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JULIANA CARVALHO RODRIGUES

INDÍGENAS BRASILEIROS:
EM BUSCA DE UMA MEMÓRIA COMPARTILHADA

Mariana
Instituto de Ciências Humanas e Sociais/UFOP
2016
JULIANA CARVALHO RODRIGUES

INDÍGENAS BRASILEIROS:
EM BUSCA DE UMA MEMÓRIA COMPARTILHADA

Monografia apresentada ao Curso de


História do Instituto de Ciências Humanas
e Sociais da Universidade Federal de Ouro
Preto, como requisito parcial à obtenção
do grau de Bacharel em História.
Orientadora: Prof.ª Dra.Virgínia Buarque.

Mariana
Instituto de Ciências Humanas e Sociais/UFOP
2016
Agradecimentos

A Prof.ª Dra. Virgínia Buarque, pelo privilégio de ter recebido a orientação. E também
pelo estímulo e pela paciência para me auxiliar nesse trabalho.
A Prof.ª Manuela de Carvalho Rodrigues, minha irmã, pela disponibilidade, amizade,
carinho, e pelas valiosas contribuições dadas ao trabalho.
Ao Prof. Dr. Pablo Lima e a Raphaella Moraes da UFMG por me receberem e abrirem
as portas para os contatos iniciais com os indígenas do curso FIEI.
Ao Cacique Romildo e aos índios Pataxó das aldeias Imbiriçu e Guarani pelo
acolhimento e receptividade. E pela sua colaboração inestimável, sem a qual não seria
possível a realização deste trabalho.
A minha mãe que com muita sabedoria, afeto e paciência me ensinou a trilhar as
veredas da vida.
A toda minha família pelo inestimável apoio.
Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de
caçadas continuarão glorificando o caçador.
(Provérbio africano)
Resumo
Este trabalho apresenta uma reflexão sobre a possibilidade de construção de uma
memória compartilhada acerca dos indígenas brasileiros a partir de uma visão que
abarque a diversidade de culturas e identidades desenvolvidas por estes. Sua temática
surgiu de uma percepção da dificuldade de afirmação dos indígenas em suas lutas por
direitos. Foi feita uma revisão bibliográfica, aliada a interpretação de fontes produzidas
mediante políticas interculturais, tendo como principais objetivos: refletir sobre as
motivações histórico-culturais para a crise identitária indígena, em suas articulações
com o risco de perda das memórias, face às mudanças do tempo presente; apontar a
importância das relações interculturais nas configurações identitárias indígenas; analisar
as possibilidades de uma memória compartilhada e o papel da educação nessas
construções. Pensamos em como as políticas interculturais podem criar espaços de
memória que auxiliam na superação da crise identitária indígena, já que tentam mostrar
quem são os indígenas brasileiros em suas interrelações, ao invés de absolutizar as
diferenças ou simplesmente assimilá-las. Buscamos corroborar a hipótese de que através
de relações interculturais é possível a construção de uma memória compartilhada que
considere mais a identidade étnica do que os interesses e os poderes socialmente
determinantes.

Palavras-chave: memória, indígenas, educação intercultural.

Abstract
This paper presents a reflection on the possibility of building a shared memory about
Brazilian Indians from a vision that embraces the diversity of cultures and identities
developed by them. It´s themes arose from the perception of the difficulty of affirmation
of indigenous peoples in their struggles for rights. In terms of methodology, it was made
a literature review, ally with the interpretation of sources produced by intercultural
policies. Its main objectives are: to reflect on the historical and cultural reasons for the
indigenous identity crisis, articulated with the risk of loss of memory, face the changes
of present time; pointing out the importance of intercultural relations in indigenous
identity configurations; examine the possibilities of a shared memory and the role of
education in these buildings. Intercultural policies can create memory spaces that help
in overcoming the indigenous identity crisis, by trying to show who are the indigenous
Brazilians in their interrelations, rather than think of absolute differences or simply
assimilating them. In this work we try to corroborate the hypothesis that through
intercultural relations it´s possible the construction of a shared memory that considers
more the ethnic identity than the interests and the social determinant powers.

Key-words: memory, indigenous, intercultural education.


Lista de abreviaturas e símbolos

FIEI - Curso de Formação Intercultural de Educadores Indígenas


FUNAI – Fundação Nacional do Índio
IEF - Instituto Estadual de Florestas
MEC – Ministério da Educação
ONG – Organização não governamental
PCN - Parâmetros Curriculares Nacionais
PLIDEF - Programa do Livro Didático/Ensino Fundamental
PNLD - Programa Nacional do Livro Didático
UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais
UNESCO - Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura
SUMÁRIO

Introdução..........................................................................................................................7
Para começar a pensar: cultura, identidade, relações culturais e memória......................10
1. Cultura.................................................................................................................10
2. Relações culturais e multiculturalismo................................................................12
3. Identidade, etnicidade e crise identitária.............................................................18
4. Memória...............................................................................................................22
4.1.Memória manipulada...................................................................................23
Construções da Memória: Discursos Possíveis...............................................................25
1. Na historiografia, um olhar sobre o outro............................................................25
2. Um filme, uma ideia de si mesmo......................................................................33
Em busca de uma memória compartilhada......................................................................37
1. Educação: políticas interculturais e suas iniciativas............................................37
1.1.FIEI................................................................................................................39
1.2.Índio Educa....................................................................................................40
2. O novo bom selvagem.........................................................................................40
Conclusão........................................................................................................................44
Referências documentais.................................................................................................46
Referências bibliográficas...............................................................................................47
INTRODUÇÃO

____________________________________________________________

Nas ultimas décadas tem se percebido um aumento nas políticas afirmativas


das minorias. Essas minorias, tentando superar a discriminação e a marginalização,
buscam o reconhecimento de suas identidades e de seus grupos étnicos e culturais. No
entanto, apesar das reinvindicações estarem aumentando, as violações aos direitos
humanos também se multiplicam (CANDAU, 2008, p.47). No contexto educacional é
possível perceber um reflexo desses empates sociais, principalmente com a
implementação da Lei 10.639/03, que coloca a obrigatoriedade do ensino das historias
indígenas e afro-brasileiras nas escolas. Nesse contexto, inicia-se uma revisão
historiográfica que tenta abarcar a diversidade de memórias e histórias que formam o
Brasil, pensando a escola como um lugar essencial para que as mudanças sociais
ocorram. Assim, a temática deste trabalho surgiu de uma percepção da dificuldade de
afirmação dos indígenas em suas lutas por direitos, havendo uma necessidade de
legitimar as políticas de inclusão deste, a partir de diálogos verticais e não impositivos.
Segundo Gomes, podemos pensar em diferentes possibilidades de ser indígena
no Brasil hoje (GOMES, 2012, p.13). Portanto, partindo do pressuposto de que a
memória acerca dos indígenas brasileiros é fragmentada, faremos uma reflexão sobre a
possibilidade de construção de uma memória compartilhada através da educação. A
primeira coisa importante de se ressaltar é que ao falarmos em memória compartilhada,
não estamos fazendo referência a uma visão unívoca do índio e, sim, a uma visão que
abarque a diversidade de culturas e identidades desenvolvidas por estes.
Os principais objetivos do trabalho são: refletir sobre as motivações histórico-
culturais para a crise identitária indígena, em suas articulações com o risco de perda das
memórias, face às mudanças do tempo presente; apontar a importância das relações
interculturais nas configurações identitárias indígenas; analisar as possibilidades de uma
memória compartilhada e o papel da educação nessas construções. Para tanto, em
termos metodológicos, recorreu-se a um esforço de revisão bibliográfica, juntamente
com a interpretação de fontes produzidas mediante políticas interculturais.
O trabalho se divide em três partes. Inicialmente são apresentados alguns
conceitos que auxiliam na compreensão do tema. Primeiro, com base nas leituras de
Clifford Geertz e Terry Eagleton, discutimos o que é cultura, tentando entender seus

7
limites e suas configurações. Em seguida, passamos a pensar qual o papel das relações
interculturais e das hibridizações nessas construções, através dos conceitos
desenvolvidos por Vera Candau, Marshall Sahlins e Rosângela Faustino. A partir destes
conceitos, podemos pensar as identidades étnicas, em suas relações com a constituição
das diferentes culturas, como apontado por Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo
Viveiros de Castro. Por fim, podemos refletir sobre a memória, o espaço onde estas
construções confluem. Tentamos delimitar a visão de memória que será aqui abordada,
a partir da perspectiva de Paul Ricoeur, e mostrar as dificuldades provenientes de seus
abusos.
No segundo capítulo tentaremos indicar que a memória que foi construída
sobre os indígenas brasileiros é fragmentada. De um lado, possuímos a visão do
indígena sobre sua própria cultura, que será analisada tendo por base os Pataxó de
Minas Gerais e os Yawalapiti de Castro. De outro, a memória “oficial” que vem sendo
construída desde o século XVI. Tentamos pensar a quais propósitos estas memórias
servem e de que forma foram constituídas.
No ultimo capítulo, pensamos na possibilidade de construção de uma memória
compartilhada através de políticas interculturais voltadas para a educação. Assim, são
apresentados dois projetos e suas contribuições para o tema. Por fim, discorreremos
sobre a concepção do “novo bom selvagem” que vem sem construída e a forma como
ela vem sendo apropriada pelos indígenas, refletindo sobre seus desdobramentos para o
compartilhamento da memória.
De forma geral, tentamos corroborar nossa hipótese de que através de relações
interculturais é possível a construção de uma memória compartilhada que considere
mais a identidade étnica do que os interesses e os poderes socialmente determinantes.
As políticas interculturais podem criar espaços de memória que auxiliam na superação
da crise identitária indígena, tentando mostrar quem são os indígenas brasileiros em
suas interrelações, ao invés de absolutizar as diferenças ou simplesmente assimilá-las.
Terminamos essa introdução com um pequeno texto produzido pelo professor Izaias
Hitoha Pataxó, que reflete a hipótese apresentada.
A educação indígena atual é reflexo de uma instrumentalização
experimentada nos primórdios de sua trajetória histórica em que ela
era desenvolvida nos círculos comunitários, sendo que toda a vida de
cada grupo étnico era entendida, avaliada, articulada e construída
nesse ambiente. Os valores educacionais eram trabalhados na
mentalidade das crianças desde a tenra idade, pois os mais velhos
acreditavam que uma criança, para ser um bom seguidor dos traços

8
conjuntivos intrínsecos, seria preciso, através da vida diária de seus
pais, um investimento adequado para a preparação de um futuro
próspero e longínquo. Como norma e prática a vivenciar, as crianças
eram influenciadas a cumprir com gosto e prazer os ensinamentos
transmitidos pelos pais e os anciãos da aldeia. Dias alvos eram
aqueles, onde todos, com os olhos fitos, assentavam a beira da
fogueira, e em especial numa noite de inverno sendo que o frio era
intenso e era prazeroso estar nesse meio e uma vista lunar sem igual,
nossos pais contavam as mais fascinantes histórias que outrora
acontecera com um guerreiro da tribo, outra vez ensinava como
definir as estações da lua, a planta certa para a preparação do remédio
certo e etc.
Passados séculos de convívio com o homem branco o indígena viu a
necessidade de se preparar melhor intelectualmente adentrando a
política externa das ideias ocidentais, em que pudessem, através da
dialética, construírem algo concreto e palpável para seus parentes que
se encontravam na aldeia sem a devida liberdade de pensarem e
refazerem uma realidade pautada nos valores tradicionais, que até
então encontravam, e em outras realidades comunitárias se encontram
manchadas por proposições e práticas não condizentes com suas
experiências milenares, afetando e prejudicando assim todo o contexto
cultural.
Hoje surge no cenário brasileiro moças e rapazes de todas as nações
indígenas motivados a procura de seu espaço na sociedade vigente e
ao mesmo tempo visando uma contribuição nas formulações de leis e
decisões a serem tomadas em se tratando de políticas internas e
externas.
Portanto a educação sempre fez parte do currículo histórico do
indígena, visto na atualidade uma conciliação de valores pedagógicos-
culturais de mentalidades diferentes, aglutinando assim forças para a
elaboração de novas diretrizes pedagógicos consistentes, sendo
benéfico para todas as comunidades tidas como indígenas1.

1
Izaias Hitoha Pataxo é professor de História na Escola indígena da Aldeia Guarani, em Carmésia, Minas
Gerais. Este texto fica exposto no mural da sala dos professores.

9
Capítulo 1
PARA COMEÇAR A PENSAR:
CULTURA, IDENTIDADE, RELAÇÕES CULTURAIS E MEMÓRIA
____________________________________________________________

1. Cultura
O conceito de cultura, ao longo dos anos, foi ganhando diversas interpretações.
Como coloca Faustino, “só os cientistas norte-americanos criaram mais de 150
definições para o termo até a primeira metade do século XX” (FAUSTINO, 2006, p.
61). Assim, é importante que esse trabalho seja iniciado com uma tentativa de
delimitação desse conceito, já que se pretende mostrar que as reivindicações de
memória e identidade feitas por muitos indígenas brasileiros, a exemplo dos Pataxó,
apoiam-se numa ideia de preservação cultural. Citando Geertz,

Kluckhohon conseguiu definir a cultura como: (1) ‘o modo de vida


global de um povo’; (2) ‘o legado social que o individuo adquire do
seu grupo’; (3) ‘uma forma de pensar, sentir e acreditar’; (4) ‘uma
abstração do comportamento’; (5) uma teoria, elaborada pelo
antropólogo, sobre a forma pela qual um grupo de pessoas se
comporta realmente’; (6) ‘um celeiro de aprendizagem em comum’;
(7) ‘um conjunto de orientações padronizadas para os problemas
recorrentes’; (8) ‘comportamento aprendido’; (9) ‘um mecanismo para
regulamentação normativa do comportamento’; (10) ‘ um conjunto de
técnicas para se ajustar tanto ao ambiente externo como em relação
aos outros homens’; (11) ‘um precipitado da história (GEERTZ, 2008,
p. 14).

Como é possível perceber, essas diversas interpretações acerca do que seja


cultura são tão amplas que acabam não dando um significado claro para esse conceito.
Assim, é justificada a colocação de Eagleton de que esse seja um dos termos mais
complexos da nossa língua só ficando atrás de “natureza”, termo que geralmente é
colocado como seu oposto (EAGLETON, 2011, p. 9).
Segundo Eagleaton, cultura significava, originalmente, “cultivo agrícola” ou
“lavoura”, sugerindo assim o cultivo de algo que cresce naturalmente (Ibidem, p. 9).
Dessa forma há uma relação entre o artificial e o natural, uma reciprocidade. A cultura
viria das nossas interações com o mundo, construindo e sendo construída através dessas
relações. Assim, esse conceito opõe-se à ideia de determinismo e estaticidade. A cultura

10
não seria “algo dado, posto, algo dilapidável também, mas algo constantemente
reinventado, recomposto, investido de novos significados” (CUNHA, 1986, p. 101).
Apesar da grande variedade de interpretações, trabalharemos aqui com um
conceito de cultura de viés semiótico. Usando aqui as palavras de Geertz, “acreditando,
como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele
mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise” (GEERTZ,
2008, p. 15). A cultura seria uma hierarquia de estruturas significantes, simbólicas e de
ordem pública. Ela seria um contexto que possibilitaria a compreensão de algo (um
processo, uma ação, um evento, etc.).
As formas culturais são articuladas através dos comportamentos e das ações
sociais. Elas estão presentes também em artefatos e em diferentes estados de
consciência (Ibidem, p. 27). Essas formas manifestam-se nas leis, na arte, na língua, nas
tradições, nas ideologias, na religião. Podemos chamá-las também de sistemas culturais,
reconhecendo nelas com isso, uma certa coerência ou articulação implícita de seus
elementos, não sendo possível, no entanto, recorrer a fórmulas prontas para
compreendê-los. Como esses sistemas são reconstruídos continuamente, é possível
perceber que apesar de haver uma estrutura convencional, eles são repensados na ação.
Eles existem de forma virtual e real. Assim, eles não são padronizados, homogêneos,
podendo haver variações dentro de um mesmo grupo.
A cultura é construída tanto no âmbito social quanto no pessoal - as sociedades
reelaboram sentidos e práticas a partir das diferentes interpretações, chegando a um
esquema simbólico que perpasse imaginários, mentalidades, condutas. Mas como cada
ação apresenta apenas uma parte do esquema (temos que pensar aqui na transmissão, na
recepção, na interpretação de cada evento), tais esquemas são costumeiramente
reconfigurados, podendo um mesmo signo receber um novo significado completamente
diverso do original. Essas atualizações da cultura podem se tornar bastante recorrentes,
dependendo da compreensão e da forma que forem retomadas pelo grupo (SAHLINS,
1990, p. 10).
A cultura seria também um discurso social, construído e reconstruído a partir
das necessidades de cada tempo e de cada sociedade. Podemos pensar, como diz
Sahlins, que a cultura é reproduzida, historicamente na ação, já que os esquemas são
repensados, criativamente, na prática. Cada evento (fato, acontecimento) seria uma
atualização singular de um fenômeno geral (tem maior alcance, uma tradição, um
movimento), uma realização incerta, casual, acidental do padrão cultural (Ibidem, p. 7).

11
Essas atualizações de cultura se relacionam muitas vezes ao contato com
diferentes sociedades. Portanto, analisaremos agora como as relações sociais
contribuem para a elaboração e a configuração das culturas e consequentemente para a
construção da memória, já que a esta se constrói através das representações culturais.

2. Relações culturais e multiculturalismo2


É comum encontrar na antropologia a afirmação de que para se estudar
sociedades consideradas primevas (antes denominadas “primitivas”) 3 deve-se levar em
consideração as mudanças impostas por forças externas, não sendo possível pensar em
uma lógica cultural autônoma. No entanto, essa afirmação deve ser tomada com
cuidado, já que devemos pensar na variedade de apropriações do sistema mundial por
diferentes sociedades.
Apesar de alguns pesquisadores afirmarem o isolamento de certas sociedades
primevas, o caráter dinâmico da sociedade, os encontros de diferentes povos, a
miscigenação, o contato com um mundo externo, fizeram-se presentes durante quase
toda a experiência humana. Assim, a história seria construída de forma dinâmica tanto
dentro de uma sociedade, quanto entre sociedades (SAHLINS, 1990, p. 9). Como diz
Lévi-Strauss,
É indubitável que os homens elaboraram culturas diferentes em
virtude do seu afastamento geográfico, das propriedades particulares
do meio e da ignorância em que se encontravam em relação ao resto
da humanidade, mas isso só seria rigorosamente verdadeiro se cada
cultura ou cada sociedade estivesse ligada e se tivesse desenvolvido
no isolamento de todas as outras. Ora, isso nunca aconteceu, salvo
talvez em casos excepcionais como o dos Tasmanianos (e ainda aí
para um período limitado). As sociedades humanas nunca se
encontram isoladas; quando parecem mais separadas, é ainda sob a
forma de grupos ou de feixes (LÉVI-STRAUSS, [1950], p. 3).

Sahlins chama de “reavaliação funcional de categoria” às atualizações culturais


já mencionadas acima. Grupos diversos, partindo de suas concepções próprias, avaliam
e interpretam diferentes eventos de formas variadas. Ao se relacionarem com outras

2
O termo multiculturalismo é entendido aqui como o reconhecimento oficial da diversidade cultural. Ele
foi inicialmente utilizado em 1960 no Canadá, em resposta aos movimentos separatistas, buscando uma
conciliação politica. Seu uso se populariza em 1971 após o discurso de Pierre Elliot Trudeau,
“Multiculturalismo dentro de uma base bilíngue”. Em 1982 é incorporado à Constituição canadense como
uma promessa de ampliação dos direitos de cidadão. No final do século XX, com o neoliberalismo, as
lutas sociais começam a se utilizar dessa terminologia em sua busca por igualdade (FAUSTINO, 2006,
p.76-77).
3
Apesar da utilização deste termo, essa ideia é considerada enganosa e ultrapassada, pois se apoia em uma
ideia de hierarquização das culturas.

12
sociedades, eles se apropriam, de forma diversificada, dos esquemas culturais
disponíveis, reelaborando constantemente os próprios esquemas (SAHLINS, 1990, p.
10). Podemos pensar que, ao se estudar qualquer sociedade é necessário considerar as
relações culturais. Como veremos a seguir, essas relações são abordadas de diferentes
formas, podendo ter caráter potencializador ou destrutivo.
Há diversos enfoques possíveis a respeito do multiculturalismo, mas em linhas
gerais, ele é o reconhecimento do outro na dinâmica das relações entre os diferentes
povos, influenciando diretamente na construção e reconstrução de suas representações
culturais. O multiculturalismo é apropriado pelas teorias políticas. Elas tentam mediar
as diferentes relações, que serão então construídas e representadas através da educação.
O primeiro enfoque desse tema importante de ser apresentado é o de Kátia dos
Santos, citada por Faustino. De forma sintética, a autora divide as correntes que tratam
desse tema em: multiculturalismo conservador; multiculturalismo liberal;
multiculturalismo essencialista/liberal de esquerda; multiculturalismo crítico e de
resistência (Apud FAUSTINO, 2006, p. 99-101).
O multiculturalismo conservador vem do neocolonialismo. Ele visa uma
hierarquização cultural, tendo a cultura “branca” e europeia como modelo. Busca,
através de políticas assimilacionistas, a construção de uma cultura comum. Na
educação, que é seu foco principal, os problemas educacionais são vistos como
provenientes dos alunos e não das condições educacionais (Ibidem, p. 99).
Já no multiculturalismo liberal pensa-se numa igualdade cultural, não havendo
hierarquização. No entanto, as relações de opressão presentes na sociedade são
desconsideradas e as desigualdades econômicas são aceitas. Na educação, também
prega a assimilação e o relativismo cultural, mantendo-se em uma visão eurocêntrica,
apesar de pregar o respeito pela diversidade. Essas duas visões são colocadas como
sendo as mais utilizadas ao se tratar as relações culturais no Brasil (Ibidem, p. 100).
A autora segue para a terceira corrente, o multiculturalismo essencialista/liberal
de esquerda. Nessa visão, busca-se uma essência das culturas e das identidades que teria
sido construída no passado, uma matriz cultural, criando a ideia de estaticidade das
culturas. Há uma preocupação maior com a autoafirmação de pequenos grupos do que
com a construção de um diálogo (Ibidem, p. 100 -101).
Por fim, temos o multiculturalismo crítico e de resistência. Nessa perspectiva a
cultura é vista como conflitiva e não harmoniosa. Ressalta-se a importância do diálogo,

13
buscando transformar as relações onde os significados e signos são construídos (Ibidem,
p. 101).
Outro enfoque importante é o de Vera Candau. Ele simplifica e, ao mesmo
tempo, elabora a proposta acima. Inicialmente a autora aponta duas abordagens
principais, sendo elas, a descritiva e a prescritiva. Na descritiva é priorizada a
compreensão e a definição da construção da formação multicultural nos diferentes
contextos. Já na prescritiva, o multiculturalismo seria uma forma de mudar a dinâmica
social. Nela, são criados parâmetros para as interações sociais (CANDAU, 2008, p. 50).
Essas abordagens dão origem a três diferentes perspectivas, segundo a análise
da autora. Elas são: o multiculturalismo assimilacionista, o multiculturalismo
diferencialista, também chamado de monoculturalismo plural e, por fim, o
multiculturalismo interativo ou interculturalismo4.
No multiculturalismo assimilacionista, se pensado a partir da abordagem
descritiva, percebe-se que há diferenças culturais, não havendo igualdade de
oportunidades. Na abordagem prescritiva, pensa-se a solução para essa desigualdade
através de uma tentativa de assimilação das culturas ou grupos marginalizados à cultura
hegemônica. No que concerne à educação, percebe-se uma política de universalização
de caráter monocultural, ou seja, busca-se a construção de uma cultura comum, sem
levar em consideração as diferenças, que devem ser suprimidas. Há aqui uma
hierarquização de culturas onde se tenta a supressão das consideradas inferiores. Essa
perspectiva se assemelha às visões de multiculturalismo liberal e de multiculturalismo
conservador apresentadas acima (Ibidem, p.50).
A segunda perspectiva seria a do multiculturalismo diferencialista ou
monoculturalismo plural. Essa concepção se coloca em contraposição a ideia de
assimilição, entendendo que essa nega as diferenças. A ênfase agora é colocada no
reconhecimento da alteridade. Buscam-se então espaços para a promoção das diferenças
(Ibidem, p. 50-51). No entanto, essa visão acaba por suportar uma ideia de estaticidade
das culturas, assim como o multiculturalismo essencialista de esquerda, já que acredita
na manutenção das matrizes culturais de base. Aqui também se pensa em uma

4
O termo interculturalismo começa a ser usado nos anos de 1970 na Europa, dentro de uma politica
governamental de trato com imigrantes. O termo faz sempre referencia a relação com o outro. Apesar de
muitas vezes ser usado com a mesma significação que o termo multiculturalismo, esse é visto aqui como
sendo o reconhecimento da diferença, enquanto interculturalismo significaria o diálogo entre os
diferentes.

14
homogeneização cultural, no entanto, limitada aos diferentes grupos. Esses dois
modelos se relacionam de forma complexa e são os mais comuns na educação vigente.
Entramos agora na terceira perspectiva desenvolvida pela autora, a do
multiculturalismo interativo ou interculturalismo. Essa visão tem se apresentado como
uma boa alternativa para a construção de relações multiculturais, mesmo que ainda seja
vista de forma utópica. Ela apresenta, assim como o multiculturalismo crítico e de
resistência, um caráter colaborativo, promovendo as inter-relações e o diálogo. Valoriza
as diferenças, mas percebe que as culturas estão em um processo contínuo de
reestruturação e reconstrução. As raízes culturais são vistas como históricas e
dinâmicas, não havendo um padrão cultural fixo. A hibridização ocorreria de forma
intensa, resultando em identidades igualmente dinâmicas. Nessa perspectiva, há o
reconhecimento das diferentes relações de poder que perpassam as relações
multiculturais, e que criam relações hierarquizadas e marcadas por preconceitos e
discriminações (Ibidem, p. 51-53). No âmbito educacional, busca-se a percepção da
alteridade através do dialogo de grupos diversos. Almeja-se

[...] uma educação para a negociação cultural, que enfrenta os


conflitos provocados pela assimetria de poder entre os diferentes
grupos socioculturais nas nossas sociedades e é capaz de favorecer a
construção de um projeto comum, pelo qual as diferenças sejam
dialeticamente integradas. A perspectiva intercultural está orientada à
construção de uma sociedade democrática, plural, humana, que
articule políticas de igualdade com políticas de identidade (Ibidem, p.
52).

Essa seria então, uma perspectiva anti-hegemônica, que proporciona um


intercâmbio cultural constante e dinâmico, em relação de igualdade, abrindo um espaço
de negociação e tradução, que tenta criar solidariedade e responsabilidade social. Para
que essa visão seja possível de ser desenvolvida, é necessária uma negação da
universalização das culturas, assim como a percepção de que nenhuma cultura é
completa, por isso há uma necessidade de interação entre elas.
Desde o final da Segunda Guerra Mundial, as questões multiculturais vêm
ganhando cada vez mais espaço. Nos anos 80 e 90, surgem ainda mais políticas com a
temática de diversidade cultural. A cultura e a diversidade cultural seriam dessas ideias
que têm sido essenciais tanto para a esquerda política quanto para a direita, tornando sua
história social incrivelmente confusa e ambivalente (EAGLETON, 2011, p. 9). Essas
questões estão geralmente ligadas às lutas das minorias sociais, se transformando em
espaços de resistência.
15
Podemos citar aqui algumas teorias desenvolvidas tanto pela direita quanto
pela esquerda no que concerne à diversidade cultural. Uma teoria de direita que pode ser
apontada é o liberalismo igualitário. As ideias dessa corrente já se faziam presentes na
Inglaterra do século XIX, com Joseph Chamberlain, no trato entre a Coroa Inglesa e
suas colônias. No entanto, ela só se desenvolve mais teoricamente nas décadas de 1960
e 1970, tendo como principal representante o Professor John Rawls. Pensa-se aqui no
“Principio da diferença” e numa igualdade de direitos e deveres políticos e civis. A
igualdade civil aqui, porém, está sendo apenas uma forma de manutenção das
desigualdades econômicas, fazendo da hierarquização cultural, um traço característico
dessa relação. Pode-se classificar essa abordagem como sendo fruto de uma visão de
multiculturalismo assimilacionista.
Uma outra teoria importante de ser citada, dessa vez de esquerda, seria a que
tem como expoente Michel Hardt. Ele coloca que a mudança nas relações com o outro
ocorreu na passagem de Colônia para Império. Enquanto na Colônia se pensava na
dualidade eu e o outro, no Império passa-se a pensar na hibridização, nas misturas.
Passa-se da exclusão para o reconhecimento do outro. No entanto, Faustino ressalta,

Enquanto o racismo colonial reiterava a diferença ao extremo, como


fundamento negativo do ser, vendo o ‘outro’ como selvagem,
ignorante, inferior, incapaz, sendo necessário usar a força e a violência
para manter a ordem, o racismo imperial integra os ‘outros’ ao seio de
sua ordem e orquestra, depois, estas diferenças em um harmonioso
sistema de controle e gestão de micro-conflitos que se situam todos no
interior de suas fronteiras constantemente em expansão com o
objetivo de integrar tudo o que puder escapar ao seu poder. Hardt
(1995) explica que, nesta nova acepção, o poder imperial organiza-se
em três momentos distintos: o primeiro visa a integração, o segundo a
diferenciação e o terceiro a gestão (FAUSTINO, 2006, p. 65).

As diferenças no contexto colonial eram vistas como raciais. Já no Império


pensa-se em diferenças étnicas e culturais. Inicialmente a assimilação não seria uma
prioridade, pois já se começava a pensar em redes econômicas globais. Num segundo
momento essa aceitação e afirmação das diferentes culturas seriam transformadas em
uma hierarquização cultural. E por fim, essas diferenças seriam subordinadas e usadas
como formas de controle e poder. Seguindo esse pensamento, coloca-se que esses
aparatos de poder desenvolvidos passam a ser descentralizados após a Guerra Fria,
estando então em todo lugar. As vertentes de esquerda, em geral se opõem ao
liberalismo e aos “conceitos marxistas de revolução, totalidade, hegemonia, Estado

16
burguês, luta de classes, emancipação humana e outros, criam ou se utilizam de novos
termos para se opor à opressão do Estado, defender liberdades humanas e aspirações
emancipadoras por meio do reconhecimento e celebração da diferença e diversidade”
(Ibidem, p. 64).
No entanto, as teorias das vertentes de esquerda não auxiliam na compreensão
do que estamos vivenciando, e também, causam uma confusão teórica. A diversidade
cultural deixa de ser vista como uma forma de resistência e de enfrentamento da
realidade vivenciada, sendo então desvalorizada como integrante das lutas sociais.
O importante aqui, porém, é ressaltar que, desde o final do século XX, cada vez
mais projetos e teorias vem surgindo envolvendo temas como cultura,
multiculturalismo, interculturalismo, diversidade cultural. Eles surgem de uma
necessidade, contemporânea de lidar com as diversas identidades, que se relacionam de
forma cada vez mais próxima, tentando aumentar a inclusão social.
Um passo importante nesse sentido foi a palestra, em 1950, de Levi-Strauss
para a UNESCO, Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura,
que consolidou o conceito de diversidade cultural através da tentativa de superar as
ideias de supremacia racial, etapas de desenvolvimento social e cultural, progresso,
hierarquização cultural e estaticidade cultural. No Brasil, entretanto, essas questões
começam a ganhar espaço um pouco mais tarde, no final da década de 1970 e inicio de
1980, com o enfraquecimento do regime militar. Isso é perceptível na Constituição de
1988 onde se coloca o pluralismo e a democracia.
No inicio dos anos de 1990, o MEC começa a pensar na diversidade cultural e
na educação das minorias. As políticas multiculturais no Brasil, em geral, aparecem
como reconfigurações das políticas norte-americanas, não se considerando de forma
apropriada a maior diversificação cultural presente no país.
Por fim, é importante ressaltar o papel da educação na forma como enxergamos
essas relações já que as políticas multiculturais apoiam-se na educação em busca de
formas de lidar com essas relações. As perspectivas priorizadas costumam ser a
multicultural assimilacionista ou a diferencialista. No entanto, já vêm sendo colocadas
em prática políticas mais voltadas a uma visão de interculturalidade, que tentam
legitimar a diversidade cultural. Seus objetivos seriam: “reconhecer e aceitar o
pluralismo cultural como uma realidade social; contribuir com a criação de uma
sociedade com igualdade de direitos e contribuir com o estabelecimento de relações
interétnicas harmoniosas” (FAUSTINO, 2006, p. 95).

17
3. Identidade, etnicidade e crise identitária
Nas ultimas décadas, em decorrência dos debates sobre multiculturalismo e
cultura, há uma tentativa cada vez maior de reconhecimento das diferentes identidades.
Na busca por justiça social, coloca-se a aceitação das diversas identidades culturais em
prol de uma sociedade diversificada. Assim, ao falar-se dos indígenas brasileiros, é
necessário pensar qual(is) seria(m) essa(s) identidade(s). Para tanto é preciso
compreender um pouco da cosmologia e da crise identitária que se faz presente em
diversas sociedades indígenas, além de pensar um pouco sobre a construção da
identidade étnica.
A identidade pode ser entendida como um modelo mental através do qual se
organiza e compreende o mundo. Ela tem a cultura como fundamento, mas não é
definida por essa. A etnicidade ou identidade cultural seria uma forma de organização
política e econômica, construída a partir de um imaginário social que é constantemente
reelaborado. E, como o conceito de multiculturalismo, está associada às lutas políticas,
sendo uma forma de resistência. A identidade é uma forma de relação social e, como tal,
baseia-se em relações de poder. Ela produz e reproduz a alteridade. E, assim como a
cultura, é uma construção em constante processo de ressignificação e reconstrução.
A identidade étnica seria percebida através da autoidentificação e da
identificação pela sociedade, em outras palavras,

[...] grupos étnicos só podem ser caracterizados pela própria distinção


que eles percebem entre eles próprios e os outros grupos com os quais
interagem. Existem enquanto se consideram distintos, não importando
se esta distinção se manifesta ou não em traços culturais. E, quanto ao
critério individual de pertinência a tais grupos, ele depende tão-
somente de uma auto-identificação e do reconhecimento pelo grupo de
que determinado individuo lhe pertence. Assim, o grupo [...] dispõe de
suas próprias regras de inclusão e exclusão (CUNHA, 1986. p. 111).

Podemos pensar a identidade étnica como sendo construída a partir de


elementos culturais extraídos da tradição, mas que podem adquirir novos significados.

Em outras palavras, a etnicidade faz da tradição ideologia, ao fazer


passar o outro pelo mesmo; e faz da tradição um mito na medida em
que elementos culturais que se tornaram ‘outros’, pelo rearranjo e
simplificação a que foram submetidos, precisamente para se tornarem
diacríticos, se encontram por isso mesmo sobrecarregados de sentidos.
Extraídos de seu contexto original eles adquirem significações que
transbordam das primitivas (Ibidem, p.101-102).

18
Ao longo do tempo, alguns critérios foram usados para a definição do que seria
um grupo étnico, e através desses critérios buscava-se (e busca-se) definir se uma
comunidade é ou não considerada indígena. Cunha divide em três momentos essa
questão, sendo que em cada um deles há uma mudança na percepção do que seria um
grupo étnico. Num primeiro momento, um grupo étnico é entendido como sendo um
grupo racial. Pensa-se em “pureza” racial, não comportando as miscigenações. No
entanto, com as políticas de miscigenação promovidas pelo Estado português, essa
definição de grupo étnico, acabava por descaracterizar o índio em suas disputas por
terras, criando critérios de indianidade que não podiam ser cumpridos na realidade
(Ibidem, 1986, p. 113-118).
Após a Segunda Guerra Mundial, como já foi mencionado acima, o critério de
raça é substituído pelo de cultura. No entanto, a utilização desse critério pode trazer
alguns problemas, levando à ideia de estaticidade cultural e de matriz cultural. Com
relação aos indígenas brasileiros, é possível perceber, assim como em outras sociedades,
que nem todos os traços culturais foram mantidos, mas essa perda de traços culturais
não significa uma perda de identidade já que buscam, através de alguns símbolos, a
continuidade e a singularização do grupo.
Por fim, entramos nos critérios em vigência atualmente. Como já foi dito, a
identidade étnica passa a ser concebida através da autoidentificação e da identificação
pelo grupo. A origem e as tradições também têm seu papel, mas eles são guiados pelas
concepções próprias de cada grupo. Assim,
[...] cabe dizer que todos os grupos étnicos têm mecanismos de
adoção ou de exclusão de indivíduos. Quanto à inclusão de um
individuo no grupo étnico, esta depende de sua aceitação pelo grupo, o
que, evidentemente, supõe sua disposição em seguir seus valores e
traços culturais. Isto, [...], não dilui a identidade especifica do grupo
(Ibidem, p.118).

Um grupo étnico traz a noção de “espírito de corpo”, traduzido nas festas,


cerimônias, etc. Seria um grupo social que se manteria em união estreita (Ibidem, p. 95).
Assim a identidade é mantida através desses rituais e comemorações; de manifestações
culturais.
A partir da compreensão do que seriam identidade e grupo étnico, podemos
pensar agora na cosmologia indígena. Essa seria a forma como é construído e
interpretado o mundo em que o sujeito se insere. Ela serve de base para as tradições e

19
para as configurações identitárias, podendo ou não servir também para a construção da
memória, fator que será mais explorado à frente.
A concepção cosmológica das sociedades indígenas, conforme apresentado por
Castro, seria a de “relatividade perspectiva”, uma “concepção, comum a muitos povos
do continente, segundo o qual o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou
pessoas, humanas e não-humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos”
(CASTRO, 2002, p. 347). Os conceitos de natureza e cultura, vistos como opostos pelas
modernas sociedades urbanas, em especial nos circuitos ocidentalizados, aqui são
entendidos sob o aspecto de perspectivas.
A essa concepção ele soma a de “multinaturalismo”, que contrastaria com o
multiculturalismo das sociedades modernas (CASTRO, 2002. p. 349). Enquanto
pensamos em uma única natureza com diversas culturas; para essas sociedades, a
cultura seria percebida como universal, enquanto a natureza seria a forma particular, ou
seja, um único espírito em uma diversidade de corpos. Esse espírito seria um espírito
essencialmente humano, sendo a humanidade uma condição original comum a todas as
espécies. Os “corpos” seriam envoltórios que guardariam esse espírito. Os membros de
uma própria espécie se percebem e percebem o mundo à sua volta como humanos. Já os
humanos, são percebidos de diferentes formas pelas outras espécies dependendo das
relações mantidas com elas. Essas relações em geral estão relacionadas à predação.
Assim, o referencial que essas sociedades utilizam é a humanidade e não a espécie
humana, e seu conhecimento se da de forma subjetiva, através da personificação do
Outro. A forma de objetivação da natureza mais comum a essas sociedades é o
animismo. O animismo pode ser entendido aqui como um modo “onde as ‘categorias
elementares da vida social’ organizam as relações entre os humanos e as espécies
naturais, definindo assim uma continuidade de tipo sociomórfico entre natureza e
cultura, fundada na atribuição de ‘disposições humanas e características sociais aos
seres naturais’” (Ibidem, p. 361-362).
O mundo humano é transposto para o não-humano. Não há uma oposição entre
cultura e natureza, apesar de haver uma diferenciação, pois estas categorias são comuns
a ambos. O animismo indígena é antropomórfico e perspectivista, e ele perpassa as
relações que humanos e não-humanos mantem entre si.
A questão do corpo selvagem também parece de fundamental importância,
dada sua relação com demonstrações identitárias. Essa relação é expressa,
principalmente, nas dietas alimentares e na produção e estilização do corpo. É através

20
dos corpos que a diferença é percebida, onde as diferentes perspectivas são construídas.
Esse corpo é mutável, pois acompanha mudanças espirituais, ele se metamorfoseia.
Nesse ponto Castro coloca que os corpos seriam como “roupas” e continua

[...] trata-se menos de o corpo ser uma roupa que de uma roupa ser
um corpo. Não esqueçamos que nessas sociedades inscrevem-se na
pele significados eficazes, e se utilizam máscaras animais (ou pelo
menos conhece-se seu principio) dotadas do poder de transformar
metafisicamente a identidade de seus portadores, quando usadas no
contexto ritual apropriado. Vestir uma roupa-máscara é menos ocultar
uma essência humana sob uma aparência animal que ativar os poderes
de um corpo outro (Ibidem, p. 393. Grifos do autor).

Outro aspecto importante é o mito. O mito para o indígena é percebido como


uma história de um tempo onde não se fazia a diferenciação entre humanos e animais,
não havendo assim diferentes perspectivas. Assim, “ponto de fuga universal do
perspectivismo, o mito fala de um estado de ser onde os corpos e os nomes, as almas e
as ações, o eu e o outro se interpenetram, mergulhados em um mesmo meio pré-
subjetivo e pré-objetivo” (Ibidem, p.355).
Entendo a cosmologia e a constituição da identidade, devemos falar sobre a
crise identitária. Apesar de o critério vigente para a determinação de um grupo étnico
ser o da autoidentificação e identificação pela sociedade, as outras formulações
deixaram suas marcas na forma como são percebidos os indígenas brasileiros. Essas
percepções são ainda apoiadas pelas construções narrativas construídas acerca dos
índios, conforme será mostrado mais à frente. As várias tentativas de assimilação,
exploração e dominação são uma constante ameaça para a consolidação das identidades
indígenas, que se encontram, em muitos casos, em crise.
Os preconceitos e as discriminações sofridas pelos indígenas provêm de uma
visão estatizada de suas culturas, e os coloca como pertencentes a um único grupo
étnico, não entendendo a diversidade cultural dentro deste grupo maior que seria o
“indígena”. A forma diferente com que concebem o mundo, ou o mundo diferente que é
concebido por eles, como foi apresentado acima, também dificulta a consolidação
dessas identidades, que, muitas vezes privadas de condições necessárias para sua
demonstração, acabam tendo que criar novas formas de sociabilidade, nem sempre
compatíveis com traços tradicionais das respectivas culturas.
A fluidez e dinamismo das culturas, aliada as questões identitárias acima
mencionadas – e que, por sua vez, são uma consequência da cosmologia indígena-

21
ecoam de forma direta na construção das memórias dos indígenas brasileiros, e é sobre
isso que trataremos a seguir.

4. Memória
Memória é um termo que está presente em diferentes áreas do conhecimento,
como a história, a sociologia, a psicologia, entre outros. Por isso é importante que seja
explicitada a conceituação desse termo. A visão de Ricoeur parece ser relevante. O
autor parte das concepções platônica e aristotélica para pensar o papel da imaginação na
formação da memória, colocando a lembrança como fundamental nessa constituição.
Segundo ele a memória é entendida como uma ferramenta de guardar dados
mnemônicos que podem ser acessados pelas lembranças, sendo então resignificados,
criando representações de coisas que já passaram. A memória se relaciona ao ato de
refletir, de repensar a realidade. E tem uma tríplice atribuição, ela faz referência ao
sujeito, ao próximo e aos outros (RICOEUR , 2008, p. 142). Ela pode ser individual ou
coletiva.
A memória tem uma pretensão de realidade e muitas vezes é tomada como a
própria noção de verdade. Essa, por sua vez, é supostamente apoiada e validada pela
presença de um observador. No entanto, a questão da confiabilidade da memória deve
ser levantada. A memória tem um compromisso de fidelidade com o passado. Essa
fidelidade a legitima, mas é ao mesmo tempo equivocada, já que a capacidade de
rememorar apresenta dificuldades intrínsecas. Pode-se pensar aqui nos mecanismos
usados para acessar a memória, como a imaginação ou os arquivos, que podem produzir
distorções. E, além disso, nos esquecimentos, sendo essa a deficiência mais
reconhecida.
Na tensão entre lembrança e esquecimento é constituída a memória. Ela
apresenta uma forte relação com a construção da identidade, que é pensada e repensada
a partir dessas memórias e das tradições, tanto de forma individual como coletiva. A
memória coletiva viria de uma interação entre a identidade pessoal e a identidade
comunitária (Ibidem, p. 92).
Algumas memórias artificiais podem ser criadas. Assim, Ricoeur trabalha com
o que chama de usos e abusos da memória (Ibidem, p. 82-105). Três abordagens podem
ser feitas a partir dos abusos da memória, sendo elas: “nível patológico-terapêutico: a
memória impedida”; “nível prático: a memória manipulada”; e “nível ético-político: a
memória obrigada” (Ibidem, p. 82).

22
No primeiro caso ele usa, principalmente, categorias clínicas da psicanálise
para mostrar que algumas relações podem deixar cicatrizes simbólicas que
impossibilitam a construção de uma memória, que se torna então impedida. No segundo
caso, a construção de memória seria mediada por interesses ideológicos, criando uma
memória instrumentalizada através dos esquecimentos e da manipulação. Por fim, a
memória obrigada se basearia no “dever de memória” (Ibidem, p. 82), no valor ético
desta. Neste caso ela se relaciona mais com o saber histórico, buscando uma maior
compreensão dos acontecimentos.
Nessa ótica, tentaremos mostrar a seguir que a(s) memória(s) indígena(s)
é(são) tanto impedida(s) quanto manipulada(s). Devido às cicatrizes simbólicas, essas
sociedades têm dificuldades em construir uma identidade consistente, e
consequentemente uma memória compartilhada. Assim encontramos diferentes
construções ou discursos construídos sobre a memória indígena brasileira que serão
apresentados a frente. Muitas vezes essas construções baseiam-se em ideologias, que
apesar de variaram no tempo, em geral, visam à exploração do índio ou de seus
territórios, sendo manipuladas devido a interesses de terceiros.

4.1. Memória manipulada


Achamos importante abordarmos um pouco mais a fundo esse conceito, já que
acreditamos que a “memória oficial” dos indígenas brasileiros tem sido construída a
partir de manipulações que visam à manutenção das relações de poder que vêm sendo
construídas desde os primeiros contatos entre índios e europeus.
Ao pensar na manipulação da memória, Ricoeur pensa na instrumentalização
da memória. “O problema aqui reside na consideração de que a mobilização de
memórias está a serviço da demanda e das reivindicações de identidades” (SILVA;
FERNANDES; PEREIRA, 2009, p. 5). Devemos pensar então nas relações de poder e
na funcionalidade da memória. A relação entre imaginação e memória é bem explorada
nesse tipo de construção memorial, já que há um maior espaço para essa primeira. Há
uma maior preocupação na manutenção das estruturas de poder do que em um
conhecimento do passado.
As manipulações da memória então se relacionam à construção da identidade, e
no caso dos indígenas brasileiros, também à crise identitária pela qual estão passando
essas sociedades, confirmando a fragilidade a que foram submetidas tais identidades.
Essa fragilidade se relaciona não apenas aos desafios de manutenção das identidades ao

23
longo do tempo e ao papel das relações culturais em sua configuração, como, e talvez
mais importante no caso em questão,

[...] à herança da violência fundadora. É fato não existir comunidade


histórica alguma que não tenha nascido de uma relação, a qual se pode
chamar de original, com a guerra. O que celebramos com o nome de
acontecimentos fundadores, são essencialmente atos violentos
legitimados posteriormente por um Estado de direito precário,
legitimados, no limite, por sua própria antiguidade, por sua vetustez.
Assim, os mesmos acontecimentos podem significar glória para uns e
humilhação para outros (SILVA; FERNANDES; PEREIRA, 2009, p.
6).

Para compreendermos a memória manipulada precisamos pensá-la como uma


forma de organização do esquecimento regida pelas ideologias, pelas políticas e pelas
relações de poder (Ibidem, p. 6). Assim, devemos pensar não só nos abusos da
memória, mas também nos abusos do esquecimento.
Como mostraremos a seguir essa manipulação se fez presente ao longo do
tempo nas representações e construções memoriais dos indígenas brasileiros. Essas
representações apresentavam diferentes interesses nos diferentes períodos, mas sempre
pensando em formas de exploração, a exemplo das extorsões de mão-de-obra ou
ocupação de territórios. Elas buscam a perpetuação de preconceitos e abusos,
deslegitimando as lutas indígenas. Assim, seguimos tentando demostrar como essa
manipulação se deu ao longo do tempo, a quais propósitos serviu e como essas
memórias foram sendo readaptadas e reconfiguradas nessa tentativa de manutenção dos
padrões culturais predominantes. Essas manipulações estão estreitamente ligadas à crise
identitária sofrida pelos indígenas já que impossibilitam a criação de identidades por
eles reconhecidas como autênticas. Assim, acreditamos que a manipulação das
memórias é o principal fator para se pensar a fragmentação da memória dos índios
brasileiros, já que a partir da negação (ou esquecimento) dos traumas sofridos por esses,
e das necessidades dos setores detentores de poder (político, econômico, simbólico),
uma memória oficial foi se criando, não levando em consideração as identidades
construídas por eles ou as relações que teceram com o mundo que os cerca.

24
Capítulo 2
CONSTRUÇÕES DA MEMÓRIA: DISCURSOS POSSÍVEIS
____________________________________________________________

Nessa parte do trabalho, aprofundamos a reflexão acerca da memória indígena


e como ela vem sendo construída. Serão trabalhadas duas linhas principais. Uma seria a
“memória oficial”. Esta vem sendo elaborada desde o século XVI, a partir dos primeiros
contatos. Acreditando ser necessário nos interrogarmos sobre como as versões
memorialísticas constituíram-se ou cristalizaram-se, e a que servem (PORTELLI apud:
PEREIRA, 2015, p. 865), esboçamos uma linha historiográfica, a fim de tentar precisar os
traços que foram mantidos para que se possa compreender os propósitos por trás dessas
construções.
Já na segunda parte do trabalho, partimos da análise de uma produção fílmica,
para tentar traçar a cosmologia Pataxó e assim compreender como eles constroem suas
próprias memórias através de espaços de memória. Essas memórias estão mais atreladas
à identidade étnica e refletem a forma como esses índios vivem e interagem com o
mundo.

1. Na historiografia, um olhar sobre o outro


Desde o século XVI, foram construídos alguns relatos de memória sobre os
índios brasileiros, que se mantiveram ao longo dos séculos. Eles não se relacionam com
a construção de identidade dos mesmos e sim com as relações de poder entre as
diferentes culturas. Essas memórias são produzidas a partir de narrativas mais voltadas
aos referenciais e interesses daqueles que as professam do que de uma compreensão
mais sensível aos significados culturais indígenas. Essas narrativas persistiram na forma
como os índios são retratados nos livros didáticos, transformando-se assim em uma
memória “oficial”.
O índio brasileiro foi representado de diferentes maneiras de acordo com o
período analisado, assim iniciamos nossa análise no século XVI, época dos primeiros
contatos com os europeus, dada a relevância das relações construídas entre eles. Pode-se
então pensar as formas como os índios brasileiros foram apresentados nos relatos de
viagem, tentando-se mostrar que as visões atuais acerca dessas sociedades já
começaram a ser construídas nesse período.

25
No século XVI foram elaboradas várias representações sobre os indígenas
americanos, como abordado em estudos como “Bom selvagem e cão imundo”.
integrante da obra “A conquista do Prata: análise da crônica de Ulrich Schmidel”, de
Luis Guilherme Assis Kalil (2008), ou ainda no capítulo redigido por Luis Guilherme
Kalil e Luiz Estevam de Oliveira Fernandes em “Ciegos o engañados: narrativas sobre a
conquista espiritual do Norte da Nova Espanha (séculos XVII e XVIII)” (2014). Os
autores aí apresentam três construções diferentes sobre os indígenas americanos,
baseadas nos eixos de “ação demoníaca/Providência divina”, por sua vez contrapostas
ao da “agência humana/livre-arbítrio” (KALIL; FERNANDES, 2014, p. 233). Apesar
dessas visões terem sido desenvolvidas em relação a diferentes locais geográficos e
períodos históricos - no caso a região do Prata no século XVI e a Califórnia dos séculos
XVII e XVIII - , consideramos que elas possam ser aplicadas aos relatos de memória
produzidos no Brasil dos séculos XVI ao XVIII. Nesse período, eram construídas
narrativas e imagens baseadas em uma visão eurocêntrica, que seguiam um conjunto de
regras ou disposições, baseadas numa noção de moral e em uma “verdade factual
diferente da adotada nos séculos posteriores” (Ibidem, p. 234). Essas construções
serviam a propósitos diferentes e não eram exclusivas, podendo se alternar durante um
mesmo relato.
A primeira visão analisada é a do bom selvagem. Segundo Kalil, ao analisar a
obra de Schmidel5 é possível perceber
[...] que o autor seguiu uma espécie de ‘fórmula narrativa’ que
praticamente independia do contato com os nativos. Tal modelo se
manteve desde localidades em que o cronista permaneceu por diversos
anos até as que foram encontradas abandonadas pelas expedições.
Antes de escrever sobre os indígenas, Schmidl geralmente descrevia
rapidamente como foi o percurso até esse local e apontava o número
de léguas percorridas desde o último povoado. Após essas
informações geográficas, iniciava-se a descrição dos grupos seguindo
um padrão que, de forma geral, era mantido inclusive em sua ordem:
qual o número de habitantes; como foram recebidos pelos moradores
(pacífica, violentamente ou com o povoado abandonado); quais são
seus alimentos; como é seu físico (andam nus ou cobrem suas
vergonhas); quais são suas armas e adornos; e quanto tempo a
expedição permaneceu entre eles (KALIL, 2008, p. 70).

No entanto, era possível encontrar variações na forma como o discurso em


torno dos nativos se construía. Elas se davam quando eram descritos índios que se
assemelhavam mais aos europeus ou que tiveram mais contato com os europeus. Mas de

5
Ulrich Schmidl, também grafado como Schmidel e Schmidt foi um soldado viajante e cronista de
origem germânica. Permaneceu por cerca de dezessete anos no sul da América (1536 – 1553).

26
forma geral, os indígenas seriam um grupo homogêneo que possuiria algumas
diferenças externas. Para Schmidel, os indígenas seriam “seres ingênuos que oscilavam
entre dois opostos: ‘bons selvagens’ e ‘cães imundos’” (Ibidem, p. 73). Essas
construções variariam de acordo com a interação que o autor teria tido com os índios.
Caso eles tenham sido solícitos e prestativos, eram vistos como bons selvagens, caso se
negassem a fornecer alimentos, ou, apresentassem resistência, eram vistos como cães
imundos ou cães famintos, fazendo aqui referência aos rituais antropofágicos.
Esses diferentes discursos viriam de uma falta de conhecimento dos nativos
americanos. Eram vistos como “bons selvagens” quando se pensava na evangelização e
como “cães famintos” quando se tentava justificar a escravidão. Assim, a alteridade
humana seria, ao mesmo tempo, revelada e recusada (Ibidem, p. 74-75). Em ambos os
discurso os indígenas eram colocados como seres inferiores e eram constantemente
contrapostos a “heróis” europeus. Havia então uma “projeção de conceitos europeus
sobre os habitantes do novo continente” (Ibidem, p. 76), como pode ser percebido, por
exemplo, em relação ao diferente valor dado ao ouro, que para os indígenas tinha um
valor cerimonial enquanto para os europeus possuía um valor econômico e essa
diferença era vista como sinal da inferioridade – não se a aceitava a “espantosa”
incompreensão por parte dos indígenas do valor do ouro como mercadoria.
Tais representações, por sua vez, estariam relacionadas às possibilidades de
conversão dos nativos. Através da busca de humanidade nos indígenas tenta-se justificar
a conversão ou a “guerra justa” e escravização. Daí a alternância dos relatos entre a
humanidade e a bestialidade dos índios, a qual pode ser bem percebida na abordagem do
canibalismo. As narrativas sobre antropofagia podiam ser empregadas para justificar a
escravização ou a tomada de terras, como a apresentarem como rituais que
demostrariam uma crença em algo, o que poderia mais facilmente ser convertido na
crença cristã.
A segunda visão que deve ser explorada é a que se baseia nos eixos de Ação
demoníaca/Providência divina em contraposição à Agência humana/ao livre-arbítrio. Os
autores Kalil e Fernandes identificam três visões que são comuns aos escritos desse
período, sendo elas: sem livre-arbítrio e sob a influência de forças demoníacas; sem
livre-arbítrio e sob a influência da Providência divina; e como agentes humanos
responsáveis por suas ações (KALIL; FERNANDES, 2014, p. 236 -244). Tais visões
associam-se à atuação dos religiosos na colonização dos novos territórios. Aprendendo
as línguas, eles “tiveram papel ativo na ocupação e pacificação dos índios” (Ibidem, p.

27
236). Assim, Kalil e Fernandes buscam compreender então, “outros elementos que
também integram os relatos missionários, como a ênfase maior ou menor dada à
capacidade humana, à vontade do indivíduo, ao livre-arbítrio nos registros sobre a
alteridade indígena e o cotidiano missionário” (Ibidem, p. 236). Tal análise, portanto,
requer a compreensão dos sentidos históricos dos conceitos de livre-arbítrio, agência,
liberdade e vontade. Citando os autores,

Agência, aqui, adquire o sentido de capacidade de agir segundo a


própria vontade. O conceito está associado diretamente ao de livre-
arbítrio. Este, por sua vez, significa a capacidade de escolher pela
vontade entre o bem e o mal de forma consciente. [...] Na tradição
agostiniana, o livre-arbítrio representa a possibilidade de escolher
entre o bem e o mal. A liberdade, por sua vez, é o bom uso do livre-
arbítrio, quando da atuação misericordiosa da graça divina. A plena
liberdade, pois, só seria alcançada quando o homem fizesse bom uso
de seu livre-arbítrio, escolhendo, por vontade, o bem. A liberdade
como fim, o livre-arbítrio como faculdade e a vontade como o ato
decorrente das combinações feitas entre o fim e a faculdade
combinadas (Ibidem, p. 236).

No entanto, como os indígenas não tinham conhecimento da graça divina,


como pensar em sua salvação? Assim, a partir de debates que pensavam em respostas a
essa pergunta, foram desenvolvidas as três construções narrativas: a de ação demoníaca,
a de tábula rasa, e a de bárbaros conscientes.
Na primeira, todas as formas de vida do Novo Mundo seriam regidas pela ação
demoníaca, que enganava os índios e podia se dar tanto pela ação de feiticeiros e pajés,
ou de forma direta através da manipulação da coletividade. Os indígenas seriam atores
passivos e sem livre-arbítrio. Assim, o inimigo não seriam os índios, mas forças
invisíveis. No entanto, apesar da ação demoníaca, havia uma forte crença no triunfo da
Providência que viria através dos europeus. Essa ação da Providência é apresentada de
diversas formas ao longo dos relatos, inclusive através de relatos de milagres (Ibidem, p.
237-238).
É possível perceber também diferentes estágios de atuação do demônio nas
tribos indígenas. Eles variam de acordo com o grau de relação com o europeu, o
conhecimento de algum tipo de religião e o uso de práticas semelhantes às cristãs. Esses
diferentes estágios relacionavam-se à capacidade de conversão dos nativos. Quanto
mais semelhantes aos europeus fossem seus comportamentos, mais fácil seria convertê-
los.

28
Na segunda perspectiva os índios, são vistos “como essencialmente bons e
pueris, obedientes, calmos e cordatos, felizes com a presença dos missionários e
propensos à (quando não desejosos da) conversão” (Ibidem, p. 240). Aqui, o livre-
arbítrio também não é levado em consideração, mas o realce é dado à Providência
divina. Os índios não demostrariam nenhum sinal de idolatraria e mesmo quando eles
reagiam continuavam sendo vistos como bons, pois apenas se revoltavam contra a ação
dos estrangeiros.
A conversão, como foi dito acima, era vista como uma propensão. Os maus
comportamentos viriam da falta de conhecimento da graça divina. A falta de qualquer
religião era vista como uma forma de bondade e de ausência do demônio. E também
como um sinal de que os índios estariam abertos à conversão. No entanto, quando eram
encontrados traços de uma crença, esses também poderiam ser vistos como elementos a
serem moldados, facilitando também esse processo.
E, por fim, a visão dos bárbaros conscientes. Essa é a única visão que não os
coloca como influenciados por forças externas. Eles eram normalmente vistos como
maus, mas com autonomia em suas ações, exercendo a agência humana e o livre-
arbítrio. As revoltas eram tramadas quando se sentiam prejudicados, e elas se davam
através de ações premeditas e definidas. Aqui há uma diferenciação com relação às
visões apresentadas anteriormente por Kalil, de bom selvagem/cão imundo. Nas
análises anteriores o eixo agência humana/livre-arbítrio é desconsiderado, dando-se
ênfase ao da ação demoníaca/ Providência divina. Dessa maneira, os índios podiam ser
bem ou mal intencionados.

Quando bem intencionados, os indígenas agiriam como que imbuídos


da razão da lei natural, mostrando a misericórdia de Deus para com os
povos que dele nunca tinham ouvido. Por outro lado, se mal
intencionados, os indígenas podiam ser igualmente imputáveis, pois
agiriam cegados pela torpeza de sua própria natureza vil (Ibidem, p.
237).

Apesar de as diferentes construções narrativas terem sido produzidas pensando


um tempo e um espaço distintos, podemos encontrar continuidades e semelhanças nos
relatos relacionados ao Brasil desse período. Assim como na América Espanhola, a
conquista territorial e espiritual também inicia um novo gênero narrativo. Estas
construções seguem as mesmas lógicas discursivas que se assentam em uma
mentalidade medieval ou clássica, e dão continuidade as imagens construídas por
Colombo, pelas quais os povos americanos seriam dóceis, inocentes e não

29
apresentariam nenhuma crença (CUNHA, 1990, p. 92). Elas teriam o propósito de
convencer os Reis Católicos da facilidade de dominação destes territórios que eram tão
ricamente providos (GERBI apud CUNHA, 1990).
Os indígenas brasileiros6 desse período são vistos a partir das construções de
Caminha e Vespucci. Eles iniciam

[...] uma série de duradouros e etnograficamente duvidosos lugares-


comuns: não têm chefe ou principal (sequer distinguindo o capitão-
mor que os recebe em toda a sua pompa) (p. 46, 52, 27); não tem
nenhuma idolatria ou adoração (p.90-91, 80); são uma argila
moldável, uma tabula rasa, uma página em branco - " e imprimir-se-á
com a ligeiresa neles qualquer cunho, que lhes quiserem dar" (p.80).
Gente, em suma, que não sujeita a natureza como não se sujeita a si
mesma a jugo algum: gente montesa, gente ‘ selvagem’ (CUNHA,
1990, p. 93-94).

Ao longo do século XVI, essas imagens são construídas e reconstruídas por


diversos viajantes e colonos, passando pelas ideias de tábula rasa, de cães canibais, de
sodomitas, de inocentes, de bárbaros, mas tendo em geral os interesses do interlocutor
como base. A alternância entre diferentes construções em um mesmo relato também era
comum. Ela decorreria principalmente das interações entre portugueses e nativos e
também das incompreensões advindas do necessário contato com o indígena. Assim, as
visões não seriam excludentes. Segundo Kalil e Fernandes, elas poderiam variar de
acordo com a localização das tribos (locais ermos, montanhosos e desérticos ou regiões
férteis), seus costumes (rituais antropofágicos, sinais de idolatria), grau de
desenvolvimento (nômades ou sedentários), período de contato com os cristãos, entre
outras (KALIL; FERNANDES, 2014, p. 237).
Ao fim do século, duas visões se destacam. Uma francesa, provinda de relatos
de viajantes, que exalta o indígena. E uma portuguesa, do colono, que o deprecia
(CUNHA, 1990, p.109). É possível perceber que as crônicas da América desde o século
XVI e se estendendo até o XVIII, apresentavam fórmulas de retórica próprias. Essas
seguiam os princípios morais da época e se guiavam pelas necessidades de escravização
ou catequese. As semelhanças entre os relatos se devem à grande influência dos
clássicos da Antiguidade e também a difusão de diferentes crônicas das Américas que
serviam de base para os novos cronistas. Assim, elas não se voltavam para uma
construção de memória em que os povos autóctones fossem ouvidos.

6
Cunha (1990, p. 91), ressalta que ao falar dos indígenas brasileiros, faz-se referencia aos Tupis e por
extensão ao Guaranis, estes sendo contrapostos aos Aimoré, Ouetaca e Tapuia, acusados de barbárie.

30
No século XIX, com o Romantismo, a historiografia do IHGB e as propostas
de ensino do Colégio Pedro II, algumas visões sobre o indígena foram começando a ser
consolidadas. Elas partiram das concepções anteriores e adaptaram-se aos interesses do
período, no caso a consolidação da identidade brasileira, sendo esse um período de forte
nacionalismo. O índio continua sendo visto de forma genérica, de forma unívoca. Sua
representação é considerada como tripartida: o índio construído pela literatura,
idealizado e romanceado; os índios do século XIX; e, também, os bárbaros selvagens,
não afeitos ao trabalho, bêbados e degradados quando incorporados à vida na cidade. Na
literatura, vê-se a criação do estereotipo do indígena heróico, mas portando virtudes
tipicamente europeias. Representava-se o índio como parte do passado, sinalizando para
seu desaparecimento. No entanto, com relação aos índios contemporâneos, continua-se
a percepção de que seriam povos bárbaros. Eles passam a ser vistos como um empecilho
ao progresso e a evolução, e, sendo seres menos desenvolvidos, deveriam ficar sob a
tutela do Estado. Essas visões do índio, que deve ser combatido ou assimilado, seguiram
até o final do século XX (PALHARES, 2014, p. 373).
Apenas nas décadas de 1970 e 1980 inicia-se uma revisão historiográfica sobre
a questão indígena, impulsionada pelo alargamento do conceito de fonte e também pela
aproximação da História a outras áreas das Ciências Sociais. A história seria usada
agora para ser a voz dos que foram silenciados, entendendo-se que teria havido um
genocídio dos indígenas. No entanto, essa percepção, apesar de denunciar os abusos
sofridos, continuava colocando o índio no passado, não reconhecendo a continuidade de
sua história. Também nesse período começa-se a desenvolver uma crítica à ideia
unívoca do índio, pensando-se agora em “povos” e “culturas” indígenas. Começa-se a
pensar em múltiplas identidades étnicas que se identificam e unificam apenas na luta
pela positivação e reconhecimento de sua multiplicidade.
Apesar dos avanços na historiografia, é possível perceber que algumas “ideias
equivocadas” (FREIRE apud PALHARES, 2014, p. 381) em relação aos indígenas
foram perpetuadas ao longo do tempo. Palhares ressalta seis delas (2014, p. 381). São
elas: a do índio genérico, único; a dos índios como seres com culturas atrasadas; a de
que as culturas indígenas seriam culturas congeladas no passado, culturas estáticas; a
dos índios como seres que só existem no passado e assim há a negação do direito à

31
história a esses povos; a de que o brasileiro seria um não índio; e por fim, a do índio
como o bom selvagem contemporâneo7.
Essas ideias são muitas vezes perpetuadas através dos livros didáticos. Isso é
perceptível quando analisamos os temas aos quais os índios estão relacionados nessas
publicações. O trabalho de Gobbi é relevante aqui. Ela faz uma análise das coleções de
livros didáticos recomendados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) para
o Ensino Fundamental nos anos de 1999, 2002 e 2005 (GOBBI, 2007). Apesar dos
livros analisados se aterem a um pequeno recorte temporal, muitos aspectos apontados
podem ser remetidos a períodos anteriores.
O primeiro tema abordado pela autora foi o de “Primitivismo e
Evolucionismo”. Na maioria das coleções estudadas foi possível perceber a associação
entre “povos indígenas” e “primitivos”. Essa associação ocorre, em geral, de forma
depreciativa e está ligada a uma concepção evolucionista da História. Aqui pensa-se a
História em etapas de desenvolvimento. Assim, os indígenas eram abordados a partir de
sua relação com os portugueses, indicando-se implicitamente uma relação de
superioridade de uma cultura sobre a outra, possibilitada por essa concepção de
História. Essa superioridade é explicada em alguns livros como relativa às habilidades
de escrita e agricultura, destacando-se o que o índio “não tem” em relação ao europeu
(Ibidem, p.58).
Os povos indígenas também apareceram associados à “Pré-História”, o que
gera uma confusão, pois ao partir de uma visão etnocêntrica, cria-se uma ideia de
congelamento de algumas culturas em determinados períodos, ou seja, os índios
passariam a existir a partir do contato com o europeu. A História em etapas também é
importante para essa ideia de congelamento, já que se todas as civilizações passam pelos
mesmos estágios, para uma estar atrasada em relação à outra, ela teria que ter se
consolidado posteriormente. A visão etnocêntrica também esta presente na utilização do
termo “descobrimento”, que se coloca como um julgamento a historicidade do povo da
América. Há também referências ao passado que se fazem muitas vezes sem
contextualização. Assim é criada uma percepção de que os índios são parte do passado,
que estariam em extinção.
É importante ressaltar que apenas no governo Lula, com a promulgação da Lei
10.639/03, modificada pela Lei 11.645/088, o estudo da história da cultura afro-

7
Com relação a esta ultima construção, será feita uma reflexão mais à frente, já que ela pode ser
percebida inclusive nos discursos indígenas, o que levanta algumas questões.

32
brasileira e dos povos indígenas tornou-se obrigatório, tanto para escolas indígenas
quanto para as não-indígenas, sendo este um fato que deve ser atendido respeitando-se
as especificidades. No entanto, como já foi demonstrado, essa memória é manipulada. E
o fato dessas leis só terem sido promulgadas a partir do ano de 2003, confirma o
silênciamento e impedimento das memórias indígenas.

2. Um filme, uma ideia de si mesmo


Essa parte do trabalho apresenta uma reflexão sobre a construção da memória e
da identidade indígena brasileira através de sua cosmologia. Essa reflexão tem como
base, principalmente, os estudos de Eduardo Viveiros de Castro (CASTRO, 2002) e a
análise do filme “Awê iõ txonang – Festa das Águas – Um filme de Isaque Pataxó” 9,
produzido pelos índios Pataxó da reserva indígena localizada em Carmésia Minas
10
Gerais . Esse filme foi produzido como parte do curso de Formação Intercultural de
11
Educadores Indígenas (FIEI) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a
partir das pesquisas desenvolvidas por Isaque Pataxó entre os anos de 2006 e 2011.
Para as sociedades indígenas, os rituais são de fundamental importância na
construção das memórias e das identidades, já que o “espírito de corpo” é traduzido
através das festas e das cerimônias (CUNHA, 1986, p. 95). Além disso, a cosmologia
pode ser compreendida através dessas manifestações, já que essas se ligam à origem e
às relações com o mundo. Assim, é justificada a escolha da fonte que será analisada a
seguir.
O mito é a base da estruturação dessas comemorações e consequentemente da
memória. Ele pode ser entendido como uma forma de orientação no mundo que justifica
a forma como são as coisas e os comportamentos. Trata-se de um referencial temporal e
também conceitual (CASTRO, 2007, p. 69). O ritual, por sua vez, é percebido, não
como uma representação idêntica, mas ainda sim, uma representação do mito; enquanto
o ritual é uma representação, o mito é entendido como uma realidade de um tempo

8
A Lei 10.639/03, de 9 de janeiro de 2003, altera a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que apesar
de explicitar a necessidade se abordar a incidência das culturas indígenas e afro-descendentes no estudo
da História do Brasil, ainda não trás a obrigatoriedade.
9
Awê iõ txonang – Festa das Águas – Um filme de Isaque Pataxó. Direção: Isaque Pataxó. 2006-2011.
Filme produzido com o apoio da Faculdade de Educação/UFMG , da Biblioteca Universitária/UFMG, da
Fundação Nacional do Índio, e da Secretaria de estado da Educação de Minas Gerais.
10
Essa reserva é constituída por três aldeias de etnia Pataxó. A aldeia Guarani ou sede; a aldeia Imbiriçu;
e a aldeia Encontro das Águas. Apesar de serem aldeamentos distintos, mantêm relações muito próximas,
apresentando uma unidade cultural e identitária de tradição Pataxó.
11
Voltaremos a falar sobre esse curso no capítulo três, onde ele será melhor explicado e outras iniciativas
serão apresentadas.

33
passado. Assim, o ritual é uma representação inferior de um evento, trazido através da
memória.
O filme “Awê iõ txonang – Festa das Águas – Um filme de Isaque Pataxó”,
fala sobre o ritual das aguas chamado de “O tempo da Chuva”. Essa festa ocorre sempre
no dia 5 de outubro, quando começa o período da chuva, que para eles simboliza a
fartura e a harmonia. O ritual é constituído de um tempo de preparação, que se inicia em
agosto, onde eles renovam o Kijeme12, preparam as tintas que serão usadas nas pinturas,
preparam o cawin13, se preparam para as competições que ocorrerão durante as
comemorações, se reúnem em torno de fogueiras, cantando e fumando Tibério14. O dia
da festa inicia-se com um ritual que busca, através de cantos em agradecimento aos
espíritos, força e agilidade para os jogos. Após os jogos, banham-se nas águas do rio e
seguem para o cozinhado. Eles comem moqueca de peixe e farinha, e pirão, e tomam o
cawin. Depois passam para os batizados e casamentos. O ritual é finalizado com o
banho de lama.
Na festa em questão a relação com o tempo mítico é bem perceptível. Na
mitologia Pataxó, os índios dessa etnia teriam vindo da água. Em um belo dia de céu
azul, uma grande nuvem se formou. O último pingo dessa chuva a cair na terra se
transformou no índio Txopai. Ele era forte, corajoso e sábio. Ele andou pela terra se
encantando com suas belezas. Mas ele começou a se sentir solitário e por isso realizou
um ritual para que os outros índios nascessem. Assim, começou uma nova chuva e cada
pingo que caia na terra se transformava em um novo índio. Txopai então passou sua
sabedoria para esses índios e partiu para o itohã, uma espécie de céu, para proteger seu
povo15. Essa chuva foi enviada por Niamisû, o espirito da chuva, que é considerado
protetor do povo e da natureza.

12
A palavra Kijeme pode ser traduzida como uma construção típica Pataxó. No caso em questão, essa casa
é uma pequena construção feita atrás do rio em que os índios se banham. Ela é destinada à preparação das
mulheres para o ritual. No filme, ela não é mostrada, mas pode-se perceber que as mulheres estão
afastadas do resto do grupo, esperando o momento em que o cacique as chamará. Antes de serem
chamadas, elas terminam as pinturas e a ornamentação nesse Kijeme. Esse processo também faz parte do
ritual.
13
Cawin é uma bebida típica. Ela é feita a partir da fermentação da mandioca. Seu uso é mais ritualístico.
14
O Tibério é um tipo de fumo feito de diversas ervas. Seu uso é ritualístico. Diferente dos yawalapíti
estudados por Castro (2007), seu uso não se restringe aos homens adultos. Homens e mulheres de
diferentes idades fumam o Tibério nesses momentos. Ele é percebido como um facilitador do contato com
os espíritos ou antepassados.
15
Esses dados vieram da cartilha “Niatum miãga hãmãgui – filhos das águas e da mata”. Essa cartilha
foi produzida pelo povo Pataxó de Minas Gerais, com o apoio do Ministério do Meio Ambiente, da
FUNASA, do IEF – regional do Rio Doce, da PUC Minas, do CIPAC e da FUNAI. A cartilha fala sobre a
relação dos Pataxó com a natureza tentando criar uma conscientização sobre a importância de sua
preservação.

34
A “Festa das Águas” é como um ritual que acontece desde o tempo dos
antepassados. A temática da água faz referencia ao tempo de sua criação. Ela se faz
presente no uso do “pau de chuva” e do banho, ao final do ritual, que representa uma
purificação do corpo e a recepção destes espíritos. A água também é importante nos
batizados também simbolizando essa recepção dos espíritos protetores. O espirito do Pai
da Mata, principal protetor dos Pataxó, é evocado. Ele aparece antes dos batismos,
participando destes. Ele é o espirito principal para os Pataxó, sendo considerado como
um símbolo da continuação da cultura Pataxó antiga, e por tanto um símbolo
importantíssimo na construção da identidade e na configuração da memória.
A questão do corpo é muito abordada no filme. No caso dos Pataxó, porém, ela
esta mais ligada às pinturas do que as restrições alimentares. As pinturas têm
significados diversos e são utilizadas por índios de todas as idades. Elas são vistas como
uma forma de identificação com os antepassados, mostrando-se como uma
representação memorial de tempos idos ao mesmo tempo que refletem sentimentos,
sendo uma forma de expressão. Isso é representado na primeira fala do filme em
questão:
A festa das águas ela é em outubro porque, dia 5 de outubro, porque o
outubro é a época que começa as... é a época da chuva, da fartura,
onde as plantas ficam mais verdes, os pássaros, enfim... Tudo se torna,
fica em harmonia. É... 5 de outubro acontece a festa das águas, muito
importante para os Pataxós. Os Pataxós, nós viemos da água, por isso
a importância do banho nesse 5 de outubro. É, nós usamos pintura
específicas para esse dia, as mulheres usam uma pintura e os homens
usam outra pintura. A do rosto da mulher, que é esse aqui, significa o
rio, as águas indo, levando embora coisas ruins e trazendo coisas boas.
A gente pinta em cima do olho pra gente ter mais uma visão longe das
coisas, ver além do que os nossos olhos veem. A da barriga, que é essa
daqui, é porque nós mulheres Pataxós ficamos encarregadas, Niamisû
deu pra nós, é... A importância da gente tá multiplicando os Pataxós,
pra gente nunca deixar a nação Pataxó morrer. E essa aqui é o
casamento, os homens usam no casamento, então é a união das
famílias. O homem com a mulher (Trecho transcrito do filme Awê iõ
txonang).

Percebemos então, que a cosmologia está intimamente ligada à memória e à


identidade. A memória é construída e reconstruída, elaborada e reelaborada através
dessas percepções e relações com o mundo. Foi possível perceber que apesar das
cosmologias indígenas se assemelharem, é necessário pensar em memórias e
identidades indígenas, já que principalmente nos quesitos ligados à linguagem e à
alimentação, os Pataxó de Minas Gerais se diferenciam dos Yawalapíti de Castro. É
importante ressaltar que o Patxohã, língua Pataxó, já está praticamente perdida,

35
restando apenas alguns vocábulos que não chegam a constituir uma língua de fato. E na
questão da alimentação no caso Pataxó, devido a restrições territoriais, também teve que
ser alterada, assemelhando-se mais a dos não-índios.
O filme apresenta-se como um enunciado de memória, que busca a
consolidação de uma identidade, sendo mais que uma construção historiográfica. Há
uma preocupação maior em mostrar a perspectiva indígena do que em montar um
documento histórico. Isso fica claro pela ausência de falas e predomínio do canto. E
reafirma a percepção de uma diferente relação entre memória, identidade e história, cujo
caráter interrelacional e dinâmico foi tão bem traduzido por esta narrativa fílmica.
Como vimos, as memórias indígenas foram elaboradas de forma fragmentada.
Em paralelo, os índios constroem sua memória com base na cosmologia, relacionando-
se com os mitos de seus antepassados e com suas relações com a natureza. A memória
oficial continua apoiando-se em imagens que começaram a ser construídas no século
XVI. Naquela época, ela servia aos propósitos de catequese e exploração. Atualmente,
eles continuam seguindo os interesses da cultura predominante, reforçando as relações
de poder. Deslegitimando a memória indígena, deslegitimam-se suas lutas por direitos.
No entanto, novas iniciativas vêm surgindo, abrindo a possibilidade da consolidação de
uma memória compartilhada. Como veremos, elas se baseiam em políticas
interculturais, no diálogo entre culturas, que busca a cura das cicatrizes simbólicas
provenientes dos séculos de exploração.

36
Capítulo 3
EM BUSCA DE UMA MEMÓRIA COMPARTILHADA
____________________________________________________________

Como apresentamos no capítulo anterior, é possível pensar em diferentes


memórias indígenas brasileiras. Tentamos demonstrar que há um impedimento e
principalmente uma manipulação dessas memórias. Faremos agora uma reflexão sobre a
possibilidade da construção de uma memória compartilhada, através de políticas
interculturais voltadas para a educação. Pretendemos demonstrar que novas iniciativas
vêm surgindo nesse âmbito, aumentando as possibilidades de uma memória
compartilhada, mas que esta ainda está longe de se consolidar.

1. Educação: políticas interculturais e suas iniciativas


A educação vem sendo o local onde as políticas multiculturais encontram sua
expressão. Essas políticas, ao lidarem com a diversidade cultural, são importantes para a
construção e perpetuação de memórias e consequentemente para a consolidação das
identidades. Com isso em mente, tentaremos mostrar que mediante iniciativas
interculturais construídas através de um diálogo horizontal, que saibam trabalhar com as
relações de poder entre diferentes culturas, mostra-se possível fazer avanços
significativos na construção de uma memória indígena compartilhada, que respeite não
só as diferenças, mas também as similitudes. Pois, “temos o direito a ser iguais, sempre
que a diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes sempre que a igualdade
nos descaracteriza” (SANTOS apud CANDAU, 2008, p. 49).
As políticas interculturais na educação pensam na universalização e na
relatividade das culturas, mas não de forma absolutizante. Com a percepção de que as
culturas não são imutáveis ou completamente autoreferenciais, e sim estão em constante
reconstrução, considera-se necessário haver trocas e diálogos que visem à superação dos
preconceitos e das injustiças sociais, as quais procedem de relações construídas
historicamente, com fortes contornos de hierarquização cultural e um autoritário
exercício de poder. Na perspectiva intercultural, essas relações devem ser reconhecidas
e trabalhadas, e, sobretudo, voltadas à promoção de uma igualdade ético-política e da
defesa da diferença cultural, através de uma perspectiva crítica e emancipatória
(CANDAU, 2008, p. 53).

37
Alguns desafios devem ser transpostos para que uma educação intercultural
seja possibilitada. Primeiramente, é necessário que haja uma ênfase nos processos de
construção das identidades culturais através das memórias. Essas devem ser contadas e
narradas nos contextos educacionais, reforçando a ideia da dinamicidade das culturas e
das identidades e buscando o diálogo entre diferentes saberes, conhecimentos e práticas
(Ibidem, p. 53-54). É necessário também pensar na interação com o “outro”. Não apenas
em situações pontuais, mas em dinâmicas sistemáticas, que busquem uma construção
conjunta do conhecimento através de diferentes dimensões dos processos educativos. E
por fim, é necessário o “empoderamento” dos diferentes atores sociais, para que sejam
reconhecidos seus papéis ativos na constituição da sociedade civil. Nas palavras de
Candau,
A perspectiva intercultural que defendo quer promover uma educação
para o reconhecimento do “outro”, para o diálogo entre os diferentes
grupos sociais e culturais. Uma educação para a negociação cultural,
que enfrenta os conflitos provocados pela assimetria de poder entre os
diferentes grupos socioculturais nas nossas sociedades e é capaz de
favorecer a construção de um projeto comum, pelo qual as diferenças
sejam dialeticamente integradas. A perspectiva intercultural está
orientada à construção de uma sociedade democrática, plural, humana,
que articule políticas de igualdade com políticas de identidade
(Ibidem, p. 52).

Tendo essa perspectiva em mente, como pensar na consolidação de uma


memória indígena brasileira compartilhada? Passamos então a refletir acerca do papel
dos materiais didáticos e como eles podem auxiliar nesse processo. Entendemos os
materiais didáticos como sendo “objetos multifacetados, em diversos suportes e
linguagens, produzidos ou utilizados para finalidades didáticas, vinculados ou não ao
universo escolar, mas que são apropriados pelos docentes em sua experiência
profissional, bem como todos os materiais produzidos no interior da sala de aula por
estudantes e professores” (PALHARES, 2014, p. 371).
Esses materiais didáticos podem ter funções variadas, sendo possível destacar
quatro delas. A primeira seria uma função referencial, sendo entendidos como expressão
do currículo escolar. A segunda seria instrumental, como material de exercícios. A
terceira seria ideológica e cultural, auxiliando na construção das diferentes identidades.
E por fim, uma função documental, que busca o desenvolvimento de um pensamento
crítico por parte dos alunos (CHOPPIN apud PALHARES, 2011, p. 1766).
Os materiais didáticos, principalmente em sua função ideológica e cultural,
podem ser entendidos como espaços de memória. No entanto, devemos pensar quais

38
memórias gostaríamos de construir. Como já foi demostrado, os livros didáticos que
vêm sendo utilizados nas escolas ainda se apoiam numa visão hierarquizada da
sociedade. No entanto, através de algumas iniciativas interculturais novos materiais vêm
surgindo, como apresentaremos a seguir. A questão que fica é a forma como eles serão
apropriados pelos docentes.

1.1. FIEI
A primeira iniciativa que achamos importante ressaltar é o Curso de Formação
Intercultural de Educadores Indígenas. Esse curso existe desde 1995. Ele foi criado
através de diálogos entre índios das etnias pataxó, xacriabá, maxakali e krenac, a
UFMG, o Instituto Estadual de Florestas (IEF) e a Administração Regional de
Governador Valadares da Fundação Nacional do índio (FUNAI).16 A primeira turma se
formou em 1999 e desde então o número de alunos vem aumentando. Seu objetivo é
habilitar professores indígenas, através de uma educação intercultural, para ensinarem
em escolas de Ensino Médio e Fundamental17.
Essa iniciativa destaca-se pela grande produção de materiais didáticos, além da
tentativa de “empoderamento” das sociedades indígenas envolvidas. O diálogo é
incentivado, não só entre índios e não-índios, mas também entre índios de diferentes
etnias, reforçando a ideia da diversidade dentro das culturas indígenas. Busca-se
também o diálogo entre diferentes saberes, conhecimentos e práticas, pensando-se em
novos métodos educacionais.
Ao longo do curso os alunos devem desenvolver trabalhos que deverão ser
aplicados nas aldeias em que trabalham. Esses trabalhos são apresentados, por vezes,
nas áreas comuns da faculdade, sendo abertos à comunidade acadêmica e aos
interessados. No entanto, apesar da abertura ao diálogo, as ações são mais voltadas às
comunidades indígenas, acarretando que o curso tenha uma representatividade ainda
limitada na construção de uma memória compartilhada entre índios e não-índios, sendo
mais importante na consolidação das identidades étnicas. Já a produção didática pode
ser fundamental nesse aspecto, já que ao ser construída em parcerias horizontais, pode

16
Órgão criado em 1967, vinculado ao Ministério da Justiça. Tem como objetivos previstos em lei a
demarcação das terras indígenas, além da assistência a saúde e a educação dos índios.
17
Informações tiradas do Projeto Pedagógico do curso. Disponível em: <
https://www2.ufmg.br/prograd/prograd/Pro-Reitoria-de-Graduacao/Cursos/Humanas/Educacao-Basica-
Indigena-Formacao-Intercultural-de-Professor-FIEI>.

39
ser utilizada como espaço de memória, mediante uma apropriação pelos professores
não-indígenas.

1.2. Índio Educa


Além do curso oferecido pela UFMG, algumas outras iniciativas vêm surgindo.
Achamos interessante destacar aqui a plataforma on-line criada pela organização não
governamental (ONG) Thidêwá. Essa ONG foi criada em 2002, com três objetivos
principais: a sustentabilidade; o diálogo intercultural e o cruzamento de saberes; e a
cultura da paz e a valorização da diversidade.18 A Thidêwá já desenvolveu muitos
projetos, inclusive no âmbito educacional. Nos interessamos aqui pelo projeto “Índio
Educa”. Esse projeto se destaca, pois visa uma maior interação entre as diferentes
culturas.
O projeto Índio Educa foi criado em setembro de 2011, buscando a
disseminação de uma história e cultura reconhecidas como autênticas pelos povos
indígenas através das mais variadas formas, especialmente via internet. Além do apoia
da ONG Thidêwá, o grupo conta com o com a parceria do Pontão de Cultura Viva:
Esperança da Terra, parceria entre a ONG Thydêwá e o Ministério da Cultura19.
O site aborda diferentes aspectos da cultura indígena, como: a cultura, a
história, os mitos, os índios na atualidade. Apresenta textos e multimídias. No entanto, o
que mais nos interessou foi a seção do site chamada de “Ajudando o professor”. Essa
parte é voltada para auxiliar professores na forma de trabalharem a temática indígena
nas escolas. Através do diálogo, os integrantes do projeto tentam auxiliar nos
planejamentos de aula e também disponibilizar materiais didáticos mais diversos.
Essa iniciativa é interessante, pois amplia o espaço para debate, além de incitar
à utilização de materiais didáticos diferenciados. Assim, a história indígena não seria
ensinada apenas através dos livros didáticos convencionais, buscando-se uma
construção de memória que respeite e considere as diferentes identidades. A memória
indígena pode ser construía a partir de suas próprias percepções de identidade, mas não
de forma imposta, e sim colaborativa.

2. O novo bom selvagem

18
Disponível em: <http://www.thydewa.org/thydewa/>. Acesso em: 12 fev. 2016.
19
Disponível em: <http://www.indioeduca.org/?p=69>. Acesso em: 12 fev. 2016.

40
Por fim, achamos interessante abordar a ideia de “novo bom selvagem” que
vem sendo difundida com relação aos indígenas brasileiros. Palhares a coloca como
uma ideia equivocada que viria de uma suavização de antigas concepções, mas que
atribuiria ao indígena “um lugar moral – pois vivem em harmonia com a natureza e
delas tiram apenas o que precisam para sobreviver – e, ao mesmo tempo
preservacionista – pois não destroem as matas” (PALHARES, 2011, p.1772). Nessa
perspectiva, os índios continuariam a ser entendidos como uma única etnia e como
presos à floresta. O autor usa a concepção de Norbert Elias, que amplia a questão do
conflito pelo poder e as tensões entre sociedades no interior do Estado e pensa em uma
fossilização do habitus em reservas indígenas, como uma forma de evitar a
modernidade e se apegar as tradições (Ibidem, p.1771).
Essa construção do novo bom selvagem aparece como uma constante nos
materiais de produção indígena analisados, como demostrado pelas citações a seguir:

Poh gente, eu vo falar um pouquinho sobre o pai da mata, né?! Que é


o... o nosso guerreiro da... da floresta né?! Que é o espirito da nossa
floresta, que pretege nóis, os indígenas, né?! Então, isso é... a proteção
nossa, dos nossos velhos, nossos antepassados. Então hoje nós ainda
temos espirito que favorece nossa aldeia, que ainda protege a natureza
dos homens que devasta a natureza, mata os bichinho do mato... Isso
eles fica muito em ganho hoje por que... o homem hoje, o espaço dele
é muito pequenininho, não da pra ele roda na natureza. Então a gente
ainda tem esse símbolo nosso, do nosso povo. Que isso é importante, a
gente ta mostrando pros nossos visitantes a nossa aldeia, por que ele...
ele da coro no tipo, faz maldeza com os animais, quem despolia a
natureza, as águas. Se a gente for pra natureza ainda, lá ele faz a gente
fica pertinho, da uma surra na gente. Então isso que eu queria ta
esclarecendo pra vocês. Que isso, é o amor da gente ter isso ainda
como um símbolo da nossa aldeia e proteger a natureza, né?! Isso que
eu queria deixar muito agradecido por vocês, é isso ai (Trecho
transcrito do filme Awê iõ txonang – Festa das Águas).

A THYDÊWÁ nasce alquimicamente através do compromisso de


várias pessoas, vindas de diferentes culturas e conhecimentos, com o
objetivo de promover a consciência planetária e realizar ações em
favor de toda vida, em favor da Mãe Terra (Trecho retirado do site da
ONG Thidêwá).

Esta cartilha é um trabalho coletivo do povo Pataxó de Minas Gerais e


retrata a nossa própria reflexão e sabedoria sobre os elementos da
natureza. Pretendemos com esse material sensibilizar a comunidade
indígena, escolas, autoridades, a sociedade e nossos vizinhos sobre a
importância d participação de todos para cuidar do Meio Ambiente
através da união e da consciência (Trecho retirado da cartilha “Niatum
miãga hãmãgui – filhos das águas e da mata”).

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Mas a despeito da importância das críticas apresentadas por Palhares à releitura
contemporânea da noção do “bom selvagem”, pode-se aqui lançar uma questão
provocativa. Será que a atual apropriação dessa noção pelos indígenas não pode ser
entendida como uma tática de afirmação identitária, de forma a propiciar-lhes um
diferencial cultural perante o não-índio? Será que não podemos pensar que os grupos
indígenas vêm reconfigurando uma memória manipulada a seu respeito, em prol de um
fortalecimento simbólico, em uma busca da sobrevivência cultural? Não será essa a
memória compartilhada que buscamos?
Cunha ressalta que em situações de intenso contato, a cultura original assume
uma outra função, se tornando uma cultura de contraste. Isso, ao invés de significar uma
perda de cultura, causa uma acentuação dessas, que ao se simplificarem, diminuindo os
traços que se tornam diacríticos, se enrijecem, buscando uma maior visibilidade
(CUNHA, 1986, p.99). Ela continua dizendo que os traços culturais que buscam a
garantia da distinção de determinado grupo dependem “dos outros grupos em presença e
da sociedade em que se acham inseridos, já que os sinais diacríticos devem poder se
opor, por definição, a outros do mesmo tipo” (CUNHA, 1986, p.100). Assim, podemos
pensar nessa apropriação da memória do bom selvagem como uma forma de
diferenciação e oposição. Diante dos abusos e descasos das sociedades modernas com
relação à natureza, ao se colocarem como “guardiões” ou “protetores” desta, os
indígenas se afirmam na diferença, se consolidando como um grupo diverso. Ao mesmo
tempo em que se unem e fortificam em suas lutas políticas e justificam suas
reinvindicações por territórios, afirmando sua maior pertença e cuidado com estes.
Apesar da compreensão dos receios de manipulação identitária envolvidos
nessa construção, acreditamos que os indígenas têm se apoiado nessa ideia como forma
de afirmação da alteridade étnico-cultural. Essa afirmação, apesar de comportar o risco
de evocar novamente uma concepção unívoca do índio no tempo contemporâneo,
também traz uma possibilidade de afirmação frente ao “outro”. Apesar das culturas
indígenas serem diversas, elas enfrentam problemas comuns, o que acreditamos levar a
uma aproximação dos povos pelo menos nas lutas por direitos. Assim, a ideia do “novo
bom selvagem” seria uma tática simbólica a lhes prover reconhecimento político, mas
sem necessariamente generalizar uma representação monolítica e idealizada dos
indígenas, já que estas continuam tendo suas especificidades, como já foi demonstrado
pelas diferentes concepções cosmológicas. Assim, acreditando na importância dos
diálogos interculturais, não seria esse um ponto inicial para a construção de uma

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memória compartilhada, já que, apesar de partir de uma concepção eurocêntrica, essa se
tornou uma forma de afirmação identitária e de resistência?

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CONCLUSÃO
____________________________________________________________

“Compreender a cultura de um povo expõe a sua normalidade


sem reduzir sua particularidade” (GEERTZ, 2008, p.24).

Com a substituição do conceito de raça pelo de cultura começou-se a pensar,


principalmente na antropologia, nas possibilidades de aculturação20 ou perda de cultura.
Assim, quando pensavam os indígenas brasileiros, parecia ser uma crença comum a de
sua extinção física e cultural, ou através do extermínio ou da assimilação. No entanto,
como sabemos os indígenas continuam presentes na atual sociedade brasileira, havendo
indícios de que suas populações vêm, inclusive, aumentando nas últimas décadas
(GOMES, 2012, p.17). Assim, é necessário que se busque uma maior compreensão de
suas identidades, de forma a integrá-los, sem assimilá-los, da melhor forma possível à
sociedade vigente.
No primeiro capítulo pensamos o conceito de cultura de forma dinâmica e
mutável, sendo mediada por relações multiculturais que podem ser potencializadoras ou
destrutivas (até mesmo autodestrutivas) e que, em geral, têm as relações de poder como
norteadoras. Tentamos demostrar que a ideia de manutenção de matrizes culturais de
base é enganosa, já que os próprios ambientes em que se inserem estão em constante
processo de mudança. As matrizes culturais serviriam, “de reservatório onde se irão
buscar, á medida das necessidades do novo meio, traços culturais isolados do todo, que
servirão essencialmente como sinais diacríticos para uma identificação étnica”
(CUNHA, 1986, p.88). Tentamos também refutar a ideia de estaticidade cultural, já que
esta se opõe a própria ideia de cultura.
Com essa compreensão pensamos as identidades étnicas, pois estas são
construídas a partir da cultura que, por sua vez, é constantemente reelaborada através
das relações. Essas identidades são refletidas e construídas pelas memórias, que estão
sujeitas a diferentes interpretações, podendo ser apropriadas de acordo com as
necessidades de quem as acessa. Essas apropriações variam de acordo com os grupos
sociais e com relações de poder elaboradas através das relações culturais. Tentamos
pensar a crise-identitária indígena a partir da dificuldade de narrativização de suas
20
Aculturação em um sentido de perda dos traços culturais que os definem como diferentes e assimilação
dos traços culturais provenientes das culturas dominantes.

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memórias. Ela seria um reflexo da dificuldade de afirmação destes perante o “outro”,
devido a uma apropriação manipulada da memória que esta mais baseada nas relações
de poder do que nas características identitárias.
No segundo capitulo, mostramos algumas construções narrativas construídas
acerca do indígena, tentando mostrar que a memória pode se apoiar tanto nas
identidades, quanto nas relações de poder. No primeiro caso apresentado, busca-se a
manutenção dos meios de exploração e opressão mantidos pelos interesses da cultura
preponderante. Já no segundo busca-se a construção de uma identidade étnica, baseada
na cosmologia. Entre ambos, são promovidas inúmeras formas de apropriação,
bricolagens e ressignificações.
No ultimo capítulo, pensa-se como essa construção compartilhada da memória
pode e vem sendo desenvolvida em projetos interculturais voltados para a educação.
Tenta-se mostrar que essas iniciativas, apesar de criarem espaços para a promoção das
diferenças, como nas políticas multiculturais diferencialistas, esses espaços são
pensados através do diálogo e de uma construção conjunta. Essas políticas visam, não
só a afirmação frente ao outro, mas a compreensão e aceitação pelo outro.
Assim, acreditamos que há a possibilidade de construção de uma memória
indígena compartilhada, que abarque a dinamicidade das culturas, e a diversidade de
identidades. Essa teria a finalidade de “empoderar” os índios, abrindo espaços de
diálogo, permitindo uma maior inserção nos espaços públicos e políticos e legitimando
suas lutas. Essa memória depende, em grande medida, da apropriação de novos
materiais e métodos pelos docentes, criando assim uma escola mais democrática e
participativa.

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Referências documentais

Awê iõ txonang – Festa das Águas – Um filme de Isaque Pataxó. Direção: Isaque
Pataxó. 2006-2011. Filme produzido com o apoio da Faculdade de Educação/UFMG ,
da Biblioteca Universitária/UFMG, da Fundação Nacional do Índio, e da Secretaria de
estado da Educação de Minas Gerais.
Niatum miãga hãmãgui – filhos das águas e da mata. Cartilha produzida pelo povo
Pataxó de Minas Gerais, com o apoio do Ministério do Meio Ambiente, da FUNASA,
do IEF – regional do Rio Doce, da PUC Minas, do CIPAC e da FUNAI.
Pataxó, Lucidalva. Ãgohó Lua Pataxó. 1ª ed. Belo Horizonte: Faculdade de Letras,
2011.
Site da Organização não-governamental Thidéwá. Disponível em:
<http://www.thydewa.org/thydewa/>.
Site do projeto Índio Educa. Disponível em: <http://www.indioeduca.org/?p=69>.
Projeto Pedagógico do curso FIEI. Disponível em: <
https://www2.ufmg.br/prograd/prograd/Pro-Reitoria-
deGraduacao/Cursos/Humanas/Educacao-Basica-Indigena-Formacao-Intercultural-de-
Professor-FIEI>.

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