos) ao qual a praça
permite. Cada individualidade, contudo, permanece fomentada em seus semelhantes, o
que evidencia uma cultura subjetiva mais localizada, feita a partir de poucas diferenças
sociais uma vez que são poucas as interações entre grupos sociais realmente distintos. A
vivência da Praça da Paz apresenta, portanto, uma forte cultura objetiva salientada pelas

2
Conceito elaborado por Goffman (1966; 2010) para designar um evento social limitado no espaço e
tempo a partir de um contexto estruturante.

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diferenças desses mundos sociais que a compõem, onde as distâncias ideológicas são
representadas fisicamente, aglomerando semelhantes e distanciando os diferentes.
Cruz (2011), em um capítulo formulando sobre a Praça da Paz enquanto espaço
público produto e produtor de sociabilidades, afirma existir uma percepção geral dos
frequentadores que assegura tal potencial, refletido na fala de um dos entrevistados: “É
bom olhar, cumprimentar as pessoas, mesmo sem conhecer... observar o que fazem,
perguntar algo sobre as atividades que estão praticando” (CRUZ, 2011, p.73). Em
contrapartida, a autora registra também a visão daqueles que se dão por satisfeitos ao
interagir diretamente apenas com os seus semelhantes, integrantes de mesmo grupo
social:
Muitas pessoas frequentam essa praça, mas não conheço as pessoas
que estão todos os dias aqui, fico apenas conversando com meus
amigos, que já conheço e marcamos de tomar uma cerveja e falar das
coisas do dia-a-dia (...) não me interessa o que fazem as pessoas que
vêm aqui, não fazem parte do meu meio social. (Entrevista
realizada na Praça da Paz/Bancários no dia 17 de dezembro de 2010.
CRUZ, 2011, p.75, grifo nosso)
A composição do bairro Bancários tem influência na realidade de ações sociais
na praça. Na região leste do bairro (a menos de 2 quilômetros de distância) reside a
comunidade do Timbó, de situação socioeconômica vulnerável, destoante da maioria
dos bancários. A praça, uma das maiores de João Pessoa, é então destino de moradores
da comunidade que, por sua vez,possuem razões diferentes para frequentá-la da camada
dita privilegiada. Os moradores do Timbó acabam por desempenhar a função de
prestadores de serviço através do comércio informal (QUEIROZ; FRANCH, 2008),
enquanto a classe média – não moradores do Timbó – é quem performa as ações de
saúde e lazer, inclusive a inserção nos serviços municipais dessas categorias (SOARES,
2009).
Essas vivências, em conflito, reiteram um tipo de interação na qual os indivíduos
coexistem estando cientes da presença um do outro, no entanto sem realizar
comunicação verbal entre si, constituindo o que Goffman (2010) denominou de
interações desfocadas. Aqui, o olhar é o sentido responsável pela captação de
informações sobre o outro, que perpassa vestimentas e trejeitos manifestados. Já as
interações focadas são mais diretas, com comunicação verbal e clara3.
A Praça da Paz, vista como espaço pungente na realização de sociabilidade é,
por outro lado, realizada de acordo à produção desigual do território e do espaço urbano
brasileiro (SANTOS, 1993; CARLOS, 1987); assim, a pandemia, que fortaleceu a
desigualdade de maneira quase imediata (ESTRELA et al., 2020), reiterou esse espaço
público como refletor dos fatos citadinos do Brasil.

Resultados e discussões
Os resultados e discussões acerca dos universos temporais observados na Praça
da Paz serão aqui apresentados seguindo o fluxo natural das abordagens, que compactua
com os interprocessos da praça e suas dinâmicas entrelaçadas. Na intenção de facilitar a
compreensão das comparações aqui propostas, optou-se por discorrer sobre o antes e o

3
Vale a lembrança da interação com a “não-pessoa”, também elaborada por Goffman (1966, 2010). O
termo “não-pessoa” compreende indivíduos de grupos sociais subjugados por classe social ou
incompetentes às normas sociais, tais como serventes, crianças, negros e pessoas com transtornos
mentais, e designam interações baseadas no desvio proposital do olhar do outro, sinal de que aquele não
representa curiosidade ou conforto.

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durante a pandemia de forma imediata, aproximando esses tempos para perceber melhor
suas transformações. Nessa lógica, estruturou-se
estruturou se o tópico em dois momentos: o
primeiro, onde se explana acerca da morfologia da praça e a dinâmica espacial ali
delineada
neada por indivíduos em espaços temporais tempos próximos – e nem por isso
pouco distante entre si –,, e no segundo, em que há um debruçamento maior sobre os
atores ocupantes e significadores daquele espaço.

A formação no espaço das sociabilidades

Como embasado por Agier (2011), é necessário conhecer as especificidades do


espaço em questão, etnografando com fidelidade aos contextos históricos, sociais e
culturais. Isto posto, a realização de entrevistas
entre no contexto pré-pandemia
pandemia possibilitou
que os próprios
róprios frequentadores da Praça da Paz, enquanto agentes ativos da construção
daquilo que faz dela um lugar, expressassem suas identidades, sensações e visões. Esse
primeiro panorama serviu como base para o contato com esses atores na presente
realidade, sob
ob a pandemia, em que suas idiossincrasias sociais perduram,
perduram porém, vistas
pelas lentes de outro universo temporal – e nesse caso, situacional.
Na composição da Praça da Paz existe uma grande diversificação de usos,
alguns expressos pela Figura 2 (da esquerda
esquerda pra direita: estudantes caminhando,
pipoqueiro, vendedora de brechó rodeada de clientes, mães acompanhando filhos que
brincam na cama-elástica,
elástica, senhores sentados observando a movimentação). Na parte
central encontra-se
se um anfiteatro, uma pista de skate,
skate, um parquinho para crianças, uma
4
academia ao ar livre e um monumento – que define a centralidade –;; a sul estão outra
academia, o ponto de ônibus e os bares; a norte dois grandes canteiros que atuam como
lugares para encontros; além disso, existem equipamentos:
equipamentos: a biblioteca e o estande dos
bombeiros.

Figura 2-- Diversidade de usos da Praça da Paz. Fonte: Autores (2019)

A partir dos conceitos de Magnani (2002), notou-se


notou se em 2019 como os pedaços
de cada mundo social presentes na praça se comportam em seus respectivos
respectivos espaços, e
como esses pedaços se chocam, criando uma paisagem de diversificação social e, muitas
vezes, moral. As entrevistas revelaram que numa maioria considerável, esses usuários
4
O monumento é dedicado ao falecido poeta paraibano Lúcio Lins, um ávido frequentador da Praça da
Paz antes mesmo de o espaço passar pelo processo de urbanização. Sua obra mais conhecida é o livro
Todas as águas (2006).

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são provindos do próprio bairro Bancários, reiterando a premissa


premissa original da praça como
espaço público doméstico (AGIER, 2011)5. Na observação de 2020 é perceptível a
continuação desse princípio. Em condição de pandemia, ela se tornou o ambiente onde
as ditas necessidades básicas são exercidas, sendo a resposta à buscaa pelo espaço livre
aberto mais próximo de casa, em que o autocuidado age como a legitimação para ocupá-
ocupá
lo6.
A noção de autocuidado, entretanto, tomou outros valores comportamentais ao
longo do desenvolvimento da crise sanitária. Sob a luz dos conceitos de Schütz (1945,
2019),
), é possível dizer que a realidade do que é legítimo para ocupar o espaço público
da praça foi mudando temporalmente à medida que as atitudes em relação à pandemia
também se alteraram. Se antes do Covid-19
Covid 19 atividades diferentes como levar
lev as crianças
para brincar ou estar nos bares com amigos eram casualidades de vivências pessoais,
agora assumem o papel urgente de pacificar aflições do isolamento.
Esses diferentes mundos sociais, agindo a partir de diferentes atividades,
atividades criam
manchas naa praça que acabam tendo subdivisões em pedaços, como é o caso do
anfiteatro. Nele, a forma em arco aberto da arquibancada proporciona grupos diversos
de pessoas se apropriando daquele espaço e usufruindo com permanência (Figura 3),
comportamento distintivoo de espaços públicos
públicos saudáveis. Contudo, é esse convite aberto
que leva ao anfiteatro um forte choque social por meio da alta aproximação de mundos
sociais diferentes.

Figura 3 - Vista do anfiteatro com usuários em permanência. Fonte: Autores (2019)

Durante
rante a primeira abordagem, foi observado por vezes mulheres de idade
média (entre 40-5050 anos) praticando exercícios nos mesmos bancos em que jovens
fumavam maconha, a poucos metros de distância. Nota-se
Nota se que as atividades que cada
grupo social exerce dentroo do seu pedaço funcionam como um distanciador subjetivo
das realidades. Os processos de “individualização em grupo” a partir das atividades que
cada grupo aglutinado realiza estão conectados com o que Agier (2011) chama de
situações ordinárias, em que a relação
relação com o outro se decorre através do sentido

5
Michel Agier (2011) em seu livro Antropologia da cidade destaca que os lugares próximos às residências
dos moradores são aqueles com os quais o sentimento de identificação nasce mais rapidamente, onde a
sensação de pertencimento é aflorada e a relação com o ambiente é mais confortável e familiar. Isso pode
ser evidenciado pela maneira casual à qual as pessoas se apropriam da praça antes e durante a pandemia.
6
Isso foi observado principalmente nos primeiros meses da pandemia no Brasil, quando eram maiores os
índices de aderência ao isolamento social e os decretos municipais de quarentena de João Pessoa estavam
em execução. Atividades como caminhada e corrida eram as mais recorrentes entre os meses de abril e
maio de 2020.

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indivíduo/espaço, e a propagação da atividade se dá de forma localizada num ciclo de


espaço – ação.
Essas situações de compartilhamento de um mesmo espaço apresentaram
construções diferentes nas duas temporalidades
tempor observadas. Percebeu-se se que, a priori,
as negativas às aglomerações influenciaram mais fortemente os grupos que tiveram suas
atividades ditas como mais “dispensáveis”, como o encontro com amigos. Essas
atividades, feitas em grande maioria pelo grupo dos jovens, eram muitas vezes
acompanhadas do uso de drogas lícitas e/ou ilícitas. A diminuição da presença dos
jovens na praça e, portanto, dos comportamentos vistos como subversivos pelos olhos
exercíc 7, refletiram na expansão dos
dos grupos sociais familiares e praticantes de exercício
pedaços ocupados por estes últimos – em detrimento dos pedaços dos jovens (Figuras 4
e 5).
A interseccionalidade entre grupos sociais conflitantes passa, então, a arrefecer.
Também a exemplo disso, o grupo de praticantes de exercício foi o principal ocupante
do anfiteatro durante os primeiros meses de isolamento, espaço em que costumava
haver uma copresença com os jovens.
No cenário pandêmico se pode perceber a já citada segurança estipulada pela
execução da atividade
tividade em outro formato. Se a responsabilidade social tornou-se
tornou parte
das premissas para a manutenção de fachadas (GOFFMAN, 2012) nos tempos de
Covid-19
19 (PEREIRA, 2020), o atendimento às recomendações sanitárias e a natureza da
atividade que se pratica – já que esta implica a própria justificativa pela qual se ocupa
ou se utiliza aquele espaço – passam a definir o “aval” da moral concedido pelo outro
ou não.

Figura 4 - Pedaços ocupados no pré-pandemia.


pré pandemia. Fonte: Base do Google Maps, alterado pelos autores (2020)

7
Durante as entrevistas da etnografia realizada em 2019, muitos dos integrantes desses grupos sociais
designaram os jovens usuários de drogas com termos como “defeito” ou “maior problema”
problema” da praça.

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Figura 5 - Pedaços ocupados durante a pandemia. Fonte: Base do Google Maps,, alterado pelos autores (2020)

Realizar o caminho espaço-indivíduo


espaço indivíduo nos apresentou as possibilidades
concretamente ofertadas ao uso e as criadas pelos próprios atores sociais.
sociai Debruçar-se
sobre os fenômenos interrelacionais que surgem a partir da alteridade e dão
materialidade à ocupação espacial é, então, exercício imprescindível, e é através do
movimento indivíduo-espaço
espaço que se pretende fazê-lo.
fazê

As interações sociais e suas manifestações

Para além das modificações nas dinâmicas espaciais, é preciso compreender que
a característica antissociabilidade
sociabilidade que as interações após o início da crise do Covid-19
Covid
passaram a ter, inferiu em ações sociais específicas entre os atores de cada um desses
grupos. Redesenhando algumas tensões e criando outras.
A copresença no espaço público associada à diversidade social é parte central do
“estar em sociedade” (LEGEBY, 2013), e atuam juntas como oportunidade para a
tolerância ser construída. A Praça da Paz, abrigando mundos sociais diversos mesmo
em horários variados do dia, desempenha, teoricamente, um papel positivo nesse
sentido. Apesar disso, e mesmo entendendo que esses fatores não indicam a aceitação
absoluta de todos os indivíduos, antes da pandemia se percebia um posicionamento
menos crítico para com o outro e daquele que vem do outro para si.
Fala-se isso, quando, ao agregar teor proibitivo à ocupação do espaço público,
passa a ser percebido,
ido, por parte dos ocupantes, o uso de um álibi para justificar a
presença nesse espaço. Nessa busca por aprovação, o indivíduo que realiza um uso
determinado por necessidades de saúde física e/ou psicológica (ex.: exercícios físicos
para adultos, brincadeiras
iras para crianças) se vê como corpo permitido,
permitido, em relação aos
que se encontram frequentando o bar,
bar ou aos que não estão utilizando máscara.
Isso foi percebido num processo que, pelos comportamentos dos atores, sinaliza
uma “criminalização da sociabilidade”.
sociabilidade”. Durante as observações da segunda

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aproximação, muitos dos grupos dos homens idosos nos bares da praça8, por vezes,
conversavam sem máscaras ou com elas mal ajustadas ao rosto, entretanto, ao
aproximar-se alguém que não fizesse parte do mundo social desses para comprar algo
no quiosque, prontamente, em posição de embaraço, os homens colocavam ou
ajustavam as máscaras, algumas vezes até encerrando o assunto.
Gomes; Nascimento; Araújo (2007) constataram que o imaginário social
construído em torno da figura masculina como indivíduos viris, fortes e menos passíveis
de vulnerabilidades são fatores que corroboram a menor procura dos homens aos
serviços de saúde em relação às mulheres. Seguindo essa lógica, nos diários de campo,
notamos que, de forma geral, os homens compunham o grupo que menos se utilizava de
máscara, mesmo os homens idosos9, confirmando a crença cultural do cuidado como
ação designada ao feminino.
Essa noção de cuidado, no entanto, acaba por ser uma das principais ferramentas
na criação de múltiplas realidades (SCHÜTZ, 1945, 2019) desse contexto pandêmico no
espaço público. Por induzir uma nova normativa social, a existência – ou não – dessa
cautela com a responsabilidade social e sanitária parecem fundamentadas pela ação do
outro.
Durante as abordagens, um caso observado foi a permissão, por parte dos pais e
mães, que mesmo usando máscaras, os filhos pudessem brincar nos escorregadores com
outras crianças (algumas sem máscaras), o que em teoria pouco evitaria o contato dessas
com o vírus do Covid-19. Por sua vez, falas como “arrume a máscara”, foram
observadas. O cuidado de cada mãe/pai com os filhos era baseado até onde iao cuidado
dos outros pais com seus respectivos, deixando as condutas de preocupação com o
contágio a cargo de uma normativa geral.
Com esse sistema de atitudes entrelaçado mais fortemente por esse ir e vir de
ações, as interações desfocadas, típicas de espaços públicos abertos como praças,
tornaram-se mais complexificadas. A necessidade de observação do outro, sua
legitimação com as precauções, e seu compromisso com o distanciamento social
desconstroem certas distâncias que são naturais e até vistas como positivas por certos
autores, como fala Granovetter (1975), que reitera a importância de laços fracos nas
socializações do espaço urbano.
No subitem anterior, foi explanado como a disposição de cada pedaço dos
mundos sociais na praça pré-pandemia correspondia somente a diferenças de culturas
comportamentais, tendo as diferenças, durante a pandemia, reiterado essa distância
através das condutas quanto à reação ao coronavírus. Isso pode ser mais bem
compreendido quando se aproxima das vivências dos bares dos jovens.
Na etnografia de 2019, foi afirmado que os jovens e universitários que utilizam
os bares se subdividem em grupos próprios, sendo os grupos da causa LGBTQIA+ a
grande parcela do padrão social presente nesses espaços. Dessa forma, se desenvolve
um ambiente alternativo – os próprios bares deixam a bandeira LGBT10 à mostra em
seus balcões –, onde há maior autoafirmação de existências de gêneros e sexualidades
diversas. Nesses locais, se encontram os militantes de causas sociais e subculturas como
os clubbers, todos por sua vez, ligados ou confortáveis com o movimento LGBTQIA+.

8
Os bares de público de idosos continuaram disfarçadamente abertos mesmo com o decreto municipal
aplicado. Os usos eram feitos de maneira mais furtiva, sem mesas, apenas com uma das janelas do
quiosque aberta, a aglomeração dos senhores acontecia somente com as cadeiras.
9
Pessoas acima de 60 anos são um dos principais grupos de risco para a doença causada pelo coronavírus.
10
Usa-se aqui a sigla LGBT, pois as bandeiras presentes nos bares, com as sete (às vezes, seis) cores do
arco-íris, de acordo com o movimento LGBTQIA+ não conferem representatividade ao movimento por
inteiro.

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Nesse mesmo período de observação notou-se que esses indivíduos


apresentavam, ainda, um deslocamento muito corriqueiro até outras partes da praça
como o anfiteatro e a pista de skate. Na análise mais recente, quando o decreto
municipal permitiu a abertura dos bares, essa característica de deslocamento passou a
existir menos, o espraiamento desse grupo se limitou aos equipamentos dos quiosques.
O que pode ser explicado pela permissão dada, mais uma vez, pela normativa dos
próprios usuários de aquele espaço ser livre para o não uso das máscaras, ao contrário
da região central da praça, onde estão as famílias e os praticantes de exercício, em sua
maioria utilizando máscaras.
A construção desse pedaço como ambiência livre para deslegitimação dos
cuidados averiguados pela OMS se dá pela observação e contato com outros nessa
também deslegitimação, não só tornando confortável estar num espaço público sem as
precauções necessárias, como a relação com o uso da máscara, por exemplo, que é
invertida, passando a ser o não uso a nova conduta de comportamento. Essa lacuna
comportamental trazida pelas diferentes respostas à crise do coronavírus distancia num
mesmo espaço público mundos sociais já apartados pelas acepções morais.
Apesar dessas diferenças, esses três grupos (jovens, praticantes de exercício e
famílias) têm uma atuação livre na dinâmica da praça, ocupando abertamente seus
espaços. Por outro lado, existem grupos que apresentam realidades mais discretas
quando se fala sobre suas ocupações nos espaços da Praça da Paz. São os traficantes e
pessoas em situação de rua. Esses dois grupos têm pedaços muito específicos de
permanência próximos à biblioteca (que se encontra desativada), com baixa iluminação
à noite e possibilidade de abrigo, uma vez que os dois grupos apresentam um
comportamento fixo, salvo suas devidas especificidades.
Pela perspectiva de Goffman (2010) e adicionado o processo de opressão racial
através da associação da existência negra ao crime, como bem reflete Borges (2018),
esses dois grupos, majoritariamente formados por pessoas negras, são socializados na
praça a partir da interação com a não-pessoa. Isso reflete em interações menos diretas,
com a preferência, por parte dos outros grupos, em ignorar esses corpos. Isso se
mantendo intacto antes e durante a pandemia; a diferença é que, como sujeitos já
colocados de fora das normativas sociais, o uso de máscaras e o isolamento social (entre
eles)não foram observados.
Entretanto, existe uma dualidade dos mundos sociais em relação à aceitação dos
traficantes e que é pertinente na história da praça. Esses têm relação próxima com
alguns dos grupos dos jovens, os servindo drogas, contudo, não se pode dizer o mesmo
sobre os desabrigados, que possuem uma perspectiva de exclusão bem mais evidente
por todos os outros grupos. Aqui, de fato, não há interrelação com nenhum grupo, em
nenhuma das duas temporalidades analisadas, a não ser entre seus semelhantes. Foram,
em 2019, citados em entrevistas como um dos pontos negativos da praça:
O labirinto (um dos brinquedos que fica próximo ao fundo da
biblioteca, onde os desabrigados residem) é o que tem de pior aqui. Os
mendigos aproveitam pra usar de banheiro como se fosse a casa deles.
A prefeitura já devia ter mandado derrubar. (Entrevista realizada na
Praça da Paz em agosto de 2019)
Pessoas em situação de rua são, muitas vezes, de forma velada ou escancarada,
vistas como problemas que devem ser erradicados dos espaços públicos, por mais que
não haja um encaminhamento claro de para onde essas pessoas deveriam – e poderiam –
efetivamente ir (QUINN, 2014). Em maio de 2020, o Ministério Público abriu ação
investigatória sobre possível negligência assistencial da Prefeitura de João Pessoa com
pessoas em situação de vulnerabilidade social, tornada ainda mais precária no contexto

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de pandemia do coronavírus (PORTAL CORREIO, 2020).. Nesse mesmo mês, uma


mulher em situação de rua havia sido encontrada morta em um colchão na Praça da Paz
(G1 PB, 2020). Esse teor emergencial, denotado pela crise de moradia, permeia com
naturalidade as dinâmicas do cotidiano da praça.
Como características
características desse cotidiano negligenciatório da praça existem os
eventos e situações específicas que interferem e alteram pontualmente as paisagens do
espaço. Podem ocorrer frequentemente, como é o caso do “Projeto Vida Saudável”
oferecido pela prefeitura, que traz diariamente professores de educação física para
apoiar os praticantes de exercício e promove atividades em grupo. Também podem ser
pontuais, como os eventos de militância (Figura 6), as batalhas de rap, o slam e as
competições de skate. Nesse segundo caso,
caso, a praça apresenta um único tipo de tribo em
detrimento de outros, diminuindo o número de grupos sociais que não fazem parte do
nicho que contempla o evento. Essa realidade destoa do cotidiano da praça, pois são os
raros momentos em que se vê uma unidade social compondo-a, a, que normalmente tem a
diversificação como marco.

Figura 6 - Pessoas reunidas no anfiteatro em protesto contra a candidatura de Bolsonaro.


B Fonte Autores (2018)
Fonte:

Na realidade atual, até a feitura deste trabalho, eventos essencialmente políticos,


po
artísticos, culturais, que costumavam prescindir de grandes aglomerações e congregar
todos os presentes num só grupo, não existem mais. De qualquer forma, a pandemia
propõe uma nova eventualidade. Eventualidade esta que atravessa medos, crenças,
interações,
nterações, relações, e nesse processo inevitavelmente realiza uma ressignificação do
espaço público, capturando suas possibilidades mais primárias: as de nos fazer
humanos.

Considerações finais
A crise causada pelo novo coronavírus abordou questões de adesão
ade ao espaço
público pouco experienciadas pela sociedade contemporânea,
contemporânea principalmente se
referindo ao indivíduo livre (SIMMEL, 1979) das cidades. O cenário atípico foi
esperado durante as aproximações da Praça da Paz e percebido através da idealidade
que havia sido identificada na etnografia da mesma em 2019, mantendo-se
mantendo a equipe de
pesquisa. A transformação foi analisada de maneira espacializada e através das ações
sociais diretas entre os indivíduos que ocupavam – ou deixaram de ocupar – os limites
da praça.

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Os grupos sociais lidos como “dentro da moral” tiveram uma presença maior no
processo pandêmico em área e temporalidade, ocupando o espaço mesmo em meses em
que o isolamento social ocorria em maiores índices. Essa presença, então justificada
como necessária e ligada a atividades de saúde, reflete os espaços públicos como palco
de condutas polidas, no qual na realidade da Praça da Paz provinham de uma classe
média branca e/ou heteronormativa, mesmo sob assertivas das organizações de saúde
para que se evitasse saídas de casa e aglomerações. A leitura vertical das culturas (e
existências) é, assim, fortalecida, através da conglomeração de grupos que não se
adequam em classe ou apresentam comportamentos disruptivos.
A mudança nas interações, baseada na aprovação e desaprovação de
determinada conduta do outro (em torno da legitimidade dos cuidados com o Covid-19),
tornaram-se mais complexas, e passaram a ser regidas por uma observação mais
sensível sobre como esse outro age e vice-versa. Os comportamentos em grupo afetaram
de maneira generalizada os diversos mundos sociais da praça, reverberando-se. Os
cuidados/negligências com a pandemia se delimitavam pela observação de seus
semelhantes; abrindo espaço para discussão da sociedade como construtora e destrutora
da moralidade sobre si.
Sendo um estudo que aferiu o tom com o qual o espaço público é afetado pelo
cenário de pandemia – ao mesmo tempo em que esse também o afeta –, a pesquisa
ultrapassou momentos de análise ao passo que a mutação na maneira de sentir o público
e o privado foi experienciada, inevitavelmente, também pelos pesquisadores. Essa
discussão, quase em caráter experimental pela inexistência de contexto parecido para
apoiar um senso comum delimitador (GARCEZ, 2014), pretende ser, para além de um
estudo científico, um relato histórico de um processo tão surpreendente para a natureza
aproximativa dos espaços públicos.

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Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
LUTZ, Catherine; WHITE, Geoffrey M.
Tradução de Mauro Guilherme Pinheiro
Koury. A Antropologia das Emoções.
Sociabilidades Urbanas, Revista de
Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, pp. 81-
115, março de 2021, ISSN 2526-4702.
ARTIGO
https://grem-grei.org/numero-atual-socurbs/

A Antropologia das Emoções


The Anthropology of Emotions∴

Catherine Lutz∗
Geoffrey M. White∗∗
Tradução de Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Resumo: Este estado da arte examina aproximadamente a última década (os finais dos anos
setenta e ao longo dos anos oitenta) da pesquisa antropológica sobre emoções. Apesar de
alguns trabalhos interculturais de psicólogos foram incluídos, assim como algumas
pesquisas sociológicas e antropológicas não americanas, a ênfase desta revisão é a
antropologia americana. O interesse pelas "emoções" floresceu na última década, não
apenas na antropologia, mas nas ciências sociais e humanas, bem como em campos
interdisciplinares de estudos, como os estudos feministas. Uma preocupação em entender o
papel das emoções nas relações pessoais e sociais se desenvolveu em resposta a uma série
de fatores, incluindo a insatisfação com a visão cognitiva dominante dos seres humanos
como "processadores de informações" mecânicos. Preocupação renovada com a
compreensão da experiência sociocultural da perspectiva das pessoas que a vivem e o
surgimento de abordagens interpretativas nas ciências sociais mais aptas a examinar o que
antes era considerado um fenômeno incipiente. Como conclusão, as descrições etnográficas
existentes das emoções são organizadas através de um quadro comparativo sugerido para
olhar as emoções como um idioma cultural para lidar com os problemas persistentes de
relacionamento social. Palavras-chave: estado da arte, antropologia americana, emoções,
antropologia das emoções
Abstract: This state of the art examines approximately the last decade (the late seventies
and throughout the eighties) of anthropological research on emotions. Although some
intercultural works by psychologists have been included, as well as some non-American
sociological and anthropological research, the emphasis of this review is American
anthropology. Interest in "emotions" has flourished in the past decade, not only in
anthropology, but in the social and human sciences, as well as in interdisciplinary fields of
study, such as feminist studies. A concern to understand the role of emotions in personal
and social relationships has developed in response to a number of factors, including
dissatisfaction with the dominant cognitive view of human beings as mechanical


Este artigo foi originalmente publicado com o título ‘The Anthropology of Emotions’, no Annual
Review of Anthropology, v. 15, pp. 405-436, 1986. Dada a importância desde estado da arte para o campo
da Antropologia e Sociologia das Emoções, foi solicitado uma permissão para publicar uma tradução para
o português do artigo na Sociabilidades Urbanas, Revista de Antropologia e Sociologia, - revista on-line
e de acesso gratuito. O tradutor, a Sociabilidades Urbanas, e os grupos de pesquisa Grem-Grei agradecem
aos autores e a Annual Review of Anthropology a permissão dada, no final do ano de 2018, para
publicação desta tradução na Seção Documento da SocUrbs.

Departamento de Antropologia, Universidade Estadual de Nova York, Binghamton, Nova York 13901.
∗∗
Instituto de Cultura e Comunicação, East-West Center, Honolulu, Havaí 96848.
82

"information processors". Renewed concern with the understanding of the socio-cultural


experience from the perspective of the people who live it and the emergence of
interpretative approaches in the social sciences better able to examine what was previously
considered an incipient phenomenon. In conclusion, the existing ethnographic descriptions
of emotions are organized through a suggested comparative framework to look at emotions
as a cultural language for dealing with persistent social relationship problems. Keyword:
state of the art, American anthropology, emotions, anthropology of emotions

Introdução
O interesse pelo "emocional" floresceu na última década, não apenas na
antropologia, mas na psicologia (AVERILL, 1992; IZARD, 1977; MANDLER, 1984;
PLUTCHIK; KELLERMAN, 1980), sociologia (HOCHSCHILD, 1983; KEMPER,
1978), filosofia (RORTY, 1980; SOLOMON, 1976), história (STONE, 1977) e estudos
feministas (SMITH-ROSEMBERG, 1975). Uma preocupação em entender o papel do
emocional nas relações pessoais e sociais a vida se desenvolveu em resposta a uma série
de fatores, incluindo a insatisfação com a visão cognitiva dominante dos seres humanos
como "processadores de informações" mecânicos, preocupação renovada com a
compreensão da experiência sociocultural da perspectiva das pessoas que a vivem e o
surgimento de abordagens interpretativas ciência social mais apta a examinar o que
antes era considerado um fenômeno incipiente. O relegar passado de emoções à margem
da teoria da cultura é um artefato do ponto de vista de que eles ocupam mais províncias
naturais e biológicas da experiência humana e, portanto, são vistas como relativamente
uniformes, desinteressantes e inacessíveis aos métodos de análise cultural. Ao ir além
de sua estrutura psicobiológica original para incluir a preocupação com os aspectos
sociais relacionais, comunicativos e culturais da emoção, a teoria da emoção assumiu
nova importância para a própria teoria sociocultural. Essas abordagens culturais
tornaram possível para uma ampla gama de antropólogos, incluindo aqueles
tradicionalmente hostis ao "psicológico", sustentar um interesse pela emoção assim
interpretada.
Este estado da arte examina aproximadamente a última década da pesquisa
antropológica sobre emoções. Enquanto alguns trabalhos interculturais de psicólogos
são incluídos, assim como algumas pesquisas antropológicas não americanas, a ênfase é
na antropologia americana. Embora a pesquisa esteja sendo conduzida em todas as áreas
geográficas, uma quantidade desproporcional foi feita no Pacífico, refletindo tanto um
foco indígena em expressões emocionais quanto às ênfases psicoculturais tradicionais
da etnografia oceânica. Começamos por examinar algumas das tensões teóricas e
epistemológicas que, muitas vezes implicitamente, servem para estruturar tanto os
debates quanto os silêncios sobre a relação entre emoção e cultura. Uma dessas tensões
é entre abordagens universalistas, positivistas e relativistas, interpretativas; e serve para
organizar a revisão que se segue. Os que se preocupam com as regularidades
transculturais da emoção trazem consigo o interesse pelo naturalismo etológico e
evolucionista, o psicodinâmico, o senso comum e os universais da linguagem. Os que se
preocupam principalmente com a construção social e cultural da emoção baseiam-se em
várias tradições diferentes, incluindo a etnopsicológica, a estrutural social, a linguística
e a desenvolvimentista. Como qualquer organização esquemática de um conjunto
diversificado de idéias, essa não pode fazer justiça à complexidade total de cada
abordagem individual, mas, acreditamos, captura um conjunto central de dimensões que
orientam os pesquisadores para o problema da emoção. Em conclusão, as descrições

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etnográficas existentes das emoções são organizadas através de um quadro comparativo


sugerido para olhar as emoções como um idioma cultural para lidar com os problemas
persistentes de relacionamento social.

Tensões no estudo da emoção


Uma série de tensões teóricas ou epistemológicas clássicas é encontrada na
literatura emocional. Estes incluem divergências sobre as questões do materialismo e
idealismo, positivismo e interpretativismo, universalismo e relativismo, individual e
cultura, e romantismo e racionalismo. Enquanto muitos destes podem ser rejeitados
como dicotomias falsas ou improdutivas, eles continuam a estruturar muito discurso
antropológico sobre a emoção. As posições assumidas por cada observador sobre esses
assuntos são cruciais para o modo como a emoção é conceituada e avaliada e para os
métodos utilizados em sua investigação. Embora algumas dessas questões tenham sido
debatidas explicitamente como relacionadas à emoção, a maioria permaneceu como
posições implícitas, impedindo a comunicação entre pesquisadores de emoções.
Materialismo e idealismo, natureza e cultura, mente e corpo, e até mesmo
estrutura e agência, podem ser vistos tanto como dicotomias quanto como as
extremidades de um continuum de posições (HANN; KLEIMAN, 1983) relacionadas
entre si e centrais para a teoria da emoção. O paradigma dominante no estudo da
emoção nas ciências sociais foi materialista. Emoções são tratadas como coisas
materiais; eles são constituídos biologicamente como movimentos musculares faciais,
aumento da pressão sanguínea, processos hormonais e neuroquímicos e como instintos
"hard-wired" que constituem uma psique humana genérica. Essa perspectiva é
encontrada tanto na literatura evolutiva quanto na literatura antropológica de emoção
sobre orientação psicodinâmica (EKMAN, 1980, LINDHOLM, 1982). Embora a cultura
seja frequentemente conceituada como influenciadora dessas forças materiais,
indivíduos e sociedades são vistos principalmente como "lidando com" a materialidade
da emoção. A visão de que as emoções podem ser entendidas como ideias tanto quanto
ou mais do que
Fatos psicobiológicos são evidentes em algumas pesquisas recentes sobre
conhecimento cultural sobre pessoa e emoção. Emoções são tratadas como "juízos"
avaliativos (LUTZ, 1982; MYERS, 1986; ROSALDO, 1983, 1984; depois de
SOLOMON, 1976), e mais ênfase é colocada em seus aspectos volitivos e cognitivos. A
relação entre o corpo e as emoções é frequentemente ignorada ou tratada como uma
conexão metafórica com ramificações culturais (STRATHERN, 1975). Para muitos que
se concentram na emoção como julgamento, no entanto, o aspecto ideal da emoção é
incorporado firmemente no real pela virtude do fato de que os julgamentos emocionais
são vistos como requerendo validação social ou negociação para sua realização, ligando
assim a emoção ao poder e à estrutura social. As emoções são vistas como ideológicas
em pelo menos um dos sentidos marxistas do termo, isto é, como aspectos da
consciência ligados à classe e à dominação de maneira mais geral.
A dicotomia mente-corpo é particularmente evidente no que pode ser
denominado de abordagem de "duas camadas". Nisto, é feita uma distinção entre
emoção natural, corporal, pré-cultural e sentimento ideal, cognitivo, cultural ou emoção
de segunda ordem (KLEINMAN; GOOD, 1985; LEVY; ROSALDO, 1983;
NEEDHAM, 1981). A estratigrafia do corpo e da mente no estudo da emoção sobrepõe-
se significativamente às camadas do indivíduo e da sociedade (ver abaixo).
Um segundo contraste no estudo da emoção é encontrado entre as abordagens do
positivismo e do interpretativismo. Embora o positivismo esteja supostamente em
declínio na antropologia, ele permanece forte na psicologia, a disciplina mais

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identificada com o estudo da emoção. A perspectiva da psicologia acadêmica (que tanto


incorporou como reformulou as visões ocidentais populares da emoção) foi
substancialmente importada para o estudo cultural da emoção. O positivista enfatiza a
descoberta das causas emocionais (ou motivacionais) do comportamento. A
epistemologia experiencial do positivismo significou que o processo de descoberta é
visto como relativamente não problemático, seja através da empatia com os
informantes, seja através da observação do comportamento em geral. A verdade
supracultural sobre a relação entre emoção e cultura pode ser conhecida e é acessível
através de observação cuidadosa e registro de comportamento.
A tendência recente para o interpretativismo também teve um impacto na
antropologia da emoção. A emoção é tratada como um aspecto central da cultura, ou
seja, com um interesse correspondente na variação histórica e transcultural do
significado emocional. Porque as emoções são vistas como embutidas em categorias
socialmente construídas, a verdade sobre a emoção se torna problemática. A
epistemologia social do interpretadorismo, na qual o conhecimento é construído por
pessoas em relação umas com as outras, implicou uma nova ênfase na linguagem da
emoção e na negociação do significado emocional. Esta negociação ocorre não apenas
entre as pessoas sendo observadas, mas também entre antropólogo e informante
(BRIGGS, 1970; CRAPANZANO, 1980b; OBEYESEKERE, 1982). Ambas as versões
forte e fraca do construcionismo são representadas, incluindo a visão de que a
experiência emocional é quase infinitamente mediada pela linguagem e cultura
(QUINN; HOLLAND, 1987) e a visão alternativa de que a psicologia é um domínio
interno privilegiado que pode, em teoria, permanecer intocado pela cultura (FAJANS,
1983).
A tensão entre o universalismo e o relativismo é evidente na frequência e na
precisão com que surge a questão de saber se ou de que maneira as emoções podem ser
consideradas universais. Geralmente positivista em orientação epistemológica, o
universalista concentra-se na emoção como uma habilidade ou processo pan-humano
que é invariante em sua essência (tipicamente definida como um estado de sentimento
interno) e distribuição. Qualquer fenômeno reconhecido como culturalmente variável ( a
linguagem disponível para falar sobre emoção) é tratado como epifenômeno1 à essência
da emoção (ROSALDO, 1984; SCHULTE, 1984). Os que se preocupam com as
maneiras pelas quais as emoções variam transculturalmente tendem a definir a emoção
mais como um juízo socialmente validado do que como um estado interno e, portanto,
concentram sua pesquisa na tradução de conceitos emocionais e processos sociais que
envolvem seu uso (LUTZ, 1985b; QUINN; HOLLAND, 1987). Os relativistas variam
no grau de construcionismo ao qual se inscrevem, e muitos observam universais em
alguns aspectos da emoção, como, por exemplo, nos tipos de situações associadas a
eles.
O debate sobre a universalidade da emoção se assemelha, em muitos aspectos, a
discussões anteriores sobre variações transculturais na cognição. Ambos se resumem a
lutas sobre definições de conceitos e sobre quais diferenças importam, isto é, sobre
quais diferenças cognitivas ou emocionais são cruciais ou interessantes. A maioria
concorda, no entanto, sobre os truísmos que todos os seres humanos têm o potencial de
viver vidas emocionalmente semelhantes e que pelo menos as superfícies emocionais da
vida dos outros podem parecer diferentes para o observador externo.
O antagonismo de longa data entre as abordagens individual e social para a
compreensão da pessoa foi realizada e continuada em pesquisas recentes sobre emoção
e cultura. O indivíduo continua a ser o último lugar da emoção nas abordagens
evolucionária e psicodinâmica (LINDHOLM, 1982), confrontando um padrão social e

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cultural em que e contra o qual as emoções são colocadas. Esse mesmo cisma que
também é mantido pela antropologia social britânica e pela culturologia simbólica, torna
necessária uma distinção entre emoção, definida como sentimentos privados que
geralmente não são culturalmente motivados ou socialmente articulados, e sentimento,
definidos como símbolos socialmente articulados e expectativas comportamentais
(FAJANS, 1983). Nessa perspectiva, visões culturais sobre emoções apropriadas "não
controlam os sentimentos do indivíduo, que são soberanos" (HUNTINGTON;
METCALF, 1979, p. 197). Outros minimizam a importância ou a utilidade de uma
distinção entre uma análise psicológica e uma análise social da emoção (ABU-
LUGHOD, 1986; ROSALDO, 1983).
O romantismo e o racionalismo representam duas correntes de pensamento que
podem ser detectadas nos tratamentos antropológicos das emoções. Para o racionalista
que faz uso da equação geral ocidental de irracionalidade com emoção, as emoções são
se não sintomas do animal no humano (FREEMAN, 1983), pelo menos desordenadas e
problemáticas; são "vagas e irracionais" (HUNTINGTON; METCALF, 1979, p. 34),
"os resultados... da impotência da mente" (LÉVI-STRAUSS, 1963, p. 71). A antipatia
entre ciência e emoção que esta posição postula pode até levar à exclusão da emoção
como objeto de estudo adequado.
Na visão romântica, a emoção é implicitamente avaliada positivamente como
um aspecto da "humanidade natural"; é (ou pode ser) o lugar da percepção incorrupta,
pura ou honesta em contraste com a racionalidade artificial da civilização. A capacidade
de sentir define o humano e cria a significação na vida individual e social (KEMPER,
1978; ROSALDO, 1984; SOLOMOM, 1976). Uma posição híbrida é representada por
aqueles que elevariam as emoções a um importante lugar de ordenação na sociedade,
ligando-as à lógica cultural (QUINN; HOLLAND, 1987), ou definindo-as como fontes
ocasionais ou potenciais de conhecimento correto sobre o mundo social (LEVY;
ROSALDO, 1983).
Cada uma dessas posturas básicas tem implicações para o modo como a emoção
é investigada. Como resultado disso, se pode trabalhar a emoção como alguma coisa a
ser explicada por outras variáveis (como o corpo, a estrutura social ou a experiência da
infância), como algo que pode explicar as instituições culturais (como hospitalidade,
evitação alfandegária ou participação individual), ritual religioso, ou como parte
inseparável do significado cultural e dos sistemas sociais. Essas tensões determinam se
um investigador alega que estuda as emoções diretamente, como afetos ou idéias sobre
emoção, ou ambos. E eles influenciam os tipos de métodos usados, incluindo
observação de comportamento, empatia, introspecção ou análise cultural. As várias
posturas já descritas ajudam a determinar se o foco da investigação está no
desenvolvimento emocional (seja para observar a aprendizagem de normas culturais
sobre a emoção ou o desenvolvimento de um processo universal), na incidência de
patologia emocional (como depressão), os paralelos entre a estrutura da sociedade e a
estrutura da emoção, na linguagem da emoção (seja como rótulos potenciais para os
sentimentos ou como constituindo a emoção como um processo social e comunicativo),
no ritual (seja como o produto da emoção ou seu gerador), ou no contexto social do
estudo científico social da emoção

Universos transculturais em emoção

Abordagens Etológicas e Evolutivas

A pesquisa sobre a relação entre emoção e cultura tem usado frequentemente o


paradigma evolutivo esboçado por Darwin em A Expressão das Emoções no Homem e

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nos Animais. O interesse de Darwin pela universalidade e taxonomia das emoções foi
replicado, assim como sua visão de que a emoção e a expressão contribuem para as
chances de sobrevivência do organismo. As emoções são retratadas como adaptativas na
medida em que funcionam para organizar o comportamento humano de maneiras
apropriadas às demandas ambientais. Expressões emocionais (particularmente
expressões faciais) são vistas como funcionando principalmente para sinalizar as
intenções do indivíduo, informando assim os outros sobre as prováveis ações futuras.
Várias tradições de trabalho transcultural sobre emoção baseiam-se em insights
darwinistas, incluindo etologia (EIBL-EIBESFELDT, 1980), psicologia transcultural
(EKMAN, 1980, 1984; SCHERER, 1984), sociobiologia (WEINRICH, 1980) e
antropologia biológica (KONNER, 1982), bem como a antropologia psicanalítica
(LeVINE, 1983; LINDHOLM, 1982) que se baseia nas teorias evolutivas de Bowlby
(1969).
O mais ambicioso e amplamente citado programa de pesquisa intercultural sobre
emoção é liderado por Ekman, um programa que ele denomina "neurocultural"
(EKMAN, 1980a, 1980b, 1984). Seus estudos de expressões faciais de emoção (ver
EKMAN, 1980b para uma síntese) incluíram pedir aos Fore da Nova Guiné para
identificar o estado emocional de pessoas fotografadas exibindo padrões particulares de
movimentos musculares faciais. Eles também foram convidados a colocar a expressão
facial de uma pessoa passando por uma série de experiências, como a morte de uma
criança ou vendo uma carcaça de porco em decomposição. Com base nos resultados,
Ekman e seus colegas concluíram que felicidade, surpresa, medo, raiva, repugnância e
tristeza são emoções universais, expressas com a mesma configuração distinta de
movimentos musculares faciais.
Embora Ekman use termos emocionais como raiva, medo e tristeza para se
referir a um complexo de expressões faciais, elicitores, comportamento interpessoal e
mudanças fisiológicas, a essência da emoção permanece para ele o "programa afetivo",
ou sistema biológico que armazena a padrões para cada emoção distinta, incluindo as
respostas muscular, facial, vocal, comportamental, autonômica e do sistema nervoso
central. Esses programas para as seis emoções universais (mais talvez o interesse, a
vergonha e o desprezo) são automaticamente acionados por seus eliciadores, alguns dos
quais adquiridos culturalmente.
Ekman postula três áreas centrais nas quais a cultura influencia a emoção.
Primeiro, as regras de exibição cultural, ou convenções, normas ou hábitos adquiridos
que determina que emoção possa ser mostrada a quem e em quais contextos (ver
também, BAILEY, 1983; KEMPER, 1978); algumas regras são seguidas
automaticamente e fora da consciência, enquanto outras existem simplesmente como
ideais. Essas regras de exibição "interferem nas respostas emocionais que são ditadas
pelo programa de afetos inatos. A cultura é vista como tendo forte influência no
enfrentamento individual, ou tentativas cognitivas e comportamentais de lidar com a
emoção e suas causas. Embora a evolução tenha resultado em algumas predisposições,
como lidar com a raiva ao atacar sua fonte, elas podem ser superadas pelo aprendizado
cultural. Os elicitores situacionais específicos da emoção também são culturalmente
variáveis. Ekman afirmou que "não há emoção para a qual haja é um elicitor universal,
uniforme em seus detalhes específicos" (EKMAN, 1980a, p. 85), ele postula a
universalidade nos elicitores da emoção quando estes são definidos de maneira abstrata
(cf. BOUCHER; BRANDT, 1981).
O etólogo Eibl-Eibesfeldt (1980) concentrou-se em filmar e analisar uma série
de comportamentos não-verbais expressivos em emoção em um grande número de
sociedades. O objetivo é examinar as cadeias de eventos comportamentais em que as

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expressões emocionais funcionam para controlar e se comunicar com os outros. A


universalidade tem sido reivindicada para algumas sequências (como quando alguém
faz beicinho no ato agressivo de outro resulta na eliminação do último comportamento).
Muitos movimentos expressivos (por exemplo, sorrindo, baixando o olhar) são vistos
como padrões motores inatos que agem como sinais que normalmente "disparam" uma
resposta particular no receptor; a expressão facial é um sinal incontrolável e
inconsciente das intenções do remetente ao quais os outros estão programados para
comparecer. Assim, não apenas sequências de interação, mas o significado de alguns
sinais expressivos e seus contextos de elicitação é considerado universal.
Vários antropólogos se basearam nas perspectivas etológicas e psicanalíticas da
emoção ao postular universais de necessidade emocional. Lindholm (1982) propõe,
depois de Bowlby, que as emoções que cercam o apego aos outros representam
necessidades universais que surgem da evolução do instinto de proximidade dos
cuidadores. Essas emoções incluem ansiedade, ciúme, medo e agressão na separação e
amor quando o apego é alcançado. Seguindo muitos teóricos anteriores, uma estrutura
emocional pan-humana baseada nessa dialética de amor e ódio é vista como a força
motriz por trás de muito comportamento humano, e como necessidades constitutivas
que cada cultura pode ou não satisfazer particularmente bem, mas que cultura deve
permitir ser expresso.
Vários aspectos dessas linhas de pesquisa evolutiva se destacam, incluindo uma
preocupação compartilhada com o papel da expressão emocional na manutenção de
posições sociais. A ênfase na maneira como as expressões emocionais mantêm a
hierarquia de dominância faz desses modelos basicamente de equilíbrio. Além disso, a
maioria se concentrou na expressão emocional involuntária, talvez implicando que ela é
mais adaptativa do que o controle expressivo voluntário. E, finalmente, muitos desses
teóricos da emoção (EIBL-EIBESFELDT, 1980; KONNER, 1982; WEINRICH, 1980)
se esforçaram para descrever ou pelo menos mencionar os fins socialmente úteis ou
morais aos quais suas idéias sobre a natureza biológica e inata da emoção poderiam
contribuir. Uma questão que tem sido negligenciada é como os padrões de expressão
facial são incorporados em sistemas de sinalização cultural e linguística maiores.

Perspectivas Psicodinâmicas e Psiquiátricas

Abordagens psicológicas da emoção entre as culturas estão dentro de duas


rubricas disciplinares gerais: antropológica (tradicionalmente, "cultura e personalidade")
e psicológica / psiquiátrica. Esses campos, diversos como objetivos e métodos,
compartilham uma suposição importante na "unidade psíquica" da experiência
emocional humana, como os complexos de hostilidade, ansiedade e tristeza. Enquanto o
antropólogo pode encontrar unidade emocional em dilemas recorrentes da experiência
psicossocial, tais como apego (LINDHOLM, 1982; SHWEDER, 1985), luto
(KRACKE, 1981; LeVINE, 1982; ROSALDO, 1984) e conflito ou agressão edípica
(HIATT, 1984, SPIRO, 1984), o psicólogo / psiquiatra provavelmente encontrará em
psicobiologia (EKMAN, 1980b) ou em induzir situações (BOUCHER; BRANDT,
1981). Em ambos os casos, o resultado é o tipo de teoria das "duas camadas"
mencionada anteriormente, na qual as emoções universais estão localizadas em uma
camada subjacente de afeto. Muito parecido com o pensamento primário e secundário
do processo freudiano, os aspectos uniformes ou universais da emoção são
variadamente "moldados", "filtrados", "canalizados", "distorcidos" ou "mascarados por
moldes" culturais, "filtros", "lentes". “regras de exibição” ou “mecanismos de defesa”.
Dentro desta perspectiva geral, as formas e instituições culturais são analisadas em
termos funcionais pelo trabalho que fazem ao isolar o sujeito que vive das vicissitudes

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da emoção (ver abaixo no ritual). Os problemas tratados pela antropologia psicanalítica


são muitas vezes moldados em termos do ajuste entre a vida emocional dos indivíduos e
a forma das instituições culturais que funcionam para regular ou transformar a
experiência individual (HIATT, 1984; KRACKE, 1981; LeVINE, 1983; LEVY, 1973;
OBEYESEKERE, 1981, 1982; SPIRO, 1984). O trabalho recente nessa área afastou-se
das abordagens estritamente positivistas para explicar as formas culturais em termos de
função emocional (SPIRO, 1984) em direção às preocupações hermenêuticas com a
interpretação dos significados emocionais (CRAPANZANO, 1980b; GOOD; GOOD,
1982; OBEYESEKERE, 1981, 1982).
Curiosamente, o subcampo antropológico que mais se preocupou com as
relações entre emoção e cultura geralmente não atendeu às emoções em si como um
problema para a pesquisa. Os teóricos da "cultura e personalidade" geralmente assumem
que as emoções são a base para construções motivacionais como necessidades, desejos e
desejos, ligando-os a ambos os sistemas de ação e símbolo. Seu papel no pensamento e
no comportamento é articulado nas teorias da personalidade, geralmente psicanalíticas
na persuasão, que são usadas na análise antropológica, mas que não são elas próprias,
objeto de investigação. Em consonância com o influente conceito de "ethos" de Bateson
(1956) como um sistema de emoções culturalmente organizado, numerosos estudos
descreveram o funcionamento de certas emoções "centrais" [geralmente postuladas
como universais, mas veja (DOI, 1973)] em determinadas culturas ou regiões. , assim,
criando elos emotivos entre uma variedade de comportamentos ou instituições
(EPSTEIN, 1984; LEBRA, 1983; SCHWARTZ, 1973).
Os estudos antropológicos da pessoa frequentemente viam as emoções como
uma importante fonte de evidências sobre motivos inobserváveis e muitas vezes não
reconhecidos (inconscientes ou pré-conscientes). Como contrapartida pública e
observável da experiência pessoal, as expressões de emoção figuraram de maneira
importante nos esforços para desenvolver uma etnografia centrada na pessoa (BRIGGS,
1970; KRACKE, 1981; LEVY, 1973; OBEYESEKERE, 1981, 1982). Como nos
estudos anteriores de cultura e personalidade, trabalhos recentes analisaram sistemas
simbólicos como expressões de conflitos emocionais não resolvidos e culturalmente
padronizados, mas com padrões mais rigorosos de evidência e descrição etnográfica.
Veja, por exemplo, o estudo de Hutchins (1987) sobre proposições emocionais
implícitas codificadas em um mito Trobriand.
O estudo do ritual tem sido um foco importante para a pesquisa sobre a
transformação cultural da experiência pessoal. A relação entre emoção e ritual tem sido
uma preocupação antropológica com ancestrais acadêmicos tão variados quanto
Durkheim e Freud, e mais recentemente Radcliffe-Brown (1964) e Turner (1983; ver
também CRAPANZANO, 1980a; HARRIS, 1978; HERDT, 1979; OBEYESEKERE,
1981; SCHIEFFELIN, 1976, WATSON-GEGEO; WHITE, 1987). Um dos debates
centrais tem a ver com a extensão com que a forma e o processo ritual podem ser
explicados pelas emoções, particularmente quando são definidas como propensões
universais para responder de maneira particular a eventos como a morte. Usando ritual
funerário como
No caso paradigmático, alguns argumentaram que o ritual permite a expressão
ou o controle de certos sentimentos universais (KRACKE, 1981; LeVINE, 1982;
ROSENBLATT; WALSH; JACKSON, 1976; SCHEFF, 1977). Aqueles de uma
inclinação durkheimiana (HUNTINGTON; METCALF, 1979) que rejeitaram tal
abordagem como reducionista foram, por sua vez, criticados por ignorarem a emoção
espontânea por meio de uma preocupação excessiva com a ordem no ritual
(ROSALDO, 1984). O ritual tem sido examinado como um método culturalmente

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constituído para distanciar os indivíduos da experiência emocional e, particularmente,


das emoções que expressam interesse proibido (MAHER, 1984). Por exemplo, Scheff
(1963), modificando o conceito de catarse de Freud, postula que o ritual funciona para
regular a experiência do indivíduo sobre os principais afetos do luto, do medo, do
constrangimento e da raiva. Outros vêem o ritual como apenas ocasionalmente ajudando
as pessoas em seu "trabalho emocional" (HUNTINGTON; METCALF, 1979;
ROSALDO, 1984). Alguns etnógrafos tentaram distinguir a expressão emocional
"genuína" da "convencional" no ritual (HUNTINGTON; METCALF, 1979;
KAPFERER, 1979), embora a ênfase nessa dicotomia possa emergir das preocupações
locais com a "sinceridade" e a conjunção entre vidas internas e externas (cf. GEERTZ,
1973), e pode ser simples demais para fazer justiça à variedade de maneiras pelas quais
o pensamento cultural e o ritual agem juntos para construir uma experiência emocional.
O ritual também foi examinado pelo que revela sobre a conceituação indígena de
emoção, pessoa e moralidade (HARRIS, 1978); pela disjunção e conjunção entre
símbolos carregados de emoção pessoal e cultural (OBEYESEKERE, 1981); por sua
relação com cenários culturais cotidianos mais gerais de interação emocional
(SCHIEFFELIN, 1976); e como uma narrativa que articula entendimentos emocionais
de si e do outro (LeVINE, 1982).
Em contraste com as abordagens da cultura e da personalidade, a psicologia e a
psiquiatria interculturais frequentemente se concentraram em afetos específicos como
problemas para investigação. O interesse psiquiátrico psicológico deriva da definição
clínica de distúrbio emocional como doença, incluindo os "distúrbios afetivos" da
depressão, da ansiedade e de uma série de "síndromes ligadas à cultura". O enfoque em
tipos particulares de experiências emocionais através da cultura cultural abriu
possibilidades para a colaboração interdisciplinar, revelando sérias diferenças de teoria
e método, e aguçando os debates sobre a universalidade da experiência emocional
(GOOD; KLEINMAN, 1984; HAHN; KLEINMAN, 1983; KLEINMAN; GOOD, 1985;
MARSELLA, 1980; MARSELLA; WHITE, 1982). Como os críticos apontaram
(KLEINMAN; GOOD, 1985), o típico estudo psiquiátrico transcultural aplica técnicas
diagnósticas ocidentais padrão em duas ou mais culturas, sacrificando a relevância e a
validade para confiabilidade e replicabilidade. Esforços para salvar este gênero de
"checklist" (BEISER, 1985; CARSTAIRS; KAPUR, 1976) envolveram a construção de
perguntas, escalas e inventários com significados específicos de cultura, em vez de
termos ingleses de segunda ordem (MANSON; SHORE; BLOOM, 1985; MARSELLA,
1980). Apesar dessas tentativas, os críticos antropológicos questionaram toda a empresa
em bases mais fundamentais do que a insensibilidade a significados indígenas. Por
exemplo, Obeyesekere (1985) argumenta que as tentativas de operacionalizar medições
abstratas da depressão através das culturas estão condenadas a impor interpretações
medicamente centradas em observações descontextualizadas. Essas divergências
metodológicas derivam, em última instância, de epistemologias ou teorias divergentes
da linguagem e da interpretação (BEEMAN, 1985; GOOD; GOOD, 1982). A ênfase no
significado socialmente construído nas visões antropológicas da linguagem leva os
pesquisadores a duvidar da validade de palavras ou sentenças isoladas como invariantes
representações de conhecimento ou experiência.
Em outras áreas, antropólogos e psiquiatras têm se preocupado com o papel da
emoção em eventos de crise, como a migração (GOOD; GOOD; MORADI, 1985),
transtornos mentais episódicos como as "síndromes ligadas à cultura" (SIMONS;
HUGHES, 1985) e o suicídio (BLACK, 1985; FREEMAN, 1983; RUBINSTEIN,
1984). Uma preocupação antropológica contínua tem sido o problema da interpretação,
de determinar o que conta como um problema e como ele é construído na experiência

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dos atores. Por exemplo, uma investigação das taxas epidêmicas de suicídio entre
adolescentes do sexo masculino na Micronésia (RUBINSTEIN, 1984) mostra que as
dinâmicas esperadas de raiva e depressão que figuram nos suicídios ocidentais não
aparecem de maneira óbvia. Em vez disso, uma compreensão dos motivos dos atores
requer a articulação dos conceitos indígenas de emoção no contexto dos conflitos
familiares. Outros estudos examinaram o papel da emoção como um idioma para pensar
e falar sobre angústia pessoal (KLEINMAN; GOOD, 1985; NICHTER, 1981),
observando as marcadas diferenças entre culturas. Por exemplo, a descoberta de que os
chineses falam relativamente menos sobre emoções do que os americanos na explicação
de problemas psicossociais (KLEINMAN; KLEINMAN, 1985) reflete um contraste na
retórica de queixa culturalmente constituída, de tal modo que os chineses usam um
idioma somático onde os americanos falam em termos de psicologia.

Naturalismo de senso comum

Uma visão da emoção que pode ser denominada "naturalismo de senso comum"
está, pelo menos, implícita em muitos tratamentos antropológicos da emoção. As
suposições que ele faz, no entanto, podem impedir que ele seja fortemente representado
nesta literatura como uma abordagem explicitamente adotada. O naturalismo de senso
comum é baseado na visão de que as emoções devem ser entendidas principalmente
como sentimentos, e que esses sentimentos são universais em sua natureza e
distribuição essenciais, se não na atenção cultural e nos significados subsidiários que os
acompanham. Sentimentos tristes ou raivosos, por exemplo, são em todos os lugares
iguais, e esses sentimentos é a essência da emoção. O naturalismo de senso comum tem
como parceiro de conversação implícito aqueles que adotam a visão de que a
compreensão de emoções entre culturas é pouco importante ou imensamente difícil.
Dois métodos foram usados para explorar a vida emocional nessa veia, incluindo
empatia (BLACK, 1985; BRIGGS, 1979; KRACKE, 1981) e a noção de
posicionamento social (ROSALDO, 1984). O primeiro é o mais comum dos dois e
baseia-se na ideia de que todos os seres humanos têm a capacidade de compreender o
estado emocional do outro. Essa compreensão é efetuada através dos canais especiais da
comunicação empática (e geralmente não verbal) e é conceituada como uma
compreensão intelectual ou emocional mais direta. No último caso, particularmente, as
emoções das pessoas são vistas como passadas, às vezes em um processo contagioso,
para aqueles ao seu redor. O antropólogo, portanto, deve simplesmente estar em
proximidade atenta e intensiva com a vida cotidiana dos outros, a fim de apreender suas
emoções. O paradoxo e o problema nessa visão, apontados por Solomom (1978),
residem no fato de que o conceito de empatia pressupõe aquilo que é frequentemente
usado para provar, que é a natureza universal e transparente de uma experiência
emocional interpretada como interna (para outras críticas ver BRIGGS, 1970; GEERTZ,
1984). Em sua "etnografia introspectiva" dos Fulani, Riesman (1977) historiciza a
questão da empatia emocional no campo, notando as maneiras pelas quais a alienação
no Ocidente e a natureza do campo se encontra tornando a empatia problemática (ver
também RABINOW, 1977).
R. Rosaldo (1984) aplicou recentemente a noção de Bourdieu (1977) do "sujeito
posicionado" à questão metodológica de como o estudo da emoção deve prosseguir.
Cada pessoa é vista como ocupando uma posição na sociedade que proporciona uma
visão particular dos eventos. Essa posição é estruturada por fatores como idade, gênero
e status e tipicamente dá ao indivíduo um conjunto de experiências de vida, experiências
que "naturalmente" e universalmente produzem certos tipos de sentimentos. Para
entender as emoções do outro, portanto, exige que o etnógrafo tenha compartilhado as

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experiências básicas de vida que evocam esses sentimentos (como a morte do filho ou
uma ameaça constante à vida de alguém). Nessa perspectiva, compreender
adequadamente a vida emocional dos outros é impossível por meios cognitivos; a
descrição verbal ou "meras palavras" não podem dar acesso à essência da emoção, à
qual só se admite a experiência pessoal vivida. Essa visão baseia-se nas noções de senso
comum de que a emoção é inefável e que a compreensão exige "andar no lugar da outra
pessoa". O senso talvez incomum que isso promove é que a juventude do etnógrafo
típico é uma desvantagem na investigação cultural cruzada da emoção, na medida em
que a pouca experiência de vida faz com que ele não possua preparo suficiente para
entender algumas coisas sobre as emoções daqueles que busca estudar.

Universais de linguagem

As investigações sobre a representação da emoção na linguagem têm um peso


significativo nos debates epistemológicos sobre a universalidade da experiência
emocional. A maioria dos pesquisadores que postulam universais emocionais também
espera que eles sejam refletidos de forma transcultural nos códigos linguísticos e
culturais. A pesquisa de termos de cor iniciada por Berlin; Kay (1967) tem sido um
modelo sedutor para muitos que supõem que os léxicos da emoção serão moldados de
formas sistemáticas pelas restrições biológicas dos afetos centrais universais. Por
exemplo, vários escritores tomaram emprestada a noção de categorias de "protótipo"
para sugerir que os significados centrais ou "focais" dos termos de emoção se
sobrepõem transculturalmente, embora possa haver variação em toda a gama de seus
significados específicos de cultura (D’ANDRADE, 1987; GERBER, 1985, p. 142;
LEVY; ROSALDO, 1983, p. 229). Até onde sabemos ninguém ainda propôs uma
ordenação evolutiva de palavras de emoção análogas ao tipo demonstrado para léxicos
de cores.
A maioria das especulações sobre universais na linguagem da emoção tem sido
baseada em estudos lexicais. As afirmações mais fortes são feitas por psicólogos que
aplicaram técnicas formais à análise de léxicos emocionais de forma transcultural.
Boucher (1979) relata que a análise de cluster dos vocabulários de emoção de oito
idiomas asiáticos, europeus e do Pacífico mostra agrupamentos semânticos maiores em
cada idioma, correspondendo às seis emoções encontradas por Ekman nas expressões
faciais. Esta descoberta até agora não foi replicada por estudos lexicais com outras
línguas (GERBER, 1975, LUTZ, 1982). Em outro trabalho comparativo (RUSSELL,
1983), o escalonamento multidimensional de palavras de emoção em várias línguas
produz configurações lexicais semelhantes estruturadas por duas dimensões: "prazer-
desprazer" e "excitação-sono". A relevância cultural desses achados não é clara à luz do
procedimento do estudo, começando com um conjunto de palavras inglesas de emoção e
traduzindo-as em cada uma das línguas-alvo.
Talvez a pesquisa intercultural mais amplamente conhecida por ter produzido
evidência de dimensões universais de "significado afetivo" seja a de Osgood e seus
associados (1975). A pesquisa com a técnica do "diferencial semântico" não foca nos
aspectos significativos da emoção, mas sim nas características derivadas e conotacionais
da linguagem, - principalmente as três "dimensões afetivas" bem conhecidas de
avaliação, potência e atividade que foram relacionadas a palavras descritivas em um
grande número de idiomas. Essas descobertas não falam diretamente sobre o sentido das
palavras de emoção, mas fornecem pistas sobre a base de semelhanças altamente
confiáveis em associações metafóricas entre culturas. Assim, foi demonstrado
(D’ANDRADE; EGAN, 1974) que tanto os índios maias quanto os americanos de fala
inglesa fazem julgamentos semelhantes sobre as cores associadas à emoção.

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Os estudos que examinaram as propriedades culturalmente relevantes da emoção


concluem que tais palavras derivam seus significados de uma ampla gama de
compreensões e práticas, especialmente aquelas que pertencem às relações e interações
sociais (ver seções abaixo). Tanto a teoria linguística (BEEMAN, 1985) quanto os
estudos etnográficos indicam que as palavras de emoção não funcionam apenas, ou
mesmo principalmente, como rótulos para estados de sentimento ou expressões faciais.
Portanto, não é provável que os estudos semânticos forneçam evidências diretas das
dimensões fisiológicas universais da experiência afetiva. Em consonância com isso,
outros sugeriram que as palavras de emoção podem refletir universais na matriz
relacional social da emoção (KEMPER, 1978; WHITE, 1980).

A Construção Cultural e Social da Emoção

Emoção e Compreensão Etnopsicológica

Em contraste com a visão tradicional das emoções como forças irracionais,


alguns trabalhos recentes se concentraram na formulação da emoção na compreensão
consciente e no discurso interativo. Análises detalhadas de conceitos para, e falar sobre,
emoção têm enfatizado a importância primária dos sistemas de significado cultural na
experiência emocional, desafiando em alguns casos oposições básicas em nosso
vocabulário teórico como razão / emoção, cultura / personalidade e público / privado.
Enquanto algumas pesquisas etnopsicológicas estão primariamente preocupadas com as
funções psicológicas da compreensão emocional (GERBER, 1985; LEVY, 1973), a
maioria se concentra em problemas de interpretação e na "tradução" de mundos
emocionais.
Um conceito teórico fundamental em grande parte deste trabalho sobre a
compreensão cultural da emoção é o do eu culturalmente constituído, posicionado nos
nexos dos mundos pessoal e social (ver HEELAS; LOCK, 1981; LEE, 1982;
MARSELLA; DeVOS; HSU, 1985; SHWEDER; LeVINE, 1984; WHITE;
KIRKPATRICK, 1985). Conceitos de emoção emergem como um tipo de linguagem do
self - um código para declarações sobre intenções, ações e relações sociais. Assim,
Levy, que deu um dos primeiros e mais completos relatos de compreensões emocionais
no contexto social (LEVY, 1973), enfatiza o papel das emoções em formar o sentido do
ator de sua relação com um mundo social. Consistente com este ponto de vista,
numerosos estudos etnográficos têm notado que as emoções são um idioma primário
para definir e negociar as relações sociais do eu em uma ordem moral (ABU-LUGHOD,
1985; BAILEY, 1983; ITO, 1985; LUTZ, 1987b; MYERS, 1979; ROSALDO, 1980;
WHITE, 1987). Nestes estudos, as emoções emergem como socialmente moldadas e
socialmente moldando em diversas e importantes maneiras (veja a próxima seção).
Talvez a diferença mais fundamental entre os estudos recentes sobre
compreensão emocional seja o grau em que as emoções recebem um status a priori de
pancultismo, em oposição a serem vistas como culturalmente criadas. Diferenças na
postura teórica sobre esta questão traduzem-se em diferenças claras na estratégia
metodológica. Compare o argumento de Gerber (1985, p. 159) de que "porque esses
afetos básicos são pan-humanos, eles fornecerão uma base para comparação e tradução
entre sistemas de emoção em diferentes sociedades" com M. Rosaldo (1983, p. 136) que
alega que, "como antropólogos interessados em afeto, poderíamos fazer bem em
trabalhar a partir de [emoções que envolvem componentes culturais conscientes] onde a
relevância da cultura é clara, para casos em que é mais problemática, começando (a la
Ekman ...) com universais fisiológicos presumidos e depois 'acrescentando
cultura'"(ênfases no original).

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Essas abordagens contrastivas estão associadas a diferentes visões sobre o status


da compreensão emocional e da experiência na conscientização dos atores. Para aqueles
que começam com um "teclado" universal emocional (SHWEDER, 1985) composto de
afetos básicos, várias discrepâncias entre o modelo pancultural e os entendimentos
específicos da cultura colocam a questão de como os afetos universais são variados,
amplificados ou distorcidos na percepção dos atores. Assim, para Gerber (1985) existem
"experiências interiores" deixadas implícitas e não codificadas; e para Levy (1984), os
entendimentos culturais da emoção são precedidos por "sentimentos emocionais" que
são informados, eles próprios, por um tipo de "conhecimento primário" intuitivo. Levy
(1973, 1984) cunhou os termos "hipocognizado" e "hipercognizado" para se referir às
tendências das culturas para alterar muitíssimo ou elaborar o reconhecimento consciente
de emoções particulares. Assim, por exemplo, os taitianos falam pouco de tristeza em
situações em que esperamos e com grande preocupação com a raiva, marcando
inúmeras variedades com termos especiais. O modelo de tristeza "hipocognizada"
taitiana permite ao observador postular interpretações erradas da emoção, como no
exemplo de Levy de uma pessoa que sofre tristeza após uma perda, mas queixa-se de
"doença."
Para a maioria dos estudos de compreensões indígenas da emoção, a avaliação
de afetos ocultos ou transformados tem sido menos questionável do que o problema da
tradução, de explicar os significados sociais da emoção (BRIGGS, 1970; EGNOR,
1985; LEVY; ROSALDO, 1983; LUTZ, 1987b; MYERS, 1979; RIESMAN, 1977;
ROSALDO, 1980; WHITE, 1985). Dentro deste campo mais amplo de investigação,
várias abordagens são evidentes. Pesquisadores localizaram vários significados
emocionais dentro do tecido moral das relações sociais (BATESON, 1956; KEELER,
1983; MYERS, 1979), dentro de atividades institucionalizadas como a caça às cabeças
(ROSALDO, 1980) ou o luto cerimonial (SCHIEFFELIN, 1976), dentro das estruturas
ideológicas globais da pessoa (FAJANS, 1983; KIRKPATRICK, 1983, 1985) e gênero
(ABU-LUGHOD, 1986), ou dentro das teorias populares usadas para interpretar eventos
como mudanças no desenvolvimento (BRIGGS, 1970; POOLE, 1985), situações de
crise (BLACK, 1985; RUBINSTEIN, 1984) e conflito interpessoal (ITO, 1985;
WHITE, 1985). A teoria da marcação foi mostrada especialmente útil pelos Fajans
(1985) ao explicar as ênfases e significados emocionais de uma cultura, com
sentimentos surgindo em momentos culturalmente marcados como desviantes.
Enquanto a maioria dos pesquisadores tendeu a olhar para uma série de discursos
cotidianos ou mundanos em busca de evidências sobre o padrão etnopsicológico da
emoção, outros se concentraram na estética cultural em relação ao afeto. Isso inclui
estudos das emoções evocadas e invocadas na poesia nativa (ABU-LUGHOD, 1986),
música, música e simbolismo sonoro (FELD, 1982; SCHIEFFELIN, 1976), dança
(HANNA, 1983) e artes plásticas (ARMSTRONG, 1981).
Uma linha de pesquisa sobre compreensão emocional investigou as estruturas
cognitivas ou esquemas usados para conceituar emoções específicas. A preocupação
aqui tem sido com a representação do conhecimento cultural da pessoa e das situações
sociais subjacentes ao significado das palavras de emoção. Com base no insight de que
palavras e conceitos de emoção codificam informações sociais significativas, os estudos
da linguagem da emoção têm procurado identificar a estrutura inferencial da
compreensão emocional (LUTZ, 1987a; WHITE, 1987). Esses estudos observam que as
inferências que dizem respeito à emoção referem-se simultaneamente a situações
evocativas e a respostas apropriadas. A análise mais completa para uma palavra de
emoção inglesa é a discussão de Lakoff; Kovecses (1986) sobre a conceituação de
"raiva" evidente em metáforas comuns e expressões idiomáticas. Ao descrever imagens

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que os falantes de inglês rotineiramente usam para pensar em "raiva" como, por
exemplo, fluido quente em um recipiente (fervura, vapor, estouro etc.), os autores
traçam formas culturais de pensar (e, argumentamos, experimentando) "raiva" que tem
implicações comportamentais significativas. Além disso, essa visão do senso comum de
raiva pode ser vista como um exemplo da "metáfora hidráulica" que influenciou
gerações de teorias acadêmicas da emoção (SOLOMON, 1976).
Essa abordagem cognitiva e a visão ideológica das emoções analisam a
compreensão emocional como pertencente a situações sociais. Quando os cognitivistas
falam de "sequências de eventos prototípicos" (QUINN; HOLLAD, 1987), a abordagem
mais interpretativa vê "cenários" culturais de ação situada (ROSALDO, 1984;
SCHIEFFELIN, 1976, 1983). Essas abordagens diferem amplamente na ênfase dada aos
processos conceituais, em oposição aos processos sociais e interativos, na formação do
significado emocional. Em ambos os casos, no entanto, os atores entendem as emoções
como mediadoras da ação social: elas surgem em situações sociais e carregam
implicações para pensamentos e ações futuros. Entendimentos emocionais, portanto,
não são vistos como formulações abstratas e simbólicas "pensar em sentir" tanto quanto
pensamentos que estão necessariamente ligados a situações sociais e objetivos valiosos
que lhes dão força moral e direção.
Em um nível mais global, podem ser levantadas questões sobre o papel geral dos
conceitos de emoção no raciocínio e no raciocínio etnopsicológico. Como a noção
cultural de sentimento ou emoção figura em entendimentos sobre percepção, intenção,
motivação, comportamento intencional e outros afins? As respostas a essas perguntas
provavelmente se referem às maneiras pelas quais a compreensão emocional cria
restrições e contexto para a ação social. Por exemplo, no "modelo popular da mente"
americano (D’ANDRADE, 1987), os sentimentos vinculam percepções e crenças com
desejos e intenções em uma cadeia causal de raciocínio aplicada de maneira muito geral
no ordenamento da experiência social. Também podemos perguntar sobre as fontes
socioculturais de variação etnopsicológica, perguntando, por exemplo, por que a
observação de Ochs (1986) que em Samoa "não parece haver muita conversa sobre
sentimentos como origens de comportamento" parece interessante para observadores
ocidentais. Em muitas sociedades, um elo crítico nas interpretações culturais da ação
implica que os conceitos de emoção provavelmente sejam usados ativamente na
negociação da realidade social. Taussig (1984) descreve uma das formas mais
perniciosas que isso implica ao demonstrar como as formas históricas e contemporâneas
de tortura prosperar em uma "cultura de terror", ou uma matriz emocional e ideológica
em que a vítima é tanto experiente e continuamente recriada no discurso como um
aterrorizante e co ser intocável. A atenção à retórica e discurso emocionais, então, deve
ser um foco frutífero para investigações etnográficas da vida social como um processo
ativo e criativo (BAILEY, 1983; BESNIER, 1987; BRENNEIS, 1987; LARCOM,
1980; LUTZ, 1987a; OCHS, 1986; WATSON-GEGEO; GEGEO, 1987; WHITE,
1987).

Emoção e Estrutura Social

Pesquisas sobre as relações entre significado cultural e emoção estão apenas


começando a se expandir em um exame dos correlatos estruturais sociais de cada um
(ABU-LUGHOD, 1986; DOUGLAS; WILSAVSKY, 1982), e baseiam-se em uma
variedade de tradições incluindo estruturalismo (FAJANS, 1985), teoria de troca
(APPADURAI, 1985) e materialismo histórico (MAHER, 1984). A emoção é vista
como relacionada à estrutura social de várias maneiras. Em primeiro lugar, emoção
pode ser definida como sendo "sobre" relações sociais; os sistemas de significado

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emocional refletirão essas relações e, através da constituição emocional do


comportamento social, as estruturarão. Além disso, as estruturas sociais e econômicas
estão relacionadas ao modo como as pessoas ou os selves são construídos de maneira
mais geral. Coisas como o grau de individualismo, as noções de privacidade e
autonomia, multiplicidade de selves ou senso de responsabilidade moral que resultam
têm consequências importantes para a maneira pela qual a emoção é conceituada,
experimentada e socialmente articulada.
Mais especificamente, os princípios gerais de organização social constroem as
características de tamanho, estabilidade e estado das audiências habituais para as
performances emocionais dos indivíduos (LEBRA, 1983; WIKAN, 1984). Essas
características do grupo social também podem ser vistas como constituindo um
ambiente de criação de filhos, como no debate sobre se o "afeto difuso" é promovido em
grandes domicílios (MUNROE; MUNROE, 1980; SEYMOUR, 1983). A emoção pode
ser vista como uma estratégia para defender o tipo preferido de organização social de
um grupo (DOUGLAS; WILDAVSKY, 1982). Quando definida como um modo de
ação, a emoção é apresentada como um constituinte ativo das estruturas sociais.
Appadurai (1985), por exemplo, examina as maneiras pelas quais as formas específicas
que a gratidão assume no sul da Índia ajudam a apoiar a hierarquia de castas e o código
explícito da reciprocidade não mercantil. Keeler (1983) descreve como o sistema de
status "fluido" de Java, que associa status ao self em vez de a um papel social, torna a
identidade de alguém crucialmente dependente de demonstrações emocionais que
reconhecem apropriadamente a posição hierárquica de outros. A relativa ausência de
estrutura social também foi notada como tendo consequências emocionais ao forçar
tipos particulares de sentimentos (por exemplo, aqueles que se concentram na expansão
e contração das fronteiras do eu, e aqueles que motivam a não-violência) para a
proeminência cultural (DENTAN, 1978; FAJANS, 1985).
Myers (1986) e outros observaram a maneira pela qual a distribuição de poder
em uma sociedade, - por exemplo, por gênero, idade ou cargo político, - e a estruturação
ideológica da emoção se encontram relacionadas. Maher (1984) apresenta uma variante
de tal quadro: emoções ideologicamente prescritas podem ser vistas como uma forma de
falsa consciência, em que as emoções reprimidas são sintomas dos verdadeiros
interesses materiais de um grupo. Abu-Lughod (1986) mostra como indivíduos
beduínos egípcios afirmam sua aceitação ou desafio ao sistema de hierarquia social
através de discursos sobre emoção que estão ligados à ideologia de honra e modéstia.
As relações entre nobres e ex-escravos na sociedade Fulani são demonstradas por
Riesman (1983) para corresponder às diferenças de comportamento emocional nos dois
grupos. O trabalho nesse sentido sempre considerou o gênero (ABU-LUGHOD, 1986;
LUTZ, 1987b; MAHER, 1984), com a classe sendo um tópico relativamente
negligenciado. Scheper-Hughes (1985), no entanto, demonstrou eloquentemente como
as emoções de uma mãe por seus filhos em uma favela brasileira respondem à sua
posição de classe desfavorecida. Quando a classe é examinada, o status de classe
inferior às vezes é visto como menos emotividade, definida como subjetividade pessoal
(HOCHSCHILD, 1979), ou mais emocionalidade definida como afeto caótico em vez
de sentimentalismo refinado (MEDICH; SABEAN, 1984).
Outros observaram como instituições específicas, - como tribunais (LARCOM,
1980), movimentos sociais (DOUGLAS; WILDAVSKY, 1982) ou uxorilocalidade
(MURPHY, 1983), - são apoiadas por visões culturais de emoções e emoções. Quando a
emoção é definida como uma declaração sobre a relação de uma pessoa com o mundo e,
particularmente, problemas nessa relação, as emoções mais comuns em uma sociedade
podem ser vistas como marcadores dos pontos de tensão (ou satisfação) gerados por sua

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estrutura. Do ponto de vista psicodinâmico, uma estrutura emocional humana universal


se confronta e pode conflitar com estruturas sociais particulares. Lindholm
(LINDHOLM, 1982), por exemplo, argumenta que a combinação de um sistema de
linhagem segmentar e a escassez de terras para o Swat Pukhtun resultou em um sistema
social que promove competição individualista e hostilidade; a extensa elaboração de
normas de hospitalidade é vista como o local no qual os aspectos mais gerais da
estrutura emocional (isto é, apego) são exibidos.
A relação entre emoção e família tem sido um dos aspectos mais estudados das
emoções na sociedade, com uma ampla gama de abordagens utilizadas. Algumas
descrições etnográficas observaram que o parentesco é o domínio no qual o apelo
emocional é apropriado, em oposição a movimentos pragmáticos ou estruturais
(HARRIS, 1978, MYERS, 1986). A mais comum tem sido uma preocupação com a
maneira pela qual os sistemas de parentesco locais constroem o tom emocional de cada
díade dentro da família (ABU-LUGHOD, 1986, BRIGGS, 1970; GERBER, 1975;
HARRIS, 1978; RIESMAN, 1977). Em uma linha relacionada, Harris (1978) descreve
como as crenças culturais de Taita sobre a raiva são usadas para regular o
comportamento adequado entre várias categorias de parentesco. Particularmente
preocupante tem sido a maneira pela qual os padrões de casamento e residência, bem
como os direitos de propriedade e outras forças materiais influenciam e são afetados
pelas relações de autoridade dentro da família e pelo teor emocional de cada tipo de
relação de parentesco (MURPHY, 1983). Muitos tentaram identificar o "centro
emocional" (MEDICK; SABEAN, 1984) e as margens da família em seus aspectos
oficiais e mais dissimulados. Também foi tratada a maneira pela qual os papéis
individuais de parentesco são socialmente articulados e compreendidos
emocionalmente. Maher (1984), por exemplo, demonstra como os sentimentos
fundamentalmente ambivalentes das mulheres marroquinas sobre a maternidade são
condicionados pela contradição entre a sua posição como proprietária de propriedades e
elas mesmas como propriedade de seus maridos.
O trabalho seminal de Elias (1978) sobre a relação entre a mudança histórica na
estrutura social e a emoção foi apenas recentemente seguido por novas pesquisas de
historiadores e antropólogos (JACKSON, 1985; ABU-LUGHOD, 1985; BOURDIEU,
1979; STONE, 1977). A emoção é tratada como um recurso que é estruturado tanto pela
mudança de condições quanto pela estruturação de seu significado. Essa pesquisa
cultural histórica focalizou particularmente a economia política e o gênero em relação à
mudança emocional, como quando Hausen (1984) examina como a ameaça à ordem
patriarcal tradicional na Europa Ocidental, representada pela entrada das mulheres no
mercado de trabalho e a mudança nos padrões infantis, levou a encenação do Dia das
Mães, com a sua construção ideológica e intensificação das emoções adequadas de e
para elas. Os antropólogos podem seguir o exemplo dos historiadores e outros (EELKR,
1979; LASCH, 1977; RYAN, 1979) que examinaram as implicações, particularmente
em relação aos papéis de gênero, da separação do local de trabalho e do lar sob o
capitalismo e a concomitante separação ideológica entre as noções de emoção e
interesse, expressividade e instrumentalidade. Isso incluiria uma crítica à noção de que
os domicílios podem ser analisados exclusivamente como unidades econômicas ou
emocionais (MEDICK; SABEAN, 1984). Isso incluiria uma crítica à noção de que os
domicílios podem ser analisados exclusivamente como unidades econômicas ou
emocionais (MEDICK; SABEAN, 1984).
Várias implicações da estrutura social para a emoção (muitas das quais são
sugeridas pelo trabalho de M. Rosaldo) parecem ter ampla aplicabilidade intercultural.
Estes incluem a relação entre estruturas políticas e legais e a elaboração de modos

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informais de manejo de conflitos que dependem fortemente do idioma da emoção


(MYERS, 1979; ROBARCHEK, 1977; ROSALDO, 1980; WATSON-GEGEO;
WHITE, 1987) e, particularmente, de uma noção elaborada e extensivamente usada de
vergonha (EPSTEIN, 1984; NACHMAN, 1984; ROSALDO, 1983). Há, por outro lado,
pouco para sustentar a noção comumente expressa (LEFF, 1981) de que sistemas sociais
complexos geram um número maior e mais diversificado de emoções em seus membros
(em contraste, ver RIESMAN, 1977, p. 153). Foi identificada uma relação entre a
estrutura social igualitária, os eus autônomos e a configuração das emoções individuais,
na medida em que tal emoção implica uma atitude particular em relação aos direitos e
deveres dos compatriotas (ROSALDO, 1983; SCHIEFFELIN, 1983). O que M. Rosaldo
chama de "sociedades de assistência social" mantém uma visão da vergonha como
gerada pelo conflito e como mitigadora da raiva (BRIGGS, 1970; MYERS, 1979;
ROSALDO, 1983). Ela também observou que as sociedades hierárquicas parecem
muito mais preocupadas do que outras com o problema de como a sociedade controla
um eu emocional interior (ROSALDO, 1984).

Emoção, Linguagem e Comunicação

Datada pelo menos do estudo clássico de Darwin (1872), a emoção tem sido
estudada com base em comportamentos e exibições que são essencialmente
comunicativos por natureza, mesmo que suas funções semióticas e contextos geralmente
não sejam analisados. Onde a comunicação emocional tem sido estudada, isto tem sido
principalmente sob a rubrica da comunicação não verbal (BIRDWHISTELL, 1970;
EIBL-EIBESFELDT, 1980; EKMAN, 1980a, 1980b, 1984), uma ênfase que está
alinhada com a associação tradicional de emoções com o corpo. Estudos sobre a
comunicação verbal da emoção só recentemente começaram a surgir (IRVINE, 1982).
Aqueles que lidaram sistematicamente com a emoção e a linguagem se enquadram em
duas áreas gerais:
1. Análise semântica, geralmente lexical, e
2. Estudos sobre a comunicação da emoção em situações sociais.
Dada à medida que palavras de emoção inglesas têm sido usadas para pesquisa,
é um tanto surpreendente que elas não tenham recebido mais atenção como objetos de
pesquisa. O trabalho de Davitz (1969) e Averill (1982) são os estudos descritivos mais
abrangentes sobre as intuições dos falantes de inglês sobre o significado emocional,
baseados amplamente em dados formalmente elicitados e de entrevistas (ver também
SABINI, 1982). O trabalho de Wallace; Carson (1973) foi o primeiro a examinar as
palavras cognatas de emoção em inglês, mostrando considerável variação no conteúdo e
na estrutura dos vocabulários de leigos e psiquiatras, incluindo diferenças que afetam as
avaliações clínicas.
Estudos interculturais de palavras de emoção estão mais preocupados com
problemas de tradução e concentraram-se em apenas alguns termos-chave (GERTEZ,
1959; LEVY, 1973; POOLE, 1985; ROSALDO, 1980) ou inventariando todo o domínio
da emoção (BOUCHER, 1979; BRIGGS, 1970; GERBER, 1975; MYERS, 1979). Para
Rosaldo (1980), que faz da emoção um foco importante para sua etnografia da vida
social dos ilongóes, a tarefa de interpretar o termo ligamento ("raiva") é virtualmente
indistinguível da própria etnografia, exigindo um mapeamento de usos múltiplos em
uma variedade de contextos sociais. Em contraste, alguns que adotam uma visão de todo
o domínio das palavras de emoção examinam relações de contraste e similaridade entre
um conjunto de palavras salientes (GERBER, 1975; 106).

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Além dos estudos semânticos ou cognitivos, há interesse renovado entre


sociolinguístas e etnógrafos da comunicação nas funções pragmáticas da linguagem da
emoção. Beeman (1985), por exemplo, examina o fenômeno da depressão a partir de
uma perspectiva sociolinguística e observa que as avaliações psicológicas da emoção
podem errar por causa de uma teoria ingênua da linguagem que pressupõe uma
correspondência direta entre palavras emocionais e experiência emocional (LEBRA,
1983; MORICE, 1978). Abordagens sociolinguísticas à emoção observam seu papel em
todos os aspectos da linguagem como um código de comunicação: fonológico, sintático
e pragmático, bem como semântico. Irvine (1982) lista uma ampla gama de dispositivos
linguísticos que codificam Wolof, assim como Besnier (1987) para uma única sessão de
fofocas Nukulaelae. Os dados apresentados apenas para esses casos sugerem não apenas
que todas as sentenças têm um componente afetivo, mas que nenhum aspecto da
linguagem é imune à apropriação pela semiótica da emoção.
O estudo de Schieffelin (1979) sobre a aquisição de entendimentos emocionais
em crianças Kaluli tem sido influente em focar as pesquisas sobre comunicação
emocional na socialização e aquisição de linguagem (veja abaixo). Seu trabalho e o de
outros (MILLER; SPERRY, 1987; OCHS, 1986; WATSON-GEGEO; GEGEO, 1987)
mostram que a emoção é um tema frequente nas conversas sobre o cuidado do filho e
uma estratégia frequente em suas interações. Ochs (1986) sugere que a produção e a
compreensão de sentimentos em linguagem são fundamentais para a aquisição da
gramática e, além disso, estabelecem a "base" para a aquisição de valores e crenças
culturais. A perspectiva desenvolvimental implica importantes hipóteses sobre
sequências na aquisição de códigos emocionais, tais como as formas que pressupõem o
afeto são adquiridas antes daqueles afetos predicativos na forma de uma afirmação
(OCHS, 1986).
Reconhecendo sua dívida com as abordagens sociolinguísticas, Bailey (1983)
analisa usos situados da exibição emocional para seus efeitos no gerenciamento de
impressões e na manipulação da interação de pequenos grupos (cf. HOSCHSCHILD,
1979, 1983). Tomando dados de uma variedade de grupos de língua inglesa, desde
comissões universitárias até o parlamento indiano, ele identifica tipos específicos de
retórica emocional que funcionam como estratégias políticas ou persuasivas nesses
contextos. O interesse de Bailey no uso de códigos comunicativos no gerenciamento de
situações, identidades e impressões se assemelha ao expresso por Irvine (1982) e a
outros que abordaram a política da emoção (BESNIER, 1987; BOURDIEU, 1979;
LARCOM, 1980). Questões comuns neste trabalho incluem o problema da sinceridade,
das habilidades dos atores em expressar emoções através de múltiplos canais e
manipular entendimentos evidentes e ocultos dos eventos.
Em alguns aspectos, antropólogos linguísticos, políticos e psicológicos
convergem no uso de métodos naturalistas, centrados na situação, para descobrir os
significados sociais e os efeitos da linguagem emocional. Pesquisas futuras nesta área
parecem estar indo além da tarefa simplesmente descritiva de catalogar códigos
comunicativos para:
a) Especificação de relações entre códigos (como verbal e não-verbal,
aberta e encoberta, linguagem estereotipada e comum), e
b) Articulação das funções pragmáticas dos significados emocionais dentro
de sistemas mais amplos de valor (MILLER; SPERRY, 1987; OCHS,
1986), identidade (KAPFERER, 1979) e compreensão etnopsicológica.

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Socialização e Aquisição de Competência Emocional

Aqueles de inclinação universalista e construcionista social têm se interessado


pela questão de como a criança se torna emocionalmente madura. Para o universalista,
os processos de socialização funcionam em um conjunto de sentimentos universais,
distintos e internos, bem como em uma emotividade mais geral (GEERTZ, 1959;
SHWEDER, 1985); a criança aprende a silenciar ou aumentar a expressão (e talvez
também a experiência subjetiva) de cada um, assim como se ajusta o volume de um
rádio. Os processos de socialização também estruturam o ambiente da criança de
maneira que torna mais provável a experiência de algumas emoções. Para o
construcionista, a socialização emocional é o processo pelo qual a criança é introduzida
em uma vida emocional constituída pelo discurso de adultos entre si e com os jovens.
Embora alguns tenham postulado uma capacidade de excitação indiferenciada como a
matéria-prima na qual as experiências de socialização funcionam (ROBARCHEK,
1979b), a maioria dos construtivistas permanece desinteressada ou desinteressada nessa
questão.
Além dessa distinção geral, existem pelo menos três correntes de pesquisa sobre
a emoção e a criança: comportamental social, etnopsicológica e linguística. Seguindo a
tradição materialista, ecológica e behaviorista dos Whitings (1975), uma grande
quantidade de pesquisas se concentrou nas maneiras pelas quais aspectos amplos da
economia e da organização social estruturam os cenários nos quais a socialização
emocional ocorre (MUNROE; MUNROE, 1980; SEYMOUR, 1983; WEISNER;
BAUSANO; KORNFEIN, 1983). Presume-se que essas configurações tenham um
impacto relativamente não mediado no comportamento emocional da criança (embora
veja HARKNESS; SUPER, 1985). Os métodos de campo usados incluem observações
de comportamento que focalizam atos com acompanhamentos emocionais inferidos por
observadores: como sorrir, provocar, olhar mútuo e agressão. Conceitos de emoções
discretas, como raiva ou medo, geralmente não são usados na interpretação desses
comportamentos. Pelo contrário, tais conceitos globais (e questionáveis) como os de
"baixo efeito", "afeto positivo" ou "calor materno” são frequentemente aplicados
(GOLDSCHMIDT, 1975; KILBRIDE; KILBRIDE, 1983). A ênfase tem sido na
"quantidade" de emoção (caracterizada como positiva e ou negativa) cuidadores diretos
para as crianças, e sobre as causas estruturais sociais e as consequências da
personalidade dessa "massa" afetiva. No máximo, essa preocupação levou a
simplificações tão exageradas quanto a classificação transcultural das sociedades de
Rohner (1975) emocionalmente "aceitando" ou "rejeitando" seus filhos.No extremo
oposto, a abordagem psicodinamicamente orientada de LeVine (1982) para o
desenvolvimento emocional usa uma gama mais ampla de dados clínicos e etnográficos
para interpretar o significado emocional e o impacto do comportamento do cuidador.
Estudos de socialização etnopsicológica (BRIGGS, 1970; DENTAN, 1978;
GERBER, 1975; LUTZ, 1983; POOLE, 1985; ROBARCHEK, 1979b) frequentemente
fazem referência ao artigo seminal de H. Geertz (1959) sobre socialização emocional
javanesa que ele apresenta como um exemplo do processo de "especialização emocional
socialmente guiada", em que os adultos definem e interpretam ou conceituam situações
e sentimentos para a criança. Da mesma forma que as abordagens linguísticas mais
centrais à socialização emocional (ver abaixo), os estudos etnopsicológicos atribuem um
lugar central em sua análise ao discurso cultural sobre as emoções, que é visto como a
organização das compreensões e da socialização do comportamento emocional de seus
filhos. Alguns estudos combinam descrições etnopsicológicas da criança e da emoção
com pressupostos psicodinâmicos sobre desenvolvimento emocional (BRIGGS, 1978;

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LeVINE, 1982; LEVY, 1973, 1978, 1984), como quando Briggs (1982) examina o
papel da contradição e do conflito na socialização emocional e de valor.
Os antropólogos analisaram como as etnopsicologias delineiam os estágios de
desenvolvimento emocional e moldam os tipos considerados apropriados de
comportamento emocional para e da criança em diferentes idades (HARKNESS;
SUPER, 1983, 1985; cf. LEWIS; SAAMI, 1985; para exemplos específicos ver
BRIGGS, 1970; DENTAN, 1978; HARRIS, 1978; KEELER, 1983; KIRKPATRICK,
1985; POOLE, 1985; ROSALDO, 1980). Também foi examinado o significado
emocional das crianças em geral e especificamente da adoção (45, 53, 59, 169); os
valores e objetivos culturais nos quais a aquisição de significado emocional é integrada,
como gentileza interpessoal (BRIGGS, 1982; LUTZ, 1983; MONTAGU, 1978),
autoproteção (MILLER; SPERRY, 1987) ou submissão (GERBER, 1975); o
desenvolvimento na criança de entendimentos culturais particulares dos conceitos de
emoção, e particularmente das situações em que uma emoção é apropriadamente
encenada (LUTZ, 1985a; OCHS, 1984); e o uso de rituais de ciclo de vida para criar
conceitos de self e emoção (HARRIS, 1978; HERDT, 1982).
Esta pesquisa fez uma série de perguntas sobre atitudes culturais em relação à
mudança de estado em si. Alguma coisa como emoção existe como um conceito
organizador para atender crianças? Em caso afirmativo, isso é visto como algo que
deveria ser auto-regulado ou gerenciado por outros? Deve ser explicitamente
endereçado ou ignorado? É algo que se torna mais ou menos proeminente com a
maturidade? Os sistemas descritos variam entre as famílias "pró-naturais" da Califórnia,
que acreditam em promover tanto a expressividade emocional quanto a autorregulação
emocional pelo bebê e pela criança (WEISNER; BAUSANO; KORNFEIN, 1983), aos
Kipsigis do Quênia, que combinam a noção de que os outros deveriam administrar o
estado do bebê com desatenção à mudança de estado na criança mais velha
(HARKNESS; SUPER, 1983), aos Semai da Malásia, que definem todas as emoções
resposta como perigosa ou temível (ROBARCHEK, 1979b). Em cada caso, os estudos
etnopsicológicos demonstram que as visões culturais da emoção e as visões culturais da
criança se sobrepõem de maneiras cruciais, dando significado e motivação às relações
entre crianças e adultos.
Finalmente, as abordagens linguísticas para a socialização da emoção
examinaram as maneiras pelas quais as crianças adquirem habilidades culturais para
comunicar seus estados emocionais a outros (HARKNESS; SUPER, 1983; MILLER;
SPERRY, 1987; OCHS, 1984, 1986; SCHIEFFELIN, 1979, 1986). O foco
metodológico está nos atos de fala que ocorrem nos contextos em que as crianças estão
envolvidas, e mais geralmente nas expressões não-verbais, paralinguísticas e verbais
cuja aquisição pela criança é vista como crucial para o desenvolvimento emocional.
Várias análises linguísticas analisaram a aquisição de pistas de contextualização pela
criança, que indicam quão seriamente uma exposição emocional devem ser tomadas
(MILLER; SPERRY, 1987), incluindo declarações diretas, construções gramaticais
ligadas à emoção, gestos, rostos, posição social do falante e o escopo do público que
visualiza o visor (OCHS, 1984).
Embora a pesquisa sobre a relação entre sociedade, cultura e desenvolvimento
emocional tenha geralmente ultrapassado o foco no indivíduo isolado (HARKNESS;
SUPER, 1983), o enfoque predominante (particularmente nas tradições behaviorista e
linguística) permanece na díade mãe-filho, um enfoque que em alguns casos, podem
refletir pressupostos normativos implícitos sobre a fonte putativa de emocionalidade no
doméstico e no feminino. Mais promissora tem sido uma expansão na gama de
contextos de aprendizagem vistos como relevantes para a aquisição de um perfil

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emocional culturalmente distinto na criança, desde a escuta de narrativas parentais sobre


emoção (MILLER; SPERRY, 1987) até a experiência cinestésica da criança sobre as
emoções do adulto (ROBARCHEK, 1979b). Pesquisas sobre o desenvolvimento
emocional no contexto cultural raramente olharam, no entanto, para a resposta desse
desenvolvimento a alguns dos fatos mais cruéis e comuns dos mundos infantis,
incluindo a desigualdade de gênero, classe (mas veja HOCHSCHILD, 1979; MILLER;
SPERRY, 1987; SCHEPER-HUCHES, 1985) e guerra. Pesquisas futuras podem
esclarecer as maneiras pelas quais a moralidade, a cognição, a linguagem e o contexto
social constituem a "essência" da emoção, demonstrando as maneiras pelas quais a
complexidade das relações sociais, os entendimentos culturais e as habilidades
cognitivas e linguísticas da criança se tornam o desenvolvimento emocional possível.

Um quadro comparativo para o estudo das emoções


O núcleo da tentativa de compreender a relação entre emoção e cultura está na
descrição etnográfica da vida emocional das pessoas em seus contextos sociais. Embora
esta tarefa etnográfica tenha sido apenas recentemente assumida, o número de
descrições é agora impressionante e aumenta a possibilidade de comparação
intercultural. Em vez de usar critérios biopsicológicos ou estados universais assumidos
como base para essas comparações, parece útil começar com um conjunto de problemas
de relacionamento social ou significado existencial que os sistemas culturais
frequentemente parecem apresentar em termos emocionais, isto é, apresentar como
problemas com os quais a pessoa é impelida a lidar. Enquanto a força que move as
pessoas a lidar com esses problemas pode ser conceituada como puramente somática,
como tradição, como obrigação moral, ou em qualquer outro número de maneiras, o
idioma da emoção é frequentemente o principal.
Esses problemas incluem:
1. A violação do outro dos códigos culturais ou das expectativas pessoais
do ego (ou conflito mais geralmente) (ver BRIGGS, 1970; HARRIS,
1978; LAKOFF; KOVECSES, 1986; LeVINE, 1982; MILLER, 1986;
MEILLER; SPERRY, 1987; OCHS, 1986; ROBARCHEK, 1977, 1979a;
ROSALDO, 1984; RUBINSTEIN, 1984; SCHIEFFELIN, 1983;
WHITE, 1987);
2. A própria violação do ego desses códigos, incluindo a incompetência
social ou inadequação pessoal, e a consciência da possibilidade de tal
falha (ABU-LUGHOD, 1986; BOURDIEU, 1979; GEERTZ, 1959;
HERSFELD, 1980; LEVY; ROSALDO, 1983; MYERS, 1979;
STRATHERN, 1975; WIKAN, 1984);
3. Perigo para o próprio eu físico e psicológico e outros significativos
(BECKER, 1973; BRIGGS, 1982; DENTAN, 1978; DOUGLAS;
WILDAVSSKY, 1982; LeVINE, 1982; ROBARCHEK, 1979b;
SCHIEFFELIN, 1976; SCRUTON, 1986; TAUSSIC, 1984);
4. A perda real ou ameaçada de relacionamentos significativos (ABU-
LUGHOD, 1985; FAJANS, 1985; KLEINMAN; GOOD, 1985; LeVINE,
1982; MYERS, 1979; ROSALDO, 1984; ROSENBLATT; WALSH;
JACKSON, 1976);
e os "problemas positivos" de
5. Recebimento de recursos (BRIGGS, 1982; MYERS, 1979) e
6. Foco em recompensar os laços com outros (DOI, 1973; EGNOR, 1985;
KORKPATRICK, 1983; LINDHOLM, 1982; QUINN, 1982);

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7. Para tratamentos de toda a gama de problemas, ver também (BRIGSS,


1970; GERBER, 1975; LEVY, 1973; LUTZ, 1982, 1987; RIESMAN,
1977; ROSALDO, 1980).
Um único evento ou problema do mundo real raramente é caracterizado simplesmente
por essa tipologia, seja de maneira nativa ou por um observador externo. A morte, por
exemplo, pode representar ao mesmo tempo perigo, perda e violação do senso do que
deveria acontecer. A ambivalência, a ambiguidade e a complexidade de muita
experiência emocional e interação são causadas por essa multiplicidade de perspectivas
sobre eventos, bem como por contradições dentro de sistemas ideológicos ou de valores,
pela incompletude das informações que as pessoas têm sobre um evento e pelo fato de
que muita emoção é sobre a antecipação de eventos e consequências futuros e, portanto,
desconhecidos.
É importante ressaltar que essas caracterizações abstratas de problemas humanos
servem para servir como pontos de referência comparativos iniciais, em vez de como
afirmações a priori ou finais sobre as causas situacionais universais da experiência
emocional. A ênfase é desviada da questão de saber se uma experiência emocional
descontextualizada é "a mesma" ou "diferente" entre as culturas e a de como as pessoas
dão sentido aos eventos da vida. O que precisa ser explorado são as maneiras
específicas pelas quais o significado cultural e a estrutura social se relaciona com essas
caracterizações gerais. Existem várias possibilidades.
Em primeiro lugar, cada cultura enfatizará um aspecto particular do problema
geral, como quando, em problemas do tipo 2 acima, os japoneses focalizam a audiência
por seus erros (LEBRA, 1983), enquanto o adolescente Ilongot sente sua inadequação
como um desafio a ser superado ( ROSALDO, 1983) e o americano pode tender a se
concentrar nos danos causados pelo erro ou no que o erro diz sobre o caráter de alguém.
Além disso, há variação cultural enquanto ênfase é dada globalmente para cada tipo de
problema.
Em segundo lugar, a natureza exata do problema, como é tipicamente
encontrada na vida cotidiana, será afetada por interpretações culturais, bem como por
diferenças e semelhanças nas condições materiais. Essa questão é frequentemente
tratada como uma "mera" questão de conteúdo, mas deve ser central para qualquer
tentativa de entender o impacto da emoção no comportamento cotidiano e na
organização social. Para saber o que é considerado perigoso, uma coisa que vale a pena
ter ou uma perda é crucial para entender a base motivacional de todos os aspectos da
participação na vida social. Muitas crianças são um recurso ou um dreno? O apego aos
outros é o centro da vida ou a ilusão da vida (OBEYESEKERE, 1985)? Os sistemas
culturais vão além de definir situações e contextos como a natureza do perigo, e de
descrever quais riscos vale à pena, quem deve levá-los, o que causa ou pode ser
responsabilizado por eles (DEVEREAUX, 1967) e, se um perigo específico é
controlável ou não. A distinção de Parkin (1986) está ligada àquela entre o medo "cru" e
o "respeitoso". Também gostaríamos de considerar fatores como as taxas de
mortalidade, que apresentam as condições objetivas para a perda em qualquer sociedade
(SCHPER-HUGHES, 1985), bem como a adoção de crianças com pais vivos e as
condições sociais estruturais que tornam tênues os vínculos com os outros
(LINDHOLM, 1982).
Em terceiro lugar, as pessoas desenvolvem conhecimento sobre as relações entre
alguns desses tipos de problemas. Assim, muitas vezes, há um vínculo intrínseco entre a
violação do código do outro e tipos de respostas; um elo que une, de maneiras
importantes e complexas, a "raiva justificável" e o "medo" entre os Ifaluk, à "raiva" e à
"vergonha" entre os outros. Ilongot e os taitianos (LEVY, 1973; ROSALDO, 1983), e

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"raiva" e "admiração" entre os Kaluli (SCHIEFFELIN, 1983). Como outro exemplo, as


próprias impropriedades (tipo de problema 2) são frequentemente, mas nem sempre,
vistas como enfaticamente perigosas (tipo de problema 3) por uma variedade de razões.
Ligações emoção-emoção particulares (cf. IZARD, 1977) podem então ser enfatizadas
como o resultado de uma variedade de fatores socioculturais, e algumas vezes serão
codificadas explicitamente como outros conceitos de emoção. Esses elos refletem tanto
o fato de que os problemas da vida social se desdobram e se desenvolve com o tempo,
como a profunda imersão da emoção nos sistemas simbólicos.
Em quarto lugar, cada problema pode ser roteirizado para um tipo particular de
solução comportamental. As lágrimas pela perda e o ataque físico ou simbólico das
violações do código de outra pessoa podem estar ligadas às suas funções de preservar ou
erodir a integridade psicossocial, como variações desses roteiros, como quando o Utku
se afasta da violação do outro (BRIGGS, 1970) e do Kaluli abertamente. e chamar
dramaticamente a atenção para isso (SCHIEFFELIN, 1976). Embora uma série de
outros pontos comparativos se sugira (incluindo o tratamento cultural divergente de um
problema quando encontrado em contextos especiais como infância ou bebida), a tarefa
central é contextualizar cada abordagem psicocultural dos problemas emocionais dentro
de estruturas sociais e etnopsicógicas mais amplas; o contexto do que significa ser uma
pessoa e dos contornos da ecologia e do poder dentro dos quais a pessoa assim
interpretada deve viver.

Conclusão
No início desta revisão, delineamos uma série de oposições (material / ideal,
individual / social etc.) que fundamentam as definições populares e acadêmicas de
emoção. O alinhamento da emoção com um lado dessas oposições dicotômicas tem
consistentemente moldado e, argumentamos, estreitou teorias da emoção e da vida
social. A visão da emoção que dá primazia às experiências corporais internas tem
prevalecido na maioria das teorias psicológicas, em parte porque é solidamente
consistente com nossos conceitos altamente individualizados de pessoa e motivação. O
resultado, no entanto, tem sido uma relativa negligência dos aspectos fenomenológicos
e comunicativos da emoção nas investigações das ciências sociais. Sugerimos que
várias das abordagens descritas acima, que focalizam explicitamente as formulações
culturais da emoção no contexto social, contêm as sementes de uma reconceituação
básica que dará ênfase renovada às dimensões pública, social e cognitiva da experiência
emocional. Embora essa ênfase pareça um corretivo necessário para a identificação
tradicional de emoções com o irracional, tentativas de definir e explicar emoção apenas
em termos do mercado público de idéias arrisca seu próprio empobrecimento, a menos
que possam ser forjadas ligações entre os mundos frequentemente dicotomizados do
racional e irracional, público e privado, e individual e social.
As oposições afeto / cognição e personalidade / cultura são centrais para o nosso
/ cognição e personalidade / cultura são centrais para os nossos modos de pensar.
Entretanto, a visão de que a experiência afetiva e a força motivacional são analíticas e /
ou ontologicamente distintas da cognição está sendo questionada com base em
pesquisas etnopsicológicas mostrando que os esquemas culturais têm muitos das
qualidades diretivas e moralmente persuasivas antes associadas principalmente ao afeto
(D’ANDRADE, 1984). Desafiando divisões teóricas que dividem o cultural e ideacional
do individual e afetivo, M. Rosaldo (1984) argumenta que as emoções não são coisas
opostas ao pensamento, são como "pensamentos incorporados, pensamentos vazados
com a apreensão de que 'eu estou envolvido'". Uma análise das bases culturais para
nosso contraste familiar de "pensamento" e "sentimento" (BERLIN; KAY, 1967) mostra

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como uma ampla gama de oposições, tais como energia da informação, racional-
irracional, controle-descontrolado, cultura natureza, verdade / valor e apoio masculino /
feminino e sustentam essa visão, mesmo que ela se mostre inadequada para a explicação
da experiência humana como vivida. O ponto dessas críticas é que a desconstrução de
noções familiares podem nos levar a insights significativos sobre a visão humana.
maneiras pelas quais as idéias são infundidas com valor, afeto e direção, assim como os
sentimentos são usados para entender e comunicar sobre eventos sociais.A empresa,
sugerimos, é eminentemente cultural e comparativa.
Como conclusão final, notamos duas contribuições que o estudo comparativo
das emoções pode fazer à etnografia de maneira mais geral. Primeiramente, pode ajudar
no desenvolvimento da abordagem interpretativa da cultura, dando nova relevância
metodológica à resposta emocional do etnógrafo ao trabalho de campo. Isso envolveria
realizar a divisão do produto cognitivo de trabalho de campo (a etnografia) a partir de
seu produto emocional (o diário, relato de trabalho de campo "pessoal" e talvez poesia),
como Briggs (1970) fez de maneira inovadora ao criar problemas na interação
emocional entre etnógrafo e hospedeiro no centro de investigação e o caminho para a
compreensão cultural. Embora esta ponte tenha sido realizada em graus variados por
algumas monografias recentes (CRAPANZANO, 1980b; DUMONT, 1978; DWYER,
1982; RABINOW, 1977; RIESMAN, 1977; ROSALDO, 1980) e artigos (KRACKE,
1981; ROSALDO, 1984), pode haver uma tentativa mais geral e sistemática de
examinar as ansiedades do observador que Devereux (1967) vê como os "dados básicos
e característicos da ciência comportamental [e como] mais válidos e mais produtivos do
insight do que qualquer outro tipo de dado" (DEVEREUX, 1967, p. XVII). Seria
importante explorar
a. Essas ansiedades como sinais de distorção do observador em potencial
(DEVEREUX, 1967);
b. As técnicas de distanciamento envolvidas na metodologia (DEVEREUX,
1967) e na literatura metodológica (como a noção de "criação de
rapport");
c. Os pressupostos pessoais e culturais do etnógrafo sobre o self e a
emoção, e
d. As características especiais das relações sociais do antropólogo (tanto no
campo quanto em casa), incluindo coisas como a sua impermanência; as
possibilidades de perda, perigo e alienação que elas apresentam; e suas
desigualdades de poder e competência social.
A interpretação emocional culturalmente auxiliada dessas condições é crucial para a
maneira como a descrição etnográfica procede, fazendo com que este e os outros
aspectos do relacionamento de campo sejam entradas importantes para uma melhor
compreensão intercultural.
Segundo, uma das promessas do novo interesse pela emoção é que ela pode
reanimar a imagem, às vezes robótica, dos seres humanos que a ciência social produziu.
O tomador de decisões agrícolas raramente é visto como sofrendo pela escolha entre
alternativas, às vezes terríveis; o sistema de saúde de uma sociedade é frequentemente
apresentado como se fosse povoado por atores, em vez de membros da família
confrontando a morte possível um do outro.
Incorporar emoção à etnografia implicará apresentar uma visão mais completa
do que está em jogo para as pessoas na vida cotidiana. Ao reintroduzir a dor e o prazer
em todas as suas formas complexas em nossa imagem da vida cotidiana das pessoas em
outras sociedades, poderíamos humanizar ainda mais essas outras para o público
ocidental. Essa audiência encontra a emoção no núcleo do ser por razões culturais e

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políticas de origem econômica, razões que devem ser submetidas simultaneamente ao


escrutínio antropológico. Em questão não está apenas a humanidade das nossas
imagens, mas a adequação da nossa compreensão das formas culturais e sociais.

Agradecimentos
Gostaríamos de agradecer a Lila Abu-Lughod, Jane Collins, Sara Harkness, Fred Myers, Melford Spiro e Vincas
Steponaitis pelos comentários e discussões que contribuíram muito para esta revisão. A ajuda bibliográfica e de
digitação de Nancy Chabot e Gloria Gaumer também foram muito apreciadas.

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1
Nota do tradutor: Publicado em 1988 sob o título, Unnatural Emotions: Everyday sentiments on a
Micronesian Atoll and their challenge to western theory. Chicago: University of Chicago Press.

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2
Nota do tradutor: Publicado a seguir com a referência: MILLER, P.; SPERRY L. 1987. The
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3
Nota do tradutor: A coletânea foi publicada em 1990, com pequena mudança no subtítulo: WATSON-
GEGEO, K. A.; WHITE, G. M. eds. 1990. Disentangling: Conflict Discourse in Pacific Societies.
Stanford, CA: Stanford University Press, 520 pp.

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Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro.
Emoções e fotografia – enleio sobre uma
fotografia anônima de caixões populares para
enterros de crianças. Sociabilidades Urbanas,
Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n.
13, pp. 117-124, março de 2021, ISSN 2526-
4702.
ARTIGO
https://grem-grei.org/numero-atual-socurbs/

Emoções e fotografia – enleio sobre uma fotografia anônima de caixões


populares para enterros de crianças
Emotions and photography - daydream about an anonymous photograph of
popular coffins for children's burials

Mauro Guilherme Pinheiro Koury1

Resumo: Uma fotografia publicada em um jornal comunitário de um bairro popular,


sem autoria, sem ano, sem legenda, e sem um texto que a amparasse ou desse algum
sentido a sua presença na folha de bairro é o objeto deste ensaio. Nele se faz um
devaneio em torno do objeto fotográfico, sua presença situada ambiguamente entre o
real e a ilusão do real, os tempos fotográficos expostos na fotografia, e as tensões do
observador que a olha e tenta se localizar e compreender. Palavras chave: fotografia,
caixões infantis exposto, pobreza, representação fotográfica, realidade e ilusão do real
Abstract: A photograph published in a community newspaper in a popular
neighborhood, without authorship, without year, without a caption, and without a text to
support it or give any meaning to its presence on the neighborhood sheet is the object of
this essay. In it a daydream takes place around the photographic object, its presence
ambiguously situated between the real and the illusion of the real, the photographic
times exposed in the photograph, and the tensions of the observer who looks at it and
tries to locate and understand it. Keywords: photography, exposed children's coffins,
poverty, photographic representation, reality and illusion of the real

Eu já conheço os passos dessa estrada / Sei


que não vão dar em nada / O seu segredo eu
sei de cor! / Já conheço as pedras do caminho /
E sei também que ali sozinho / Eu vou ficar
muito pior / O que é que eu faço desse
encanto... (Chico Buarque. Retrato em branco
e preto)

O olhar se detém em uma foto anônima que contém enfileirados caixões


populares para enterros de crianças de 0 a 10 anos. Idades que podem ir até um pouco

1
Professor Voluntário do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da
Paraíba. Coordenador do Grem-Grei.
118

mais talvez, dependendo do tamanho e grau de nanismo e subnutrição daquela criança


que não conseguiu sobreviver.
Foto - Caixões populares para enterro de crianças

Fonte - Fotografia anônima


Os caixões estão expostos, oferecidos no mercado fúnebre. Mal feitos, de cores
claras (azuis e brancos, talvez, por serem os mais comuns, supostos pelo olhar através
do jogo de luzes e sombras de uma fotografia em branco e preto), alguns com pobres
estamparias florais e frisos de latão prateado ou dourado, reaproveitados em um
processo de bricolagem de materiais em desuso.
A fotografia busca representar a naturalidade da morte infantil em pequenas
cidades do interior
erior nordestino, ou nos bairros pobres, favelas, aglomerados subnormais,
ou comunidades das grandes cidades, através da exposição do produto caixões de anjo
em qualquer das casas de comércio fúnebre de cunho mais popular. O choque de
realidade que ela aparentemente afirma é, ao mesmo tempo, negado pela hipotética
construção de cena comum ao ato fotográfico.
A fotografia analisada, assim, ganha ares de ficção, de cenário preparado para
uma demonstração ou jogo de efeitos específicos que é o lado corriqueiro,
corrique banal com
que é sentida a mortalidade infantil por aqueles que convivem com ela (e seu grande
número) cotidianamente.
Entre ficção e prova de realidade transita aos olhos do espectador a imagem
revelada. Apenas caixões infantis expostos em um canto de parede qualquer, retirando
de cena toda a vida possível que deve existir ao seu redor, fechando-se
fechando no lócus da
morte, da mortandade infantil e da situação de pobreza de seus possíveis usuários.
A irrealidade que o seu enquadramento permite levarleva o espectador
especta a analisar a
fotografia tanto por uma possível estética da pobreza na morte, ou no cumprimento dos
ritos funerários socialmente aceitos e legítimos, asseguradores da transição no após
vida, quanto pela vulgarização da morte e dos seus ritos, através da exposição comercial

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de um tipo de mercadoria muito procurada, os caixões de anjo, e de sua qualidade


inferior, denotando a pobreza daqueles a quem são destinados.
O que não deixa de ser um trabalho ficcional, um olhar do espectador, que está
além (ou aquém) da imagem revelada.


A realidade da imagem na foto, por outro lado, - caixões infantis populares em
exposição, - remete para um espaço-tempo específico, ou especificamente fotográfico.
Ao ato fotográfico propriamente dito: isto é, a um momento e a um lugar “que foi”,
como diria Barthes (1980), que existiu, gênese da revelação que esta foto transmite.
A revelação, sempre uma ação posterior no processo fotográfico, recria sempre
outro(s) espaço(s) e tempo(s) em quem a vê. Implica muitas vezes em um retorno ao
passado, para um tempo e para um espaço que já não existem, palco da memória do
autor no momento de sua composição. Arena, também, de uma memória social presa,
ou melhor, prisioneira da representação fotográfica, fixa no que a foto revela.
Se esse plano de indeterminação justifica a originalidade fotográfica, ele
também a torna única. Singular a cada ato, impossível de repetição, enclausurada em um
instante perdido entre o objeto fotografado e seu autor, no momento de apertar o gatilho
e aprisionar a imagem na câmera, leva, também, a reflexões da própria indeterminação
enquanto fetiche (FREUD, 1974). Resultado de uma intemporalidade transmitida pela
foto a cada olhar que revela um tempo e um espaço que não mais existem, porém,
estando presente a todos que a vêem.
A exposição de caixões infantis em uma casa funerária popular cria expectativas
a cada olhar a partir da própria intemporalidade e da indeterminação da imagem
fotográfica. Funciona como objeto parcial (KLEIN, 1991), que provoca a interrupção do
olhar preenchendo campos de interjeição e questionamentos até então não enfrentados
pelo espectador e que, apresentados pela fotografia que se observa, torna-se seu
substituto, enfraquecendo a ação analítica, tornando-se ilusão, ahistórica.
Ilusão reforçada, se seguirmos o raciocínio encontrado em Metz (1989), pela
força do silêncio e da imobilidade da imagem fotográfica. A fotografia, assim,
simbólicamente, se liga à morte, àquilo que já não é (mais), funcionando como
substituto do objeto-passado. Interrompendo e eternizando, ao mesmo tempo, a sua
história, agora objeto-memória, seu duplo, objeto de evocação, de recordação e até
mesmo, quem sabe, de crença ou de possíveis estórias criadas do que já não mais existe.
A experiência da foto, assim, se diferencia da do objeto fotografado. E esse
distanciamento, se de um lado processa caminhos paralelos entre a foto e o objeto que
se deixou fotografar, por outro lado, com a revelação tem-se prisioneira uma partícula
ou fragmento de tempo e de espaço no momento do ato fotográfico, que faz daquela
foto específica uma evocação daquele passado que já não mais é, estando presente,
porém, corporificado, na imagem revelada.
Nesse sentido, fazendo talvez uma comparação absurda entre a fotografia e o
mito de Kolossós na cultura grega (VERNANT, 1990, pp. 306-307), como substituto do
ausente, ambos, não visariam reproduzir os traços, ou assumir as características físicas
do que se foi, tem a característica sim de um duplo, como o próprio morto é um duplo
do vivo.
Através de Kolossós, ou da fotografia, o objeto revelado sobe à luz do dia e
manifesta aos olhos dos vivos (ou observadores) a sua insólita e ambígua presença
porque, também, e principalmente, sinal de ausência.
A fotografia como duplo, desse modo, trás em si o efeito de enganar, de
decepcionar, de engodo: é a presença do objeto revelado, mas, também, é a sua ausência

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irremediável. Satisfaz uma passagem fundamental entre o visível e o invisível,


reforçando ao mesmo tempo sua oposição.
Revela-se, quando evocada pelo olhar do observador, e a sua imagem é apontada
na gênese do ato fotográfico, dos fragmentos captados pela câmara no instante único de
sua fixação pelo dedo do fotógrafo. Intemporal, ahistórica, parcial, a fotografia trás
também em si um lado documental. Mesmo que fantásmico.
Nesse apontar do fotógrafo registra-se um passado. Um fragmento de passado
que permite lembranças e possibilita ao olhar de quem observa, ou daquele que retoma
com o olhar o que a foto revela perscrutar sobre qual realidade a evocação remete
através do ausente fixo no presente da imagem.
O problema dos sentimentos ressaltados no ato (quase litúrgico) da presença de
um ausente, de um momento que não é mais, assoma o espectador como rememoração.
Ele revive o passado presente como uma memória a ser reconstruída. Como um
fragmento na multiplicidade de informações a ele submetidas (BENJAMIN, 1985) e
dispersas no emaranhado da construção de sua formação como pessoa.
Duas ações distintas assim se processam. Ações estas ligadas a proximidade ou
não da cena ao olhar que observa. Ambas, porém, movidas pela mesma sensação de
vazio, de encantamento, da revelação.
Antigamente lá, e hoje, aqui, como falaram barrageiros expulsos da borda do
Rio São Francisco e que retornavam à beira do agora lago formado pela hidroelétrica de
Sobradinho, na divisa da Bahia com Pernambuco, quando se depararam com a nova
paisagem das águas e as condições novas a eles impostas. Os sentimentos da revelação
criaram estórias, refizeram tempos e espaços evocados para a situação no hoje, aqui.
Evocação necessária à remontagem do viver de agora, do sobreviver às dores do
antigamente lá, agora irremediavelmente perdido, - como analisado com grande beleza
por Siqueira (1992).
A tensão da lembrança possibilita o refazer percursos, acalmar ou alimentar
saudades, naturalizar as próprias angústias, anseios e medos (DELUMEAU, 1989), ou,
em uma leitura livre de Pollak (1985), permite enquadrar a própria memória,
protegendo-a dos submundos da imaginação, das memórias subterrâneas que
fantasmificam a existência presente.
A quem não teve acesso à experiência viva, na carne, a lembrança é envolvida
com outras saudades, com processos que se entrecruzam - ninguém sabe direito porque,
- confundindo tempos e espaços da imagem revelada. Temporalidades espaciais da
experiência do sujeito que observa.
A rememoração brinca, assim, com processos vitais e como eles se constituíram
na pessoa que vê.
O vazio intemporal da imagem provoca. Os fantasmas evocados correspondem
apenas em parte à naturalização ansiada, e, como o vidente cego, na caracterização de
Vernant (1990), veste-se de noite para perscrutar a experiência do vazio na imagem.
Corporifica o papel de Kolossós de olhos vazios, do adivinho. Daquele que
trafega entre o mundo dos vivos e dos mortos.
Aprofundam-se destarte perigosamente nos subterrâneos da memória. De um
tempo que não foi seu, procurando resgatar as lembranças significativas que
descongestionam a saudade e permitem a naturalização da imagem na revelação.
Vai, contudo, mais além. E desce o sinuoso caminho da solidão corporificada no
ausente presente na fotografia, esforçando-se para trazê-la mais próxima.

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∗∗
Rudimentares caixões infantis enfileiram-se em exposição, em um canto de
parede qualquer. A foto agride o observador, primeiramente, por sua singeleza: caixões
baratos, adornos de material reciclado, grosseiras estamparias florais, remete ao
artesanal do fabrico, pondo beleza na humildade dos objetos expostos. Fragiliza o
espectador, porém, ao retirar de cena a tragédia da expansão do comércio fúnebre
infantil entre os pobres, para repô-la enquanto beleza, enquanto uma estética da pobreza
e um inventário de materiais reunidos e reciclados para o fabrico dos caixões de anjo.
A agressão também, em segundo lugar, decorre como reconhecimento. Ao olhar
a fotografia tem-se a certeza de tratar-se de um comércio pobre, de um artesanato pobre
feito para pobres (interioranos ou das periferias de centros urbanos maiores). O
enquadramento da foto permite, assim, o imediato enquadramento da memória.
A ofensiva passada pela imagem, pela singeleza, pelo inventário que ela permite,
compõe assim uma ação de comprovação. A foto assegura a identificação, ou dá a
conhecer o objeto. O credibiliza na emoção da imagem tirada, que não é dali, que não se
encontra ali em sua solidão plena de realidade passada, mas que representa ou evoca, na
sua revelação, valores sociais e estéticos que tocam o observador no presente.
Idéias e associações recorrem na reflexão. Uma nebulosa composta por produtos
de experiências individuais ou coletivas do olhar que observa a exposição dos caixões
de anjo alinhados.
Emociona o conhecer e o reconhecer. O estar ali ao alcance dos olhos e tão
longe, espacial e temporalmente. A emoção é encantada porque concentrada nos valores
que a foto transmite, e que chegam até o observador na sua distância necessária,
transformando o trágico cotidiano em singelo e atemporal exercício de estética.
A solidão e a dor incrustadas nos limites da fotografia não perpassam ou
transcorre a emoção do observador atento da imagem revelada. O apontar fotográfico
documenta apenas o vazio dos objetos, cenário de exposição de mercadorias mortuárias
para uma determinada faixa etária, e uma também determinada faixa econômica.
O espaço de recorrência aberto na memória do observador convida à travessia da
imaginação, pelas identificações evocadas na revelação, que possibilitam a ação do
pensamento, que comportam o pensar. Podem levar, também, ao abandono do olhar a
fotografia, pelo aspecto de banalidade que ela mostra.
No segundo caso, o observador enquadra o seu pensamento na representação
fotográfica, e segue o seu caminho. No primeiro caso, porém, o olhar ao reconhecer
percorre criteriosamente as identificações na revelação, aprofundando-se na imaginação.
A experiência do olhar do observador recolhe na foto material para o trabalho da
imaginação. Sempre pessoal e social tal trabalho conota expressões culturais que
objetivam relacionar a imagem revelada há um tempo-espaço específico, ou
especificamente humano.
O vazio assim é recomposto como representação social, através de tensões
relacionadas à emoção do olhar em exercício de viagem pela imaginação. Da fixidez da
imagem fotográfica passa para as imagens em ebulição vindas no processo do repensar
(KOURY, 2010).
O repensar, assim, é um processo do depois, como ensina Arendt (1993). É uma
ação que acontece sempre após o reconhecimento pela experiência do sujeito.
Eminentemente social, o tempo da fotografia passa a ser, nessa viagem, o tempo da
imaginação nela recapitulada.
É uma viagem livre, porque absorvida na evocação no presente de imagens que
não são dali, mas estão ali expostas, reveladas aos olhos que as observam. Na liberdade

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da viagem, no arroubo de devaneio que se deixa levar, os processos formadores da


experiência do indivíduo que vê se mesclam também com o imaginário, ou com o jogo
de fantasias subterrâneas da memória.
Realidade e ficção. Fatualidade e idealização. Coisificação e fantasmidade.
Sentimentos de esforço e de pressão que invadem a revelação que a foto
transmite, no ritmo frenético da imaginação. Na viagem o pensamento agride a foto
desnaturalizando-a. Rompe com a naturalidade que a foto representa e busca a
compreensão através dos processos vitais do ciclo humano.
O choque percorre o enquadramento fotográfico. Caminha pelas repetições
recorrentes da imanência da imagem revelada. E, no processo, desvela o olhar e resgata
o eminentemente humano presente no passado que a foto repõe ao olhar de agora.

∗∗∗
A recordação dos fatos conotados através da evocação da imagem e do desvario
que o olhar viajante atravessa nos subterrâneos da memória, se aproxima do delírio de
Kolossós de olhos vazios. Achega-se à tensão daquele que caminha como adivinho
cego, intérprete e intermediário do visível e do invisível, do jogo de vida e morte que a
revelação conduz.
Os caixões de anjo expostos em ordem em um canto qualquer de uma casa
comercial interiorana ou de periferia, revelados em uma foto anônima, são observados
pelo olhar em viagem por espaços de melancolia e tristeza. O processo compreensivo
em sua alucinação ultrapassa a temporalidade eminentemente fotográfica. Afirma o
tempo como invenção humana, como elemento simbólico objetivado e construído no
processo interativo onde se formam e se acumulam as experiências sociais, culturais e
pessoais (de onde o próprio ato fotográfico advém).
A singeleza da foto na sua intemporalidade é recomposta pela dor que margeia,
que tensiona a moldura onde se intercoloca a questão dos limites que a foto precisa. O
fora de cena ganha a cena na viagem do olhar (KOURY, 2002).
A tragédia social dos mortos pela fome e miséria de cada dia, dos que não
chegam a sobreviver, invadem o que a foto revela. O invisível em cena atravessa as
lembranças assaltando a foto com o humano negligenciado. Revela a revelação.

∗∗∗∗
A viagem do olhar ensandecido pelas portas da imaginação, ao recuperar a dor e
com ela preencher a imagem trazida à luz pela foto, ao lidar com os invisíveis, com as
representações de elementos que estão ausentes, por estarem envoltos nas experiências
particulares e sociais do observador, ao transitar livremente entre a cena e o fora de
cena, recupera o sofrimento do rememorar. Repõe no percurso a cisão do pensamento
com o diálogo de si para consigo e, desse modo, enfrenta a dissensão. Enfrentamento
esse necessário para o processo de criação, e para a formação de uma consciência ética.
Pode ensejar, também, outra relação nesse processo compreensivo. Os olhos do
observador em viagem podem encaminhar-se para o lugar em que todo olhar se vê
denegado, - distância entre os limites verificados da castração e do lugar ao lado, campo
da ilusão, do fetiche. Então, como o adivinho da Grécia antiga, à noite tendo tomado
conta dos seus olhos, solicite pela evocação do ausente interrelacionar o visível e o
invisível, provocando a ruptura tênue da natural composição dos dois tempos (ou
mundos): o da fotografia e o dos homens que preenchem com sua dor o campo de fora.

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∗∗∗∗∗
De qualquer lugar em que se estabeleça ou se finde a viagem da imaginação do
observador, o olhar não sai impune. A foto que expõe caixões infantis no comércio
mortuário para a pobreza codifica, através da constância perceptiva imposta pela
imagem revelada, a solidão do homem comum em luta contra a morte física e social de
cada dia.
Recompõe experiências sociais. Vivências que em sua banalidade cruel
naturaliza a fome, a miséria, a mortandade infantil, a pobreza. Recupera os homens
como engendradores de cada experiência social e pessoal, por mais elementar que
pareça.
Reavalia, por fim, que o invisível fotográfico, a sua intemporalidade, embora
possa ditar normas para o olhar que observa, enquadrando suas lembranças, suas
saudades, seus momentos, em processos integrativos de assimilação do ausente, impõe
sempre ao observador as águas turvas do rio da imaginação. Nebulosas nas quais tudo é
possível porque dessacralizado.
Pode-se chegar até a descrever a foto que expõe caixões infantis à venda, como
uma fotografia que compõe uma ilusão a mais. Ilusão esta que ofusca e embaça o olhar
de quem a vê: oferecendo a quimera de que a pobreza no Brasil enterra seus mortos em
caixões.
Aliena do mesmo modo o observador ao fazê-lo acreditar que o comércio
fúnebre é um comércio em expansão entre os homens comuns. Ofuscando, assim, uma
triste realidade: a de que a faixa de pobreza com recursos para enterrar seus mortos nos
padrões ritualísticos aceitos pela ordem civilizatória que circunscreve em redes a cultura
da pobreza, é mínima.
As famílias pobres enterram os seus anjos com um pano qualquer, quando
possuem... No mais, com uma cruz feita com paus achados na estrada e rezas de uma
tristeza alegre pela sorte de não seguir a destinação que outros tantos estão tendo de
suportar (SCHEPER-HUGHES, 1992).
Mas essa já é outra história, ou outro causo ou estórias de solidão e
insuportabilidade entre os excluídos no Brasil.

Ah mi si spezza il cor !
(Mozart, Ária k513)

Referências
ARENDT, H. 1993. Só permanece a língua materna (pp. 123-143). In: A dignidade da
política. Rio de janeiro: Relume-Dumará.
BARTHES, R. 1980. La chambre claire. Paris: Gallimard.
BENJAMIN, W. 1985. Pequena história da fotografia. KOTHE, F. R. (Org.). Walter
Benjamin. São Paulo: Ática.
DELUMEAU, J. 1989. História do medo no Ocidente (1300-1800). São Paulo:
Companhia das Letras.
FREUD, S. 1974. Fetichismo (pp. 179-185). In: Obras completas, v. XXI. Rio de
Janeiro: Imago.
KLEIN, M. 1991. Notas sobre alguns mecanismos esquizóides (pp. 20-43). In: Obras
completas, v. III. Rio de Janeiro: Imago.

Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
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KOURY, M. G. P. 2002. Sobre os silêncios da fotografia. Revista do CCHLA


(UFPB), v. IX, n. 2, pp. 54-66.
KOURY, M. G. P. 2010. A fotografia e o real (pp. 13-23). In: Relações delicadas:
ensaios em fotografia e sociedade. João Pessoa: EdUfpb.
METZ, C. 1989. L’Image comme objet: cinéma, photo, fétiche (168-175). DHOTE, A.
(org.). Cinéma et psychanalyse. Paris: Corlet. Pags. 168-175.
POLLAK, M. 1985. Encadrement et silence: le travail de la mémoire. Penélope, n. 12,
pp. 30-47.
SCHEPER-HUGHES, N. 1992. Death without weeping: the violence of everyday life
in Brazil. Berkley: University of California Press.
SIQUEIRA, R. A. 1992. Do que as águas não cobriram. (Dissertação). João Pessoa:
Mcs/Ufpb – Orientador: Mauro Koury).
VERNANT, J-P. 1990. Figuração do invisível e a categoria psicológica do duplo: o
Kolossós (pp. 205-316). In: Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e
Terra.

Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
VIEIRA, Vanrochris Helbert. Aniversário do
Bharbixas no Mineirão: experiência, futebol
gay, mercado e direito à cidade.
Sociabilidades Urbanas, Revista de
Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, pp. 125-
136, março de 2021, ISSN 2526-4702.
ARTIGO
https://grem-grei.org/numero-atual-socurbs/

Aniversário do Bharbixas no Mineirão: experiência, futebol gay, mercado e


direito à cidade
Bharbixas's anniversary at Mineirão: experience, gay soccer, market and the right
to the city

Vanrochris Helbert Vieira∗

Resumo: O Bharbixas é a primeira equipe de futebol masculino composta apenas por gays
e homens bissexuais em Minas Gerais. Em 2018, o time comemorou seu primeiro
aniversário no Mineirão, principal estádio esportivo do estado. Este artigo apresenta uma
etnografia realizada no evento, a partir do acompanhamento de Ângelo, um jogador gay de
Belo Horizonte. Buscamos refletir a respeito do tipo de experiência possibilitada pelo
evento, o que algumas falas de Ângelo permitem pensar sobre o futebol gay, como o evento
se inseriu numa lógica de mercado e o que essa ocupação do Mineirão por um time gay
aponta sobre a temática do direito à cidade. O evento foi restrito a um público pagante,
numa lógica mais mercadológica do que democrática, mas revela uma grande potência para
reconfigurações de subjetividades e direitos de pessoas LGBTQIAP+. Palavras-chave:
futebol gay, Belo Horizonte, direito à cidade
Abstract: Bharbixas is the first men's soccer team composed exclusively of gays and
bisexual men in Minas Gerais. In 2018, the team celebrated its first anniversary at
Mineirão, the state's premier sports stadium. This article presents an ethnography held at
the event, from the accompaniment of Ângelo, a gay player from Belo Horizonte. We
sought to reflect on the type of experience made possible by the event, how some speeches
from Ângelo allow us to think about gay football, how the event was inserted in market
logic and what this occupation of Mineirão by a gay team points to the theme of the right to
the city. The event was restricted to a paying audience, in a more market-oriented than
democratic logic, but reveals a great power for reconfigurations of subjectivities and rights
of LGBTQIAP+ people. Keywords: gay soccer, Belo Horizonte, right to the city

Introdução
No dia 09 de junho de 2018, um sábado, o time de futebol Bharbixas
comemorou seu aniversário de um ano no estádio Mineirão, em Belo Horizonte. O
Bharbixas é primeira equipe masculina composta exclusivamente por gays e bissexuais
em Minas Gerais, de forma que o evento também demarcou o primeiro ano de
existência do “futebol gay” no estado. A grandiosidade do evento, ocupando a principal
arena do esporte em Minas Gerais, evidencia a rápida ascensão desse novo circuito do
esporte no país.


Doutorando no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade
Federal de Santa Catarina (Ppgich/Ufsc).
126

A partir da dinâmica da etnografia multissituada (MARCUS, 2001), com a


estratégia de seguir biografias, fui ao evento acompanhado de Ângelo – ex-membro do
Bharbixas e membro-fundador de outro time gay, o ManoTauros – a fim de exercer uma
entrada em campo (no sentido metodológico e futebolístico) vinculada à experiência de
um jogador de futebol gay de Belo Horizonte1. Antes de irmos juntos ao estádio, passei
na casa dele para nos encontrarmos, e tive a oportunidade de conversar com ele a
respeito do evento e também do futebol gay de forma mais ampla.
Em comemoração ao seu aniversário, o Bharbixas realizou um jogo contra
membros de diversas equipes de futebol gay brasileiras convidadas, referenciados como
seleção da LiGay (liga brasileira de times gays). Jogadores de diversos outros estados
foram mobilizados, o que fez do aniversário do Bharbixas um evento nacional. Segundo
Ângelo, o Mineirão ofereceu-se para sediar um jogo da equipe depois que ela ganhou a
Primeira Champios LiGay (campeonato nacional de times gays), em 2017. Na época,
Ângelo ainda era membro do Bharbixas. O time, porém, pediu para que o evento fosse
realizado no seu primeiro aniversário, no ano seguinte. Ângelo não jogou, porque houve
um sorteio no ManoTauros para decidir quais membros do time iriam participar do
amistoso. Depois do jogo, o evento também contou com uma festa com diversos shows
no estádio.
Nas seções a seguir, falaremos sobre o tipo de experiência possibilitado pelo
evento, sobre o futebol gay, sobre como o evento se inseriu numa lógica de mercado e
sobre o que ele nos permite pensar sobre o direito de gays aos estádios.

Experiência
O aniversário do Bharbixas no Mineirão representa uma importante ocupação da
cidade, na medida em que ocorreu no principal estádio de futebol da capital mineira,
espaço de destaque e elevado poder simbólico no contexto belorizontino. Entretanto, a
estrutura do Mineirão isola seu interior do restante da cidade, criando uma redoma de
proteção e um mundo paralelo. Que tipo de experiência da cidade é possível em um
evento como esse?
Georg Simmel (2005) e Walter Benjamin (1989) nos apresentam caracterizações
de experiências distintas, se não contrárias, nas grandes cidades: a do blasé e a do
flâneur. Georg Simmel (2005) caracteriza o morador das grandes cidades como alguém
que é constantemente bombardeado por uma diversidade de estímulos. Por não
conseguir dar respostas adequadas a todos eles, o habitante das grandes cidades adquire
um caráter blasé, que faz com ele se volte para seu mundo interior. Belo Horizonte é
uma cidade com 2,5 milhões de habitantes. A população da região metropolitana chega
a 5,9 milhões. Uma das experiências mais características da vida belorizontina é andar
pela Praça Sete, no Centro da cidade, em meio a uma multidão de pessoas que vêm de
todos os lados (o local é cruzamento de quatro vias, sendo duas delas avenidas que
cortam a cidade do Centro até uma de suas extremidades). A Praça é um espaço de
múltiplos estímulos. São vendedores ambulantes, pedestres de todos os estilos, carros,
ônibus. Mas quem passa pelo local diariamente flui por ali como se quase nada estivesse
acontecendo, o que representa bem que os belorizontinos apresentam o que Georg
Simmel (2005) aponta como o caráter blasé.
Walter Benjamin (1989), por outro lado, traz a figura baudelairiana do flâneur.
Esse curioso sujeito vivencia a grande cidade de forma diferente de sua lógica de
produtividade. O flâneur se permite ser afetado pelos estímulos da grande cidade,

1
Os nomes de jogadores presentes no texto são pseudônimos utilizados com o intuito de resguardar suas
identidades.

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estranhando-a, observando-a a seu próprio tempo. Ele deixa-se vagar devagar e divagar.
O flâneur lembra a figura do antropólogo: alguém que para, a fim de prestar atenção nos
mínimos detalhes e nas coisas aparentemente sem importância. No contexto protegido e
apartado do estádio, por se voltar para fora da cidade (mesmo estando dentro dela), os
sujeitos presentes no aniversário do Bharbixas estavam protegidos dos demais impulsos
da capital mineira. Ademais, o evento em questão configurou-se como um grande
acontecimento, algo que, portanto, convoca a atenção.
O número de pessoas também foi mais restrito nessa experiência, e as pessoas
pertenciam a uma mesma comunidade. Entretanto, ainda assim, o tempo era pouco para
interagir com todas elas, e o contato se dava com todas ao mesmo tempo. Walter
Benjamin (1989) e Georg Simmel (2005) apontam para a centralidade do tema da
multidão para o entendimento das grandes cidades. Georg Simmel (2005) argumenta
que, se o habitante da cidade grande buscasse ao menos cumprimentar todas as pessoas
que estão ao seu redor durante o dia, ele sequer conseguiria. Esse fator combinado à
desconfiança que as pessoas têm umas em relação às outras nesse ambiente faz com
que, como nos lembra o autor, muitas vezes sequer conheçamos nossos vizinhos. A
pequena multidão que havia no estádio era segura, controlada, de pessoas de uma
mesma comunidade, o que diminuía a insegurança do convívio.
De fato, o aniversário do Bharbixas foi um momento de suspensão. O universo
que existia ali era controlado não só pela presença de um público quase exclusivamente
LGBTQIAP+2, mas também pelo acesso restrito pela compra de ingressos e ainda pela
segurança, tendo em vista que todos haviam sido revistados na entrada. Ali, aqueles
sujeitos podiam ser eles mesmos de uma maneira mais intensa do que a que acontece do
lado de fora. O fato de estarem entregues ao momento, sem a correria cotidiana,
permitiu uma sociabilidade mais calma. Naquele espaço, além de olhar para seu redor
com mais tranquilidade, os sujeitos podiam também olhar com mais calma para si
mesmos, à medida que viam a si mesmos nos outros.
Talvez resida aí um dos traços mais importantes de uma sociabilidade suspensa
e segura da cidade por meio não apenas de um único indivíduo, mas de um grupo
historicamente marginalizado. Os que foram apenas para os shows após o jogo, talvez
tenham experienciado algo similar à vivência das baladas, mas os que foram para o
jogo, puderam ver-se e ver aos outros como gays que gostam de futebol e que tem o
direito de ocuparem aquele espaço.

Futebol Gay
Para Gustavo Bandeira e Fernando Seffner (2013), os estádios de futebol – como
o Mineirão – são espaços de sociabilidade muito ligados à construção das
masculinidades em nosso país:
O estádio de futebol é um contexto cultural específico que
institucionaliza práticas, ensina, produz e representa masculinidades.
Os modos de construção das masculinidades no Brasil guardam íntima
conexão com o futebol (BANDEIRA; SEFFNER, 2013, p. 247).
Os autores ressaltam que a masculinidade ligada a esse esporte é machista e
homofóbica, havendo uma naturalização da homofobia, não sendo ela vista como
violenta nesses ambientes.

2
Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, queers, intersexuais, assexuais,
pansexuais e demais identidades e expressões não cisheteronormativas.

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Gustavo Bandeira e Fernando Seffner (2013) explicam que a afirmação da


masculinidade liga-se à rivalidade no futebol, de modo que a tensão entre identidade e
diferença gera um par binário em que nós (a torcida de um time) somos machos e os
outros (a torcida adversária) são “viados”. Cânticos são entoados pela torcida se
referindo aos torcedores adversários em situação de passividade no ato sexual com
outros homens. Como exemplo, os autores citam um cântico que as torcidas do Grêmio
e do Internacional, times rivais do Rio Grande do Sul, cantam uma para a outra: Atirei o
pau no Inter (Grêmio) / E mandei tomar no cu / Macacada (Gremista) filha da puta /
Chupa rola e dá o cu / Ei, Inter (Grêmio), vai tomar no cu / Olê, Grêmio (Inter), olê
Grêmio (Inter). Para os autores, esses “insultos” ligam-se à negação do espaço para
gays no futebol, tanto nos times, quanto na torcida. Especialmente para gays passivos
ou afeminados, já que, na hierarquia das masculinidades, esses ocupam os lugares mais
subalternos.
No dia do aniversário do Bharbixas, Ângelo me contou que ele e seu
companheiro Edson desenvolvem um trabalho de conscientização com os demais
membros do time gay do quão são membros, o ManoTauros. Os dois buscam
conscientizar os demais sobre o uso de termos e expressões consideradas homofóbicas
ou machistas. O depoimento de Ângelo mostra o enraizamento da cultura da
LGBTQIAPfobia nesse esporte, que é reproduzida de maneira acrítica até mesmo por
jogadores gays. Ângelo apontou os termos “marias” e “frangas”, usados pelos
torcedores dos times mineiros para provocar os rivais – os cruzeirenses sendo chamados
pelo primeiro apelido, e os atleticanos pelo segundo. Apontou também o uso da
expressão “joga igual homem” e contou de uma vez em que um dos membros do
ManoTauros disse para outro: “Não tá aguentando, vai fazer balé!”. Ângelo me mostrou
um áudio de um dos jogadores do time defendendo que o uso dessas palavras e
expressões faz parte da “cultura do futebol” e não têm nada a ver com machismo ou
homofobia. Ele riu contando que esse jogador ainda tentou se defender perguntando se a
provocação “franga” seria, então, preconceito contra as frangas (animais). Ângelo falou
também das provocações com pó de arroz e de quando a torcida grita “bicha” para o
goleiro na hora do tiro de meta. Mas disse que isso vem mudando aos poucos, e que,
tirando a torcida organizada, quase ninguém grita mais isso, e grande parte das pessoas
ficam constrangidas quando isso acontece.
Segundo Gustavo Bandeira e Fernando Seffner (2013), um movimento de defesa
do respeito à diversidade sexual por parte de torcedores nas mídias sociais surgiu com a
criação, em 2013, da fanpage Galo Queer, por uma torcedora do Atlético Mineiro.
Flávio Amaral e Victor Bueno (2018), por sua vez, destacam a criação de diversos times
de futebol gay no país a partir de 2017, ano em que também foi criada a LiGay, liga
nacional de times de futebol gay. Nesse mesmo ano, ocorreram as primeiras
competições nacionais: a Taça Hornet – desenvolvida pelo aplicativo Hornet, de
encontros voltado para o público gay – e a Champions LiGay, campeonato oficial
promovido pela liga supracitada. Antes de 2017, já existiam times de futebol gay no
país, como o Magia, do Rio Grande do Sul, fundado em 2005. Mas em 2017, segundo
Flávio Amaral e Victor Bueno (2018), a formação do BeesCats, primeiro time gay do
Rio de Janeiro, popularizou a modalidade, impulsionando a criação de times pelas
demais capitais do centro-sul. Flávio Amaral e Victor Bueno (2018) destacam o quanto
o surgimento desses times e competições chamou a atenção das mídias.
Foi também em 2017 que surgiu o Bharbixas, em Belo Horizonte. O time foi
vencedor da primeira Champios LiGay, em 2017. Flávio Amaral e Victor Bueno (2018)
fazem uma análise da cobertura do evento pelo portal do Globo Esporte, destacando
como a matéria que traçou o perfil da equipe campeã frisa sua militância e sua

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performatividade de gênero, chamando o time de “equipe afeminada”. A matéria


destaca como os gays afeminados enfrentam preconceito dentro da própria comunidade
LGBTQIAP+. Flávio Amaral e Victor Bueno (2018) afirmam que, na matéria, um dos
jogadores do Bharbixas “retrata a superação em seu depoimento afirmando que, com o
título, a equipe provara que afeminados também sabem jogar” (AMARAL; BUENO,
2018, p. 261).
Segundo Flávio Amaral e Victor Bueno (2018), diversos jogadores de futebol
gay relatam terem sofrido bullying na escola durante os jogos de futebol por sua
orientação sexual ou expressão de gênero. As trajetórias compartilhadas incluem serem
escolhidos por último, ficarem deslocados e criarem um bloqueio pelo esporte. Por
outro lado, os autores sugerem que o futebol gay tem ajudado alguns jogadores a
aceitarem melhor sua sexualidade.
Mas Ângelo tem uma trajetória diferente das retratadas por Flávio Amaral e
Victor Bueno (2018). Ele me afirmou que todos sempre souberam que ele é gay, e
nunca tiveram preconceito contra ele. Ângelo disse que se questiona se o preconceito é
pelo jogador ser afeminado ou por ser “ruim de bola”. Ele citou um jogador do
Bharbixas que, para ele, é afeminado, “bom de bola” e é respeitado. Mas se lembrou de
um jogador de São Paulo, que não é afeminado e teria dito em uma entrevista que ele
assistiu que já sofreu preconceito. Depois de refletir sobre o que ele mesmo havia dito,
Ângelo reformulou que acha que o preconceito está dividido em torno dos dois fatores:
a expressão de gênero3 do jogador e se ele joga bem ou não. Ele disse que acredita não
ter sofrido preconceito tanto por ser considerado masculino, quanto por jogar bem, e
acha que, se ele não jogasse bem, abriria mais espaço para preconceito. Mas ele disse
achar ainda que, quando o jogador é mais afeminado, ele é mais respeitado se jogar
bem. Ângelo concluiu que, para ele, portanto, “nunca é uma coisa só”.
Ângelo me contou de várias situações que considera engraçadas de quando
jogou em “times héteros”. Uma vez, estavam brincando de “piruzinho”, e um jogador
disse que seria injusto, porque nesse jogo Ângelo levaria vantagem. Em outra ocasião,
ele não estava concordando que determinado lance era escanteio, e pediram para ele
“assumir” (que era escanteio). Então, ele brincou: “Eu já assumi há doze anos!”.
Segundo ele, todos sempre riram das brincadeiras dele, e ele também das brincadeiras
dos outros. Ele disse que tinha medo de os colegas se comportarem de maneira diferente
no vestiário depois que ele se assumisse, mas, segundo ele, todos agiam com
naturalidade e brincavam com ele. Ângelo conta que alguns esbarravam de propósito o
“pinto” na parte de trás da cabeça dele, quando ele estava sentado no vestiário, para
provocá-lo, em tom de brincadeira. Todos ficavam pelados na frente dele sem reservas.
Já nos times gays, segundo ele, as pessoas têm mais reservas e não ficam peladas uma
na frente da outra.
Ele contou também que o ManoTauros ganhou um jogo contra um “time
hétero”, que ficou “puto” com a derrota. Algumas pessoas acharam que tinha sido por
preconceito de perder para um time gay, mas Ângelo acha que isso é ver preconceito
onde não tem, e que o motivo de terem ficado com raiva foi simplesmente por terem
perdido. Ele contou rindo que o time marcou uma revanche, e que as namoradas foram
assistir, mas eles perderam novamente por um placar ainda mais alto.
Ângelo disse que tem muito “viado com filho” no ManoTauros, e que são os
“mais afeminados”. Ele defendeu que não dá para definir gays, da mesma maneira que
não dá para definir héteros, porque são muito diversos, e não tem como padronizar. Mas

3
Ângelo é historiador, e conhece bem termos ligados aos estudos de gênero, inclusive fazendo referência
a Judith Butler em algumas de suas falas.

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Ângelo diz que o padrão cobrado dos membros do Bharbixas é serem “mega viados”.
Ele acredita que os membros fazem questão disso, porém, para ele, algumas coisas mais
reforçam os preconceitos do que ajudam a combatê-los, como as poses para fotos
“virando a bunda” para a câmera, que ele considera vulgar. Ângelo afirmou que existem
normas que policiam como os gays devem ser. Ele diz que não sabia quem era RuPaul4
quando estava no Bharbixas, e achavam que ele tinha que de saber por ser gay. Uma
vez, fizeram um “teste” para ver se ele era gay, perguntando sobre Kim Kardashian5,
que ele também não conhecia. Ele disse que também foge desse padrão esperado por
não gostar de Anitta6. Uma vez pediu que fossem tocadas outros tipos de música
durante uma competição, ainda que fosse uma do Ramones para cada dez, por exemplo,
e que o restante continuasse sendo no estilo das da Anitta. Segundo ele, disseram que
não, porque aquele era um lugar gay.
Flávio Amaral e Victor Bueno (2018) destacam que o clima das partidas de
futebol gay é ao mesmo tempo de competição, de festa e de luta contra o preconceito.
Eles explicam que os treinos costumam acontecer ao som de DJs, e que, nas
competições, os jogadores se dividem entre jogar bola e dar pinta, ou seja, performar
propositalmente uma expressão de gênero que enfatiza uma sexualidade queer. Para
Ângelo, no evento de aniversário dos Bharbixas, no Mineirão, o futebol era a última
preocupação. Ele contou que no flyer da Taça Hornet, a festa era muito mais destacada
do que o próprio campeonato. Segundo ele, nessa competição, por ter um caráter mais
lúdico, queriam colocar lip-sync7 no lugar de pênaltis, no desempate. Ele teve que
pesquisar no Google para entender o que era isso. Ângelo disse que, para ele, a maior
briga não é com os héteros, mas entre eles mesmos: “Provar pra gente mesmo que
futebol também é pra gay”. Com isso, ele apresenta uma visão mais estrita do futebol,
vendo-o essencialmente como um esporte competitivo, antes de qualquer outra coisa.
Segundo Ângelo, os membros do ManoTauros são muito torcedores dos times e
campeonatos profissionais, e os do Bharbixas não são. Ele acredita que, no Bharbixas,
os únicos que dão foco tanto no futebol quanto no “close” – o que Flávio Amaral e
Victor Bueno (2018) chamam de “dar pinta”– são o fundador do time e um membro que
já foi jogador profissional. Ângelo acredita que, na Primeira Champion LiGay
preferiram deixá-lo de fora em alguns jogos para colocar um jogador que tivesse mais o
perfil do “close”. Ele disse que identifica duas linhas de times, que por enquanto
conversam bem uma com as outra, mas que tenderiam a se distanciar: a dos times que
dão foco na festa e os que dão foco no futebol. Mas ele explicou que os times que dão
“close” também podem ser competitivos, como é o caso do Bharbixas. Portanto, a
oposição seria entre os que entendem que é só futebol e os que entendem que é “outra
coisa”.

Mercado

4
Drag queen estadunidense conhecida por apresentar o reality show RuPaul’s Drag Race, uma
competição para escolher a melhor drag entre as concorrentes.
5
Socialite estadunidense conhecida por estrelar um reality show que acompanha o dia a dia de sua
família, o Keeping Up with the Kardashians.
6
Ou pelo menos fugia ao padrão por esse motivo naquele momento, pois Anitta passou a ser desafeto de
parte do público gay a partir das eleições presidenciais de 2017, por seu baixo engajamento nas
campanhas contra o candidato Jair Bolsonaro, cobrado dela por essa parcela do seu público.
7
Mover os lábios enquanto uma música está tocando, fingindo que é quem está cantando. É uma parte
central da cultura drag. São as batalhas de lip-sync quem decidem as eliminações em RuPaul’s Drag
Race.

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Quem quisesse participar do aniversário de um ano do Bharbixas no Mineirão,


precisava adquirir um ingresso, que já estava sendo vendido antecipadamente pela
Internet. Apenas um setor da arquibancada estava fechado para o evento, mas ainda
assim aparentava estar bastante vazio, o que mostra que a ocupação do Mineirão seguiu
uma lógica mais mercadológica do que democrática, não sendo para todos e quaisquer
gays. Mais para o final do jogo, perguntei para Ângelo e um colega dele quantas
pessoas eles achavam que estavam lá. Eles chutaram em torno de quinhentas pessoas,
mas eu diria que não passava de quatrocentas pessoas na arquibancada, talvez chegando
a quinhentas contando os jogadores e as pessoas que estavam nos bastidores naquele
momento. No entanto, mais para o início dos shows, foi chegando mais gente, de forma
que o espaço em volta do palco foi enchendo cada vez mais, evidenciando um interesse
de uma parcela do público apenas nessa parte do evento.
Havia dois telões, um de cada lado do estádio, passando a marca do Bharbixas e
dos patrocinadores. Nos bastidores, além de locais para comprar cerveja, estavam sendo
vendidas as camisas de uniforme do time em um stand. O Bharbixas estreou um
uniforme novo no evento e mandou produzir um uniforme específico para os visitantes.
Estavam à venda tanto a camisa do time que havia sido lançada naquele dia, quanto o
uniforme anterior.
Quando o primeiro show já havia começado, os membros do Bharbixas ainda
não haviam aparecido na festa. Segundo Ângelo, eles estavam tentando resolver um
problema relacionado ao show de Aretuza Lovi, uma das atrações mais esperadas da
noite, ao lado de Mulher Pepita8. Supostamente, o show de Aretuza teria sido cancelado
porque o time não teria conseguido verba suficiente para pagar o cachê da cantora, mas
nas stories do Instagram, ela afirmou que não havia podido ir ao evento por causa de um
problema no transporte aéreo. Qualquer que tenha sido o motivo houve uma
necessidade de gerenciamento de crise naquele momento por parte dos membros do
time que organizavam o evento, uma vez que um dos shows mais importantes da noite
estava sendo cancelado.
Georg Simmel (2005) aponta algo que vai ao encontro das lógicas que
perpassaram o aniversário do Bharbixas no Mineirão. O autor defende que, nas grandes
cidades, as relações se encobrem de um caráter mercantil: “as grandes cidades sempre
foram o lugar da economia monetária, porque a multiplicidade e concentração da troca
econômica dão ao meio de troca uma importância que não existiria na escassez da troca
no campo” (SIMMEL, 2005, p. 578). Assim, as pessoas são convertidas, através de uma
abstração, em quantias, e o “quem” torna-se “quanto”. Nesse processo, as relações
também são perpassadas pelas lógicas de oferta e procura, de modo que “aquele que
oferece precisa tratar de criar necessidades sempre novas naqueles que corteja”
(SIMMEL, 2005, p. 587).
De forma fortuita para pensar nosso objeto de pesquisa, já que o jogo foi
procedido de shows, Beatriz Sarlo (1994) faz uma relação entre o amor pelo futebol e
pelas estrelas pop, apontando o caráter supostamente democrático dessas paixões
compartilhado por pessoas de todas as classes, mas evidenciando como essa máscara
encobre as diferenças.
Se é verdade, como já foi dito, que se ama uma estrela pop com o
mesmo amor com que se segue um time de futebol, o caráter
transclasse desses afetos tranquiliza a consciência de seus portadores,
embora eles mesmos, então, diferenciem cuidadosamente e com certo

8
Aretuza Lovi, que é drag queen, e Mulher Pepita, que é travesti, são duas cantoras com destaque
nacional no circuito LGBTQIAP+.

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prazer esnobe os negros dos loiros, segundo a lógica que também os


classifica nas portas das discotecas. O impulso igualitário que às vezes
se acredita encontrar na cultura dos jovens tem seus limites nos
preconceitos sociais, raciais, sexuais e morais. (SARLO, 1994, p. 31,
grifo nosso, tradução nossa)
Beatriz Sarlo (1994) acredita que, atualmente, as identidades se constroem no
mercado, tornando-se inevitável que esse espaço passe a ser aquele no qual é exercida a
cidadania. Isso, porém, limita a vida cidadã e as possibilidades de construções
identitárias aos que têm condições financeiras de exercê-las no mercado, excluindo
aqueles que não têm dinheiro para se tornarem consumidores.
Analisando os Gay Games, competições esportivas globais voltadas para o
público gay, Wagner Camargo e Carmen Rial (2009) apontam uma inserção desses
eventos na lógica capitalista, com a cobrança de taxas para participação. Os autores
apontam que o público majoritário dos Gay Games é de “brancos, de classes média/alta,
solteiros com alta escolaridade” (CAMARGO; RIAL, 2009, p. 89). Os autores explicam
que esse público gay privilegiado configura o que tem sido chamado de “pink market”,
ou mercado gay.

Direito à cidade
Apesar de desenvolver sua discussão sobre o direito à cidade a partir de uma
ênfase nas questões de classe, Henry Lefebvre (2006) também aborda em seus
argumentos assimetrias de outras naturezas no direito à vida urbana. O autor nos leva a
pensar sobre como o acesso e o uso dos espaços, serviços e potencialidades da cidade é
restrito a alguns e excluem muitos outros. Ele ressalta que o direito à cidade inclui não
apenas as questões de subsistência básica, mas todos os âmbitos de necessidade
humana, incluindo lazer e diversão. De forma pertinente ao nosso objeto de pesquisa, o
autor fala sobre sexualidade e esporte nesse processo: “através dessas necessidades
especificadas vive e sobrevive um desejo fundamental, do qual o jogo, a sexualidade, os
atos corporais tais como o esporte, a atividade criadora, a arte e o conhecimento são
manifestações” (LEFEBVRE, 2006, p. 104, grifo do autor).
A visão de Henry Lefebvre (2006) é utópica. Ele incita a discussão sobre algo
que ainda não existe, sobre uma potência que, para ser concretizada, precisa que
caminhos sejam inventados. Quem, para o autor, tem essa capacidade em potencial são
os grupos oprimidos.
Apenas grupos, classes ou frações de classes sociais capazes de
iniciativas revolucionárias podem se encarregar das, e levar até a sua
plena realização, soluções para os problemas urbanos; com essas
forças sociais e políticas, a cidade renovada se tornará a obra. Trata-se
inicialmente de desfazer as estratégias e as ideologias dominantes na
sociedade atual. (LEFEBVRE, 2006, p. 111)
No dia do evento de aniversário do Bharbixas, vários elementos apontam para
uma apropriação específica, criativa e transformadora do Mineirão, que se destacava
justamente pelo seu caráter de exceção, de fuga à regra. Foram colocados, na entrada do
estádio, balões nas cores do arco-íris. Mais tarde, no período noturno, o estádio também
foi iluminado com essas cores. Havia um palco voltado para a arquibancada, na lateral
do campo, tocando músicas pop e funk durante o jogo comemorativo, com sucessos de
Anitta, Pabllo Vittar, Mc Loma, Lady Gaga, Beyoncé, etc. Boa parte dos que estavam
presentes durante o jogo estavam envolvidos na torcida e gritavam contra e a favor dos
lances. Um dos rapazes que estava próximo de mim disse para os colegas que estavam

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torcendo: “Aproveita que é hora de vocês gritarem no Mineirão igual bicha!”. Algumas
pessoas dançavam e cantavam as músicas que estavam tocando enquanto o jogo
acontecia. Durante uma falta, com o jogo parado, o goleiro também começou a dançar.
No intervalo do jogo, houve a apresentação de um grupo de cheerleaders. Alguns
rapazes usavam uniformes que me lembraram o das Cheerios, da série Glee9. A própria
presença de líderes de torcidas aponta um mashup de referências do futebol gay com a
cultura pop. Circulava pela arquibancada uma drag queen que acompanha o Bharbixas
em seus jogos. Um dos membros do ManoTauros que estava na plateia me disse que
aquilo era mais do que futebol, que era uma questão social.
Alguns membros do ManoTauros que estavam perto de mim discutiam a
respeito de um dos jogadores do Bharbixas, sobre ele estar usando ou não cueca. A
maioria achava que não, mas um deles defendia que o jogador estava usando uma cueca
pequena, “fio dental”, e tinha “a bunda grande mesmo”. O número de jogadores que
aparentavam ter tipo físico malhado e corpo construído esteticamente em academia era
expressivo (pareceu-me maior do que o habitual nos times profissionais). Muitos dos
jogadores do Bharbixas usavam shorts curtos. Os rapazes próximos a mim comentavam
sobre quais jogadores eram “gostosos”. Quando ocorreu uma falta, e um jogador ficou
caído, alguém gritou: “Eu faço massagem!”. Essa relação entre sexualidade e esporte
remonta às necessidades apontadas por Henry Lefebvre (2006), aqui se apresentando
como uma dupla negação que ganha potência nesse momento e nesse espaço
privilegiados do evento10.
O segundo tempo terminou empatado em 1 a 1, e houve prorrogação, com um
gol a favor do Bharbixas desempatando o placar. Depois do jogo, a arquibancada foi
aberta para que os torcedores descessem para o entorno do palco, onde o gramado era
sintético. Ali havia também um local para compra de cervejas. O enquadramento do
evento passou a ser de festa, show ou balada, e a maioria dançava e cantava as músicas
que estavam tocando. Havia casais se beijando e andado de mãos dadas. Beatriz Sarlo
(1994) acredita que as festas noturnas são uma forma de carnavalização da vi da das
juventudes urbanas. Nesse espaço, nas madrugadas, os jovens vestem-se para adentrar
em um mundo de festa suspenso em relação à realidade cotidiana. Em relação ao nosso
objeto, podemos pensar a festa como refúgio, escape, lugar protegido para poder
vivenciar a sexualidade reprimida.

Conclusão
Quando os shows começaram, Ângelo não estava muito interessado nas músicas.
Como ele havia deixado claro nas conversas que tivemos antes de ir para o Mineirão,
aquele não fazia o perfil dele. Portanto, ele decidiu ir embora quando o primeiro show
ao vivo, de um membro do bloco carnavalesco belorizontino Alô Abacaxi, estava
começando. No momento em que deixávamos a lateral do campo, o cantor, que tem
traços fenotípicos negros, entoava do palco: “As gay, as bi, as trans, as sapatão, tá tudo
com as preta ocupando o Mineirão”. Também uma conhecida militante LGBTQIAP+
negra estava no palco no momento. O grito mostra que os próprios sujeitos ali presentes
tinham consciência da relevância política e simbólica do que estava acontecendo. De
fato, apesar da lógica mercadológica que tornou aquele momento acessível apenas a um
grupo privilegiado, o evento foi um marco na aquisição de espaço de pessoas

9
Glee é uma série televisiva estadunidense que trata de bullying e autoaceitação na adolescência. Parte
dos personagens pertence a um grupo de líderes de torcida, as Cheerios.
10
Apesar de que poderíamos discutir o quanto ela traz, nessa configuração, a cultura masculina do abuso
também para contatos homoafetivos.

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LGBTQIAP+ nesse esporte tão importante para o país. É interessante também observar
que foi o próprio Mineirão quem se ofereceu para isso, como contou Ângelo.
A consciência da importância daquele movimento também se tornou clara
quando conheci Malta, membro do BeesCats (Rio de Janeiro), e um dos idealizadores e
coordenadores da LiGay. Conversando com Ângelo, ele disse que iria tentar realizar um
evento como aquele no Maracanã ou no Engenhão, levando o aniversário do Bharbixas
no Mineirão como case para apresentar a proposta. Ele disse que o governo Crivella
dava apoio a seu time. Disse também que o evento daquele dia havia sido muito
importante para a integração dos times do país, porque os “cabeças” dos times estavam
lá e iriam repassar a experiência para os demais. Malta disse que o BeesCats iria para
Paris, para o Gay Games, e que estava planejando uma competição entre uma seleção
gay brasileira e uma argentina, chamada Taça Hermanito.
Em um momento de tantas incertezas em relação aos avanços políticos que têm
sido alcançados depois de muita luta por parte das minorias no Brasil, o futebol gay tem
se firmado no país e se mostrado uma fonte de luta. Para Wagner Camargo e Carmen
Rial (2009) “o esporte é mais uma dentre as manifestações políticas da comunidade
LGBT” (CAMARGO; RIAL, 2009, p. 81). Assim, fica evidente a importância
simbólica do evento e percebe-se a potencialidade que o futebol gay tem para abrir
novas possibilidades para a comunidade LGBTQIAP+ no país.

O evento em imagens
Nesta seção, trazemos os registros fotográficos realizados no evento, bem como
divulgados posteriormente pelos times nas mídias sociais.

Figura 1: Entrada do Mineirão no dia do evento. Fonte: Figura 2: Jogo acontecendo por trás do palco. Fonte: Produzida
produzida pelo autor pelo autor

Figura 3: Torcida. Fonte: Produzida pelo autor Figura 4: Marca do Bharbixas no Mineirão. Fonte: Produzida
pelo autor

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Figura 5: A torcida discutia sobre um dos jogadores está ou Figura 6: Um dos lances da partida. Fonte: Produzida pelo autor
não usando cueca. Fonte: Produzida pelo autor

Figura 7: Comemoração após o final do jogo. Fonte: Figura 8: Ativista LGBTQIAP+ negra de Belo Horizonte sobre o
Produzida pelo autor palco dos shows pós-evento. Fonte: Produzida pelo autor

Figura 9: Mineirão iluminado com as cores da bandeira


LGBT+. Fonte: Instagram/Ligay Figura 10: Equipe do Bharbixas no Mineirão. Fonte:
Facebook/Bharbixas

Referências
AMARAL, Flávio; BUENO, Victor Pimenta. 2018. Midiatizando performances da
representatividade: a abordagem do futebol gay pelo GloboEsporte.com. (pp. 253-266).
In: Anais do VII Seminário Internacional de Pesquisas em Mídia e Cotidiano:
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Recebido: 28.10.2020
Aceito: 30.11.2020

Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
CAVALCANTI, Lina Luz; BARBALHO,
Alexandre. Cultura alimentar como objeto das
políticas culturais: o caso brasileiro (2003-
2016). Sociabilidades Urbanas, Revista de
Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, pp. 137-
146, março de 2021, ISSN 2526-4702.
ARTIGO
https://grem-grei.org/numero-atual-socurbs/

Cultura alimentar como objeto das políticas culturais: o caso brasileiro


(2003-2016)
Food culture as the object of cultural policies: the Brazilian case (2003-2016)

Lina Luz Cavalcanti∗


Alexandre Barbalho∗∗

Resumo: O artigo discute o momento no qual a cultura alimentar tornou-se objeto da


política pública de cultura durante os governos Lula e Dilma (2003-2016), tendo como foco
central a III Conferência Nacional de Cultura. O pressuposto é de que isso foi possível pelo
conceito amplo de cultura operado pelo Ministério da Cultura no período em tela, o que
levou o órgão a incluir em seu campo de atuação outras agendas, agentes e repertórios.
Palavras-chave: cultura alimentar, política cultural, Brasil
Abstract: The article discusses the moment when food culture became the object of public
culture policy during the Lula and Dilma governments (2003-2016), focusing on the III
National Conference on Culture. The presupposition is that this was possible due to the
broad concept of culture operated by the Ministry of Culture in the period in question,
which led the agency to include other agendas, agents and repertoires in its field of action.
Keywords: food culture, cultural policy, Brazil

Sentar-se à mesa para comer e beber, no espaço privado ou público, no campo


ou na cidade, é, desde tempos imemoriais, uma prática que favorece a sociabilidade,
como ilustram inúmeras narrativas que nos chegam desde a antiguidade e dentre as
quais O banquete de Platão é somente a referência mais óbvia. Afinal, quem não
vivenciou esta “forma lúdica” (SIMMEL, 1983) de estar com o(s) outro(s) que é
compartilhar uma refeição?
Como situa Henrique Carneiro, “comer não é um ato solitário ou autônomo do
ser humano, ao contrário,é a origem da socialização” (CARNEIRO, 2005, p. 71) e
sempre esteve revestido de conteúdos simbólicos cujos sentidos podem ser, inclusive,
políticos. Como sugere Santos (2005), ao focar a comida como manifestação cultural,
damos atenção à crescente busca pela história da “mesa”, remanejando-a de cozinhas e
salões dos restaurantes e casas, e tornando-a objeto de estudo e das políticas culturais.


Mestra em Sociologia pelo PPGS/UECE. Especialista em Gestão Cultural pela FUNDAJ/MinC/UFBA.
Graduada em História pela UFC. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3996-9989. E-Mail:
linaluz0610@gmail.com.
∗∗
Professor dos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e em Políticas Públicas da Universidade
Estadual do Ceará e em Comunicação da UFC. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4612-6162. E-Mail:
alexandrealmeidabarbalho@gmail.com.
138

Tomando essas formulações como ponto de partida, o que se discute neste artigo
é o momento no qual a “gastronomia” tornou-se objeto da política pública, mais
especificamente da política cultural, durante os governos Lula e Dilma1.
Nosso pressuposto é de que isso foi possível pelo conceito amplo de cultura
operado pelo Ministério da Cultura (MinC) no período em tela, o que levou o órgão a
incluir em seu campo de atuação outras agendas, agentes e repertórios que não eram
vistos de forma costumeira como “culturais”. Ou seja, a “gastronomia”, ou melhor, a
“cultura alimentar”2 passou por um processo de culturalização operacionalizado pelo
Estado, o que pode ser visto em outros setores, como, por exemplo, com o movimento
LGBTQIA+ (BARBALHO; MUNIZ JÚNIOR, 2020).
O artigo estrutura-se em duas partes seguidas das considerações finais. Na
primeira, apresentamos como a cultura alimentar foi afetada pela globalização e tornou-
se, nesse contexto, alvo de políticas públicas, pegando o caso francês como referência.
Na sequência, discutimos como se deu no Brasil a incorporação dessa agenda nas
políticas culturais em âmbito federal, tendo como foco a III Conferência Nacional de
Cultura.

Cultura alimentar: entre a globalização e a política cultural


O Século XX, mais especificamente a partir de 1950, trouxe grandes mudanças,
numa escala global, à sociedade contemporânea. Dentre elas, como assinala Hobsbawn
(2008), pode-se mencionar a intensificação da urbanização com o aumento expressivo
das grandes metrópoles e da densidade populacional e o progressivo esvaziamento do
campo. Consequentemente, as primeiras crises de abastecimento alimentar começaram a
se tornar uma preocupação política cuja solução encontrada pelos grandes produtores
foi a “Revolução Verde”. Objetivando basicamente o aumento expressivo da produção
rural e lidando com a pouca mão de obra disponível no campo, empregou as tecnologias
disponíveis, à época, para maximizar a capacidade produtiva e minimizar ao máximo as
perdas. Viu-se, então, a mecanização do campo, o uso em larga escala de fertilizantes,
pesticidas, insumos industriais e a incorporação das biotecnologias na seleção de
sementes e de linhagens mais produtivas.
Por outro lado, em contrapartida à ampla variedade de comeres que se verificava
ao redor do globo, impôs-se a lógica da massificação do consumo, de modo que a
diversidade de culturas alimentares foi aos poucos cedendo espaço para o que, a partir
de Renato Ortiz, podemos denominar de “cultura alimentar internacional-popular”. Isto
significa uma cultura alimentar “cujo fulcro e ó mercado consumidor” e que se projeta

1
O que se apresenta é parte de uma pesquisa sobre as ações de reconhecimento da cultura alimentar como
objeto da política cultural promovida pelo MinC no período de 2003 a 2016, em especial do universo que
permeia a discussão do patrimônio histórico, cultural e artístico. Como sugere Fonseca (2003), por meio
da reestruturação ou reformulação do conceito de patrimônio e da incorporação do patrimônio imaterial
no Brasil, os temas da culinária e da cozinha passaram a ganhar um novo estatuto. O objeto da referida
pesquisa foi as políticas de registro, validação e reconhecimento do Ofício das Baianas de Acarajé como
patrimônio cultural de natureza imaterial. A esse respeito ver CAVALCANTE (2020).
2
Embora a nossa compreensão de cultura alimentar seja sinônima do que Brillat-Savarin (1995) trata por
gastronomia, ou seja, “o conhecimento fundamental de tudo o que se refere ao homem na medida em que
se alimenta”, sob uma perspectiva política de afirmação de seu papel cultural e social, assumiremos o
primeiro termo. Tal escolha se dá por conta do caráter elitista da gastronomia, cuja origem burguesa
dificultou, por muito tempo, as possibilidades outras de redesenhar o universo sociocultural e
antropológico dos alimentos e de seus fazedores. Dessa forma, “cultura alimentar” é aqui vista para além
de comer e beber; convoca-nos a sabermos quem produz aquele alimento, o que comemos, onde
comemos, como e com quem e quais os sentidos atribuídos a cada uma dessas etapas.

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para além das fronteiras nacionais caracterizando “uma sociedade global de consumo,
modo dominante da modernidade-mundo” (ORTIZ, 1998, p. 111).
É verdade que mudanças na alimentação ao longo da história não são uma
novidade. Como situam Contreras e Gracia verificam-se, diacronicamente, muitas
transformações advindas de inúmeros fatores como incorporações tecnológicas,
descobertas de novas fontes alimentícias ou de ingredientes, pragas agrícolas etc. No
entanto, com a globalização, o que se observa é a intensificação de tecnologias
agroindustriais junto às “estratégias de marketing por elas desenvolvidas para favorecer
seus interesses” (CONTRETAS; GARCIA, 2011, p. 400), estabelecendo uma nova
cultura alimentar, o fast-food.
O mundo do agronegócio, aliado às redes internacionais de fast-food,
implementaram uma forte mudança nos apetites e nas mesas das pessoas nos diversos
países mundo afora, criando desejos alimentares por certos tipos de pratos que tivessem
suas produções uniformizadas pela indústria alimentícia global, em cadeias
sincronizadas de grandes empreendimentos. Em paralelo a essa industrialização dos
alimentos, se consolidou o hábito de comer fora de casa, impulsionado pela velocidade
da vida cotidiana nas grandes metrópoles, ainda que isso não significasse uma
intensificação da sociabilidade urbana, pois a ideia era se alimentar rapidamente, de
preferência só, e retornar ao ambiente de trabalho.
Em reação a esse cenário de uniformização da cultura alimentar, em 1980 na
França, se iniciou uma política editorial de publicação de livros de receitas tradicionais,
visando preservar traços da culinária local típicos de algumas regiões do país. Em
relação a uma dessas iniciativas, a coleção “Itinerários gourmands”, Poulain observa
que se existia “uma urgência nestes tempos de homogeneização dos gostos alimentares”
era “a de fazer o inventário do patrimônio gastronômico das províncias da França”, de
modo a recolocar “as práticas culinárias tradicionais no contexto cultural que as fez
nascer: os costumes, as crenças, as mentalidades regionais; transcrever as receitas numa
linguagem simples e moderna, suscetível de permitir sua realização” (POULAIN, 2013,
p. 31).
Morin, citado por Poulain, propõe que tais fenômenos são, muitas vezes,
sintomas de uma crise identitária que descobre na esfera alimentar, prejudicada pela
industrialização, um lugar de cristalização. Ele sugere que, com a mundialização dos
mercados alimentares, há uma valorização dos produtos regionais “por meio de um
duplo retorno aos valores da ‘natureza’ exaltada em oposição ao mundo artificial das
cidades e da ‘arkhé’ rejeitada pela modernidade como rotina e atraso, uma inversão
parcial das hierarquias gastronômicas a favor de pratos rústicos e naturais” (MORIN
apud POULAIN, 2013, p. 33). Esse movimento posicionou a cozinha regional no centro
e inventariou o patrimônio gastronômico das províncias francesas. Como consequência,
observa-se um duplo processo. Numa perspectiva patrimonial, de um lado, são
estudadas as tradições culinárias, a sedimentação das receitas e dos hábitos à mesa no
curso da história da região; do outro, os grandes chefs contemporâneos atualizam suas
práticas aos sabores regionais.
Bueno aponta os dois movimentos importantes que introduziram “alterações
radicais na maneira como os chefs passaram a se relacionar com as tradições e com a
instituição gastronômica” (BUENO, 2016, p. 451), possibilitando revoluções parciais
importantes no campo gastronômico. Esses movimentos são conhecidos por Nouvelle
Cuisine e Slow Food. O primeiro começou por desvincular a alta gastronomia do mundo
do luxo ao qual se associava, reduzindo a importância de requintes e de produtos mais
caros, para enfatizar o talento do chef. Essa nova corrente foi impulsionada por dois
críticos, Gault e Millau, que, segundo a autora, foram responsáveis pela criação de um

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dos guias gastronômicos mais prestigiados, lançado em 1973. Os críticos formularam no


artigo o que designaram de “os dez mandamentos da Nouvelle Cuisine”. Tal proposta
representou uma revolução ao propor uma nova maneira de se fazer cozinha não mais a
partir da tradição, mas considerando o conceito de gastronomia a partir dos estilos de
vida, das novas tecnologias, de estudos sobre novas tradições e ingredientes, dentre
outros. Rapidamente esse novo fazer e pensar gastronomia difundiu-se pelos EUA e por
países da Ásia, com destaque para a forte influência que a cozinha japonesa passou a
exercer sobre a cozinha do ocidente.
O segundo movimento, chamado de Slow Food, surgiu em Roma, em 1989, e foi
proposto pelo sociólogo e crítico de gastronomia Carlo Petrini. Segundo Bueno (2016),
trata-se de uma reação ao sistema de fast-food e à indústria da alimentação. No ano de
1998, a UNESCO declarou a tradição culinária como patrimônio imaterial da
humanidade e, em 2002, a Slow food, na busca por patrimonializar os produtos
gastronômicos, criou uma comissão internacional para implantar a “Arca do Gosto” que
seria uma espécie de catálogo mundial para identificar, descrever e divulgar sabores
quase esquecidos e/ou ameaçados de extinção.
Csergo traz uma reflexão importante sobre a mudança da primazia do
reconhecimento do patrimônio cultural material em relação ao patrimônio cultural
imaterial no que se refere à cultura alimentar. Segundo o autor, o produto
monumentalizado em sua materialização moldou por muito tempo a concepção do que
seria patrimônio gastronômico, como testemunham a publicação de obras e atlas
gastronômicos franceses. Contudo, adverte, “adotar apenas este ponto de vista
significaria esquecer que, neste mesmo tempo em que o local media a relação da França
com seu passado, os dados imateriais, que são o savoir-faire, as tradições e os costumes
da mesa, fariam parte do repertório” (CSERGO, 2011, p. 16). Segundo Csergo,
em um país que favoreceu o patrimônio material, nobre e elitista,
repensar os patrimônios alimentares à luz da imaterialidade dos
saberes, savoir-faire, práticas sociais e expressões populares,
privilegiando o repertório e refazendo um inventário, abrir-nos-ia não
apenas uma abordagem crítica da construção da noção de patrimônio
gastronômico, mas ainda novas pistas de pesquisa em torno da
unidade dos patrimônios. (CSERGO, 2011, p. 17)
Ainda sobre o contexto da patrimonialização da cultura alimentar na França, é
importante destacar o Inventário do Patrimônio Culinário da França, lançado em 1989
pelo Conselho Nacional das Artes Culinárias (CNAC), que, segundo Csergo, conseguiu
ilustrar tanto a modelagem do processo de patrimonialização dos bens culturais criados
ou reconhecidos (repertório, institucionalização, transferência à soberania nacional,
restituição) quanto a dualidade das abordagens (materiais e imateriais) a qual possui
vínculo com o patrimônio gastronômico. O Inventário é apresentado como um
“catálogo de produtos (patrimônio material) nascidos de saberes, de savoir-faire e
gestos inscritos na memória de gerações e originários de uma tradição (patrimônio
imaterial)” (CSERGO, 2011, p. 17). Nesse sentido, o Inventário representou um
primeiro passo imprescindível para que os produtos culinários fossem reconhecidos
como bem cultural e como patrimônio.
Como ressalta Poulain (2003), e seguindo o raciocínio até aqui exposto, as
preocupações para com a culinária das diferentes regiões do país culminaram, em 1990,
na adoção de uma série de políticas públicas que lançaram conjuntamente um vasto
inventário do patrimônio gastronômico francês. Essas políticas visavam mapear e
normatizar as técnicas e o fazer culinário típico e identitário de cada parte da França.
Dessa forma, pretendia-se dar suporte e fomentar as culturas locais em contrapartida à

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tendência de homogeneização cultural promovida nos grandes centros metropolitanos,


onde a culinária tradicional já se encontrava ameaçada.
Essa retomada regionalista no tocante à questão da cultura alimentar acabou por
gerar um novo movimento que se estendeu para além da França e pretendeu se
contrapor à lógica da homogeneização alimentar, embutido na onda da globalização,
buscando reavivar culturas alimentares ligadas às identidades locais. Nesse sentido, foi
imperioso que os estados nacionais começassem a pensar estratégias de resistência de
erosão de suas culinárias e traçassem políticas públicas. Como visto no caso francês,
algumas dessas iniciativas por parte dos policymakers, talvez as mais notórias, foram as
políticas de patrimonialização e reconhecimento de seus feitos culturais materiais e
imateriais.
Da mesma forma que a França, como menciona Poulain (2013), muitos países, -
inclusive o Brasil, - lançaram políticas públicas visando preservar seus patrimônios
alimentares materiais e imateriais. Sobretudo, buscou-se uma forma de preservar o
modo de vida particular de cada região, fortalecendo o sentimento de pertença e
identidade. Ainda conforme o autor, a patrimonialização contemporânea da alimentação
insere-se no vasto movimento que faz a noção de patrimônio passar do âmbito privado
para o público, do econômico para o cultural, sendo também sinal de transformação das
representações sociais.
No caso do Brasil, a edição 26, de 2006, da revista Desafios do desenvolvimento,
publicada pelo Ipea, informa que a principal discussão do 2º Congresso Brasileiro de
Gastronomia foi sobre qual seria o principal símbolo gastronômico do país e sua
capacidade de mobilizar a economia regional e nacional. A matéria traz o depoimento
do sociólogo Carlos Alberto Dória que afirma ser “necessário dar um basta ao
colonialismo gastronômico", ou seja, é preciso organizar o conhecimento culinário que
existe de forma difusa na sociedade nacional e encontrar formas de transmitir esse
saber. Na sua avaliação, no país, a gastronomia não é considerada um tema da cultura,
de modo que no MinC “há áreas bem estruturadas para investir em cinema, teatro,
dança, música, literatura; mas não há nada sistematizado para culinária e gastronomia -
que ficam entregues às regras do mercado"3.
Ainda que em 2002 o ofício das paneleiras de Goiabeiras, em Vitória (ES)
tenha sido o primeiro patrimônio imaterial registrado pelo Iphan, a situação apontada
por Dória só se alteraria ao longo dos anos seguintes com a ampliação dos registros de
patrimônio imaterial ligado à cultura alimentar e com a incorporação desta dimensão da
cultura nacional na lógica da política cultural para além do recorte patrimonial. É esse
aspecto que iremos abordar na próxima seção.

Cultura alimentar como expressão na política cultural brasileira


A agenda política e institucional da cultura no Brasil, que vigorou nos governos
Lula e Dilma (2003 a 2016), com destaque para a gestão de Gilberto Gil à frente do
MinC, passou por um processo de democratização, que se expressou na opção por tratar
a cultura como recurso estratégico para o fortalecimento da cidadania. Umas das
medidas adotadas foi a adoção de um conceito ampliado de cultura (ver Quadro 1)
proporcionando a incorporação de agentes e agendas até então pouco ou nada
contemplados pelas políticas públicas do setor. Isso possibilitou a efetivação de ações

3
A esse respeito ver “Gastronomia – patrimônio à mesa”. Desafios do desenvolvimento, edição 26,
2006. Disponível em
https://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=1110:reportagens-
materias&Itemid=39. Acesso em 24/01/2021.

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de fortalecimento de uma identidade nacional brasileira plural, incorporando expressões


simbólicas historicamente excluídas.
Botelho discute essa opção do MinC e sua relevância para a construção do país
feita a partir de cada “ato criativo” do povo brasileiro. Para a autora, naquele momento
o MinC empregava
uma conceituação ampla da cultura, considerando-a em sua dimensão
antropológica, como a dimensão simbólica da existência social
brasileira, como o conjunto dinâmico de todos os atos criativos de
nosso povo, aquilo que, em cada objeto que um brasileiro produz,
transcende o aspecto meramente técnico. Cultura como “usina de
símbolos” de cada comunidade e de toda a nação, eixo construtor de
identidades, espaço de realização da cidadania. (BOTELHO, 2007, p.
17)
O quadro abaixo sintetiza as dimensões definidas e trabalhadas na nova
abordagem dada à política cultural no período aqui mencionado.
Quadro 1 – Dimensões da Cultura
Dimensões da Cultura
A dimensão simbólica aborda o aspecto da cultura que considera que todos os seres
humanos têm a capacidade de criar símbolos que se expressam em práticas culturais
Dimensão
diversas como idiomas, costumes, culinária, modos de vestir, crenças, criações
simbólica
tecnológicas e arquitetônicas, e também nas linguagens artísticas: teatro, música,
artes visuais, dança, literatura, circo, etc.
A dimensão cidadã considera o aspecto em que a cultura é entendida como um
direito básico do cidadão. Assim, é preciso garantir que os brasileiros participem
Dimensão cidadã
mais da vida cultural, criando e tendo mais acesso a livros, espetáculos de dança,
teatro e circo, exposições de artes visuais, filmes nacionais, apresentações musicais,
expressões da cultura popular, acervo de museus, entre outros.
A dimensão econômica envolve o aspecto da cultura como vetor econômico. A
Dimensão
cultura como um lugar de inovação e expressão da criatividade brasileira faz parte
econômica
do novo cenário de desenvolvimento econômico, socialmente justo e sustentável.
Fonte: Ministério da Cultura (BRASIL, 2010; 2011a; 2011b).

Por essa opção conceitual, trabalhar as políticas culturais pelo viés


antropológico, é que se possibilitou o reconhecimento da cultura alimentar como parte
do universo dessas políticas. Ou seja, o entendimento que os saberes e fazeres em torno
da alimentação, considerada como parte constitutiva da identidade dos povos, é parte da
diversidade cultural brasileira e se constituem foco de ações e reivindicações da e para a
política cultural e não apenas das pastas da Agricultura, da Saúde e do Turismo.
Um dos momentos importantes dessa mudança de orientação em relação à
cultura alimentar se deu coma realização da III Conferência Nacional de Cultura (Cnc)
de 27 de novembro a 1º de dezembro 2013.
As três Cncs (2005, 2010, 2013) representaram um dos momentos mais
importantes de construção coletiva das políticas públicas para a cultura no Brasilnos
últimos anos. Cada Cnn culmina dos mecanismos de encontros municipais, estaduais e
macrorregionais, cujas etapas possuem decretos validadores legais, regimentos internos
que direcionam seu modus operandi e textos-base e envolveram milhares de
participantes em todos os estados4.
4
A 1ª Cnc contou com a participação de cerca de 60 mil pessoas, de 1.190 cidades e 17 estados; a 2ª
contou com 220 mil participantes, envolvendo todos os estados, o Distrito Federal e 57% das cidades
brasileiras; e 3ª Conferência contou com a participação de representantes dos 26 estados e do Distrito
Federal.

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No que diz respeito à III Cnc, seus temas foram alinhados às diretrizes e às
metas do Plano Nacional de Cultura (Pnc) e constituíram os seguintes eixos temáticos:
I. IMPLEMENTAÇÃO DO SISTEMA NACIONAL DE CULTURA - Foco:
Impactos da Emenda Constitucional do SNC na organização da gestão cultural
e na participação social nos três níveis de governo (União, Estados/Distrito
Federal e Municípios).
II. PRODUÇÃO SIMBÓLICA E DIVERSIDADE CULTURAL - Foco: O
fortalecimento da produção artística e de bens simbólicos e da proteção e
promoção da diversidade das expressões culturais, com atenção para a
diversidade étnica e racial.
III. CIDADANIA E DIREITOS CULTURAIS - Foco: Garantia do pleno exercício
dos direitos culturais e consolidação da cidadania, com atenção para a
diversidade étnica e racial.
IV. CULTURA E DESENVOLVIMENTO - Foco: Economia criativa como uma
estratégia de desenvolvimento sustentável. (BRASIL, 2013a).
É no Eixo 2, “Produção Simbólica e Diversidade Cultural”, mais precisamente
na proposta 2.5, que a gastronomia aparece pela primeira vez no contexto dos
documentos produzidos por ocasião das Cncs. Na íntegra, o que diz a proposta é:
Criar políticas culturais regionais, bem como os investimentos,
levando em conta os custos de todas as regiões brasileiras, com ênfase
na região amazônica, a acessibilidade e a fruição; viabilizar a
realização de parcerias entre municípios, povos e comunidades
tradicionais; incentivar trocas de experiências, informações e registros
culturais tradicionais como: rituais indígenas, festas, cultura de raiz,
jogos, feiras, festivais, fóruns, conferências, exposições, gastronomia
etc., por meio de intercâmbios culturais e artísticos; valorizar a
sustentabilidade e a preservação do meio ambiente; e garantir
investimentos dos Ministérios da Cultura e da Educação em
programas e projetos de criação, produção, circulação, difusão e
qualificação dos gestores, produtores e fazedores culturais da região
Amazônica. (BRASIL, 2013b, s.p.)
Nessa proposta é reconhecida não só a importância da preservação de aspectos
das culturas tradicionais, mas também o necessário intercâmbio dessas culturas como
uma forma de dar sustentação a elas e considera a gastronomia como parte fundadora da
identidade desses povos.
O cuidado com as culturas tradicionais também pressupõe uma valorização da
gastronomia, pois os ingredientes, as técnicas e os alimentos que compõem a cultura
alimentar brasileira têm suas origens nessas diversas culturas tradicionais. No Eixo 2,
“Produção Simbólica e Diversidade Cultural”, a proposta 2.35 da III CNC versa sobre
os aspectos de preservação da cultura de um povo:
Garantir e executar, em caráter de urgência, políticas de identificação,
demarcação, delimitação, regularização e homologação fundiária dos
territórios quilombolas, povos indígenas, povos de terreiros e povos e
comunidades tradicionais em geral (conforme decreto 6.040 de
07/02/2007), assegurando a efetivação de suas titulações e autonomias
tendo como referência o inventário do patrimônio das culturas
diversas, por meio de ações que promovam a cultura de combate ao
racismo, inclusive o religioso, protegendo os ritos, rituais, danças,
costumes e conhecimento imateriais dos povos indígenas,

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comunidades rurais, ribeirinhas, manifestações das culturas


tradicionais e expressões da diversidade cultural, efetivando o
financiamento de artistas, grupos culturais, povos tradicionais de
matriz africana e ações relacionadas as comunidades (BRASIL,
2013b, s.p.).
Assim, é possível entender que as relações dos povos com a terra, junto a seus
saberes e fazeres, devem ser também identificadas, reconhecidas, protegidas e colocadas
à disposição para fruição como elemento constitutivo da diversidade desses povos, e
sendo a agricultura a atividade primeira da relação do homem com o ato de alimentar-
se, podemos dizer que mais uma vez a cultura alimentar pode ser aqui reconhecida
como manifestação constitutiva da cultura brasileira.
A proposta 3.30 do Eixo “Cidadania e Direitos Culturais” aborda de maneira
mais ampla a problemática da preservação e da manutenção dos patrimônios material e
imaterial, portanto, de acordo com o que já foi posto, tratando também da cultura
alimentar, em especial quando destaca a “criação de um programa de incentivo à
transmissão dos saberes populares e à preservação do patrimônio cultural material e
imaterial (manifestações artísticas, acervos e outros bens) de referência para as culturas
tradicionais, incluindo os povos indígenas” (BRASIL, 2013b, s.p.).
Como resultado do papel político da III Cnc, em dezembro de 2013, menos de
um mês depois da sua realização, começa a ser veiculado pelo MinC que a cultura
alimentar passará a integrar os Colegiados Setoriais do Conselho Nacional de Política
Cultural (Cnpc), acatando as monções apresentadas na Conferência, ocasião na qual
foram reivindicadas a inclusão de novos segmentos e a modificação do termo
“Gastronomia” para “Cultura Alimentar”, num esforço de explicitar a cadeia do
alimentar-se em toda sua abrangência.
O Cnpc, cuja instalação ocorreu em dezembro de 2007, tem por finalidade
propor a formulação de políticas públicas, visando promover a articulação e o debate
dos diferentes níveis de governo e da sociedade civil organizada para o
desenvolvimento e o fomento das atividades culturais no território nacional. O Conselho
é integrado pelos seguintes entes: Plenário; Comitê de Integração de Políticas
Culturais (Cipoc); Colegiados Setoriais; Comissões Temáticas ou Grupos de Trabalho;
e Conferência Nacional de Cultura.
Tendo em mente o papel do Cnpc para a proposição, elaboração e execução das
políticas culturais em âmbito federal, é possível avaliar a relevância da cultura alimentar
figurar entre os Colegiados, o que permitiu aos representantes dessa manifestação pautar
fomentos e incentivos para o setor a partir de então5.

Considerações finais
Os processos globalizantes pelos quais o mundo tem passado trouxeram
profundas mudanças à organização social e tem demandado inovações nas formas de
agir, reagir e resistir. Em especial, as ameaças que as culturas locais, incluindo as
alimentares, sofrem com essas transformações apontam para a necessidade de
interlocução de seus atores com o poder público com vistas à sua conservação, sem que
isso signifique a manutenção a todo custo de padrões vistos como originários, e sim a
capacidade de renovar e atualizar as relações de um grupo com sua cultura. Na cultura
alimentar, em especial, a possibilidade de invenção é muito importante. Saber lidar com

5
Em 2019, a legislação relativa ao Cnpc foi alterada e entre as modificações, o assento destinado à
Cultura Alimentar nos Colegiados foi extinto. Essa opção revela um retrocesso da política cultural em sua
compreensão mais ampla do fazer cultural.

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o que há disponível, trocar elementos e usar novas técnicas de conservação e elaboração


a partir de conveniências dietéticas é extremamente útil para a própria manutenção dos
saberes.
Percebe-se, a partir do que foi trabalhado, o papel estratégico da política cultural
para o fortalecimento das culturas alimentares locais, tanto no caso pioneiro e, portanto,
paradigmático da França, quanto na realidade brasileira. Nesse caso específico,
observamos como foi somente dentro de uma concepção ampla de cultura e de uma
política democrática para o setor cultural que se incorporou o alimento como referência
simbólica de um povo. Daí a importância de observar esse instrumento de construção
participativa e deliberativa da política pública que foi as Cncs. Percebemos, então, a
criação de um sistema democrático para participação da sociedade civil junto às
atividades propositivas, financiadoras e reguladoras do Estado as quais culminaram na
confecção das políticas públicas para cultura, em especial para o segmento de cultura
alimentar. Com efeito, a cidadania cultural e o respeito à diversidade incluem os fazeres
e os saberes alimentares como parte da cultura brasileira.
A importância da cultura alimentar ser reconhecida como segmento cultural
brasileiro para fins de políticas públicas, é, antes de tudo, a de promover a integração
nas discussões entre poder público, sociedade civil e agentes culturais e, assim,
construir políticas e estratégias respeitosas do amplo significado da mesma e conectar
toda a rede que a compõem de forma que não só preservemos nossos saberes e sabores,
mas que possamos fruí-los.
Contudo, diante do processo de desresponsabilização do Estado que o país vive
atualmente é preciso entender, como afirma Botelho (2001) que as políticas culturais,
isoladamente, não conseguem atingir o plano do cotidiano. Segundo a autora, a
responsabilidade compete aos próprios interessados, podendo se chamar “de estratégia
do ponto de vista da demanda”, o que pode ser entendido também como organização e
atuação efetivas da sociedade, em que o exercício real da cidadania exija e impulsione a
presença dos poderes públicos como resposta a questões concretas e que não são de
ordem exclusiva da área cultural. É através dessa militância que será possível “dar
nome” a necessidades e desejos originados do cotidiano dos indivíduos, “balizando a
presença dos poderes públicos”.

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D’AMICO, Marcelo; PIBERNUS, César.
Territorios en disputa en Entre Ríos:
extractivismo urbano y protesta ambiental.
Sociabilidades Urbanas, Revista de
Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, pp. 147-
169, março de 2021, ISSN 2526-4702.
ARTIGO
https://grem-grei.org/numero-atual-socurbs/

Territorios en disputa en Entre Ríos: extractivismo urbano y protesta


ambiental
Territórios em disputa em Entre Ríos: extrativismo urbano e protesto ambiental
Disputed territories in Entre Ríos: urban extractivism and environmental protest

Marcelo D’Amico∗
Cesar Pibernus∗∗ 1

Resumen: En las dos últimas décadas, y con incremento de los precios internacionales de
las materias primas, se profundizó el carácter extractivista de la Argentina y la región. La
provincia de Entre Ríos fue un caso testigo del modelo de explotación primaria que
avanzan sobre la naturaleza propias del capitalismo contemporáneo y a los regímenes
orientados a la exportación de commodities en particular. El progreso del agronegocio, el
intento del fracking en distintas localidades y las diversas manifestaciones del
extractivismo urbano, son elementos del capitalismo en su fase de desarrollo actual. En la
medida que éste avanza sobre los bienes comunes, abre las puertas a la disputa por los
mismos y al conflicto social. Así, durante este mismo período, proliferaron en la provincia
los procesos de resistencia y de protesta socio-ambiental que será objeto de nuestro análisis.
Palabras clave: Extractivismo, acumulación por desposesión, conflicto social, acción
colectiva, protesta socio-ambiental
Resumo: Nas últimas duas décadas, e com o aumento dos preços internacionais das
matérias-primas, o caráter extrativista da Argentina e da região se aprofundou. A província
de Entre Ríos foi um caso testemunha do modelo de exploração primária que avança sobre
a natureza do capitalismo contemporâneo e regimes orientados para a exportação de
commodities em particular. O avanço do agronegócio, a tentativa de fracking em diferentes
localidades e as diversas manifestações do extrativismo urbano são elementos do
capitalismo em sua atual fase de desenvolvimento. Na medida em que avança sobre os bens
comuns, abre as portas para a disputa por eles e para o conflito social. Assim, neste mesmo
período, proliferaram os processos de resistência e protesto socioambiental na província
que será objeto de nossa análise. Palavras-chave: Extrativismo, acumulação por
expropriação, conflito social, ação coletiva, protesto socioambiental
Abstract: In the last two decades, and with the increase in international prices of raw
materials, the extractivist nature of Argentina and the region has deepened. The province of


Professor Doctor do Centro de Investigaciones Sociales y Políticas, Facultad de Ciencias de la
Educación da UNER. (CISPO- FCEDU-UNER). Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3504-505X. E-Mail:
marcelodamico9@yahoo.com
∗∗
Professor Doctor do Centro de Investigaciones Sociales y Políticas, Facultad de Ciencias de la
Educación da UNER. (CISPO- FCEDU-UNER). Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6456-2481. E-Mail:
cepibernus@hotmail.com
1
Este artículo es parte de los resultados del trabajo realizado en el marco del PID 3155 desarrollado en la
Facultad de Ciencias de la Educación de la UNER por el equipo integrado Dirigido por Marcelo D’Amico
e integrado por Luis Meiners, Patricia Lambruschini, Virginia Alia, Lautaro Perez y Gina Turtula.
148

Entre Ríos was a witness case of the primary exploitation model that advances on the
nature of contemporary capitalism and regimes oriented to the export of commodities in
particular. The progress of agribusiness, the attempted fracking in different locations and
the various manifestations of urban extractivism are elements of capitalism in its current
phase of development. As it progresses over common goods, it opens the doors to dispute
over them and to social conflict. Thus, during this same period, the processes of resistance
and socio-environmental protest proliferated in the province that will be the object of our
analysis. Keywords: Extractivism, accumulation by dispossession, social conflict,
collective action, socio-environmental protest

Marco teórico y metodología


Los aportes específicos de David Harvey, Horacio Machado Aráoz, Adrián
Scribano y Maristela Svampa sobre la acumulación por desposesión, el extractivismo, el
conflicto social y los movimientos sociales respectivamente son fundamentales para
analizar, dentro de este modo de producción, la temática de lucha socioambiental en
Entre Ríos2.
Partiendo dela “acumulación originaria”, David Harvey utiliza el concepto de
acumulación por desposesión para describir la orientación del capitalismo
contemporáneo que le permite sobrevivir y continuar funcionando. Se trata de una
forma de acumulación que, al igual que la acumulación originaria incluye:
(…) la mercantilización y privatización de la tierra y la expulsión
forzosa de las poblaciones campesinas; la conversión de diversas
formas de derechos de propiedad -común, colectiva, estatal, etc.- en
derechos de propiedad exclusivos; la supresión del derecho a los
bienes comunes; la transformación de la fuerza de trabajo en
mercancía y la supresión de formas de producción y consumo
alternativas; los procesos coloniales, neocoloniales e imperiales de
apropiación de activos, incluyendo los recursos naturales; la
monetización de los intercambios y la recaudación de impuestos,
particularmente de la tierra; el tráfico de esclavo; y la usura, la deuda
pública y, finalmente, el sistema de crédito. El Estado, con su
monopolio de la violencia y sus definiciones de legalidad, juega un rol
crucial al respaldar y promover estos procesos (…) (HARVEY, 2004,
p. 113)
El autor hace una lectura sobre los nuevos modos de acumulación por
desposesión no sólo a partir de la creciente mercantilización de la naturaleza, sino
también de las nuevas formas culturales, las historias y la creatividad intelectual. Es
decir, acumulación por desposesión hace referencia a una fase de intensificación de las
dinámicas de mercantilización mediadas por múltiples y crecientes recursos de violencia
y control de los territorios.
Para Harvey, este proceso sólo sería posible en una economía cerrada, como
proyecto liberal de la economía política clásica, pero Marx mostró que “la liberalización
mercantil no producirá un estado de armonía en el que todos estarán mejor, sino que
producirá mayores niveles de desigualdad social, como de hecho ha sucedido (…) Marx
predice que también producirá creciente inestabilidad, la cual culminará en crisis

2
Este artículo es producto del trabajo realizado en el marco del PID 3155 desarrollado en la Facultad de
Ciencias de la Educación de la UNER por el equipo integrado por Luis Meiners, Patricia Lambruschini,
Virginia Alia, Lautaro Peter y Gina Turtula.

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149

crónicas de sobreacumulación”. Según Harvey, el proceso de acumulación primitiva no


acabó con la estructuración capitalista sino que continúa vigente en la actualidad, pues
el capitalismo se vale de un proceso permanente y persistente de prácticas depredadoras
que complementa y alimenta el ciclo de acumulación basado en la explotación del
trabajo asalariado, proceso que tiende a agudizarse en los momentos de crisis, cuando se
produce una caída de la tasa de ganancia. “La acumulación por desposesión puede
ocurrir de diversos modos y sus modus operandi tiene mucho de contingente y azaroso;
así y todo, es omnipresente, sin importar la etapa histórica, y se acelera cuando ocurren
crisis de sobreacumulación en la reproducción ampliada”. En función de esta
caracterización y con el objetivo de enfatizar su persistencia y extensión, Harvey
sustituye el adjetivo de “originaria” o “primitiva” para hablar en cambio de acumulación
“por desposesión”.
Horacio Machado Aráoz, recupera y profundiza la perspectiva de Harvey, al
introducir los regímenes extractivistas, caracterizándolos como “formaciones socio-geo-
económicas en la que la sobre-explotación exportadora se erige como principal patrón
organizador y regulador de sus estructuras económicas, socio-territoriales y de poder”
(MACHADO ARÁOZ, 2013, pp.129-130).
Son grupos que adquieren una capacidad de control y disposición sobre los
territorios de otros, que ejercen el control efectivo sobre los bienes naturales o socio-
territoriales disponibles, y a partir de los cuales se erigen en el principal factor de poder.
La sobre explotación que los define se caracteriza por una tasa de extracción superior a
los tiempos biológicos de reposición o regeneración natural, en caso de que sean
renovables. Por otra parte, su destino está a espaldas del mercado interno, pues se
orienta hacia el abastecimiento de economías extraterritoriales. Junto a otros factores,
este modelo logra concretar una excepcional transferencia de bienes ecológicos de unos
territorios hacia otros, dando lugar a una apropiación desigual de los mismos.
Según Machado Araoz, al “mapa de las ‘inversiones’ extractivistas” le
corresponde un “contra-mapa de los ‘nuevos’ movimientos socio ambientales”, que
expresan un conjunto diverso y heterogéneo de colectivos e identidades sociales
unificados por las resistencias a las múltiples secuelas de extractivismo” (MACHADO
ARÁOZ, 2012, pp. 1658).
Aquí cobra valor la noción de conflicto social concebido como un indicador,
como un síntoma de las contradicciones sociales, y también como motor en la dinámica
de los vínculos sociales. En este sentido, Adrián Scribano, señala que conflicto social
existe ante una valoración diferencial de un bien en disputa y ante la configuración de
antagonistas que se relacionan a través de él, siempre, claro, asumiendo la dimensión de
clase implícita en el conflicto social. Scribano distingue la naturaleza conflictual de los
actores conflictuales. La primera “refiere al contenido de la relación conflictual. Es
decir, lo que se manifiesta como objeto del conflicto, su “pertenencia” estructural y los
modos de visibilidad que adquieren en el marco de una acción colectiva.”
(SCRIBANO, 2005, p. 9). Esta dimensión interroga al conflicto a partir de cuál es el
bien, o los bienes que se constituyen como objetos de disputa, así como de las
configuraciones antagónicas que los actores realizan del mismo:
¿Que son los bienes? Son objetos apropiables y apropiados y pueden
ser materiales o simbólicos, porque en realidad ningún bien es
totalmente material ni totalmente simbólico. De todos modos, que
sean apropiables implica que son acumulables, por eso la diversidad
de valoraciones también tiene que ver con la capacidad reciproca de
acumulación que tenga cada agente respecto a ese bien. (SCRIBANO,
2005, pp. 5).

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Estas consideraciones son fundamentales en la construcción del objeto,


visibilizan lo que está en disputa, los actores y cómo estos elementos se van
transformando a lo largo de los procesos de lucha.
Por actores conflictuales, Scribano se refiere “a los participantes del conflicto
buscando identificar el paso de las acciones individuales/grupales a las acciones
colectivas a través de quiénes las llevan adelante.” (SCRIBANO, 2005, p. 10). Esto
implica identificar los antagonistas, y remite nuevamente a la estructura social en cuanto
que sus contradicciones producen manifestaciones. Entendida así los conflictos
denuncian la naturalización del mundo como algo que está dado (Scribano, 2005: 30),
exponen aspectos del límite del sistema, a veces de los más incipientes.
Maristella Svampa utiliza la expresión conflicto socioambiental para referirse a
(…) aquellos ligados al acceso y el control de los bienes naturales y el
territorio, que suponen por parte de los actores enfrentados intereses y
valores divergentes en torno de los mismos, en un contexto de gran
asimetría de poder. Dichos conflictos expresan diferentes
concepciones sobre el territorio, la naturaleza y el ambiente; al tiempo
que van estableciendo una disputa acerca de lo que se entiende por
desarrollo y, de manera más general, por democracia. (SVAMPA;
VIALE, 2014, p. 33).

Acción colectiva y capitalismo neo colonial


Respecto a acción colectiva y movimientos sociales, consideraremos en primer
lugar dos grandes corrientes que se han convertido en “paradigmáticas” en términos de
esta clase de estudios, la europea y la americana, luego incorporaremos algunas
perspectivas latinoamericanas a nuestro análisis y, finalmente, lo enmarcaremos es
estudios de acción colectiva en la Argentina.
Porque desde el año 2001, en Argentina, este campo de estudios ha comportado
un enorme crecimiento despertando el interés desde distintas disciplinas y existen
producciones con diferentes perspectivas y estrategias metodológicas. A pesar de ello,
la teoría europea de los Nuevos Movimientos Sociales y los enfoques americanos
(Elección racional y movilización de recursos) siguen ocupando un lugar central en los
marcos analíticos de los estudios de los movimientos sociales en la región, a pesar de la
expresa voluntad de “romper” con las teorías foráneas. El impacto de ambas escuelas en
el estudio de los movimientos sociales no favoreció el surgimiento de un marco teórico
regional, o bien hay una mirada eurocéntrica de las investigaciones.
Este artículo tiene entre sus referencias investigaciones sobre las inundaciones
en la ciudad de Santa Fe: trabajos individuales financiados por CONICET y una
investigación novel financiada por la UNER. En los trabajos mencionados fue un eje
común el modelo extractivista, o dicho más especificadamente el abordaje estuvo
centrado en la fase actual del desarrollo del capitalismo: sobre el contexto neocolonial
extractivista.
Si ubicáramos nuestro trabajo en perspectiva, los antecedentes inmediatos
corresponden a los estudios de protesta social que se han formulado en torno al ajuste de
los años ’90 en el país, los trabajos sobre protesta social pos 2001, los desarrollos sobre
el capitalismo extractivista -en especial aquellos sobre megaminería-, otras temáticas
ambientales y estudios urbanos en el contexto actual.
Sostenemos que el estudio empírico sistemático puede constituir un momento
crucial para aportar a la construcción del campo de estudios sobre la acción colectiva y
el conflicto social en América Latina.Conocer el ciclo de protesta en nuestro
subcontinente y en la Argentina es vital para ubicar el caso concreto y ponerlo “a jugar”

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en el marco de la estructura social general en la cual éste se inscribe. Teniendo en


cuenta tal supuesto, hemos asumido la tarea de indagar tanto los conflictos como la
situación histórica reciente de nuestro país.
Observamos que la realidad política y social, en general, y de las ciudades que
constituyen nuestro espacio de observación, en particular, contiene múltiples
dimensiones que responden al sistema de organización social vigente, esto significa que,
de algún modo, se halla condicionada por el contexto político, económico y cultural. En
otras palabras, está relacionada con la fase de expansión del sistema capitalista de
producción en el contexto neo-colonial (SCRIBANO, 2007, 2009).

Los estudios de acción colectiva


En las sociedades contemporáneas, el conflicto social ha sido una constante,
siendo el siglo XX un momento clave para la proliferación de análisis que lo aborden
desde las Ciencias Sociales. La sociología política se destacó en ese rol y, con el
tiempo, se fue configurando un campo de estudios particular de la sociología del
conflicto y la acción colectiva. En tal sentido, encontramos tradiciones que son pioneras
en el campo mencionado y que han dividido los abordajes en dos grandes perspectivas
que en la actualidad son reconocidas y que, desde hace prácticamente dos décadas,
dialogan de forma inevitable. Nos referimos a los abordajes de la escuela
norteamericana y europea que serán considerados luego.
Desde aquí, el estudio de la acción colectiva permite visualizar aspectos de la
realidad social que se encuentran ocultos o sumergidos. Es decir, este tipo de acciones
muestra y otorga visibilidad a problemas sociales (pre)existentes ocluidos por la lógica
misma de lo estructural en un tiempo-espacio dado.
Como señala Clauss Offe (1996), con la crisis del Estado de bienestar, en la
década del ’70 se agota la posibilidad de explicar la dinámica de la sociedad política
bajo los contornos del viejo paradigma. En tal sentido, difícilmente podríamos tener
efectividad explicativa si nos basamos exclusivamente en una mirada que privilegie el
conflicto de clases y el modelo de la competencia entre partidos, como si en los últimos
dos siglos todo siguiera igual. De este modo, creemos relevante ocuparnos de esta nueva
dinámica social y atender a aquellos instrumentos de análisis que nos permitan –desde
la reflexividad de nuestra observación actual– revisar las principales matrices
contemporáneas para producir marcos explicativos-interpretativos y teórico-
metodológicos que nos permitan elaborar una mirada propia de la acción colectiva en
nuestro espacio geográfico latinoamericano y, en particular, en el espacio nacional.
En tal sentido, destacamos el trabajo de Consejo Latinoamericano de Ciencias
Sociales (CLACSO) compilados por dicha entidad3, entre las que se destaca la revista
Observatorio Social de América Latina dedicada especialmente al conflicto social en
nuestra región. Por otro lado, existen diversos grupos y redes de estudios en distintos
puntos de Argentina y América Latina que abordan los diversos puntos conflictuales
que genera la fase extractivista del capitalismo en la región.
Es necesario caracterizar, al menos de manera general, las tradiciones europea y
americana como clásicas referencias, destacando las distintitas estrategias de abordaje
de las acciones colectivas, los movimientos sociales y la protesta social.
En primer término, las diferencias surgen en el énfasis de abordaje y en la
estrategia para explicar la acción colectiva. La tradición europea se ha ocupado

3
Ejemplo de ello es el trabajo de Seoane, J. (Compilador) Movimientos sociales y conflicto en América
Latina.CLACSO, Buenos Aires, 2003. Así como la revista periódica Observatorio Social de América
Latina (OSAL).

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centralmente de la identidad y las razones que mantienen cohesionados a los colectivos.


De alguna manera, esta corriente muestra cómo los movimientos construyen una
identidad colectiva. Por su parte, la tradición americana se ha centrado en aspectos
organizacionales dando importancia crucial a aspectos de la participación, al grado de
cooperación y la racionalidad.
Del mismo modo, las tradiciones mencionadas conforman visiones diferenciales
respecto a la relación del sujeto y los aspectos estructurales. La europea se ha
preocupado por observar la conformación del sujeto colectivo en sí; de allí los análisis
sobre identidad colectiva. Por su parte, la visión americana se ha preocupado por
comprender las condiciones generales donde se desarrollan las acciones colectivas, lo
cual ha dado como resultado la importancia de considerar el proceso político,
emergiendo categorías tales como estructura de oportunidades políticas (Tarrow,
1997), entre otras. Por otro lado, es importante marcar la obvia inclinación hacia el
principio de racionalidad que tiene la tradición americana, surgiendo de allí cuestiones
tales como la Teoría de Movilización de Recursos, donde lo organizativo cobra una
importancia central (LARAÑA; GUSFIELD, 1994).
Por su parte, la tradición europea, sin abandonar la acción racional, pone su
énfasis en los aspectos ideológicos y en el orden de lo simbólico, lo cual ha permitido
indagar sobre los procesos identitarios.
Cada una de las diferencias de estos enfoques redunda en la inclinación hacia
una estrategia de abordaje metodológico diferencial. De esta manera, en cada caso se
utilizan métodos y técnicas de investigación que las identifican. Estas dos grandes
perspectivas se resumen hoy, en términos generales, en los planteos de las Teorías de
Movilización de Recursos y en la perspectiva de los Nuevos Movimientos Sociales.
Alberto Melucci ha contribuido a incorporar de manera decisiva la identidad y la
vida cotidiana de los individuos que intervienen en la acción colectiva. Según él, cuando
los sujetos militan no sólo buscan poder, sino que la identidad misma puede ser un bien
en disputa: “los actores colectivos producen entonces la acción colectiva porque son
capaces de definirse a sí mismos y al campo de su acción (relaciones con otros actores,
disponibilidad de recursos, oportunidades y limitaciones)” (2002, p. 43). Esta
perspectiva ha tenido un enorme impacto en la conformación de los marcos teóricos de
las investigaciones empíricas de las ciencias sociales en la región.
El concepto de movimiento social de Tarrow es de suma utilidad para discernir
su posición teórica: “los movimientos sociales como desafíos colectivos planteados por
personas que comparten objetivos comunes y solidaridad en una interacción mantenida
con las elites, los oponentes y las autoridades” (TARROW, 1997, p. 21), sobre todo
porque aporta cuatro propiedades válidas para formular un registro empírico. Es decir
que, cuando hay un desafío colectivo, que sostiene una cohesión por objetivos comunes
y solidaridades frente a un oponente con el que mantienen una interacción antagónica,
estamos en presencia de un movimiento social.
Al aporte de los teóricos preocupados por el proceso político se suma una serie
de estudios empíricos y reflexiones teóricas de la tradición europea, representada por los
trabajos de Touraine, Melucci y Offe.
Según Alberto Melucci, el cambio social de nuestra época desborda los grandes
paradigmas de la modernidad, es decir, el capitalismo y la sociedad industrial. Este
escenario ha sido observado bajo la lupa de paradigmas que no dan cuenta de un mundo
que “es preferible decir claramente que no sabemos de qué sociedad estamos hablando”
(MELUCCI, 1998, p. 361).
La posición del teórico italiano es que no tenemos respuesta para la pregunta
global, y que de ningún modo resulta auspicioso intentar realizar una contribución al

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respecto. Vivimos una transición que plantea interrogantes nuevos con viejas formas
lingüísticas, un cambio de paradigma dejará en desuso ciertas preguntas que incluso hoy
carecen de un sentido profundo. Los movimientos sociales denotan “una transformación
profunda de la lógica y de los procesos que guían a las sociedades complejas
(MELUCCI, 1996, pp. 10-11).
Esta propuesta tiene como propósito mostrarnos el poder enunciador de la
acción colectiva en cuanto a las transformaciones que la sociedad experimenta en
general, presenta a los movimientos sociales como “profetas del presente” que “poseen
el poder de la palabra”, “utilizan un lenguaje que parece exclusivo de ellos, pero dicen
algo que los trasciende y hablan por todos nosotros”. (MELUCCI, 1996, p. 11).

Redes conflictuales
Arribando a una mirada más local, consideramos pertinente profundizar en la
noción de red de conflictos propuesta por Adrián Scribano. En términos generales,
dicho concepto refiere a aquellos conflictos que están interconectados y que constituyen
base de toda acción colectiva que deviene en protesta social. La noción de red, se
inscribe en el supuesto de que toda protesta es precedida por uno o más conflictos.
Estas redes, a su vez, ponen en relación diversos conflictos, remitiendo entonces
a otras redes de conflictos preexistentes. Con ello queremos sostener que la protesta de
los colectivos por distintos aspectos ambientales se conecta con conflictos latentes cuyo
origen está en los años del ajuste argentino (’90), y que se manifiestan con mayor
intensidad en el ciclo de protesta que se inicia en diciembre del 2001. Las
organizaciones sociales presentan complejas relaciones con organizaciones sindicales,
con movimientos territoriales y organizaciones civiles, sin que ello signifique la pérdida
de su autonomía e identidad porque el trasfondo de su protesta remite a un horizonte
común de demandas de acuerdo con la red de conflictos en la que se halla inserta, tal
como sucedía con los cortes de ruta a principios de los años ’90. En tal sentido, las
luchas ambientales son, ante todo, una lucha por el reconocimiento; las demandas en los
territorios implican un reconocimiento como sujeto de derecho frente al Estado.
De cara a las dificultades que prevé nuestro trabajo y siguiendo el planteo de
Scribano, para estudiar las acciones colectivas es preciso identificar, al menos, tres
niveles de análisis: “su conflictividad, su estructuración temporo -espacial y sus modos
de expresividad” (SCRIBANO, 2003a, p. 76). Estos tres niveles no son los únicos, pero
el hecho de estudiarlos ayuda a construir un instrumental analítico para la investigación
empírica de las acciones colectivas, pues “toda acción colectiva que deviene protesta
implica la existencia de uno o más conflictos” (SCRIBANO, 2003a, p. 76).
Las redes de conflictos que preceden y operan como trasfondo de las protestas
actúan en el tiempo reconvirtiendo y redefiniendo las posiciones de los agentes y el
sentido de las acciones. A su vez, no se agotan en la sola manifestación de la acción
colectiva; por el contrario, las mencionadas redes están en estrecha relación con los
períodos de latencia.
Todo análisis de la protesta debe tener presente siempre a las redes de conflicto
que a ellas se conectan como dato que permite dar forma a las acciones colectivas.
Además, es importante señalar que las redes de conflictos también ponen en relación
actores colectivos, y de ese modo permiten dar visibilidad a conflictos u otras redes de
conflictos que se encuentran sumergidas. En otro caso estudiado (D’AMICO, 2009,
2013a, 2013b), la pobreza, la desocupación y la distribución desigual en el espacio de la
ciudad de Santa Fe cobraron mayor visibilidad como consecuencia de las acciones
colectivas protagonizadas por los inundados. En este artículo, a las protestas
socioambientales le preceden en el tiempo otros conflictos que forman redes que las

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interconectan con protestas que se actualizan en el tiempo presente mediante el uso de


recursos expresivos o bien consignas que articulan los repertorios de las acciones
colectivas.
La acción colectiva devenida protesta entraña en sí misma cierta complejidad
que constituye un lugar privilegiado de observación sociológica, pues son “formas de
espacialización de los tiempos en que los actores anudan metas, decisiones e inversiones
emocionales y recursos expresivos.” (SCRIBANO, 2003a, p. 79).En este contexto, la
protesta puede ser conceptualizada como la interconexión de momentos que evidencian
la relación entre expresiones, episodios y las manifestaciones que involucran una acción
colectiva en el marco de una red de conflictos.

La acción colectiva en Argentina


En todo el sur del continente latinoamericano, los estudios de acción colectiva
en el retorno a la democracia estuvieron orientados por el potencial de los movimientos
sociales al fortalecimiento de este régimen político y por la búsqueda de la
emancipación social. Las características de los movimientos sociales de los años ’80
muestran una rica diversidad ligada a una resistencia a la dominación, una búsqueda de
la recuperación del tejido social dañado durante los gobiernos autoritarios, así como una
refundación del vínculo político y los procesos colectivos.
Las experiencias de los movimientos sociales y las distintas formas que asumió
la acción colectiva en nuestra región, tuvo como resultados procesos de
institucionalización, cooptación y la configuración de un espacio de resistencia y
progresiva recuperación de los espacios públicos. Sin dudas, parte de los cambios más
significativos continentales han tenido como protagonistas a los movimientos de
protesta.
Que la protesta social sea un tópico de amplia proyección responde al potencial
comprensivo que dicho campo entraña para los procesos estructurales de la sociedad en
su conjunto. La riqueza que albergan los distintos movimientos, la renovación
permanente en las demandas, y el carácter anticipatorio en cuanto a las problemáticas
sociales contemporáneas, han convertido a este campo de estudio en un punto nodal
para las ciencias sociales.
Inspirada en los conceptos de Tilly y Tarrow, otra de las cuestiones que se
convirtió en un eje de discusión es lo relativo a los ciclos de protesta. En los debates ha
surgido una disputa académica de los diferentes cortes temporales.
Los estudios de acción colectiva en nuestra región latinoamericana y el
desarrollo de los conflictos sociales tienen una nutrida producción que se vio
incrementada en el año 2001, tras los acontecimientos que produjeron la renuncia
anticipada del gobierno de la Alianza en Argentina.
En la Argentina, particularmente, uno de los itinerarios posibles se inicia con los
ya clásicos trabajos de Jelin (1987) y Fernández (1991) durante los ’80, la mayoría de
estas investigaciones están relacionadas al momento de transición democrática de la
región. Asimismo, se destacan desarrollos colectivos e individuales posteriores, tales
como los de Scribano, (2005 y 2007), Schuster (2009), Seoane (2001), Giarraca (2002),
en estos desarrollos se sale de los clásicos movimientos de los derechos humanos u
otros asociados a la democratización, para tematizar cuestiones vinculadas a otras
organizaciones de la sociedad civil, movimientos rurales, contra el ajuste, etc.
Posteriormente se produce una “explosión” de estudios de acción colectiva motivados,
desde sus particularidades, en la crisis del 2001 (SVAMPA; PEREYRA, 2003;
ZIBECHI, 2003, entre otros); coinciden en afirmar en que se trató de un momento
histórico donde la clase media es la protagonista, pero que se articula con un

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movimiento social más amplio que tiene lugar en los años ’90 y que acumula a partir de
una serie de problemáticas sociales.
A partir de la estabilización de una alta tasa de desocupación en los 90, los
desocupados consolidaron su presencia como movimiento y el movimiento piquetero
fue adquiriendo visibilidad dentro de un complejo conjunto de actores como
trabajadores estatales, privados y demandas de vivienda.
Los piqueteros forjan vinculación organizativa con otras experiencias colectivas
contemporáneas tales como las reivindicaciones por los derechos humanos de
organizaciones como H.I.J.O.S o el movimiento de Fábricas y Empresas Recuperadas.
Desde el 2003 en adelante irrumpe en el espacio público de manera progresiva la
protesta en torno a los bienes comunes, en especial los movimientos que se oponen a la
explotación de la minería a cielo abierto. Un diagnóstico sumamente interesante es el
que formula Machado Araoz y Scribano4, Como es sabido, el sistema capitalista de
producción tiene como base en sus distintas fases expansivas garantizar, a largo plazo,
las condiciones de su reproducción a escala mundial.
Se trata de poner en relación el modo en cómo opera el sistema capitalista de
producción en la actual fase expansiva y analizar desde dicha comprensión el lugar que
ocupan las demandas sociales, las protestas y las distintas acciones colectivas. Por ello,
para nuestro trabajo se consideran centrales los vínculos entre cuerpo, clases y conflicto
social en el marco de los territorios que son el escenario de las actividades de
producción en Entre Ríos fundamentalmente en el espacio urbano.

Los actores colectivos de la protesta socio-ambiental en Entre Ríos


Relevamos los actores colectivos elegidos a partir de entrevistas con informantes
claves, integrantes de diversas asambleas y colectivos de protesta socio-ambiental,
como primer panorama de la situación actual de esas organizaciones entrerrianas. Lo
complementamos relevando los participantes del “11° Encuentro de la Unión de
Asambleas Ciudadanas del Litoral” realizado en Basavilbaso durante febrero de 2016 e
información recabada en medios periodísticos y redes sociales.
Relevamos 17 colectivos socioambientales que se encontraban activos a enero
de 2017 o lo han estado hasta un periodo reciente y precisamos tres datos esenciales: su
ubicación, su problemática principal de protesta y su año de fundación. Estos datos
están plasmados en el Cuadro 1 y son el primer insumo para construir un mapa de la
conflictividad socio-ambiental en la provincia. Se trató de un relevamiento estático, una
suerte de “fotografía” de situación que resulta un punto de partida para el examen de su
aspecto dinámico en los procesos de protesta.

Cuadro 1 - Colectivos socio-ambientales de Entre Ríos: ubicación, problemática central de protesta y año
de fundación
Año de
Nombre Ubicación Problemática central de protesta
fundación
Asamblea Ciudadana Concordia Concordia Fracking 2013
Asamblea Popular Colón- Ruta 135 Colón Fracking 2005
Asamblea Ciudadana Ambiental Gualeguaychú Papeleras 2005
Concepción del
Asamblea Ciudadana Fracking 2004
Uruguay
Todos por Todos San Salvador Fumigaciones 2013

4
Para una visión más amplia de estas características (Scribano 2003b, 2005b, 2005c, 2007a y 2007b);
Luna; Scribano (Comp., 2007).

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Victoria Libre de Fracking Victoria Fracking 2013


Grupo Ambiental Nogoyasero Nogoyá Fracking 2012
Foro Wajmapu Chajarí Fracking 2013
Entre Ríos Libre de Fracking Paraná Fracking 2012
Emprendimientos urbanos en
El Río es de Todos Paraná 2012
borde costero
Concepción del
Paren de fumigar las escuelas Uruguay- Fumigaciones 2011
Basavilbaso
Mesa Entre Ríos sin Agrotóxicos Paraná Agrotóxicos 2013
Concepción del
Grupo Güerta y Energía Agrotóxicos 2014
Uruguay
Emprendimiento turistico en borde
Más Ríos, Menos termas Paraná 2013
costero
Emprendimiento urbano en
Guardianes de Victoria Victoria 2014
humedales
Emprendimientos urbanos en
Salvemos el río Gualeguaychú Gualeguaychú 2014
humedales
Edificación de altura en borde
Stop Edificios Altos Paraná 2016
costero

El corpus relevado debe ser actualizado por experiencias de lucha


socioambiental que nacieron tras esa fecha, algunas inspiradas en estos antecedentes,
otras directamente vinculadas a ellas. La diversidad de temáticas evidentes en el
relevamiento es un indicador de la complejidad que ha adquirido la lucha socio-
ambiental como de la diversificación del modelo extractivista en la provincia.
Exceptuando la mega-minería, en Entre Ríos manifiesta los principales rasgos del
modelo extractivista en Argentina.
Adicionalmente, este primer registro expone el importante peso que tuvo la
lucha contra la exploración y explotación de hidrocarburos no convencionales (en torno
principalmente al Fracking) en la conflictividad socio-ambiental. El fracking fue
declarado de interés provincial por la Ley 9991. En 2010, ese mismo año, la provincia
firmó convenios entre YPF para comenzar exploraciones en el territorio. Este hecho
motivó el surgimiento de un importante número de colectivos socio-ambientales
organizados en torno a esta problemática a partir de los años 2012 y 2013.
La lucha contra la fumigación y los agrotóxicos tiene una fuerte relación con la
estructura productiva de la provincia y el crecimiento del modelo del “agronegocio”. La
lucha ambiental pudo hacer visible cómo afecta esta actividad al ambiente, a la salud de
los entrerrianos, al mercado interno y a los movimientos demográficos.
Por ejemplo, el caso entrerriano evidencia la expansión del agronegocio en la
última década, pasó de casi 600.000 hectáreas en 2000-2001 a casi 1.400.000 hectáreas
en 2013-2014. Un estudio del Instituto Nacional de Tecnología Agropecuaria demuestra
que los “nuevos actores productivos” ocupan el 61,5% de las2 millones de hectáreas de
superficie agrícola de la provincia, de las cuales el 42% (524.775hts.) corresponden a
megaempresas no entrerrianas, pooles de siembra locales y grandes propietarios. Los
censos nacionales de 1991, 2001 y 2010 aportan pruebas significativas de un creciente
desplazamiento de la población rural hacia las ciudades. La categoría de “población
rural dispersa”, es decir, aquella que vive directamente en el campo, registró una
disminución de 62.966 habitantes entre 1991 y 2010. El Cuadro 2 muestra datos sobre
la disminución constante de la población rural en la provincia.
Cuadro 2 - Variación de la población urbana/rural en Entre Ríos 1990 – 2010

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Año % Población Rural % Población Urbana


1990 23,00% 77,00%
2001 18,00% 82,00%
2010 15,00% 85,00%
Fuente: Elaboración propia con datos del Censo Nacional (INDEC)
Por último, merecenparticular atención colectivos socio-ambientalesque
reclaman ante el avance de proyectos de urbanización y turismo sobre espacios de
humedales o borde costero. Este tipo de conflictos se hace presente en Paraná en torno a
la instalación de un parque termal en la zona de la “Toma Vieja” sobre la barranca del
Río Paraná, por el desarrollo de proyectos de urbanización cercadas sobre el borde
costero y con la creciente construcción de edificios altos sobre las barrancas del Río
Paraná. En Gualeguaychu y Victoria aparece también por la urbanización sobre
humedales.
Así es posible identificar la presencia en Entre Ríos de lo que Maristella Svampa
y Enrique Viale han denominado “extractivismo urbano”:
El extractivismo ha llegado a las grandes ciudades. Pero no son los
terratenientes sojeros, ni las megamineras, sino la especulación
inmobiliaria la que aquí expulsa y provoca desplazamientos de
población, aglutina riqueza, se apropia de lo público, provoca daños
ambientales generalizados y desafía a la naturaleza en el marco de una
degradación institucional y social (SVAMPA: VIALE, 2014, p. 248).
Este proceso debe entenderse como la apropiación privada de los bienes
comunes urbanos a los fines de obtener rentas de monopolio, implica un salto
cualitativo en los procesos de mercantilización de la naturaleza y el espacio urbano.
El relevamiento supuso realizar un recorte temporal a partir de los datos
recabados en el marco del Proyecto mencionado. De los 17 colectivos relevados, 3
fueron fundados en ciudades de la costa del Río Uruguay durante los años 2004 y 2005,
principalmente a la luz del conflicto por las pasteras. El resto de los colectivos fueron
fundados a partir del 2011. Es decir que, en caso de haber colectivos socio-ambientales
fundados entre una fecha y otra, los mismos no se encontraban organizados y actuando
en el periodo del relevamiento. Teniendo en cuenta eso, se formuló una hipótesis sobre
la existencia una segunda oleada o ciclo de conflictos socio-ambientales en Entre Ríos.
La misma es heredera de la lucha contra las pasteras, pero también se nutre de la lucha
contra la megamineria que fue un emergente clave del conflicto socio-ambiental a nivel
nacional cuyo afianzamiento se puede ubicar a partir de 2005, en el marco de la
diversidad de problemáticas que emergen asociadas al avance del modelo extractivista,
así como de una creciente conciencia sobre sus distintos aspectos y efectos.
Así, el punto de partida inicial para el relevamiento es el año 2011, para
enfocarnos en esta segunda oleada de conflictos socio-ambientales, dar cuenta de sus
características y, por tanto, los procesos de estructuración del capitalismo
contemporáneo en Entre Ríos.

El conflicto socio-ambiental en Entre Ríos a partir del 2011: fracking, agrotóxicos


y extracivismo urbano

1. La problemática del fracking

La fractura hidráulica, más conocida como fracking por el término en inglés, es


una técnica no convencional para extraer el gas y petróleo del subsuelo terrestre de los

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poros y fisuras de determinadas rocas sedimentarias poco permeables. Las


perforaciones, la explosión y la inyección de químicos al subsuelo producen una serie
de daños muy nocivos para el ambiente y las personas. Desde derroche de grandes
volúmenes de agua, hasta contaminación del suelo y napas subterráneas, emisión de
gases contaminantes e irreversibles perjuicios sobre la salud. Los perjuicios y la
extensión planetaria del Fracking alentaron el surgimiento de una pluralidad de
movimientos de resistencia y de lucha en contra de esta técnica.
El contexto de desarrollo
El fracking fue una técnica marginal desde sus orígenes a mediados de 1950
hasta hace muy pocos años, actualmente abastece más del 30% del consumo
norteamericano. Fue tras la crisis de 2008 y la escalada de los precios internacionales de
los comodities, cuando el fracking amplió considerablemente sus márgenes de
beneficios y se extendió a escalas planetarias, abarcando países y regiones
tradicionalmente no hidrocarburíferas. Así, en 2010 el Departamento de Estado de los
Estados Unidos puso en marcha la Iniciativa Global de Gas Shale (GSGI) para abrir el
mundo a un paquete de negocios para las transnacionales del rubro (Halliburton,
Chevron, Texaco, Exxon, Aes. Corp., Apache Corp.)
En nuestro continente, la Iniciativa Global de Gas de Esquisto -de la que
participan Argentina, Chile, Colombia, Perú y Uruguay-, se potencia con el programa
Alianza de Energía y Clima de las Américas (ECPA), comandado por el Departamento
de Estado norteamericano y entidades como la Organización de Estados Americanos
(OEA), el Banco Interamericano de Desarrollo (BID), la Organización Latinoamericana
de Energía (OLE) y el Banco Mundial (BM).
El fracking en Argentina
La Argentina ingresa en este tablero durante una crisis energética inédita en la
que debió atender el mercado interno importando gas y petróleo siendo productor de
hidrocarburos. La explotación privada de YPF a cargo de REPSOL, sin controles en su
producción, ni en sus ganancias ni en sus inversiones se combinó con el congelamiento
de tarifas durante los gobiernos kirchneristas y el crecimiento del parque automotor
durante esos mismos años, fue usado de excusa por las empresas para profundizar las
políticas de saqueo y desinversión invocando la dinámica de los precios internacionales.
Así llega el fracking a la Argentina, un nuevo problema presentado como “solución”.
Esta explotación se extendió a más de 3/4 partes del territorio nacional, siendo
Neuquén la más decidida, con los casos resonantes de Vaca Muerta y Loma La Lata.
Entre el 2009 y el 2013, se descubrieron nuevas zonas potencialmente explotables en las
provincias de Chubut, Mendoza, Tierra del Fuego, Santa Cruz, Corrientes, Salta y Entre
Ríos y en 2012, el Decreto Nacional 1277/12 -que reglamentó la Ley Nº 26.741-
promovió las inversiones de recursos no convencionales entre sus objetivos estratégicos.
El fracking en Entre Ríos y la resistencia social contra su implementación
La Ley Nº 9991 reconoció de interés en 2010 la explotación de hidrocarburos en
Entre Ríos mientras al mismo tiempo el gobierno provincial firmaba convenios con
YPF para iniciar tareas de exploración. Hasta 2012, el gobierno provincial, el nacional e
YPF avanzaron en la búsqueda de inversiones para iniciar la extracción no convencional
de hidrocarburos en el territorio.
Sin esperar, la lucha socio-ambiental entrerriana (experiencias previas y nuevas),
respondieron organizándose y movilizándose en contra de esta avanzada. El evidente
daño del fracking sobre las napas subterráneas alentó a que estos actores alertaran sobre

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el riesgo que esta explotación representaba para las enormes reservas de agua dulce,
particularmente el Acuífero Guaraní.
La ciudadanía se organizó en un primer momento con convocatorias locales en
toda la provincia. Se destacan entre ellas las actividades realizadas por la Asociación
Gremial de Docentes de Entre Ríos (Agmer) junto con vecinos de diversas localidades,
que recorrieron el territorio provincial concientizando sobre las consecuencias
perjudiciales de esta actividad. Aquellos militantes cuentan más de 60 charlas en las
localidades como Concordia, Feliciano, Paraná, Chajarí, Federación, La Paz en la que
difundían diversos materiales impresos o audiovisuales, como el video documental
“Gasland”. Otra convocatoria pionera que se destaca fue el colectivo “Entre Ríos Libre
de fracking” promotora de charlas-debate en todo el territorio, ante la falta de
información sobre el tema.
Esa experiencia puntual de difusión visibilizó además una serie de problemáticas
urgentes, transformando estas charlas en una gran red militante. La educación ambiental
dio paso a movilizaciones que denunciaban la intervención del capital extractivista,
predatorio y destructivo de la naturaleza en Entre Ríos. El movimiento antifracking
sumó la agenda de lucha socioambiental previa como los problemas de las pasteras en
Uruguay, las fumigaciones en las proximidades de las escuelas, los agronegocios en
general y el avance del desarrollo urbano en las ciudades. Las declaraciones y la política
del gobernador Sergio Urribarri sobre el fracking lo transformó en un destinatario
prioritario de estas acciones públicas.
No pretendemos detallar las organizaciones antifracking, sino mostrar la
visibilidad que produjeron para 2012 y que se basó en un exhaustivo trabajo de
educación en toda la provincia. El profesor Javier Miranda, fue uno de los impulsores
originarios de esta tarea, tras las primeras charlas en junio del 2012, se articuló una
organización intersectorial que tuvo distintos ciclos de desarrollo y diversos actores, que
lograron conformar nucleamientos en varios departamentos de la provincia.
Para el relevamiento entrevistamos a distintos referentes de estas experiencias,
todos los consultados señalan la modificación de la Ley de hidrocarburos y la Ley
provincial 9991 como las principales motivaciones de la ciudadanía para organizarse.
Fue un resurgir de asambleas ambientales nacidas en conflictos precedentes, como
también el surgimiento de nuevos espacios de lucha y movilización (Concordia, Colón,
Chajarí, Federación, Nogoyá, Paraná).
El Acuífero Guaraní fue declarado como un bien en disputa, siguiendo a
Scribano, “incluso los bienes colectivos originarios - el agua, el aire, etc.- pasan a ser
objeto de conflicto cuando se agreden justamente los procesos de su producción,
acumulación y reproducción” (SCRIBANO, 2005, p. 6).Las asambleas identifican desde
un primer momento a YPF y el gobierno provincial como los promotores de este
proyecto. Pero con el correr del conflicto, las asambleas complejizaron su repertorio y
sumaron al gobierno nacional como antagonista, dentro del mapa nacional de política
extractivista.
Las conclusiones de las asambleas, permiten identificar los actores del conflicto
y ordenar su actividad. También evidencian que decidieron integrar el contramapa de
lucha ambiental y enfrentar así a una matriz productiva-económica de mayor escala,
compuesta por un complejo conglomerado extractivista.
Así, los asambleístas integran primero el movimiento “Entre Ríos Libre de
fracking” y la “Unión de Asambleas Ciudadanas” (UAC) del Litoral. El objetivo central
del primer espacio era conseguir la Ley Provincial que prohibiese el fracking, con ese
horizonte las asambleas regionales comenzaron acciones locales para lograr ordenanzas
municipales que impidiesen el fracking en las jurisdicciones municipales. Esta campaña

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de información y difusión implicó que los activistas se profesionalicen en ciertas


cuestiones técnicas y construyan un bagaje técnico a instancia de ingenieros y
especialistas consultados.
La estrategia surtió efecto, pues, mediante la difusión y la protesta social,
lograron que varios gobiernos locales declararan “Libre de Fracking” a sus
jurisdicciones - sobre todo a través de ordenanzas - y en 2017 que la legislatura
entrerriana sea la primera en declarar Libre de Fracking un territorio provincial a través
de la Ley N° 10.477.
El registro cronológico de las normas locales que declararon sus jurisdicciones
“Libre de Fracking” muestran la contundencia de la acción militante que logró en 2017
la ley provincial: En 2013, lo hicieron los gobiernos locales de San Jaime (marzo),
Concepción del Uruguay (abril), Colón (mayo), Diamante, Colonia Avellaneda, General
Ramírez, Rosario del Tala y Villaguay (junio), La Paz y Villa Mantero (Julio), Oro
Verde y Villa Elisa (agosto), Cerrito, Viale, Villa del Rosario (septiembre), Los
conquistadores (Octubre), Crespo (noviembre); en 2014, Bovril (abril), María Grande
(mayo), Urdinarrain (julio), Federación y San Salvador (agosto), General Campos e
Ibicuy (octubre), Basavilbaso y Federal (noviembre); en 2015, San José (julio),
Hasenkamp (octubre), Chajarí (diciembre); en 2016 en Nogoyá, Gualeguaychú,
Concordia y Paraná (abril), Larroque (mayo), Maciá (junio); y en 2017 la legislatura
provincial declara por Ley libre de Fracking a Entre Ríos.
La prohibición progresiva del fracking en estas localidades y finalmente en el
conjunto de la provincia, es un ejemplo contundente de cómo la acción colectiva logró
un resultado positivo e, independientemente de las valoraciones que puedan hacerse al
respecto, el dato importante es el logro de un objetivo común a partir de dicha acción
colectiva.
Esta experiencia de movilización social, de defensa y protección del territorio
pone en perspectiva otra serie de potenciales conflictos que, si bien no tienen la misma
visibilidad social que el fracking y las protestas ambientales ocurridas en Gualeguaychú
contra las pasteras, son de una relevancia fundamental y se inscriben en un modelo
extractivista que también afecta a las ciudades

2. Algunos problemas y conflictos vinculados al extractivismo urbano

En la provincia de Entre Ríos existe un modelo de desarrollo urbano y turístico


que avanza en ese sentido, enfrentando a los sectores ambientalistas, aplicando una
visión de desarrollo que es propia del sistema capitalista de producción en su fase
actual, que lo encuentra como un régimen social históricamente degradado y senil. El
extractivismo es un modelo que depreda la naturaleza en nombre del desarrollo, que
asimila sin más el Fracking a la energía, que expande frontera agrícola desmontando
indiscriminadamente, que fue consolidando el monocultivo de la soja sólo por los
precios internacionales. Las nuevas formas de uso del suelo basadas en potentes
productos agrotóxicos, no sólo son funcionales a una agricultura de semillas
transgénicas, también provocan daños ambientales y sociales alarmantes. El
departamento entrerriano de San Salvador es un triste ejemplo de cómo el capitalismo
extractivista mata y enferma, principalmente a través del cáncer. Como también las
amplias zonas inundadas del territorio provincial son prueba de que la alteración de los
ciclos naturales tiene sus tremendos costos.
El extractivismo urbano muestra una faceta propia: ciudades embellecidas, pero
contaminadas donde proliferan la construcción sobre humedales, la privatización de las
zonas ribereñas, la construcción de grandes edificios que alteran el paisaje natural como
la identidad local y hacen colapsar los servicios públicos. La especulación inmobiliaria

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produce un importante y paradójico déficit habitacional por los altos precios que genera
en el mercado inmobiliario, influyendo en la compra venta como también los alquileres
para amplios sectores de la población.
La protesta contra los mega-edificios
El extractivismo urbano se profundizó durante estos últimos años en Entre Ríos
y produjo el correspondiente contra-mapa de lucha ambiental. Así, nacieron en Paraná
experiencias que se organizaron en contra de la construcción de edificios en altura,
señalando la falta de control y el impacto ambiental de este acelerado proceso.
En una acción pública desarrollada en julio de 2016 en la costanera de Paraná, el
movimiento “Stop edificios” manifestaba
(…) pedir y pretender una ciudad de Paraná planificada
urbanísticamente, recuperando lo pintoresco, arquitectónico y
saludable de sus barrios y un aspecto pujante y floreciente de torres
modernas construidas en lugares especialmente pensados para ello,
con todos sus servicios, donde toda la población pueda disfrutar de
uno y otro aspecto de la ciudad, sin ocasionar perjuicios a nadie.
En noviembre de 2016, vecinos autoconvocados se organizaron para denunciar
el impacto negativo de la construcción de edificios de altura en zonas céntricas
mencionando la obstrucción de servicios como agua o cloacas, los daños producidos por
los rotundos movimientos y la contaminación sonora de la construcción. Diana Floresta,
integrante del colectivo advierte sobre estos proyectos inmobiliarios: “Están cambiando
la ciudad y afectando a los vecinos. En las obras nos llenan de polvo, nos rompen las
casas, y luego rebalsan las cloacas y debemos soportar el olor a aguas servidas y además
no tenemos agua en verano porque los servicios colapsan”. Además, denuncian la falta
de planificación de lugares de estacionamiento, la tala de árboles, el deterioro de las
calles, la pérdida del patrimonio histórico y espacios verdes.
El reclamo del colectivo tiene dos aristas fundamentales: exigir al municipio un
plan para regule explícitamente la construcción de este tipo de edificación y un nuevo
Código Urbano con participación ciudadana acorde al cuidado ambiental.
Los negocios en torno al Río Paraná y los conflictos al respecto
Simultáneamente, los gobiernos provincial y municipal rehicieron su relación
con el río, asumiéndolo como activo urbano, como patrimonio y paisaje, de cara a los
mercados turístico e inmobiliario. Desde 2012 se desarrolla el “Plan Maestro para el
Borde Costero” que impulsa obras para la “recuperación” y “puesta en valor” de esta
zona en un corto plazo con financiamiento municipal, provincial, nacional, internacional
y privado. El Plan priorizó la conectividad vial del borde costero, obras de
“regeneración” de los barrios ribereños y un reordenamiento de las actividades públicas
y privadas. A demás, Paraná se sumó en 2013 a la “Iniciativa Ciudades Emergentes y
Sostenibles” del Banco Interamericano de Desarrollo.
La relación ciudad/río desde este perfil descripto tributa en el proceso de
mercantilización del espacio urbano paranaense, sobre todo desde la actividad turística.
Extractivismo y turismo no sólo coexisten, aquí se retroalimentan. Evidenciando la
capacidad el turismo para reorganizar el espacio urbano a favor de la acumulación de
capital:“En el nuevo espacio turístico, la naturaleza, transformada en mercancía por
medio de la industria turístico residencial, se convierte en un factor clave para aumentar
ganancias.” (CAÑADA, 2016, p. 13).Y esta situación es muy evidente en el desarrollo
del termalismo en Entre Ríos.

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El termalismo como motor turístico tiene una historia tan reciente como
dinámica, se inició a mediados de los noventa con una primera perforación en la ciudad
de Federación. La trepanación nutre piletas y parques con aguas caracterizadas por su
temperatura, presencia de minerales y salinidad. Es una actividad que produce varios
daños al ambiente, el contraste de esas aguas desechadas en los cursos fluviales es la
principal preocupación. El éxito comercial de la actividad corrió el eje y produjo un
vertiginoso desarrollo de la actividad, promovida por los gobiernos municipales y
provincial. Para 2014 existían ya 15 complejos termales en la provincia. Esto fue
acompañado de un rápido desarrollo inmobiliario destinado al turismo que, a su vez,
atenta contra el patrimonio histórico arquitectónico.
El Estado “con su monopolio de la violencia y sus definiciones de legalidad”
(HARVEY, 2004, p. 113) desempeñó un papel clave en este proceso, es evidente hasta
el año 1993 en el decreto 2435 en el que el Poder Ejecutivo provincial crea una “Unidad
Transitoria de Proyectación” denominada “Desarrollo del Recurso Hidrotermal” y a
partir de 1994 mediante el decreto 773 cuando declara de interés provincial la
exploración y explotación del “recurso hidrotermal”. Es el Estado quien mercantiliza el
agua subterránea, con estas normas se reserva la propiedad del recurso y la capacidad
de otorgar concesiones de exploración y explotación y de delimitar las zonas
disponibles para ello.
Entre los años 1994 y 2013 se promulgan al menos 11 decretos (735/1995,
3172/1996, 4128/1996, 753/2002, 6768/2004, 6425/2005, 1463/2009, 1812/2011,
2711/2012, 2778/2013, 4630/2013)1que destinan recursos a distintos municipios como
inversión específica y en 2006 el gobierno provincial crea el Ente Regulador de
Recursos Termales por la ley N° 9678.
El termalismo no había sido objeto de crítica hasta el año 2013. Ese año, el
movimiento, “Más ríos, menos termas” logró frenar la construcción de un complejo
termal en la ciudad de Paraná, advirtiendo sobre el avance de la dinámica extractivista,
caracterizada por no priorizar la valoración, el cuidado y la protección del medio
ambiente y del territorio. Ese año el turismo termal puso en la mira a la “Toma Vieja”,
un punto que se encuentra en el noreste, sobre las barrancas históricamente vinculado a
la potabilización de agua y la recreación de los vecinos. El punto está alejado de la
ciudad y ofrece una vista panorámica del río Paraná cuya importancia fue certificada en
1997 cuando fue declarado como “Área Natural Protegida” por el Concejo Deliberante.
Un elemento central en este conflicto, es la pugna discursiva registrada entre sus
actores centrales. Los estados provincial y municipal jugaron un papel fundamental en
este sentido al pretender construir la marca “Paraná” sobre el concepto de ciudad-río,
usando el fuerte perfil fluvial de sus habitantes, como también la belleza de este
entorno. Como señala David Harvey, “existe siempre un fuerte componente social y
discursivo en la elaboración de tales causas para extraer rentas de monopolio”
(HARVEY, 2013, 155) y este caso lo confirma.
El municipio manifestaba que “La construcción del Complejo Termal y Parque
Acuático de Paraná es un proyecto impulsado por los gobiernos provincial y municipal,
en el afán de fortalecer el perfil turístico de la capital entrerriana y generar nuevas
inversiones. Desde lo urbano, se busca rescatar y desarrollar la ciudad–río.”
(MUNICIPALIDAD DE PARANÁ, 2013)
Así, la presencia del río como eje de la identidad de la ciudad, es al mismo
tiempo, presentada como “ventaja comparativa” capaz de generar rentas de monopolio,
como fuente de valorización del capital. El discurso oficial exaltaba la articulación entre
las inversiones públicas y privadas, locales y externas, como también evoca la “puesta
en valor” de los espacios públicos entre las tareas centrales del Estado. Ese discurso

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explicitaba la conversión del espacio público en una mercancía susceptible de ser


vendida, comprada, alquilada en favor de una alianza entre intereses estatales y ciertos
intereses privados. Era transformar espacios públicos que considerados valores de uso
para los ciudadanos de Paraná, como el camping de la Toma Vieja, en valores de
cambio para esa matriz productiva.
Son ejemplos de extractivismo urbano, basados en obtener rentas de la
mercantilización y explotación de la naturaleza urbana, articulando dimensiones comolo
urbano, ambiental, política y económico. La captación de inversiones implica ingresar
en el mercado particular de consumo que supone el turismo, disputando “clientes”.
Aquí irrumpe el conflicto ciudadano visibilizando los métodos del
“extractivismo urbano” que venimos analizando. La asamblea ciudadana enfrentó la
hegemonía estatal expresada en ese proyecto que intervenía sobre lo ambiental, urbano,
económico y político presentando tendencias “conceptualmente subterráneas”.
Ocupando, movilizando, resignificando espacios y políticas, el conflicto expuso
que estos procesos no son neutrales, ni ingenuos: la ciudad se produce a partir de
procesos políticos, vinculados, por lo tanto, con la acumulación de capital. Así, la
incorporación de un espacio determinado a la esfera mercantil implicó la politización de
los procesos de reproducción social y denunció los intentos de subordinación a la
reproducción ampliada del capital.
Los ciudadanos movilizados respondieron con un discurso que remarcaba el
valor de uso del espacio en disputa, para enfrentar al de valor de cambio. Encarnaron el
giro “ecoterritorial” del que habla Maristella Svampa, fueron autor de nuevos marcos
que sirven “de esquemas de interpretación global y, al mismo tiempo, como productores
de una subjetividad colectiva alternativa.” (SVAMPA; VIALE, 2014, p. 35).
Una disputa similar se dio por el espacio costero en Gualeguaychú, ante el
anuncio en 2012 del proyecto “Amarras del Gualeguaychú”,un “barrio náutico”
planificado por la empresa “Altos de Unzué” que ocuparía parte del humedal que forma
el río Gualeguaychú.
El proyecto se presentaba como una urbanización amigable, desarrollada sobre
la singular combinación de una completa y moderna infraestructura, estupenda
arquitectura, y de un entorno natural único e irrepetible. Inspirados en el río y la
naturaleza, creamos un ambicioso proyecto con el objetivo de generar nuevos espacios
de vivienda, deportes y servicios, que brinde la máxima calidad de vida a los residentes,
impulse el crecimiento en la zona y cubra áreas de gran importancia en el desarrollo de
una ciudad que crece.
Ofrece 350 lotes de 900 metros cuadrados en un predio de 110 hectáreas,
equipados con amarraderos exclusivos para embarcaciones, salones de usos múltiples,
espacios de recreación, etc.
Como en el termalismo, el papel del Estado en estos casos es crucial, tal es así
que Pueblo Belgrano - lindante a Gualeguaychú - amplió su ejido en enero de 2012 para
favorecer el emprendimiento. La norma autorizaba a urbanizar los terrenos donde se
proyectaba el barrio náutico. Con el comienzo de las obras en 2015, la ciudadanía se
convocó en torno a la asamblea “Salvemos el Río Gualeguaychú”, que ya había
organizado actividades de difusión de la problemática. Acuden diversas agrupaciones y
vecinos de barrios que padecerían las consecuencias del emprendimiento, sobre todo del
levantamiento del nivel de la zona de humedales que modificaba el régimen de crecida y
descarga natural del río Gualeguaychú.
La asamblea se moviliza en los meses de Julio, Agosto y Octubre de 2015 bajo
consignas como “No a la destrucción de los humedales”, “La tierra es nuestra casa, el
río es nuestra vida, sigamos luchando para preservarlo” o “No queremos ser inundados”.

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Una proclama expone “Nuestro sello de lugaridad, distintivo de cualquier otro, no se


negocia”, “Queremos nuestras costas libres de cemento, exigimos el acceso libre a
nuestras costas por ser un bien común, no queremos que una construcción exclusiva
modifique nuestro paisaje natural”. La asamblea construye con claridad los términos
simbólicos del bien en disputa, es precisamente eso denominado como “lugaridad”, es
decir, su espacio vital, ese que está amenazado por la lógica de la mercantilización
expresada en el barrio náutico.
Ambas experiencias urbanas tienen su continuidad hasta el día de hoy,
principalmente la de la ciudad de Paraná. Entre los casos paranaenses que debemos
incorporar al cuadro inicial y a los posteriores análisis de este artículo, destacamos
ejemplos ineludibles como la coordinadora “Basta es Basta” (y sus constantes “Rondas
de los martes” que se realizan enfrente a la Casa de Gobierno), enfocada en la lucha
contra los agrotóxicos pero muy comprometida con toda la agenda socioambiental
regional; la “Multisectorial x los Humedales” que abarcó además diversas
reivindicaciones ribereñas; las convocatorias de la “Asamblea Ciudadana Vecinalista de
Paraná” en defensa del espacio público, principalmente en el Parque Urquiza; o la
movida impulsada por el Foro Ecologista de Paraná por detener el proyecto municipal
en avenida Racedo que planeaba entre sus modificaciones la tala de árboles añosos, muy
valorados por los vecinos de la zona. Estas experiencias obtuvieron triunfos en diversos
campos, incluso el judicial. El primero de ellos es poder patear el tablero de la opinión
pública con estos reclamos, demandas que no son sólo puntuales, sino que siempre son
enmarcadas en un mapa de problemáticas que las asocian a problema del acceso de la
tierra, expropiación de bienes comunes, concentración de propiedades, entre muchos.
Por otro lado, cabe destacar que los muchos miembros de cada entidad mencionada
participaron en experiencias previas y, además, participan en varias de las actuales. Esto
fortalece no sólo las acciones en red, sino también dan volumen al debate respecto a
cuáles son los bienes en disputa y quiénes son los antagonistas. Por otro lado, la
dinámica de estas asambleas - de diversas naturalezas - favorece la asistencia de la
ciudadanía a las acciones y la participación directamente en ellas mismas.

3. Resistencias al modelo de los agronegocios


Visibilizar lo invisible
Está claro que, entre las dificultades de organizar las acciones de lucha
ambiental, cuentan el peso del agronegocio como una realidad cada vez más instalada
en la provincia que ya ha tejido una red de intereses económicos y sociales que la
defienden y que trabaja por invisibilizar el daño que provocan en la provincia. Así lo
expresa Facundo Scattone, integrante de la Asamblea Ciudadana de Concordia “la
cuestión del agronegocio a nosotros nos es mucho más difícil de sacar que cualquier
otro tipo de extractivismo porque somos un país que se funda históricamente sobre un
relato agroexportador.”Son elementos centrales a la hora de analizar la lucha ambiental
entrerriana por estos años
En ese clima de época, debemos destacar el rol que jugaron los docentes desde
su pertenencia al sindicato (Asociación Gremial del Magisterio) y, particularmente, el
protagonismo que caracterizó a los docentes rurales, sobre todo ante la problemática de
las fumigaciones. La campaña “Paren de fumigar las escuelas” destaca estos rasgos en
los orígenes del movimiento 2011y la organización en redes con presencia del sindicato
como clave para su madurez.
La campaña nació impulsada junto a la Asamblea Ciudadana Ambiental de
Concepción del Uruguay, consultando a profesionales de distintas ramas, con un fuerte

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perfil basado en educación ambiental, visiblizando la problemática y analizando la


normativa vigente a través de charlas e impresos. A su vez, alentaba a que la ciudadanía
denunciase estas tóxicas para lo cual elaboran un protocolo de actuación que se
distribuye en escuelas y comunidades. La difusión de la información los llevó a dirigirse
directamente con las escuelas rurales y sus comunidades, y a publicar en sus fachadas
carteles que declaraban la normativa sobre fumigaciones, los daños a la salud y los
pasos a seguir en caso de peligro.
La fuerte apuesta a la información tenía como objetivo ganarle la primera batalla
a la desinformación, a la invisibilización de semejante problemática.
Los ecos de esta lucha resonaron en toda la provincia y se manifestaron en
acciones de todo tipo, como en las acciones organizadas en Paraná, en el marco de la
jornada global “Marcha Mundial contra Monsanto, como la movilización convocada en
2014 por el colectivo “Entre Ríos Si, Entre Venenos NO” bajo la consigna “Pueblos
Libres de Agrotóxicos y Alimentos Transgénicos” que partía desde la Bolsa de Cereales
de Entre Ríos y recorría las calles céntricas. El itinerario identificaba claramente a la
Bolsa como un claro antagonista en esa lucha.
Antagonistas
Nuestro trabajo de campo revela que la lucha ambiental entrerriana reciente
identifica claramente dos antagonistas. Por un lado, los agentes “directos” del modelo,
desde aplicadores de agroquímicos o productores agrarios (dueños de las tierras o
quienes producen en ellas) hasta grandes actores (multinacionales como Monsanto y
actores socio-económicos como la Bolsa de Cereales de Entre Ríos). Por otro lado, se
encuentran a los responsables políticos: los estados y gobiernos municipales,
provinciales, nacionales, así como integrantes individuales de esas estructuras que son
señalados puntualmente.
Así, los integrantes de la campaña “Paren de fumigar las escuelas”, nos dicen,
Y, la responsabilidad, en principio, es compartida. Hay parte de
responsabilidad del productor-aplicador y hay gran parte de la
responsabilidad del Estado, que es quien tiene que controlar y quien
implementa las políticas y los medios para proteger al resto de la gente
de esa situación. (…) El Estado está a favor del modelo, no hay otra
respuesta que te podamos dar.
El antagonismo con el Estado llega a su punto de máxima tensión cuando a
mediados del año 2014, los senadores del Partido Justicialista - Frente Para la Victoria,
Oscar Arlettazz y Enrique Cresto presentaron un proyecto de ley de “regulación de
fitosanitarios” que reducía las distancias de fumigación a 100 metros en la aérea y 50
metros en la terrestre, con respecto a las zonas pobladas. El movimiento respondió de
inmediato, “Entre Ríos sí, Entre venenos NO” concentró en la explanada de la Casa de
Gobierno, bajo la consigna “NO a la Ley de Agrotóxicos” con la participación de la
Asamblea Popular Ambiental Colon - Ruta 135, de la CTA Paraná y del MST. La
aprobación de la Ley abrió un frente de lucha que tuvo una faceta judicial y fortaleció el
perfil originario centrado en la información y la difusión entre la ciudadanía.

Conclusiones
La investigación realizada en torno a las tres expresiones fundamentales del
extractivismo en la provincia de Entre Ríos entre los años 2011 y 2020 (fracking,
extractivismo urbano y agronegocios), brinda elementos para profundizar la
conflictividad socio-ambiental; sobre todo pensando en una sistematización transversal
que examine y comprenda los procesos de protesta socio-ambientales, para dilucidar los

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elementos en común que estructuran sus diversas manifestaciones. Todo conflicto social
parte de una valoración diferencial de un bien en disputa (SCRIBANO, 2005), que está
anclado en diferentes posiciones sociales por la indiscutible dimensión de clase que lo
estructura. Por eso es fundamental analizar la naturaleza conflictual de cada caso, pues
“refiere al contenido de la relación conflictual. Es decir, lo que se manifiesta como
objeto del conflicto, su ‘pertenencia’ estructural y los modos de visibilidad que
adquieren en el marco de una acción colectiva” (SCRIBANO, 2005, p. 9). Porque
también es clave identificar las configuraciones antagónicas que los propios actores
realizan sobre el mismo.
El análisis de las acciones de protesta en Entre Ríos, nos aproxima a los bienes
sobre los que reconocen disputa (agua, ríos, humedales, biodiversidad, salud, aire, etc.),
pero también sobre aspectos clave como los actores que reconocen como antagonistas,
el rol del Estado que proponen o la configuración de actores (tanto los aliados como los
antagonistas) y de sus diversos puntos de vista.
Respecto a los bienes en disputa, no basta con una simple enumeración,
corresponde indagar las articulaciones que las conceptualizan como componentes
esenciales de reproducción de la vida, por un lado, y como partes de un espacio vital, de
un territorio, por otro. Porque la vida como el territorio es el núcleo fundamental de
aquello que los actores de las protestas socio-ambientales consideran que está en juego,
son objetos centrales de los diversos conflictos analizados. Lo vemos en las luchas
contra el barrio Amarras en Gualeguaychú (“La tierra es nuestra casa, el río es nuestra
vida, sigamos luchando para preservarlos”) o en la “lugaridad” reclamada por la
Asamblea “Salvemos el Río Gualeguaychú” durante el mismo conflicto. Lo mismo
ocurre en el “Manifiesto de la Asamblea ‘Mas Ríos, Menos Termas” la instalación de
un complejo termal en Paraná. Al declarar que se movilizaban “por el derecho a la
vida, al ambiente sano y el paisaje”.
El territorio es conceptualizado en términos de “hogar”, es decir como sede
fundamental para la reproducción social, en contraposición a esa visión que exalta
ciertas potencialidades económicas del territorio, enarbolada y defendida por el
gobierno en tanto antagonista en el conflicto.
En la construcción del bien en disputa en los conflictos contra el agronegocio,
los colectivos socio-ambientales reconocen que el territorio no es simplemente un mero
“recurso económico” al servicio de cierta matriz productiva, es comprendido como el
espacio de vida de las comunidades, condición elemental de existencia y desarrollo de
los seres vivos. Así, su discurso enfatiza en el daño para el ambiente y la salud que
producen estas intervenciones, como ocurre en los materiales de la campaña “Paren de
fumigar las escuelas”, de la Asamblea Ciudadana Ambiental de Concepción del
Uruguay.
Finalmente, en la lucha entrerriana contra el Fracking se expresan estas mismas
coordenadas de conflictividad. La primera declaración pública del colectivo “Entre Ríos
Libre de Fracking” sostiene respecto a los bienes que el “agua es un recurso vital y
estratégico de la humanidad. Es vida, es salud, es un bien esencial y necesario de la
Naturaleza que debe preservarse para nosotros y las siguientes generaciones.”, y a los
antagonistas que “posan sus ojos en ella, y la disputa a sangre y fuego por su
apropiación es el fantasma que se cierne sobre nosotros y quienes nos sucederán”.
También en la carta enviada a los legisladores, sobre todo al interpelarlos” (…) nos
preguntamos: ¿En qué cabeza cabe "permitir" que se destruya NUESTRO HOGAR y
LA VIDA? ¿Qué harán las autoridades entrerrianas para impedir que el fracking se
instale en la Provincia?”

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La subsunción de los territorios al capital implica una disrupción de los procesos


de reproducción de la vida misma en esos espacios. Esos territorios se convierten en
zonas de sacrificio determinada por la lógica del capital. La lógica de la producción de
valor bajo las relaciones sociales capitalistas, implica una dinámica de expansión
geográfica de la mercantilización. Esto ha llevado a una creciente politización de las
relaciones entre sociedad y naturaleza. En este sentido, puede comprenderse el
incremento de las disputas en torno a la apropiación y los usos del territorio como una
expresión de las contradicciones inherentes al sistema capitalista. Cuando las
condiciones de la reproducción ampliada del capital implican una ruptura del
metabolismo entre sociedad y naturaleza, e interrumpen por lo tanto el proceso de
reproducción de la vida, es la propia vida la que se configura como bien en disputa.

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DOCUMENTOS

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Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro.
Apresentação do artigo de Maurice Halbwachs
‘Chicago, experiência étnica’ / Presentation of
the article by Maurice Halbwachs: ‘Chicago,
ethnic experience’. Sociabilidades Urbanas,
Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n.
13, pp. 173-176, março de 2021, ISSN 2526-
4702.
DOCUMENTO
https://grem-grei.org/numero-atual-socurbs/

Apresentação do artigo de Maurice Halbwachs ‘Chicago, experiência


étnica’

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

A série Documentos da Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e


Sociologia, publica neste número um artigo escrito em 1932 pelo sociólogo francês
Maurice Halbwachs (1887-1945). Halbwachs, de formação durkheimiana, é um autor
clássico, e muito conhecido no meio acadêmico (e fora dele) por seus estudos sobre
memória coletiva.
Em 1930, Halbwachs passou um semestre letivo como professor visitante na
Universidade de Chicago. Nessa estadia se deparou com a enérgica, vibrante, conflitante
e aparentemente ilógica metrópole que o recebeu.
Com esse deparar inquietou-se, e como acadêmico e como indivíduo mergulhou
a fundo na experiência metropolitana de Chicago de então. Nessa imersão se encantou
com o seu processo dinâmico, pulsante em seu ritmo de crescimento espacial e
econômico, e com sua dinâmica populacional, com a chegada crescente de levas
continuadas de imigrantes vindos de todos os estados dos Estados Unidos, quanto de
todas as partes do mundo, principalmente da Europa.
Em suas horas vagas caminhou pela cidade, conversou com homens e mulheres
comuns, e teve acesso a toda uma produção, da também nova e dinâmica escola de
sociologia e antropologia da Universidade de Chicago, que conhecemos hoje como
Escola de Chicago, e sua primeira geração de pesquisadores. Do mesmo modo que teve
ingresso livre e em mãos a dados estatísticos produzidos na e sobre a cidade, o que lhe
possibilitou também abertura para conversas e entrevistas com muitos coordenadores e
técnicos que trabalhavam em associações e instituições locais.
De posse deste rico material, - e utilizando as notas técnicas e relatórios
produzidos por ele durante sua estada na cidade, bem como as cartas pessoais que
escreveu a familiares e um diário no qual registrou suas impressões sobre o impacto
causado a ele diariamente pela dinâmica e polifônica Chicago daquela época, - escreve
o artigo Chicago, experiência étnica. Este artigo foi publicado em 1932 na Annales
d'histoire économique et social, uma revista acadêmica editada pelos historiadores
franceses Marc Bloch e Lucien Febvre.
O artigo de Halbwachs, destarte, é um documento rico para a antropologia e
sociologia urbana que se debruçam sobre a dinâmica tensiva do cotidiano de uma
grande cidade em constante transformação, e as formas de ajustamento e resistências
174

dos homens e mulheres às suas malhas. É um opulento registro também, de um lado,


sobre a dinâmica populacional crescente em um emaranhado de linhagens étnicas,
recém chegadas ou já estabelecidas na cidade. Linhagens estas em busca de uma
possível integração, e as resistências pessoais ou étnicas próprias a esta acomodação
nova à cidade que os acolheu: em relação à linguagem, religião, costumes, etc.
De outro lado, também, é um rico documento sobre os preconceitos. Estigmas
sofridos por parte da população nativa, ou entre as diversas linhas étnicas entre si; e
sobre os sistemas de classificação interna e comparativa entre os nativos e os
imigrantes.
Do mesmo modo em relação às dificuldades de emprego, ao desemprego
massivo, e aos indivíduos ‘sem destino’ – conhecidos por hobos – sempre em
movimento de ida e retorno, na temporalidade dos empregos sazonais. Retrata
igualmente o problema da moradia, o problema da conformação dos bairros e suas
fronteiras e interstícios, entre outros aspectos da sociabilidade tensa local e das
conformações densas em torno da socialidade situada contextualmente em que todos se
defrontavam como indivíduos e como grupos, dentro de um ajustamento forçado e na
maior parte das vezes conflitivo.
É, portando, ao jogo tenso e conflitual, e às formas de ajustamentos,
fragmentação e violência vividas em um ambiente em mutação acelerada da Chicago
dos anos trinta que o artigo se refere e investiga. E, nesse arcabouço tensivo e
fascinante, ele compara a dinâmica da cidade de Chicago, como metrópole, a sua cidade
Paris. Nesse esforço comparativo, avalia processos comuns e diferenças marcantes nas
duas conformações urbanas.
O artigo que a série Documentos da Sociabilidades Urbanas, Revista de
Antropologia e Sociologia publica neste número, destarte, é um texto denso, sensível, e
instigador para os que lidam com a temática urbana. Esta temática é trabalhada por
Halbwachs de maneira sensível e fascinante, tanto na abordagem de facetas densas no
que diz respeito às disputas morais pessoais, - do indivíduo consigo próprio, - quanto
em relação às disputas morais grupais e tensões correspondentes, - no interior dos
grupamentos étnicos, ou entre diferentes etnias diferentes, ou ainda entre os nativos e os
outros (estrangeiros, mesmo os nascidos na própria cidade ou no próprio país) - em
torno da integração e da resistência, e da inclusão e sentimentos de exclusão sociais no
cotidiano da cidade.
Chama a atenção do leitor, também, o esforço do autor de entender a lógica
aparentemente ilógica da conformação urbana, da diversidade cultural e das culturas em
jogo na cidade de Chicago sempre a partir de uma balança ambivalente de aproximação
e de ruptura cotidiana. Igualmente a atenção do leitor é despertada pelo esforço
compreensivo denso e tensivo do autor das dificuldades encontradas e das
possibilidades aparecidas e que são experimentadas pelas e nas interrelações grupais e
étnicas - com seus acertos e muitos erros, – geradoras de agências solidárias, mas,
também, de processos estigmatizantes e preconceituosos.
Enfim, Chicago, experiência étnica é um texto a ser lido em sua complexidade
metodológica. Como um artigo-retrato dinâmico das relações tensivas entre indivíduos e
cidade, e entre a trama urbana e o planejamento urbano de uma cidade-metrópole em
crescimento pulsante, agregador, mais também e principalmente segregador e desigual.

Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
175

Presentation of the article by Maurice Halbwachs ‘Chicago, ethnic


experience’

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

The series Documents of Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e


Sociologia, publishes in this issue an article written in 1932 by the French sociologist
Maurice Halbwachs (1887-1945). Halbwachs, of Durkheimian background, is a classic
author, and well known in academia (and outside) for his studies on collective memory.
In 1930, Halbwachs spent a semester as a visiting professor at the University of
Chicago. During this stay he was faced with the energetic, vibrant, conflicting and
apparently illogical metropolis that received him.
He was concerned about this encounter and, as an academic and as an
individual, he immersed himself in the Chicago metropolitan experience of that time. In
this immersion he was enchanted with its dynamic process, pulsating in its pace of
spatial and economic growth, and with its population dynamics, with the growing
arrival of continued waves of immigrants from all states of the United States, as well as
from all parts of the country, mainly from Europe.
In his spare time, he walked around the city, talked to ordinary men and women,
and had access to a whole production, from the also new and dynamic school of
sociology and anthropology at the University of Chicago, which we know today as the
Chicago School, and its first generation of researchers. In the same way that he had free
and hands-on access to statistical data produced in and about the city, which also
enabled him to be open for conversations and interviews with many coordinators and
technicians who worked in local associations and institutions.
With this rich material in hand, - and using the technical notes and reports
produced by him during his stay in the city, as well as the personal letters he wrote to
family members and a diary in which he recorded his impressions of the impact caused
to him daily by the dynamic and polyphonic Chicago of that time, - writes the article
Chicago, ethnic experience. This article is published in 1932 in the Annales d'histoire
économique et social, a academic journal edited by French historians Marc Bloch and
Lucien Febvre.
Halbwachs' article, therefore, is a rich document for anthropology and urban
sociology that focuses on the tense dynamics of the daily life of a large city in constant
transformation, and the forms of adjustment and resistance of men and women to its
meshes. It is an opulent record also, on the one hand, of the growing population
dynamics in a tangle of ethnic lines, newly arrived or already established in the city.
Lineages in search of possible integration, and personal or ethnic resistance for this new
accommodation to the city that welcomed them: in relation to language, religion,
customs, etc.
On the other hand, it is also a rich document on prejudices. Stigmas suffered by
the native population, or among the different ethnic lines among themselves; and on the
internal and comparative classification systems between natives and immigrants.
As well as in relation to job difficulties, massive unemployment, and ‘aimless’
individuals - known as hobos - always on the go and back, in the temporality of

Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
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seasonal jobs. In the same way that it portrays the problem of housing, the problem of
the configuration of neighborhoods and their borders and interstices, among other
aspects of the local tense sociability and of the dense conformations around the
contextually situated sociality in which everyone faced each other as individuals, as
groups, within a forced and most often conflicting adjustment.
It is, therefore, the tense and conflicting game, and the forms of adjustments,
fragmentation and violence experienced in a rapidly changing Chicago environment of
the thirties that the article refers to and investigates. And in this tense and fascinating
framework, he compares the dynamics of the city of Chicago, as a metropolis, to his
city Paris. In this comparative effort, it evaluates common processes and marked
differences in the two urban formations.
The article published by the series Documents of Sociabilidades Urbanas,
Revista de Antropologia e Sociologia in this issue, is a dense, sensitive and instigating
text for those dealing with the urban theme. This theme is worked on by Halbwachs in a
sensitive and fascinating way, whether in the approach of dense facets with regard to
personal moral disputes - of the individual with himself, - and in relation to the group
moral disputes and corresponding tensions - within ethnic groups, or between different
ethnicities, or between natives and others (foreigners, even those born in the city or in
the country itself) - around integration and resistance, and the inclusion and feeling of
social exclusion in the daily life of the city.
The reader's attention also draws the author's effort to understand the apparently
illogical logic of urban conformation, cultural diversity and cultures at play in the city
of Chicago, always from an ambivalent scale of approach and daily rupture. Likewise,
the reader's attention is awakened by the author's dense and tense understanding of the
difficulties encountered and the possibilities that appear and are experienced by and in
the group and ethnic interrelationships - with their successes and many errors - that
generate solidarity agencies, but also , of stigmatizing and prejudiced processes.
Anyway, Chicago, ethnic experience is a text to be read in its methodological
complexity. As a dynamic article-portrait of tense relationships between individuals and
the city, and between the urban weave and the urban planning, of a metropolis city in
pulsating growth, aggregator, more also and mainly segregating and unequal.

Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
HALBWACHS, Maurice. Tradução de Mauro
Guilherme Pinheiro Koury. Chicago, experi-
ência étnica. Sociabilidades Urbanas, Revista
de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, pp.
177-209, março de 2021, ISSN 2526-4702.
DOCUMENTO
https://grem-grei.org/numero-atual-socurbs/

Chicago, experiência étnica


Chicago, ethnic experience

Maurice Halbwachs (∗1887 †1945)


Tradução de Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Apresentação: A série Documentos da Sociabilidades Urbanas, Revista de Antropologia e


Sociologia, publica neste número um artigo escrito em 1932 pelo sociólogo francês, de
formação durkheimiana, Maurice Halbwachs (1887-1945). Autor clássico, ele é muito
conhecido no meio acadêmico (e fora dele) por seus estudos sobre memória coletiva.
Halbwachs, em 1930, passou um semestre letivo como professor visitante na Universidade
de Chicago. Nessa estadia escreveu o artigo Chicago, expérience ethnique, publicado em
1932, na revista Annales d'histoire économique et social. O artigo de Halbwachs é um
documento rico para a antropologia e sociologia urbana que se debruçam sobre a dinâmica
tensiva do cotidiano de uma grande cidade em constante transformação, e as formas de
ajustamento e resistências dos homens e mulheres às suas malhas.
Presentation: The series Documents of Sociabilidades Urbanas, Revista de Antropologia e
Sociologia, publishes in this issue an article written in 1932 by the French sociologist, of
Durkheimian education, Maurice Halbwachs (1887-1945). Classic author, he is a well
known in academia (and outside) for his studies on collective memory. Halbwachs, in 1930,
spent a semester as a visiting professor at the University of Chicago. During this stay, he
wrote the article Chicago, ethnique expérience and published it in 1932, in the Annales
d'histoire économique et social. Halbwachs' article is a rich document for anthropology and
urban sociology that focuses on the tense dynamics of the daily life of a large city in
constant transformation, and the ways of adjustment and resistance of men and women to
its meshes.

I - Crescimento e características gerais da cidade∗


Os estatísticos americanos chamam de centro populacional um ponto que
definem como tal. Suponha que a superfície dos Estados Unidos seja um plano rígido
sem espessura e que todos os habitantes tenham o mesmo peso: o centro de gravidade
dessa superfície representa o centro da população. Conhecemos sua posição em cada
censo, de dez a dez anos, desde 1790. Naquela época era 23 milhas (ou quase 35 km) a
leste de Baltimore, Maryland. Vamos segui-lo.
Em um movimento contínuo ele se movimentou em direção ao Ocidente,
atravessou Baltimore e passou 18 milhas a oeste da cidade em 1800. Em 1810 foi
encontrado a 40 milhas a noroeste de Washington.
Avançou então 50 milhas a oeste, a partir dessa data, até 1820; 40 milhas na
década seguinte; 55 milhas entre 1830 e 1840; 55 milhas em 1850, e cobriu 80 milhas


Este artigo foi publicado originalmente sob o título: “Chicago, expérience ethnique”, nos Annales
d’histoire économique et sociale. 4ᵉ année, n. 13, pp. 11-49, 1932.
178

antes de 1860. Naquela época, atravessava o rio Ohio e se aproximava da longitude de


Columbus e Detroit.
De 1860 a 1870, durante a Guerra Civil Americana e nos anos que se seguiram,
ele ainda se movia também para o oeste, a 44 milhas. Em 1880, ele alcançou e passou
por Cincinnati, depois de uma viagem de 58 milhas.
Em 1890, ganhou mais 48 milhas; em 1900, 15 milhas; em 1910, 39 milhas.
Desta vez estava em Bloomington, uma pequena cidade em Indiana, ao sul de
Indianápolis. Mais 16 quilômetros, e em 1920 quase alcançou Illinois e a longitude de
Chicago. Tocaria Chicago, se, nessa marcha em direção ao oeste, não tivesse
permanecido um pouco abaixo da latitude inicial, e não foi mais encontrado perto de
Saint-Louis.
No total, 573 milhas em 130 anos; seis ou sete quilômetros por ano, sempre na
mesma linha, em direção ao oeste. É esse caminho, e com essa velocidade, que seria
necessário seguir, para permanecer no ponto em que é fixado, a cada momento, o
resultado do deslocamento de tantos milhões de homens.
Chicago, por conseguinte, ocupa uma localização muito central. Não há cidade
nos Estados Unidos cujo desenvolvimento seja mais aparente com o crescimento dessa
população, com o movimento e expansão que a levou não só para o oeste, mas para toda
a região intermediária, em particular para o meio-oeste, - terra de pioneiros e colonos,
onde os agricultores se estabeleceram nas pradarias do Lago Michigan no Mississipi.
A cidade cresceu com velocidade sem precedentes. “Chicago há oitenta anos”, -
escreveu o Walter D. Moody (1919) há dez anos, - “era apenas o lugar de algumas
cabanas índias. Agora é a quinta cidade do mundo”. Não há fato mais marcante na
história da formação das cidades.
No final de 1830, de fato, havia apenas uma vila, que incluía doze casas e três
residências suburbanas, com talvez cem habitantes. Em 1821, por um acordo concluído
com as tribos do noroeste, Ottawa, Chippewas, etc., os Estados Unidos adquiriram nessa
área cinco milhões de acres. Estradas foram construídas para Detroit e Fort Wayne.
A última guerra indígena de Winnebago estourou e terminou em 1827. Naquele
momento, as notícias só podiam ser ouvidas em Niles (Michigan). Um índio mestiço
que costumava semanalmente ir para lá a pé, era enviado a cada duas semanas em busca
de notícias (RELIG. PHILO. PUB. ASSOCIATION, 1886). O Forte Dearborn, -
estabelecido na região em 1804, tomado e destruído pelos índios, foi reconstruído por
volta de 1820, - era o centro do comércio de peles do noroeste.
No Quadro 1 abaixo estão alguns números que mostram a rapidez com que a
cidade cresceu, em comparação com a população de Nova Iorque nos mesmos anos1.
Quadro 1 – Aumento comparado da população entre as cidades de Chicago e Nova Iorque

1
A população de Nova Iorque, em 1790, era 49.401; em 1800, 60.489; em 1810, 96.373; em 1820,
123.706; em 1830, 203.007. Em 1860 Chicago ficou em oitavo lugar, ultrapassado pela Filadélfia
(565.529), Brooklin (279.122), etc. Em 1900, o Brooklin foi anexado a Nova Iorque, daí o grande
aumento da população desta cidade, nesta data. Chicago, porém, ultrapassou levemente a Filadélfia em
1890 e ocupa o segundo lugar desde então.

Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
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Destarte, de 1860 a 1930, a população de Chicago aumentou na proporção


propo de 1
para 31, enquanto, no mesmo período, o aumento para Nova Iorque foi de apenas 1 para
9. Para entender como se produziu esse movimento, deve-se se considerar que, desde
1860, a superfície da cidade se estendeu consideravelmente, por uma série de anexos
anex
sucessivos. Como um termo de comparação, lembremos que Paris, em seu recinto atual,
cobre 78 km2.
No Quadro 2 abaixo se encontra a área de Chicago, nas diferentes datas
indicadas2:
Quadro 2 - Taxas de aumento do número de habitantes em Chicago

A população cresceu mais do que o dobro da velocidade da superfície. Podemos


dizer, grosso modo, que metade do aumento no número de habitantes de Chicago se
deve à extensão da superfície, e metade ao aumento da densidade populacional.
popu Em
Paris, em um recinto
to que não mudou, a população aumentou, entre 1861 e 1921, de 100
para 172. Em Chicago, a densidade da população, na superfície atual, certamente
aumentou em mais de 100 para 1.000.
Foi entre 1880 e 1890 que a superfície de Chicago quadruplicou, mais
precisamente entre os anos de 1887 e 1889. Atualmente, a cidade de Jefferson, a
noroeste de Chicago (Milwaukee Avenue,, norte de North Avenue) está anexada à
cidade; o mesmo acontecendo com a cidade de Lake View, a leste de Jefferson e o
braço norte do rio, até o Lago Michigan no leste, quase até Evanston no norte. Do
mesmo modo que Cícero (que foi por muito tempo o reduto do famoso Al Capone), a
oeste, no auge do circuito; e a cidade de Lake, ao sul da 47th Street, a oeste; a vila de

2
Os estatísticos
statísticos do censo definem o distrito metropolitano como constituído por um núcleo urbano, mais
um subúrbio que compreende as localidades que, localizadas a menos de 10 milhas (16 km) dos limites da
cidade, tenham uma densidade igual ou superior a 50 habitantes por milha quadrada
quadrada (58 habitantes por
km2).. O distrito metropolitano de Chicago se estende por 1.900 km2 e continha (em 1920) 3.179.000
habitantes. O departamento de Seine, ao mesmo tempo, desdobra-se por 480 km2 e continha,
cont no mesmo
ano, 4.154.000 habitantes. Ver, Baulig (1924, p. 543 e segs.)

Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
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180

Hyde Park, ao sul da 70th Street, a sudeste da cidade, ao Lago Michigan no leste e ao
Lago Calumet no sul3.
Ao mesmo tempo, a população de Chicago também quadruplicou4. Entre 1890 e
1900, a superfície de Chicago aumentou ainda mais, contudo, em apenas 50 km2 (dois
terços da superfície de Paris), - em vez de 348 km2, entre 1887-1889 (mais de quatro
vezes a superfície de Paris). Entre os anos de 1890 e 1897, todo o sudoeste da cidade
atual foi anexado: ao sul da 87th Street. E, em 1895, foi a ela agregada, no sudoeste, o
lago Michigan ao leste, e a 138th Street, ao sul, além de toda a área do lago Calumet. A
superfície da cidade aumentou assim em um décimo e a população pela metade.
Em síntese, de 1887 a 1897, em dez anos, a superfície da cidade quintuplica e a
população quadruplica. No entanto, nas últimas três décadas, a partir de 1900, a área
aumentou apenas um décimo, enquanto a população dobrou, aumentando quase um
terço a cada década. Desta vez, não é mais o aumento da área, é o aumento da densidade
populacional que se tornou o fator decisivo.
Tudo aconteceu como se houvesse em Chicago, por volta de 1890, uma
expansão repentina do recinto urbano comparável à ocorrida em Paris em 1860. No
entanto, antes dessa expansão, em Chicago, como em Paris, a população aumentou
proporcionalmente muito mais rápido do que se deu mais tarde.
Vamos examinar, no Quadro 2 acima, as taxas de aumento do número de
habitantes. Não deve se levar em consideração a taxa de120% que corresponde à década
de 1880 a 1890, pois foi nessa época que a superfície da cidade quadruplicou.
Vemos que, antes dessa extensão, a população aumentou proporcionalmente,
entre 1860 a 1880, mais rapidamente do que nas últimas décadas, e que a taxa de
aumento diminuía constantemente. Aconteceu exatamente o mesmo em Paris5: a taxa de
aumento nos anos anteriores à prorrogação de 1860 é muito maior do que o daquela
época e tem declinado constantemente desde então.
Sem dúvida, as proporções são muito maiores. A velocidade com que a
população está crescendo é muito mais rápida, em todos os períodos, em Chicago do
que em Paris. Mas, nas duas cidades, a expansão da superfície ocorre no momento em
que a população acaba de aumentar mais, e, nos anos que se seguiram, o aumento,
embora tenha desacelerado, permaneceu, no entanto, ainda alto.
Parece que a expansão está ocorrendo sob a pressão de um aumento da
população, que continua após ela, mas com uma força cada vez menor. Observar, além
disso, que desde os anos de 1890 e 1900, o crescimento populacional
(proporcionalmente) tem sido bem menos rápido em Chicago do que em Nova Iorque.

***

Chicago é o maior centro ferroviário dos Estados Unidos. Trinta e nove linhas
diferentes cruzam nela. De acordo com o Manual da Cidade de Chicago, existem 4.650
km (2.840 milhas) de ferrovia dentro dos limites da cidade. Quer consideremos o
comprimento das ferrovias na Suíça ou em toda a Bélgica, ela não é mais extensa.

3
O lago Calumet está localizado a sudeste, entre as ruas 103 e 130.
4
Foi um pouco mais tarde, em 1900, que o Brooklin foi anexado a Nova Iorque: por conseguinte, a
população mais do que dobrou.
5
Ver Halbwachs (1928, pp. 237 e 264). A população de Paris aumenta em 62%, entre 1841 a 1861; 35%
entre 1861 a 1881; 18% entre 1881 a 190; e, 8%, entre 1901 a 1921. A ampliação do recinto urbano
ocorreu em 1861; mas o aumento da população é calculado, entre 1841 a 1861, para o recinto urbano
atual.

Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
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Quem se move ou pode se mover em alta velocidade leva mais de meia hora
para sair: você só vê linhas de trilhos, faixas multiplicadas, enormes canteiros de obras,
oficinas etc., e alguém poderia imaginar que não há mais nada. Mas, nessa rede com
malhas muito grandes, entre essas linhas, abaixo delas, e por todos os lados, a cidade se
estende.
Mais de trezentas ruas paralelas e numeradas de norte a sul, ao longo de quase
40 km, com uma largura de 15 a 20 metros. No entanto, com suas ruas largas, seus
imensos parques, ilhotas de vegetação que perpetuam a memória de quando todo esse
solo pertencia à pradaria, Chicago possui proporcionalmente menos espaços públicos
que Paris.
Em Paris, as residências e dependências particulares (incluindo os jardins e
parques particulares) ocupam 52,5% da superfície, em Chicago, 65%. A cidade é
extremamente grande. É mais do que seis vezes e meia mais extensa que Paris. Como a
população de Chicago excede apenas ligeiramente a população parisiense (15% desde
1930; e 7% menor em 1920), segue-se que a população existente, no geral, é muito
menos densa: 6.500 habitantes por km2, em vez de 37.000 em Paris.
Existem três razões para isso. Primeiro, os estabelecimentos industriais são
numerosos e extensos, ocupam 26 milhas quadradas, ou 62 km2, quase quatro quintos
da superfície de Paris. Se supusermos que eles estão divididos em uma profundidade
média, eles formariam uma rua de 865 km contra uma rua de 2.440 km de extensão para
casas residenciais, - não incluindo os espaços privados não desenvolvidos, nem as
instalações comerciais.
Vamos examinar o plano reproduzido abaixo, no qual está representada, em um
tom uniforme e preto, a terra ocupada pela indústria e pelas ferrovias. Ele está disposto
em um vasto semicírculo, ao longo dos dois braços do rio, nas duas margens que
envolvem firmemente duas faixas largas e paralelas.
Mais ao sul destaca-se uma grande área compacta, feita de retângulos
estranhamente unidos e fundidos, na forma de uma cruz maciça e esmagada: são os
pátios de estoque (stock yards). O conjunto apresenta-se como uma estrutura gigantesca,
cujos caminhos de ferro ligam ainda, a 12 km mais ao sul, fundições e estabelecimentos
metalúrgicos. À noite, à beira do lago, quando você olha nessa direção, pode ver fogos
queimando à distância, de fornalhas ardentes.
Por outro lado, um número muito grande de famílias vive em casas individuais.
Existem 135.840 dessas casas, 96.000 outras contendo dois apartamentos, e 36.630 com
uma média de cinco. As casas individuais representam uma rua de 1.240 km (que iria,
se seguisse em linha reta para Nova Iorque), as outras, uma rua de 1190 km.
Uma parte inteira de Chicago é coberta com casas de madeira com um andar ou
mesmo sem pisos, de acordo com o tipo tradicional de casas antigas. Após o grande
incêndio de 1871, que destruiu 17.500 casas em uma área de quase 10 km2, a região
devastada foi reconstruída em tijolos e em pedras. Mas, não existem muitas casas do
tipo que conhecemos em nossas grandes cidades; edifícios ainda menos, exceto no
circuito e ao redor ou no lago.
Finalmente, em todas as partes da cidade, há terrenos não urbanizados: 124 km2,
quase o dobro da superfície de Paris. Área suficiente para a construção de uma rua de
mais de 2.500 km, que chegaria quase até São Francisco. Um espaço muito maior do
que o coberto pelas casas residenciais.
Assim como edifícios não seriam possíveis sem elevadores, não podemos
imaginar que uma cidade cresceria até esse ponto sem trens e bondes, e sem carros, sem

Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
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se dispersar completamente e mantendo alguma unidade6. Os ônibus (a primeira linha


data de 1853) e os bondes puxados a cavalo (a partir de 1859) foram substituídos, a
partir de 1882, por cable cars7 (transporte por cabo) e, a partir de 1890, por bondes
elétricos, especialmente entre os anos de 1893-1894 e em 1906. A primeira linha de
elevated railways (ferrovias elevadas) a vapor também começou a operar entre os anos
de 1892-1893 (indo do centro à 39th Street, e a seguir estendida até a Stony Island
Avenue, ao norte do Calumet Lake). Em 1897, foi aberta uma linha circular.
A eletricidade veio substituir o vapor em 1898. A linha Northwest começou a
operar em 1900. Todas as linhas foram unificadas em 1913. E, finalmente, a partir de
1916, os ônibus cruzaram as regiões limítrofes ao redor do Lago Michigan e, entre
1922-1923, às ruas do lado sul e do lado oeste. ¬ O período decisivo a este respeito
foram os anos 1892-1894 (transvias elétricas e elevadas, ou metropolitanas),
imediatamente depois do prolongamento que quadruplicou a área da cidade, por volta
de 1890.
Chicago contava com 164 viagens per capita, por bondes e trens metropolitanos
(surface and elevated lines), em 1890; 215 em 1900; 320 em 1910; 338 em 1921, com
aumentos, respectivamente, de 31% em 1900; 49% em 1910; e 6% em 19208. Quanto
aos automóveis, o número de carros em Illinois (cuja população era apenas o dobro da
de Chicago, a única cidade grande daquele Estado), aumentou de 131.140 em 1915 para
833.920 em 1923, ou de 100 para 635, enquanto, no mesmo intervalo, a população de
Chicago aumentou algo em torno de 25%. Uma pesquisa sobre o estilo de vida dos
trabalhadores empregados nas fábricas da Ford, realizada em Detroit (BUREAU OF
LABOR STATISTICS, 1930), - que não fica longe de Chicago, e que também se
expandiu muito nas últimas décadas, - indicou que 47% dos trabalhadores entrevistados
possuíam um automóvel. Outra pesquisa (LYND; LYND, 1929), realizada um ou dois
anos antes, em cidades menos populosas, deu exatamente o mesmo resultado (em
relação aos trabalhadores).

II - Estrutura e agrupamentos
A existência de uma escola de sociologia original na Universidade de Chicago,
não independe do fato de que seus observadores não precisam ir muito longe para
encontrar um objeto de estudo. Diante de seus olhos se desenrolam de década em
década, e quase de ano para ano, novas fases de um desenvolvimento urbano sem
precedentes.
Se você se concentra em um bairro, ou simplesmente em um quarteirão de casas,
ou se abrange toda a extensão desta grande cidade, em qualquer caso, os problemas se
multiplicam. Uma agenda de problemas então quase que imediatamente é montada por
um observador atento. Agenda que vai da mudança ou manutenção do tipo étnico e
estilo de vida, de homens de raças européias transplantados para o ambiente americano,

6
Em 11 de agosto de 1923, na Michigan Boulevard Bridge, havia entre 07h e meia-noite 53.014 carros,
ou, em média, 3.118 por hora; 4.360 entre as cinco e quinze e às seis e quinze da noite.
7
Os cable cars são transportes públicos por cabo, tipo teleférico, também conhecido no Brasil por
bondinho. Nota do tradutor.
8
Ver Report of the Chicago Subway and Traction Commission, p. 81; Report on a physical plan for a
unified transportation system, p. 391. Em 1860, os bondes puxados a cavalo da cidade de Nova Iorque
transportaram cerca de 50 milhões de viajantes. Em 1890, os bondes elétricos (e os poucos bondes
puxados por cavalos restantes) transportavam 500 milhões. Em 1921, nas linhas metropolitanas (elevated
and subway) e suburbanas, elétricas e a vapor, o seu número ultrapassou o transporte de 2.500 milhões de
passageiros: de 100 em 1860 para 1.000 em 1890, e para 5.000 em 1921, enquanto a população aumentou
de 100 para 188 e 700. Ver também Munro (1922, p. 377).

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até a justaposição, mistura, e interrelações entre imigrantes de diversas nacionalidades,


ali estabelecidos há mais ou menos tempo.
Ou que fusão desses elementos na identifica questões relacionadas à massa
nativa, com transições aparentes na forma como os bairros são distinguidos e ocupados
por imigrantes de primeira, segunda e terceira geração; até as invasões de trabalhadores
cobrindo áreas urbanas onde até então existiam casas pequenas, mas confortáveis,
habitadas por uma população rica; e a invasão de negros, expulsando os brancos de ruas
inteiras.
A agenda segue em uma objetificação de aglomeração tão vasta e de
diferenciações múltiplas, segundo a raça, nacionalidade, profissão, nível social, mas
também segundo o tipo de vida e as características morais, de modo que os mais
diversos ambientes se justapõem e, às vezes, se chocam sem transição. Prosseguindo
pela problematização das relações entre a metrópole e as cidades e vilas do centro-oeste,
de onde chegam ou retornam a cada ano milhares de trabalhadores, geralmente solteiros
e sem-teto (homeless men), que vivem quatro, cinco, seis meses em ruas onde moram
em quartos mobiliados que se sucedem, uns aos outros, em linhas indefinidas e
monótonas; ou dos grupos desintegrados, grupos em formação, vida coletiva dispersa,
concentrada, suspensa e desacelerada, ofegante e sacudida, de modo que as
características mais anormais aparecem ali com toda a clareza: crime juvenil, vadiagem
ou em formas não encontradas em outros lugares.
A agenda continua na indagação e busca de compreensão dos acampamentos de
trabalhadores temporários, momentaneamente desempregados, em terrenos baldios
próximos aos trilhos da ferrovia, passando pela lógica interna das pequenas empresas
efêmeras, de estrita disciplina, onde o espírito dos pioneiros da pradaria parece
sobreviver. Termina, por fim, no na busca de projetos que busquem entender desde a
conformação e conteúdo moral das gangs, e dos grupos indefiníveis e quase evasivos,
que respondem, - em pessoas descentradas e perdidas, - à poderosa necessidade de se
associar aos mais diversos fins, desde as sociedades de brincadeira das crianças até as
gangues criminosas que disputam entre si, - à base de revólver e metralhadoras, - o
monopólio do contrabando e, como se costuma dizer, do vício.
Vários desses aspectos levantados da fácil conformação de uma agenda de
pesquisa, já possuem trabalhos realizados, e quero destacar alguns dos livros que
apresentam os resultados. São livros de descrição, sem dúvida, em vez de científicos.
São livros desiguais, às vezes decepcionantes, mas, na maioria das vezes, são muito
pitorescos, com fotos tiradas da vida diária, e com documentos inesperados e preciosos.
Toda uma mina de fatos, enfim, é trazida à luz por exploradores que não tiveram medo
de descer e avançar para o fundo das galerias mais subterrâneas.

Os dois inspiradores desses trabalhos sobre a vida urbana, Park e Burgess, são
muito diferentes. Park aprendeu filosofia na Alemanha, e se dedicou algum tempo ao
jornalismo. Ele escreveu, no trabalho sobre o qual falaremos, sobre uma "História
Natural dos Jornais"9.
Park tem uma personalidade intelectual forte: dele surgem as idéias, sugestões e
estruturas das classificações que devem orientar os pesquisadores. Burgess, muito
anglo-saxão em espírito e temperamento, por sua vez, não separa em seu pensamento o
aspecto teórico e o interesse prático da pesquisa em que está envolvido.
Foi ele quem escreveu a conclusão da volumosa Illinois Crime Survey (1108
páginas, em 1929). Pesquisa realizada para a Associação de Illinois para a Justiça
9
Este artigo de Robert E. Park se encontra em traduzido para o português, Ver Park (2017). (Nota do
tradutor).

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Criminal. Burgess também esteve recentemente na Rússia Soviética, onde passou quase
um ano estudando crimes juvenis.
Esses dois estudiosos se complementam. Pode-se esperar que, com essa
colaboração, um livro feito em seja sugestivo de mencionar aqui em muitos aspectos.
Essa é a impressão que temos quando lemos The city (PARK; BURGESS;
MacKENZIE, 1925)10, cujos dois capítulos principais são intitulados: A cidade:
sugestões para estudar o comportamento humano no ambiente urbano, por Robert E.
Park11; e: O crescimento e desenvolvimento (the growth) da cidade: uma introdução a
um projeto de pesquisa, por Ernest W. Burgess12.
Sem dúvida, este é um ensaio e, como um rascunho, ainda necessariamente
imperfeito. Este tipo de trabalho é difícil, e exige um concurso de qualidades diversas. É
tão desprovido de suporte que uma tradição de pesquisa e de análise científica pode
oferecer, em relação a um objeto de estudo, que acabamos de descobrir que devemos ser
mais curiosos do que críticos em sua análise, pelo menos por enquanto.
Reproduzimos aqui uma visão esquemática das características gerais que, de
acordo com Burgess, representaria uma grande cidade em processo de crescimento, e
que já atingiu um desenvolvimento bastante avançado. É uma cidade de imigração, onde
existe uma proporção significativa de negros e, se si fixa como limite a linha irregular
que a atravessa de cima para baixo e que reproduz a costa do lago Michigan (que se
estenderia para a direita), esta não é outra cidade que não a própria Chicago. No entanto,
ao representar as sucessivas regiões por zonas concêntricas, talvez se possa lançar mais
luz sobre as várias funções que desempenham, e ajudar a entender melhor as relações
que se estabelecem entre uma e outra.
A Zona I representa a parte mais animada da cidade, aquela que contém
edifícios, escritórios, lojas de departamento e hotéis. É chamada de loop (circuito),
porque uma linha ferroviária "elevada" o circunda.
“Mais de meio milhão de homens entram e saem do loop todos os dias” 13. Além
disso, existem loops satélites. Esses loops satélites resultam do fato de que várias
comunidades locais, ao se desenvolverem, interferiram de alguma forma no circuito
central, ou, ou, como diz Burgess, “entraram em colapso”, de modo a formar uma
unidade econômica maior: daí a existência de regiões de negócios de segunda ordem,
“áreas de subnegócios”, dominadas, de forma visível ou invisível, pelo principal distrito
comercial.
Na verdade, é uma característica singular das grandes cidades americanas que,
ao lado e ao redor do centro principal, onde toda a vida e todo o movimento parecem
concentrados, surja uma quantidade de centros secundários. Mais precisamente, em
intervalos de cada cinco ou seis ruas (indo do sul para o norte), e separadas por
quarteirões razoavelmente grandes, existe uma rua principal, “main street”, - mas não
simplesmente o análogo das populosas artérias de nossos subúrbios, - mas antes como a
reprodução como tal das ruas principais do centro: mesmo tipo de lojas, restaurantes,
cinemas, etc., mesmos farmacêuticos, mesmos barbeiros, mesmos bondes e "elevated".
Cada distrito, assim, tem uma rua onde se faz compras, a “shopping street”, e
em que, deixando espaços onde a calma envolve as casas e vidas, se encontra a

10
É neste livro que encontramos o diagrama que aqui reproduzimos.
11
Este artigo de Robert E. Park se encontra em traduzido para o português, Ver Park (1967). (Nota do
tradutor).
12
O artigo de Ernest W. Burgess também se encontra traduzido para o português. Ver Burgess (2017).
(Nota do Tradutor)
13
Das 920.000 pessoas que trabalhavam em Chicago em 1920, havia 70.367 clerks (empregados) em
escritórios (excluindo os magazines onde trabalhavam 14.189) e 20.262 contadores e caixas.

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animação das partes mais centrais da cidade. Faz parte do “centralised decentralised
system” (sistema descentralizado centralizado), isto é, correntes secundárias, que
respondem e são reguladas por uma corrente principal.
A Zona II, ou zona de transição, era, há não muito tempo, habitada por
“independent wage earners” (assalariados independentes), ou seja, por trabalhadores
americanos que ganhavam bem e, também, continha as residências de famílias mais
ricas. Os trabalhadores foram para a zona III; e, ao norte, também na zona III, à beira do
lago, agora se estende à gold coast (costa dourada), o bairro de ouro dos milionários e
bilionários.
Entre o loop e a zona III, os mais pobres imigrantes judeus, italianos e negros se
estabeleceram. Também é aqui que, quase em contato com a gold coast, que se encontra
o “rooming house district”, o distrito de quartos mobiliados (ZORBAUGH, 1929,
1926)14. Toda essa região, diz Burgess, é uma zona de “deterioration”, parte da cidade
desintegrada onde slums (favelas), colônias de imigrantes, missões e settlements
(assentamentos) ficam lado a lado do “bairro latino”, das colônias de artistas, e dos
centros radicais: a “pequena Sicília”, povoada por italianos, é uma região insegura, e
onde há mais assassinatos.
A seguir se abre o “Rialto”, uma rua populosa que corre para o oeste. O Rialto é
o lugar onde esta população errante de homens sem casa, os homeless men, conhecidos
pelo nome de Hobos, se aglomeram. É também nesse lugar que se originou o termo
Hobohemia (ANDERSON, 1923)15.
A população da zona III corresponde a um nível social mais elevado. Ela é
constituída, em sua maior parte, de trabalhadores americanos. Deutschland é o nome
dado, em troça, a uma região onde a maioria dos judeus se estabeleceu, conseguiram
sair do gueto e buscam imitar o modo de vida dos judeus alemães. Mas o habitante
dessa área aspira se instalar em hotéis residenciais (residential hotels), em grandes
prédios de apartamentos, ou em “satellite loops”, - distritos claros e de muita luz (bright
light areas).
A zona IV, em Chicago, corresponde à linha do parque, do Jackson Park no sul
ao Lincoln Park no norte. Ao sul, se localiza a "comunidade universitária", que forma
uma cidade pequena, muito perto de grandes hotéis, e não muito longe do lago. Os
distritos ao longe são grandes subúrbios que ainda não tomaram forma.
O maior número de gangues é encontrado na Zona II. Mas elas também se
espalharam para muitas outras partes da cidade (THRASHER, 1927; SHAW, 1929;
1930).

Quadro 3 - Vista esquemática de uma grande cidade

14
Harvey W. Zorbaugh estudou a região de North Shore, a leste do braço norte do rio, onde dois bairros
de nítido contraste estão em contato: o de milionários, à beira do lago, e uma área onde 23.000 pessoas
(62% dos quais são solteiros, e em sua maioria homens) vivem em quartos mobiliados em 1.139 casas.
Muitos estão empregados, estudantes de escolas de música de North Side, artistas de todas as categorias:
formam uma população muito móvel, que se renova a cada quatro meses em média.
15
Em sua pesquisa Anderson faz uma descrição dos boêmios, dos homens errantes, de seus
acampamentos e suas regras (com destaque, em particular, para a propriedade comum e o uso coletivo de
instrumentos de cozinha), bem como de suas reuniões ao ar livre, etc.

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Legenda das áreas

I. O loop.
II Área em transformação.
III Área residencial da força de trabalho.
IV Paris e universidades.
O retângulo tracejado representa a "faixa
negra", ou o distrito negro.

Fonte: Extraído do livro The City de Park; Burgess; MacKenzie (1925)

Gangues são grupos formados por jovens e adultos entre 16 a 25 anos, são
frequentemente definidos localmente e seguem os mais diversos objetivos: atletismo,
distrações e, às vezes, depredações e crimes.
As gangues, diz Thrasher, buscam regiões mais ou menos pitorescas,
onde suas atividades podem ser realizadas em condições um tanto
fantasiosas: como as ruas onde existem mercados, lojistas, parques,
espaços abertos, ao longo dos canais, das ferrovias, das docas, e dos
bairros menos frequentados.
Elas se infiltram nas regiões "intersticiais", em todas as fissuras e buracos encontrados
na estrutura do organismo social. São regiões abandonadas por quem vive em bairros
menos desorganizados e melhor localizados, e meio invadidas pela indústria e pelo
comércio. Essas regiões são como espaços lacunares, onde a vida social é apresentada
de forma esporádica, instável e menos resolvida.

***

É possível notar, no nível esquemático que reproduzimos acima (Quadro 3), um


retângulo muito alongado de sul ao norte e que se estende da Zona II à Zona IV,
Retângulo que começa não muito longe do gueto e termina aproximadamente na altura
do parque Washington. É a chamada “black belt”, a “faixa preta”, o bairro negro, que
desce muito baixo, de modo que o Booker Washington às vezes é chamado de
Washington Park, para indicar que os homens de cor praticamente tomaram posse dele.
Desde a guerra, houve uma verdadeira invasão de negros em Chicago:
conseqüência de uma corrente que carrega e ainda leva homens de cor do sul para o
norte16. A população negra de Chicago, assim, aumentou muito rapidamente, passando
de 44.103 em 1910 para 109.594 em 1920, um aumento de 148% em dez anos. Agora,
certamente ultrapassa 150.000: em vez de 2% está se aproximando de 6%.

16
Existe cerca de 10 milhões de negros nos Estados Unidos, de uma população total de 100 a 110
milhões, perfazendo quase um décimo da população. Antes da guerra, nove décimos dessa massa negra
ficava no sul e 10% no norte. As migrações de negros para o norte começaram em 1916. Houve duas
ondas principais, uma entre 1916 e 1920 e a outra entre 1922 e 1924.

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Esses homens de cor recém-chegados tiveram dificuldade em encontrar


acomodação. Como os americanos do norte se encontravam em contato com os negros
de forma mais próxima e frequente do que antes, os costumes restabeleceram as
barreiras removidas pelas leis, e eles tentaram mantê-los afastados. Mas não podiam
privá-los do direito de alugar ou comprar casas.
Um fenômeno muito curioso então ocorreu. Tão logo os negros conseguiram se
firmar em algumas casas (após negociações secretas com um ou alguns proprietários
nos quais o desejo de vender prevalece sobre os preconceitos), então, em toda a rua, em
uma extensão de 4 a 5 km, às vezes de 7 a 8, as casas de repente apareceram vazias, os
apartamentos ficaram vagos, e os brancos desapareceram, dando lugar aos recém-
chegados.
Parece que uma grande gota de óleo que se espalhou, se disseminando um
pouco, a partir da Zona II, onde os novos imigrantes foram encastelados, cruzando toda
a zona III e adentrando pela Zona IV. Nada é mais impressionante do que o
aparecimento de tais ruas, como a Drexel Avenue, que, em poucos meses, foram
atingidas por uma espécie de interdição17.
A avenida é larga, com árvores e gramados. As casas são todas modernas,
construídas no passado por americanos ricos, e geralmente possuem varandas, com uma
escada externa com degraus de pedra, varandas, jardins. Agrupados sob todas essas
varandas, ou sentados nos degraus, se vê, quando o tempo não é rigoroso, apenas
famílias negras, pais e filhos, que se aquecem ao sol. Quando viajamos de ônibus,
vemos templos e escolas reservados para eles, hotéis onde nenhum homem branco entra,
cinemas para homens de cor, e lojas e bancos, onde os comerciantes, os funcionários, e
os clientes são negros. De uma ponta da avenida para a outra, você só conhece negros.
Os negros agora permanecem onde estão. Enquanto, no Sul, se detiveram em
bairros onde as estradas e a higiene foram totalmente abandonadas, aqui puderam se
instalar imediatamente em casas habitadas por brancos, onde não falta nada do que é
chamado de conforto moderno. Este fato tem sido fonte de amargura para muitos
americanos que foram expulsos de suas casas ou que, proprietários, sofreram um novo
tipo de perda de capital. Mas também é motivo de preocupação para os americanos
como um todo.
Podemos seguir, no mapa, a progressão dos negros em direção ao sul, e ao oeste
de Washington Park. Gradualmente cercaram a comunidade universitária que, além do
parque e das Hyde Park e Midway Avenues, estão separadas do cinturão negro apenas
por uma espécie de escudo judeu.
Em 1920, dos 109.458 negros, 67.176 ou 62% estavam em apenas um dos 35
distritos: o segundo, que se estendia entre a 26th Street no norte e a 39th no sul, o lago
Michigan ao leste e a Stewart Avenue a oeste18. Este distrito também contém 900 russos
(judeus), 751 irlandeses, 677 alemães, 428 italianos e 414 suecos, no total, moram nele
cerca de 6.000 estrangeiros. O restante dos negros (38%) se distribui da seguinte forma:
26,5% em 4 distritos, 5,25% em 4 distritos, e 6,25% em 26 distritos19.
17
A Drexel Avenue se estende de norte a sul, começando no canto nordeste do Washington Park.
18
A Stewart Avenue é paralela à Halsted Street e à State Street, entre elas, equidistantes uma da outra.
19
Os assassinatos são muito mais comuns entre os negros do que entre o resto da população. "A maior
taxa de homicídios ocorre na região conhecida como faixa preta (da 16th Street no norte à 60th no sul,
entre a South State Street, no oeste, e a Cottage Grove Avenue, no leste)." Em 1926, dos 739 assassinatos,
havia 575 em que as vítimas eram brancas, 164 em que eram homens ou mulheres de cor; em 1927,
mesma observação: respectivamente 560 e 139. São 25 assassinatos de negros por 100 brancos. A
proporção de negros para brancos em Chicago é de cerca de 6%. "O envenenamento por bebidas
alcoólicas e as brigas subsequentes são a principal causa dos assassinatos na comunidade negra”. Ver:
The Illinois Association for criminal justice (1929).

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***

No diagrama acima (Quadro 3), na Zona II, está marcada a localização do gueto
que, na verdade, se situa na mesma Zona, um pouco mais ao sul. A história do gueto de
Chicago foi contada por Louis Wirth (1928) em um livro muito animado, e completado
por ele na história do gueto em geral. Em Chicago, é aqui que o maior número de
Judeus e, especialmente, os que chegaram recentemente, se acostumaram a viver. Certa
vez, perguntei a um rico comerciante judeu em Chicago se o "gueto" era apenas um
local de passagem para eles. "Sem dúvida", ele me disse, "há alguns que emergem
rapidamente e penetram nas mais altas esferas sociais. Mas a maioria deles permanece:
moram lá e morrem lá. Há muitos que nunca deixaram seu bairro, nunca pegaram um
bonde para descer o circuito”.
Na Maxwell Street é realizado todos os dias um mercado onde todos os
comerciantes são judeus e que proporciona um dos aspectos mais extraordinários desta
grande cidade. Também vemos boêmios e adivinhos, que recitam uma música bizarra,
sentados no limiar de uma loja ou na entrada de um corredor, envoltos em xales
berrantes, e as cabeças apertadas em um lenço escarlate. Ouvem-se todas as línguas da
Europa faladas por lá e se vende ou revende todos os bens imagináveis: frutas, bonés,
roupas, móveis, etc..
Lá também se encontra todos os tipos semíticos que conhecemos. O judeu da
Capela Branca está próximo do de Varsóvia ou de Petersburgo.
Há todas as classes sociais. Pobres demônios traficantes, atrás de bazar. Jovens
corretos e elegantes que gesticulam como orientais. E todos possuem trajes europeus, e
pronunciam o inglês à sua maneira, com entonações inesperadas: "O que você quer,
senhor?" - Venha, senhora, venha!
Quanto aos compradores, muitos são negros e italianos. Aqui, um vendedor
italiano de laranjas ou bananas. Lá, uma negra experimenta sapatos baixos.
Os poloneses também.
O relacionamento entre poloneses e judeus em Chicago, diz Wirth (op.
Cit, p. 229), merece atenção. Esses dois grupos se odeiam
completamente. Mas vivem lado a lado no lado oeste e no lado
noroeste. Eles experimentam um com o outro um profundo sentimento
de hostilidade e desprezo desdenhosos, mantidos por seus contatos e
seu atrito histórico na Polônia. Mas negociam entre si na Mil'waukee
Avenue e na Maxwell Street. Um estudo de caso numeroso mostra que
muitos judeus não se instalam nesses lugares porque sabem que os
poloneses são a população predominante no bairro, mas que os
poloneses vêm de todas as partes da cidade para a Maxwell Street, e
garantiram que se deparará com as apresentações externas dos
comerciantes judeus que estão familiarizados com eles. Esses dois
grupos de imigrantes, que viveram tanto tempo lado a lado na Polônia
e na Galiza, se adaptaram um ao outro, e essa adaptação persiste na
América. O polonês não está acostumado à loja de preço fixo. Quando
ele vai fazer uma compra, fica satisfeito apenas se pode pechinchar e
derrotar o judeu em sua terra.
Em Nova Iorque, os primeiros judeus (Mayflower stock) vieram da Espanha e
Portugal, e sempre representaram a elite da comunidade. Os judeus alemães chegaram
dois séculos depois, depois os russos e os poloneses no final do século XIX. Em
Chicago, pelo contrário, os primeiros judeus eram alemães. O elemento espanhol-
português foi introduzido apenas recentemente, da Turquia e da Palestina, e não da
Espanha. Os alemães representaram a aristocracia, até a guerra e a Revolução na Rússia,

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que levantou os judeus russos. Existem aproximadamente 300.000 judeus em Chicago.


Em 1920, 159.518 deles declararam o iídiche ou o hebraico como língua materna. Mais
da metade é assim russa ou oriental.
Alguns vivem na sombra de sua sinagoga, como se não tivessem mudado de país
e continente. Um comerciante da Maxwell Street relata como trouxe o seu pai muito
velho do sul da Rússia:
Assim que tive a chance, peguei uma passagem para sua viagem.
Enquanto ele estava atravessando, eu fui atormentado por
preocupações. Eu me perguntei: ‘O que ele pode fazer quando estiver
lá?’ Ainda estou trabalhando lá fora. Ele não conhecerá ninguém e se
sentirá muito abandonado. No entanto, eu gostaria que ele fosse feliz
nos seus últimos anos de vida. Mas, assim que chegou, ele encontrou a
solução para o problema por conta própria. A primeira coisa que ele
me perguntou foi: ‘Onde está a sinagoga de Odessa (the schul)?’.
Quando o levei até lá, ele estava tão feliz quanto uma criança. Lá ele
encontrou uma quantidade de Landsleut (compatriotas), e isso o
reconciliou com Chicago e a América. Ele frequentava a schul todas
as manhãs e noites, até uma semana antes de sua morte, ele sabia mais
do que eu sobre os assuntos de cada membro da comunidade20.
Aqui, por outro lado, é como um vendedor ambulante judeu de Chicago se
expressa. "Vou a schul, com meu cavalo e meu carro, todos os dias, exceto o sábado, e
chego a tempo para a oração da noite.

Aqui, por outro lado, está a expressão de um vendedor ambulante judeu de


Chicago:
Eu vou para a schul, com meu cavalo e minha carruagem, todos os
dias, exceto o sábado, e chego a tempo para a oração da noite. Faço
isso há anos e espero continuar pelo resto da minha vida. Eu não
conseguia dormir durante a noite ou trabalhar durante o dia, se eu não
tivesse feito às minhas orações (davvening) e colocado o filaketério21
(tphillin22). Leva apenas um tempo curto e quando você sai depois
disso, você se sente como um homem. Um meio judeu não é um judeu
de todo23.
No entanto, os judeus de segunda e terceira geração tendem geralmente para
fugir do gueto. Eles se agrupam em outros estabelecimentos, nomeadamente em
Lawndale (“Deutschland”, ver acima). Lawndale era, antes da chegada dos judeus, na
primeira década deste século, uma região habitada principalmente por alemães e
irlandeses de nível social moderado. Como havia recusa de alugar para os judeus, eles
compraram vários blocos. Em 1915, Lawndale era judeu. O mesmo fenômeno ocorreu
no Bronx, em Nova Iorque24.

20
From Odessa to Chicago: an account of the migration and settlement of a Jewish family. Citação em
Wirth, op. cit., pp. 206-207.
21
Filaketério é uma faixa de pergaminho, com escritos religiosos, que os judeus enrolam no braço e
prendem à fronte durante as orações. (Nota do tradutor).
22
Tefilin, em português. É o nome dado a duas caixinhas de couro, presas a uma tira de couro de animal
kasher, nelas se encontra um pergaminho com os quatro trechos do Torá em que se baseia o uso dos
filaketérios. (Nota do tradutor).
23
The experiences of a Maxwell Street chickendealer. Manuscrito. Citado por Wirth, op. cit, p. 207.
24
A população judaica de Nova Iorque em 1925 era de 1.728.000, um terço da população total da cidade.
Em uma década (1916-1925), Manhattan perdeu 200.000 judeus. Washington Heights é a única parte da

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Mais tarde, eles foram se mudando para outras regiões, mais excêntricas (como a
terceira área de estabelecimento): Rogers Park, Ravenswood, Albany Park, North Shore,
South Shore e, finalmente, para os subúrbios. Em síntese, a característica dos
estabelecimentos judeus em Chicago é que eles são separados um do outro e que
correspondem a diferentes gerações. Os judeus que chegaram primeiro agora são os que
se encontram mais distantes do distrito chamado gueto, onde os novos imigrantes ainda
tendem a se estabelecer25.

***

Se você quiser ir direto ao coração dos bairros habitados por imigrantes, siga a
Halsted Street, que os cruza de norte a sul. Jane Addams (1916, pp. 97-100), que fundou
a Hull House26, o maior assentamento de Chicago, descreveu esta rua e esses bairros
quinze anos atrás: A Halsted Street tem 51 quilômetros de extensão. É uma das maiores
rotas de Chicago. A Polk Street a atravessa no meio, entre os stocks yards (pátios de
estoque) ao sul, e os shipbuildings yards (pátios de construção naval) no lado norte do
rio Chicago. Nos 9 quilômetros que separam essas duas indústrias, a rua está repleta de
açougues e mercearias, bares sórdidos e cativantes, e lojas de roupas pretensiosas.
A Polk Street, à medida que nos afastamos de Halsted em direção ao Ocidente,
rapidamente se torna mais próspera: se a seguirmos por uma milha a leste, ela se tornará
cada vez mais triste; na esquina da Clark Street com a 5th Avenue, atravessa um distrito
de prostituição com pequenas ruas escuras.
Hull House já esteve nos subúrbios. Mas a cidade cresceu rapidamente. Agora, o
assentamento está no ponto de encontro de três ou quatro colônias estrangeiras. Entre
Halsted e o rio vivem cerca de dez mil italianos: napolitanos, sicilianos, calabreses, aqui
e ali um lombardo ou um veneziano. Ao sul da 12th Street existem muitos alemães, e as
ruas laterais são deixadas inteiramente para judeus poloneses e russos. Mais ao sul, os
assentamentos judeus estão imperceptivelmente perdidos em uma vasta colônia de
imigrantes da Boêmia, tão grande que Chicago é a terceira cidade boêmia do mundo.
No noroeste, encontramos muitos canadenses franceses, que mantiveram o
espírito de clã, apesar de sua longa residência nos Estados Unidos; no norte, irlandeses e
americanos de primeira geração. Nas ruas mais a oeste e norte estão assentadas famílias
ricas, falando inglês, muitas das quais possuem suas casas e moram lá ou em bairros
vizinhos há anos.
27
Quadro 4 - Quadro étnico de Chicago. Escala de 1: 150.000

cidade onde a população judaica aumentou, enquanto Coney Island se tornou judeu na proporção de 96%.
(JEWISH COMMUNAL SURVEY OF GREATER NEW YORK, 1928).
25
Wirth, porém, observa que muitos judeus, tendo passado de uma região para outra, ou porque fizeram
negócios ruins ou porque estão cansados de viver assim entre estranhos com quem não conseguem se
relacionar, finalmente retorne ao ponto de partida. É o que ele chama de “retorno ao gueto”.
26
A Hull House foi um empreendimento de assentamento fundado em 1889 por Jane Addams e Ellen
Gates Starr na cidade de Chicago, para abrigar imigrantes europeus recém-chegados à cidade. (Nota do
tradutor).
27
O mapa aqui reproduzido foi estabelecido por nós. Usamos o mapa que Thrasher (1927) publicou em
seu trabalho já citado, sob o título Chicago's Gangland: 1923-1926. Agradecemos ao Sr. Baulig por sua
preciosa ajuda nesta ocasião. [O mapa original de Thrasher pode ser consultado online na Library of
Congress no endereço: https://www.loc.gov/item/2013586117/. – Nota do tradutor].

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Legendas
1. Parques e bulevares
2. Indústrias e ferrovias
3. Alemães
4. Suecos
5. Tchecoslovacos
hecoslovacos
6. Poloneses Lituanos
7. Italianos
8. Judeus
9. Negros
10. População mista
C.G: Gold Coast

As casas deste distrito, principalmente de madeira, foram


originalmente construídas para abrigar uma única família. Eles agora
estão ocupados por vários e se assemelham às cabanas que foram
espaçadas nos subúrbios pobres vinte anos atrás. Alguns deles foram
for
transportados aqui em rolos, porque substituímos o lugar das fábricas.
Os poucos prédios de tijolos de três ou quatro andares que você pode
encontrar datam de um período relativamente próximo e existem
poucos apartamentos grandes. Muitas casas não têm água
á (exceto uma
torneira no quintal). Lixo e cinzas são jogados em caixas de madeira
mad
grudadas nas pedras da rua (ADDAMS, op. cit. pp. p. 97-100).
97
Quando Jane Addams fundou a casa Hull na Polk Street e na Halsted Street em
1889, os moradores eram principalmente
principalmente alemães e irlandeses. Mas essas
nacionalidades gradualmente retrocederam antes da invasão de italianos, russos, judeus
e gregos (sem contar os negros e os mexicanos). Atrás dos pátios de estoque, existem
principalmente poloneses, e, ao norte, uma região de slums (favelas) e assentamentos.
Agora estamos nos mudando para uma região completamente
completamente diferente, a leste
do braço norte do rio Chicago. A Costa Dourada (Gold Coast) se estende ao norte, ao
longo do lago e, ao sul, pela "Bohemia", uma colônia de artistas. Ao oeste, um distrito
cosmopolita com casas mobiliadas é a artéria norte da Hoboemia. Então, E passa pela
"pequena Sicília",", agora invadida por negros, com uma igreja negra a dois quarteirões
da esquina da morte (death
death corner),
corner onde cerca de vinte bandidos foram mortos, alguns
anoss atrás, por um bando inimigo (Sicilianos
( na maior parte).
Ao sul e a oeste do braço norte do rio Chicago, a oeste do circuito, e ao norte e a
oeste do braço sul do rio, parece existir em toda parte apenas canais, docas, fábricas,

cervejarias, depósitos e canteiros de obras, com paredes nuas enegrecidas pela fumaça
das chaminés das fábricas. No entanto, vivem
vivem lá mais de 50.000 habitantes por milha
quadrada.
"Bucktown" é uma colônia polonesa que se une ao braço norte do rio. rio Essa
colônia se estende para o sul, ao longo da Milwaukee Avenue,, que é a principal rua

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comercial dos poloneses. Em direção ao oeste, estende-se a Madison Street, por onde
passam dois terços dos seus moradores: é a artéria principal de Hobohemia (Bum Park e
Slave Market, onde os escritórios de emprego se aglomeram). Local, também, de
hospitais, clínicas, dependências de escolas médicas.
No lado oeste da região industrial, uma colônia de negros se estabeleceu. Ao sul,
e se estendendo para oeste até Garfield Park, fica a chamada área americana.

***

Certamente nada substitui o contato direto com a vida dos grupos. A escola de
sociologia de Chicago e os moradores dos assentamentos fizeram um esforço notável
para descrever os principais aspectos desta cidade, onde tantos elementos de todas as
nacionalidades e todas as classes fermentam juntos, e onde há tantas combinações e
reações de química social que só pode ser observada estando lá.
Outras pesquisas ainda estão em preparação: uma delas, por Ernest R. Mower
(1927), sobre a desorganização da família em Chicago; outra, por Walter С. Reckless
(1925), que busca compreender a História natural das áreas de vício (vice areas) em
Chicago28. É importante dar uma idéia desses trabalhos, especialmente interessantes,
como já vimos, pelo fato de eles se relacionarem com casos particulares.
Mas temos, por outro lado, dados estatísticos que podem nos permitir colocar
outros problemas. Outras questões, por exemplo, como a de examinar em que condições
a assimilação desses grupos de imigrantes continua, até que ponto eles parecem capazes
de se misturar com os americanos, e qual é a atitude variável de cada um deles a esse
respeito.
Gostaríamos de indicar o que os dados numéricos nos ensinam neste ponto. Ao
mesmo tempo, é a melhor maneira de penetrar ainda mais na estrutura social desta
cidade. Este será o assunto das duas últimas partes do nosso estudo.
III - Chicago, cidade dos imigrantes29
Os imigrantes em Chicago no ano de 1920, de uma população total de
2.700.000, eram nada menos que 805.482, ou seja, quase um terço da população total da
cidade30. De outra mão, houve 1.143.896 de crianças nascidas de estrangeiros (de pais
ou apenas um, estrangeiros), ou 42,5% da população total; e 642.871 crianças nascidas
de pais americanos, ou 23,7%. Vamos comparar essas proporções com as que
encontramos, na mesma data, para os Estados Unidos como um todo e para Nova
Iorque31.
Quadro 5 - Percentagem sobre a população total

28
Tese defendida na Universidade de Chicago em 1925, sob orientação de Ernest Burgess W, e
posteriormente publicada em livro, sob o título: Vice in Chicago. Ver Reckless (1933). (Nota do tradutor).

29
Ver nota 27.
30
Foram mantidos os dados de 1920, o último a ser publicado. O Census de 1930 e o Statistical Abstract
correspondentes ainda não tinham sido publicados nesta data.
31
Os filhos de estrangeiros são aqueles cujos pais, ou pelo menos um dos pais nasceu fora dos Estados
Unidos.

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Os americanos compreendem os negros e, sem eles, representariam apenas


23,7% em Chicago, da população total. Observe que entre os filhos de estrangeiros, o
maior número (quase três quartos) tem seus dois pais nascidos fora dos Estados Unidos.
Unidos
Se os adicionarmos a estrangeiros, encontramos: 1.693.978, ou seja, quase 63% de toda
a população que não tem uma gota de sangue americano nas veias. Chicago contém,
proporcionalmente, dois terços do número de estrangeiros que os Estados Unidos e o
dobro de filhos
ilhos de estrangeiros.
Vamos nos ater aos estrangeiros e mostrar como eles se decompuseram em
1920, nos Estados Unidos, Nova Iorque e Chicago. Nós os classificamos de acordo com
sua proporção crescente nos Estados Unidos.
Poloneses e russos são proporcionalmente
proporcionalmente mais numerosos em Chicago do que
nos Estados Unidos. Mas os russos são muito mais numerosos em Nova Iorque do que
em Chicago, duas vezes mais (a maior proporção deles são judias),
jud ), e os poloneses,
menos numerosos em mais da metade.
Os italianos são menos numerosos em Chicago do que nos Estados Unidos (em
mais de um terço), e especialmente em Nova Iorque (em mais de dois terços).
Finalmente, há uma proporção maior de suecos e tchecoslovacos
checoslovacos em Chicago do que
nos Estados Unidos, e especialmente em Nova Iorque,, onde eles são em pequeno
número.
Embora os alemães ocupem o segundo lugar em Chicago, eles representam uma
proporção ligeiramente maior de estrangeiros do que nos Estados Unidos. Os poloneses,
que ocupam a primeira posição, e os alemães,
alemães adicionam nesta cidade 31% dos
estrangeiros, quase um terço (em vez de 20% nos Estados Unidos e apenas 17% em
Nova Iorque).
Embora os imigrantes não sejam distribuídos nos Estados Unidos por massas
compactas nacionais separadas, é possível considerar uma cidade grande
grande como Chicago
formada, em parte, pela superposição de grandes áreas de estrangeiros desta ou daquela
nacionalidade. Por exemplo, os poloneses estão bastante concentrados nos Estados
Unidos, 61% deles são encontrados em apenas quatro estados: Nova Iorque,
Pensilvânia,, Illinois e Michigan. Os dois últimos, que são contíguos, contêm 23,5% de
todos os poloneses, quase um quarto.
Quadro 6 - Porcentagem de estrangeiros, em 1920

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De outra parte,, os dois estados quase contíguos: Minnesota e Illinois


compreendem quase 35% de todos os imigrantes suecos nos Estados Unidos.
Finalmente, 30% dos tchecoslovacos
checoslovacos estão agrupados em dois estados, também muito
próximos um do outro: Illinois e Ohio.
Chicago é uma dessas três áreas em que se encontra uma proporção maior de
estrangeiros dessas nacionalidades do que nos Estados Unidos em geral.
Os escandinavos,
escandinavos diz Baulig (op. cit), são essencialmente cultivadores,
estabelecidos nos estados do norte, entre
entre os Grandes Lagos e a costa
do Pacífico; mas, se os noruegueses, como os finlandeses, estão
confinados ao longo da fronteira canadense, a zona de extensão dos
suecos e dinamarqueses se estende
estende ainda mais para o sul. Os tchecos
tc
também são agricultores, ocupando
ocupando uma faixa norte-sul
norte entre os
Gran
Grandes Lagos e o Mississipi,
ssipi, a leste, e a extremidade das Grandes
Planícies, a oeste. Seus compatriotas eslovacos, como os poloneses,
são, pelo contrário, mineiros nas minas de carvão da zona dos
Apa
Apalakehes e trabalhadores
ores nos centros industriais vizinhos.
vizinhos
Os dois estados: Wisconsin, Illinois, compreendem 21% dos alemães que vivem
nos Estados Unidos, 28% com a vizinha Ohio. Os dois estados: Nova Iorque e
Pensilvânia agrupam juntos 25%. O resto se encontra espalhado.
Se,, entretanto, eles são menos numerosos em Chicago do que os poloneses o
motivo é, sem dúvida, pela existência de muitos estabelecimentos alemães de segunda
categoria nesses Estados que chegaram a mais tempo do que muitos, mas grande parte
deles não era de operários ou de trabalhadores sem especialização. Mais da metade dos
alemães estão reunidos em quatro estados:
estados porém também se espalharam
espalhar por todo o
território, e tiveram tempo de se distribuir em todos os níveis sociais.
A distribuição dos italianos, informa Baulig (op.
op. cit.)
cit novamente, é a
mais complexa: grandes contingentes são encontrados nas regiões de
manufatura e mineração do nordeste, de Massachusetts a Virgínia
Ocidental; mas eles excedem sua porcentagem média nos Estados do
Golfo, da Flórida à Louisiana,
Louisiana, e também na Califórnia, onde
encontram, com poucas nuances, o clima
clima de sua terra natal de origem.
Por esse motivo está explicado o fato deles
d serem relativamente poucos em Chicago,
onde a grande indústria os atraiu.
atrai
63% dos russos estão agrupados em quatro estados: mais de um terço, no estado
de Nova Iorque;; os outros nos estados de Pensilvânia,, Nova Jersey e Illinois. Pouco

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mais de 8% do total formam uma ilha em Illinois, e quase todos vivem em Chicago:
87%32 deles.
Noss Estados Unidos como um todo, observa Baulig (op. cit.),
...enquanto
enquanto o elemento urbano, para os escandinavos, varia entre 47 e
63%, atinge entre os poloneses e italianos 84,4% e entre os russos.
88,6%. [É que] os recém-chegados
chegados estão se aglomerando
aglomera nas cidades e
nos centros industriais.
industri
Mas o que exatamente esses russos representam? A grande maioria deles é judia.
Havia 102.095 em 1920. No entanto, de acordo com o Wirth, existem aproximadamente
300.000 judeus em Chicago. Destes, 159.518 declararam noo mesmo ano, como língua
materna, o iídiche ou hebraico. Mais da metade,
metade, portanto, é russa ou oriental, o que
geraria cerca de 150.000, ou 110.000 de acordo com uma outra avaliação33. Como
existe uma pequena proporção de orientais em Chicago, o número de judeus russos seria
úmero total de russos (judeus e não judeus)34.
quase igual ao número
Os irlandeses “atraíram para as áreas urbanas do leste;; eles são muito numerosos
em Massachusetts: neste estado e no de Nova Iorque,, encontramos 45,5% de todo e, se
somarmos Pensilvânia e Nova Jersey, 63%. Há, no entanto, um grande grupo em Illinois
I
(mais do que em Nova Jersey). É o centro urbano de Chicago que os atrai. Embora os
irlandeses que chegam aos Estados Unidos tenham morado em seu país no interior e
tenha estado ocupados com a cultura, a grande maioria
maioria deles se instala nas cidades. De
todos os que estão em Illinois,
llinois, 77,5% estão em Chicago. Há um pouco mais de inglês,
escocês e galês nesse estado: há apenas 49% deles em Chicago, metade, em vez de mais
de três quartos. Somente os russos (principalmente judeus)
judeus) dão uma proporção maior.
Quadro 7 - Porcentagem de imigrantes de cada nacionalidade

Traduzindo a parte vertical:


vertical Profissões
Liberais35; Trabalhadores Qualifica
Qualificados;
Trabalhadores Agrícolas; Trabalhadores Não-
Não
Qualificados; Trabalhadores
Trabalhadore Domésticos; Sem
Profissão36; Número de Imigrantes.

Traduzindo a parte horizontal:


horizontal Ingleses,
irlandeses, alemães, escandinavos, italianos do
norte, italianos do sul, judeus, thecos, russos,
poloneses.

Quadro compilado do Rapport du Commissaire de l’immigration sur les immigrants entrés


aux ÉtatsUnis dans l’année qui se termine le 30 juin 1912 . – (Dados reproduzidos do anexo
de: JENKS; LAUCK, 1917, pp. 493-501). Todos os números foram calculados pelo autor.

Essas ocupações mencionadas no Quadro 7 acima são aquelas praticadas pelos


imigrantes em seu país de origem. Podemos primeiro distinguir três categorias de
nacionalidades, de acordo com a proporção de imigrantes que trabalhavam em
profissões liberais:
32
A proporção é pouco menor para os poloneses;
poloneses; mas compõem 63% para os italianos, 55% 55 para
alemães, 56% para suecos.
33
De acordo com o Sr. Cahn, diretor executivo das Instituições de Caridade Judaicas de Chicago, a
população judaica desta cidade é formada por 225.000 pessoas.
34
Há, no entanto, uma grande colônia de russos não judeus em Chicago. Ao norte da cidade, visitamos
visita
uma igreja ortodoxa russa. Uma multidão compacta assiste ao serviço em pé, e inclina--se diante dos
ícones. Dois pop brilhantes de ouro e pedras preciosas vêm
v e vão. Luzes, músicas, e belas canções
profundas e comoventes. Se a antiga Rússia desapareceu, ela permanece destarte neste canto de Chicago,
singularmente intacta.
35
Incluindo arquitetos, engenheiros, funcionários públicos, músicos, atores, clérigos, etc.
etc..
36
Incluindo mulheres e crianças.

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1. Ingleses, irlandeses e alemães: mais de 2%;


2. Escandinavos, italianos do norte e judeus: menos de 2% e mais de 0,90%;
3. Tchecos, russos, italianos do sul e poloneses: menos de 0,90%.
As profissões liberais representadas pelo maior número de imigrantes são as
seguintes (em ordem de importância):
1. Ingleses: engenheiros, professores, atores;
2. Alemães: professores, engenheiros, músicos;
3. Judeus: professores, músicos;
4. Irlandeses: professores, clero;
5. Italianos do norte: músicos, escultores e artistas;
6. Italianos do sul: músicos, clero;
7. Tchecos e poloneses: músicos;
8. Russos: clérigos, músicos.
A proporção de trabalhadores qualificados é a mais alta entre os judeus (mais de
um terço dos trabalhadores judeus qualificados são alfaiates, 13 a 14%, alfaiates),
seguida dos ingleses (balconistas e contadores, mineiros); depois, os tchecos e os
alemães (carpinteiros, funcionários e contadores); os irlandeses (funcionários e
contadores); e os italianos do norte (mineiros e pedreiros). Finalmente, ao se reunir na
mesma categoria os trabalhadores agrícolas, os trabalhadores não qualificados e os
trabalhadores agrícolas, são encontradas as seguintes proporções: menos de 20% entre
ingleses e judeus; de 20 a 40% entre os alemães e tchecos; de 40 a 60% entre os
irlandeses, escandinavos e italianos; mais de 75% entre os russos e poloneses.
Naturalmente, nem todos os imigrantes encontram uma ocupação que
corresponda à que exerceram no antigo continente, no momento de sua chegada. Mais
de um observador fica impressionado com o fato de que essas nacionalidades parecem
ter o monopólio de certos empregos especificamente urbanos: os belgas são porteiros ou
zeladores (janitors), os negros, carregadores nas estações, os chineses, lavadores de
roupas e os gregos servem ice cream parlors (sorvetes nas sorveterias).
Quanto aos irlandeses, um grande número deles é policial (policemen). Eles
rapidamente ascendem a posições mais proeminentes. Os irlandeses também formaram
uma legião na política (tanto no palco, quanto nos bastidores), e no jornalismo.
São também ótimos oradores, dotados de temperamento e imaginação. São os
que dão cor e movimento às campanhas eleitorais e à imprensa. Eles sacodem os
americanos e também conseguiram introduzir um elemento de fantasia em um ambiente
um tanto quanto monótono.
Além disso, eles são aprovados pelo seu conhecimento do inglês. Mas os
irlandeses são uma exceção. A massa dos outros imigrantes faz negócios que não os
desorientam: os agricultores, em particular, especialmente os italianos do sul, estão
empregados em trabalhos mais pesados e menos remunerados.
Artesãos e trabalhadores qualificados, por seu lado, podem trabalhar em sua
especialidade. Especialmente porque há uma diferenciação bastante rápida entre os
recém-chegados e aqueles que estão na América há muito tempo. Estes ascendem para
negócios mais lucrativos e deixam os outros para os novos estratos. Os negócios que
lhes são abandonados agora estão subestimados, em parte porque são exercidos
principalmente por estrangeiros e, especialmente, por estrangeiros vindos nas levas mais
recentes de imigração.

IV - Distribuição local de nacionalidades

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Vamos agora tentar representar com mais precisão e, na medida do possível,


medir em que grau esses grupos de imigrantes estão concentrados em tal ou qual parte
da cidade, em vez de se dispersarem igualmente entre a população de todos os bairros. É
sem dúvida uma indicação da velocidade desigual com a qual eles assimilam.
As estatísticas americanas indicam, para cada nacionalidade, o número de
estrangeiros que residem em cada ala ou distrito.
distrito. Esses números referem-se
referem ao ano de
1920, quando Chicago incluía
incluí apenas 35 distritos (em julho de 1921, toda a cidade foi
novamente dividida, desta vez em cinquenta distritos).
Esses distritos não contêm o mesmo número de habitantes. Em 1910 (não temos temo
números para 1920), 24 dos 35 distritos tinham uma população entre 45.000 e 75.000
habitantes, 4 tinham menos de 45.000, 7 tinham mais de 75.000.
Noo entanto, vamos tentar tirar proveito dessas
dessas estruturas, observando:
1º. Que,, quando dividimos esses distritos em dois grupos, em cada um deles
essas desigualdades
sigualdades devem se equilibrar;
2º. Que,
ue, quando consideramos apenas um pequeno número de distritos,
podemos corrigir as nossas conclusões caso a população de um ou outro
deles se desvie demais da média.
Quadro 8 - Distribuição de imigrantes por distrito (35 distritos) em Chicago, em 1920

Coluna 2 - Número de imigrantes: em milhares; porcentagem.


porcentagem Coluna 3 - Número de distritos que contêm: a metade do total
de imigrantes; mais de uma vez e meia a média distrital de cada categoria. Coluna 4 – Desvio relativo (Nota do tradutor)

No Quadro 8 acima, através das colunas 3, 4 e 5, indicamos, para cada categoria


de imigrantes: 1°, qual o número de distritos que compreende metade do total, o que
compreende a primeira
meira indicação do grau de concentração; 2º, qual o número de
distritos, para cada nacionalidade, que inclui mais de uma vez e meia a quantidade
média por distrito de imigrantes considerada; e 3°, qual é, para cada nacionalidade, a
diferença relativa entre o número de imigrantes contidos nesses distritos (2°) e a
média37. Essa última indicação é essencial, pois, através dela, é possível alcançar, tanto
quanto possível, o grau de concentração nos distritos onde os imigrantes desta ou
daquela nacionalidade são mais numerosos.
Quanto menor o número de distritos contendo metade do número de imigrantes
(coluna 3), mais concentrados serão os imigrantes nessa categoria. Deste ponto de vista,
a concentração seria mais acentuada para os tchecoslovacos. A partir de então, viriam,

37
Fizemos a soma aritmética das diferenças entre o número de imigrantes de cada um desses distritos e a
média e dividimos essa soma pelo número desses distritos, o que indica a diferença média. Como a
população média dee imigrantes não é a mesma, para explicar essa desigualdade, dividimos a diferença
média pelo número médio de imigrantes na categoria por distrito, o que indica a diferença relativa.

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na mesma posição, os russos e os italianos; depois, na mesma fila, também os poloneses


e os suecos; e, finalmente, sempre na mesma linha, os irlandeses e alemães. O mesmo
seria verdade, exceto por uma inversão (russos e suecos), se considerarmos o número de
distritos contendo três quartos dos imigrantes.
Os números da coluna 5 (desvio relativo) nos dizem quanto a população
imigrante considerada, nos distritos onde são mais numerosos, se desvia da média. Aqui
encontramos exatamente os seguintes resultados: a diferença se manifesta como mais
alta, de forma bastante clara, em relação aos tchecoslovacos, - da mesma maneira, na
mesma posição, em relação aos italianos e os russos, - e, do mesmo modo, e na mesma
posição, em relação aos suecos e poloneses. Finalmente, e sempre na mesma posição,
em relação aos alemães e irlandeses.
Entretanto os distritos que comparamos nem todos contêm o mesmo número de
habitantes. Isso pode obscurecer ou distorcer nossos resultados. Suponhamos que os
distritos onde o número de imigrantes exceda em muito a média (para tal e qual
nacionalidade) também que eles sejam muito mais povoados, ou seja, representem
grupos populacionais muito maiores que os outros. Por conseguinte, o fato de haver
mais imigrantes lá do que a média pode ser explicado sem que haja razão para dizer que
eles estão aqui mais concentrados do que em outros lugares.
Para reconhecer se tal causa de erro ocorre, calculamos (americanos e imigrantes
de todas as categorias combinadas) qual era a população média nos distritos onde os
imigrantes de cada nacionalidade eram os mais numerosos38. Com a população
mediana39 sendo 62.000, encontramos: os Tchecoslovacos, 73.000; os Russos, 60.000;
os Italianos, 50.800; os Poloneses, 71.000; os Suecos, 76.000; os Alemães, 66.800; e os
Irlandeses, 68.000.
A diferença média entre esses números e a mediana é de 7.000; não é uma
lacuna significativa. Esses números são organizados de acordo com o valor decrescente
da diferença relativa, ou seja, começando pelos distritos que contêm as categorias de
imigrantes que nos pareciam mais concentradas. Contudo, se essa ordem fosse
explicada pela desigualdade dos distritos em relação à população, os números da
população, expressando essa desigualdade, deveriam diminuir regularmente. No
entanto, este não é o caso. Às vezes eles diminuem e às vezes aumentam.
Vamos considerar sucessivamente os vários grupos acima mencionados.
Alemães e irlandeses são mais numerosos em distritos médios, que nunca são os
mesmos para as duas nacionalidades; para ambos, o tamanho médio dos distritos em
questão é aproximadamente o mesmo (e um pouco maior que a mediana). Onde estão
localizados esses distritos? Aqueles onde os alemães estão mais concentrados estão
localizados primeiro (o 27º) a noroeste: compreendendo um quadrilátero muito grande
limitado ao norte pela Devon e ao sul pela Belmont Avenue, que se estende entre o
braço norte do rio e o canal da costa norte ao leste, e o limite da cidade ao oeste40.
Nos 24º e 26º distritos, e em contato com esta primeira região, mas a leste do
canal da costa norte e do braço norte do rio, encontramos estabelecimentos alemães
mais densos, e ruas com casas altas em blocos compactos, ao norte e ao sul da Roscoe
Street, entre a Howard Street ao norte e a Cortland Street ao sul. Este distrito termina
como uma esquina, entre a Little Sicily e a Costa Dourada. Ao leste está separado do

38
Baseamo-nos, para tal, nos dados da população de 1910.
39
Calculamos a mediana (que tem um valor muito próximo da média), considerando apenas os trinta e
um distritos incluídos na coluna 4.
40
Não está incluído no nosso plano.

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lago pela área mobiliada e pela fina linha das casas dos milionários. No nordeste, por
fim, se encontra com os estabelecimentos suecos.
Os irlandeses são os mais aglomerados e se localizam em dois distritos (35º e
13º) limitados ao norte pela Washington Boulevard e ao sul pela Roosevelt Road (a
oeste da Crawford Avenue, quase nos limites da cidade), e em outros dois (30º e 31º)
entre as 43th e 63th Streets (ao norte e ao sul), indo para a State Street e o Blakek belt a
leste; e, ao norte e ao sul do Garfield Boulevard, chegando até ao sudoeste e ao oeste da
Comunidade Universitária e do Washington Park.
Os suecos e os poloneses se instalaram principalmente nos distritos com densa e
grande população, mas não difere em mais de um sexto da média. Há um grande
número de suecos no extremo norte de Chicago, entre a Howard Street (muito perto da
Evanston) e da Devon Avenue, e na Belmont Avenue no sul, e nas duas margens do
braço norte do rio e do canal da costa norte. Ou seja, a leste do primeiro grupo de
estabelecimentos alemães41. Eles se estendem de lá para o Lago Michigan (23º e 25º).
Quanto aos estabelecimentos poloneses mais densos, eles se desenvolvem ao
norte e ao sul da Division Street, a oeste do braço norte do rio, e ao sul dos alemães e
suecos, em contato com o canto noroeste do loop (16º e 17º, entre a Fullerton Avenue
ao norte e a Kinzie Street ao sul)42.
Os distritos onde os italianos e os russos são mais numerosos têm uma
população bastante abaixo da média. Para os russos, menor que a média de um sexto
para os italianos.
Eles são claramente diferentes de outros distritos com uma alta proporção de
imigrantes. Como os italianos são mais numerosos em um conjunto de distritos que
representam grupos populacionais menores, concluímos que o grau de condensação é
mais alto do que a diferença relativa indica (coluna 5). Os italianos devem assim se
encontrar mais concentrados do que os russos.
Os russos são especialmente numerosos em dois distritos: um (15º), que também
é um grande centro de estabelecimentos poloneses, se estende entre a North Avenue, no
norte, a Chicago Avenue, no sul, e ao leste da Ashland Avenue. Na verdade, este é uma
grande área judaica, a leste do Humboldt Park, e se encontra em contato com os
poloneses ao leste, e os italianos ao sul. O outro distrito (34º), ao sul da Roosevelt Road
e do primeiro grupo de irlandeses, no extremo oeste, vai até os limites da cidade, com
um assentamento judaico a oeste de Douglas Park.
Os italianos têm três estabelecimentos principais: o primeiro (19º), é um distrito
situado entre a Van Ruren Street ao norte, a Roosevelt Road para o sul, com a
ramificação sul do rio para o leste e a Hermitage Avenue para o oeste. Este é o bairro
que mencionamos. Um bairro atravessado pela Halsted Street, e separado do gueto pela
Roosevelt Road, no centro da região mais populosa de Chicago após o loop.
O outro distrito, no norte, se encontra mais em contato com a alça, entre a Center
Street no norte, e a alça do rio ao sul, e, no oeste, com as Orleans e Sedgwick Streets,
atrás da Costa Dourada, que as separa do lago Michigan. É aqui que a Little Sicily está
localizada.
A zona italiana também se estende para um terceiro distrito (17º). Este último
está localizado do outro lado do rio, a oeste, em contato com os poloneses do norte e os
russos (judeus) no noroeste.
Esses três estabelecimentos italianos, os dois primeiros separados apenas pelo
rio, e o terceiro ao sul, estão muito próximos, e forma um todo muito característico. Eles

41
Esses estabelecimentos também estão fora do plano, ao norte, além da Belmont Avenue.
42
A Kinzie Street é equidistante da Chicago Avenue e da Madison Street (que correm paralelas a ela).

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se juntam à Halsted Street, que, vindo do sul, atravessa o primeiro e passa


sucessivamente pelo limite oeste do terceiro e pelo leste do segundo.
Os distritos com o maior número de tchecoslovacos têm uma população um
sexto maior que a média. Um deles (12º) fica a oeste, perto da periferia. E um distrito
onde também existem muitos poloneses e judeus, ao sul da Roosevelt Road, e perto do
Central Park.
O outro (34º) estende o anterior até o limite ocidental da cidade. É aqui que os
localizamos acima do segundo grupo de imigrantes russos (judeus).
Embora pequenos grupos da Tchecoslováquia (300 a 600 habitantes) sejam
encontrados em todos os outros distritos, três quartos deles estão incluídos em apenas
quatro deles. O fato de esses quatro distritos serem, em média, mais populosos que os
outros, explica apenas que em uma extensão muito pequena, eles nos parecem tão
concentrados.
Esses grupos de imigrantes estão em contato não apenas com os americanos,
mas entre si. Às vezes um passa repentinamente de um para o outro, às vezes há
infiltrações e transições indiferentes. O exame do plano que reproduzimos, bem como as
indicações que acabamos de dar, nos permitirá examinar esse aspecto, quanto às
relações de proximidade entre os distritos estudados.
Os alemães e os irlandeses dificilmente se misturam com os suecos e os
poloneses: eles são os grupos menos concentrados. Poloneses e suecos, por outro lado,
juntam-se, nos mesmos distritos, por um lado, com os grupos menos concentrados
(alemães e irlandeses), e por outro, com os grupos mais concentrados. Mas esses dois
tipos de combinações são realizados em distritos separados. De outra parte, enquanto os
suecos estão em contato apenas nesses mesmos distritos com os italianos (entre os
grupos menos concentrados), os poloneses, com exclusão dos suecos, se contatam com
todos os grupos, o que se deve em parte ao fato de os imigrantes poloneses serem os
mais numerosos.
Se admitirmos que, quanto mais concentrada é a população de imigrantes,
menos assimilada ela é, os contatos acontecem gradualmente:
a. Entre os mais assimilados (os alemães e irlandeses) e os que são mais
moderadamente (os poloneses e suecos);
b. Entre estes e os menos assimilados (os italianos, russos e
tchecoslovacos).
A tendência mais clara ao isolamento se manifesta entre os italianos, os quais se
encontram sozinhos, e só se combinam com os poloneses e suecos. É marcante também
para os alemães que também só se misturam aos suecos e poloneses. Os tchecoslovacos
e os russos (com uma exceção) só estão em contato com os eslavos.
Essas diferenças são explicadas em grande parte pelo fato de esses vários grupos
de imigrantes terem chegado há mais ou menos tempo. No livro de Jenks; Lauck
(1917), citado acima, um notável gráfico registra e representa a imigração de cada país
para os Estados Unidos de 1820 a 1916. Vemos nele as três ondas de imigração italiana,
austro-húngara e russa que se espalhou amplamente desde 1900. A imigração alemã,
depois de três grandes ondas, por volta de 1854, de 1865 a 1874 e de 1880 a 1893,
estreitou-se em uma rede bastante fina. A imigração escandinava, já importante em
1869, passa sucessivamente por quatro máximas, 1882, 1888, 1892 e 1902; mas, depois
diminui continuamente, como se suas fontes estivessem secando gradualmente.
A imigração irlandesa, por seu turno, é tão antiga quanto a imigração alemã.
Encontramos aqui e ali, ao mesmo tempo, as mesmas máximas. Ela caiu continuamente,
entre 1905 e 1917, de 54.000 para 17.000, o que explica por que os irlandeses e os
alemães pareciam ser mais assimilados do que os italianos, russos e poloneses.

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Os suecos, porém, estão tão concentrados quanto os austro-húngaros e os russos,


embora tenham emigrado antes deles e tenham chegado em menor número desde o
grande influxo italiano antes da guerra. Os judeus e os poloneses, por outro lado,
(incluídos na emigração russa e austro-húngara) chegaram ao mesmo tempo. Os
últimos, porém, estão mais concentrados que os segundos.
Finalmente, se calcularmos, para os 30.000 austríacos e os 26.000 húngaros em
Chicago, os mesmos índices acima para as outras nacionalidades, encontraremos uma
diferença relativa igual a 0,75 para a primeira (o que indicaria um grau de dispersão
mais alto do que para a Alemanha e a Irlanda), e 1,80 para o último (grau de dispersão
aproximadamente o mesmo que para poloneses e suecos). No entanto, os austríacos e os
húngaros chegaram ao mesmo tempo: ambos são imigrantes recentes. Como resultado,
o grau de concentração nem sempre é um indicador suficiente da resistência dos
imigrantes à assimilação.
A frequência relativa de casamentos entre imigrantes de cada nacionalidade e
americanos deve ser estudada. Essas nacionalidades foram distinguidas em duas
categorias: países de imigração antiga: Irlanda, Inglaterra, Alemanha, países
escandinavos etc. e países de imigração recente. No entanto, para o período 1899-1909,
descobrimos que, de cem de imigrantes, há 41,5 mulheres entre os primeiros, e entre os
segundos, apenas 27.
Quando os imigrantes chegam com suas esposas, isso sugere uma intenção mais
firme de permanecer nos Estados Unidos43. Mas, de acordo com a nossa tabela, os
irlandeses muitas vezes vêm sem suas esposas, e os judeus chegam em grande número
com suas famílias. No entanto, os primeiros assimilam e são assimilados muito mais
rapidamente que os segundos.
De outra parte, contudo, os imigrantes que encontram apenas um pequeno
número de mulheres de sua nacionalidade, se decidem ficar, podem ter mais chances de
se casar com mulheres americanas44. Nesse ponto, não temos dados suficientes. Mas,
talvez, possamos abordar o mesmo problema, na estrutura de Chicago, por uma rota
indireta, e assim obter, pelo número relativo de casamentos mistos entre americanos e
estrangeiros, um índice mais preciso da velocidade de assimilação no país dos vários
grupos nacionais.

43
Desde 1908, os imigrantes que retornam à Europa são registrados. Se distinguirmos os países de
imigração antiga e recente, de uma centena de imigrantes, encontramos dezesseis retornos à Europa e
trinta e oito para o segundo, apenas 8% para os irlandeses e 7% para os judeus. Jenks; Lauck, op. cit., pp.
38 e segs.
44
Abaixo reproduzo passagens de uma carta enviada à Polônia por um imigrante daquele país, fato
sugestivo sob vários pontos de vista. Ele não parece considerar a possibilidade de um casamento fora do
seu grupo.
Queridos pais. Peço-lhe para não ficar com raiva e não me desmerecer
quando vocês lerem o que eu lhe escrevo. Escrevo que é doloroso viver
sozinho. Então, por favor, encontre uma garota para mim, mas uma garota
honesta, porque na América não há uma única mulher polonesa como tal. -
21 de dezembro de 1902.
Muito obrigado pela carta de vocês, fiquei feliz em recebê-la. Quanto à
garota, embora eu não a conheça, pelo menos o meu companheiro, que a
conhece, diz que ela é forte e gentil (stalely and pretty), e eu confio nele,
assim como em vocês, meus pais.
Por favor, diga-me qual das duas irmãs virá, a mais velha ou a mais nova,
Aledsandra ou Stanislawa? (Carta encontrada em Thomas; Znaniecki, The
polish peasant [O camponês polonês], 1918-1920, t. II, p. 259).

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***

Nas estatísticas americanas, distinguimos os estrangeiros, sob o nome de foreign


white stock, daqueles que podemos chamar de imigrantes de segunda geração, ou seja,
os filhos de estrangeiros. É possível separá-los em duas categorias: aqueles cujos dois
pais são estrangeiros (foreign parentage), e aqueles dos quais apenas um dos pais é
estrangeiro (mixed parentage). Nos Estados Unidos, em 1920, para 100 pessoas
nascidas de dois pais estrangeiros, havia 44,5 tendo com apenas um dos pais
estrangeiro. Esse número, contudo, cai para 23 em Nova Iorque, e para 28,5 em
Chicago. No quadro 9, abaixo, calculamos essa proporção para os 35 distritos de
Chicago em 1920.
Quadro 9 - Número de pessoas com apenas um pai estrangeiro [ara 100 pessoas nascidas de dois pais
estrangeiros]

Não sabemos o valor dessa proporção por nacionalidade, nem para Chicago nem
para esses distritos, e somos obrigados a manter os números acima. Por outro lado,
sabemos qual é o número de estrangeiros de cada nacionalidade contidos nesses
distritos. Portanto, é possível fixar nossa atenção naqueles que contêm uma grande
maioria de estrangeiros de tal ou qual nacionalidade, e supor que os relatórios
correspondentes aos mesmos distritos estejam relacionados principalmente aos
descendentes desses estrangeiros.
Dessa forma, teremos um índice da velocidade maior ou menor com que as
várias categorias nacionais se assimilam. Essa velocidade será maior (e vice-versa)
quando a proporção de pessoas com apenas um dos pais estrangeiros for maior.
É no 19º distrito (estabelecimentos italianos ao norte do gueto) que encontramos
a maior massa de italianos, mais de 15.000. Há também 1.800 gregos, 1.200 russos e
3.700 poloneses. Nenhuma outra nacionalidade chega a 1.000. Em nenhum outro lugar
(exceto no 17º distrito), também, a resistência à assimilação é mais forte. A proporção
acima leva, de fato, o valor 10. No 14º distrito, os italianos são numerosos, mas há um
pouco mais de poloneses; no 22º distrito também, mas ao lado de fortes contingentes
alemães e húngaros (respectivamente: 6.000, 4.000 e 4.500). A média dos números
indicados na tabela acima, para esses três distritos, é de 18,8.
No 20º distrito há uma forte maioria de russos (6.800, aos quais se somam 2.900
lituanos). A proporção acima cai para 6,7. É o gueto. Está-se no cimo do gueto, porém,
no extremo oeste da cidade. No 34º distrito estão incluídos principalmente russos
(17.600) e tchecoslovacos (10.500).
No 1° distrito, ao sul do gueto, existem duas massas iguais de russos e de
tchecoslovacos: a proporção cai para 10,2. No 13º, um pouco mais ao norte, os russos se
misturam com os irlandeses (6.000 e 4.000, respectivamente): a proporção sobe para
38,2. Observamos que os irlandeses assimilam-se muito rapidamente.

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No 15º, mais ao norte, perto da North Street, existem 16.000 russos e 11.000
poloneses: a proporção cai, mas para apenas 15,8. Enquanto os russos no gueto são
todos judeus, estes, em parte, parecem ser da autêntica raça eslava45.
Nos 4º, 8º, 11º e 16º, pode-se dizer que existem quase apenas poloneses. À
proporção que estamos estudando é bastante baixa nesses quatro distritos: em média,
16,1. No 11º distrito, ao lado de 10.700 poloneses, existem 3.600 russos e 1.600
tchecoslovacos (distrito excêntrico, no centro-oeste); a proporção é a mais baixa: 11.6.
No 16º, onde há, com os poloneses, apenas um pequeno grupo de russos, é de 13,4. Nos
4º e 8º distritos, onde existem pequenos grupos de muitas outras nacionalidades, é de
16,8 e 22,4.
Em todos esses distritos, entre os italianos, russos (e tchecoslovacos) e
poloneses, a proporção de imigrantes de segunda geração com pais americanos, como
podemos ver, é muito baixa. Os judeus russos parecem ser os menos assimilados; não é
fácil dizer quais são os italianos e poloneses mais ou menos assimilados: parece que
geralmente não há mais de 10 a 15% que vêm de um "parentesco misto". Talvez,
contudo, no geral, essa proporção seja ligeiramente mais baixa para os poloneses do que
para os italianos.
O distrito mais puramente alemão é o 24º. Nele a proporção é 30, um pouco
mais alta, mas apenas um pouco, do que a média. No 26º distrito, ao lado de 8.600
alemães, há 5.600 suecos: nele a proporção sobe para 42,6. Isso é um sinal de que os
suecos se assimilam mais rápido que os alemães? No 27º distrito que possui 10.000
alemães, 5.000 suecos e 5.900 poloneses, a proporção cai para 35,7. O fato é que os
poloneses resistem à assimilação.
Vamos para os suecos. No 25º, existem 5.300 suecos, 4.400 alemães, 2.200
ingleses canadenses e 1.600 ingleses. A proporção é de 51,6, e isso é quase o máximo.
Como foi fixado em cerca de 30 somente para os alemães, podemos assumir que os
suecos se assimilam rapidamente (se não tanto quanto os ingleses!). No 23º distrito,
existem apenas 5.600 suecos e 6.100 alemães, a proporção é de 40. Deve ser maior,
contudo, apenas para os suecos.
Os irlandeses não estão em lugar algum na maioria (não mais do que
estrangeiros de nacionalidades não estudadas até agora). Parece que podemos fixar para
eles entre 40 e 45 à proporção que calculamos. A qual deve ser um pouco maior do que
para os alemães.
Seríamos levados, portanto, a retificar as conclusões às quais nos levou o estudo
do grau de concentração de grupos estrangeiros. Dissemos que os tchecoslovacos, os
russos e os italianos eram os mais concentrados e assimilavam a nova sociedade mais
lentamente, do que os alemães e irlandeses, e que os poloneses e os suecos ocupavam
uma situação intermediária. Na realidade, os poloneses parecem resistir à assimilação
tanto quanto os tchecoslovacos, os russos e os italianos. Contudo, por outro lado, os
suecos se assimilam mais rápido do que os alemães e os irlandeses. Classificamos,
portanto, essas nacionalidades, de acordo com o grau decrescente de assimilação:
irlandeses e suecos, alemães, e italianos, poloneses, tchecoslovacos e russos (judeus).
Isso corresponde aproximadamente aos resultados a que chegamos, levando em
consideração o tempo mais ou menos longo que se passou desde a provável chegada
desses imigrantes.

Conclusões

45
É aqui que a Igreja Ortodoxa Russa está localizada.

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Chicago se desenvolveu em contraste perfeito com uma de nossas principais


cidades européias. Estamos pensando aqui mais particularmente em Paris, que
estudamos no passado.
Paris é uma cidade antiga que cresceu lentamente, embora com uma velocidade
acelerada durante o século passado. Contudo o seu desenvolvimento se deu no cerne de
um movimento continuado, - com crises de crescimento que correspondiam às fases de
uma evolução orgânica bem regulada, no interior de sua uma configuração antiga, e
resultado de todo um passado histórico.
A configuração da cidade passou destarte de um conjunto de partes
primeiramente unidas umas às outras por um elo bastante frouxo e que, gradualmente,
foi tomando consciência de sua unidade, sob a pressão das novas necessidades
desenvolvidas em relação a uma população maior e mais móvel, e pela criação de novas
rotas mais longas, mais amplas e melhor organizadas entre si, como modo de gerenciar
as transições, mas sempre levando em conta os hábitos tradicionais. O problema maior
foi o de adaptar os modos antigos, irregulares, mas que constituíam uma estrutura viva e
resistente, às necessidades de uma população mais homogênea, cujos elementos,
misturados, agora se fundiam em uma massa coletiva mais uniforme e dotada de mais
coesão interna.
Chicago, por sua vez, é uma enorme cidade traçada e construída em cinquenta
anos em terreno plano e solo virgem. Uma criação artificial, voluntária e quase brutal;
com tudo sacrificado à extensão, rapidez e comodidade de circulação.
Um quadro regular e geométrico, feito de faixas retas indefinidas que se cruzam
também em ângulos retos: as ruas não são caminhos que unem bairros, conjuntos de
moradias que existem há muito tempo. Não, traça-se primeiro o diagrama das estradas.
No geral, as casas não sobem até então, em quarteirões bem acondicionados no centro,
mas, na maioria das vezes, no interior de vastos espaços vazios. A cidade espera e
chama os habitantes; mas não obedece aos seus hábitos, e impõe-lhes os que resultam
da sua estrutura.
Nesse quadro homogêneo, foi distribuída uma população vinda inteiramente de
fora, de todo o país e de todos os países. Uma população composta de contribuições
extremamente diversas, tradições nacionais, modos de vida e condições sociais que se
separam e se opõem e, no entanto, são justapostos, e se envolvem em elementos que se
cruzam e se encontram constantemente, sem realmente se misturar.
Em Paris, uma população única e homogênea, uma estrutura irregular e
fantasiosa, que era necessário reformular lentamente de acordo com as necessidades do
organismo coletivo que estava trancado ali. Em Chicago, uma estrutura uniforme e
regular, e uma população heterogênea que tenta se dobrar as regras de um conformismo
urbano implacável.
Mas este é talvez apenas um aspecto da realidade. Antes de tudo, e apesar da
retidão dessas ruas que cobrem Chicago com uma rede perfeitamente regular, a figura
exterior desta cidade é muito mais atormentada do que parece.
Vamos olhar um momento para o plano produzido acima. As áreas ocupadas por
ferrovias e estabelecimentos industriais são grandes e irregulares. Elas formam no
centro uma estrutura maciça, que estende braços ou antenas gigantes em todas as
direções.
Elas dividem a cidade, porque são barreiras, em tantas seções, que na maioria
das vezes não coincidem com os limites marcados pelas ruas. É um plano industrial,
determinado por razões técnicas, sobreposto a um plano urbano.
Porém, ao longo dessas paredes de fábricas ou canteiros de obras, desses trilhos
elevados e das cercas que encerram tantos espaços abandonados, estendem-se zonas que

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lembram, pela aparência, as ruas e os bulevares interiores que correm ao lado ou ao


longo das fortificações de Paris. A vida urbana expira nesses locais, ou melhor, lá se
desenvolve uma vida social original, desintegrada e desordenada. Isso é o que os
sociólogos americanos chamam de bairros “deteriorados”.
É fácil perceber que muitas colônias de imigrantes se estabeleceram nos espaços
assim demarcados, abrigados por essas longas paredes e caminhos elevados, e cujos
contornos eles adotaram e que às vezes lhes servem de fronteira. Como resultado, a
estrutura física de Chicago é muito acidentada e diversa, e que, apesar das rotas diretas,
os bairros são talvez mais separados e isolados do que em Paris. Isso, especialmente se
não se esquecer de que, com população pouco mais numerosa, esta cidade ocupa uma
área seis vezes maior.
Quanto aos contrastes nítidos, - contrastes entre nacionalidades, e oposições
entre raças, - às oposições marcantes que vemos durante uma excursão, mesmo rápida e
superficial, pelas ruas de Chicago, se apresentam com um alívio singular nessa
população que inclui tantos estrangeiros imigrados recentemente. Lembrar, destarte, que
em Chicago onde não há 28% dos americanos, nem 24% se distinguirmos os negros, há
30% de estrangeiros, 42% de filhos de estrangeiros (incluindo em mais de três quartos,
filho de dois estrangeiros).
Três quintos da população incluem europeus, que não possuem cidadãos
americanos em seus antepassados. Se distinguirmos os países da antiga imigração
(Inglaterra, Escócia, Irlanda, Alemanha, países escandinavos), eles representam cerca de
40% dos estrangeiros. Quase todos os outros, acima de 55%, incluem italianos do norte
e, principalmente, do sul, os camponeses da Polônia, os artesãos e trabalhadores da
Tchecoslováquia e, finalmente, o fluxo de judeus russos, quase tão numerosos quanto os
italianos. É a fórmula mais recente no caldeirão americano.
Mas não nos impressionemos com a aparência externa, as características, o
ritmo, que mudam rapidamente, com a uniformidade das roupas e sob a influência de
um ambiente humano homogêneo. É preciso examinar em seus elementos essa noção de
raça, que não oferece nada irredutível.
Esses grupos diferem em termos de idioma. Na realidade, eles aprendem inglês
muito rapidamente46.
Eles diferem na religião, mas mais ou menos. Isso não impede que os irlandeses
assimilem rapidamente (é verdade que os irlandeses afirmam assimilar os americanos...
mas, de qualquer forma, eles criaram raízes), embora permaneçam estreitamente
católicos.
As assembléias religiosas são certamente uma oportunidade para os imigrantes
manterem contato com os de sua nacionalidade. A influência americana, no entanto,
penetra através das paredes das igrejas. Em uma igreja católica italiana, vi um público
muito popular, que ainda não adquiriu o hábito de tomar banho diariamente, de modo
que um cheiro acre o leva pela garganta.
O padre, em uma casula verde, faz grandes gestos, como além dos Alpes, e
prega em uma linguagem oratória e auditiva, porém em inglês. A religião, como tal, não
é mais um obstáculo à assimilação aqui do que em qualquer outro país onde grupos de
diferentes religiões são justapostos.

46
Os poloneses, que são os mais relutantes, têm as seguintes proporções: 21% dos que vivem há menos de
cinco anos falam inglês; 50% daqueles que estão lá entre cinco e nove anos; 77% após dez anos (esses
números são muito mais baixos para as mulheres; 6, 20 e 56, respectivamente). Os judeus caminham
muito mais rápidos: antes de viverem por cinco anos na cidade, 64,5% dos homens (e 65,5% das
mulheres) falam inglês. Depois de dez anos, não há nenhum grupo em que encontramos mais de 20% dos
homens que não são capazes disso.

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Mais do que religião e idioma, os imigrantes se distinguem dos americanos e se


distinguem entre eles por sua situação ou nível social. Esta distinção irá depender do
recorte que se faça, mas, qualquer um deles, - incluir principalmente os trabalhadores
brutos e não cultivados, os agricultores desenraizados, que apenas possuem e podem
vender a sua força física, os trabalhadores mais ou menos qualificados, homens e
mulheres capazes de trabalhar em casas e escritórios comerciais, - formam categorias
que podemos chamar de econômicas.
Entretanto, tem acontecido o mesmo, em maior grau, em muitas grandes cidades
européias, desde o desenvolvimento da grande indústria. Em Paris, como em Chicago,
os distritos diferem de acordo com a predominância mais ou menos acentuada de tal
tipo de profissão ou indústria, com esse grau de pobreza ou riqueza.
Uma cidade grande desenrola, diante dos olhos do caminhante, todas as nuances
das condições, e dificilmente existe uma paisagem urbana na qual essa ou essa classe
social não tenha deixado sua marca. Mais suave e rica em cores, a imagem oferecida por
Chicago representa basicamente o mesmo tema que qualquer aglomeração moderna em
que diversos ambientes coletivos se chocam. Se as raças não explicam suficientemente
as classes, não é menos verdade que as classes criam entre os homens divisões tão
profundas e às vezes tão pitorescas externamente, quanto à diversidade dos tipos e
modos de vida étnica.
Ao considerarmos assim o grupo urbano que estudamos, não estaremos mais
prontos para admitir sem reservas que o desenvolvimento de Chicago foi uma operação
artificial, que resultou da anexação e incorporação mecânica de grupos principalmente
estrangeiros que gradualmente preencheram os vazios desta cidade. Quando alguém
inscreve nomes de raças ou nacionalidades nos vários distritos, Chicago realmente se
assemelha a um mosaico.
Vamos apagar esses nomes e dizer apenas que existem muitos trabalhadores
ligados à grande indústria, artesãos, trabalhadores qualificados, comerciantes,
"balconistas", empregados, etc. Em vez de uma série de distritos justapostos, veremos
uma sucessão de camadas sociais sobrepostas: mas, as mais sedentárias, as mais
estabelecidas, aquelas que realmente constituem o coração e a substância do organismo
urbano, estão abaixo das outras, que os cobrem e que impedem, em parte, de vê-los.
Esses outros, que permanecem do lado de fora, realmente e apesar das
aparências, e mais ou menos próximos da superfície, mais ou menos distantes da área
verdadeiramente orgânica e interna, são mais móveis e menos apegados à cidade,
mesmo assim que eles estão incluídos em seu gabinete. Eles não fazem parte disso, pelo
menos ainda não. Eles entram apenas devagar e participam apenas de maneira muito
desigual em sua vida geral.
Portanto, é inadequado ficar impressionado demais com o número
proporcionalmente grande de estrangeiros registrados em Chicago. 28% de estrangeiros,
60% de estrangeiros e filhos de estrangeiros, em comparação com 24% de americanos,
35% de americanos e filhos de pelo menos um americano. Mas os estrangeiros ainda
são "de fora".
Nas cidades antigas e mesmo em algumas cidades medievais, eles ficavam do
lado de fora, não viviam dentro dos muros. Aqui, eles entram no recinto e assentam ali:
é que o espaço é extremamente grande, e a cidade, metade, ainda não está construída,
exibe espaços desocupados controlados: fábricas, linhas ferroviárias, “zonas
intersticiais”, onde se está na cidade sem realmente estar lá. Na verdade, sem ainda ser
confundido com sua carne e seu sangue: como esses organismos simples, todos em
cavidades que, apesar de internos, banham o meio e o líquido exterior.

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Não é por serem estrangeiros, mas porque são trabalhadores. Especialmente


porque trabalhadores da grande indústria, é que a massa de imigrantes, admitida como
residente, é, no entanto, separada da vida urbana, excluída da corrente tradicional e
continuada que envolve apenas os elementos verdadeiramente "burgueses" ou em
relação e em contato íntimo e familiar com a burguesia.
Entre as várias categorias de imigrantes, existem diferenças a esse respeito,
justamente porque as condições de seu trabalho os vinculam menos naturalmente à
cidade do que à sua estrutura técnica, e nem sequer a ela apenas temporariamente. Aqui,
por exemplo, esses trabalhadores são contratados por gangues para construir as
ferrovias. Eles partem de Chicago na primavera e seguem para noroeste. Em outubro,
eles começam a retornar à cidade grande, onde passarão o inverno, se tiverem reservado
algum dinheiro; caso contrário, eles irão trabalhar no sul.
Esses trabalhadores temporários, homeless men, vivem em uma área reservada
para eles, todos em quartos e hotéis mobiliados: de certa forma, é o anexo das grandes
estações de partida (e chegada). Eles não mergulham na vida urbana e conhecem apenas
as ruas grandes e populosas dos distritos centrais.
Durante os períodos de desemprego, uma parte inteira da população
trabalhadora, - também na Europa, - aflui para as grandes cidades, uma população
flutuante que realmente não faz parte do grupo urbano. Quanto às massas de
trabalhadores estrangeiros, que vão todos os dias de sua casa para a fábrica, vivem em
alojamentos estrangeiros, trabalham entre estrangeiros, o que eles sabem sobre a vida
americana, se não os seus aspectos exteriores, e que relação eles têm com os
americanos, se não, talvez, ocasionalmente, de seu trabalho, isto é, no nível técnico?
Mas não seria o mesmo para os trabalhadores para os quais, em nossos países,
construiríamos aquartelamentos, fileiras de casas, cidades operárias nos arredores de
uma grande cidade de população burguesa e rica? Eles dificilmente se distinguiriam
destes imigrantes.
Se classificássemos os estrangeiros em Chicago de acordo com o tamanho
crescente de seus salários, eles se organizariam aproximadamente de acordo com a
ordem que nos parecia ser a da velocidade de sua assimilação. Os negros no final da
escala, depois os italianos, os do norte claramente acima dos do sul, os poloneses ao
nível dos italianos do norte, claramente acima dos judeus russos, depois os irlandeses e
um pouco mais altos os alemães.
Os judeus formam uma categoria à parte, e o fator étnico propriamente dito
desempenha ali, certamente, um papel adequado47: mas também seria possível observar
o mesmo fenômeno em muitas grandes cidades européias. De um modo geral, esses
grupos parecem assimilar mais rapidamente quanto maior for o seu padrão de vida.
Portanto, é quase o mesmo problema que surgiu em Chicago (considerada como
um tipo de grande aglomeração americana) e em mais de uma grande cidade européia
moderna: adaptar duas comunidades muito diferentes, sem relações íntimas; coordenar
duas estruturas que respondem a necessidades distintas e quase opostas: um
estabelecimento urbano que é como um organismo, um conjunto de estabelecimentos
industriais e a população trabalhadora a ele ligada.

47
É o mesmo com os negros. Mas enquanto, entre os judeus, a assimilação, que seria facilitada em
virtude de um nível social moderadamente alto, está mais lenta sob a influência étnica, entre os negros, os
dois fatores, econômico e étnico, fortalecem (no sentido de resistência à fusão). Um americano me disse
que um americano não pode se casar com uma negra, nem um americano com um negro, porque isso
equivaleria a se casar com sua cozinheira ou seu motorista. Não é o mesmo com relação a homens ou
mulheres que têm sangue indígena, pois "estes nunca foram escravos..."!

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É verdade que os fatos do problema não eram exatamente os mesmos em


Chicago, porque o organismo urbano era pequeno e existia apenas por um curto período
de tempo, porque a população trabalhadora chegou subitamente e proporcionou uma
volume considerável. Foi, portanto, necessário, em poucas décadas, delinear a estrutura
de uma cidade gigante proporcional a essa população. Mas essa estrutura era artificial
demais para executar qualquer ação no trânsito ou na liquidação. Antes, os grupos se
adaptaram aos obstáculos e pontos de apoio constituídos pelas fábricas, canteiros de
obras, trilhos de trem, que os separavam.
Assim, uma série de distritos independentes foi formada, principalmente porque
as distâncias eram muito grandes. A cidade se diferencia então por uma série de reações
espontâneas. Os grupos de moradores abastados procuravam áreas espaçosas longe de
fábricas e docas. Os imigrantes se estabeleceram nos locais deixados livres, perto do
centro ou em direção à periferia. Situação de espera, como é apropriada quando metade
da população precisa passar por algum tipo de estágio antes de se fundir com a outra.
Apesar disso, como vimos, a assimilação continua em constante mudança. A
penetração ocorre lentamente entre os grupos, seja porque alguns deles, por serem muito
grandes, estão em contato com muitos outros, ou porque parte dos habitantes, cujo nível
social subiu, vão se estabelecer em outro lugar, deixando espaço para os recém-
chegados. Se a distribuição de imigrantes muda a tal ponto que, quase de um censo para
outro, o plano em que é indicado deve ser corrigido e refeito, é por causa de uma
reclassificação econômica incessante. Apesar da aparente rigidez do seu
enquadramento, não existe cidade, na realidade, que mude mais rapidamente, na sua
composição e no seu equilíbrio.

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RESENHAS

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ROMERO, Fanny Longa Romero. Resenha do
livro Tempos de Pandemia. Sociabilidades
Urbanas, Revista de Antropologia e So-
ciologia, v. 5, n. 13, pp. 213-220, março de
2021, ISSN 2526-4702.
RESENHA
https://grem-grei.org/numero-atual-socurbs/

Resenha do livro Tempos de Pandemia


Review of the book Times of Pandemia

Fanny Longa Romero∗

Tempos de Pandemia: reflexões sobre o caso Brasil. (Koury, Mauro Guilherme


Pinheiro, org.). João Pessoa: Grem-Grei; Florianópolis: Tribo da Ilha, 2020, 243 p.

A coletânea agora resenhada reúne um capítulo introdutório e dez artigos. Juntos


cumprem com o objetivo não apenas de vincular reflexões contextualizadas às teorias
sociais e da cultura, na vertente da sociologia e da antropologia das emoções, e suas
correlações e problemáticas com foco na pandemia do covid-19, em torno do tripé
indivíduo, sociedade e cultura; mas de enfatizar a pertinência da dimensão comparativa,
como exercício analítico fundamental no campo das ciências sociais1.
O livro Tempos de pandemia: reflexões sobre o caso Brasil tem como mérito,
além da sua distribuição gratuita em formato e-book2, a proposta de tecer fios
etnográficos e de análise quantitativa e imagética sobre dinâmicas de interação social,
situadas. Com o foco centrado em cidades de grande e pequeno porte das regiões Norte
e Nordeste do país, essa obra renova os debates sobre a temática da pandemia, à luz dos
desafios de interação com a categoria de cultura emotiva, ao potencializar, compreender
e confrontar, em perspectiva comparativa e processual, a situação-limite vivida por seus
habitantes na cruel expansão da pandemia no Brasil. O livro em pauta reflete o
questionamento e compromisso científico de pesquisadores diante das políticas
neoliberais e anticivilizatórias de governança atual, marcadas pelo negacionismo da
ciência e dos seus avanços.
A chamada para a produção dessa publicação não se desvinculou de um tipo de
"urgência" que, em situações como essa, se torna imperativa. A proposta buscou
mobilizar esforços acadêmicos e de pesquisa para a compreensão conceitual, teórico-
metodológica de processos e configurações históricas e sociais, sobre o desconforto
emocional e moral enfrentado pela população brasileira, e, em especial, das regiões


Doutora em Antropologia, e docente da UNILAB, campus dos Malês, Bahia. Orcid:
https://orcid.org/0000-0003-2750-6119. E-Mail: flongaromero@unilab.edu.br.
1
O livro contou com o incentivo do Grem-Grei, Grupos de Estudos e Pesquisa em Antropologia e
Sociologia das Emoções e Imagens. O Grem-Grei é uma composição de grupos de pesquisa vinculados ao
Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba. A primeira chamada
para publicações sobre a temática em pauta teve como resultado a produção do Suplemento Especial da
Rbse, Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, em maio de 2020.
2
O livro pode ser gratuitamente acessado através do link: https://grem-grei.org/editora-grem-grei/
214

estudadas, em forma de luta pela sobrevivência, de reorganizações internas de modos e


estilos de vida local, e de movimentos de acomodação e resistências cotidianas.
Como aponta Koury, na introdução do livro, as análises nele contidas se
debruçam na ameaça ao frágil equilíbrio emocional e cultural, e à tensividade resultante
das duas crises associadas no Brasil atual: "a crise político-institucional diante das
mazelas do governo Jair Bolsonaro e sua equipe de ministros e apoiadores", e a crise
sanitária no advento do novo coronavírus. Crises atreladas às dinâmicas internas de
grupos sociais, seus conflitos, interesses, jogos de poder, formas de dominação,
resistência e modalidades de aliança. Que, penso, estão igualmente associadas a uma
perspectiva mitológica, em especial, a uma "mítica concreta" (RICOEUR, 2011)
judaico-cristã, que influencia o acionamento de moralidades e regimes de verdade na
sociedade brasileira.
Para início de conversa, a primeira aproximação que desejo sustentar é a
necessidade de se defrontar com experiências diferenciadas de sofrimento social na
pandemia, pelo viés de uma análise densa, sensível e nuançada, mas sem escorregar no
intervencionismo, no moralismo ou em qualquer sorte de fundamentalismos teóricos e
políticos. Tempos de Pandemia: reflexões sobre o caso Brasil, portanto, é uma tentativa
de contribuir como cientistas sociais para a produção de conhecimentos, compreensão
de fenômenos sociais, abertura de debates profícuos, e possibilidade de "reflexão crítica
da situação-limite", como aponta Koury na introdução à coletânea objeto dessa resenha.
A coletânea se enquadra, justamente, na urgência dessa contribuição e no
reconhecimento teórico-metodológico que o saber-fazer das ciências sociais é capaz de
oferecer ao examinar os dilemas, desafios, rupturas, contradições, emoções e as
ambiguidades de sensibilidades individuais e coletivas, no marco de uma ordem social
polifônica e conflitiva. Todavia, é importante destacar que o próprio título do livro
sugere um interessante debate nas ciências sociais ao optar pelo plural no uso da
categoria analítica tempo.
De fato, tomando como referência o tempo, uma das preocupações das ciências
sociais tem sido desmitificar essa categoria como uma força imanente, misteriosa e
paradoxal. Alfred Gell argumenta que a aura metafísica recai em confundir o tempo,
enquanto dimensão única, objetiva e real, com os processos e dinâmicas da experiência
social e empírica que nele ocorrem. Afirma que os antropólogos têm muita
responsabilidade nessa elaboração, no que ele chama de "especulações metafísicas
injustificadas" (GELL 2014, p. 16). Norbert Elias (1998), por sua parte, problematiza a
deificação do tempo e se debruça na dimensão de sua regulação social na configuração
histórica das sociedades modernas. E, dentro da ampla literatura da chamada
antropologia crítica, Johannes Fabian (2013) nos oferece uma análise inquietante e
radical sobre os usos do tempo, mais exatamente, sobre uma antropologia através do
tempo, na qual examina a problemática da construção de coetaneidade (e da sua
negação), nos termos de uma dinâmica temporal e relacional que tensiona tanto o
conceito antropológico de alteridade, como a produção de conhecimento, hierárquico e
desigual, sobre um "outro". Nessa perspectiva, Fabian investiga como a antropologia
estabelece seu "objeto de conhecimento", através do tempo, e em um tempo diferente
"do produtor do discurso antropológico" (FABIAN 2013, p. 67) que é, conforme o
autor, pensado e alocado em teorias e em uma ordem culturalmente organizada.
Essas problemáticas estão, de certo modo, interrelacionadas com o esforço
analítico e de pesquisa do livro em pauta, na maneira como problematizamos e/ou
relativizamos os tempos de pandemia, em contexto. Tal esforço tem grande alcance
quando é pensado, de fato, em interdependência com uma escala mais ampla, situando
tempos, espaços, pessoas e objetos múltiplos. Ou seja, correlacionando a ordens globais

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e locais; práticas cotidianas, processos sociais e históricos, experiências heterogêneas do


individual e do social, em atenção a relações de poder e conflitualidades na emergência
mundial do debate de biossegurança. Portanto, se a irrupção da pandemia do covid-19,
como experiência social, nos convoca a transitar por um caminho incerto, temeroso e de
luta pela sobrevivência, física e social; o Tempos de Pandemia, enquanto produção
científica de reflexividade teórica e empírica, nos conduz a evitar as armadilhas dos
essencialismos culturais, do cientificismo acrescido com a expansão de pensamentos e
práticas neoliberais e, principalmente, a priorizar de que modos podemos avançar na
produção de pensamento crítico nas ciências sociais.
O mote do primeiro capítulo da coletânea, de autoria de Mauro Guilherme
Pinheiro Koury, sob o título "As emoções em tempo de isolamento social", se debruça
sobre a produção de emoções e do isolamento social no cenário da vida nacional. Tal
cenário, não apenas é tenso, inseguro e conflitivo, mas permeado de novas moralidades,
algumas delas tão sinistras como a própria cultura política neoliberal que a suscita.
Koury acompanha de perto, e de forma sistemática, as páginas da impressa
escrita e informações de diferentes redes virtuais que passam revista nos acontecimentos
políticos do que chama de "golpe branco", que resultou na derrubada do mandado, via
impeachment, da ex-presidenta Dilma Rousseff, até os processos que levam a Jair
Bolsonaro à ascensão ao poder, como atual presidente da República. O interessante
desse recorte inicial de Koury é mostrar de que modo a governança bolsonarista,
apoiada em uma "política de destruição civilizatória", é permeada por uma "retórica do
desespero": noção que aponta para a falência moral e política e, no caso em pauta,
também para o negacionismo da ciência e seus avanços, o cinismo e as medidas
inconstitucionais diante o sofrimento e a dor dos outros. “Retórica do desespero”,
explicitamente, demonstrada em depoimentos governamentais sobre situações de dor
frente à calamidade nacional de mortes e contaminação pelo novo coronavírus, como:
"infelizmente muitos vão morrer, é coisa de quem está vivo, fazer o que?"
Koury traz outro dado importante no seu artigo ao referir-se às emoções que se
destacam no cenário pandêmico no Brasil: "Ansiedade, Medo e Tristeza que, juntas,
somam quase 90% das respostas" a uma enquete virtual, organizada pelo Centro de
Investigaciones y Estudios Sociológicos (Cies) em toda a América Latina, do qual o
Brasil faz parte. Contudo, o ponto alto da sua análise são os dados etnográficos nas
interlocuções, algumas de longa data, que ele constrói com pessoas, mulheres e homens,
de diferentes origens e perfis, que narram suas emoções, suas experiências vividas, suas
estratégias de resiliência, reprodução social e material, e de sofrimento individual e
social, no cenário da pandemia do covid-19.
Medo, ansiedade, tristeza, depressão, desesperança são sentimentos tematizados
e analisados a partir de material colhido em conversas informais por meio de whatsapp,
e-mail, celular ou encontros fortuitos nos corredores do prédio. O desvendamento dessa
cultura emotiva revela uma face angustiada da experiência cotidiana dos entrevistados
por Koury, e um estado de desconserto e não saber como agir frente aos eventos críticos
por que vêm passando durante a expansão das duas crises (política e sanitária) no país.
"Além da culpa e da expiação: covid-19 e as fissuras de gramáticas emocionais"
é o título do segundo capítulo da coletânea, da autora Fanny Longa Romero. Seu recorte
analítico, inicial, a partir de dados da imprensa virtual, aponta de que modo
determinadas emoções e produção de moralidades, como a culpa, fazem sua entrada na
cena pública na emergência do covid-19, em nível global e local. Segundo Romero, a
culpa é trazida nessas escalas como uma emoção politizada que acirra estigmas e
também densos debates entre fronteiras e governanças mundiais, nacionais e locais.

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Na sua análise, Romero busca problematizar e compreender de que modo


determinadas emoções, moralidades e dispositivos de poder, enquanto construtos
culturais são potencializados, quando em situações de acentuada crise humanitária como
é o caso da pandemia do novo coronavírus. Um ponto a ser destacado na sua reflexão é
a compreensão de que fenômenos sociais como pandemias são um fato social total e
influenciam, de forma interconectada e tensionada, todas as dimensões da vida social.
Com base nos aportes Thomas Scheff (2016) sobre a vergonha como "giroscópio
moral" nas sociedades modernas, Romero busca apontar a relação nuançada e de poder
que permeia o comportamento social em torno da aparição de termos como vírus chinês,
coronavírus Wuhan e a reedição de locuções como “vírus estrangeiro”, incorporados
como discursos políticos e de senso comum. Há aqui um cenário que se refere a
classificações de estigmas e constrangimentos morais.
Um segundo recorte do artigo de Romero analisa, através de dados coletados da
imprensa e páginas de internet, a espectacularização do sofrimento social, assistidos
global e localmente, com horror e espanto, em cidades como Guayaquil-Equador; e
Manaus-Amazonas, realidades sociais diferentes, com especificidades culturais e
sociais, mas, no contexto da pandemia, marcadas por eventos estarrecedores de centenas
de corpos empilhados com evidentes sinais de putrefação no espaço urbano,
abandonados como parte de uma necropolítica legitimada como soberania de Estado. O
ponto alto do artigo, ao pensar nas contingências de sofrimento social, é recuperar a
ênfase nas táticas invisíveis e subterfugias, nas práticas cotidianas de pessoas comuns
que possibilitem novas formas de viver. Chama a atenção para o compromisso
antropológico de reavaliar, processualmente, o social.
O terceiro e quarto capítulos intitulados "Individualismo moderno e sofrimento
social em tempos de covid-19: questionamentos para reflexão", de Idayane Gonçalves
Soares, e "Cenários de medo e as sociabilidades pandêmicas no Maranhão", de Jesus
Marmanillo, respectivamente, são claros exemplos de como os repertórios conceituais e
teóricos da sociologia clássica e da chamada sociologia interacionista e das emoções
influenciam nossas análises. No caso do terceiro, Soares oferece uma breve, mas bem
fundamentada, revisitação teórica do conceito de individualismo moderno e as
configurações de interdependência com o sofrimento social, com base na abordagem de
Norbert Elias.
Soares parte de uma proposta de imaginação sociológica, em perspectiva
comparativa, de um tempo pré-pandemia e pandêmico. Com base em pesquisa
bibliográfica, ela aponta certas continuidades e descontinuidades das dinâmicas do
individualismo moderno e dos processos de sofrimento psíquico em um cenário de pré-
pandemia e de instalação da pandemia do covid-19. Nessa compreensão, busca mostrar
que tal sofrimento, materializado em emoções como depressão, ansiedade, pânico,
solidão crônica, é vivido e sentido, nos atuais tempos pandêmicos, como parte da
dinamicidade dos processos do individualismo moderno desde antes do advento da
situação-limite da pandemia, que ela considera fundamental "para se entender a
configuração das relações sociais durante ela e os seus efeitos na subjetividade dos
indivíduos". Destaco no artigo, a possibilidade de analise do sofrimento psíquico na sua
clivagem com o recorte de classe, no contexto de pessoas de camadas populares, em que
se verifica, conforme Soares, um movimento de associativismo, solidariedade e
cooperação.
Por sua parte, "Cenários de medo e as sociabilidades pandêmicas no Maranhão",
de Jesus Marmanillo, busca analisar o sentimento de medo, tal como o título de seu
artigo sugere, na articulação das dinâmicas de cultura subjetiva e objetiva, com base nos
aportes de Georg Simmel sobre "processos empáticos entre o 'eu' e o 'outro'", formas

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sociais, morte e emoções, nos aportes de diversos sociólogos e antropólogos


contemporâneos. Marmanillo examina esses elementos no contexto da cidade de
Imperatriz -MA, e com base em uma metodologia cruzada de dados estadísticos sobre
boletins epidemiológicos, pesquisa documental e saídas de campo, situando sua
exploração etnográfica no "ato de 'flanar' no contexto pandêmico.
Para compreender a produção de modalidades de medo "como fator importante
nas sociabilidades urbanas", o autor traça uma descrição das experiências cotidianas em
cidades como São Luis e Imperatriz. Nessa perspectiva, sua interpretação, com base no
aporte teórico de Erving Goffman, correlaciona a emergência de novos comportamentos
sociais e individuais à "construção de uma etiqueta preventiva", de sociabilidades
pandêmicas, como ele refere, na obrigatoriedade social e política de governança local,
do uso de máscaras.
Ao explorar a chegada da pandemia nas urbes de Maranhão, Marmanillo afirma
que "O medo da morte gerou uma nova configuração dos cenários de sociabilidade". Ao
que tudo indica, é o medo da morte o processo social e intersubjetivo que guia novas
formas de interação social nesse cenário.
Numa linha similar, o quinto capítulo, de autoria de Selma Gomes da Silva,
intitulado "Pandemia e afetações das emoções: reflexões sobre a realidade da covid-19
no estado do Amapá" explora a chegada da pandemia do covid-19, no contexto de uma
cidade de grande porte. Silva chama a atenção para um "manto de emoções e
sentimentos que envolviam: espanto, medo, tristeza, perplexidade e muitas incertezas",
no cenário de uma cidade que, em março de 2020 estava experimentando as primeiras
incertezas dos tempos de pandemia no país.
O texto de Silva proporciona dados importantes que se referem às acomodações
entre as escalas locais e globais, em especial, quando autora se refere às medidas atuais
de governança nacional exemplificada, nesse caso, na repatriação de brasileiros da
cidade de Wuhan, e que sinaliza certo tipo de relações nos tempos de pandemia entre a
China e o Brasil. É interessante correlacionar o impacto social desses dados trazidos
pela autora uma possível emergência de novos sujeitos considerados outsiders, tal como
o sociólogo Elias Norbert problematizou em alguns dos seus trabalhos.
Por outro lado, Silva perpassa, através de dados de imprensa, algumas imagens
que "mostram a atipicidade dos cerimoniais fúnebres" que a pandemia e a crise sanitária
no Brasil nos forçam a viver, não apenas com as dinâmicas materiais estarrecedoras de
enterramentos de corpos em fossas comuns e da putrefação de cadáveres, a céu aberto,
mas também sobre o que a autora compreende como "mortes sem acompanhamento e
sem despedida", que são agudizadas pelo colapso do sistema de saúde na atual crise
político-institucional. Nessa perspectiva, e com base no aporte de Lipovetsky, Silva
tenta examinar os dilemas e questionamentos sobre "como exercer a leveza emocional
em tempos de pandemia?"
O sexto capítulo, intitulado "'Quanto mais perto, mais real fica': emoções frente
à pandemia do coronavírus em uma pequena cidade de Tocantins", autoria conjunta de
Wellington da Silva Conceição e Rafael de Oliveira Cruz, tem como característica
principal, à diferença dos outros artigos da coletânea, uma realidade social de pequena
escala. Disso resulta que, já no começo da sua análise, os autores afirmem que "No
contexto da pandemia de covid-19 no Brasil, o Tocantins ganhou destaque em um
primeiro momento por ser o estado brasileiro que apresentou o menor número de casos
confirmados".
A análise busca mapear o estado de Tocantins, a partir de uma cidade de
pequeno porte chamada Tocantinópolis, localizada no norte desse estado. O texto traz, a
partir do cenário, possibilidades de reflexão para uma sociabilidade marcada por

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processos de "pessoalidade" em que as interações sociais são elaboradas através


proximidade e familiaridade das relações. A produção de uma "moral conservadora de
natureza religiosa" é um dos elementos a ser destacados pelos autores que descrevem o
teor de um verso bíblico: "Tudo posso Naquele que me fortalece”, como política de
governança do poder municipal. Temos aqui um dado relevante que abre uma gama de
possibilidades para pensar as configurações ideológicas, políticas e religiosas, e suas
possíveis influências para o negacionismo da ciência. Tal como em outros artigos da
coletânea, os resultados a que chegam os autores é que o sentimento do medo se
apresenta como a emoção de maior destaque, na experiência vivida dos entrevistados
virtuais.
A autora Williane Juvêncio Pontes no capítulo 7, intitulado "Reflexões sobre o
enfrentamento à covid-19 em uma comunidade de João Pessoa-PB", nos aproxima a
uma realidade social de João Pessoa conhecida como Comunidade do Timbó que,
segundo ela, é um exemplo "das populações em condições de vulnerabilidade agravada
pelo novo coronavírus." Conforme a descrição etnográfica realizada por Pontes
estamos, nesse contexto, diante de uma sociabilidade de intensa pessoalidade com
potencialidades sociais diversificadas e criativas, apesar das mazelas sociais que vivem
seus membros e dos desafios e inquietações que enfrentam os moradores dessa
comunidade na impossibilidade de viver a experiência do isolamento social porque
precisam cumprir com suas diversas rotinas de trabalho (formais e informais).
O artigo de Pontes permite adentrar na análise de medidas burocráticas de
governança, tais como o isolamento social, concretamente, a política de locksdowns,
conforme se aplicou, de forma localizada, no Brasil. Mesmo que não seja parte do
escopo da sua pesquisa, a autora nos ajuda a sinalizar a correlação de fórmulas globais
de biossegurança e as práticas concretas na sua implementação e a heterogeneidade das
experiências sociais no contexto de populações de classes populares.
Pontes nos aproxima das práticas cotidianas dos moradores da Comunidade do
Timbó ao centrar parte da sua análise no feito dessa comunidade criar o chamado "perfil
Meu Timbó", uma estratégia de construção de diálogo do associativismo comunitário
dos moradores do Timbó, veiculada em redes sociais como o Instagram. Na perspectiva
de Pontes, isso tem repercussão em diferentes meios da imprensa da cidade de João
Pessoa, o que possibilita debates profícuos sobre a temática de vulnerabilidade social e
de redes de solidariedade em tempos de pandemia.
"Convivendo com a pandemia", oitavo capítulo, da autora Maria Laura Faria
Afonso de Melo, se debruça, inicialmente, sobre as clivagens do marcador identitário de
classe, mas a partir de uma memória, próxima e pessoal, de referencias familiares. O
contexto social do seu artigo é a cidade de Recife-PE, e seu texto consiste mais em um
relato de impressões e inquietações pessoais, sobre o que lhe suscita a experiência da
pandemia do covid-19, do que um estudo informado por pesquisa, qualitativa e/ou
quantitativa. Apesar disso, através do seu relato, a autora proporciona interessantes e
fragmentadas informações, em difusos recortes de tempo e espaço.
Um destaque do artigo de Melo e a tentativa de trabalhar com alguns registros
de memória: "Ao falar em pandemia, me vem à mente narrativas de minhas avós
descrevendo o que viveram no final de 1918". A autora se refere à experiência social da
gripe espanhola, que demarca a partir de 1918, no que intitula de "relatos das zonas
rurais e urbanas". Os relatos aos quais ela se refere são resultado dos diálogos com sua
avó paterna. A gripe espanhola no cenário do Recife de 1918 é "trazida pela tripulação
adoecida do Vapor Piauhy. Rapidamente se espalha pela capital do Estado". Após essa
incursão de revisitação de memórias familiares, Melo dá um salto gigantesco, no tempo
e no espaço, e repentinamente nos coloca no contexto da pandemia do covid-19, na

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cidade Recife. A autora sintetiza essa cidade, na atualidade, como "uma cidade
fantasma", em que o sentimento de medo, segundo ela, "torna-se outra pandemia".
O nono capítulo, sob o título "Apontamentos das artes sobre epidemia e cidade",
de autoria de Lysie dos Reis Oliveira, é o primeiro dos artigos da coletânea a trazer uma
proposta de representações imagéticas, no contexto dos séculos XIV e XIX. Já no inicio
do texto, a autora oferece um dado sociológico, e de profundidade histórica, sobre a
temática epidemias, urbes e imaginários sociais, ao explicar que "na história das
cidades, as epidemias preencheram páginas bem como, telas e outros artefatos, foram
expressos por artistas de referência, autorizados pelas sociedades em que se inseriam".
O seu texto centra-se na produção de três artistas europeus dos períodos
referidos, que retrataram a peste negra e os imaginários dos horrores citadinos. Nesse
sentido, o artigo de Oliveira busca problematizar as descontinuidades de eventos e
processos históricos, em cenários diferentes, a partir da pergunta analítica de como a
epidemia invade a cidade, como lócus de compreensão sócioantropológica.
O medo como emoção também está presente no desenvolvimento desse artigo
pela via de análise de imagens de arte pictórica que desvelam representações e
imaginários sociais e os limites de explorar emoções da fascinação diante formas
imagéticas de horror.
Por fim, o décimo e último capítulo, de autoria de Mônica Lizardo, intitulado "O
que você cala – olhares sobre um tempo de pandemia" traz também uma proposta
imagética, mas voltada para o contemporâneo, através de um registro fotoetnográfico na
cidade de Belém do Pará, no Norte do país. O artigo se centra nas dimensões e
repercussões, situadas, da experiência de lockdown na região. Lizardo propõe um olhar
documental através de "retratos, percepções e sentimentos de pessoas durante a
quarentena imposta pela pandemia do covid-19, no coração da Amazônia".
É possível correlacionar o artigo da autora aos recentes eventos críticos vividos
por grande parte da população amazonense em um cenário de colapso sanitário e
político-institucional de mortes por falta de oxigênio. A figura do enfermeiro,
profissional de saúde, uma das personagens abordadas por Lizardo no seu texto, ajuda a
compreender, mesmo que ela não examine esses aspectos, as correlações entre a noção
de necropolítica, o fazer viver e deixar morrer, legitimado como soberania de Estado. A
autora traz um registro fotoetnográfico de pessoas que trabalham como feirantes e
permite situar os tempos de pandemia como uma dinâmica volátil de experiências
vividas em clima de medo, incertezas, esperança, desesperança, e angustias.
A questão básica que movimenta a rede de autores presentes no livro Tempos de
pandemia: reflexões sobre o caso Brasil versa sobre: o que a antropologia e, mas
extensamente, as ciências sociais, têm a dizer diante de incertezas extremas, situações-
limites ou eventos críticos como a atual experiência social da pandemia do covid-19,
vivida e sentida em escala global e local, de forma diferenciada? Tal questão é
instigante indo além de uma pergunta-problema de pesquisa; ela é convidativa para nos
interpelar sobre nosso papel como cientistas sociais, e como sujeitos históricos,
individuais e coletivos.
Permite-nos repensar, tal como nos inspira Veena Das (2020), de que "modo
aprenderemos a ver o que está acontecendo diante dos nossos olhos?", no âmbito de um
evento crítico contemporâneo que escancara, de modo contundente, profundas
desigualdades e atualiza mazelas histórico-sociais de opressão interseccional de etnia,
raça/cor, classe, geração, gênero e sexualidade na sociedade contemporânea. O livro
Tempos de pandemia: reflexões sobre o caso Brasil contribui assim para desvendar,
compreender e problematizar as emaranhadas teias de significados, contextualizadas no

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Brasil a partir das regiões Norte e Nordeste. Termino a resenha, portanto, com um
convite para sua leitura

Referências
DAS, V.. 2020. Encarando a covid-19: meu lugar sem esperança ou desespero. In:
DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social. Rio de Janeiro.
Reflexões na Pandemia. Disponível em: https://www.reflexpandemia.org/texto-
26?lang=pt . Acesso em 6/1/2021.
ELIAS, N. 1998. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
FABIAN, J. 2013. O tempo e o outro: como a antropologia estabelece seu objeto.
Petrópolis: Vozes.
GELL, A. 2014. Antropologia do tempo: construções culturais de mapas e imagens
temporais. Petrópolis/RJ: Vozes.
RICOEUR, P. 2011. Finitud y culpabilidade. Madrid: Ed. Trotta.
SCHEFF, T. 2016. Vergonha no self e na sociedade, (pp. 111-138). In: KOURY, M. G.
P; BARBOSA, R. B. (orgs.). Vergonha no self e na sociedade: a sociologia e
antropologia das emoções de Thomas Scheff. (Cadernos do Grem, n. 10). Recife:
Bagaço; João Pessoa: Edições do Grem.

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Mar/jun de 2021

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