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Artigos
Identificações religiosas entre jovens carismáticos em Bezerros-PE – pp. 9-19
Resumo/Abstract
Maria Patrícia Lopes Goldfarb; George José Castelo Branco de Oliveira
Civilizados pela boa forma urbana? Os conjuntos habitacionais da era COHAB-GB/CHISAM e seu projeto de governo de
disciplinarização dos pobres – pp. 21-32
Resumo/Abstract
Wellington da Silva Conceição
“De que família você é?” O médio e o pequeno urbano e rituais de interação – pp. 33-46
Resumo/Abstract
Manuela Blanc; Renan Lubanco Assis
“Guerra ao coronavirus” como regime de engajamento “em urgência”: uma análise do combate à pandemia – pp. 47-62
Resumo/Abstract
Igor Perrut
A mutação do espaço público: sociabilidades na Praça da Paz, João Pessoa – PB, antes e durante a pandemia do coronavírus – pp.
63-79
Resumo/Abstract
Camila Andrade; João Nunes
Emoções e fotografia – enleio sobre uma fotografia anônima de caixões populares para enterros de crianças- pp. 117-124
Resumo/Abstract
Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Aniversário do Bharbixas no Mineirão: experiência, futebol gay, mercado e direito à cidade – pp. 125-136
Resumo/Abstract
Vanrochris Helbert Vieira
Cultura alimentar como objeto das políticas culturais: o caso brasileiro (2003-2016) – 137-146
Resumo/Abstract
Lina Luz Cavalcanti; Alexandre Barbalho
Resenhas
Resenha do livro Tempos de Pandemia – pp. 213-220
Fanny Longa Romero
Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
Sobre a Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia
Estas emoções revelam, entre outros, as disputas morais e os códigos de moralidade em jogo nos sistemas
de posição que organizam as fronteiras e hierarquias simbólicas e materiais entre as unidades
interacionais sob análise.
Neste ínterim, Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia se situa em uma tradição
acadêmica de pesquisas e reflexões em antropologia e sociologia sobre o indivíduo, o social e a cultura da
perspectiva das emoções e da imagem, de modo a enfatizar esta proposta no campo das sociabilidades
urbanas.
Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
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Editor e Conselho Editorial
Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
Expediente
BC-UFPB
CDU 301
CDU 572
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ARTIGOS
Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
GOLDFARB, Maria Patrícia Lopes;
OLIVEIRA, George José Castelo Branco de.
Identificações religiosas entre jovens
carismáticos em Bezerros-PE. Sociabilidades
Urbanas, Revista de Antropologia e
Sociologia, v. 5, n. 13, pp. 9-19, março de
2021, ISSN 2526-4702.
ARTIGO
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Introdução
Este trabalho é fruto de uma pesquisa cujo objetivo central consistiu em analisar
formas de religiosidade juvenil católica, mais especificamente entre jovens católicos
carismáticos. Teve como recorte empírico uma das paróquias da cidade de Bezerros,
localizada a 100 km da capital do estado de Pernambuco.
∗
Docente do DCS/CCHLA/PPGA/UFPB, Líder do Grupo de Estudos Culturais-GEC, Orcid:
https://orcid.org/0000-0003-4627-6486. E-Mail: patriciagoldfarb@yahoo.com.br.
∗∗
Doutorando no PPGA/UFPB, membro do GEC. Orcid: https://orcif.org/0000-0002-2080-7018. E-
Mail: georgecastelobranco@hotmail.com.
10
Para isso se buscou identificar modos de pertença religiosa dos jovens Católicos
carismáticos, analisando o processo de ‘busca da santidade em meio às noções de
“pecado”. Trata-se de jovens que participam do ‘Grupo de Oração Resgate’ da
Renovação Carismática Católica1. A pesquisa foi realizada na paróquia de Nossa
Senhora do Rosário, onde são realizadas as reuniões do Grupo Carismático de Oração
denominado de ‘Resgate’.
Buscamos compreender estes jovens como parte da RCC, onde os jovens são
concebidos como: “... alguém mais propenso a atitudes heróicas e virtuosismo
religiosos, que busca a ‘santidade’ (MARIZ, 2005, p. 256). Observamos que o modelo
de religiosidade dos jovens católicos carismáticos se aproxima do modelo da ascese
intramundana, como proposto por Weber em termos típico-ideais em relação à ética
protestante, e exercitada, com as devidas especificidades históricas, sociais e culturais,
pelos pentecostais evangélicos no Brasil.
Conforme a literatura consultada, tomamos a religiosidade como um aspecto da
realidade social, o que possibilita compreender aspectos da nossa sociedade. Como
afirmam Adjair Alves e José Roberto Ferreira (2012, pp. 63-66):
A religiosidade se mostra fecunda como condutora e precursora das
ações sociais, já que, partindo dela, os indivíduos podem atribuir
sentidos a sua existência e pautar suas escolhas em meio a valores. (...)
Por ter esta um conjunto de significados que permite ao homem dar
sentido e fundar seu mundo frente ao sagrado, assim como o profano,
ela tem se constituído em um dos principais vetores do
comportamento humano ao longo do tempo e do espaço.
Deste modo, concebemos a capacidade de simbolizar o mundo através da
construção de significados relativos a diversos aspectos da experiência humana, como
os símbolos religiosos, dramatizados em rituais e relatos míticos; que representam para
seus adeptos o mundo, a vida emocional e as formas de comportar-se (GEERTZ (1978).
Para a realização da pesquisa atentamos para construções identitárias entre
jovens integrantes do grupo de orações (GOR)2, especialmente naquilo que consideram
caminho para “santidade”.Neste artigo tratamos da pesquisa feita com um grupo
religioso na paróquia de Bezerros, cidade de tradição religiosa católica. Trata-se do
grupo “Comunidade de Aliança Resgate” - CCAR3, de vertente carismática.
Assim, foram observadas reuniões semanais do grupo, que duravam em média
02h30min. Essas reuniões envolviam uma intensa carga emocional, com a utilização de
cânticos, gestualidade corporal acentuada, tais como palmas, coreografias simples e
momentos de ‘êxtase espiritual’.
A pesquisa nos mostrou como as religiões surgem como uma dentre as
possibilidades de construções identitárias e de integração juvenil ao mundo social. “Ela
é um espaço no qual os/as jovens viverão, aguardando dela a indicação do "norte" para
sua vida cotidiana” (FERNANDES, 2013, p.80), o que é aqui analisado através da
identidade católica carismática entre jovens.
1
Passamos a usar a sigla RCC.
2
GOR significa Grupo de Orações Resgate.
3
Comunidade Carismática de Aliança Resgate, onde foi feita a pesquisa.
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Juventude e religiosidade
A identificação religiosa também constitui uma importante forma de identidade
social juvenil, mesmo em meio a um contexto marcado pela intensificação do trânsito e
pluralismo religiosos (HERVIEU-LÉGER, 2008).
Como é apontada por diferentes autores no campo das ciências sociais, a pós-
modernidade não representou o desaparecimento da religião, tornando-se cada vez mais
plural e multiforme. A família também é uma instituição incentivadora na trajetória
religiosa de muitos jovens. (CARDOSO, 2013 apud FERNANDES, 2013, p. 71)4.
A juventude consiste numa categoria geracional ou etária, composta por
subjetividades e modos de vida específicos, de acordo com cada grupo social. Nesta
fase é vivida de acordo com o desempenho de papéis sociais específicos e atitudes
correlatas, exigindo certos ritos de passagem para a fase adulta. É sabido que o
matrimônio, filhos e o trabalho servem como aferidores da fase adulta e saída da fase
juvenil (PAIS, 1990).
Obviamente não deixamos de considerar a juventude em sua diversidade; em
função de diferentes pertenças: de classes, situações econômicas, culturais, de gênero,
oportunidades ocupacionais, etc.
Para Foracchi (1972, apud SOFIATI, 2011, p. 13), a “juventude é, ao mesmo
tempo, uma fase da vida, uma força social renovadora e um estilo de existência, sendo
que cada sociedade constitui o jovem a sua própria imagem”. Como a autora,
defendemos o uso do termo no plural, para a compreensão da multiplicidade de
formatos de identidades e sociabilidades juvenis.
Isto posto, consideramos a diversidade de "juventudes" no campo religioso
brasileiro, e neste caso entre os católicos que, como afirma Novaes (2004 apud
FERNANDES, 2013, p. 78):
Acompanhando recortes como classe, gênero, raça ou cor, local de
moradia, opção sexual, estilo ou gosto musical, também a religião
pode ser vista como um dos aspectos que compõem o mosaico da
grande diversidade das juventudes brasileiras.
Para Mariz (2005), a subjetividade da juventude contemporânea tanto pode levar
os jovens a não ter como ter ‘muita’ religião. Em todo caso, os movimentos religiosos
são meios importantes de socialização da juventude nos anos 2000, onde se destaca o
pentecostalismo de "terceira onda" e a RCC (CARDOZO, 2010).
Uma característica dos jovens que se inserem em denominações religiosas é a
busca por pertença ao grupo. As instituições religiosas proporcionam a seus integrantes
a reflexão, os questionamentos e os debates sobre a conduta humana, moldando os
comportamentos dentro e fora do espaço eclesial. Vale ressaltar também a construção de
formas específicas de vivências juvenis, gerada pelas práticas comunitárias religiosas,
proporcionando demarcações de territorialidade juvenis.
Este modelo de regulamentação da vida sob inspiração religiosa é o que Weber
chamou de ascetismo intramundano:
Os cristãos ‘eleitos’ estão no mundo apenas para aumentar a glória de
Deus, obedecendo a seus mandamentos com o melhor de suas forças.
Deus, porém, requer realizações sociais dos cristãos, por que Ele quer
4
Cardoso (2013) utiliza-se da expressão Underground Cristão, como classificação de grupos juvenis que
constroem redes de sociabilidades, através de micro comunidades emocionais ligadas por meios de
expressões artísticas como o white heavy metal, o gospelpunk, o christian hip hop, o gospel emo, o gótico
cristão, a capoeira gospel, dentre outras.
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5
Conceito formado a partir do evento ocorrido no dia 14 de abril de 1906 na Igreja Holiness, da Rua
Azusa, em Los Angeles, Califórnia, sob a liderança do pregador Willian Joseph Seymour, no qual seus
integrantes tiveram o contato com o Espírito Santo, ao falarem em línguas (glossolalia), ‘repouso do
Espírito’, dentro de uma efervescência idêntica à descrita na Bíblia como vivida pelos discípulos de Jesus
Cristo, após sua ressurreição (em Atos, capítulo 2).
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Foram entrevistadas 11 pessoas da comunidade, sendo 07 homens e 04 mulheres, com idade entre 17 a
30 anos.
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Considerações Finais
Como vimos, a identidade católica carismática dos jovens em Bezerros-PE é
construída por discursos e práticas de autocontrole, como as propostos pelo PHN,
pensadas enquanto parte de um processo de conversão continuada.
Devido às características de insegurança e incertezas, próprias desta etapa etária,
na definição e formação da personalidade desta fase da vida; tais jovens são instados a
produzir transformações comportamentais que os afastem do ‘pecado’. Assim, não basta
apenas frequentar a missa ou a reunião do louvor. É preciso incorporar a busca da
“santidade”, que consiste não apenas aos momentos específicos das reuniões religiosas,
mas em uma agência proativa contínua, a ser efetivada aonde quer que o indivíduo vá.
Essa seria a diferença entre estar e ser religioso.
Em linhas gerais, compreendemos que a juventude se constitui na força motriz
da paróquia de Bezerros, ao qual se destaca a Comunidade Resgate, que mostra a força
do movimento carismático sobre os jovens católicos. A Comunidade Resgate clama
pela constante renovação, que foi a sua pauta fundacional, baseada numa autonomia
relativa em meio a uma permissão “vigiada”.
A prática religiosa deve ser compreendida através da subjetividade juvenil, que
reinterpreta e resignifica os símbolos sagrados. Por ser a vida mundana tão tentadora e
tão efêmera, o catolicismo carismático se apresenta como um universo que alia o
tradicional com o moderno, a medida que nele os jovens podem cantar, louvar, dançar,
etc., sem deixarem de ser católicos.
Na comunidade e no grupo estes jovens encontram segurança, a crença na
transformação pela santificação, a partilha de credos, valores e suas demandas juvenis,
emergidas em um mundo cada vez mais plural e dinâmico, como também de incertezas
sobre o futuro cada vez maiores, às quais as instituições religiosas buscam atender.
Referências
ALVES, A. 2011. Treinando a observação participante: juventude, linguagem e
cotidiano. Recife: Ed. UFPE.
CAMPOS, Bernardo. 1995. Da Reforma protestante à pentecostalidade da Igreja.
São Leopoldo: Sinodal: Quito: CLAI.
CARDOZO, Carlos Eduardo da Silva Moraes. 2013. Juventude e religião: formas de
ser jovem a partir da pertença religiosa. Revista Cadernos de Ciências Sociais, v. 1, n.
1, pp. 71-87.
CARRANZA, Brenda et. al. (orgs.). 2009. Novas comunidades católicas: em busca do
espaço pós-moderno. Aparecida-SP: Ideias & Letras.
DURKHEIM, Émile. 1996. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo:
Martins Fontes
FERNANDES, D. 2013. Juventudes, geografia e religião: reflexões a partir das noções
de forma simbólica e habitus. Ra’e Ga, v. 27, pp. 67-93.
FERNANDES, Sílvia R.A. 2011. Jovens religiosos e o catolicismo – escolas, desafios
e subjetividades. Rio de Janeiro: Quartet/FAPERJ.
FERREIRA, José Roberto de M.; ALVES, Adjair. 2011. Religiosidade e relações
sociais comunitárias no Boi Branco/Iatí-PE. Revista Diálogos, Revista de Estudos
Culturais e da Contemporaneidade, n. 5, pp. 107-121.
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CONCEIÇÃO, Wellington da Silva.
Civilizados pela boa forma urbana? Os
conjuntos habitacionais da era COHAB-
GB/CHISAM e seu projeto de governo de
disciplinarização dos pobres. Sociabilidades
Urbanas, Revista de Antropologia e
Sociologia, v. 5, n. 13, pp. 21-32, março de
2021, ISSN 2526-4702.
ARTIGO
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Resumo: O texto traz uma análise das práticas de disciplinarização da pobreza presentes
em políticas públicas de moradia popular, especialmente aquelas destinadas à moradores
removidos de favelas entre as décadas de 1940 e 1970 na cidade do Rio de Janeiro. De
modo mais específico, analisam-se as estratégias de disciplinarização e normatização
presentes na remoção e realocação de favelados para conjuntos habitacionais construídos e
administrados pela COHAB-GB e pela CHISAM nas décadas de 1960 e 1970. Percebe-se
que esse projeto publico parte de uma crença nos princípios da arquitetura e do urbanismo
(traduzidos pela ideia da “boa forma urbana”) como estratégia de adaptação dos pobres à
valores morais e urbanos, tornando-os dóceis ao projeto desenvolvimentista nacional.
Palavras-chave: habitação popular, gestão governamental, conjunto habitacional, boa
forma urbana
Abstract: This text presents an analysis of the practices of disciplining poverty present in
public policies of popular housing, especially those aimed at residents removed from slums
between the 1940s and 1970s in the city of Rio de Janeiro. More specifically, the
disciplinary and normative strategies present in the removal and relocation of favelados
(slum dwellers) for housing estates built and managed by COHAB-GB and CHISAM in the
1960s and 1970s are analyzed. It is noticed that this public project starts from a belief in the
principles of architecture and urbanism (translated by the idea of “urban good form”) as a
strategy for adapting the poor to moral and urban values, making them docile to the
national developmental project. Keywords: public housing, government management,
popular housing, good urban form
Introdução
∗
Sociólogo. Doutor em Ciências Sociais (PPCIS-UERJ); Professor adjunto da Universidade Federal do
Tocantins (UFT); Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (UFMA); e,
Coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Territórios Populares e suas Representações
(LaTPOR-UFT). Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9172-6189; E-Mail: wellingtoncs@mail.uft.edu.br.
22
presença dos cortiços, percebida como incômoda no final do séc. XIX, marcou o
iníciode uma história de relações tensas entre o Estado e as formas moradia popular.
Nesse primeiro momento o modo de lidar com tal problemática era a remoção
autoritária, deixando os pobres ao léu, e assim aconteceu com os moradores dos cortiços
localizados no centro do Rio de Janeiro. Essa prática de expulsão dos mais pobres
resultou na criação de outras formas de habitação popular nos morros da cidade, que
receberam o nome de favela - por conta daquele que foi identificado como o seu
primeiro caso (o morro da Favella, hoje morro da Providência), - e as favelas se
constituíram como uma opção de moradia não só para os pobres urbanos expulsos do
Centro da cidade, mas também para os muitos migrantes oriundos dos interiores e de
outras regiões do Brasil, em busca de melhores condições na capital federal.
A partir da década de 20, as favelas se tornaram o grande problema público e de
governo no Rio de Janeiro. Pensava-se no incomodo de tais habitações percebidas como
feias e anti-higiênicas em uma cidade que era remodelada tendo Paris como referência.
Mas os pobres tinham seu papel nessa cidade em (re)construção e em um país em
desenvolvimento. Tendo a escravidão como forte referência para a sua formação, a
sociedade brasileira adquiriu um ethos hierárquico que produziu demandas profissionais
que não poderiam ser supridas pelas camadas média e alta da sociedade. O pobre tinha
um papel essencial nesse processo como mão de obra barata e disponível para os
serviços “baixos”. Era preciso não mais deixar essa população “ao deus dará” e sim
realizar uma gestão eficiente, para que pudessem ser disciplinados e se tornarem úteis
ao projeto desenvolvimentista.
As políticas de moradia sempre tiveram um papel essencial nesse processo de
gestão2 da população pobre do Rio de Janeiro: todas as propostas governamentais de
moradia popular destinadas aos habitantes de favelas (em especial aquelas que
culminavam na remoção destes) incluíam claros projetos de disciplinarização. Todas
traziam, por meio de um controle direto, de uma proposta educativa ou por um conjunto
de normas, um enredo civilizatório que marcava a passagem do indivíduo da condição
de “favelado” para a de “cidadão”.
As estratégias de gestão da população pobre na cidade por meio das políticas de
moradia se deram de diversas formas nesse pouco mais de um século de história das
habitações populares e de seus conflitos no Rio de Janeiro e no Brasil. Os diferentes
projetos governamentais que procuraram dar conta do “problema favela” caminharam
em dois movimentos distintos: Os projetos voltados para a adequação do espaço de
moradia3 e os processos voltados para a realocação dos seus moradores e consequente
1
Uso a categoria problema de governo tendo como referência Michel Foucault. Segundo este pensador, a
forma de poder estruturante nesse nosso momento histórico, que é a governamentalidade, preocupa-se
com a ampla condução não só dos indivíduos, como faz o poder pastoral, mas também os toma
coletivamente no conjunto da população. A condução dos grupos, especialmente àqueles que apresentam
certo grau de periculosidade à lógica da governamentalidade, torna-se um problema degoverno no seu
projeto de condução da ordem. Cf. Foucault (2008a, 2008b, 2010).
2
Ao falar de gestão, remeto-me a outra categoria foucaultiana. A gestão governamental, a forma de exercício de
poder vigente, é marcada pela preocupação ativa de controlar a população por meio de dispositivos de segurança,
considerados mecanismos essenciais nesse processo (Ver FOUCAULT, 2008b). O biopoder – uma invenção da
gestão governamental- se utilizará das técnicas micro do poder disciplinar, de controle do individuo, mas vai agir
também no macro, no controle da população. O biopoder não vai se ocupar só do corpo, mas de um conjunto formado
pelo somático, o psíquico e a consciência dos homens. A disciplina e o controle, ainda segundo Foucault, continuarão
sendo concebidas como ações eficientes nesse processo de gestão, pois possibilitam tornar os corpos submissos,
dóceis, tendo as suas capacidades (em termos econômicos de utilidade) aumentadas.
3
Entre esses projetos, ressalto os mais significativos (em ordem cronológica): SERFHA – Serviço de Recuperação de
Favelas e Habitações Anti-Higiênicas (décadas de 50e 60), administrado pelo governo do Distrito Federal até 1957 e
depois pela Secretaria de Serviço Social do Estado da Guanabara em 1961 (atuava na urbanização das favelas);
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novo projeto de cidade. Acabar com as favelas e promover as remoções, além de ser
considerada uma estratégia para livrar a cidade de habitações percebidas como não-
higiênicas, não-estéticas e desordenadas, também se apresentava como uma tática capaz
de desarticular o favelado enquanto identidade política e social. Destruir a favela e
inserir essa população no cruel anonimato da cidade, - através dos conjuntos
habitacionais dispersos pelas Zonas Norte e Oeste da cidade, - seria uma forma de
efetivar esse processo.
Criado todo o arsenal de um imaginário e um contexto político favorável a tal
ação, era preciso criar os elementos necessários para pôr em prática esse projeto de
extermínio das favelas. No início da década de 60, mais precisamente em 1962, o
governador Lacerda criava a COHAB-GB, uma instituição com a finalidade de realizar
o trabalho de erradicação das favelas (cf. BRUM, 2012, p. 60). Tal órgão teve grande
atuação nos períodos entre 1962 e 1964, quando promoveu as primeiras grandes
remoções conduzindo os moradores para os primeiros conjuntos habitacionais, muitos
deles ainda chamados de Vilas7. Depois desse período, as ações perderam força e os
trabalhos de remoção e realocação continuaram acontecendo, mas de forma espaçada e
pontual. Após o fim do Governo de Lacerda, Negrão de Lima manteve de forma
moderada as ações da COHAB, e diferente do seu antecessor, promoveu outras ações
junto às favelas: em 1968 criou a CODESCO, que atuava na urbanização de algumas
delas.
Em 1968 surgia a CHISAM. A sua criação marcou um novo período na relação
entre governos e favela, de centralização e uniformização das ações em favor da
extinção das favelas e da remoção de seus moradores. A criação da CHISAM foi uma
intervenção do governo federal para ditar uma política única para o estado da
Guanabara e o estado do Rio de Janeiro. Era um órgão do Ministério do Interior, ligado
diretamente ao Banco Nacional de Habitação (BNH), tendo condições para realizar seus
trabalhos com um gordo orçamento à disposição. A COHAB-GB passou a ficar
subordinada a CHISAM, e essas duas instituições foram as principais responsáveis pelo
programa de remoção de favelas no Rio de Janeiro em proporções até então não vistas.
Com a coordenação da CHISAM o projeto de remoção e realocação de
favelados sofria profundas modificações. Sobre o trabalho da COHAB foram feitas
sérias críticas, que levaram os gestores, nessa nova etapa, a mudar importantes detalhes
no plano de ação. As duas principais mudanças foram a opção pelas construções
verticais (prédios) em vez das casas: “Sua razão foi puramente social: Exigindo os
conjuntos de apartamentos menos áreas para construção, seus custos forçosamente
seriam inferiores aos das unidades isoladas, as ‘vilas’ - , fator significativo se
considerada a baixa renda familiar dos futuros mutuários” (GOVERNO DO ESTADO
DA GUANABARA, 1969, p. 37). E, a outra importante mudança, foi a opção por
constituir “comunidades integradas” (Ibid., p. 51), ou seja, de transferir os favelados
para locais equipados não somente com casas mas também com outros equipamentos
públicos como saneamento básico, fornecimento de luz e água, escolas, hospitais,
oportunidades de trabalho etc. Essa última mudança se apresentou, segundo
informações do Texto Rio Operação Favela (de autoria do Governo do Estado da
Guanabara com o fim de divulgar os trabalhos realizados pela COHAB e CHISAM), a
7
“Datam desse período os conjuntos habitacionais de Vila Aliança e Vila Kennedy, primeira e segunda gleba, Cidade
de Deus (primeira gleba) e Vila Esperança, Lar do Empregado Doméstico e o Conjunto de Álvaro Ramos, mais de
6000 unidades, situadas em regiões afastadas do centro urbano. Somavam-se a esses outros 885 apartamentos em
conjuntos menores, destinados à classe média, e o parque proletário de Nova Holanda, com 667 casas de madeira”
(GOVERNO DO ESTADO DA GUANABARA, 1969, p. 20).
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partir das críticas feitas por aqueles que não aceitavam a remoção. Somente nessas
condições, na cabeça de seus executores, as remoções poderiam não mais ser rejeitadas.
Para que as remoções acontecessem no ritmo esperado, as funções foram
distribuídas. A secretaria de Serviços Sociais, que já atuava junto com a COHAB, ficou
responsável pelos levantamentos socioeconômicos preparatórios da remoção. A
COHAB cabia as tarefas de: projetar os conjuntos habitacionais, encomendar sua
construção, fiscalizar e comercializar as unidades habitacionais. A CHISAM coube a
coordenação do processo, o planejamento e a execução do programa. Ao BNH, garantir
o investimento necessário para a construção dos conjuntos. Por vezes, incomodada com
alguns dos serviços de suas parceiras, a CHISAM passava a tomar a frente do trabalho
ou exigir alterações (Cf. VALLADARES, 1981, p. 36-37).
É preciso ressaltar que todos esses passos, esquematicamente bem elaborados,
não foram eficientes e nem rigorosamente utilizados durante o processo. Percebem-se
“erros” no projeto (do ponto de vista da gestão governamental) desde os seus primeiros
passos, quando o morador no levantamento socioeconômico mentia sobre a sua renda e
o número de moradores na casa (para conseguir um apartamento maior ou melhor
localizado), até os últimos trâmites, como foi o caso de moradores que não pagaram
sequer uma prestação. Mas o não cumprimento dos passos estabelecidos não partiu só
dos moradores: após o grande incêndio de 1969 na favela da Praia do Pinto, diante da
urgência de remover aqueles que não tinham mais onde ficar, a CHISAM optou por unir
algumas das etapas planejadas e compactar seus processos.
Diante do que foi apresentado, fica claro que a primeira ação da gestão
governamental foi à separação espacial das diferentes classes sociais, separação essa
que foi acompanhada de levantamentos socioeconômicos que permitiram manter os
favelados sob os auspícios de diferentes registros. Mas podemos identificar ainda um
processo disciplinador na política de remoção, realocação e administração dos conjuntos
habitacionais construídos pela COHAB-GB e a CHISAM. É preciso ressaltar que,
apesar da violência presente nas remoções, temos um projeto de disciplinarização e
controle bem mais sutil no interior dos conjuntos habitacionais do que os encontrados
nos parques proletários e na Cruzada São Sebastião, que contaram com a vigilância
constante - pelo menos nos primeiros anos - de um administrador/fiscal encarregado
pelo Estado ou pela Igreja Católica. Também não estava previsto para os conjuntos
habitacionais uma série de regras e normas que fosse explícita e do conhecimento de
todos. As formas de disciplinarização que estiveram presentes nesse processo foram
marcadas principalmente pela expectativa de mudança das consciências e
comportamentos dos favelados quando inseridos nos equipamentos do universo urbano
que, por sua vez, permitiriam a adesão aos “valores civilizados”. Apresentarei, a seguir,
algumas práticas disciplinadoras que identifiquei nesse processo de mudança e moradia
nos conjuntos habitacionais.
A primeira delas, anterior às remoções, é uma campanha governamental em
favor da casa própria, que atingia todas as classes sociais, não só aquelas para qual se
dirigiam as remoções autoritárias. Tal campanha até hoje impacta o imaginário das
classes populares, que têm na aquisição da casa própria uma das suas principais metas
de vida. Ao mesmo tempo, e essa mensagem já se dirigia especificamente aos favelados,
o Estado reforçava a ideia de que, quem morava em loteamentos irregulares, não era
dono da casa e do terreno em que habitava e, portanto, não era proprietário. Essa
campanha em favor da propriedade serviria não só para motivar a ida para o conjunto
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A fala desse morador, uma entre tantas opiniões registradas sobre a remoção,
apresenta alguém convencido pelos possíveis benefícios do projeto civilizador em foco
nessas novas construções. Ao usar a expressão “lugar de gente” deixa claro como a
estrutura presente nas favelas não lhe concedia a oportunidade de ser humano, até
mesmo porque morava na “selva”, lugar dos animais não domesticados e, portanto,
perigosos. Em outra expressão utilizada, “pessoas de bem”, o Sr. Lino demonstra seu
juízo de valor negativo sobre aqueles que não aceitaram a remoção e assim negavam a
possibilidade de tornarem-se “gente” que o Estado lhes oferecia. Na adesão dos
moradores, esse projeto governamental ganha capilaridade, pelo menos como proposta
ideológica9.
Uma terceira face desse projeto disciplinador presente na política dos Conjuntos
Habitacionais é a formação e a condução para o mercado de trabalho, face essa que se
encontra alinhada com o projeto de gestão governamental de inserir essa população
pobre como corpos dóceis na campanha desenvolvimentista do Estado, como mão de
obra para as funções rejeitadas pelas classes mais favorecidas. Quanto à condução para
o mercado de trabalho, o principal objetivo era transformar as proximidades dos
conjuntos habitacionais em áreas preferenciais para sediar fábricas e indústrias. Estas
poderiam absorver a mão de obra disponível na região. A oportunidade de emprego na
proximidade não só estimularia o desenvolvimento local e nacional como reforçaria a
operação de distanciar os favelados da Zona Sul da cidade, que sequer precisariam
continuar a trabalhar nessa região da cidade. Também imputaria a essas pessoas, cada
vez mais, a identidade de trabalhador – identidade esta relacionada à valores como
honestidade, esforço, obediência –, útil para o projeto disciplinar em andamento. Como
aponta Brum:
A questão da transferência dos favelados para as zonas industriais
envolvia a promoção social do favelado dentro da ordem capitalista,
em que a superação do favelado como marginal conjugam: A troca de
barraco na favela pelo apartamento no conjunto com a ruptura com os
“bicos”, subempregos ou mesmo o desemprego para a inserção desse
no mercado formal de trabalho como mão-de-obra minimamente
qualificada e disciplinada (BRUM, 2012, p. 105).
Quanto à formação para o mercado de trabalho, vale destacar o papel que a Ação
Comunitária do Brasil (ACB) teve junto aos conjuntos habitacionais da era
CHISAM/COHAB. Sobre a ACB, esta instituição
foi criada em 1966, por grandes empresários, sob a inspiração da
Action International, com sede em Nova York, fundada em 1961 (...)
Se o papel da ACB num primeiro momento era o da urbanização de
favelas através do ensino da autoajuda aos favelados, com atuação em
várias favelas, a partir de 1970, sob os auspícios da CHISAM, o papel
da instituição passou a ser o de “adequar” os favelados nos conjuntos
da COHAB-GB, através de atividades sócio-culturais e qualificação
profissional (Ibid., p. 103).
9
Destaco que muitos outros moradores removidos, especialmente aqueles que resistiram para sair da
favela, percebiam a vida no conjunto habitacional por outro ângulo, apontando severas críticas ao projeto.
Ressaltavam, por exemplo, a distância do trabalho e do lazer (que permaneciam na Zona Sul), a
insuficiência dos equipamentos públicos disponíveis no novo bairro, a separação dos familiares e vizinhos
com quem formavam uma rede de solidariedade. Ver: BRUM (2012), CONCEIÇÃO (2008 e 2015) e
NASCIMENTO (2003).
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Conclusão
Esses três modelos de habitação popular dos quais falamos (parques proletários,
Cruzada São Sebastião e conjuntos habitacionais) se afirmaram claramente como
projetos disciplinares. Mesmo guardadas as suas diferenças, relacionadas ao contexto
sócio histórico ou até mesmo as agencias promotoras, percebe-se facilmente algumas
características nesses processos que mostram uma certa paridade nessas ações enquanto
dispositivos disciplinares. Aponto algumas delas.
Todos cultivaram uma prática de registros para garantir maior eficácia no
processo de controle. Essa política não colaborava só para o controle individual de
pessoas e famílias, mas, também, criava dados para análises estatísticas que permitiam
uma gestão dos indivíduos enquanto população. Segundo Foucault, as estatísticas têm
um papel chave na governamentalidade, pois “são todos esses dados e muitos outros
que vão constituir agora o conteúdo essencial do saber soberano. Não mais, portanto,
corpus de leis ou habilidade em aplicá-las quando necessário, mas conjunto de
conhecimentos técnicos que caracterizam a realidade do próprio Estado” (FOUCAULT,
2008b, p. 365).
Os removidos sempre foram entendidos como “beneficiados”, mas nunca lhes
foi dado o protagonismo para decidir e até definir os rumos tanto da mudança de
localidade quanto da mudança de vida. Sempre esteve nas mãos de outros agentes - o
médico, o arquiteto, o assistente social, o religioso – decidir por suas novas moradias e
escolher um novo modelo de conduta.
10
O número de conjuntos habitacionais inclui também os que foram construídos pela COHAB-GB entre
1962 e 1968. No período 1968-75, foram construídos 24 deles.
11
Segundo Nascimento (2003), em 1998, o Programa Pró-Morar da prefeitura do Rio de Janeiro
classificou o conjunto habitacional Cidade Alta como “área favelizada”. Os critérios que fizeram com que
recebesse tal classificação foram: pouca iluminação, presença forte e naturalizada do tráfico e a má
conservação dos prédios e apartamentos.
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Referências
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habitacional do Rio de Janeiro: Ponteio.
BURGOS, M. B. 2004. Dos parques proletários à favela bairro: As políticas públicas
nas favelas do Rio de Janeiro (pp. 31-34). In: ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos
(Orgs.). Um século de favela. Rio de Janeiro: FGV.
CARVALHO, M. B. 2003. Questão habitacional e controle social: A experiência dos
parques proletários e a ideologia “higienista-civilizatória do Estado Novo. Trabalho de
Conclusão de Curso (Ciências Sociais), Rio de Janeiro: PUC-RJ.
CONCEIÇÃO, W.S. 2008. Mobilidade e fixação: a trajetória social dos moradores do
Conjunto Habitacional Cidade Alta – RJ. Trabalho de Conclusão de curso (Ciências
Sociais). Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes.
CONCEIÇÃO, W.S. 2015. "Qual dos três é melhor de se morar?”: uma análise de
hierarquias habitacionais em um bairro popular carioca (pp. 75-96). In: LIMA, R. K;
MELLO, M. A. S.; FREIRE, L. L. (orgs.). Pensando o Rio: Políticas públicas, conflitos
urbanos e modos de habitar. Niterói: Intertexto.
CONCEIÇÃO, W.S. 2018. Sossega, moleque, agora você mora em condomínio:
segregação, gestão e resistências nas novas políticas de moradia popular no Rio de
Janeiro. Curitiba: Appris.
ELIAS, N. 2011. O processo civilizador. Vol. 1. Rio de Janeiro: Zahar.
FOUCAULT, M. 2008a. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins fontes.
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BLANC, Manuela; ASSIS, Renan Lubanco.
“De que família você é?” O médio e o pe-
queno urbano e rituais de interação. Sociabili-
dades Urbanas, Revista de Antropologia e
Sociologia, v. 5, n. 13, pp. 33-46, março de
2021, ISSN 2526-4702.
ARTIGO
https://grem-grei.org/numero-atual-socurbs/
Manuela Blanc∗
Renan Lubanco Assis∗∗
Resumo: Este artigo se propõe a analisar rituais de interação em espaços públicos a partir
de observações sistemáticas realizadas em dois contextos urbanos distintos em termos de
extensão, número de habitantes e modos de conduta pública: as cidades de Campos dos
Goytacazes e Aperibé, situadas nas regiões Norte e Noroeste Fluminense, respectivamente.
Partindo de dados coletados em duas pesquisas de campo autônomas e da análise de uma
situação vivenciada juntamente pelos autores, esta investigação buscará dialogar com
abordagens clássicas e contemporâneas em torno do estabelecimento de comportamentos
em lugares públicos e os conflitos morais que neles emergem. O foco nos modos de
conduta pública em cidades de médio e pequeno porte culmina em um estudo comparativo
por contrastes e que visa finalmente a compreensão dos rituais de interação face a face em
contextos cognitivos marcados pela pessoalidade. Palavras-chave: Cidade pequena; cidade
média; pessoalidade; cadeia de reputação.
Abstract: This article proposes to analyze interaction rituals based on floating and
ethnographic observations, carried out in two different urban contexts in terms of size,
number of inhabitants and modes of public conduct: the cities of Campos dos Goytacazes
and Aperibé, located in the North and Northwest Fluminense, respectively. Based on data
collected in two autonomous field surveys and the analysis of a situation lived together by
the authors, this research will seek to dialogue with classic and contemporary approaches to
the establishment of behaviors in public places and the moral conflicts that emerge in them.
The focus on public behavior in small and medium-sized cities culminates in a comparative
study of contrasts and finally aims at understanding the rituals of face-to-face interaction in
cognitive contexts marked by a high personality. Keywords: small town; middle town, high
personality, reputation chain
∗
Doutora em Sociologia Política, coordenadora do Grupo de Pesquisa Diretório do CNPq Cidades,
Espaços Públicos e Periferias e professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal
do Espírito Santo. Orcid: http://orcid.org/0000-0003-0595-7875. E-Mail: manu_uenf@yahoo.com.br .
∗∗
Doutor em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro e
(UENF) e coordenador de pesquisa na Universidade Vila Velha (UVV). Orcid: https://orcid.org/0000-
0002-4051-7587. E-Mail: renanlubanco@gmail.com .
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grupo de jovens composto por brasileiros e estrangeiros ocupava outra mesa. Todos
conversavam muito, em alto tom e de forma entusiástica. Quando o rapaz vai ao
banheiro, o Sr. Ao lado aproveita para puxar assunto com a moça: “Brasileiro é muito
bobo, né? Adora dar trela pra estrangeiro… quando a gente viaja, eles não estão nem aí
pra gente, e, quando eles vêm, fica todo mundo paparicando1…”
O comentário sobre o grupo de jovens serviu como ritual de aproximação que
deu ensejo a uma longa sabatina: “Você não é de Campos, não é?”, pergunta à moça:
“Moro em Campos há dez anos, mas sou do interior do Estado”, ela respondeu. “Sabia!
Você não parece ser daqui [...] Mas o que você faz?” - completou. “Eu trabalho na
UENF”, responde a moça, de forma superficial. Diante da chegada do rapaz, ele
prossegue: “E você?”, ao que o rapaz respondeu: “Sou daqui, nascido e criado aqui”.
Sem titubear, chega-se ao ponto: “De qual família você é?”, pergunta o curioso.
Desconcertado, o rapaz responde, se referindo ao seu sobrenome. Frustrado
diante do desconhecimento e, portanto, da ausência de um referencial capaz de
enquadrar o rapaz em seu sistema de classificação, o Sr. Ao lado decide por inverter a
lógica e acionar a sua própria cadeia de reputações (BLANC, 2017a): “Você conhece
Miguel Chenol2?”, pergunta, se referindo ao rapaz que seria o seu filho. O sobrenome,
conhecido em toda a cidade e região, foi identificado mesmo pela moça forasteira,
enquanto o seu portador, especificamente, permanecia pessoalmente desconhecido a
ambos os interpelados.
Diante da insistência do senhor em se fazer identificar, o rapaz prosseguiu,
forçando a memória para tentar reconhecer aquela pessoa com alguém de quem algum
dia ao menos ouvira falar. Em meio a tentativas frustradas, o próprio Sr., agora
efetivado3 como um Sr. Distinto foi indicando redes de relações do filho, até que
finalmente este fora lembrado. Relativamente satisfeito, explica: “Eu não sou Chenol,
Chenol é a minha ex-mulher, ela é filha de Antônio Chenol”, finalizou, quase lamentado
o fato de não ter adicionado o nome do sogro ao seu no ato do casamento.
Essa situação será aqui remontada, bem como os dados obtidos por ambos os
autores deste artigo em suas pesquisas individuais, com o objetivo de analisarmos,
agora conjuntamente, os rituais de interação em espaços públicos urbanos em sua
complexidade. Destacamos deste modo como esses modos de conduta pública operam
situacionalmente, acionando um regime do próximo (BLANC, 2017b), mas, ao mesmo
tempo, se remetendo a referenciais que extravasam as situações de copresença.
Thévenot (2006) define o regime de familiaridade como situações nas quais a
propriedade atribuída aos atores humanos e não humanos envolvidos se caracterizam
por um engajamento cuja dinâmica depende fortemente de indícios pessoais ou locais,
incidindo sobre modos de agir pautados em um princípio intersubjetivo. Trata-se, nos
termos do autor, de um princípio de ação restrito e com baixo grau de generalidade,
portanto.
Por espaço público nos referimos às diversas situações rotineiras e quotidianas
nas quais se constituem interações regidas pelas regras da visibilidade mútua, assim
1
As citações de relatos correspondem a aproximações entre o que foi dito e o que fora documentado em
caderno de campo com base no diálogo estabelecido em condição de observação flutuante (PÉTONNET,
2009).
2
Os nomes são todos fictícios.
3
A categoria efetivação será aqui utilizada com base em Werneck (2012) que, inspirado em uma
sociologia pragmatista, a propõe como categoria de entendimento dos processos de concretização de uma
“ação para a produção de efeitos, para a geração de consequências”, nesse caso, o reconhecimento da
“notoriedade” da cadeia de reputação da qual o senhor ao lado, agora distinto, pertence (em análise
também inspirada em Blanc, 2017).
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como define Freire (2005, p. 44). Constituem-se como espaços de fluxos e de encontros,
de estabelecimento de relações de copresença e que são abertos e acessíveis por
definição, mesmo que a sua acessibilidade possa ser objeto de contestação, sobretudo no
que se refere aos seus usos e significados (Goffman, 2010). Dadas as implicações de
uma noção de público como um conjunto indiscriminado de atores em copresença,
parte-se do princípio lógico de que a impessoalidade é seu modo de conduta típico,
inferência lógica que vem sendo colocado em questão pelos resultados das pesquisas de
Blanc (2013, 2017a, 2017b) e Assis (2016 e 2021, no prelo), o que aqui será
demonstrado.
Opondo-se a uma lógica impessoal, o regime de familiaridade seria limitado, em
seu potencial de influência, à convergência situacional de entidades sociais conectadas
mutuamente para além da situação por laços de um caráter particularizante: a própria
capacidade de discriminar-se mutuamente: ou o que se reconhece como pessoalidade.
Essas relações podem se desenrolar em espaços públicos, evidentemente, mas tal
fenômeno é percebido, nessa perspectiva, como um processo de apropriação, pelos seus
usuários, dotando-os de um caráter semipúblico (GOFFMAN, 2010), ou seja:
necessariamente confrontando com o que seria um modo de conduta pública passível de
generalização.
Vimos observando, ao longo dos rituais de interação que analisamos, em nossas
pesquisas de tese e em seus produtos, como os efeitos de um regime do próximo podem
assumir, ao contrário, o caráter de “convenção de grande alcance cognitivo e moral”
(segundo os termos de Martins (2016), com base em Laurent Thévenot (2006),
definição basilar a um regime do público, seu suposto oposto). Deste modo, irá reger
não apenas um princípio de ação restrito e com baixo grau de generalidade, mas influir
no estabelecimento de modos de conduta publica de um alcance mais amplo, quiçá
potencialmente generalizante4, em dado contexto.
Nossas pesquisas vêm evidenciando formas de conduta pública marcadas por
diferentes níveis de pessoalidade, passíveis de incidir sobre as modalidades de ação para
além da situação5. Estes dados evidenciam, finalmente, a complexidade com que se
constituem tais contextos cognitivos, nos servindo como pistas para pensar os rituais de
interação em público em sua complexidade.
Partimos de um exercício de confrontamento conceitual da própria noção de
espaço público utilizada por esses autores para estabelecer uma interlocução com os
dados coletados em situações nas quais os atores experimentam diferentes formas de
notoriedade.
A notoriedade é aqui definida como produto de um exercício de discriminação,
envolvendo o estabelecimento de uma forma de reconhecimento mútuo pressuposta na
singularidade do ser (os indivíduos enquadrados segundo tal referencial em dada
situação), “mas que de fato refere-se não à sua pessoalidade, mas aos elementos
considerados como significativos em torno da construção da sua imagem perante os
outros” (BLANC, 2013, p. 14). Os dados aqui selecionados nos permitem avançar
quanto ao entendimento dos processos através dos quais a construção dessas
4
Sobretudo quando está em questão o reconhecimento de pessoas públicas ou superpessoas, assim como
o problematizado por Blanc (2013).
5
Define-se, em William Thomas (1905, 1919, 1923, 2006), como atividade em curso e cuja definição
envolve um conjunto de atos passíveis de exames e deliberações. Goffman (2012) aposta ainda em uma
definição da situação para além da atividade em curso, sendo ela mesma avaliada pelos atores em
copresença. Em Thévenot e Boltanski (1991), a situação é definida como um ordenamento de interação
entre pessoas e objetos em um ambiente imediato (VANDEMBERGUE, 2006).
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6
Em referência a Simmel (1979), referimo-nos a um referencial capaz de extravasar as situações de
copresença, sendo reconhecidos em um caráter mais amplo como parte do que Schütz (1979) definirá
como estoque de conhecimento compartilhado, outra noção que é cara à definição de cadeia de
reputações, aqui acionada.
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município, o que nos remete ao nosso distinto Sr. Distinto, protagonista da cena que
abre este artigo, e à cadeia de reputação que lhe sustenta, datada de menos de meio
século. Comprar terras, mesmo quando o investimento inicial e que conferiu ascensão
econômica envolve outros tipos de empreendimentos, como é o caso dos Chenol, é
investir na posse de um bem simbólico e se engajar na construção de um ethos
específico. Ser um notório, finalmente, é possuir uma reputação pública capaz de
garantir uma posição diferenciada em dado contexto, mesmo que exclusivamente
simbólica ou indireta (vide nosso interlocutor, cuja distinção se deu através da sua
vinculação, pelo casamento, a uma família de renome).
Em tal contexto, a posição de uma cadeia de reputação não está dada por uma
condição meramente econômica, mas ainda a um referencial de “civilidade” cujas
influências se estendem aos membros mais próximos de sua rede de relações, assim
como o apresentado por Freyre (2003), ainda em uma Campos dos Goytacazes colonial.
Esta breve digressão histórica nos permite remontar o surgimento de parte dos
sobrenomes de prestígio que se sustentam ainda na Campos atual e compreender como,
neste contexto, a falta deles7é capaz de conferir aos demais atores uma condição de
ordinariedade em potencial.
As novas configurações que emergiram em Campos dos Goytacazes nas últimas
décadas não garantiram a eliminação das figuras do senhor de engenho e do usineiro no
imaginário local. As reestruturações econômicas ocorridas na região desde o “tempo
áureo” sucroalcooleiro analisado por Pinto (1995) implicaram na combinação de
moralidades que se agregaram ou emergiram deste então, em coexistência com tais
espectros mitológicos. Observa-se não apenas como os sobrenomes permanecem como
referenciais de enquadramento dos atores neste contexto, tendência evidenciada também
em nosso outro espaço de coleta de dados, mas como essas cadeias de reputação
constroem em torno de si uma áurea ainda marcada pelos elementos de distinção que
lhes são anteriores.
Ainda assim, no contexto dos bairros, notoriedades são construídas e articuladas,
senão através do acionamento dos sobrenomes de famílias, das ocupações ou das
trajetórias biográficas no lugar, como o demonstrado por Assis (2021, no prelo).
7
Referimo-nos aqui a falta de um sobrenome dotado de uma reputação pública, atores que “estão sujeitos
a uma negação da ‘individualidade de sua existência’” e, portanto, excluídos das formas predominantes
de sociação, como salienta Blanc (2013, p. 23): são sujeitos “sem reputação” no que se refere ao seu
potencial de estabelecimento de um reconhecimento mútuo em situações sociais mais amplas.
8
O conceito de efetivação, desenvolvido por Werneck (2012) nos favorece a apreensão das ações em um
plano a partir do qual o que está em jogo é a mobilização prática dos recursos acessíveis em dada
situação. A concretização das ações perpassa dessa forma a definição da situação pelos atores em relação
e dos efeitos passíveis a dada forma de direcionar-se.
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9
Este utensílio é capaz de conservar a temperatura do líquido colocado em seu interior e permite que a
bebida seja servida em maiores quantidades à mesa, permitindo ao próprio cliente se reabastecer quando
considerar conveniente.
10
Processo este que culminou com alterações significativas nas práticas de sociabilidade noturna locais,
assim como o desenvolvido anteriormente por Blanc (2017).
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11
Neste caso, dizer que são famílias de boa reputação significa que as moças eram conhecidas e
reconhecidas amplamente pela comunidade local como membros de uma cadeia de reputação específica e
cujas qualificações e membros possuem um considerável grau de influência por proximidade.
12
A integração à comunidade maçônica se apresenta como ritual de reconhecimento elucidativo em tal
contexto. De uma forma geral, a admissão requer uma indicação expressa por um dos membros atuantes e
a consideração da candidatura deste pelos demais membros de determinada Loja, bem como
procedimentos rituais que podem envolver desde entrevistas a pesquisas em torno das reputações dos
candidatos, sendo concluído com rituais coletivos e fechados de caráter preparatório e uma cerimônia de
iniciação (PIROZI, 2013). Receber um convite para a maçonaria representa, nesse contexto, adquirir uma
condição de notoriedade no interior de um grupo que conta com membros das principais cadeias de
reputação familiares da cidade.
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autonomizados das relações estabelecidas face a face, e são essas que os efetivam em
dado momento.
13
O conceito de estima pública é aqui acionado como elemento de diferenciação em um regime
hierarquizado de valor. Este envolve o estabelecimento de uma forma de reconhecimento pressuposta na
singularidade do ser, mas que nesse caso refere-se não à sua pessoalidade, mas aos elementos
considerados como significativos em torno da construção da sua imagem perante os outros, ou seja, a sua
inserção em uma cadeia de reputação, assim como o definido por Blanc (2017).
14
Devidamente ”pendurada”, ao invés de paga ao final da prestação do serviço.
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lutando pela manutenção da sua posição notória – como nos destaca ele próprio e sua
vinculação relativa a uma cadeia de reputações em nada intacta15.
Assim como observamos, a pergunta “De que família você é?” é um recurso aos
notórios, reproduzido entre ordinários em outras modalidades, ou exclusivamente
quando diante de alguém que se crê pertencer a uma cadeia de reputação de grande
abrangência (e, portanto, já reconhecido como tal). Do mesmo modo, assim como no
ritual do “você sabe com quem está falando?” (DaMATTA, 1981), esses atores podem
acionar conexões com membros destas redes como estratégia de reconhecimento por
proximidade.
Enquanto recurso de interpelação do outro a posicionar-se através das suas
cadeias de reputação, a expressão sinaliza para o caráter intersubjetivo desses modos de
conduta pública. Fazer-se reconhecer é uma forma de reinserção na situação e que ao
mesmo tempo a redefine.
Considerações Finais
Tais contrastes entre contextos evidenciam como alguns conteúdos apresentam
uma maior capacidade de se autonomizar, tendendo a ser mais perenes do que outros.
Vínculos entre cadeias de reputação aproximam pessoas, mas como membros de grupos
e no interior de classificações. Os conteúdos autonomizados em cadeias de reputação
familiares se apresentam como referenciais de maior influência entre os casos aqui
analisados, por outro lado, a garantia de uma posição distinta se reverte em
posicionamentos que se enquadram segundo uma lógica que é anterior às situações,
inferindo sobre as suas definições e, portanto, sobre a definição das posições que serão
ocupadas pelos atores em copresença: garante um lugar, mas o objetiva segundo
expectativas dadas pelo conteúdo do repertório de conhecimento mútuo que articula.
Destacamos finalmente como tais contrastes evidenciam a complexidade com
que objetividade e subjetividade se combinam em diferentes contextos e situações
sociais, inferindo sobre o posicionamento dos atores e os modos de conduta no espaço
público aos quais devem corresponder. A autonomização de conteúdos de caráter
pessoalizado assume a condição de referencial objetivo, tanto no que se refere aos atores
que se vinculam a tais cadeias de reputação quanto ao seu potencial de extrapolar as
relações sociais nas quais se assenta. Mesmo a pessoalidade, nestes casos, pode assumir
ares de objetivação, sempre que acionada para além das fronteiras da proximidade
direta.
Esses rearranjos entre grupos reputados ou emergentes evidenciam a
coexistência de moralidades distintas no que se refere aos procedimentos de
classificação por conhecimento mútuo. Por outro lado, o desafio vivenciado pelos
garotos do Bar SS se distingue daquele experimentado pelos notórios de bairro de
Campos. A notoriedade alcançada pelos donos do bar da cidade pequena os insere no
cenário local com uma abrangência mais ampla, que compete diretamente com as
cadeias de reputação familiares, pois se comunica com elas no espaço público da
pequena cidade. O sucesso do seu empreendimento comercial, sua ocupação, os
posiciona na cidade e na região, e não apenas em suas relações imediatas. O potencial
de autonomização dos referenciais que embasam a sua estima pública é potencializado
pela proeminência de uma cultura subjetiva que é abrangente por si mesma, permitindo
15
Referimo-nos com a expressão ao conteúdo da reputação, neste caso, manchado, como se diria em
expressão popular, pelos escândalos envolvendo as atividades da empresa do sogro e a sua posterior
falência.
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Referências
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PERRUT, Igor. “Guerra ao coronavirus” como
regime de engajamento “em urgência”: uma
análise do combate à pandemia. Sociabilida-
des Urbanas, Revista de Antropologia e So-
ciologia, v. 5, n. 13, pp. 47-62, março de 2021,
ISSN 2526-4702.
ARTIGO
https://grem-grei.org/numero-atual-socurbs/
Igor Perrut∗
Introdução
No que pareceu uma vinculação exagerada para alguns e certeira para outros, a
palavra “guerra” foi recorrentemente usada no início do combate à pandemia de covid-
∗
Sociólogo e mestrando bolsista (CNPQ) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) no
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA). É membro integrante do NECVU
(Núcleo de Estudos da Cidadania e Violência Urbana) e do Urbano (Laboratório de Estudos da Cidade).
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7792-5584 E-Mail: igor_perrut@hotmail.com
48
19, para designar e dar conta de definir os esforços, tanto no Brasil como no mundo a
fora, de contenção da pandemia e do alastramento do vírus. Presente em discursos de
autoridades, em conversas cotidianas e em matérias de jornal o início de tal momento
pandêmico era muitas vezes interpretado por tal motto, que sugeria que “travávamos
uma guerra” na qual todos os esforços deveriam ser empregados contra algo que,
invisível, contagioso e com capacidade de proliferação gigantesca, havia nos deixado
em casa, reforçado nossa preocupação com a higiene e com o contato social, ao mesmo
tempo que deixado as autoridades em um perene estado de tensão.
Bem, tratar metaforicamente algo como “guerra” não é uma operação nova e
tampouco específica do caso dessa pandemia. Aliás, como aponta Urry (2000, p.22),
tratar metaforicamente algum aspecto do fluxo social é um aspecto, se não usual entre
os indivíduos, um tanto quanto já reconhecido das reflexões sociológicas. Segundo ele,
fazemos isso em uma série de contextos e, não somente circunscrita a relação entre os
atores sociais em suas vidas cotidianas, as metáforas são inclusive empregadas pelo
próprio discurso raciocinativo das teorias sociológicas (LINDEMAN, 1924, p.43),
cabendo questionar quais são as condições pelas quais uma metáfora se figura como
uma boa ou má representação de uma realidade, tanto pela ciência quanto no seu uso
comum. Dito isto, ainda que a nomeação metafórica dos esforços de combate da
pandemia tenha sido cunhada pelo termo “guerra”, é digno de nota que uma série de
outros contextos contemporâneos de enfrentamento a alguma coisa tem sido descrito
pelo mesmo motto, como a “guerra às drogas”, a “guerra política” do Brasil ou mesmo
o “estado de guerra” de algumas das cidades brasileiras, tratando-se principalmente dos
conflitos armados relacionados a violência urbana.
Partindo-se daí, há uma série de contextos que são reconhecidamente
relacionados ao uso metafórico da palavra, tendo estes, ainda que diferenças, preservado
um mesmo sentido que, superficialmente, aponta para a noção de um combate
extremado de certa duração temporal, visando à completa mitigação do opositor. Tendo
ela mesma uma produtividade (Idem, p.23), analisar a metáfora da guerra relaciona,
assim, uma série de situações distintas em que a palavra é tomada como uma boa
representação da definição de situação1 pelos atores, tendo em seu uso um espaço para
criação de significados e interpretações mesmas dessas situações.
Por conta disso, o intuito deste artigo é compreender como e por que os atores
têm utilizado o termo “guerra” para circunscrever os acontecimentos referentes ao
combate da pandemia do novo coronavírus, identificando que elementos são valorados e
interpretados a partir dessa operação discursiva de definição promovida pelas pessoas,
cotidianamente. Proponho uma análise que pontue os sentidos efetivados2 pelo uso da
1
Definição de situação, tal como formulada por Thomas (1923), é aquela que se refere a um recorte no
tempo-espaço em que os atores sociais, por meio de suas operações cognitivas, identificam elementos
valorativos pelos quais interpretam suas ações e produzem, a partir disso, efeitos práticos no mundo
através da gestão que fazem de si e dos dispositivos dispostos no contexto, tendo em vista esses princípios
utilizados para tal definição. Segundo ele, “antes de qualquer ato de comportamento autodeterminado há
sempre um estágio de exame e deliberação que podemos chamar de definição da situação. Na realidade
não só os atos concretos são dependentes da definição da situação, mas toda uma conduta de vida e a
personalidade do próprio indivíduo derivam, gradualmente, de uma série de tais definições" (idem, p. 42)
2
Efetivação, aqui, se refere a discussão desenvolvida por Werneck (2012) sobre a capacidade
metapragmática dos atores no modelo de economia das grandezas de Boltanski e Thévenot (1991).
Segundo ele, trata-se de uma “radicalização da pragmaticidade” presente no modelo sociológico
pragmatista, questionando-se qual é a verdadeira produção de efeitos (portanto, de consequências) da
adoção de certos princípios morais que passam a orientar as ações dos atores em alguma situação. Assim,
uma ação é efetiva quando realmente produz efeitos no mundo, no sentido de que “uma vez que tenha
ocorrido, o que fez com que ela pudesse produzir consequências (o que, em última instância, significa que
ela ocorreu)?” (WERNECK, 2016, p. 178).
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6
E que tem sido usado, principalmente, para pensar sobre contextos de violência urbana (LEITE, 2012);
como já dito.
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Fonte: Imagem vinculada ao site do governo (gov.br) na seção específica do Ministério da Defesa
É digno de nota que a partir daí inúmeras outras reportagens começam a utilizar
da metáfora da guerra, sendo notável a massificação do motto ao vincular as notícias
referentes ao coronavirus principalmente entre os dias 27 de março até meados de abril.
É curioso notar que, de fins de abril até início de maio, a metáfora ganha sua conotação
militar mais forte, demonstrando exemplos de como certos arranjos na sociedade
(hospitais de campanha e medidas de controle da população) tem garantido certos
resultados na contenção da pandemia, demonstrando o grau com que as políticas de
contenção do governo têm sido bem sucedidas, apontando algumas lacunas e resultados
até então alcançados. Ainda nesse mesmo período, no início de abril, é curioso o fato de
que a ideia de “guerra” parece ter influenciado um movimento que buscava dar uma
conotação mais real ao termo, dado que começaram a surgir notícias que falavam sobre
a situação de países efetivamente em guerra – tais como a Síria, Líbano dentre outros –
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indústria que anunciam medidas como parte de seus “esforços de guerra” (TERRA,
26/03/2020), e as notícias relacionadas à construção dos hospitais de campanha, cujo
esforço tinha a ver com a rápida necessidade de esvaziamento das UTIs e a criação de
novas unidades intensivas de tratamento (CANZIAN, 20/03/2020). No cenário político
mais amplo, o filósofo camaronês Achille Mbembe (BERCITO, 30/03/2020), que
cunhou o termo “necropolítica”, assumiu haver uma clara posição de combate, citando a
“guerra” como uma das formas pelas quais os políticos tentam lidar com a incerteza do
mundo característica deste momento.
Já sob segundo aspecto vinculado à metáfora, se apresentava em geral notícias
baseadas na conscientização da gravidade da situação, como, por exemplo, a entrevista
do médico brasileiro Drauzio Varella, que costuma contar com cadeira cativa na fala
pública sobre saúde no país, cuja fala reforçava a necessidade de se proteger e “levar a
sério” o vírus (UOL, 03/04/2020). Aqui se fala da “chegada da guerra” e como as
equipes médicas lidaram emocionalmente com a situação (RODRIGUES
et.al.12/05/2020), atores esses geralmente descritos como “na linha de frente” do
combate que necessitavam contar com o apoio da população (TAVARES,13/04/2020),
justamente para não terem mais sobrecarga de trabalho.“Preparar-se para a guerra”
(SAFATLE, 20/04/2020) envolvia ter noção do quanto a pandemia é grave, o que
relaciona não só a postura dos políticos, convocados a “dar o exemplo” (AGUIAR,
02/05/2020), como a dos cidadãos, que não podem deixar de aderir ao isolamento como
única forma de “não perder a guerra” (CARVALHO, 06/05/2020).
A guerra comunicou em duas escalas, sendo uma delas voltada ao enfrentamento
do vírus e a outra à solidariedade entre pares. Se o registro militar é nitidamente
apresentado pelas notícias, somando-se movimentos industriais, médicos e políticos que
dêem conta de minimizar os impactos tanto econômicos quanto sanitários da pandemia
— o que inegavelmente abre margem para ações radicais, senão discriminatórias
(ARAUJO, 2020) — acredito que o registro civil também é fortemente apresentando,
vinculado à noção de privação excepcional da rotina e da necessidade de abnegação e
ampla colaboração para a “vitória” (isto é, a contenção da pandemia). Por isso, muito
embora ela esteja presente, é para além da gramática militar que acredito que a metáfora
foi empregada, dando conta também das maneiras pelas quais os atores “civis” — isto é,
os cidadãos comuns não envolvidos diretamente coma “linha de frente” dos “combates”,
como médicos, enfermeiros e trabalhadores de atividades essenciais — têm sido
convocados a integrar seus esforços de controle na circulação do vírus, ou mesmo a se
sensibilizar com a gravidade da situação.
Apontando um estado de urgência (CALHOUN, 2004) no que se refere à
necessidade de resolver um estado problemático do mundo o mais rápido possível, antes
que ele venha a piorar, apresentam-se aqui reflexos da noção de que a normalidade do
mundo não é taken for granted, buscando oferecer respostas às rápidas mudanças
provenientes da pandemia. Ao analisar tal cenário, “definir a situação” por meio da
noção de “guerra” se provou não apenas recorrente em sites de notícia como também
efetivo ao nomear esforços institucionais e servir como meio de explicação da realidade
pelos atores, convocando sua participação na definição dessa realidade. Assim, essa
delimitação de sentidos e a efetivação das ações e avaliações têm, como vimos,
mobilizado tanto repertórios militares quanto civis, o que aponta na direção de um
regime de engajamento no plano (THÉVENOT, 2008 [2006]) tomado em “urgência”.
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bem de todos (WERNECK, 2012) é uma máxima moral – e a contenção dos danos um
objetivo claro da situação em que as condutas se integram e se coordenam, o que pode
ser realizado somente a partir da colaboração de todos. Nesse caso, trata-se da vívida
necessidade de abnegação, onde “na guerra, temos dois caminhos pessoais que
determinam o coletivo: nos tornarmos melhores do que somos ou nos tornarmos piores
do que somos” (BRUM, 25/03/2020).
Portanto, a metáfora da guerra, na modulação do regime que aqui proponho,
amplia as escalas do combate fazendo com que não apenas o governo tenha
responsabilidades para com a pandemia, visto pelas lentes do uso da força
desproporcional, mas toda a população – onde a gramática civil estipula um processo de
definição pelos próprios cidadãos, levando em conta a integração de suas ações sob o
objetivo de contenção da pandemia. Ainda que isso possa levantar suspeições quanto às
consequências de normalizar um estado de exceção, tomo como objeto a necessidade de
cooperação subjacente ao uso da metáfora, baseada na máxima moral da saúde de todos
e na responsabilização de poucos em detrimento da colaboração de todos.
Conclusão
Passando-se do uso nativo (“guerra”) para o uso analítico (“urgência”), a
partição da forma-guerra compõe um exercício interpretativo que aponta o quanto, na
prática, a palavra tem dado conta de certos sentidos, notadamente o de urgência e
abnegação, que acabam por definir, interpretar e delimitar os esforços de enfrentamento
desta crise sanitária. Se há uma “guerra contra o coronavírus”, há rotinas abaladas,
medidas institucionais sendo tomadas com celeridade (o que ultrapassa os protocolos
burocráticos de uma situação normal) e a adoção de uma série de comportamentos que
visam a mitigação da proliferação e contágio pela doença e que são acompanhados de
valorações sobre sua conveniência na situação pela qual passamos.
A efetivação da palavra guerra é aderente a um sentido de urgência que delimita
certa produção e reprodução de ordens no imaginário social (CALHOUN, 2004, p. 17)
referindo-se, principalmente, à realização de um esforço coordenado na tentativa de
reaver um estado anterior de normalidade (os ditos “tempos de paz”). A metáfora da
guerra, pensada a partir do regime de engajamento “em urgência”, que instituído sob a
lógica de coordenação nesta situação problemática se pauta por dois registros
gramaticais, um “civil” e outro “militar”, sem que estes sejam sobrepostos um ao outro.
Assim, ao mesmo tempo em que se aponta a presença de uma situação
problemática, espelhada tanto na gramática civil quanto na militar, também se delimita
um ordenamento das ações baseada na necessidade de contenção de danos (OPHIR;
2012, p. 42) — como “achatar a curva” do contágio — espelhando ao mesmo tempo
uma urgência moral e de coordenação, representada pela abnegação e colaboração com
as medidas sanitárias, e uma dispositividade política, em que medidas rápidas têm de ser
tomadas, preservando-se ao máximo às vidas humanas. Agir em regime de urgência,
nesse caso, dá conta da integrar ações para se lidar com um estado problemático do
mundo, buscando minimizar seus efeitos de impacto por meio da valorização dos
sentidos da abnegação e da proatividade em tomar medidas que preservem vidas e dêem
conta de resguardá-las, até a volta da “normalidade”.
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2526-4702.
ARTIGO
https://grem-grei.org/numero-atual-socurbs/
Camila Andrade∗∗
João Nunes∗∗∗
∗
Produzido originalmente como trabalho final para a disciplina Sociologia Urbana, ministrada pelo Prof.
Dr. Mauro Guilherme Pinheiro Koury, durante o semestre 2019.2, e reatualizado a partir da realidade de
pandemia por Covid-19 durante os semestres 2020.1 e 2020.2, com orientação também do Prof. Dr.
Mauro Koury.
∗∗
Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Universidade Federal da Paraíba. Orcid:
https://orcid.org/0000-0002-6900-1971. E-Mail:cbandradez@gmail.com.
∗∗∗
Graduando em Arquitetura e Urbanismo; Universidade Federal da Paraíba. Orcid:
https://orcid.org/0000-0002-3565-9097. E-Mail:joaovno1@gmail.com.
64
using Magnani's concepts (2002) of piece and spot to understand the interrelationships
between diverse social worlds and their manifestations in space. It was supported by the
theoretical and methodological meanings of multiple realities inferred by Schütz (1945,
2019) to draw the temporal particularities of each moment and in the concepts of Goffman
(2010, 2012) about social interactions in public spaces. Being an empirical and qualitative
research, it carried out field diaries, photographic records, interviews and reflections on the
verified socio-spatial dynamics. It was noticed that the social groups that practice exercise
and / or use the square with their children, linked to the practice of activities related to
health issues, converge to a norm of moral ethics, having started to occupy the square in
pieces bigger than more disruptive groups, such as young people and traffickers. It was
observed that the fear and embarrassment caused by the possibility of contagion constituted
conducts in which the individual legitimizes his own actions based on the actions of his
neighbor. Keywords: public space, covid-19, sociabilities, Praça da Paz
Considerações iniciais
“O espaço público é a primeira vítima fatal”. Essa é a sentença que Beiguelman
(2020) enuncia em ensaio sobre a chamada “coronavida”. Se o espaço público configura
o lugar onde desde sempre ocorrem os contatos físicos, os encontros, as aglomerações;
diante de uma pandemia ele passa a ser potencialmente contagioso e, portanto, o
primeiro a ser sacrificado. O custo desse acontecimento é, obviamente, generalizado,
todavia há algo de subjetivo em sua dimensão, sendo determinada, também, a depender
do lugar que o espaço público ocupa em nossas vidas.
Fruto de um trabalho realizado em 2019, voltado ao potencial das diversidades
coexistentes no espaço público – em suas relações, intersecções, conflitos – e na forma
espacial que as dinâmicas de cada grupo social determinam, decidiu-se, este ano, dada a
chegada violenta de um vírus que se tornou pandemia, valer-se desse estudo para
investigar o espaço público e seus atores sob essa nova ótica, refletindo sobre o objeto
em dois universos temporais próximos, contudo em contextos distantes.
Sendo a pandemia por Covid-19 um acontecimento recente, ainda em curso e,
também por isso, com escassa quantidade de esforços compreensivos acerca dele, este
trabalho se propõe a realizar uma comparação qualitativa entre o antes e o durante a
pandemia das dinâmicas espaciais e sociais da Praça da Paz, situada na cidade de João
Pessoa – PB. Faz-se, então, uma análise espacial que enfoca a ocupação da praça pelos
grupos significadores daquele espaço em dois momentos, bem como se realiza reflexões
subjetivas sobre as interrelações entre eles.
Lefebvre (1999) utiliza a palavra liberdade com letra maiúscula para descrever a
simbologia de “liberdade conquistada” que há muito se atrela ao espaço urbano. No
contexto, se referia ao espaço urbano como pólo oposto ao campo. Aqui, colocam-se em
questionamento as possibilidades de prevalência dessa Liberdade num espaço público
que foi–não obstante a regência das muitas normativas sociais sobre ele – acrescido de
tensões provocadas pela possibilidade adventícia de contágio – diminuída pelo uso da
máscara que entra em jogo para proteger do vírus, mas nesse processo oculta relevantes
engajamentos de face (GOFFMAN, 2010) para a comunicação, conferindo outros
conflitos nessa sociabilidade.
A importância da sociologia no entendimento do espaço se firma no pensamento
de que o físico, por si só, não constitui estrutura suficiente para justificar, de forma
direta, comportamentos e condutas. Estes são antes induzidos em termos culturais e
sociais, para depois ser expressado nas sociabilidades que ocorrem no espaço público.
Sobre isso, Georg Simmel (2013, p.75) reflete:
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
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Revisão bibliográfica
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Mumford (2004) define o encontro comunal como “a função mais antiga e mais
persistente” da ágora. Essa noção converge com a função da Praça da Paz, que tem o
princípio ativo de sociabilidade atravessando boa parte dos usos, senão todos,
identificados em 2019, antes do coronavírus. Em 2020, após o coronavírus, podemos
afirmar que o espaço público, da forma que o conhecíamos antes, não existe mais.
A reprodução do espaço público, como aponta Pádua (2007), se manifesta
produzindo espacialidades inseridas numa lógica capitalista inerentemente reprodutível
(onde realiza e reproduz). Nisso, é notável que a crise da pandemia também se
manifeste por essa mesma lógica. A premissa do “estamos todos juntos nisso”, que
prega um impacto social do coronavírus generalizado, acaba por não ser verdadeira,
como estabelece Harvey (2020); com os governos tomando ações por vezes
questionáveis, recai às classes mais baixas uma maior vulnerabilidade, incluindo a
destinação – forçada – ao espaço público, agora periculoso.
Em meio às orientações de prevenção à Covid-19 da Organização Mundial de
Saúde (OMS) para que as pessoas deixem esse espaço público e fiquem em suas casas,
a crise financeira agravou a situação trabalhista e o aumento da inadimplência de
moradias. Contudo, no Brasil os despejos e remoções forçadas (MARINO, 2020)
continuaram. Atuando através do que Rancière (2014) chama de escândalo da
democracia, o poder econômico, fundido perfeitamente ao político, implanta uma
governança que atua na cidade de acordo com as necessidades das elites econômicas e
políticas. O resultado já é conhecido, pessoas que não têm para onde ir e recorrem à
ocupação dos espaços públicos – como praças – de maneira ainda mais intensa, sendo
essa uma realidade ocorrida na Praça da Paz.
Passados mais de seis meses desde o primeiro diagnóstico de Covid-19 no país,
dentre períodos de quarentena, lockdowns em algumas cidades, flexibilização das
medidas de isolamento e reabertura do comércio e serviços, os espaços públicos
voltaram a ser frequentados.
No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro, que foi caracterizado como o líder do
movimento negacionista da crise do coronavírus (FRIEDMAN, 2020), reduziu a
gravidade do Covid-19 desde o seu surgimento, demitiu ministros que seguiram as
medidas sanitárias e caracterizou como “gripezinha” a doença que – durante a
elaboração deste trabalho – já levou mais de 120 mil vidas apenas no Brasil. Nesse
cenário, a defesa do isolamento social e do seguimento das medidas de segurança
sanitária ficou a cargo das esferas estaduais e municipais.
Com um governo federal regido por ações consideradas necropolítica1, a
situação calamitosa permanece desequilibrada, o que mesmo para quem possui
condições – econômicas, trabalhistas, habitacionais – de realizar o isolamento social,
após mais de seis meses nesse modelo de vida virtual, respostas psicológicas (TAYLOR
et al., 2020) dificultam o mantimento deste, e é principalmente (mas não só) sob esse
pretexto que os espaços públicos voltam a ser utilizados mesmo sob um cenário tão
delicado.
Uma crise que abrange tantas esferas e recortes sociais encerra tendo como
denominador comum emoções, como as de ansiedade, medo e tristeza, que “[...]
moldam o humor cotidiano, afetam as relações pessoais, e ampliam as crises individuais
no enfrentamento do novo momento situacional vivenciado” (KOURY, 2020). O espaço
público, palco da diversidade de pessoas em níveis de classe, gênero, raça, idade,
origem etc., é potencializado como abundante objeto de análise na medida em que
1
Achille Mbembe (2017) se baseia na noção de biopoder de Foucault para discutir a política de morte
adotada pelo Estado, na qual a construção e a propagação da ideia de um inimigo a ser eliminado
conferem-lhe a soberania, exercendo-a, à medida que dita quem deve morrer ou deixar viver.
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Figura 1 -Praça da Paz sendo vivenciada durante a pandemia. Fonte:: Autores (2020)
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68
2
Conceito elaborado por Goffman (1966; 2010) para designar um evento social limitado no espaço e
tempo a partir de um contexto estruturante.
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diferenças desses mundos sociais que a compõem, onde as distâncias ideológicas são
representadas fisicamente, aglomerando semelhantes e distanciando os diferentes.
Cruz (2011), em um capítulo formulando sobre a Praça da Paz enquanto espaço
público produto e produtor de sociabilidades, afirma existir uma percepção geral dos
frequentadores que assegura tal potencial, refletido na fala de um dos entrevistados: “É
bom olhar, cumprimentar as pessoas, mesmo sem conhecer... observar o que fazem,
perguntar algo sobre as atividades que estão praticando” (CRUZ, 2011, p.73). Em
contrapartida, a autora registra também a visão daqueles que se dão por satisfeitos ao
interagir diretamente apenas com os seus semelhantes, integrantes de mesmo grupo
social:
Muitas pessoas frequentam essa praça, mas não conheço as pessoas
que estão todos os dias aqui, fico apenas conversando com meus
amigos, que já conheço e marcamos de tomar uma cerveja e falar das
coisas do dia-a-dia (...) não me interessa o que fazem as pessoas que
vêm aqui, não fazem parte do meu meio social. (Entrevista
realizada na Praça da Paz/Bancários no dia 17 de dezembro de 2010.
CRUZ, 2011, p.75, grifo nosso)
A composição do bairro Bancários tem influência na realidade de ações sociais
na praça. Na região leste do bairro (a menos de 2 quilômetros de distância) reside a
comunidade do Timbó, de situação socioeconômica vulnerável, destoante da maioria
dos bancários. A praça, uma das maiores de João Pessoa, é então destino de moradores
da comunidade que, por sua vez,possuem razões diferentes para frequentá-la da camada
dita privilegiada. Os moradores do Timbó acabam por desempenhar a função de
prestadores de serviço através do comércio informal (QUEIROZ; FRANCH, 2008),
enquanto a classe média – não moradores do Timbó – é quem performa as ações de
saúde e lazer, inclusive a inserção nos serviços municipais dessas categorias (SOARES,
2009).
Essas vivências, em conflito, reiteram um tipo de interação na qual os indivíduos
coexistem estando cientes da presença um do outro, no entanto sem realizar
comunicação verbal entre si, constituindo o que Goffman (2010) denominou de
interações desfocadas. Aqui, o olhar é o sentido responsável pela captação de
informações sobre o outro, que perpassa vestimentas e trejeitos manifestados. Já as
interações focadas são mais diretas, com comunicação verbal e clara3.
A Praça da Paz, vista como espaço pungente na realização de sociabilidade é,
por outro lado, realizada de acordo à produção desigual do território e do espaço urbano
brasileiro (SANTOS, 1993; CARLOS, 1987); assim, a pandemia, que fortaleceu a
desigualdade de maneira quase imediata (ESTRELA et al., 2020), reiterou esse espaço
público como refletor dos fatos citadinos do Brasil.
Resultados e discussões
Os resultados e discussões acerca dos universos temporais observados na Praça
da Paz serão aqui apresentados seguindo o fluxo natural das abordagens, que compactua
com os interprocessos da praça e suas dinâmicas entrelaçadas. Na intenção de facilitar a
compreensão das comparações aqui propostas, optou-se por discorrer sobre o antes e o
3
Vale a lembrança da interação com a “não-pessoa”, também elaborada por Goffman (1966, 2010). O
termo “não-pessoa” compreende indivíduos de grupos sociais subjugados por classe social ou
incompetentes às normas sociais, tais como serventes, crianças, negros e pessoas com transtornos
mentais, e designam interações baseadas no desvio proposital do olhar do outro, sinal de que aquele não
representa curiosidade ou conforto.
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durante a pandemia de forma imediata, aproximando esses tempos para perceber melhor
suas transformações. Nessa lógica, estruturou-se
estruturou se o tópico em dois momentos: o
primeiro, onde se explana acerca da morfologia da praça e a dinâmica espacial ali
delineada
neada por indivíduos em espaços temporais tempos próximos – e nem por isso
pouco distante entre si –,, e no segundo, em que há um debruçamento maior sobre os
atores ocupantes e significadores daquele espaço.
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71
Durante
rante a primeira abordagem, foi observado por vezes mulheres de idade
média (entre 40-5050 anos) praticando exercícios nos mesmos bancos em que jovens
fumavam maconha, a poucos metros de distância. Nota-se
Nota se que as atividades que cada
grupo social exerce dentroo do seu pedaço funcionam como um distanciador subjetivo
das realidades. Os processos de “individualização em grupo” a partir das atividades que
cada grupo aglutinado realiza estão conectados com o que Agier (2011) chama de
situações ordinárias, em que a relação
relação com o outro se decorre através do sentido
5
Michel Agier (2011) em seu livro Antropologia da cidade destaca que os lugares próximos às residências
dos moradores são aqueles com os quais o sentimento de identificação nasce mais rapidamente, onde a
sensação de pertencimento é aflorada e a relação com o ambiente é mais confortável e familiar. Isso pode
ser evidenciado pela maneira casual à qual as pessoas se apropriam da praça antes e durante a pandemia.
6
Isso foi observado principalmente nos primeiros meses da pandemia no Brasil, quando eram maiores os
índices de aderência ao isolamento social e os decretos municipais de quarentena de João Pessoa estavam
em execução. Atividades como caminhada e corrida eram as mais recorrentes entre os meses de abril e
maio de 2020.
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72
7
Durante as entrevistas da etnografia realizada em 2019, muitos dos integrantes desses grupos sociais
designaram os jovens usuários de drogas com termos como “defeito” ou “maior problema”
problema” da praça.
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73
Figura 5 - Pedaços ocupados durante a pandemia. Fonte: Base do Google Maps,, alterado pelos autores (2020)
Para além das modificações nas dinâmicas espaciais, é preciso compreender que
a característica antissociabilidade
sociabilidade que as interações após o início da crise do Covid-19
Covid
passaram a ter, inferiu em ações sociais específicas entre os atores de cada um desses
grupos. Redesenhando algumas tensões e criando outras.
A copresença no espaço público associada à diversidade social é parte central do
“estar em sociedade” (LEGEBY, 2013), e atuam juntas como oportunidade para a
tolerância ser construída. A Praça da Paz, abrigando mundos sociais diversos mesmo
em horários variados do dia, desempenha, teoricamente, um papel positivo nesse
sentido. Apesar disso, e mesmo entendendo que esses fatores não indicam a aceitação
absoluta de todos os indivíduos, antes da pandemia se percebia um posicionamento
menos crítico para com o outro e daquele que vem do outro para si.
Fala-se isso, quando, ao agregar teor proibitivo à ocupação do espaço público,
passa a ser percebido,
ido, por parte dos ocupantes, o uso de um álibi para justificar a
presença nesse espaço. Nessa busca por aprovação, o indivíduo que realiza um uso
determinado por necessidades de saúde física e/ou psicológica (ex.: exercícios físicos
para adultos, brincadeiras
iras para crianças) se vê como corpo permitido,
permitido, em relação aos
que se encontram frequentando o bar,
bar ou aos que não estão utilizando máscara.
Isso foi percebido num processo que, pelos comportamentos dos atores, sinaliza
uma “criminalização da sociabilidade”.
sociabilidade”. Durante as observações da segunda
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aproximação, muitos dos grupos dos homens idosos nos bares da praça8, por vezes,
conversavam sem máscaras ou com elas mal ajustadas ao rosto, entretanto, ao
aproximar-se alguém que não fizesse parte do mundo social desses para comprar algo
no quiosque, prontamente, em posição de embaraço, os homens colocavam ou
ajustavam as máscaras, algumas vezes até encerrando o assunto.
Gomes; Nascimento; Araújo (2007) constataram que o imaginário social
construído em torno da figura masculina como indivíduos viris, fortes e menos passíveis
de vulnerabilidades são fatores que corroboram a menor procura dos homens aos
serviços de saúde em relação às mulheres. Seguindo essa lógica, nos diários de campo,
notamos que, de forma geral, os homens compunham o grupo que menos se utilizava de
máscara, mesmo os homens idosos9, confirmando a crença cultural do cuidado como
ação designada ao feminino.
Essa noção de cuidado, no entanto, acaba por ser uma das principais ferramentas
na criação de múltiplas realidades (SCHÜTZ, 1945, 2019) desse contexto pandêmico no
espaço público. Por induzir uma nova normativa social, a existência – ou não – dessa
cautela com a responsabilidade social e sanitária parecem fundamentadas pela ação do
outro.
Durante as abordagens, um caso observado foi a permissão, por parte dos pais e
mães, que mesmo usando máscaras, os filhos pudessem brincar nos escorregadores com
outras crianças (algumas sem máscaras), o que em teoria pouco evitaria o contato dessas
com o vírus do Covid-19. Por sua vez, falas como “arrume a máscara”, foram
observadas. O cuidado de cada mãe/pai com os filhos era baseado até onde iao cuidado
dos outros pais com seus respectivos, deixando as condutas de preocupação com o
contágio a cargo de uma normativa geral.
Com esse sistema de atitudes entrelaçado mais fortemente por esse ir e vir de
ações, as interações desfocadas, típicas de espaços públicos abertos como praças,
tornaram-se mais complexificadas. A necessidade de observação do outro, sua
legitimação com as precauções, e seu compromisso com o distanciamento social
desconstroem certas distâncias que são naturais e até vistas como positivas por certos
autores, como fala Granovetter (1975), que reitera a importância de laços fracos nas
socializações do espaço urbano.
No subitem anterior, foi explanado como a disposição de cada pedaço dos
mundos sociais na praça pré-pandemia correspondia somente a diferenças de culturas
comportamentais, tendo as diferenças, durante a pandemia, reiterado essa distância
através das condutas quanto à reação ao coronavírus. Isso pode ser mais bem
compreendido quando se aproxima das vivências dos bares dos jovens.
Na etnografia de 2019, foi afirmado que os jovens e universitários que utilizam
os bares se subdividem em grupos próprios, sendo os grupos da causa LGBTQIA+ a
grande parcela do padrão social presente nesses espaços. Dessa forma, se desenvolve
um ambiente alternativo – os próprios bares deixam a bandeira LGBT10 à mostra em
seus balcões –, onde há maior autoafirmação de existências de gêneros e sexualidades
diversas. Nesses locais, se encontram os militantes de causas sociais e subculturas como
os clubbers, todos por sua vez, ligados ou confortáveis com o movimento LGBTQIA+.
8
Os bares de público de idosos continuaram disfarçadamente abertos mesmo com o decreto municipal
aplicado. Os usos eram feitos de maneira mais furtiva, sem mesas, apenas com uma das janelas do
quiosque aberta, a aglomeração dos senhores acontecia somente com as cadeiras.
9
Pessoas acima de 60 anos são um dos principais grupos de risco para a doença causada pelo coronavírus.
10
Usa-se aqui a sigla LGBT, pois as bandeiras presentes nos bares, com as sete (às vezes, seis) cores do
arco-íris, de acordo com o movimento LGBTQIA+ não conferem representatividade ao movimento por
inteiro.
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Considerações finais
A crise causada pelo novo coronavírus abordou questões de adesão
ade ao espaço
público pouco experienciadas pela sociedade contemporânea,
contemporânea principalmente se
referindo ao indivíduo livre (SIMMEL, 1979) das cidades. O cenário atípico foi
esperado durante as aproximações da Praça da Paz e percebido através da idealidade
que havia sido identificada na etnografia da mesma em 2019, mantendo-se
mantendo a equipe de
pesquisa. A transformação foi analisada de maneira espacializada e através das ações
sociais diretas entre os indivíduos que ocupavam – ou deixaram de ocupar – os limites
da praça.
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Os grupos sociais lidos como “dentro da moral” tiveram uma presença maior no
processo pandêmico em área e temporalidade, ocupando o espaço mesmo em meses em
que o isolamento social ocorria em maiores índices. Essa presença, então justificada
como necessária e ligada a atividades de saúde, reflete os espaços públicos como palco
de condutas polidas, no qual na realidade da Praça da Paz provinham de uma classe
média branca e/ou heteronormativa, mesmo sob assertivas das organizações de saúde
para que se evitasse saídas de casa e aglomerações. A leitura vertical das culturas (e
existências) é, assim, fortalecida, através da conglomeração de grupos que não se
adequam em classe ou apresentam comportamentos disruptivos.
A mudança nas interações, baseada na aprovação e desaprovação de
determinada conduta do outro (em torno da legitimidade dos cuidados com o Covid-19),
tornaram-se mais complexas, e passaram a ser regidas por uma observação mais
sensível sobre como esse outro age e vice-versa. Os comportamentos em grupo afetaram
de maneira generalizada os diversos mundos sociais da praça, reverberando-se. Os
cuidados/negligências com a pandemia se delimitavam pela observação de seus
semelhantes; abrindo espaço para discussão da sociedade como construtora e destrutora
da moralidade sobre si.
Sendo um estudo que aferiu o tom com o qual o espaço público é afetado pelo
cenário de pandemia – ao mesmo tempo em que esse também o afeta –, a pesquisa
ultrapassou momentos de análise ao passo que a mutação na maneira de sentir o público
e o privado foi experienciada, inevitavelmente, também pelos pesquisadores. Essa
discussão, quase em caráter experimental pela inexistência de contexto parecido para
apoiar um senso comum delimitador (GARCEZ, 2014), pretende ser, para além de um
estudo científico, um relato histórico de um processo tão surpreendente para a natureza
aproximativa dos espaços públicos.
Referências
AGIER, M. 2011. Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. São Paulo:
Terceiro Nome.
BEIGUELMAN, G. 2020. Coronavida: pandemia, cidade e cultura urbana. São Paulo:
ECidade.
BORGES, J. 2018. O que é encarceramento em massa?Belo Horizonte: Letramento.
CARLOS, A. F. A. 1987. A (re)produção do espaço urbano, São Paulo, Contexto.
CRUZ, E. L. 2011. Praça da Paz: espaço público na cidade de João Pessoa – PB.
Dissertação (Mestrado). João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba.
ESTRELA, F. M. et al. 2020. Pandemia da Covid-19: refletindo as vulnerabilidades a
luz do gênero, raça e classe. Ciência & Saúde Coletiva, v. 25, n. 9, pp. 3431-3436.
FRIEDMAN, U. 2020. The Coronavirus-Denial Movement Now Has a Leader, The
Atlantic, 27 mar. 2020. Disponível em:
https://www.theatlantic.com/politics/archive/2020/03/bolsonaro-coronavirus-denial-
brazil-trump/608926/, (acesso em 20/08/2020).
G1 PB. 2020. Moradora de rua é encontrada morta em colchão na Praça da Paz em João
Pessoa, 17 mai. 2020. Disponível em:
https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2020/05/17/moradora-de-rua-e-encontrada-
morta-em-colchao-na-praca-da-paz-em-joao-pessoa.ghtml, (acesso em 18/08/2020).
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LUTZ, Catherine; WHITE, Geoffrey M.
Tradução de Mauro Guilherme Pinheiro
Koury. A Antropologia das Emoções.
Sociabilidades Urbanas, Revista de
Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, pp. 81-
115, março de 2021, ISSN 2526-4702.
ARTIGO
https://grem-grei.org/numero-atual-socurbs/
Catherine Lutz∗
Geoffrey M. White∗∗
Tradução de Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Resumo: Este estado da arte examina aproximadamente a última década (os finais dos anos
setenta e ao longo dos anos oitenta) da pesquisa antropológica sobre emoções. Apesar de
alguns trabalhos interculturais de psicólogos foram incluídos, assim como algumas
pesquisas sociológicas e antropológicas não americanas, a ênfase desta revisão é a
antropologia americana. O interesse pelas "emoções" floresceu na última década, não
apenas na antropologia, mas nas ciências sociais e humanas, bem como em campos
interdisciplinares de estudos, como os estudos feministas. Uma preocupação em entender o
papel das emoções nas relações pessoais e sociais se desenvolveu em resposta a uma série
de fatores, incluindo a insatisfação com a visão cognitiva dominante dos seres humanos
como "processadores de informações" mecânicos. Preocupação renovada com a
compreensão da experiência sociocultural da perspectiva das pessoas que a vivem e o
surgimento de abordagens interpretativas nas ciências sociais mais aptas a examinar o que
antes era considerado um fenômeno incipiente. Como conclusão, as descrições etnográficas
existentes das emoções são organizadas através de um quadro comparativo sugerido para
olhar as emoções como um idioma cultural para lidar com os problemas persistentes de
relacionamento social. Palavras-chave: estado da arte, antropologia americana, emoções,
antropologia das emoções
Abstract: This state of the art examines approximately the last decade (the late seventies
and throughout the eighties) of anthropological research on emotions. Although some
intercultural works by psychologists have been included, as well as some non-American
sociological and anthropological research, the emphasis of this review is American
anthropology. Interest in "emotions" has flourished in the past decade, not only in
anthropology, but in the social and human sciences, as well as in interdisciplinary fields of
study, such as feminist studies. A concern to understand the role of emotions in personal
and social relationships has developed in response to a number of factors, including
dissatisfaction with the dominant cognitive view of human beings as mechanical
∴
Este artigo foi originalmente publicado com o título ‘The Anthropology of Emotions’, no Annual
Review of Anthropology, v. 15, pp. 405-436, 1986. Dada a importância desde estado da arte para o campo
da Antropologia e Sociologia das Emoções, foi solicitado uma permissão para publicar uma tradução para
o português do artigo na Sociabilidades Urbanas, Revista de Antropologia e Sociologia, - revista on-line
e de acesso gratuito. O tradutor, a Sociabilidades Urbanas, e os grupos de pesquisa Grem-Grei agradecem
aos autores e a Annual Review of Anthropology a permissão dada, no final do ano de 2018, para
publicação desta tradução na Seção Documento da SocUrbs.
∗
Departamento de Antropologia, Universidade Estadual de Nova York, Binghamton, Nova York 13901.
∗∗
Instituto de Cultura e Comunicação, East-West Center, Honolulu, Havaí 96848.
82
Introdução
O interesse pelo "emocional" floresceu na última década, não apenas na
antropologia, mas na psicologia (AVERILL, 1992; IZARD, 1977; MANDLER, 1984;
PLUTCHIK; KELLERMAN, 1980), sociologia (HOCHSCHILD, 1983; KEMPER,
1978), filosofia (RORTY, 1980; SOLOMON, 1976), história (STONE, 1977) e estudos
feministas (SMITH-ROSEMBERG, 1975). Uma preocupação em entender o papel do
emocional nas relações pessoais e sociais a vida se desenvolveu em resposta a uma série
de fatores, incluindo a insatisfação com a visão cognitiva dominante dos seres humanos
como "processadores de informações" mecânicos, preocupação renovada com a
compreensão da experiência sociocultural da perspectiva das pessoas que a vivem e o
surgimento de abordagens interpretativas ciência social mais apta a examinar o que
antes era considerado um fenômeno incipiente. O relegar passado de emoções à margem
da teoria da cultura é um artefato do ponto de vista de que eles ocupam mais províncias
naturais e biológicas da experiência humana e, portanto, são vistas como relativamente
uniformes, desinteressantes e inacessíveis aos métodos de análise cultural. Ao ir além
de sua estrutura psicobiológica original para incluir a preocupação com os aspectos
sociais relacionais, comunicativos e culturais da emoção, a teoria da emoção assumiu
nova importância para a própria teoria sociocultural. Essas abordagens culturais
tornaram possível para uma ampla gama de antropólogos, incluindo aqueles
tradicionalmente hostis ao "psicológico", sustentar um interesse pela emoção assim
interpretada.
Este estado da arte examina aproximadamente a última década da pesquisa
antropológica sobre emoções. Enquanto alguns trabalhos interculturais de psicólogos
são incluídos, assim como algumas pesquisas antropológicas não americanas, a ênfase é
na antropologia americana. Embora a pesquisa esteja sendo conduzida em todas as áreas
geográficas, uma quantidade desproporcional foi feita no Pacífico, refletindo tanto um
foco indígena em expressões emocionais quanto às ênfases psicoculturais tradicionais
da etnografia oceânica. Começamos por examinar algumas das tensões teóricas e
epistemológicas que, muitas vezes implicitamente, servem para estruturar tanto os
debates quanto os silêncios sobre a relação entre emoção e cultura. Uma dessas tensões
é entre abordagens universalistas, positivistas e relativistas, interpretativas; e serve para
organizar a revisão que se segue. Os que se preocupam com as regularidades
transculturais da emoção trazem consigo o interesse pelo naturalismo etológico e
evolucionista, o psicodinâmico, o senso comum e os universais da linguagem. Os que se
preocupam principalmente com a construção social e cultural da emoção baseiam-se em
várias tradições diferentes, incluindo a etnopsicológica, a estrutural social, a linguística
e a desenvolvimentista. Como qualquer organização esquemática de um conjunto
diversificado de idéias, essa não pode fazer justiça à complexidade total de cada
abordagem individual, mas, acreditamos, captura um conjunto central de dimensões que
orientam os pesquisadores para o problema da emoção. Em conclusão, as descrições
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cultural em que e contra o qual as emoções são colocadas. Esse mesmo cisma que
também é mantido pela antropologia social britânica e pela culturologia simbólica, torna
necessária uma distinção entre emoção, definida como sentimentos privados que
geralmente não são culturalmente motivados ou socialmente articulados, e sentimento,
definidos como símbolos socialmente articulados e expectativas comportamentais
(FAJANS, 1983). Nessa perspectiva, visões culturais sobre emoções apropriadas "não
controlam os sentimentos do indivíduo, que são soberanos" (HUNTINGTON;
METCALF, 1979, p. 197). Outros minimizam a importância ou a utilidade de uma
distinção entre uma análise psicológica e uma análise social da emoção (ABU-
LUGHOD, 1986; ROSALDO, 1983).
O romantismo e o racionalismo representam duas correntes de pensamento que
podem ser detectadas nos tratamentos antropológicos das emoções. Para o racionalista
que faz uso da equação geral ocidental de irracionalidade com emoção, as emoções são
se não sintomas do animal no humano (FREEMAN, 1983), pelo menos desordenadas e
problemáticas; são "vagas e irracionais" (HUNTINGTON; METCALF, 1979, p. 34),
"os resultados... da impotência da mente" (LÉVI-STRAUSS, 1963, p. 71). A antipatia
entre ciência e emoção que esta posição postula pode até levar à exclusão da emoção
como objeto de estudo adequado.
Na visão romântica, a emoção é implicitamente avaliada positivamente como
um aspecto da "humanidade natural"; é (ou pode ser) o lugar da percepção incorrupta,
pura ou honesta em contraste com a racionalidade artificial da civilização. A capacidade
de sentir define o humano e cria a significação na vida individual e social (KEMPER,
1978; ROSALDO, 1984; SOLOMOM, 1976). Uma posição híbrida é representada por
aqueles que elevariam as emoções a um importante lugar de ordenação na sociedade,
ligando-as à lógica cultural (QUINN; HOLLAND, 1987), ou definindo-as como fontes
ocasionais ou potenciais de conhecimento correto sobre o mundo social (LEVY;
ROSALDO, 1983).
Cada uma dessas posturas básicas tem implicações para o modo como a emoção
é investigada. Como resultado disso, se pode trabalhar a emoção como alguma coisa a
ser explicada por outras variáveis (como o corpo, a estrutura social ou a experiência da
infância), como algo que pode explicar as instituições culturais (como hospitalidade,
evitação alfandegária ou participação individual), ritual religioso, ou como parte
inseparável do significado cultural e dos sistemas sociais. Essas tensões determinam se
um investigador alega que estuda as emoções diretamente, como afetos ou idéias sobre
emoção, ou ambos. E eles influenciam os tipos de métodos usados, incluindo
observação de comportamento, empatia, introspecção ou análise cultural. As várias
posturas já descritas ajudam a determinar se o foco da investigação está no
desenvolvimento emocional (seja para observar a aprendizagem de normas culturais
sobre a emoção ou o desenvolvimento de um processo universal), na incidência de
patologia emocional (como depressão), os paralelos entre a estrutura da sociedade e a
estrutura da emoção, na linguagem da emoção (seja como rótulos potenciais para os
sentimentos ou como constituindo a emoção como um processo social e comunicativo),
no ritual (seja como o produto da emoção ou seu gerador), ou no contexto social do
estudo científico social da emoção
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nos Animais. O interesse de Darwin pela universalidade e taxonomia das emoções foi
replicado, assim como sua visão de que a emoção e a expressão contribuem para as
chances de sobrevivência do organismo. As emoções são retratadas como adaptativas na
medida em que funcionam para organizar o comportamento humano de maneiras
apropriadas às demandas ambientais. Expressões emocionais (particularmente
expressões faciais) são vistas como funcionando principalmente para sinalizar as
intenções do indivíduo, informando assim os outros sobre as prováveis ações futuras.
Várias tradições de trabalho transcultural sobre emoção baseiam-se em insights
darwinistas, incluindo etologia (EIBL-EIBESFELDT, 1980), psicologia transcultural
(EKMAN, 1980, 1984; SCHERER, 1984), sociobiologia (WEINRICH, 1980) e
antropologia biológica (KONNER, 1982), bem como a antropologia psicanalítica
(LeVINE, 1983; LINDHOLM, 1982) que se baseia nas teorias evolutivas de Bowlby
(1969).
O mais ambicioso e amplamente citado programa de pesquisa intercultural sobre
emoção é liderado por Ekman, um programa que ele denomina "neurocultural"
(EKMAN, 1980a, 1980b, 1984). Seus estudos de expressões faciais de emoção (ver
EKMAN, 1980b para uma síntese) incluíram pedir aos Fore da Nova Guiné para
identificar o estado emocional de pessoas fotografadas exibindo padrões particulares de
movimentos musculares faciais. Eles também foram convidados a colocar a expressão
facial de uma pessoa passando por uma série de experiências, como a morte de uma
criança ou vendo uma carcaça de porco em decomposição. Com base nos resultados,
Ekman e seus colegas concluíram que felicidade, surpresa, medo, raiva, repugnância e
tristeza são emoções universais, expressas com a mesma configuração distinta de
movimentos musculares faciais.
Embora Ekman use termos emocionais como raiva, medo e tristeza para se
referir a um complexo de expressões faciais, elicitores, comportamento interpessoal e
mudanças fisiológicas, a essência da emoção permanece para ele o "programa afetivo",
ou sistema biológico que armazena a padrões para cada emoção distinta, incluindo as
respostas muscular, facial, vocal, comportamental, autonômica e do sistema nervoso
central. Esses programas para as seis emoções universais (mais talvez o interesse, a
vergonha e o desprezo) são automaticamente acionados por seus eliciadores, alguns dos
quais adquiridos culturalmente.
Ekman postula três áreas centrais nas quais a cultura influencia a emoção.
Primeiro, as regras de exibição cultural, ou convenções, normas ou hábitos adquiridos
que determina que emoção possa ser mostrada a quem e em quais contextos (ver
também, BAILEY, 1983; KEMPER, 1978); algumas regras são seguidas
automaticamente e fora da consciência, enquanto outras existem simplesmente como
ideais. Essas regras de exibição "interferem nas respostas emocionais que são ditadas
pelo programa de afetos inatos. A cultura é vista como tendo forte influência no
enfrentamento individual, ou tentativas cognitivas e comportamentais de lidar com a
emoção e suas causas. Embora a evolução tenha resultado em algumas predisposições,
como lidar com a raiva ao atacar sua fonte, elas podem ser superadas pelo aprendizado
cultural. Os elicitores situacionais específicos da emoção também são culturalmente
variáveis. Ekman afirmou que "não há emoção para a qual haja é um elicitor universal,
uniforme em seus detalhes específicos" (EKMAN, 1980a, p. 85), ele postula a
universalidade nos elicitores da emoção quando estes são definidos de maneira abstrata
(cf. BOUCHER; BRANDT, 1981).
O etólogo Eibl-Eibesfeldt (1980) concentrou-se em filmar e analisar uma série
de comportamentos não-verbais expressivos em emoção em um grande número de
sociedades. O objetivo é examinar as cadeias de eventos comportamentais em que as
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dos atores. Por exemplo, uma investigação das taxas epidêmicas de suicídio entre
adolescentes do sexo masculino na Micronésia (RUBINSTEIN, 1984) mostra que as
dinâmicas esperadas de raiva e depressão que figuram nos suicídios ocidentais não
aparecem de maneira óbvia. Em vez disso, uma compreensão dos motivos dos atores
requer a articulação dos conceitos indígenas de emoção no contexto dos conflitos
familiares. Outros estudos examinaram o papel da emoção como um idioma para pensar
e falar sobre angústia pessoal (KLEINMAN; GOOD, 1985; NICHTER, 1981),
observando as marcadas diferenças entre culturas. Por exemplo, a descoberta de que os
chineses falam relativamente menos sobre emoções do que os americanos na explicação
de problemas psicossociais (KLEINMAN; KLEINMAN, 1985) reflete um contraste na
retórica de queixa culturalmente constituída, de tal modo que os chineses usam um
idioma somático onde os americanos falam em termos de psicologia.
Uma visão da emoção que pode ser denominada "naturalismo de senso comum"
está, pelo menos, implícita em muitos tratamentos antropológicos da emoção. As
suposições que ele faz, no entanto, podem impedir que ele seja fortemente representado
nesta literatura como uma abordagem explicitamente adotada. O naturalismo de senso
comum é baseado na visão de que as emoções devem ser entendidas principalmente
como sentimentos, e que esses sentimentos são universais em sua natureza e
distribuição essenciais, se não na atenção cultural e nos significados subsidiários que os
acompanham. Sentimentos tristes ou raivosos, por exemplo, são em todos os lugares
iguais, e esses sentimentos é a essência da emoção. O naturalismo de senso comum tem
como parceiro de conversação implícito aqueles que adotam a visão de que a
compreensão de emoções entre culturas é pouco importante ou imensamente difícil.
Dois métodos foram usados para explorar a vida emocional nessa veia, incluindo
empatia (BLACK, 1985; BRIGGS, 1979; KRACKE, 1981) e a noção de
posicionamento social (ROSALDO, 1984). O primeiro é o mais comum dos dois e
baseia-se na ideia de que todos os seres humanos têm a capacidade de compreender o
estado emocional do outro. Essa compreensão é efetuada através dos canais especiais da
comunicação empática (e geralmente não verbal) e é conceituada como uma
compreensão intelectual ou emocional mais direta. No último caso, particularmente, as
emoções das pessoas são vistas como passadas, às vezes em um processo contagioso,
para aqueles ao seu redor. O antropólogo, portanto, deve simplesmente estar em
proximidade atenta e intensiva com a vida cotidiana dos outros, a fim de apreender suas
emoções. O paradoxo e o problema nessa visão, apontados por Solomom (1978),
residem no fato de que o conceito de empatia pressupõe aquilo que é frequentemente
usado para provar, que é a natureza universal e transparente de uma experiência
emocional interpretada como interna (para outras críticas ver BRIGGS, 1970; GEERTZ,
1984). Em sua "etnografia introspectiva" dos Fulani, Riesman (1977) historiciza a
questão da empatia emocional no campo, notando as maneiras pelas quais a alienação
no Ocidente e a natureza do campo se encontra tornando a empatia problemática (ver
também RABINOW, 1977).
R. Rosaldo (1984) aplicou recentemente a noção de Bourdieu (1977) do "sujeito
posicionado" à questão metodológica de como o estudo da emoção deve prosseguir.
Cada pessoa é vista como ocupando uma posição na sociedade que proporciona uma
visão particular dos eventos. Essa posição é estruturada por fatores como idade, gênero
e status e tipicamente dá ao indivíduo um conjunto de experiências de vida, experiências
que "naturalmente" e universalmente produzem certos tipos de sentimentos. Para
entender as emoções do outro, portanto, exige que o etnógrafo tenha compartilhado as
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experiências básicas de vida que evocam esses sentimentos (como a morte do filho ou
uma ameaça constante à vida de alguém). Nessa perspectiva, compreender
adequadamente a vida emocional dos outros é impossível por meios cognitivos; a
descrição verbal ou "meras palavras" não podem dar acesso à essência da emoção, à
qual só se admite a experiência pessoal vivida. Essa visão baseia-se nas noções de senso
comum de que a emoção é inefável e que a compreensão exige "andar no lugar da outra
pessoa". O senso talvez incomum que isso promove é que a juventude do etnógrafo
típico é uma desvantagem na investigação cultural cruzada da emoção, na medida em
que a pouca experiência de vida faz com que ele não possua preparo suficiente para
entender algumas coisas sobre as emoções daqueles que busca estudar.
Universais de linguagem
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que os falantes de inglês rotineiramente usam para pensar em "raiva" como, por
exemplo, fluido quente em um recipiente (fervura, vapor, estouro etc.), os autores
traçam formas culturais de pensar (e, argumentamos, experimentando) "raiva" que tem
implicações comportamentais significativas. Além disso, essa visão do senso comum de
raiva pode ser vista como um exemplo da "metáfora hidráulica" que influenciou
gerações de teorias acadêmicas da emoção (SOLOMON, 1976).
Essa abordagem cognitiva e a visão ideológica das emoções analisam a
compreensão emocional como pertencente a situações sociais. Quando os cognitivistas
falam de "sequências de eventos prototípicos" (QUINN; HOLLAD, 1987), a abordagem
mais interpretativa vê "cenários" culturais de ação situada (ROSALDO, 1984;
SCHIEFFELIN, 1976, 1983). Essas abordagens diferem amplamente na ênfase dada aos
processos conceituais, em oposição aos processos sociais e interativos, na formação do
significado emocional. Em ambos os casos, no entanto, os atores entendem as emoções
como mediadoras da ação social: elas surgem em situações sociais e carregam
implicações para pensamentos e ações futuros. Entendimentos emocionais, portanto,
não são vistos como formulações abstratas e simbólicas "pensar em sentir" tanto quanto
pensamentos que estão necessariamente ligados a situações sociais e objetivos valiosos
que lhes dão força moral e direção.
Em um nível mais global, podem ser levantadas questões sobre o papel geral dos
conceitos de emoção no raciocínio e no raciocínio etnopsicológico. Como a noção
cultural de sentimento ou emoção figura em entendimentos sobre percepção, intenção,
motivação, comportamento intencional e outros afins? As respostas a essas perguntas
provavelmente se referem às maneiras pelas quais a compreensão emocional cria
restrições e contexto para a ação social. Por exemplo, no "modelo popular da mente"
americano (D’ANDRADE, 1987), os sentimentos vinculam percepções e crenças com
desejos e intenções em uma cadeia causal de raciocínio aplicada de maneira muito geral
no ordenamento da experiência social. Também podemos perguntar sobre as fontes
socioculturais de variação etnopsicológica, perguntando, por exemplo, por que a
observação de Ochs (1986) que em Samoa "não parece haver muita conversa sobre
sentimentos como origens de comportamento" parece interessante para observadores
ocidentais. Em muitas sociedades, um elo crítico nas interpretações culturais da ação
implica que os conceitos de emoção provavelmente sejam usados ativamente na
negociação da realidade social. Taussig (1984) descreve uma das formas mais
perniciosas que isso implica ao demonstrar como as formas históricas e contemporâneas
de tortura prosperar em uma "cultura de terror", ou uma matriz emocional e ideológica
em que a vítima é tanto experiente e continuamente recriada no discurso como um
aterrorizante e co ser intocável. A atenção à retórica e discurso emocionais, então, deve
ser um foco frutífero para investigações etnográficas da vida social como um processo
ativo e criativo (BAILEY, 1983; BESNIER, 1987; BRENNEIS, 1987; LARCOM,
1980; LUTZ, 1987a; OCHS, 1986; WATSON-GEGEO; GEGEO, 1987; WHITE,
1987).
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Datada pelo menos do estudo clássico de Darwin (1872), a emoção tem sido
estudada com base em comportamentos e exibições que são essencialmente
comunicativos por natureza, mesmo que suas funções semióticas e contextos geralmente
não sejam analisados. Onde a comunicação emocional tem sido estudada, isto tem sido
principalmente sob a rubrica da comunicação não verbal (BIRDWHISTELL, 1970;
EIBL-EIBESFELDT, 1980; EKMAN, 1980a, 1980b, 1984), uma ênfase que está
alinhada com a associação tradicional de emoções com o corpo. Estudos sobre a
comunicação verbal da emoção só recentemente começaram a surgir (IRVINE, 1982).
Aqueles que lidaram sistematicamente com a emoção e a linguagem se enquadram em
duas áreas gerais:
1. Análise semântica, geralmente lexical, e
2. Estudos sobre a comunicação da emoção em situações sociais.
Dada à medida que palavras de emoção inglesas têm sido usadas para pesquisa,
é um tanto surpreendente que elas não tenham recebido mais atenção como objetos de
pesquisa. O trabalho de Davitz (1969) e Averill (1982) são os estudos descritivos mais
abrangentes sobre as intuições dos falantes de inglês sobre o significado emocional,
baseados amplamente em dados formalmente elicitados e de entrevistas (ver também
SABINI, 1982). O trabalho de Wallace; Carson (1973) foi o primeiro a examinar as
palavras cognatas de emoção em inglês, mostrando considerável variação no conteúdo e
na estrutura dos vocabulários de leigos e psiquiatras, incluindo diferenças que afetam as
avaliações clínicas.
Estudos interculturais de palavras de emoção estão mais preocupados com
problemas de tradução e concentraram-se em apenas alguns termos-chave (GERTEZ,
1959; LEVY, 1973; POOLE, 1985; ROSALDO, 1980) ou inventariando todo o domínio
da emoção (BOUCHER, 1979; BRIGGS, 1970; GERBER, 1975; MYERS, 1979). Para
Rosaldo (1980), que faz da emoção um foco importante para sua etnografia da vida
social dos ilongóes, a tarefa de interpretar o termo ligamento ("raiva") é virtualmente
indistinguível da própria etnografia, exigindo um mapeamento de usos múltiplos em
uma variedade de contextos sociais. Em contraste, alguns que adotam uma visão de todo
o domínio das palavras de emoção examinam relações de contraste e similaridade entre
um conjunto de palavras salientes (GERBER, 1975; 106).
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LeVINE, 1982; LEVY, 1973, 1978, 1984), como quando Briggs (1982) examina o
papel da contradição e do conflito na socialização emocional e de valor.
Os antropólogos analisaram como as etnopsicologias delineiam os estágios de
desenvolvimento emocional e moldam os tipos considerados apropriados de
comportamento emocional para e da criança em diferentes idades (HARKNESS;
SUPER, 1983, 1985; cf. LEWIS; SAAMI, 1985; para exemplos específicos ver
BRIGGS, 1970; DENTAN, 1978; HARRIS, 1978; KEELER, 1983; KIRKPATRICK,
1985; POOLE, 1985; ROSALDO, 1980). Também foi examinado o significado
emocional das crianças em geral e especificamente da adoção (45, 53, 59, 169); os
valores e objetivos culturais nos quais a aquisição de significado emocional é integrada,
como gentileza interpessoal (BRIGGS, 1982; LUTZ, 1983; MONTAGU, 1978),
autoproteção (MILLER; SPERRY, 1987) ou submissão (GERBER, 1975); o
desenvolvimento na criança de entendimentos culturais particulares dos conceitos de
emoção, e particularmente das situações em que uma emoção é apropriadamente
encenada (LUTZ, 1985a; OCHS, 1984); e o uso de rituais de ciclo de vida para criar
conceitos de self e emoção (HARRIS, 1978; HERDT, 1982).
Esta pesquisa fez uma série de perguntas sobre atitudes culturais em relação à
mudança de estado em si. Alguma coisa como emoção existe como um conceito
organizador para atender crianças? Em caso afirmativo, isso é visto como algo que
deveria ser auto-regulado ou gerenciado por outros? Deve ser explicitamente
endereçado ou ignorado? É algo que se torna mais ou menos proeminente com a
maturidade? Os sistemas descritos variam entre as famílias "pró-naturais" da Califórnia,
que acreditam em promover tanto a expressividade emocional quanto a autorregulação
emocional pelo bebê e pela criança (WEISNER; BAUSANO; KORNFEIN, 1983), aos
Kipsigis do Quênia, que combinam a noção de que os outros deveriam administrar o
estado do bebê com desatenção à mudança de estado na criança mais velha
(HARKNESS; SUPER, 1983), aos Semai da Malásia, que definem todas as emoções
resposta como perigosa ou temível (ROBARCHEK, 1979b). Em cada caso, os estudos
etnopsicológicos demonstram que as visões culturais da emoção e as visões culturais da
criança se sobrepõem de maneiras cruciais, dando significado e motivação às relações
entre crianças e adultos.
Finalmente, as abordagens linguísticas para a socialização da emoção
examinaram as maneiras pelas quais as crianças adquirem habilidades culturais para
comunicar seus estados emocionais a outros (HARKNESS; SUPER, 1983; MILLER;
SPERRY, 1987; OCHS, 1984, 1986; SCHIEFFELIN, 1979, 1986). O foco
metodológico está nos atos de fala que ocorrem nos contextos em que as crianças estão
envolvidas, e mais geralmente nas expressões não-verbais, paralinguísticas e verbais
cuja aquisição pela criança é vista como crucial para o desenvolvimento emocional.
Várias análises linguísticas analisaram a aquisição de pistas de contextualização pela
criança, que indicam quão seriamente uma exposição emocional devem ser tomadas
(MILLER; SPERRY, 1987), incluindo declarações diretas, construções gramaticais
ligadas à emoção, gestos, rostos, posição social do falante e o escopo do público que
visualiza o visor (OCHS, 1984).
Embora a pesquisa sobre a relação entre sociedade, cultura e desenvolvimento
emocional tenha geralmente ultrapassado o foco no indivíduo isolado (HARKNESS;
SUPER, 1983), o enfoque predominante (particularmente nas tradições behaviorista e
linguística) permanece na díade mãe-filho, um enfoque que em alguns casos, podem
refletir pressupostos normativos implícitos sobre a fonte putativa de emocionalidade no
doméstico e no feminino. Mais promissora tem sido uma expansão na gama de
contextos de aprendizagem vistos como relevantes para a aquisição de um perfil
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Conclusão
No início desta revisão, delineamos uma série de oposições (material / ideal,
individual / social etc.) que fundamentam as definições populares e acadêmicas de
emoção. O alinhamento da emoção com um lado dessas oposições dicotômicas tem
consistentemente moldado e, argumentamos, estreitou teorias da emoção e da vida
social. A visão da emoção que dá primazia às experiências corporais internas tem
prevalecido na maioria das teorias psicológicas, em parte porque é solidamente
consistente com nossos conceitos altamente individualizados de pessoa e motivação. O
resultado, no entanto, tem sido uma relativa negligência dos aspectos fenomenológicos
e comunicativos da emoção nas investigações das ciências sociais. Sugerimos que
várias das abordagens descritas acima, que focalizam explicitamente as formulações
culturais da emoção no contexto social, contêm as sementes de uma reconceituação
básica que dará ênfase renovada às dimensões pública, social e cognitiva da experiência
emocional. Embora essa ênfase pareça um corretivo necessário para a identificação
tradicional de emoções com o irracional, tentativas de definir e explicar emoção apenas
em termos do mercado público de idéias arrisca seu próprio empobrecimento, a menos
que possam ser forjadas ligações entre os mundos frequentemente dicotomizados do
racional e irracional, público e privado, e individual e social.
As oposições afeto / cognição e personalidade / cultura são centrais para o nosso
/ cognição e personalidade / cultura são centrais para os nossos modos de pensar.
Entretanto, a visão de que a experiência afetiva e a força motivacional são analíticas e /
ou ontologicamente distintas da cognição está sendo questionada com base em
pesquisas etnopsicológicas mostrando que os esquemas culturais têm muitos das
qualidades diretivas e moralmente persuasivas antes associadas principalmente ao afeto
(D’ANDRADE, 1984). Desafiando divisões teóricas que dividem o cultural e ideacional
do individual e afetivo, M. Rosaldo (1984) argumenta que as emoções não são coisas
opostas ao pensamento, são como "pensamentos incorporados, pensamentos vazados
com a apreensão de que 'eu estou envolvido'". Uma análise das bases culturais para
nosso contraste familiar de "pensamento" e "sentimento" (BERLIN; KAY, 1967) mostra
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como uma ampla gama de oposições, tais como energia da informação, racional-
irracional, controle-descontrolado, cultura natureza, verdade / valor e apoio masculino /
feminino e sustentam essa visão, mesmo que ela se mostre inadequada para a explicação
da experiência humana como vivida. O ponto dessas críticas é que a desconstrução de
noções familiares podem nos levar a insights significativos sobre a visão humana.
maneiras pelas quais as idéias são infundidas com valor, afeto e direção, assim como os
sentimentos são usados para entender e comunicar sobre eventos sociais.A empresa,
sugerimos, é eminentemente cultural e comparativa.
Como conclusão final, notamos duas contribuições que o estudo comparativo
das emoções pode fazer à etnografia de maneira mais geral. Primeiramente, pode ajudar
no desenvolvimento da abordagem interpretativa da cultura, dando nova relevância
metodológica à resposta emocional do etnógrafo ao trabalho de campo. Isso envolveria
realizar a divisão do produto cognitivo de trabalho de campo (a etnografia) a partir de
seu produto emocional (o diário, relato de trabalho de campo "pessoal" e talvez poesia),
como Briggs (1970) fez de maneira inovadora ao criar problemas na interação
emocional entre etnógrafo e hospedeiro no centro de investigação e o caminho para a
compreensão cultural. Embora esta ponte tenha sido realizada em graus variados por
algumas monografias recentes (CRAPANZANO, 1980b; DUMONT, 1978; DWYER,
1982; RABINOW, 1977; RIESMAN, 1977; ROSALDO, 1980) e artigos (KRACKE,
1981; ROSALDO, 1984), pode haver uma tentativa mais geral e sistemática de
examinar as ansiedades do observador que Devereux (1967) vê como os "dados básicos
e característicos da ciência comportamental [e como] mais válidos e mais produtivos do
insight do que qualquer outro tipo de dado" (DEVEREUX, 1967, p. XVII). Seria
importante explorar
a. Essas ansiedades como sinais de distorção do observador em potencial
(DEVEREUX, 1967);
b. As técnicas de distanciamento envolvidas na metodologia (DEVEREUX,
1967) e na literatura metodológica (como a noção de "criação de
rapport");
c. Os pressupostos pessoais e culturais do etnógrafo sobre o self e a
emoção, e
d. As características especiais das relações sociais do antropólogo (tanto no
campo quanto em casa), incluindo coisas como a sua impermanência; as
possibilidades de perda, perigo e alienação que elas apresentam; e suas
desigualdades de poder e competência social.
A interpretação emocional culturalmente auxiliada dessas condições é crucial para a
maneira como a descrição etnográfica procede, fazendo com que este e os outros
aspectos do relacionamento de campo sejam entradas importantes para uma melhor
compreensão intercultural.
Segundo, uma das promessas do novo interesse pela emoção é que ela pode
reanimar a imagem, às vezes robótica, dos seres humanos que a ciência social produziu.
O tomador de decisões agrícolas raramente é visto como sofrendo pela escolha entre
alternativas, às vezes terríveis; o sistema de saúde de uma sociedade é frequentemente
apresentado como se fosse povoado por atores, em vez de membros da família
confrontando a morte possível um do outro.
Incorporar emoção à etnografia implicará apresentar uma visão mais completa
do que está em jogo para as pessoas na vida cotidiana. Ao reintroduzir a dor e o prazer
em todas as suas formas complexas em nossa imagem da vida cotidiana das pessoas em
outras sociedades, poderíamos humanizar ainda mais essas outras para o público
ocidental. Essa audiência encontra a emoção no núcleo do ser por razões culturais e
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Agradecimentos
Gostaríamos de agradecer a Lila Abu-Lughod, Jane Collins, Sara Harkness, Fred Myers, Melford Spiro e Vincas
Steponaitis pelos comentários e discussões que contribuíram muito para esta revisão. A ajuda bibliográfica e de
digitação de Nancy Chabot e Gloria Gaumer também foram muito apreciadas.
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1
Nota do tradutor: Publicado em 1988 sob o título, Unnatural Emotions: Everyday sentiments on a
Micronesian Atoll and their challenge to western theory. Chicago: University of Chicago Press.
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2
Nota do tradutor: Publicado a seguir com a referência: MILLER, P.; SPERRY L. 1987. The
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3
Nota do tradutor: A coletânea foi publicada em 1990, com pequena mudança no subtítulo: WATSON-
GEGEO, K. A.; WHITE, G. M. eds. 1990. Disentangling: Conflict Discourse in Pacific Societies.
Stanford, CA: Stanford University Press, 520 pp.
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KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro.
Emoções e fotografia – enleio sobre uma
fotografia anônima de caixões populares para
enterros de crianças. Sociabilidades Urbanas,
Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n.
13, pp. 117-124, março de 2021, ISSN 2526-
4702.
ARTIGO
https://grem-grei.org/numero-atual-socurbs/
1
Professor Voluntário do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da
Paraíba. Coordenador do Grem-Grei.
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∗
A realidade da imagem na foto, por outro lado, - caixões infantis populares em
exposição, - remete para um espaço-tempo específico, ou especificamente fotográfico.
Ao ato fotográfico propriamente dito: isto é, a um momento e a um lugar “que foi”,
como diria Barthes (1980), que existiu, gênese da revelação que esta foto transmite.
A revelação, sempre uma ação posterior no processo fotográfico, recria sempre
outro(s) espaço(s) e tempo(s) em quem a vê. Implica muitas vezes em um retorno ao
passado, para um tempo e para um espaço que já não existem, palco da memória do
autor no momento de sua composição. Arena, também, de uma memória social presa,
ou melhor, prisioneira da representação fotográfica, fixa no que a foto revela.
Se esse plano de indeterminação justifica a originalidade fotográfica, ele
também a torna única. Singular a cada ato, impossível de repetição, enclausurada em um
instante perdido entre o objeto fotografado e seu autor, no momento de apertar o gatilho
e aprisionar a imagem na câmera, leva, também, a reflexões da própria indeterminação
enquanto fetiche (FREUD, 1974). Resultado de uma intemporalidade transmitida pela
foto a cada olhar que revela um tempo e um espaço que não mais existem, porém,
estando presente a todos que a vêem.
A exposição de caixões infantis em uma casa funerária popular cria expectativas
a cada olhar a partir da própria intemporalidade e da indeterminação da imagem
fotográfica. Funciona como objeto parcial (KLEIN, 1991), que provoca a interrupção do
olhar preenchendo campos de interjeição e questionamentos até então não enfrentados
pelo espectador e que, apresentados pela fotografia que se observa, torna-se seu
substituto, enfraquecendo a ação analítica, tornando-se ilusão, ahistórica.
Ilusão reforçada, se seguirmos o raciocínio encontrado em Metz (1989), pela
força do silêncio e da imobilidade da imagem fotográfica. A fotografia, assim,
simbólicamente, se liga à morte, àquilo que já não é (mais), funcionando como
substituto do objeto-passado. Interrompendo e eternizando, ao mesmo tempo, a sua
história, agora objeto-memória, seu duplo, objeto de evocação, de recordação e até
mesmo, quem sabe, de crença ou de possíveis estórias criadas do que já não mais existe.
A experiência da foto, assim, se diferencia da do objeto fotografado. E esse
distanciamento, se de um lado processa caminhos paralelos entre a foto e o objeto que
se deixou fotografar, por outro lado, com a revelação tem-se prisioneira uma partícula
ou fragmento de tempo e de espaço no momento do ato fotográfico, que faz daquela
foto específica uma evocação daquele passado que já não mais é, estando presente,
porém, corporificado, na imagem revelada.
Nesse sentido, fazendo talvez uma comparação absurda entre a fotografia e o
mito de Kolossós na cultura grega (VERNANT, 1990, pp. 306-307), como substituto do
ausente, ambos, não visariam reproduzir os traços, ou assumir as características físicas
do que se foi, tem a característica sim de um duplo, como o próprio morto é um duplo
do vivo.
Através de Kolossós, ou da fotografia, o objeto revelado sobe à luz do dia e
manifesta aos olhos dos vivos (ou observadores) a sua insólita e ambígua presença
porque, também, e principalmente, sinal de ausência.
A fotografia como duplo, desse modo, trás em si o efeito de enganar, de
decepcionar, de engodo: é a presença do objeto revelado, mas, também, é a sua ausência
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∗∗
Rudimentares caixões infantis enfileiram-se em exposição, em um canto de
parede qualquer. A foto agride o observador, primeiramente, por sua singeleza: caixões
baratos, adornos de material reciclado, grosseiras estamparias florais, remete ao
artesanal do fabrico, pondo beleza na humildade dos objetos expostos. Fragiliza o
espectador, porém, ao retirar de cena a tragédia da expansão do comércio fúnebre
infantil entre os pobres, para repô-la enquanto beleza, enquanto uma estética da pobreza
e um inventário de materiais reunidos e reciclados para o fabrico dos caixões de anjo.
A agressão também, em segundo lugar, decorre como reconhecimento. Ao olhar
a fotografia tem-se a certeza de tratar-se de um comércio pobre, de um artesanato pobre
feito para pobres (interioranos ou das periferias de centros urbanos maiores). O
enquadramento da foto permite, assim, o imediato enquadramento da memória.
A ofensiva passada pela imagem, pela singeleza, pelo inventário que ela permite,
compõe assim uma ação de comprovação. A foto assegura a identificação, ou dá a
conhecer o objeto. O credibiliza na emoção da imagem tirada, que não é dali, que não se
encontra ali em sua solidão plena de realidade passada, mas que representa ou evoca, na
sua revelação, valores sociais e estéticos que tocam o observador no presente.
Idéias e associações recorrem na reflexão. Uma nebulosa composta por produtos
de experiências individuais ou coletivas do olhar que observa a exposição dos caixões
de anjo alinhados.
Emociona o conhecer e o reconhecer. O estar ali ao alcance dos olhos e tão
longe, espacial e temporalmente. A emoção é encantada porque concentrada nos valores
que a foto transmite, e que chegam até o observador na sua distância necessária,
transformando o trágico cotidiano em singelo e atemporal exercício de estética.
A solidão e a dor incrustadas nos limites da fotografia não perpassam ou
transcorre a emoção do observador atento da imagem revelada. O apontar fotográfico
documenta apenas o vazio dos objetos, cenário de exposição de mercadorias mortuárias
para uma determinada faixa etária, e uma também determinada faixa econômica.
O espaço de recorrência aberto na memória do observador convida à travessia da
imaginação, pelas identificações evocadas na revelação, que possibilitam a ação do
pensamento, que comportam o pensar. Podem levar, também, ao abandono do olhar a
fotografia, pelo aspecto de banalidade que ela mostra.
No segundo caso, o observador enquadra o seu pensamento na representação
fotográfica, e segue o seu caminho. No primeiro caso, porém, o olhar ao reconhecer
percorre criteriosamente as identificações na revelação, aprofundando-se na imaginação.
A experiência do olhar do observador recolhe na foto material para o trabalho da
imaginação. Sempre pessoal e social tal trabalho conota expressões culturais que
objetivam relacionar a imagem revelada há um tempo-espaço específico, ou
especificamente humano.
O vazio assim é recomposto como representação social, através de tensões
relacionadas à emoção do olhar em exercício de viagem pela imaginação. Da fixidez da
imagem fotográfica passa para as imagens em ebulição vindas no processo do repensar
(KOURY, 2010).
O repensar, assim, é um processo do depois, como ensina Arendt (1993). É uma
ação que acontece sempre após o reconhecimento pela experiência do sujeito.
Eminentemente social, o tempo da fotografia passa a ser, nessa viagem, o tempo da
imaginação nela recapitulada.
É uma viagem livre, porque absorvida na evocação no presente de imagens que
não são dali, mas estão ali expostas, reveladas aos olhos que as observam. Na liberdade
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∗∗∗
A recordação dos fatos conotados através da evocação da imagem e do desvario
que o olhar viajante atravessa nos subterrâneos da memória, se aproxima do delírio de
Kolossós de olhos vazios. Achega-se à tensão daquele que caminha como adivinho
cego, intérprete e intermediário do visível e do invisível, do jogo de vida e morte que a
revelação conduz.
Os caixões de anjo expostos em ordem em um canto qualquer de uma casa
comercial interiorana ou de periferia, revelados em uma foto anônima, são observados
pelo olhar em viagem por espaços de melancolia e tristeza. O processo compreensivo
em sua alucinação ultrapassa a temporalidade eminentemente fotográfica. Afirma o
tempo como invenção humana, como elemento simbólico objetivado e construído no
processo interativo onde se formam e se acumulam as experiências sociais, culturais e
pessoais (de onde o próprio ato fotográfico advém).
A singeleza da foto na sua intemporalidade é recomposta pela dor que margeia,
que tensiona a moldura onde se intercoloca a questão dos limites que a foto precisa. O
fora de cena ganha a cena na viagem do olhar (KOURY, 2002).
A tragédia social dos mortos pela fome e miséria de cada dia, dos que não
chegam a sobreviver, invadem o que a foto revela. O invisível em cena atravessa as
lembranças assaltando a foto com o humano negligenciado. Revela a revelação.
∗∗∗∗
A viagem do olhar ensandecido pelas portas da imaginação, ao recuperar a dor e
com ela preencher a imagem trazida à luz pela foto, ao lidar com os invisíveis, com as
representações de elementos que estão ausentes, por estarem envoltos nas experiências
particulares e sociais do observador, ao transitar livremente entre a cena e o fora de
cena, recupera o sofrimento do rememorar. Repõe no percurso a cisão do pensamento
com o diálogo de si para consigo e, desse modo, enfrenta a dissensão. Enfrentamento
esse necessário para o processo de criação, e para a formação de uma consciência ética.
Pode ensejar, também, outra relação nesse processo compreensivo. Os olhos do
observador em viagem podem encaminhar-se para o lugar em que todo olhar se vê
denegado, - distância entre os limites verificados da castração e do lugar ao lado, campo
da ilusão, do fetiche. Então, como o adivinho da Grécia antiga, à noite tendo tomado
conta dos seus olhos, solicite pela evocação do ausente interrelacionar o visível e o
invisível, provocando a ruptura tênue da natural composição dos dois tempos (ou
mundos): o da fotografia e o dos homens que preenchem com sua dor o campo de fora.
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∗∗∗∗∗
De qualquer lugar em que se estabeleça ou se finde a viagem da imaginação do
observador, o olhar não sai impune. A foto que expõe caixões infantis no comércio
mortuário para a pobreza codifica, através da constância perceptiva imposta pela
imagem revelada, a solidão do homem comum em luta contra a morte física e social de
cada dia.
Recompõe experiências sociais. Vivências que em sua banalidade cruel
naturaliza a fome, a miséria, a mortandade infantil, a pobreza. Recupera os homens
como engendradores de cada experiência social e pessoal, por mais elementar que
pareça.
Reavalia, por fim, que o invisível fotográfico, a sua intemporalidade, embora
possa ditar normas para o olhar que observa, enquadrando suas lembranças, suas
saudades, seus momentos, em processos integrativos de assimilação do ausente, impõe
sempre ao observador as águas turvas do rio da imaginação. Nebulosas nas quais tudo é
possível porque dessacralizado.
Pode-se chegar até a descrever a foto que expõe caixões infantis à venda, como
uma fotografia que compõe uma ilusão a mais. Ilusão esta que ofusca e embaça o olhar
de quem a vê: oferecendo a quimera de que a pobreza no Brasil enterra seus mortos em
caixões.
Aliena do mesmo modo o observador ao fazê-lo acreditar que o comércio
fúnebre é um comércio em expansão entre os homens comuns. Ofuscando, assim, uma
triste realidade: a de que a faixa de pobreza com recursos para enterrar seus mortos nos
padrões ritualísticos aceitos pela ordem civilizatória que circunscreve em redes a cultura
da pobreza, é mínima.
As famílias pobres enterram os seus anjos com um pano qualquer, quando
possuem... No mais, com uma cruz feita com paus achados na estrada e rezas de uma
tristeza alegre pela sorte de não seguir a destinação que outros tantos estão tendo de
suportar (SCHEPER-HUGHES, 1992).
Mas essa já é outra história, ou outro causo ou estórias de solidão e
insuportabilidade entre os excluídos no Brasil.
Ah mi si spezza il cor !
(Mozart, Ária k513)
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VIEIRA, Vanrochris Helbert. Aniversário do
Bharbixas no Mineirão: experiência, futebol
gay, mercado e direito à cidade.
Sociabilidades Urbanas, Revista de
Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, pp. 125-
136, março de 2021, ISSN 2526-4702.
ARTIGO
https://grem-grei.org/numero-atual-socurbs/
Resumo: O Bharbixas é a primeira equipe de futebol masculino composta apenas por gays
e homens bissexuais em Minas Gerais. Em 2018, o time comemorou seu primeiro
aniversário no Mineirão, principal estádio esportivo do estado. Este artigo apresenta uma
etnografia realizada no evento, a partir do acompanhamento de Ângelo, um jogador gay de
Belo Horizonte. Buscamos refletir a respeito do tipo de experiência possibilitada pelo
evento, o que algumas falas de Ângelo permitem pensar sobre o futebol gay, como o evento
se inseriu numa lógica de mercado e o que essa ocupação do Mineirão por um time gay
aponta sobre a temática do direito à cidade. O evento foi restrito a um público pagante,
numa lógica mais mercadológica do que democrática, mas revela uma grande potência para
reconfigurações de subjetividades e direitos de pessoas LGBTQIAP+. Palavras-chave:
futebol gay, Belo Horizonte, direito à cidade
Abstract: Bharbixas is the first men's soccer team composed exclusively of gays and
bisexual men in Minas Gerais. In 2018, the team celebrated its first anniversary at
Mineirão, the state's premier sports stadium. This article presents an ethnography held at
the event, from the accompaniment of Ângelo, a gay player from Belo Horizonte. We
sought to reflect on the type of experience made possible by the event, how some speeches
from Ângelo allow us to think about gay football, how the event was inserted in market
logic and what this occupation of Mineirão by a gay team points to the theme of the right to
the city. The event was restricted to a paying audience, in a more market-oriented than
democratic logic, but reveals a great power for reconfigurations of subjectivities and rights
of LGBTQIAP+ people. Keywords: gay soccer, Belo Horizonte, right to the city
Introdução
No dia 09 de junho de 2018, um sábado, o time de futebol Bharbixas
comemorou seu aniversário de um ano no estádio Mineirão, em Belo Horizonte. O
Bharbixas é primeira equipe masculina composta exclusivamente por gays e bissexuais
em Minas Gerais, de forma que o evento também demarcou o primeiro ano de
existência do “futebol gay” no estado. A grandiosidade do evento, ocupando a principal
arena do esporte em Minas Gerais, evidencia a rápida ascensão desse novo circuito do
esporte no país.
∗
Doutorando no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade
Federal de Santa Catarina (Ppgich/Ufsc).
126
Experiência
O aniversário do Bharbixas no Mineirão representa uma importante ocupação da
cidade, na medida em que ocorreu no principal estádio de futebol da capital mineira,
espaço de destaque e elevado poder simbólico no contexto belorizontino. Entretanto, a
estrutura do Mineirão isola seu interior do restante da cidade, criando uma redoma de
proteção e um mundo paralelo. Que tipo de experiência da cidade é possível em um
evento como esse?
Georg Simmel (2005) e Walter Benjamin (1989) nos apresentam caracterizações
de experiências distintas, se não contrárias, nas grandes cidades: a do blasé e a do
flâneur. Georg Simmel (2005) caracteriza o morador das grandes cidades como alguém
que é constantemente bombardeado por uma diversidade de estímulos. Por não
conseguir dar respostas adequadas a todos eles, o habitante das grandes cidades adquire
um caráter blasé, que faz com ele se volte para seu mundo interior. Belo Horizonte é
uma cidade com 2,5 milhões de habitantes. A população da região metropolitana chega
a 5,9 milhões. Uma das experiências mais características da vida belorizontina é andar
pela Praça Sete, no Centro da cidade, em meio a uma multidão de pessoas que vêm de
todos os lados (o local é cruzamento de quatro vias, sendo duas delas avenidas que
cortam a cidade do Centro até uma de suas extremidades). A Praça é um espaço de
múltiplos estímulos. São vendedores ambulantes, pedestres de todos os estilos, carros,
ônibus. Mas quem passa pelo local diariamente flui por ali como se quase nada estivesse
acontecendo, o que representa bem que os belorizontinos apresentam o que Georg
Simmel (2005) aponta como o caráter blasé.
Walter Benjamin (1989), por outro lado, traz a figura baudelairiana do flâneur.
Esse curioso sujeito vivencia a grande cidade de forma diferente de sua lógica de
produtividade. O flâneur se permite ser afetado pelos estímulos da grande cidade,
1
Os nomes de jogadores presentes no texto são pseudônimos utilizados com o intuito de resguardar suas
identidades.
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estranhando-a, observando-a a seu próprio tempo. Ele deixa-se vagar devagar e divagar.
O flâneur lembra a figura do antropólogo: alguém que para, a fim de prestar atenção nos
mínimos detalhes e nas coisas aparentemente sem importância. No contexto protegido e
apartado do estádio, por se voltar para fora da cidade (mesmo estando dentro dela), os
sujeitos presentes no aniversário do Bharbixas estavam protegidos dos demais impulsos
da capital mineira. Ademais, o evento em questão configurou-se como um grande
acontecimento, algo que, portanto, convoca a atenção.
O número de pessoas também foi mais restrito nessa experiência, e as pessoas
pertenciam a uma mesma comunidade. Entretanto, ainda assim, o tempo era pouco para
interagir com todas elas, e o contato se dava com todas ao mesmo tempo. Walter
Benjamin (1989) e Georg Simmel (2005) apontam para a centralidade do tema da
multidão para o entendimento das grandes cidades. Georg Simmel (2005) argumenta
que, se o habitante da cidade grande buscasse ao menos cumprimentar todas as pessoas
que estão ao seu redor durante o dia, ele sequer conseguiria. Esse fator combinado à
desconfiança que as pessoas têm umas em relação às outras nesse ambiente faz com
que, como nos lembra o autor, muitas vezes sequer conheçamos nossos vizinhos. A
pequena multidão que havia no estádio era segura, controlada, de pessoas de uma
mesma comunidade, o que diminuía a insegurança do convívio.
De fato, o aniversário do Bharbixas foi um momento de suspensão. O universo
que existia ali era controlado não só pela presença de um público quase exclusivamente
LGBTQIAP+2, mas também pelo acesso restrito pela compra de ingressos e ainda pela
segurança, tendo em vista que todos haviam sido revistados na entrada. Ali, aqueles
sujeitos podiam ser eles mesmos de uma maneira mais intensa do que a que acontece do
lado de fora. O fato de estarem entregues ao momento, sem a correria cotidiana,
permitiu uma sociabilidade mais calma. Naquele espaço, além de olhar para seu redor
com mais tranquilidade, os sujeitos podiam também olhar com mais calma para si
mesmos, à medida que viam a si mesmos nos outros.
Talvez resida aí um dos traços mais importantes de uma sociabilidade suspensa
e segura da cidade por meio não apenas de um único indivíduo, mas de um grupo
historicamente marginalizado. Os que foram apenas para os shows após o jogo, talvez
tenham experienciado algo similar à vivência das baladas, mas os que foram para o
jogo, puderam ver-se e ver aos outros como gays que gostam de futebol e que tem o
direito de ocuparem aquele espaço.
Futebol Gay
Para Gustavo Bandeira e Fernando Seffner (2013), os estádios de futebol – como
o Mineirão – são espaços de sociabilidade muito ligados à construção das
masculinidades em nosso país:
O estádio de futebol é um contexto cultural específico que
institucionaliza práticas, ensina, produz e representa masculinidades.
Os modos de construção das masculinidades no Brasil guardam íntima
conexão com o futebol (BANDEIRA; SEFFNER, 2013, p. 247).
Os autores ressaltam que a masculinidade ligada a esse esporte é machista e
homofóbica, havendo uma naturalização da homofobia, não sendo ela vista como
violenta nesses ambientes.
2
Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, queers, intersexuais, assexuais,
pansexuais e demais identidades e expressões não cisheteronormativas.
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3
Ângelo é historiador, e conhece bem termos ligados aos estudos de gênero, inclusive fazendo referência
a Judith Butler em algumas de suas falas.
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Ângelo diz que o padrão cobrado dos membros do Bharbixas é serem “mega viados”.
Ele acredita que os membros fazem questão disso, porém, para ele, algumas coisas mais
reforçam os preconceitos do que ajudam a combatê-los, como as poses para fotos
“virando a bunda” para a câmera, que ele considera vulgar. Ângelo afirmou que existem
normas que policiam como os gays devem ser. Ele diz que não sabia quem era RuPaul4
quando estava no Bharbixas, e achavam que ele tinha que de saber por ser gay. Uma
vez, fizeram um “teste” para ver se ele era gay, perguntando sobre Kim Kardashian5,
que ele também não conhecia. Ele disse que também foge desse padrão esperado por
não gostar de Anitta6. Uma vez pediu que fossem tocadas outros tipos de música
durante uma competição, ainda que fosse uma do Ramones para cada dez, por exemplo,
e que o restante continuasse sendo no estilo das da Anitta. Segundo ele, disseram que
não, porque aquele era um lugar gay.
Flávio Amaral e Victor Bueno (2018) destacam que o clima das partidas de
futebol gay é ao mesmo tempo de competição, de festa e de luta contra o preconceito.
Eles explicam que os treinos costumam acontecer ao som de DJs, e que, nas
competições, os jogadores se dividem entre jogar bola e dar pinta, ou seja, performar
propositalmente uma expressão de gênero que enfatiza uma sexualidade queer. Para
Ângelo, no evento de aniversário dos Bharbixas, no Mineirão, o futebol era a última
preocupação. Ele contou que no flyer da Taça Hornet, a festa era muito mais destacada
do que o próprio campeonato. Segundo ele, nessa competição, por ter um caráter mais
lúdico, queriam colocar lip-sync7 no lugar de pênaltis, no desempate. Ele teve que
pesquisar no Google para entender o que era isso. Ângelo disse que, para ele, a maior
briga não é com os héteros, mas entre eles mesmos: “Provar pra gente mesmo que
futebol também é pra gay”. Com isso, ele apresenta uma visão mais estrita do futebol,
vendo-o essencialmente como um esporte competitivo, antes de qualquer outra coisa.
Segundo Ângelo, os membros do ManoTauros são muito torcedores dos times e
campeonatos profissionais, e os do Bharbixas não são. Ele acredita que, no Bharbixas,
os únicos que dão foco tanto no futebol quanto no “close” – o que Flávio Amaral e
Victor Bueno (2018) chamam de “dar pinta”– são o fundador do time e um membro que
já foi jogador profissional. Ângelo acredita que, na Primeira Champion LiGay
preferiram deixá-lo de fora em alguns jogos para colocar um jogador que tivesse mais o
perfil do “close”. Ele disse que identifica duas linhas de times, que por enquanto
conversam bem uma com as outra, mas que tenderiam a se distanciar: a dos times que
dão foco na festa e os que dão foco no futebol. Mas ele explicou que os times que dão
“close” também podem ser competitivos, como é o caso do Bharbixas. Portanto, a
oposição seria entre os que entendem que é só futebol e os que entendem que é “outra
coisa”.
Mercado
4
Drag queen estadunidense conhecida por apresentar o reality show RuPaul’s Drag Race, uma
competição para escolher a melhor drag entre as concorrentes.
5
Socialite estadunidense conhecida por estrelar um reality show que acompanha o dia a dia de sua
família, o Keeping Up with the Kardashians.
6
Ou pelo menos fugia ao padrão por esse motivo naquele momento, pois Anitta passou a ser desafeto de
parte do público gay a partir das eleições presidenciais de 2017, por seu baixo engajamento nas
campanhas contra o candidato Jair Bolsonaro, cobrado dela por essa parcela do seu público.
7
Mover os lábios enquanto uma música está tocando, fingindo que é quem está cantando. É uma parte
central da cultura drag. São as batalhas de lip-sync quem decidem as eliminações em RuPaul’s Drag
Race.
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8
Aretuza Lovi, que é drag queen, e Mulher Pepita, que é travesti, são duas cantoras com destaque
nacional no circuito LGBTQIAP+.
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Direito à cidade
Apesar de desenvolver sua discussão sobre o direito à cidade a partir de uma
ênfase nas questões de classe, Henry Lefebvre (2006) também aborda em seus
argumentos assimetrias de outras naturezas no direito à vida urbana. O autor nos leva a
pensar sobre como o acesso e o uso dos espaços, serviços e potencialidades da cidade é
restrito a alguns e excluem muitos outros. Ele ressalta que o direito à cidade inclui não
apenas as questões de subsistência básica, mas todos os âmbitos de necessidade
humana, incluindo lazer e diversão. De forma pertinente ao nosso objeto de pesquisa, o
autor fala sobre sexualidade e esporte nesse processo: “através dessas necessidades
especificadas vive e sobrevive um desejo fundamental, do qual o jogo, a sexualidade, os
atos corporais tais como o esporte, a atividade criadora, a arte e o conhecimento são
manifestações” (LEFEBVRE, 2006, p. 104, grifo do autor).
A visão de Henry Lefebvre (2006) é utópica. Ele incita a discussão sobre algo
que ainda não existe, sobre uma potência que, para ser concretizada, precisa que
caminhos sejam inventados. Quem, para o autor, tem essa capacidade em potencial são
os grupos oprimidos.
Apenas grupos, classes ou frações de classes sociais capazes de
iniciativas revolucionárias podem se encarregar das, e levar até a sua
plena realização, soluções para os problemas urbanos; com essas
forças sociais e políticas, a cidade renovada se tornará a obra. Trata-se
inicialmente de desfazer as estratégias e as ideologias dominantes na
sociedade atual. (LEFEBVRE, 2006, p. 111)
No dia do evento de aniversário do Bharbixas, vários elementos apontam para
uma apropriação específica, criativa e transformadora do Mineirão, que se destacava
justamente pelo seu caráter de exceção, de fuga à regra. Foram colocados, na entrada do
estádio, balões nas cores do arco-íris. Mais tarde, no período noturno, o estádio também
foi iluminado com essas cores. Havia um palco voltado para a arquibancada, na lateral
do campo, tocando músicas pop e funk durante o jogo comemorativo, com sucessos de
Anitta, Pabllo Vittar, Mc Loma, Lady Gaga, Beyoncé, etc. Boa parte dos que estavam
presentes durante o jogo estavam envolvidos na torcida e gritavam contra e a favor dos
lances. Um dos rapazes que estava próximo de mim disse para os colegas que estavam
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torcendo: “Aproveita que é hora de vocês gritarem no Mineirão igual bicha!”. Algumas
pessoas dançavam e cantavam as músicas que estavam tocando enquanto o jogo
acontecia. Durante uma falta, com o jogo parado, o goleiro também começou a dançar.
No intervalo do jogo, houve a apresentação de um grupo de cheerleaders. Alguns
rapazes usavam uniformes que me lembraram o das Cheerios, da série Glee9. A própria
presença de líderes de torcidas aponta um mashup de referências do futebol gay com a
cultura pop. Circulava pela arquibancada uma drag queen que acompanha o Bharbixas
em seus jogos. Um dos membros do ManoTauros que estava na plateia me disse que
aquilo era mais do que futebol, que era uma questão social.
Alguns membros do ManoTauros que estavam perto de mim discutiam a
respeito de um dos jogadores do Bharbixas, sobre ele estar usando ou não cueca. A
maioria achava que não, mas um deles defendia que o jogador estava usando uma cueca
pequena, “fio dental”, e tinha “a bunda grande mesmo”. O número de jogadores que
aparentavam ter tipo físico malhado e corpo construído esteticamente em academia era
expressivo (pareceu-me maior do que o habitual nos times profissionais). Muitos dos
jogadores do Bharbixas usavam shorts curtos. Os rapazes próximos a mim comentavam
sobre quais jogadores eram “gostosos”. Quando ocorreu uma falta, e um jogador ficou
caído, alguém gritou: “Eu faço massagem!”. Essa relação entre sexualidade e esporte
remonta às necessidades apontadas por Henry Lefebvre (2006), aqui se apresentando
como uma dupla negação que ganha potência nesse momento e nesse espaço
privilegiados do evento10.
O segundo tempo terminou empatado em 1 a 1, e houve prorrogação, com um
gol a favor do Bharbixas desempatando o placar. Depois do jogo, a arquibancada foi
aberta para que os torcedores descessem para o entorno do palco, onde o gramado era
sintético. Ali havia também um local para compra de cervejas. O enquadramento do
evento passou a ser de festa, show ou balada, e a maioria dançava e cantava as músicas
que estavam tocando. Havia casais se beijando e andado de mãos dadas. Beatriz Sarlo
(1994) acredita que as festas noturnas são uma forma de carnavalização da vi da das
juventudes urbanas. Nesse espaço, nas madrugadas, os jovens vestem-se para adentrar
em um mundo de festa suspenso em relação à realidade cotidiana. Em relação ao nosso
objeto, podemos pensar a festa como refúgio, escape, lugar protegido para poder
vivenciar a sexualidade reprimida.
Conclusão
Quando os shows começaram, Ângelo não estava muito interessado nas músicas.
Como ele havia deixado claro nas conversas que tivemos antes de ir para o Mineirão,
aquele não fazia o perfil dele. Portanto, ele decidiu ir embora quando o primeiro show
ao vivo, de um membro do bloco carnavalesco belorizontino Alô Abacaxi, estava
começando. No momento em que deixávamos a lateral do campo, o cantor, que tem
traços fenotípicos negros, entoava do palco: “As gay, as bi, as trans, as sapatão, tá tudo
com as preta ocupando o Mineirão”. Também uma conhecida militante LGBTQIAP+
negra estava no palco no momento. O grito mostra que os próprios sujeitos ali presentes
tinham consciência da relevância política e simbólica do que estava acontecendo. De
fato, apesar da lógica mercadológica que tornou aquele momento acessível apenas a um
grupo privilegiado, o evento foi um marco na aquisição de espaço de pessoas
9
Glee é uma série televisiva estadunidense que trata de bullying e autoaceitação na adolescência. Parte
dos personagens pertence a um grupo de líderes de torcida, as Cheerios.
10
Apesar de que poderíamos discutir o quanto ela traz, nessa configuração, a cultura masculina do abuso
também para contatos homoafetivos.
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LGBTQIAP+ nesse esporte tão importante para o país. É interessante também observar
que foi o próprio Mineirão quem se ofereceu para isso, como contou Ângelo.
A consciência da importância daquele movimento também se tornou clara
quando conheci Malta, membro do BeesCats (Rio de Janeiro), e um dos idealizadores e
coordenadores da LiGay. Conversando com Ângelo, ele disse que iria tentar realizar um
evento como aquele no Maracanã ou no Engenhão, levando o aniversário do Bharbixas
no Mineirão como case para apresentar a proposta. Ele disse que o governo Crivella
dava apoio a seu time. Disse também que o evento daquele dia havia sido muito
importante para a integração dos times do país, porque os “cabeças” dos times estavam
lá e iriam repassar a experiência para os demais. Malta disse que o BeesCats iria para
Paris, para o Gay Games, e que estava planejando uma competição entre uma seleção
gay brasileira e uma argentina, chamada Taça Hermanito.
Em um momento de tantas incertezas em relação aos avanços políticos que têm
sido alcançados depois de muita luta por parte das minorias no Brasil, o futebol gay tem
se firmado no país e se mostrado uma fonte de luta. Para Wagner Camargo e Carmen
Rial (2009) “o esporte é mais uma dentre as manifestações políticas da comunidade
LGBT” (CAMARGO; RIAL, 2009, p. 81). Assim, fica evidente a importância
simbólica do evento e percebe-se a potencialidade que o futebol gay tem para abrir
novas possibilidades para a comunidade LGBTQIAP+ no país.
O evento em imagens
Nesta seção, trazemos os registros fotográficos realizados no evento, bem como
divulgados posteriormente pelos times nas mídias sociais.
Figura 1: Entrada do Mineirão no dia do evento. Fonte: Figura 2: Jogo acontecendo por trás do palco. Fonte: Produzida
produzida pelo autor pelo autor
Figura 3: Torcida. Fonte: Produzida pelo autor Figura 4: Marca do Bharbixas no Mineirão. Fonte: Produzida
pelo autor
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Figura 5: A torcida discutia sobre um dos jogadores está ou Figura 6: Um dos lances da partida. Fonte: Produzida pelo autor
não usando cueca. Fonte: Produzida pelo autor
Figura 7: Comemoração após o final do jogo. Fonte: Figura 8: Ativista LGBTQIAP+ negra de Belo Horizonte sobre o
Produzida pelo autor palco dos shows pós-evento. Fonte: Produzida pelo autor
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Recebido: 28.10.2020
Aceito: 30.11.2020
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, março de 2021 ISSN 2526-4702
CAVALCANTI, Lina Luz; BARBALHO,
Alexandre. Cultura alimentar como objeto das
políticas culturais: o caso brasileiro (2003-
2016). Sociabilidades Urbanas, Revista de
Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, pp. 137-
146, março de 2021, ISSN 2526-4702.
ARTIGO
https://grem-grei.org/numero-atual-socurbs/
∗
Mestra em Sociologia pelo PPGS/UECE. Especialista em Gestão Cultural pela FUNDAJ/MinC/UFBA.
Graduada em História pela UFC. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3996-9989. E-Mail:
linaluz0610@gmail.com.
∗∗
Professor dos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e em Políticas Públicas da Universidade
Estadual do Ceará e em Comunicação da UFC. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4612-6162. E-Mail:
alexandrealmeidabarbalho@gmail.com.
138
Tomando essas formulações como ponto de partida, o que se discute neste artigo
é o momento no qual a “gastronomia” tornou-se objeto da política pública, mais
especificamente da política cultural, durante os governos Lula e Dilma1.
Nosso pressuposto é de que isso foi possível pelo conceito amplo de cultura
operado pelo Ministério da Cultura (MinC) no período em tela, o que levou o órgão a
incluir em seu campo de atuação outras agendas, agentes e repertórios que não eram
vistos de forma costumeira como “culturais”. Ou seja, a “gastronomia”, ou melhor, a
“cultura alimentar”2 passou por um processo de culturalização operacionalizado pelo
Estado, o que pode ser visto em outros setores, como, por exemplo, com o movimento
LGBTQIA+ (BARBALHO; MUNIZ JÚNIOR, 2020).
O artigo estrutura-se em duas partes seguidas das considerações finais. Na
primeira, apresentamos como a cultura alimentar foi afetada pela globalização e tornou-
se, nesse contexto, alvo de políticas públicas, pegando o caso francês como referência.
Na sequência, discutimos como se deu no Brasil a incorporação dessa agenda nas
políticas culturais em âmbito federal, tendo como foco a III Conferência Nacional de
Cultura.
1
O que se apresenta é parte de uma pesquisa sobre as ações de reconhecimento da cultura alimentar como
objeto da política cultural promovida pelo MinC no período de 2003 a 2016, em especial do universo que
permeia a discussão do patrimônio histórico, cultural e artístico. Como sugere Fonseca (2003), por meio
da reestruturação ou reformulação do conceito de patrimônio e da incorporação do patrimônio imaterial
no Brasil, os temas da culinária e da cozinha passaram a ganhar um novo estatuto. O objeto da referida
pesquisa foi as políticas de registro, validação e reconhecimento do Ofício das Baianas de Acarajé como
patrimônio cultural de natureza imaterial. A esse respeito ver CAVALCANTE (2020).
2
Embora a nossa compreensão de cultura alimentar seja sinônima do que Brillat-Savarin (1995) trata por
gastronomia, ou seja, “o conhecimento fundamental de tudo o que se refere ao homem na medida em que
se alimenta”, sob uma perspectiva política de afirmação de seu papel cultural e social, assumiremos o
primeiro termo. Tal escolha se dá por conta do caráter elitista da gastronomia, cuja origem burguesa
dificultou, por muito tempo, as possibilidades outras de redesenhar o universo sociocultural e
antropológico dos alimentos e de seus fazedores. Dessa forma, “cultura alimentar” é aqui vista para além
de comer e beber; convoca-nos a sabermos quem produz aquele alimento, o que comemos, onde
comemos, como e com quem e quais os sentidos atribuídos a cada uma dessas etapas.
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para além das fronteiras nacionais caracterizando “uma sociedade global de consumo,
modo dominante da modernidade-mundo” (ORTIZ, 1998, p. 111).
É verdade que mudanças na alimentação ao longo da história não são uma
novidade. Como situam Contreras e Gracia verificam-se, diacronicamente, muitas
transformações advindas de inúmeros fatores como incorporações tecnológicas,
descobertas de novas fontes alimentícias ou de ingredientes, pragas agrícolas etc. No
entanto, com a globalização, o que se observa é a intensificação de tecnologias
agroindustriais junto às “estratégias de marketing por elas desenvolvidas para favorecer
seus interesses” (CONTRETAS; GARCIA, 2011, p. 400), estabelecendo uma nova
cultura alimentar, o fast-food.
O mundo do agronegócio, aliado às redes internacionais de fast-food,
implementaram uma forte mudança nos apetites e nas mesas das pessoas nos diversos
países mundo afora, criando desejos alimentares por certos tipos de pratos que tivessem
suas produções uniformizadas pela indústria alimentícia global, em cadeias
sincronizadas de grandes empreendimentos. Em paralelo a essa industrialização dos
alimentos, se consolidou o hábito de comer fora de casa, impulsionado pela velocidade
da vida cotidiana nas grandes metrópoles, ainda que isso não significasse uma
intensificação da sociabilidade urbana, pois a ideia era se alimentar rapidamente, de
preferência só, e retornar ao ambiente de trabalho.
Em reação a esse cenário de uniformização da cultura alimentar, em 1980 na
França, se iniciou uma política editorial de publicação de livros de receitas tradicionais,
visando preservar traços da culinária local típicos de algumas regiões do país. Em
relação a uma dessas iniciativas, a coleção “Itinerários gourmands”, Poulain observa
que se existia “uma urgência nestes tempos de homogeneização dos gostos alimentares”
era “a de fazer o inventário do patrimônio gastronômico das províncias da França”, de
modo a recolocar “as práticas culinárias tradicionais no contexto cultural que as fez
nascer: os costumes, as crenças, as mentalidades regionais; transcrever as receitas numa
linguagem simples e moderna, suscetível de permitir sua realização” (POULAIN, 2013,
p. 31).
Morin, citado por Poulain, propõe que tais fenômenos são, muitas vezes,
sintomas de uma crise identitária que descobre na esfera alimentar, prejudicada pela
industrialização, um lugar de cristalização. Ele sugere que, com a mundialização dos
mercados alimentares, há uma valorização dos produtos regionais “por meio de um
duplo retorno aos valores da ‘natureza’ exaltada em oposição ao mundo artificial das
cidades e da ‘arkhé’ rejeitada pela modernidade como rotina e atraso, uma inversão
parcial das hierarquias gastronômicas a favor de pratos rústicos e naturais” (MORIN
apud POULAIN, 2013, p. 33). Esse movimento posicionou a cozinha regional no centro
e inventariou o patrimônio gastronômico das províncias francesas. Como consequência,
observa-se um duplo processo. Numa perspectiva patrimonial, de um lado, são
estudadas as tradições culinárias, a sedimentação das receitas e dos hábitos à mesa no
curso da história da região; do outro, os grandes chefs contemporâneos atualizam suas
práticas aos sabores regionais.
Bueno aponta os dois movimentos importantes que introduziram “alterações
radicais na maneira como os chefs passaram a se relacionar com as tradições e com a
instituição gastronômica” (BUENO, 2016, p. 451), possibilitando revoluções parciais
importantes no campo gastronômico. Esses movimentos são conhecidos por Nouvelle
Cuisine e Slow Food. O primeiro começou por desvincular a alta gastronomia do mundo
do luxo ao qual se associava, reduzindo a importância de requintes e de produtos mais
caros, para enfatizar o talento do chef. Essa nova corrente foi impulsionada por dois
críticos, Gault e Millau, que, segundo a autora, foram responsáveis pela criação de um
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141
3
A esse respeito ver “Gastronomia – patrimônio à mesa”. Desafios do desenvolvimento, edição 26,
2006. Disponível em
https://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=1110:reportagens-
materias&Itemid=39. Acesso em 24/01/2021.
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No que diz respeito à III Cnc, seus temas foram alinhados às diretrizes e às
metas do Plano Nacional de Cultura (Pnc) e constituíram os seguintes eixos temáticos:
I. IMPLEMENTAÇÃO DO SISTEMA NACIONAL DE CULTURA - Foco:
Impactos da Emenda Constitucional do SNC na organização da gestão cultural
e na participação social nos três níveis de governo (União, Estados/Distrito
Federal e Municípios).
II. PRODUÇÃO SIMBÓLICA E DIVERSIDADE CULTURAL - Foco: O
fortalecimento da produção artística e de bens simbólicos e da proteção e
promoção da diversidade das expressões culturais, com atenção para a
diversidade étnica e racial.
III. CIDADANIA E DIREITOS CULTURAIS - Foco: Garantia do pleno exercício
dos direitos culturais e consolidação da cidadania, com atenção para a
diversidade étnica e racial.
IV. CULTURA E DESENVOLVIMENTO - Foco: Economia criativa como uma
estratégia de desenvolvimento sustentável. (BRASIL, 2013a).
É no Eixo 2, “Produção Simbólica e Diversidade Cultural”, mais precisamente
na proposta 2.5, que a gastronomia aparece pela primeira vez no contexto dos
documentos produzidos por ocasião das Cncs. Na íntegra, o que diz a proposta é:
Criar políticas culturais regionais, bem como os investimentos,
levando em conta os custos de todas as regiões brasileiras, com ênfase
na região amazônica, a acessibilidade e a fruição; viabilizar a
realização de parcerias entre municípios, povos e comunidades
tradicionais; incentivar trocas de experiências, informações e registros
culturais tradicionais como: rituais indígenas, festas, cultura de raiz,
jogos, feiras, festivais, fóruns, conferências, exposições, gastronomia
etc., por meio de intercâmbios culturais e artísticos; valorizar a
sustentabilidade e a preservação do meio ambiente; e garantir
investimentos dos Ministérios da Cultura e da Educação em
programas e projetos de criação, produção, circulação, difusão e
qualificação dos gestores, produtores e fazedores culturais da região
Amazônica. (BRASIL, 2013b, s.p.)
Nessa proposta é reconhecida não só a importância da preservação de aspectos
das culturas tradicionais, mas também o necessário intercâmbio dessas culturas como
uma forma de dar sustentação a elas e considera a gastronomia como parte fundadora da
identidade desses povos.
O cuidado com as culturas tradicionais também pressupõe uma valorização da
gastronomia, pois os ingredientes, as técnicas e os alimentos que compõem a cultura
alimentar brasileira têm suas origens nessas diversas culturas tradicionais. No Eixo 2,
“Produção Simbólica e Diversidade Cultural”, a proposta 2.35 da III CNC versa sobre
os aspectos de preservação da cultura de um povo:
Garantir e executar, em caráter de urgência, políticas de identificação,
demarcação, delimitação, regularização e homologação fundiária dos
territórios quilombolas, povos indígenas, povos de terreiros e povos e
comunidades tradicionais em geral (conforme decreto 6.040 de
07/02/2007), assegurando a efetivação de suas titulações e autonomias
tendo como referência o inventário do patrimônio das culturas
diversas, por meio de ações que promovam a cultura de combate ao
racismo, inclusive o religioso, protegendo os ritos, rituais, danças,
costumes e conhecimento imateriais dos povos indígenas,
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Considerações finais
Os processos globalizantes pelos quais o mundo tem passado trouxeram
profundas mudanças à organização social e tem demandado inovações nas formas de
agir, reagir e resistir. Em especial, as ameaças que as culturas locais, incluindo as
alimentares, sofrem com essas transformações apontam para a necessidade de
interlocução de seus atores com o poder público com vistas à sua conservação, sem que
isso signifique a manutenção a todo custo de padrões vistos como originários, e sim a
capacidade de renovar e atualizar as relações de um grupo com sua cultura. Na cultura
alimentar, em especial, a possibilidade de invenção é muito importante. Saber lidar com
5
Em 2019, a legislação relativa ao Cnpc foi alterada e entre as modificações, o assento destinado à
Cultura Alimentar nos Colegiados foi extinto. Essa opção revela um retrocesso da política cultural em sua
compreensão mais ampla do fazer cultural.
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D’AMICO, Marcelo; PIBERNUS, César.
Territorios en disputa en Entre Ríos:
extractivismo urbano y protesta ambiental.
Sociabilidades Urbanas, Revista de
Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, pp. 147-
169, março de 2021, ISSN 2526-4702.
ARTIGO
https://grem-grei.org/numero-atual-socurbs/
Marcelo D’Amico∗
Cesar Pibernus∗∗ 1
Resumen: En las dos últimas décadas, y con incremento de los precios internacionales de
las materias primas, se profundizó el carácter extractivista de la Argentina y la región. La
provincia de Entre Ríos fue un caso testigo del modelo de explotación primaria que
avanzan sobre la naturaleza propias del capitalismo contemporáneo y a los regímenes
orientados a la exportación de commodities en particular. El progreso del agronegocio, el
intento del fracking en distintas localidades y las diversas manifestaciones del
extractivismo urbano, son elementos del capitalismo en su fase de desarrollo actual. En la
medida que éste avanza sobre los bienes comunes, abre las puertas a la disputa por los
mismos y al conflicto social. Así, durante este mismo período, proliferaron en la provincia
los procesos de resistencia y de protesta socio-ambiental que será objeto de nuestro análisis.
Palabras clave: Extractivismo, acumulación por desposesión, conflicto social, acción
colectiva, protesta socio-ambiental
Resumo: Nas últimas duas décadas, e com o aumento dos preços internacionais das
matérias-primas, o caráter extrativista da Argentina e da região se aprofundou. A província
de Entre Ríos foi um caso testemunha do modelo de exploração primária que avança sobre
a natureza do capitalismo contemporâneo e regimes orientados para a exportação de
commodities em particular. O avanço do agronegócio, a tentativa de fracking em diferentes
localidades e as diversas manifestações do extrativismo urbano são elementos do
capitalismo em sua atual fase de desenvolvimento. Na medida em que avança sobre os bens
comuns, abre as portas para a disputa por eles e para o conflito social. Assim, neste mesmo
período, proliferaram os processos de resistência e protesto socioambiental na província
que será objeto de nossa análise. Palavras-chave: Extrativismo, acumulação por
expropriação, conflito social, ação coletiva, protesto socioambiental
Abstract: In the last two decades, and with the increase in international prices of raw
materials, the extractivist nature of Argentina and the region has deepened. The province of
∗
Professor Doctor do Centro de Investigaciones Sociales y Políticas, Facultad de Ciencias de la
Educación da UNER. (CISPO- FCEDU-UNER). Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3504-505X. E-Mail:
marcelodamico9@yahoo.com
∗∗
Professor Doctor do Centro de Investigaciones Sociales y Políticas, Facultad de Ciencias de la
Educación da UNER. (CISPO- FCEDU-UNER). Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6456-2481. E-Mail:
cepibernus@hotmail.com
1
Este artículo es parte de los resultados del trabajo realizado en el marco del PID 3155 desarrollado en la
Facultad de Ciencias de la Educación de la UNER por el equipo integrado Dirigido por Marcelo D’Amico
e integrado por Luis Meiners, Patricia Lambruschini, Virginia Alia, Lautaro Perez y Gina Turtula.
148
Entre Ríos was a witness case of the primary exploitation model that advances on the
nature of contemporary capitalism and regimes oriented to the export of commodities in
particular. The progress of agribusiness, the attempted fracking in different locations and
the various manifestations of urban extractivism are elements of capitalism in its current
phase of development. As it progresses over common goods, it opens the doors to dispute
over them and to social conflict. Thus, during this same period, the processes of resistance
and socio-environmental protest proliferated in the province that will be the object of our
analysis. Keywords: Extractivism, accumulation by dispossession, social conflict,
collective action, socio-environmental protest
2
Este artículo es producto del trabajo realizado en el marco del PID 3155 desarrollado en la Facultad de
Ciencias de la Educación de la UNER por el equipo integrado por Luis Meiners, Patricia Lambruschini,
Virginia Alia, Lautaro Peter y Gina Turtula.
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3
Ejemplo de ello es el trabajo de Seoane, J. (Compilador) Movimientos sociales y conflicto en América
Latina.CLACSO, Buenos Aires, 2003. Así como la revista periódica Observatorio Social de América
Latina (OSAL).
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respecto. Vivimos una transición que plantea interrogantes nuevos con viejas formas
lingüísticas, un cambio de paradigma dejará en desuso ciertas preguntas que incluso hoy
carecen de un sentido profundo. Los movimientos sociales denotan “una transformación
profunda de la lógica y de los procesos que guían a las sociedades complejas
(MELUCCI, 1996, pp. 10-11).
Esta propuesta tiene como propósito mostrarnos el poder enunciador de la
acción colectiva en cuanto a las transformaciones que la sociedad experimenta en
general, presenta a los movimientos sociales como “profetas del presente” que “poseen
el poder de la palabra”, “utilizan un lenguaje que parece exclusivo de ellos, pero dicen
algo que los trasciende y hablan por todos nosotros”. (MELUCCI, 1996, p. 11).
Redes conflictuales
Arribando a una mirada más local, consideramos pertinente profundizar en la
noción de red de conflictos propuesta por Adrián Scribano. En términos generales,
dicho concepto refiere a aquellos conflictos que están interconectados y que constituyen
base de toda acción colectiva que deviene en protesta social. La noción de red, se
inscribe en el supuesto de que toda protesta es precedida por uno o más conflictos.
Estas redes, a su vez, ponen en relación diversos conflictos, remitiendo entonces
a otras redes de conflictos preexistentes. Con ello queremos sostener que la protesta de
los colectivos por distintos aspectos ambientales se conecta con conflictos latentes cuyo
origen está en los años del ajuste argentino (’90), y que se manifiestan con mayor
intensidad en el ciclo de protesta que se inicia en diciembre del 2001. Las
organizaciones sociales presentan complejas relaciones con organizaciones sindicales,
con movimientos territoriales y organizaciones civiles, sin que ello signifique la pérdida
de su autonomía e identidad porque el trasfondo de su protesta remite a un horizonte
común de demandas de acuerdo con la red de conflictos en la que se halla inserta, tal
como sucedía con los cortes de ruta a principios de los años ’90. En tal sentido, las
luchas ambientales son, ante todo, una lucha por el reconocimiento; las demandas en los
territorios implican un reconocimiento como sujeto de derecho frente al Estado.
De cara a las dificultades que prevé nuestro trabajo y siguiendo el planteo de
Scribano, para estudiar las acciones colectivas es preciso identificar, al menos, tres
niveles de análisis: “su conflictividad, su estructuración temporo -espacial y sus modos
de expresividad” (SCRIBANO, 2003a, p. 76). Estos tres niveles no son los únicos, pero
el hecho de estudiarlos ayuda a construir un instrumental analítico para la investigación
empírica de las acciones colectivas, pues “toda acción colectiva que deviene protesta
implica la existencia de uno o más conflictos” (SCRIBANO, 2003a, p. 76).
Las redes de conflictos que preceden y operan como trasfondo de las protestas
actúan en el tiempo reconvirtiendo y redefiniendo las posiciones de los agentes y el
sentido de las acciones. A su vez, no se agotan en la sola manifestación de la acción
colectiva; por el contrario, las mencionadas redes están en estrecha relación con los
períodos de latencia.
Todo análisis de la protesta debe tener presente siempre a las redes de conflicto
que a ellas se conectan como dato que permite dar forma a las acciones colectivas.
Además, es importante señalar que las redes de conflictos también ponen en relación
actores colectivos, y de ese modo permiten dar visibilidad a conflictos u otras redes de
conflictos que se encuentran sumergidas. En otro caso estudiado (D’AMICO, 2009,
2013a, 2013b), la pobreza, la desocupación y la distribución desigual en el espacio de la
ciudad de Santa Fe cobraron mayor visibilidad como consecuencia de las acciones
colectivas protagonizadas por los inundados. En este artículo, a las protestas
socioambientales le preceden en el tiempo otros conflictos que forman redes que las
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movimiento social más amplio que tiene lugar en los años ’90 y que acumula a partir de
una serie de problemáticas sociales.
A partir de la estabilización de una alta tasa de desocupación en los 90, los
desocupados consolidaron su presencia como movimiento y el movimiento piquetero
fue adquiriendo visibilidad dentro de un complejo conjunto de actores como
trabajadores estatales, privados y demandas de vivienda.
Los piqueteros forjan vinculación organizativa con otras experiencias colectivas
contemporáneas tales como las reivindicaciones por los derechos humanos de
organizaciones como H.I.J.O.S o el movimiento de Fábricas y Empresas Recuperadas.
Desde el 2003 en adelante irrumpe en el espacio público de manera progresiva la
protesta en torno a los bienes comunes, en especial los movimientos que se oponen a la
explotación de la minería a cielo abierto. Un diagnóstico sumamente interesante es el
que formula Machado Araoz y Scribano4, Como es sabido, el sistema capitalista de
producción tiene como base en sus distintas fases expansivas garantizar, a largo plazo,
las condiciones de su reproducción a escala mundial.
Se trata de poner en relación el modo en cómo opera el sistema capitalista de
producción en la actual fase expansiva y analizar desde dicha comprensión el lugar que
ocupan las demandas sociales, las protestas y las distintas acciones colectivas. Por ello,
para nuestro trabajo se consideran centrales los vínculos entre cuerpo, clases y conflicto
social en el marco de los territorios que son el escenario de las actividades de
producción en Entre Ríos fundamentalmente en el espacio urbano.
Cuadro 1 - Colectivos socio-ambientales de Entre Ríos: ubicación, problemática central de protesta y año
de fundación
Año de
Nombre Ubicación Problemática central de protesta
fundación
Asamblea Ciudadana Concordia Concordia Fracking 2013
Asamblea Popular Colón- Ruta 135 Colón Fracking 2005
Asamblea Ciudadana Ambiental Gualeguaychú Papeleras 2005
Concepción del
Asamblea Ciudadana Fracking 2004
Uruguay
Todos por Todos San Salvador Fumigaciones 2013
4
Para una visión más amplia de estas características (Scribano 2003b, 2005b, 2005c, 2007a y 2007b);
Luna; Scribano (Comp., 2007).
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el riesgo que esta explotación representaba para las enormes reservas de agua dulce,
particularmente el Acuífero Guaraní.
La ciudadanía se organizó en un primer momento con convocatorias locales en
toda la provincia. Se destacan entre ellas las actividades realizadas por la Asociación
Gremial de Docentes de Entre Ríos (Agmer) junto con vecinos de diversas localidades,
que recorrieron el territorio provincial concientizando sobre las consecuencias
perjudiciales de esta actividad. Aquellos militantes cuentan más de 60 charlas en las
localidades como Concordia, Feliciano, Paraná, Chajarí, Federación, La Paz en la que
difundían diversos materiales impresos o audiovisuales, como el video documental
“Gasland”. Otra convocatoria pionera que se destaca fue el colectivo “Entre Ríos Libre
de fracking” promotora de charlas-debate en todo el territorio, ante la falta de
información sobre el tema.
Esa experiencia puntual de difusión visibilizó además una serie de problemáticas
urgentes, transformando estas charlas en una gran red militante. La educación ambiental
dio paso a movilizaciones que denunciaban la intervención del capital extractivista,
predatorio y destructivo de la naturaleza en Entre Ríos. El movimiento antifracking
sumó la agenda de lucha socioambiental previa como los problemas de las pasteras en
Uruguay, las fumigaciones en las proximidades de las escuelas, los agronegocios en
general y el avance del desarrollo urbano en las ciudades. Las declaraciones y la política
del gobernador Sergio Urribarri sobre el fracking lo transformó en un destinatario
prioritario de estas acciones públicas.
No pretendemos detallar las organizaciones antifracking, sino mostrar la
visibilidad que produjeron para 2012 y que se basó en un exhaustivo trabajo de
educación en toda la provincia. El profesor Javier Miranda, fue uno de los impulsores
originarios de esta tarea, tras las primeras charlas en junio del 2012, se articuló una
organización intersectorial que tuvo distintos ciclos de desarrollo y diversos actores, que
lograron conformar nucleamientos en varios departamentos de la provincia.
Para el relevamiento entrevistamos a distintos referentes de estas experiencias,
todos los consultados señalan la modificación de la Ley de hidrocarburos y la Ley
provincial 9991 como las principales motivaciones de la ciudadanía para organizarse.
Fue un resurgir de asambleas ambientales nacidas en conflictos precedentes, como
también el surgimiento de nuevos espacios de lucha y movilización (Concordia, Colón,
Chajarí, Federación, Nogoyá, Paraná).
El Acuífero Guaraní fue declarado como un bien en disputa, siguiendo a
Scribano, “incluso los bienes colectivos originarios - el agua, el aire, etc.- pasan a ser
objeto de conflicto cuando se agreden justamente los procesos de su producción,
acumulación y reproducción” (SCRIBANO, 2005, p. 6).Las asambleas identifican desde
un primer momento a YPF y el gobierno provincial como los promotores de este
proyecto. Pero con el correr del conflicto, las asambleas complejizaron su repertorio y
sumaron al gobierno nacional como antagonista, dentro del mapa nacional de política
extractivista.
Las conclusiones de las asambleas, permiten identificar los actores del conflicto
y ordenar su actividad. También evidencian que decidieron integrar el contramapa de
lucha ambiental y enfrentar así a una matriz productiva-económica de mayor escala,
compuesta por un complejo conglomerado extractivista.
Así, los asambleístas integran primero el movimiento “Entre Ríos Libre de
fracking” y la “Unión de Asambleas Ciudadanas” (UAC) del Litoral. El objetivo central
del primer espacio era conseguir la Ley Provincial que prohibiese el fracking, con ese
horizonte las asambleas regionales comenzaron acciones locales para lograr ordenanzas
municipales que impidiesen el fracking en las jurisdicciones municipales. Esta campaña
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produce un importante y paradójico déficit habitacional por los altos precios que genera
en el mercado inmobiliario, influyendo en la compra venta como también los alquileres
para amplios sectores de la población.
La protesta contra los mega-edificios
El extractivismo urbano se profundizó durante estos últimos años en Entre Ríos
y produjo el correspondiente contra-mapa de lucha ambiental. Así, nacieron en Paraná
experiencias que se organizaron en contra de la construcción de edificios en altura,
señalando la falta de control y el impacto ambiental de este acelerado proceso.
En una acción pública desarrollada en julio de 2016 en la costanera de Paraná, el
movimiento “Stop edificios” manifestaba
(…) pedir y pretender una ciudad de Paraná planificada
urbanísticamente, recuperando lo pintoresco, arquitectónico y
saludable de sus barrios y un aspecto pujante y floreciente de torres
modernas construidas en lugares especialmente pensados para ello,
con todos sus servicios, donde toda la población pueda disfrutar de
uno y otro aspecto de la ciudad, sin ocasionar perjuicios a nadie.
En noviembre de 2016, vecinos autoconvocados se organizaron para denunciar
el impacto negativo de la construcción de edificios de altura en zonas céntricas
mencionando la obstrucción de servicios como agua o cloacas, los daños producidos por
los rotundos movimientos y la contaminación sonora de la construcción. Diana Floresta,
integrante del colectivo advierte sobre estos proyectos inmobiliarios: “Están cambiando
la ciudad y afectando a los vecinos. En las obras nos llenan de polvo, nos rompen las
casas, y luego rebalsan las cloacas y debemos soportar el olor a aguas servidas y además
no tenemos agua en verano porque los servicios colapsan”. Además, denuncian la falta
de planificación de lugares de estacionamiento, la tala de árboles, el deterioro de las
calles, la pérdida del patrimonio histórico y espacios verdes.
El reclamo del colectivo tiene dos aristas fundamentales: exigir al municipio un
plan para regule explícitamente la construcción de este tipo de edificación y un nuevo
Código Urbano con participación ciudadana acorde al cuidado ambiental.
Los negocios en torno al Río Paraná y los conflictos al respecto
Simultáneamente, los gobiernos provincial y municipal rehicieron su relación
con el río, asumiéndolo como activo urbano, como patrimonio y paisaje, de cara a los
mercados turístico e inmobiliario. Desde 2012 se desarrolla el “Plan Maestro para el
Borde Costero” que impulsa obras para la “recuperación” y “puesta en valor” de esta
zona en un corto plazo con financiamiento municipal, provincial, nacional, internacional
y privado. El Plan priorizó la conectividad vial del borde costero, obras de
“regeneración” de los barrios ribereños y un reordenamiento de las actividades públicas
y privadas. A demás, Paraná se sumó en 2013 a la “Iniciativa Ciudades Emergentes y
Sostenibles” del Banco Interamericano de Desarrollo.
La relación ciudad/río desde este perfil descripto tributa en el proceso de
mercantilización del espacio urbano paranaense, sobre todo desde la actividad turística.
Extractivismo y turismo no sólo coexisten, aquí se retroalimentan. Evidenciando la
capacidad el turismo para reorganizar el espacio urbano a favor de la acumulación de
capital:“En el nuevo espacio turístico, la naturaleza, transformada en mercancía por
medio de la industria turístico residencial, se convierte en un factor clave para aumentar
ganancias.” (CAÑADA, 2016, p. 13).Y esta situación es muy evidente en el desarrollo
del termalismo en Entre Ríos.
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El termalismo como motor turístico tiene una historia tan reciente como
dinámica, se inició a mediados de los noventa con una primera perforación en la ciudad
de Federación. La trepanación nutre piletas y parques con aguas caracterizadas por su
temperatura, presencia de minerales y salinidad. Es una actividad que produce varios
daños al ambiente, el contraste de esas aguas desechadas en los cursos fluviales es la
principal preocupación. El éxito comercial de la actividad corrió el eje y produjo un
vertiginoso desarrollo de la actividad, promovida por los gobiernos municipales y
provincial. Para 2014 existían ya 15 complejos termales en la provincia. Esto fue
acompañado de un rápido desarrollo inmobiliario destinado al turismo que, a su vez,
atenta contra el patrimonio histórico arquitectónico.
El Estado “con su monopolio de la violencia y sus definiciones de legalidad”
(HARVEY, 2004, p. 113) desempeñó un papel clave en este proceso, es evidente hasta
el año 1993 en el decreto 2435 en el que el Poder Ejecutivo provincial crea una “Unidad
Transitoria de Proyectación” denominada “Desarrollo del Recurso Hidrotermal” y a
partir de 1994 mediante el decreto 773 cuando declara de interés provincial la
exploración y explotación del “recurso hidrotermal”. Es el Estado quien mercantiliza el
agua subterránea, con estas normas se reserva la propiedad del recurso y la capacidad
de otorgar concesiones de exploración y explotación y de delimitar las zonas
disponibles para ello.
Entre los años 1994 y 2013 se promulgan al menos 11 decretos (735/1995,
3172/1996, 4128/1996, 753/2002, 6768/2004, 6425/2005, 1463/2009, 1812/2011,
2711/2012, 2778/2013, 4630/2013)1que destinan recursos a distintos municipios como
inversión específica y en 2006 el gobierno provincial crea el Ente Regulador de
Recursos Termales por la ley N° 9678.
El termalismo no había sido objeto de crítica hasta el año 2013. Ese año, el
movimiento, “Más ríos, menos termas” logró frenar la construcción de un complejo
termal en la ciudad de Paraná, advirtiendo sobre el avance de la dinámica extractivista,
caracterizada por no priorizar la valoración, el cuidado y la protección del medio
ambiente y del territorio. Ese año el turismo termal puso en la mira a la “Toma Vieja”,
un punto que se encuentra en el noreste, sobre las barrancas históricamente vinculado a
la potabilización de agua y la recreación de los vecinos. El punto está alejado de la
ciudad y ofrece una vista panorámica del río Paraná cuya importancia fue certificada en
1997 cuando fue declarado como “Área Natural Protegida” por el Concejo Deliberante.
Un elemento central en este conflicto, es la pugna discursiva registrada entre sus
actores centrales. Los estados provincial y municipal jugaron un papel fundamental en
este sentido al pretender construir la marca “Paraná” sobre el concepto de ciudad-río,
usando el fuerte perfil fluvial de sus habitantes, como también la belleza de este
entorno. Como señala David Harvey, “existe siempre un fuerte componente social y
discursivo en la elaboración de tales causas para extraer rentas de monopolio”
(HARVEY, 2013, 155) y este caso lo confirma.
El municipio manifestaba que “La construcción del Complejo Termal y Parque
Acuático de Paraná es un proyecto impulsado por los gobiernos provincial y municipal,
en el afán de fortalecer el perfil turístico de la capital entrerriana y generar nuevas
inversiones. Desde lo urbano, se busca rescatar y desarrollar la ciudad–río.”
(MUNICIPALIDAD DE PARANÁ, 2013)
Así, la presencia del río como eje de la identidad de la ciudad, es al mismo
tiempo, presentada como “ventaja comparativa” capaz de generar rentas de monopolio,
como fuente de valorización del capital. El discurso oficial exaltaba la articulación entre
las inversiones públicas y privadas, locales y externas, como también evoca la “puesta
en valor” de los espacios públicos entre las tareas centrales del Estado. Ese discurso
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Conclusiones
La investigación realizada en torno a las tres expresiones fundamentales del
extractivismo en la provincia de Entre Ríos entre los años 2011 y 2020 (fracking,
extractivismo urbano y agronegocios), brinda elementos para profundizar la
conflictividad socio-ambiental; sobre todo pensando en una sistematización transversal
que examine y comprenda los procesos de protesta socio-ambientales, para dilucidar los
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elementos en común que estructuran sus diversas manifestaciones. Todo conflicto social
parte de una valoración diferencial de un bien en disputa (SCRIBANO, 2005), que está
anclado en diferentes posiciones sociales por la indiscutible dimensión de clase que lo
estructura. Por eso es fundamental analizar la naturaleza conflictual de cada caso, pues
“refiere al contenido de la relación conflictual. Es decir, lo que se manifiesta como
objeto del conflicto, su ‘pertenencia’ estructural y los modos de visibilidad que
adquieren en el marco de una acción colectiva” (SCRIBANO, 2005, p. 9). Porque
también es clave identificar las configuraciones antagónicas que los propios actores
realizan sobre el mismo.
El análisis de las acciones de protesta en Entre Ríos, nos aproxima a los bienes
sobre los que reconocen disputa (agua, ríos, humedales, biodiversidad, salud, aire, etc.),
pero también sobre aspectos clave como los actores que reconocen como antagonistas,
el rol del Estado que proponen o la configuración de actores (tanto los aliados como los
antagonistas) y de sus diversos puntos de vista.
Respecto a los bienes en disputa, no basta con una simple enumeración,
corresponde indagar las articulaciones que las conceptualizan como componentes
esenciales de reproducción de la vida, por un lado, y como partes de un espacio vital, de
un territorio, por otro. Porque la vida como el territorio es el núcleo fundamental de
aquello que los actores de las protestas socio-ambientales consideran que está en juego,
son objetos centrales de los diversos conflictos analizados. Lo vemos en las luchas
contra el barrio Amarras en Gualeguaychú (“La tierra es nuestra casa, el río es nuestra
vida, sigamos luchando para preservarlos”) o en la “lugaridad” reclamada por la
Asamblea “Salvemos el Río Gualeguaychú” durante el mismo conflicto. Lo mismo
ocurre en el “Manifiesto de la Asamblea ‘Mas Ríos, Menos Termas” la instalación de
un complejo termal en Paraná. Al declarar que se movilizaban “por el derecho a la
vida, al ambiente sano y el paisaje”.
El territorio es conceptualizado en términos de “hogar”, es decir como sede
fundamental para la reproducción social, en contraposición a esa visión que exalta
ciertas potencialidades económicas del territorio, enarbolada y defendida por el
gobierno en tanto antagonista en el conflicto.
En la construcción del bien en disputa en los conflictos contra el agronegocio,
los colectivos socio-ambientales reconocen que el territorio no es simplemente un mero
“recurso económico” al servicio de cierta matriz productiva, es comprendido como el
espacio de vida de las comunidades, condición elemental de existencia y desarrollo de
los seres vivos. Así, su discurso enfatiza en el daño para el ambiente y la salud que
producen estas intervenciones, como ocurre en los materiales de la campaña “Paren de
fumigar las escuelas”, de la Asamblea Ciudadana Ambiental de Concepción del
Uruguay.
Finalmente, en la lucha entrerriana contra el Fracking se expresan estas mismas
coordenadas de conflictividad. La primera declaración pública del colectivo “Entre Ríos
Libre de Fracking” sostiene respecto a los bienes que el “agua es un recurso vital y
estratégico de la humanidad. Es vida, es salud, es un bien esencial y necesario de la
Naturaleza que debe preservarse para nosotros y las siguientes generaciones.”, y a los
antagonistas que “posan sus ojos en ella, y la disputa a sangre y fuego por su
apropiación es el fantasma que se cierne sobre nosotros y quienes nos sucederán”.
También en la carta enviada a los legisladores, sobre todo al interpelarlos” (…) nos
preguntamos: ¿En qué cabeza cabe "permitir" que se destruya NUESTRO HOGAR y
LA VIDA? ¿Qué harán las autoridades entrerrianas para impedir que el fracking se
instale en la Provincia?”
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Referencias
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DOCUMENTOS
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KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro.
Apresentação do artigo de Maurice Halbwachs
‘Chicago, experiência étnica’ / Presentation of
the article by Maurice Halbwachs: ‘Chicago,
ethnic experience’. Sociabilidades Urbanas,
Revista de Antropologia e Sociologia, v. 5, n.
13, pp. 173-176, março de 2021, ISSN 2526-
4702.
DOCUMENTO
https://grem-grei.org/numero-atual-socurbs/
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seasonal jobs. In the same way that it portrays the problem of housing, the problem of
the configuration of neighborhoods and their borders and interstices, among other
aspects of the local tense sociability and of the dense conformations around the
contextually situated sociality in which everyone faced each other as individuals, as
groups, within a forced and most often conflicting adjustment.
It is, therefore, the tense and conflicting game, and the forms of adjustments,
fragmentation and violence experienced in a rapidly changing Chicago environment of
the thirties that the article refers to and investigates. And in this tense and fascinating
framework, he compares the dynamics of the city of Chicago, as a metropolis, to his
city Paris. In this comparative effort, it evaluates common processes and marked
differences in the two urban formations.
The article published by the series Documents of Sociabilidades Urbanas,
Revista de Antropologia e Sociologia in this issue, is a dense, sensitive and instigating
text for those dealing with the urban theme. This theme is worked on by Halbwachs in a
sensitive and fascinating way, whether in the approach of dense facets with regard to
personal moral disputes - of the individual with himself, - and in relation to the group
moral disputes and corresponding tensions - within ethnic groups, or between different
ethnicities, or between natives and others (foreigners, even those born in the city or in
the country itself) - around integration and resistance, and the inclusion and feeling of
social exclusion in the daily life of the city.
The reader's attention also draws the author's effort to understand the apparently
illogical logic of urban conformation, cultural diversity and cultures at play in the city
of Chicago, always from an ambivalent scale of approach and daily rupture. Likewise,
the reader's attention is awakened by the author's dense and tense understanding of the
difficulties encountered and the possibilities that appear and are experienced by and in
the group and ethnic interrelationships - with their successes and many errors - that
generate solidarity agencies, but also , of stigmatizing and prejudiced processes.
Anyway, Chicago, ethnic experience is a text to be read in its methodological
complexity. As a dynamic article-portrait of tense relationships between individuals and
the city, and between the urban weave and the urban planning, of a metropolis city in
pulsating growth, aggregator, more also and mainly segregating and unequal.
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HALBWACHS, Maurice. Tradução de Mauro
Guilherme Pinheiro Koury. Chicago, experi-
ência étnica. Sociabilidades Urbanas, Revista
de Antropologia e Sociologia, v. 5, n. 13, pp.
177-209, março de 2021, ISSN 2526-4702.
DOCUMENTO
https://grem-grei.org/numero-atual-socurbs/
∗
Este artigo foi publicado originalmente sob o título: “Chicago, expérience ethnique”, nos Annales
d’histoire économique et sociale. 4ᵉ année, n. 13, pp. 11-49, 1932.
178
1
A população de Nova Iorque, em 1790, era 49.401; em 1800, 60.489; em 1810, 96.373; em 1820,
123.706; em 1830, 203.007. Em 1860 Chicago ficou em oitavo lugar, ultrapassado pela Filadélfia
(565.529), Brooklin (279.122), etc. Em 1900, o Brooklin foi anexado a Nova Iorque, daí o grande
aumento da população desta cidade, nesta data. Chicago, porém, ultrapassou levemente a Filadélfia em
1890 e ocupa o segundo lugar desde então.
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2
Os estatísticos
statísticos do censo definem o distrito metropolitano como constituído por um núcleo urbano, mais
um subúrbio que compreende as localidades que, localizadas a menos de 10 milhas (16 km) dos limites da
cidade, tenham uma densidade igual ou superior a 50 habitantes por milha quadrada
quadrada (58 habitantes por
km2).. O distrito metropolitano de Chicago se estende por 1.900 km2 e continha (em 1920) 3.179.000
habitantes. O departamento de Seine, ao mesmo tempo, desdobra-se por 480 km2 e continha,
cont no mesmo
ano, 4.154.000 habitantes. Ver, Baulig (1924, p. 543 e segs.)
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180
Hyde Park, ao sul da 70th Street, a sudeste da cidade, ao Lago Michigan no leste e ao
Lago Calumet no sul3.
Ao mesmo tempo, a população de Chicago também quadruplicou4. Entre 1890 e
1900, a superfície de Chicago aumentou ainda mais, contudo, em apenas 50 km2 (dois
terços da superfície de Paris), - em vez de 348 km2, entre 1887-1889 (mais de quatro
vezes a superfície de Paris). Entre os anos de 1890 e 1897, todo o sudoeste da cidade
atual foi anexado: ao sul da 87th Street. E, em 1895, foi a ela agregada, no sudoeste, o
lago Michigan ao leste, e a 138th Street, ao sul, além de toda a área do lago Calumet. A
superfície da cidade aumentou assim em um décimo e a população pela metade.
Em síntese, de 1887 a 1897, em dez anos, a superfície da cidade quintuplica e a
população quadruplica. No entanto, nas últimas três décadas, a partir de 1900, a área
aumentou apenas um décimo, enquanto a população dobrou, aumentando quase um
terço a cada década. Desta vez, não é mais o aumento da área, é o aumento da densidade
populacional que se tornou o fator decisivo.
Tudo aconteceu como se houvesse em Chicago, por volta de 1890, uma
expansão repentina do recinto urbano comparável à ocorrida em Paris em 1860. No
entanto, antes dessa expansão, em Chicago, como em Paris, a população aumentou
proporcionalmente muito mais rápido do que se deu mais tarde.
Vamos examinar, no Quadro 2 acima, as taxas de aumento do número de
habitantes. Não deve se levar em consideração a taxa de120% que corresponde à década
de 1880 a 1890, pois foi nessa época que a superfície da cidade quadruplicou.
Vemos que, antes dessa extensão, a população aumentou proporcionalmente,
entre 1860 a 1880, mais rapidamente do que nas últimas décadas, e que a taxa de
aumento diminuía constantemente. Aconteceu exatamente o mesmo em Paris5: a taxa de
aumento nos anos anteriores à prorrogação de 1860 é muito maior do que o daquela
época e tem declinado constantemente desde então.
Sem dúvida, as proporções são muito maiores. A velocidade com que a
população está crescendo é muito mais rápida, em todos os períodos, em Chicago do
que em Paris. Mas, nas duas cidades, a expansão da superfície ocorre no momento em
que a população acaba de aumentar mais, e, nos anos que se seguiram, o aumento,
embora tenha desacelerado, permaneceu, no entanto, ainda alto.
Parece que a expansão está ocorrendo sob a pressão de um aumento da
população, que continua após ela, mas com uma força cada vez menor. Observar, além
disso, que desde os anos de 1890 e 1900, o crescimento populacional
(proporcionalmente) tem sido bem menos rápido em Chicago do que em Nova Iorque.
***
Chicago é o maior centro ferroviário dos Estados Unidos. Trinta e nove linhas
diferentes cruzam nela. De acordo com o Manual da Cidade de Chicago, existem 4.650
km (2.840 milhas) de ferrovia dentro dos limites da cidade. Quer consideremos o
comprimento das ferrovias na Suíça ou em toda a Bélgica, ela não é mais extensa.
3
O lago Calumet está localizado a sudeste, entre as ruas 103 e 130.
4
Foi um pouco mais tarde, em 1900, que o Brooklin foi anexado a Nova Iorque: por conseguinte, a
população mais do que dobrou.
5
Ver Halbwachs (1928, pp. 237 e 264). A população de Paris aumenta em 62%, entre 1841 a 1861; 35%
entre 1861 a 1881; 18% entre 1881 a 190; e, 8%, entre 1901 a 1921. A ampliação do recinto urbano
ocorreu em 1861; mas o aumento da população é calculado, entre 1841 a 1861, para o recinto urbano
atual.
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Quem se move ou pode se mover em alta velocidade leva mais de meia hora
para sair: você só vê linhas de trilhos, faixas multiplicadas, enormes canteiros de obras,
oficinas etc., e alguém poderia imaginar que não há mais nada. Mas, nessa rede com
malhas muito grandes, entre essas linhas, abaixo delas, e por todos os lados, a cidade se
estende.
Mais de trezentas ruas paralelas e numeradas de norte a sul, ao longo de quase
40 km, com uma largura de 15 a 20 metros. No entanto, com suas ruas largas, seus
imensos parques, ilhotas de vegetação que perpetuam a memória de quando todo esse
solo pertencia à pradaria, Chicago possui proporcionalmente menos espaços públicos
que Paris.
Em Paris, as residências e dependências particulares (incluindo os jardins e
parques particulares) ocupam 52,5% da superfície, em Chicago, 65%. A cidade é
extremamente grande. É mais do que seis vezes e meia mais extensa que Paris. Como a
população de Chicago excede apenas ligeiramente a população parisiense (15% desde
1930; e 7% menor em 1920), segue-se que a população existente, no geral, é muito
menos densa: 6.500 habitantes por km2, em vez de 37.000 em Paris.
Existem três razões para isso. Primeiro, os estabelecimentos industriais são
numerosos e extensos, ocupam 26 milhas quadradas, ou 62 km2, quase quatro quintos
da superfície de Paris. Se supusermos que eles estão divididos em uma profundidade
média, eles formariam uma rua de 865 km contra uma rua de 2.440 km de extensão para
casas residenciais, - não incluindo os espaços privados não desenvolvidos, nem as
instalações comerciais.
Vamos examinar o plano reproduzido abaixo, no qual está representada, em um
tom uniforme e preto, a terra ocupada pela indústria e pelas ferrovias. Ele está disposto
em um vasto semicírculo, ao longo dos dois braços do rio, nas duas margens que
envolvem firmemente duas faixas largas e paralelas.
Mais ao sul destaca-se uma grande área compacta, feita de retângulos
estranhamente unidos e fundidos, na forma de uma cruz maciça e esmagada: são os
pátios de estoque (stock yards). O conjunto apresenta-se como uma estrutura gigantesca,
cujos caminhos de ferro ligam ainda, a 12 km mais ao sul, fundições e estabelecimentos
metalúrgicos. À noite, à beira do lago, quando você olha nessa direção, pode ver fogos
queimando à distância, de fornalhas ardentes.
Por outro lado, um número muito grande de famílias vive em casas individuais.
Existem 135.840 dessas casas, 96.000 outras contendo dois apartamentos, e 36.630 com
uma média de cinco. As casas individuais representam uma rua de 1.240 km (que iria,
se seguisse em linha reta para Nova Iorque), as outras, uma rua de 1190 km.
Uma parte inteira de Chicago é coberta com casas de madeira com um andar ou
mesmo sem pisos, de acordo com o tipo tradicional de casas antigas. Após o grande
incêndio de 1871, que destruiu 17.500 casas em uma área de quase 10 km2, a região
devastada foi reconstruída em tijolos e em pedras. Mas, não existem muitas casas do
tipo que conhecemos em nossas grandes cidades; edifícios ainda menos, exceto no
circuito e ao redor ou no lago.
Finalmente, em todas as partes da cidade, há terrenos não urbanizados: 124 km2,
quase o dobro da superfície de Paris. Área suficiente para a construção de uma rua de
mais de 2.500 km, que chegaria quase até São Francisco. Um espaço muito maior do
que o coberto pelas casas residenciais.
Assim como edifícios não seriam possíveis sem elevadores, não podemos
imaginar que uma cidade cresceria até esse ponto sem trens e bondes, e sem carros, sem
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II - Estrutura e agrupamentos
A existência de uma escola de sociologia original na Universidade de Chicago,
não independe do fato de que seus observadores não precisam ir muito longe para
encontrar um objeto de estudo. Diante de seus olhos se desenrolam de década em
década, e quase de ano para ano, novas fases de um desenvolvimento urbano sem
precedentes.
Se você se concentra em um bairro, ou simplesmente em um quarteirão de casas,
ou se abrange toda a extensão desta grande cidade, em qualquer caso, os problemas se
multiplicam. Uma agenda de problemas então quase que imediatamente é montada por
um observador atento. Agenda que vai da mudança ou manutenção do tipo étnico e
estilo de vida, de homens de raças européias transplantados para o ambiente americano,
6
Em 11 de agosto de 1923, na Michigan Boulevard Bridge, havia entre 07h e meia-noite 53.014 carros,
ou, em média, 3.118 por hora; 4.360 entre as cinco e quinze e às seis e quinze da noite.
7
Os cable cars são transportes públicos por cabo, tipo teleférico, também conhecido no Brasil por
bondinho. Nota do tradutor.
8
Ver Report of the Chicago Subway and Traction Commission, p. 81; Report on a physical plan for a
unified transportation system, p. 391. Em 1860, os bondes puxados a cavalo da cidade de Nova Iorque
transportaram cerca de 50 milhões de viajantes. Em 1890, os bondes elétricos (e os poucos bondes
puxados por cavalos restantes) transportavam 500 milhões. Em 1921, nas linhas metropolitanas (elevated
and subway) e suburbanas, elétricas e a vapor, o seu número ultrapassou o transporte de 2.500 milhões de
passageiros: de 100 em 1860 para 1.000 em 1890, e para 5.000 em 1921, enquanto a população aumentou
de 100 para 188 e 700. Ver também Munro (1922, p. 377).
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Os dois inspiradores desses trabalhos sobre a vida urbana, Park e Burgess, são
muito diferentes. Park aprendeu filosofia na Alemanha, e se dedicou algum tempo ao
jornalismo. Ele escreveu, no trabalho sobre o qual falaremos, sobre uma "História
Natural dos Jornais"9.
Park tem uma personalidade intelectual forte: dele surgem as idéias, sugestões e
estruturas das classificações que devem orientar os pesquisadores. Burgess, muito
anglo-saxão em espírito e temperamento, por sua vez, não separa em seu pensamento o
aspecto teórico e o interesse prático da pesquisa em que está envolvido.
Foi ele quem escreveu a conclusão da volumosa Illinois Crime Survey (1108
páginas, em 1929). Pesquisa realizada para a Associação de Illinois para a Justiça
9
Este artigo de Robert E. Park se encontra em traduzido para o português, Ver Park (2017). (Nota do
tradutor).
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Criminal. Burgess também esteve recentemente na Rússia Soviética, onde passou quase
um ano estudando crimes juvenis.
Esses dois estudiosos se complementam. Pode-se esperar que, com essa
colaboração, um livro feito em seja sugestivo de mencionar aqui em muitos aspectos.
Essa é a impressão que temos quando lemos The city (PARK; BURGESS;
MacKENZIE, 1925)10, cujos dois capítulos principais são intitulados: A cidade:
sugestões para estudar o comportamento humano no ambiente urbano, por Robert E.
Park11; e: O crescimento e desenvolvimento (the growth) da cidade: uma introdução a
um projeto de pesquisa, por Ernest W. Burgess12.
Sem dúvida, este é um ensaio e, como um rascunho, ainda necessariamente
imperfeito. Este tipo de trabalho é difícil, e exige um concurso de qualidades diversas. É
tão desprovido de suporte que uma tradição de pesquisa e de análise científica pode
oferecer, em relação a um objeto de estudo, que acabamos de descobrir que devemos ser
mais curiosos do que críticos em sua análise, pelo menos por enquanto.
Reproduzimos aqui uma visão esquemática das características gerais que, de
acordo com Burgess, representaria uma grande cidade em processo de crescimento, e
que já atingiu um desenvolvimento bastante avançado. É uma cidade de imigração, onde
existe uma proporção significativa de negros e, se si fixa como limite a linha irregular
que a atravessa de cima para baixo e que reproduz a costa do lago Michigan (que se
estenderia para a direita), esta não é outra cidade que não a própria Chicago. No entanto,
ao representar as sucessivas regiões por zonas concêntricas, talvez se possa lançar mais
luz sobre as várias funções que desempenham, e ajudar a entender melhor as relações
que se estabelecem entre uma e outra.
A Zona I representa a parte mais animada da cidade, aquela que contém
edifícios, escritórios, lojas de departamento e hotéis. É chamada de loop (circuito),
porque uma linha ferroviária "elevada" o circunda.
“Mais de meio milhão de homens entram e saem do loop todos os dias” 13. Além
disso, existem loops satélites. Esses loops satélites resultam do fato de que várias
comunidades locais, ao se desenvolverem, interferiram de alguma forma no circuito
central, ou, ou, como diz Burgess, “entraram em colapso”, de modo a formar uma
unidade econômica maior: daí a existência de regiões de negócios de segunda ordem,
“áreas de subnegócios”, dominadas, de forma visível ou invisível, pelo principal distrito
comercial.
Na verdade, é uma característica singular das grandes cidades americanas que,
ao lado e ao redor do centro principal, onde toda a vida e todo o movimento parecem
concentrados, surja uma quantidade de centros secundários. Mais precisamente, em
intervalos de cada cinco ou seis ruas (indo do sul para o norte), e separadas por
quarteirões razoavelmente grandes, existe uma rua principal, “main street”, - mas não
simplesmente o análogo das populosas artérias de nossos subúrbios, - mas antes como a
reprodução como tal das ruas principais do centro: mesmo tipo de lojas, restaurantes,
cinemas, etc., mesmos farmacêuticos, mesmos barbeiros, mesmos bondes e "elevated".
Cada distrito, assim, tem uma rua onde se faz compras, a “shopping street”, e
em que, deixando espaços onde a calma envolve as casas e vidas, se encontra a
10
É neste livro que encontramos o diagrama que aqui reproduzimos.
11
Este artigo de Robert E. Park se encontra em traduzido para o português, Ver Park (1967). (Nota do
tradutor).
12
O artigo de Ernest W. Burgess também se encontra traduzido para o português. Ver Burgess (2017).
(Nota do Tradutor)
13
Das 920.000 pessoas que trabalhavam em Chicago em 1920, havia 70.367 clerks (empregados) em
escritórios (excluindo os magazines onde trabalhavam 14.189) e 20.262 contadores e caixas.
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animação das partes mais centrais da cidade. Faz parte do “centralised decentralised
system” (sistema descentralizado centralizado), isto é, correntes secundárias, que
respondem e são reguladas por uma corrente principal.
A Zona II, ou zona de transição, era, há não muito tempo, habitada por
“independent wage earners” (assalariados independentes), ou seja, por trabalhadores
americanos que ganhavam bem e, também, continha as residências de famílias mais
ricas. Os trabalhadores foram para a zona III; e, ao norte, também na zona III, à beira do
lago, agora se estende à gold coast (costa dourada), o bairro de ouro dos milionários e
bilionários.
Entre o loop e a zona III, os mais pobres imigrantes judeus, italianos e negros se
estabeleceram. Também é aqui que, quase em contato com a gold coast, que se encontra
o “rooming house district”, o distrito de quartos mobiliados (ZORBAUGH, 1929,
1926)14. Toda essa região, diz Burgess, é uma zona de “deterioration”, parte da cidade
desintegrada onde slums (favelas), colônias de imigrantes, missões e settlements
(assentamentos) ficam lado a lado do “bairro latino”, das colônias de artistas, e dos
centros radicais: a “pequena Sicília”, povoada por italianos, é uma região insegura, e
onde há mais assassinatos.
A seguir se abre o “Rialto”, uma rua populosa que corre para o oeste. O Rialto é
o lugar onde esta população errante de homens sem casa, os homeless men, conhecidos
pelo nome de Hobos, se aglomeram. É também nesse lugar que se originou o termo
Hobohemia (ANDERSON, 1923)15.
A população da zona III corresponde a um nível social mais elevado. Ela é
constituída, em sua maior parte, de trabalhadores americanos. Deutschland é o nome
dado, em troça, a uma região onde a maioria dos judeus se estabeleceu, conseguiram
sair do gueto e buscam imitar o modo de vida dos judeus alemães. Mas o habitante
dessa área aspira se instalar em hotéis residenciais (residential hotels), em grandes
prédios de apartamentos, ou em “satellite loops”, - distritos claros e de muita luz (bright
light areas).
A zona IV, em Chicago, corresponde à linha do parque, do Jackson Park no sul
ao Lincoln Park no norte. Ao sul, se localiza a "comunidade universitária", que forma
uma cidade pequena, muito perto de grandes hotéis, e não muito longe do lago. Os
distritos ao longe são grandes subúrbios que ainda não tomaram forma.
O maior número de gangues é encontrado na Zona II. Mas elas também se
espalharam para muitas outras partes da cidade (THRASHER, 1927; SHAW, 1929;
1930).
14
Harvey W. Zorbaugh estudou a região de North Shore, a leste do braço norte do rio, onde dois bairros
de nítido contraste estão em contato: o de milionários, à beira do lago, e uma área onde 23.000 pessoas
(62% dos quais são solteiros, e em sua maioria homens) vivem em quartos mobiliados em 1.139 casas.
Muitos estão empregados, estudantes de escolas de música de North Side, artistas de todas as categorias:
formam uma população muito móvel, que se renova a cada quatro meses em média.
15
Em sua pesquisa Anderson faz uma descrição dos boêmios, dos homens errantes, de seus
acampamentos e suas regras (com destaque, em particular, para a propriedade comum e o uso coletivo de
instrumentos de cozinha), bem como de suas reuniões ao ar livre, etc.
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I. O loop.
II Área em transformação.
III Área residencial da força de trabalho.
IV Paris e universidades.
O retângulo tracejado representa a "faixa
negra", ou o distrito negro.
Gangues são grupos formados por jovens e adultos entre 16 a 25 anos, são
frequentemente definidos localmente e seguem os mais diversos objetivos: atletismo,
distrações e, às vezes, depredações e crimes.
As gangues, diz Thrasher, buscam regiões mais ou menos pitorescas,
onde suas atividades podem ser realizadas em condições um tanto
fantasiosas: como as ruas onde existem mercados, lojistas, parques,
espaços abertos, ao longo dos canais, das ferrovias, das docas, e dos
bairros menos frequentados.
Elas se infiltram nas regiões "intersticiais", em todas as fissuras e buracos encontrados
na estrutura do organismo social. São regiões abandonadas por quem vive em bairros
menos desorganizados e melhor localizados, e meio invadidas pela indústria e pelo
comércio. Essas regiões são como espaços lacunares, onde a vida social é apresentada
de forma esporádica, instável e menos resolvida.
***
16
Existe cerca de 10 milhões de negros nos Estados Unidos, de uma população total de 100 a 110
milhões, perfazendo quase um décimo da população. Antes da guerra, nove décimos dessa massa negra
ficava no sul e 10% no norte. As migrações de negros para o norte começaram em 1916. Houve duas
ondas principais, uma entre 1916 e 1920 e a outra entre 1922 e 1924.
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***
No diagrama acima (Quadro 3), na Zona II, está marcada a localização do gueto
que, na verdade, se situa na mesma Zona, um pouco mais ao sul. A história do gueto de
Chicago foi contada por Louis Wirth (1928) em um livro muito animado, e completado
por ele na história do gueto em geral. Em Chicago, é aqui que o maior número de
Judeus e, especialmente, os que chegaram recentemente, se acostumaram a viver. Certa
vez, perguntei a um rico comerciante judeu em Chicago se o "gueto" era apenas um
local de passagem para eles. "Sem dúvida", ele me disse, "há alguns que emergem
rapidamente e penetram nas mais altas esferas sociais. Mas a maioria deles permanece:
moram lá e morrem lá. Há muitos que nunca deixaram seu bairro, nunca pegaram um
bonde para descer o circuito”.
Na Maxwell Street é realizado todos os dias um mercado onde todos os
comerciantes são judeus e que proporciona um dos aspectos mais extraordinários desta
grande cidade. Também vemos boêmios e adivinhos, que recitam uma música bizarra,
sentados no limiar de uma loja ou na entrada de um corredor, envoltos em xales
berrantes, e as cabeças apertadas em um lenço escarlate. Ouvem-se todas as línguas da
Europa faladas por lá e se vende ou revende todos os bens imagináveis: frutas, bonés,
roupas, móveis, etc..
Lá também se encontra todos os tipos semíticos que conhecemos. O judeu da
Capela Branca está próximo do de Varsóvia ou de Petersburgo.
Há todas as classes sociais. Pobres demônios traficantes, atrás de bazar. Jovens
corretos e elegantes que gesticulam como orientais. E todos possuem trajes europeus, e
pronunciam o inglês à sua maneira, com entonações inesperadas: "O que você quer,
senhor?" - Venha, senhora, venha!
Quanto aos compradores, muitos são negros e italianos. Aqui, um vendedor
italiano de laranjas ou bananas. Lá, uma negra experimenta sapatos baixos.
Os poloneses também.
O relacionamento entre poloneses e judeus em Chicago, diz Wirth (op.
Cit, p. 229), merece atenção. Esses dois grupos se odeiam
completamente. Mas vivem lado a lado no lado oeste e no lado
noroeste. Eles experimentam um com o outro um profundo sentimento
de hostilidade e desprezo desdenhosos, mantidos por seus contatos e
seu atrito histórico na Polônia. Mas negociam entre si na Mil'waukee
Avenue e na Maxwell Street. Um estudo de caso numeroso mostra que
muitos judeus não se instalam nesses lugares porque sabem que os
poloneses são a população predominante no bairro, mas que os
poloneses vêm de todas as partes da cidade para a Maxwell Street, e
garantiram que se deparará com as apresentações externas dos
comerciantes judeus que estão familiarizados com eles. Esses dois
grupos de imigrantes, que viveram tanto tempo lado a lado na Polônia
e na Galiza, se adaptaram um ao outro, e essa adaptação persiste na
América. O polonês não está acostumado à loja de preço fixo. Quando
ele vai fazer uma compra, fica satisfeito apenas se pode pechinchar e
derrotar o judeu em sua terra.
Em Nova Iorque, os primeiros judeus (Mayflower stock) vieram da Espanha e
Portugal, e sempre representaram a elite da comunidade. Os judeus alemães chegaram
dois séculos depois, depois os russos e os poloneses no final do século XIX. Em
Chicago, pelo contrário, os primeiros judeus eram alemães. O elemento espanhol-
português foi introduzido apenas recentemente, da Turquia e da Palestina, e não da
Espanha. Os alemães representaram a aristocracia, até a guerra e a Revolução na Rússia,
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20
From Odessa to Chicago: an account of the migration and settlement of a Jewish family. Citação em
Wirth, op. cit., pp. 206-207.
21
Filaketério é uma faixa de pergaminho, com escritos religiosos, que os judeus enrolam no braço e
prendem à fronte durante as orações. (Nota do tradutor).
22
Tefilin, em português. É o nome dado a duas caixinhas de couro, presas a uma tira de couro de animal
kasher, nelas se encontra um pergaminho com os quatro trechos do Torá em que se baseia o uso dos
filaketérios. (Nota do tradutor).
23
The experiences of a Maxwell Street chickendealer. Manuscrito. Citado por Wirth, op. cit, p. 207.
24
A população judaica de Nova Iorque em 1925 era de 1.728.000, um terço da população total da cidade.
Em uma década (1916-1925), Manhattan perdeu 200.000 judeus. Washington Heights é a única parte da
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Mais tarde, eles foram se mudando para outras regiões, mais excêntricas (como a
terceira área de estabelecimento): Rogers Park, Ravenswood, Albany Park, North Shore,
South Shore e, finalmente, para os subúrbios. Em síntese, a característica dos
estabelecimentos judeus em Chicago é que eles são separados um do outro e que
correspondem a diferentes gerações. Os judeus que chegaram primeiro agora são os que
se encontram mais distantes do distrito chamado gueto, onde os novos imigrantes ainda
tendem a se estabelecer25.
***
Se você quiser ir direto ao coração dos bairros habitados por imigrantes, siga a
Halsted Street, que os cruza de norte a sul. Jane Addams (1916, pp. 97-100), que fundou
a Hull House26, o maior assentamento de Chicago, descreveu esta rua e esses bairros
quinze anos atrás: A Halsted Street tem 51 quilômetros de extensão. É uma das maiores
rotas de Chicago. A Polk Street a atravessa no meio, entre os stocks yards (pátios de
estoque) ao sul, e os shipbuildings yards (pátios de construção naval) no lado norte do
rio Chicago. Nos 9 quilômetros que separam essas duas indústrias, a rua está repleta de
açougues e mercearias, bares sórdidos e cativantes, e lojas de roupas pretensiosas.
A Polk Street, à medida que nos afastamos de Halsted em direção ao Ocidente,
rapidamente se torna mais próspera: se a seguirmos por uma milha a leste, ela se tornará
cada vez mais triste; na esquina da Clark Street com a 5th Avenue, atravessa um distrito
de prostituição com pequenas ruas escuras.
Hull House já esteve nos subúrbios. Mas a cidade cresceu rapidamente. Agora, o
assentamento está no ponto de encontro de três ou quatro colônias estrangeiras. Entre
Halsted e o rio vivem cerca de dez mil italianos: napolitanos, sicilianos, calabreses, aqui
e ali um lombardo ou um veneziano. Ao sul da 12th Street existem muitos alemães, e as
ruas laterais são deixadas inteiramente para judeus poloneses e russos. Mais ao sul, os
assentamentos judeus estão imperceptivelmente perdidos em uma vasta colônia de
imigrantes da Boêmia, tão grande que Chicago é a terceira cidade boêmia do mundo.
No noroeste, encontramos muitos canadenses franceses, que mantiveram o
espírito de clã, apesar de sua longa residência nos Estados Unidos; no norte, irlandeses e
americanos de primeira geração. Nas ruas mais a oeste e norte estão assentadas famílias
ricas, falando inglês, muitas das quais possuem suas casas e moram lá ou em bairros
vizinhos há anos.
27
Quadro 4 - Quadro étnico de Chicago. Escala de 1: 150.000
cidade onde a população judaica aumentou, enquanto Coney Island se tornou judeu na proporção de 96%.
(JEWISH COMMUNAL SURVEY OF GREATER NEW YORK, 1928).
25
Wirth, porém, observa que muitos judeus, tendo passado de uma região para outra, ou porque fizeram
negócios ruins ou porque estão cansados de viver assim entre estranhos com quem não conseguem se
relacionar, finalmente retorne ao ponto de partida. É o que ele chama de “retorno ao gueto”.
26
A Hull House foi um empreendimento de assentamento fundado em 1889 por Jane Addams e Ellen
Gates Starr na cidade de Chicago, para abrigar imigrantes europeus recém-chegados à cidade. (Nota do
tradutor).
27
O mapa aqui reproduzido foi estabelecido por nós. Usamos o mapa que Thrasher (1927) publicou em
seu trabalho já citado, sob o título Chicago's Gangland: 1923-1926. Agradecemos ao Sr. Baulig por sua
preciosa ajuda nesta ocasião. [O mapa original de Thrasher pode ser consultado online na Library of
Congress no endereço: https://www.loc.gov/item/2013586117/. – Nota do tradutor].
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Legendas
1. Parques e bulevares
2. Indústrias e ferrovias
3. Alemães
4. Suecos
5. Tchecoslovacos
hecoslovacos
6. Poloneses Lituanos
7. Italianos
8. Judeus
9. Negros
10. População mista
C.G: Gold Coast
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comercial dos poloneses. Em direção ao oeste, estende-se a Madison Street, por onde
passam dois terços dos seus moradores: é a artéria principal de Hobohemia (Bum Park e
Slave Market, onde os escritórios de emprego se aglomeram). Local, também, de
hospitais, clínicas, dependências de escolas médicas.
No lado oeste da região industrial, uma colônia de negros se estabeleceu. Ao sul,
e se estendendo para oeste até Garfield Park, fica a chamada área americana.
***
Certamente nada substitui o contato direto com a vida dos grupos. A escola de
sociologia de Chicago e os moradores dos assentamentos fizeram um esforço notável
para descrever os principais aspectos desta cidade, onde tantos elementos de todas as
nacionalidades e todas as classes fermentam juntos, e onde há tantas combinações e
reações de química social que só pode ser observada estando lá.
Outras pesquisas ainda estão em preparação: uma delas, por Ernest R. Mower
(1927), sobre a desorganização da família em Chicago; outra, por Walter С. Reckless
(1925), que busca compreender a História natural das áreas de vício (vice areas) em
Chicago28. É importante dar uma idéia desses trabalhos, especialmente interessantes,
como já vimos, pelo fato de eles se relacionarem com casos particulares.
Mas temos, por outro lado, dados estatísticos que podem nos permitir colocar
outros problemas. Outras questões, por exemplo, como a de examinar em que condições
a assimilação desses grupos de imigrantes continua, até que ponto eles parecem capazes
de se misturar com os americanos, e qual é a atitude variável de cada um deles a esse
respeito.
Gostaríamos de indicar o que os dados numéricos nos ensinam neste ponto. Ao
mesmo tempo, é a melhor maneira de penetrar ainda mais na estrutura social desta
cidade. Este será o assunto das duas últimas partes do nosso estudo.
III - Chicago, cidade dos imigrantes29
Os imigrantes em Chicago no ano de 1920, de uma população total de
2.700.000, eram nada menos que 805.482, ou seja, quase um terço da população total da
cidade30. De outra mão, houve 1.143.896 de crianças nascidas de estrangeiros (de pais
ou apenas um, estrangeiros), ou 42,5% da população total; e 642.871 crianças nascidas
de pais americanos, ou 23,7%. Vamos comparar essas proporções com as que
encontramos, na mesma data, para os Estados Unidos como um todo e para Nova
Iorque31.
Quadro 5 - Percentagem sobre a população total
28
Tese defendida na Universidade de Chicago em 1925, sob orientação de Ernest Burgess W, e
posteriormente publicada em livro, sob o título: Vice in Chicago. Ver Reckless (1933). (Nota do tradutor).
29
Ver nota 27.
30
Foram mantidos os dados de 1920, o último a ser publicado. O Census de 1930 e o Statistical Abstract
correspondentes ainda não tinham sido publicados nesta data.
31
Os filhos de estrangeiros são aqueles cujos pais, ou pelo menos um dos pais nasceu fora dos Estados
Unidos.
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mais de 8% do total formam uma ilha em Illinois, e quase todos vivem em Chicago:
87%32 deles.
Noss Estados Unidos como um todo, observa Baulig (op. cit.),
...enquanto
enquanto o elemento urbano, para os escandinavos, varia entre 47 e
63%, atinge entre os poloneses e italianos 84,4% e entre os russos.
88,6%. [É que] os recém-chegados
chegados estão se aglomerando
aglomera nas cidades e
nos centros industriais.
industri
Mas o que exatamente esses russos representam? A grande maioria deles é judia.
Havia 102.095 em 1920. No entanto, de acordo com o Wirth, existem aproximadamente
300.000 judeus em Chicago. Destes, 159.518 declararam noo mesmo ano, como língua
materna, o iídiche ou hebraico. Mais da metade,
metade, portanto, é russa ou oriental, o que
geraria cerca de 150.000, ou 110.000 de acordo com uma outra avaliação33. Como
existe uma pequena proporção de orientais em Chicago, o número de judeus russos seria
úmero total de russos (judeus e não judeus)34.
quase igual ao número
Os irlandeses “atraíram para as áreas urbanas do leste;; eles são muito numerosos
em Massachusetts: neste estado e no de Nova Iorque,, encontramos 45,5% de todo e, se
somarmos Pensilvânia e Nova Jersey, 63%. Há, no entanto, um grande grupo em Illinois
I
(mais do que em Nova Jersey). É o centro urbano de Chicago que os atrai. Embora os
irlandeses que chegam aos Estados Unidos tenham morado em seu país no interior e
tenha estado ocupados com a cultura, a grande maioria
maioria deles se instala nas cidades. De
todos os que estão em Illinois,
llinois, 77,5% estão em Chicago. Há um pouco mais de inglês,
escocês e galês nesse estado: há apenas 49% deles em Chicago, metade, em vez de mais
de três quartos. Somente os russos (principalmente judeus)
judeus) dão uma proporção maior.
Quadro 7 - Porcentagem de imigrantes de cada nacionalidade
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37
Fizemos a soma aritmética das diferenças entre o número de imigrantes de cada um desses distritos e a
média e dividimos essa soma pelo número desses distritos, o que indica a diferença média. Como a
população média dee imigrantes não é a mesma, para explicar essa desigualdade, dividimos a diferença
média pelo número médio de imigrantes na categoria por distrito, o que indica a diferença relativa.
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38
Baseamo-nos, para tal, nos dados da população de 1910.
39
Calculamos a mediana (que tem um valor muito próximo da média), considerando apenas os trinta e
um distritos incluídos na coluna 4.
40
Não está incluído no nosso plano.
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lago pela área mobiliada e pela fina linha das casas dos milionários. No nordeste, por
fim, se encontra com os estabelecimentos suecos.
Os irlandeses são os mais aglomerados e se localizam em dois distritos (35º e
13º) limitados ao norte pela Washington Boulevard e ao sul pela Roosevelt Road (a
oeste da Crawford Avenue, quase nos limites da cidade), e em outros dois (30º e 31º)
entre as 43th e 63th Streets (ao norte e ao sul), indo para a State Street e o Blakek belt a
leste; e, ao norte e ao sul do Garfield Boulevard, chegando até ao sudoeste e ao oeste da
Comunidade Universitária e do Washington Park.
Os suecos e os poloneses se instalaram principalmente nos distritos com densa e
grande população, mas não difere em mais de um sexto da média. Há um grande
número de suecos no extremo norte de Chicago, entre a Howard Street (muito perto da
Evanston) e da Devon Avenue, e na Belmont Avenue no sul, e nas duas margens do
braço norte do rio e do canal da costa norte. Ou seja, a leste do primeiro grupo de
estabelecimentos alemães41. Eles se estendem de lá para o Lago Michigan (23º e 25º).
Quanto aos estabelecimentos poloneses mais densos, eles se desenvolvem ao
norte e ao sul da Division Street, a oeste do braço norte do rio, e ao sul dos alemães e
suecos, em contato com o canto noroeste do loop (16º e 17º, entre a Fullerton Avenue
ao norte e a Kinzie Street ao sul)42.
Os distritos onde os italianos e os russos são mais numerosos têm uma
população bastante abaixo da média. Para os russos, menor que a média de um sexto
para os italianos.
Eles são claramente diferentes de outros distritos com uma alta proporção de
imigrantes. Como os italianos são mais numerosos em um conjunto de distritos que
representam grupos populacionais menores, concluímos que o grau de condensação é
mais alto do que a diferença relativa indica (coluna 5). Os italianos devem assim se
encontrar mais concentrados do que os russos.
Os russos são especialmente numerosos em dois distritos: um (15º), que também
é um grande centro de estabelecimentos poloneses, se estende entre a North Avenue, no
norte, a Chicago Avenue, no sul, e ao leste da Ashland Avenue. Na verdade, este é uma
grande área judaica, a leste do Humboldt Park, e se encontra em contato com os
poloneses ao leste, e os italianos ao sul. O outro distrito (34º), ao sul da Roosevelt Road
e do primeiro grupo de irlandeses, no extremo oeste, vai até os limites da cidade, com
um assentamento judaico a oeste de Douglas Park.
Os italianos têm três estabelecimentos principais: o primeiro (19º), é um distrito
situado entre a Van Ruren Street ao norte, a Roosevelt Road para o sul, com a
ramificação sul do rio para o leste e a Hermitage Avenue para o oeste. Este é o bairro
que mencionamos. Um bairro atravessado pela Halsted Street, e separado do gueto pela
Roosevelt Road, no centro da região mais populosa de Chicago após o loop.
O outro distrito, no norte, se encontra mais em contato com a alça, entre a Center
Street no norte, e a alça do rio ao sul, e, no oeste, com as Orleans e Sedgwick Streets,
atrás da Costa Dourada, que as separa do lago Michigan. É aqui que a Little Sicily está
localizada.
A zona italiana também se estende para um terceiro distrito (17º). Este último
está localizado do outro lado do rio, a oeste, em contato com os poloneses do norte e os
russos (judeus) no noroeste.
Esses três estabelecimentos italianos, os dois primeiros separados apenas pelo
rio, e o terceiro ao sul, estão muito próximos, e forma um todo muito característico. Eles
41
Esses estabelecimentos também estão fora do plano, ao norte, além da Belmont Avenue.
42
A Kinzie Street é equidistante da Chicago Avenue e da Madison Street (que correm paralelas a ela).
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Desde 1908, os imigrantes que retornam à Europa são registrados. Se distinguirmos os países de
imigração antiga e recente, de uma centena de imigrantes, encontramos dezesseis retornos à Europa e
trinta e oito para o segundo, apenas 8% para os irlandeses e 7% para os judeus. Jenks; Lauck, op. cit., pp.
38 e segs.
44
Abaixo reproduzo passagens de uma carta enviada à Polônia por um imigrante daquele país, fato
sugestivo sob vários pontos de vista. Ele não parece considerar a possibilidade de um casamento fora do
seu grupo.
Queridos pais. Peço-lhe para não ficar com raiva e não me desmerecer
quando vocês lerem o que eu lhe escrevo. Escrevo que é doloroso viver
sozinho. Então, por favor, encontre uma garota para mim, mas uma garota
honesta, porque na América não há uma única mulher polonesa como tal. -
21 de dezembro de 1902.
Muito obrigado pela carta de vocês, fiquei feliz em recebê-la. Quanto à
garota, embora eu não a conheça, pelo menos o meu companheiro, que a
conhece, diz que ela é forte e gentil (stalely and pretty), e eu confio nele,
assim como em vocês, meus pais.
Por favor, diga-me qual das duas irmãs virá, a mais velha ou a mais nova,
Aledsandra ou Stanislawa? (Carta encontrada em Thomas; Znaniecki, The
polish peasant [O camponês polonês], 1918-1920, t. II, p. 259).
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***
Não sabemos o valor dessa proporção por nacionalidade, nem para Chicago nem
para esses distritos, e somos obrigados a manter os números acima. Por outro lado,
sabemos qual é o número de estrangeiros de cada nacionalidade contidos nesses
distritos. Portanto, é possível fixar nossa atenção naqueles que contêm uma grande
maioria de estrangeiros de tal ou qual nacionalidade, e supor que os relatórios
correspondentes aos mesmos distritos estejam relacionados principalmente aos
descendentes desses estrangeiros.
Dessa forma, teremos um índice da velocidade maior ou menor com que as
várias categorias nacionais se assimilam. Essa velocidade será maior (e vice-versa)
quando a proporção de pessoas com apenas um dos pais estrangeiros for maior.
É no 19º distrito (estabelecimentos italianos ao norte do gueto) que encontramos
a maior massa de italianos, mais de 15.000. Há também 1.800 gregos, 1.200 russos e
3.700 poloneses. Nenhuma outra nacionalidade chega a 1.000. Em nenhum outro lugar
(exceto no 17º distrito), também, a resistência à assimilação é mais forte. A proporção
acima leva, de fato, o valor 10. No 14º distrito, os italianos são numerosos, mas há um
pouco mais de poloneses; no 22º distrito também, mas ao lado de fortes contingentes
alemães e húngaros (respectivamente: 6.000, 4.000 e 4.500). A média dos números
indicados na tabela acima, para esses três distritos, é de 18,8.
No 20º distrito há uma forte maioria de russos (6.800, aos quais se somam 2.900
lituanos). A proporção acima cai para 6,7. É o gueto. Está-se no cimo do gueto, porém,
no extremo oeste da cidade. No 34º distrito estão incluídos principalmente russos
(17.600) e tchecoslovacos (10.500).
No 1° distrito, ao sul do gueto, existem duas massas iguais de russos e de
tchecoslovacos: a proporção cai para 10,2. No 13º, um pouco mais ao norte, os russos se
misturam com os irlandeses (6.000 e 4.000, respectivamente): a proporção sobe para
38,2. Observamos que os irlandeses assimilam-se muito rapidamente.
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No 15º, mais ao norte, perto da North Street, existem 16.000 russos e 11.000
poloneses: a proporção cai, mas para apenas 15,8. Enquanto os russos no gueto são
todos judeus, estes, em parte, parecem ser da autêntica raça eslava45.
Nos 4º, 8º, 11º e 16º, pode-se dizer que existem quase apenas poloneses. À
proporção que estamos estudando é bastante baixa nesses quatro distritos: em média,
16,1. No 11º distrito, ao lado de 10.700 poloneses, existem 3.600 russos e 1.600
tchecoslovacos (distrito excêntrico, no centro-oeste); a proporção é a mais baixa: 11.6.
No 16º, onde há, com os poloneses, apenas um pequeno grupo de russos, é de 13,4. Nos
4º e 8º distritos, onde existem pequenos grupos de muitas outras nacionalidades, é de
16,8 e 22,4.
Em todos esses distritos, entre os italianos, russos (e tchecoslovacos) e
poloneses, a proporção de imigrantes de segunda geração com pais americanos, como
podemos ver, é muito baixa. Os judeus russos parecem ser os menos assimilados; não é
fácil dizer quais são os italianos e poloneses mais ou menos assimilados: parece que
geralmente não há mais de 10 a 15% que vêm de um "parentesco misto". Talvez,
contudo, no geral, essa proporção seja ligeiramente mais baixa para os poloneses do que
para os italianos.
O distrito mais puramente alemão é o 24º. Nele a proporção é 30, um pouco
mais alta, mas apenas um pouco, do que a média. No 26º distrito, ao lado de 8.600
alemães, há 5.600 suecos: nele a proporção sobe para 42,6. Isso é um sinal de que os
suecos se assimilam mais rápido que os alemães? No 27º distrito que possui 10.000
alemães, 5.000 suecos e 5.900 poloneses, a proporção cai para 35,7. O fato é que os
poloneses resistem à assimilação.
Vamos para os suecos. No 25º, existem 5.300 suecos, 4.400 alemães, 2.200
ingleses canadenses e 1.600 ingleses. A proporção é de 51,6, e isso é quase o máximo.
Como foi fixado em cerca de 30 somente para os alemães, podemos assumir que os
suecos se assimilam rapidamente (se não tanto quanto os ingleses!). No 23º distrito,
existem apenas 5.600 suecos e 6.100 alemães, a proporção é de 40. Deve ser maior,
contudo, apenas para os suecos.
Os irlandeses não estão em lugar algum na maioria (não mais do que
estrangeiros de nacionalidades não estudadas até agora). Parece que podemos fixar para
eles entre 40 e 45 à proporção que calculamos. A qual deve ser um pouco maior do que
para os alemães.
Seríamos levados, portanto, a retificar as conclusões às quais nos levou o estudo
do grau de concentração de grupos estrangeiros. Dissemos que os tchecoslovacos, os
russos e os italianos eram os mais concentrados e assimilavam a nova sociedade mais
lentamente, do que os alemães e irlandeses, e que os poloneses e os suecos ocupavam
uma situação intermediária. Na realidade, os poloneses parecem resistir à assimilação
tanto quanto os tchecoslovacos, os russos e os italianos. Contudo, por outro lado, os
suecos se assimilam mais rápido do que os alemães e os irlandeses. Classificamos,
portanto, essas nacionalidades, de acordo com o grau decrescente de assimilação:
irlandeses e suecos, alemães, e italianos, poloneses, tchecoslovacos e russos (judeus).
Isso corresponde aproximadamente aos resultados a que chegamos, levando em
consideração o tempo mais ou menos longo que se passou desde a provável chegada
desses imigrantes.
Conclusões
45
É aqui que a Igreja Ortodoxa Russa está localizada.
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Os poloneses, que são os mais relutantes, têm as seguintes proporções: 21% dos que vivem há menos de
cinco anos falam inglês; 50% daqueles que estão lá entre cinco e nove anos; 77% após dez anos (esses
números são muito mais baixos para as mulheres; 6, 20 e 56, respectivamente). Os judeus caminham
muito mais rápidos: antes de viverem por cinco anos na cidade, 64,5% dos homens (e 65,5% das
mulheres) falam inglês. Depois de dez anos, não há nenhum grupo em que encontramos mais de 20% dos
homens que não são capazes disso.
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É o mesmo com os negros. Mas enquanto, entre os judeus, a assimilação, que seria facilitada em
virtude de um nível social moderadamente alto, está mais lenta sob a influência étnica, entre os negros, os
dois fatores, econômico e étnico, fortalecem (no sentido de resistência à fusão). Um americano me disse
que um americano não pode se casar com uma negra, nem um americano com um negro, porque isso
equivaleria a se casar com sua cozinheira ou seu motorista. Não é o mesmo com relação a homens ou
mulheres que têm sangue indígena, pois "estes nunca foram escravos..."!
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ROMERO, Fanny Longa Romero. Resenha do
livro Tempos de Pandemia. Sociabilidades
Urbanas, Revista de Antropologia e So-
ciologia, v. 5, n. 13, pp. 213-220, março de
2021, ISSN 2526-4702.
RESENHA
https://grem-grei.org/numero-atual-socurbs/
∗
Doutora em Antropologia, e docente da UNILAB, campus dos Malês, Bahia. Orcid:
https://orcid.org/0000-0003-2750-6119. E-Mail: flongaromero@unilab.edu.br.
1
O livro contou com o incentivo do Grem-Grei, Grupos de Estudos e Pesquisa em Antropologia e
Sociologia das Emoções e Imagens. O Grem-Grei é uma composição de grupos de pesquisa vinculados ao
Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba. A primeira chamada
para publicações sobre a temática em pauta teve como resultado a produção do Suplemento Especial da
Rbse, Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, em maio de 2020.
2
O livro pode ser gratuitamente acessado através do link: https://grem-grei.org/editora-grem-grei/
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cidade Recife. A autora sintetiza essa cidade, na atualidade, como "uma cidade
fantasma", em que o sentimento de medo, segundo ela, "torna-se outra pandemia".
O nono capítulo, sob o título "Apontamentos das artes sobre epidemia e cidade",
de autoria de Lysie dos Reis Oliveira, é o primeiro dos artigos da coletânea a trazer uma
proposta de representações imagéticas, no contexto dos séculos XIV e XIX. Já no inicio
do texto, a autora oferece um dado sociológico, e de profundidade histórica, sobre a
temática epidemias, urbes e imaginários sociais, ao explicar que "na história das
cidades, as epidemias preencheram páginas bem como, telas e outros artefatos, foram
expressos por artistas de referência, autorizados pelas sociedades em que se inseriam".
O seu texto centra-se na produção de três artistas europeus dos períodos
referidos, que retrataram a peste negra e os imaginários dos horrores citadinos. Nesse
sentido, o artigo de Oliveira busca problematizar as descontinuidades de eventos e
processos históricos, em cenários diferentes, a partir da pergunta analítica de como a
epidemia invade a cidade, como lócus de compreensão sócioantropológica.
O medo como emoção também está presente no desenvolvimento desse artigo
pela via de análise de imagens de arte pictórica que desvelam representações e
imaginários sociais e os limites de explorar emoções da fascinação diante formas
imagéticas de horror.
Por fim, o décimo e último capítulo, de autoria de Mônica Lizardo, intitulado "O
que você cala – olhares sobre um tempo de pandemia" traz também uma proposta
imagética, mas voltada para o contemporâneo, através de um registro fotoetnográfico na
cidade de Belém do Pará, no Norte do país. O artigo se centra nas dimensões e
repercussões, situadas, da experiência de lockdown na região. Lizardo propõe um olhar
documental através de "retratos, percepções e sentimentos de pessoas durante a
quarentena imposta pela pandemia do covid-19, no coração da Amazônia".
É possível correlacionar o artigo da autora aos recentes eventos críticos vividos
por grande parte da população amazonense em um cenário de colapso sanitário e
político-institucional de mortes por falta de oxigênio. A figura do enfermeiro,
profissional de saúde, uma das personagens abordadas por Lizardo no seu texto, ajuda a
compreender, mesmo que ela não examine esses aspectos, as correlações entre a noção
de necropolítica, o fazer viver e deixar morrer, legitimado como soberania de Estado. A
autora traz um registro fotoetnográfico de pessoas que trabalham como feirantes e
permite situar os tempos de pandemia como uma dinâmica volátil de experiências
vividas em clima de medo, incertezas, esperança, desesperança, e angustias.
A questão básica que movimenta a rede de autores presentes no livro Tempos de
pandemia: reflexões sobre o caso Brasil versa sobre: o que a antropologia e, mas
extensamente, as ciências sociais, têm a dizer diante de incertezas extremas, situações-
limites ou eventos críticos como a atual experiência social da pandemia do covid-19,
vivida e sentida em escala global e local, de forma diferenciada? Tal questão é
instigante indo além de uma pergunta-problema de pesquisa; ela é convidativa para nos
interpelar sobre nosso papel como cientistas sociais, e como sujeitos históricos,
individuais e coletivos.
Permite-nos repensar, tal como nos inspira Veena Das (2020), de que "modo
aprenderemos a ver o que está acontecendo diante dos nossos olhos?", no âmbito de um
evento crítico contemporâneo que escancara, de modo contundente, profundas
desigualdades e atualiza mazelas histórico-sociais de opressão interseccional de etnia,
raça/cor, classe, geração, gênero e sexualidade na sociedade contemporânea. O livro
Tempos de pandemia: reflexões sobre o caso Brasil contribui assim para desvendar,
compreender e problematizar as emaranhadas teias de significados, contextualizadas no
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Brasil a partir das regiões Norte e Nordeste. Termino a resenha, portanto, com um
convite para sua leitura
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SocUrbs
Mar/jun de 2021
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