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INDÍGENAS BRASILEIROS:
EM BUSCA DE UMA MEMÓRIA COMPARTILHADA
Mariana
Instituto de Ciências Humanas e Sociais/UFOP
2016
JULIANA CARVALHO RODRIGUES
INDÍGENAS BRASILEIROS:
EM BUSCA DE UMA MEMÓRIA COMPARTILHADA
Mariana
Instituto de Ciências Humanas e Sociais/UFOP
2016
Agradecimentos
A Prof.ª Dra. Virgínia Buarque, pelo privilégio de ter recebido a orientação. E também
pelo estímulo e pela paciência para me auxiliar nesse trabalho.
A Prof.ª Manuela de Carvalho Rodrigues, minha irmã, pela disponibilidade, amizade,
carinho, e pelas valiosas contribuições dadas ao trabalho.
Ao Prof. Dr. Pablo Lima e a Raphaella Moraes da UFMG por me receberem e abrirem
as portas para os contatos iniciais com os indígenas do curso FIEI.
Ao Cacique Romildo e aos índios Pataxó das aldeias Imbiriçu e Guarani pelo
acolhimento e receptividade. E pela sua colaboração inestimável, sem a qual não seria
possível a realização deste trabalho.
A minha mãe que com muita sabedoria, afeto e paciência me ensinou a trilhar as
veredas da vida.
A toda minha família pelo inestimável apoio.
Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de
caçadas continuarão glorificando o caçador.
(Provérbio africano)
Resumo
Este trabalho apresenta uma reflexão sobre a possibilidade de construção de uma
memória compartilhada acerca dos indígenas brasileiros a partir de uma visão que
abarque a diversidade de culturas e identidades desenvolvidas por estes. Sua temática
surgiu de uma percepção da dificuldade de afirmação dos indígenas em suas lutas por
direitos. Foi feita uma revisão bibliográfica, aliada a interpretação de fontes produzidas
mediante políticas interculturais, tendo como principais objetivos: refletir sobre as
motivações histórico-culturais para a crise identitária indígena, em suas articulações
com o risco de perda das memórias, face às mudanças do tempo presente; apontar a
importância das relações interculturais nas configurações identitárias indígenas; analisar
as possibilidades de uma memória compartilhada e o papel da educação nessas
construções. Pensamos em como as políticas interculturais podem criar espaços de
memória que auxiliam na superação da crise identitária indígena, já que tentam mostrar
quem são os indígenas brasileiros em suas interrelações, ao invés de absolutizar as
diferenças ou simplesmente assimilá-las. Buscamos corroborar a hipótese de que através
de relações interculturais é possível a construção de uma memória compartilhada que
considere mais a identidade étnica do que os interesses e os poderes socialmente
determinantes.
Abstract
This paper presents a reflection on the possibility of building a shared memory about
Brazilian Indians from a vision that embraces the diversity of cultures and identities
developed by them. It´s themes arose from the perception of the difficulty of affirmation
of indigenous peoples in their struggles for rights. In terms of methodology, it was made
a literature review, ally with the interpretation of sources produced by intercultural
policies. Its main objectives are: to reflect on the historical and cultural reasons for the
indigenous identity crisis, articulated with the risk of loss of memory, face the changes
of present time; pointing out the importance of intercultural relations in indigenous
identity configurations; examine the possibilities of a shared memory and the role of
education in these buildings. Intercultural policies can create memory spaces that help
in overcoming the indigenous identity crisis, by trying to show who are the indigenous
Brazilians in their interrelations, rather than think of absolute differences or simply
assimilating them. In this work we try to corroborate the hypothesis that through
intercultural relations it´s possible the construction of a shared memory that considers
more the ethnic identity than the interests and the social determinant powers.
Introdução..........................................................................................................................7
Para começar a pensar: cultura, identidade, relações culturais e memória......................10
1. Cultura.................................................................................................................10
2. Relações culturais e multiculturalismo................................................................12
3. Identidade, etnicidade e crise identitária.............................................................18
4. Memória...............................................................................................................22
4.1.Memória manipulada...................................................................................23
Construções da Memória: Discursos Possíveis...............................................................25
1. Na historiografia, um olhar sobre o outro............................................................25
2. Um filme, uma ideia de si mesmo......................................................................33
Em busca de uma memória compartilhada......................................................................37
1. Educação: políticas interculturais e suas iniciativas............................................37
1.1.FIEI................................................................................................................39
1.2.Índio Educa....................................................................................................40
2. O novo bom selvagem.........................................................................................40
Conclusão........................................................................................................................44
Referências documentais.................................................................................................46
Referências bibliográficas...............................................................................................47
INTRODUÇÃO
____________________________________________________________
7
limites e suas configurações. Em seguida, passamos a pensar qual o papel das relações
interculturais e das hibridizações nessas construções, através dos conceitos
desenvolvidos por Vera Candau, Marshall Sahlins e Rosângela Faustino. A partir destes
conceitos, podemos pensar as identidades étnicas, em suas relações com a constituição
das diferentes culturas, como apontado por Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo
Viveiros de Castro. Por fim, podemos refletir sobre a memória, o espaço onde estas
construções confluem. Tentamos delimitar a visão de memória que será aqui abordada,
a partir da perspectiva de Paul Ricoeur, e mostrar as dificuldades provenientes de seus
abusos.
No segundo capítulo tentaremos indicar que a memória que foi construída
sobre os indígenas brasileiros é fragmentada. De um lado, possuímos a visão do
indígena sobre sua própria cultura, que será analisada tendo por base os Pataxó de
Minas Gerais e os Yawalapiti de Castro. De outro, a memória “oficial” que vem sendo
construída desde o século XVI. Tentamos pensar a quais propósitos estas memórias
servem e de que forma foram constituídas.
No ultimo capítulo, pensamos na possibilidade de construção de uma memória
compartilhada através de políticas interculturais voltadas para a educação. Assim, são
apresentados dois projetos e suas contribuições para o tema. Por fim, discorreremos
sobre a concepção do “novo bom selvagem” que vem sem construída e a forma como
ela vem sendo apropriada pelos indígenas, refletindo sobre seus desdobramentos para o
compartilhamento da memória.
De forma geral, tentamos corroborar nossa hipótese de que através de relações
interculturais é possível a construção de uma memória compartilhada que considere
mais a identidade étnica do que os interesses e os poderes socialmente determinantes.
As políticas interculturais podem criar espaços de memória que auxiliam na superação
da crise identitária indígena, tentando mostrar quem são os indígenas brasileiros em
suas interrelações, ao invés de absolutizar as diferenças ou simplesmente assimilá-las.
Terminamos essa introdução com um pequeno texto produzido pelo professor Izaias
Hitoha Pataxó, que reflete a hipótese apresentada.
A educação indígena atual é reflexo de uma instrumentalização
experimentada nos primórdios de sua trajetória histórica em que ela
era desenvolvida nos círculos comunitários, sendo que toda a vida de
cada grupo étnico era entendida, avaliada, articulada e construída
nesse ambiente. Os valores educacionais eram trabalhados na
mentalidade das crianças desde a tenra idade, pois os mais velhos
acreditavam que uma criança, para ser um bom seguidor dos traços
8
conjuntivos intrínsecos, seria preciso, através da vida diária de seus
pais, um investimento adequado para a preparação de um futuro
próspero e longínquo. Como norma e prática a vivenciar, as crianças
eram influenciadas a cumprir com gosto e prazer os ensinamentos
transmitidos pelos pais e os anciãos da aldeia. Dias alvos eram
aqueles, onde todos, com os olhos fitos, assentavam a beira da
fogueira, e em especial numa noite de inverno sendo que o frio era
intenso e era prazeroso estar nesse meio e uma vista lunar sem igual,
nossos pais contavam as mais fascinantes histórias que outrora
acontecera com um guerreiro da tribo, outra vez ensinava como
definir as estações da lua, a planta certa para a preparação do remédio
certo e etc.
Passados séculos de convívio com o homem branco o indígena viu a
necessidade de se preparar melhor intelectualmente adentrando a
política externa das ideias ocidentais, em que pudessem, através da
dialética, construírem algo concreto e palpável para seus parentes que
se encontravam na aldeia sem a devida liberdade de pensarem e
refazerem uma realidade pautada nos valores tradicionais, que até
então encontravam, e em outras realidades comunitárias se encontram
manchadas por proposições e práticas não condizentes com suas
experiências milenares, afetando e prejudicando assim todo o contexto
cultural.
Hoje surge no cenário brasileiro moças e rapazes de todas as nações
indígenas motivados a procura de seu espaço na sociedade vigente e
ao mesmo tempo visando uma contribuição nas formulações de leis e
decisões a serem tomadas em se tratando de políticas internas e
externas.
Portanto a educação sempre fez parte do currículo histórico do
indígena, visto na atualidade uma conciliação de valores pedagógicos-
culturais de mentalidades diferentes, aglutinando assim forças para a
elaboração de novas diretrizes pedagógicos consistentes, sendo
benéfico para todas as comunidades tidas como indígenas1.
1
Izaias Hitoha Pataxo é professor de História na Escola indígena da Aldeia Guarani, em Carmésia, Minas
Gerais. Este texto fica exposto no mural da sala dos professores.
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Capítulo 1
PARA COMEÇAR A PENSAR:
CULTURA, IDENTIDADE, RELAÇÕES CULTURAIS E MEMÓRIA
____________________________________________________________
1. Cultura
O conceito de cultura, ao longo dos anos, foi ganhando diversas interpretações.
Como coloca Faustino, “só os cientistas norte-americanos criaram mais de 150
definições para o termo até a primeira metade do século XX” (FAUSTINO, 2006, p.
61). Assim, é importante que esse trabalho seja iniciado com uma tentativa de
delimitação desse conceito, já que se pretende mostrar que as reivindicações de
memória e identidade feitas por muitos indígenas brasileiros, a exemplo dos Pataxó,
apoiam-se numa ideia de preservação cultural. Citando Geertz,
10
não seria “algo dado, posto, algo dilapidável também, mas algo constantemente
reinventado, recomposto, investido de novos significados” (CUNHA, 1986, p. 101).
Apesar da grande variedade de interpretações, trabalharemos aqui com um
conceito de cultura de viés semiótico. Usando aqui as palavras de Geertz, “acreditando,
como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele
mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise” (GEERTZ,
2008, p. 15). A cultura seria uma hierarquia de estruturas significantes, simbólicas e de
ordem pública. Ela seria um contexto que possibilitaria a compreensão de algo (um
processo, uma ação, um evento, etc.).
As formas culturais são articuladas através dos comportamentos e das ações
sociais. Elas estão presentes também em artefatos e em diferentes estados de
consciência (Ibidem, p. 27). Essas formas manifestam-se nas leis, na arte, na língua, nas
tradições, nas ideologias, na religião. Podemos chamá-las também de sistemas culturais,
reconhecendo nelas com isso, uma certa coerência ou articulação implícita de seus
elementos, não sendo possível, no entanto, recorrer a fórmulas prontas para
compreendê-los. Como esses sistemas são reconstruídos continuamente, é possível
perceber que apesar de haver uma estrutura convencional, eles são repensados na ação.
Eles existem de forma virtual e real. Assim, eles não são padronizados, homogêneos,
podendo haver variações dentro de um mesmo grupo.
A cultura é construída tanto no âmbito social quanto no pessoal - as sociedades
reelaboram sentidos e práticas a partir das diferentes interpretações, chegando a um
esquema simbólico que perpasse imaginários, mentalidades, condutas. Mas como cada
ação apresenta apenas uma parte do esquema (temos que pensar aqui na transmissão, na
recepção, na interpretação de cada evento), tais esquemas são costumeiramente
reconfigurados, podendo um mesmo signo receber um novo significado completamente
diverso do original. Essas atualizações da cultura podem se tornar bastante recorrentes,
dependendo da compreensão e da forma que forem retomadas pelo grupo (SAHLINS,
1990, p. 10).
A cultura seria também um discurso social, construído e reconstruído a partir
das necessidades de cada tempo e de cada sociedade. Podemos pensar, como diz
Sahlins, que a cultura é reproduzida, historicamente na ação, já que os esquemas são
repensados, criativamente, na prática. Cada evento (fato, acontecimento) seria uma
atualização singular de um fenômeno geral (tem maior alcance, uma tradição, um
movimento), uma realização incerta, casual, acidental do padrão cultural (Ibidem, p. 7).
11
Essas atualizações de cultura se relacionam muitas vezes ao contato com
diferentes sociedades. Portanto, analisaremos agora como as relações sociais
contribuem para a elaboração e a configuração das culturas e consequentemente para a
construção da memória, já que a esta se constrói através das representações culturais.
2
O termo multiculturalismo é entendido aqui como o reconhecimento oficial da diversidade cultural. Ele
foi inicialmente utilizado em 1960 no Canadá, em resposta aos movimentos separatistas, buscando uma
conciliação politica. Seu uso se populariza em 1971 após o discurso de Pierre Elliot Trudeau,
“Multiculturalismo dentro de uma base bilíngue”. Em 1982 é incorporado à Constituição canadense como
uma promessa de ampliação dos direitos de cidadão. No final do século XX, com o neoliberalismo, as
lutas sociais começam a se utilizar dessa terminologia em sua busca por igualdade (FAUSTINO, 2006,
p.76-77).
3
Apesar da utilização deste termo, essa ideia é considerada enganosa e ultrapassada, pois se apoia em uma
ideia de hierarquização das culturas.
12
sociedades, eles se apropriam, de forma diversificada, dos esquemas culturais
disponíveis, reelaborando constantemente os próprios esquemas (SAHLINS, 1990, p.
10). Podemos pensar que, ao se estudar qualquer sociedade é necessário considerar as
relações culturais. Como veremos a seguir, essas relações são abordadas de diferentes
formas, podendo ter caráter potencializador ou destrutivo.
Há diversos enfoques possíveis a respeito do multiculturalismo, mas em linhas
gerais, ele é o reconhecimento do outro na dinâmica das relações entre os diferentes
povos, influenciando diretamente na construção e reconstrução de suas representações
culturais. O multiculturalismo é apropriado pelas teorias políticas. Elas tentam mediar
as diferentes relações, que serão então construídas e representadas através da educação.
O primeiro enfoque desse tema importante de ser apresentado é o de Kátia dos
Santos, citada por Faustino. De forma sintética, a autora divide as correntes que tratam
desse tema em: multiculturalismo conservador; multiculturalismo liberal;
multiculturalismo essencialista/liberal de esquerda; multiculturalismo crítico e de
resistência (Apud FAUSTINO, 2006, p. 99-101).
O multiculturalismo conservador vem do neocolonialismo. Ele visa uma
hierarquização cultural, tendo a cultura “branca” e europeia como modelo. Busca,
através de políticas assimilacionistas, a construção de uma cultura comum. Na
educação, que é seu foco principal, os problemas educacionais são vistos como
provenientes dos alunos e não das condições educacionais (Ibidem, p. 99).
Já no multiculturalismo liberal pensa-se numa igualdade cultural, não havendo
hierarquização. No entanto, as relações de opressão presentes na sociedade são
desconsideradas e as desigualdades econômicas são aceitas. Na educação, também
prega a assimilação e o relativismo cultural, mantendo-se em uma visão eurocêntrica,
apesar de pregar o respeito pela diversidade. Essas duas visões são colocadas como
sendo as mais utilizadas ao se tratar as relações culturais no Brasil (Ibidem, p. 100).
A autora segue para a terceira corrente, o multiculturalismo essencialista/liberal
de esquerda. Nessa visão, busca-se uma essência das culturas e das identidades que teria
sido construída no passado, uma matriz cultural, criando a ideia de estaticidade das
culturas. Há uma preocupação maior com a autoafirmação de pequenos grupos do que
com a construção de um diálogo (Ibidem, p. 100 -101).
Por fim, temos o multiculturalismo crítico e de resistência. Nessa perspectiva a
cultura é vista como conflitiva e não harmoniosa. Ressalta-se a importância do diálogo,
13
buscando transformar as relações onde os significados e signos são construídos (Ibidem,
p. 101).
Outro enfoque importante é o de Vera Candau. Ele simplifica e, ao mesmo
tempo, elabora a proposta acima. Inicialmente a autora aponta duas abordagens
principais, sendo elas, a descritiva e a prescritiva. Na descritiva é priorizada a
compreensão e a definição da construção da formação multicultural nos diferentes
contextos. Já na prescritiva, o multiculturalismo seria uma forma de mudar a dinâmica
social. Nela, são criados parâmetros para as interações sociais (CANDAU, 2008, p. 50).
Essas abordagens dão origem a três diferentes perspectivas, segundo a análise
da autora. Elas são: o multiculturalismo assimilacionista, o multiculturalismo
diferencialista, também chamado de monoculturalismo plural e, por fim, o
multiculturalismo interativo ou interculturalismo4.
No multiculturalismo assimilacionista, se pensado a partir da abordagem
descritiva, percebe-se que há diferenças culturais, não havendo igualdade de
oportunidades. Na abordagem prescritiva, pensa-se a solução para essa desigualdade
através de uma tentativa de assimilação das culturas ou grupos marginalizados à cultura
hegemônica. No que concerne à educação, percebe-se uma política de universalização
de caráter monocultural, ou seja, busca-se a construção de uma cultura comum, sem
levar em consideração as diferenças, que devem ser suprimidas. Há aqui uma
hierarquização de culturas onde se tenta a supressão das consideradas inferiores. Essa
perspectiva se assemelha às visões de multiculturalismo liberal e de multiculturalismo
conservador apresentadas acima (Ibidem, p.50).
A segunda perspectiva seria a do multiculturalismo diferencialista ou
monoculturalismo plural. Essa concepção se coloca em contraposição a ideia de
assimilição, entendendo que essa nega as diferenças. A ênfase agora é colocada no
reconhecimento da alteridade. Buscam-se então espaços para a promoção das diferenças
(Ibidem, p. 50-51). No entanto, essa visão acaba por suportar uma ideia de estaticidade
das culturas, assim como o multiculturalismo essencialista de esquerda, já que acredita
na manutenção das matrizes culturais de base. Aqui também se pensa em uma
4
O termo interculturalismo começa a ser usado nos anos de 1970 na Europa, dentro de uma politica
governamental de trato com imigrantes. O termo faz sempre referencia a relação com o outro. Apesar de
muitas vezes ser usado com a mesma significação que o termo multiculturalismo, esse é visto aqui como
sendo o reconhecimento da diferença, enquanto interculturalismo significaria o diálogo entre os
diferentes.
14
homogeneização cultural, no entanto, limitada aos diferentes grupos. Esses dois
modelos se relacionam de forma complexa e são os mais comuns na educação vigente.
Entramos agora na terceira perspectiva desenvolvida pela autora, a do
multiculturalismo interativo ou interculturalismo. Essa visão tem se apresentado como
uma boa alternativa para a construção de relações multiculturais, mesmo que ainda seja
vista de forma utópica. Ela apresenta, assim como o multiculturalismo crítico e de
resistência, um caráter colaborativo, promovendo as inter-relações e o diálogo. Valoriza
as diferenças, mas percebe que as culturas estão em um processo contínuo de
reestruturação e reconstrução. As raízes culturais são vistas como históricas e
dinâmicas, não havendo um padrão cultural fixo. A hibridização ocorreria de forma
intensa, resultando em identidades igualmente dinâmicas. Nessa perspectiva, há o
reconhecimento das diferentes relações de poder que perpassam as relações
multiculturais, e que criam relações hierarquizadas e marcadas por preconceitos e
discriminações (Ibidem, p. 51-53). No âmbito educacional, busca-se a percepção da
alteridade através do dialogo de grupos diversos. Almeja-se
16
burguês, luta de classes, emancipação humana e outros, criam ou se utilizam de novos
termos para se opor à opressão do Estado, defender liberdades humanas e aspirações
emancipadoras por meio do reconhecimento e celebração da diferença e diversidade”
(Ibidem, p. 64).
No entanto, as teorias das vertentes de esquerda não auxiliam na compreensão
do que estamos vivenciando, e também, causam uma confusão teórica. A diversidade
cultural deixa de ser vista como uma forma de resistência e de enfrentamento da
realidade vivenciada, sendo então desvalorizada como integrante das lutas sociais.
O importante aqui, porém, é ressaltar que, desde o final do século XX, cada vez
mais projetos e teorias vem surgindo envolvendo temas como cultura,
multiculturalismo, interculturalismo, diversidade cultural. Eles surgem de uma
necessidade, contemporânea de lidar com as diversas identidades, que se relacionam de
forma cada vez mais próxima, tentando aumentar a inclusão social.
Um passo importante nesse sentido foi a palestra, em 1950, de Levi-Strauss
para a UNESCO, Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura,
que consolidou o conceito de diversidade cultural através da tentativa de superar as
ideias de supremacia racial, etapas de desenvolvimento social e cultural, progresso,
hierarquização cultural e estaticidade cultural. No Brasil, entretanto, essas questões
começam a ganhar espaço um pouco mais tarde, no final da década de 1970 e inicio de
1980, com o enfraquecimento do regime militar. Isso é perceptível na Constituição de
1988 onde se coloca o pluralismo e a democracia.
No inicio dos anos de 1990, o MEC começa a pensar na diversidade cultural e
na educação das minorias. As políticas multiculturais no Brasil, em geral, aparecem
como reconfigurações das políticas norte-americanas, não se considerando de forma
apropriada a maior diversificação cultural presente no país.
Por fim, é importante ressaltar o papel da educação na forma como enxergamos
essas relações já que as políticas multiculturais apoiam-se na educação em busca de
formas de lidar com essas relações. As perspectivas priorizadas costumam ser a
multicultural assimilacionista ou a diferencialista. No entanto, já vêm sendo colocadas
em prática políticas mais voltadas a uma visão de interculturalidade, que tentam
legitimar a diversidade cultural. Seus objetivos seriam: “reconhecer e aceitar o
pluralismo cultural como uma realidade social; contribuir com a criação de uma
sociedade com igualdade de direitos e contribuir com o estabelecimento de relações
interétnicas harmoniosas” (FAUSTINO, 2006, p. 95).
17
3. Identidade, etnicidade e crise identitária
Nas ultimas décadas, em decorrência dos debates sobre multiculturalismo e
cultura, há uma tentativa cada vez maior de reconhecimento das diferentes identidades.
Na busca por justiça social, coloca-se a aceitação das diversas identidades culturais em
prol de uma sociedade diversificada. Assim, ao falar-se dos indígenas brasileiros, é
necessário pensar qual(is) seria(m) essa(s) identidade(s). Para tanto é preciso
compreender um pouco da cosmologia e da crise identitária que se faz presente em
diversas sociedades indígenas, além de pensar um pouco sobre a construção da
identidade étnica.
A identidade pode ser entendida como um modelo mental através do qual se
organiza e compreende o mundo. Ela tem a cultura como fundamento, mas não é
definida por essa. A etnicidade ou identidade cultural seria uma forma de organização
política e econômica, construída a partir de um imaginário social que é constantemente
reelaborado. E, como o conceito de multiculturalismo, está associada às lutas políticas,
sendo uma forma de resistência. A identidade é uma forma de relação social e, como tal,
baseia-se em relações de poder. Ela produz e reproduz a alteridade. E, assim como a
cultura, é uma construção em constante processo de ressignificação e reconstrução.
A identidade étnica seria percebida através da autoidentificação e da
identificação pela sociedade, em outras palavras,
18
Ao longo do tempo, alguns critérios foram usados para a definição do que seria
um grupo étnico, e através desses critérios buscava-se (e busca-se) definir se uma
comunidade é ou não considerada indígena. Cunha divide em três momentos essa
questão, sendo que em cada um deles há uma mudança na percepção do que seria um
grupo étnico. Num primeiro momento, um grupo étnico é entendido como sendo um
grupo racial. Pensa-se em “pureza” racial, não comportando as miscigenações. No
entanto, com as políticas de miscigenação promovidas pelo Estado português, essa
definição de grupo étnico, acabava por descaracterizar o índio em suas disputas por
terras, criando critérios de indianidade que não podiam ser cumpridos na realidade
(Ibidem, 1986, p. 113-118).
Após a Segunda Guerra Mundial, como já foi mencionado acima, o critério de
raça é substituído pelo de cultura. No entanto, a utilização desse critério pode trazer
alguns problemas, levando à ideia de estaticidade cultural e de matriz cultural. Com
relação aos indígenas brasileiros, é possível perceber, assim como em outras sociedades,
que nem todos os traços culturais foram mantidos, mas essa perda de traços culturais
não significa uma perda de identidade já que buscam, através de alguns símbolos, a
continuidade e a singularização do grupo.
Por fim, entramos nos critérios em vigência atualmente. Como já foi dito, a
identidade étnica passa a ser concebida através da autoidentificação e da identificação
pelo grupo. A origem e as tradições também têm seu papel, mas eles são guiados pelas
concepções próprias de cada grupo. Assim,
[...] cabe dizer que todos os grupos étnicos têm mecanismos de
adoção ou de exclusão de indivíduos. Quanto à inclusão de um
individuo no grupo étnico, esta depende de sua aceitação pelo grupo, o
que, evidentemente, supõe sua disposição em seguir seus valores e
traços culturais. Isto, [...], não dilui a identidade especifica do grupo
(Ibidem, p.118).
19
para as configurações identitárias, podendo ou não servir também para a construção da
memória, fator que será mais explorado à frente.
A concepção cosmológica das sociedades indígenas, conforme apresentado por
Castro, seria a de “relatividade perspectiva”, uma “concepção, comum a muitos povos
do continente, segundo o qual o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou
pessoas, humanas e não-humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos”
(CASTRO, 2002, p. 347). Os conceitos de natureza e cultura, vistos como opostos pelas
modernas sociedades urbanas, em especial nos circuitos ocidentalizados, aqui são
entendidos sob o aspecto de perspectivas.
A essa concepção ele soma a de “multinaturalismo”, que contrastaria com o
multiculturalismo das sociedades modernas (CASTRO, 2002. p. 349). Enquanto
pensamos em uma única natureza com diversas culturas; para essas sociedades, a
cultura seria percebida como universal, enquanto a natureza seria a forma particular, ou
seja, um único espírito em uma diversidade de corpos. Esse espírito seria um espírito
essencialmente humano, sendo a humanidade uma condição original comum a todas as
espécies. Os “corpos” seriam envoltórios que guardariam esse espírito. Os membros de
uma própria espécie se percebem e percebem o mundo à sua volta como humanos. Já os
humanos, são percebidos de diferentes formas pelas outras espécies dependendo das
relações mantidas com elas. Essas relações em geral estão relacionadas à predação.
Assim, o referencial que essas sociedades utilizam é a humanidade e não a espécie
humana, e seu conhecimento se da de forma subjetiva, através da personificação do
Outro. A forma de objetivação da natureza mais comum a essas sociedades é o
animismo. O animismo pode ser entendido aqui como um modo “onde as ‘categorias
elementares da vida social’ organizam as relações entre os humanos e as espécies
naturais, definindo assim uma continuidade de tipo sociomórfico entre natureza e
cultura, fundada na atribuição de ‘disposições humanas e características sociais aos
seres naturais’” (Ibidem, p. 361-362).
O mundo humano é transposto para o não-humano. Não há uma oposição entre
cultura e natureza, apesar de haver uma diferenciação, pois estas categorias são comuns
a ambos. O animismo indígena é antropomórfico e perspectivista, e ele perpassa as
relações que humanos e não-humanos mantem entre si.
A questão do corpo selvagem também parece de fundamental importância,
dada sua relação com demonstrações identitárias. Essa relação é expressa,
principalmente, nas dietas alimentares e na produção e estilização do corpo. É através
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dos corpos que a diferença é percebida, onde as diferentes perspectivas são construídas.
Esse corpo é mutável, pois acompanha mudanças espirituais, ele se metamorfoseia.
Nesse ponto Castro coloca que os corpos seriam como “roupas” e continua
[...] trata-se menos de o corpo ser uma roupa que de uma roupa ser
um corpo. Não esqueçamos que nessas sociedades inscrevem-se na
pele significados eficazes, e se utilizam máscaras animais (ou pelo
menos conhece-se seu principio) dotadas do poder de transformar
metafisicamente a identidade de seus portadores, quando usadas no
contexto ritual apropriado. Vestir uma roupa-máscara é menos ocultar
uma essência humana sob uma aparência animal que ativar os poderes
de um corpo outro (Ibidem, p. 393. Grifos do autor).
21
ecoam de forma direta na construção das memórias dos indígenas brasileiros, e é sobre
isso que trataremos a seguir.
4. Memória
Memória é um termo que está presente em diferentes áreas do conhecimento,
como a história, a sociologia, a psicologia, entre outros. Por isso é importante que seja
explicitada a conceituação desse termo. A visão de Ricoeur parece ser relevante. O
autor parte das concepções platônica e aristotélica para pensar o papel da imaginação na
formação da memória, colocando a lembrança como fundamental nessa constituição.
Segundo ele a memória é entendida como uma ferramenta de guardar dados
mnemônicos que podem ser acessados pelas lembranças, sendo então resignificados,
criando representações de coisas que já passaram. A memória se relaciona ao ato de
refletir, de repensar a realidade. E tem uma tríplice atribuição, ela faz referência ao
sujeito, ao próximo e aos outros (RICOEUR , 2008, p. 142). Ela pode ser individual ou
coletiva.
A memória tem uma pretensão de realidade e muitas vezes é tomada como a
própria noção de verdade. Essa, por sua vez, é supostamente apoiada e validada pela
presença de um observador. No entanto, a questão da confiabilidade da memória deve
ser levantada. A memória tem um compromisso de fidelidade com o passado. Essa
fidelidade a legitima, mas é ao mesmo tempo equivocada, já que a capacidade de
rememorar apresenta dificuldades intrínsecas. Pode-se pensar aqui nos mecanismos
usados para acessar a memória, como a imaginação ou os arquivos, que podem produzir
distorções. E, além disso, nos esquecimentos, sendo essa a deficiência mais
reconhecida.
Na tensão entre lembrança e esquecimento é constituída a memória. Ela
apresenta uma forte relação com a construção da identidade, que é pensada e repensada
a partir dessas memórias e das tradições, tanto de forma individual como coletiva. A
memória coletiva viria de uma interação entre a identidade pessoal e a identidade
comunitária (Ibidem, p. 92).
Algumas memórias artificiais podem ser criadas. Assim, Ricoeur trabalha com
o que chama de usos e abusos da memória (Ibidem, p. 82-105). Três abordagens podem
ser feitas a partir dos abusos da memória, sendo elas: “nível patológico-terapêutico: a
memória impedida”; “nível prático: a memória manipulada”; e “nível ético-político: a
memória obrigada” (Ibidem, p. 82).
22
No primeiro caso ele usa, principalmente, categorias clínicas da psicanálise
para mostrar que algumas relações podem deixar cicatrizes simbólicas que
impossibilitam a construção de uma memória, que se torna então impedida. No segundo
caso, a construção de memória seria mediada por interesses ideológicos, criando uma
memória instrumentalizada através dos esquecimentos e da manipulação. Por fim, a
memória obrigada se basearia no “dever de memória” (Ibidem, p. 82), no valor ético
desta. Neste caso ela se relaciona mais com o saber histórico, buscando uma maior
compreensão dos acontecimentos.
Nessa ótica, tentaremos mostrar a seguir que a(s) memória(s) indígena(s)
é(são) tanto impedida(s) quanto manipulada(s). Devido às cicatrizes simbólicas, essas
sociedades têm dificuldades em construir uma identidade consistente, e
consequentemente uma memória compartilhada. Assim encontramos diferentes
construções ou discursos construídos sobre a memória indígena brasileira que serão
apresentados a frente. Muitas vezes essas construções baseiam-se em ideologias, que
apesar de variaram no tempo, em geral, visam à exploração do índio ou de seus
territórios, sendo manipuladas devido a interesses de terceiros.
23
longo do tempo e ao papel das relações culturais em sua configuração, como, e talvez
mais importante no caso em questão,
24
Capítulo 2
CONSTRUÇÕES DA MEMÓRIA: DISCURSOS POSSÍVEIS
____________________________________________________________
25
No século XVI foram elaboradas várias representações sobre os indígenas
americanos, como abordado em estudos como “Bom selvagem e cão imundo”.
integrante da obra “A conquista do Prata: análise da crônica de Ulrich Schmidel”, de
Luis Guilherme Assis Kalil (2008), ou ainda no capítulo redigido por Luis Guilherme
Kalil e Luiz Estevam de Oliveira Fernandes em “Ciegos o engañados: narrativas sobre a
conquista espiritual do Norte da Nova Espanha (séculos XVII e XVIII)” (2014). Os
autores aí apresentam três construções diferentes sobre os indígenas americanos,
baseadas nos eixos de “ação demoníaca/Providência divina”, por sua vez contrapostas
ao da “agência humana/livre-arbítrio” (KALIL; FERNANDES, 2014, p. 233). Apesar
dessas visões terem sido desenvolvidas em relação a diferentes locais geográficos e
períodos históricos - no caso a região do Prata no século XVI e a Califórnia dos séculos
XVII e XVIII - , consideramos que elas possam ser aplicadas aos relatos de memória
produzidos no Brasil dos séculos XVI ao XVIII. Nesse período, eram construídas
narrativas e imagens baseadas em uma visão eurocêntrica, que seguiam um conjunto de
regras ou disposições, baseadas numa noção de moral e em uma “verdade factual
diferente da adotada nos séculos posteriores” (Ibidem, p. 234). Essas construções
serviam a propósitos diferentes e não eram exclusivas, podendo se alternar durante um
mesmo relato.
A primeira visão analisada é a do bom selvagem. Segundo Kalil, ao analisar a
obra de Schmidel5 é possível perceber
[...] que o autor seguiu uma espécie de ‘fórmula narrativa’ que
praticamente independia do contato com os nativos. Tal modelo se
manteve desde localidades em que o cronista permaneceu por diversos
anos até as que foram encontradas abandonadas pelas expedições.
Antes de escrever sobre os indígenas, Schmidl geralmente descrevia
rapidamente como foi o percurso até esse local e apontava o número
de léguas percorridas desde o último povoado. Após essas
informações geográficas, iniciava-se a descrição dos grupos seguindo
um padrão que, de forma geral, era mantido inclusive em sua ordem:
qual o número de habitantes; como foram recebidos pelos moradores
(pacífica, violentamente ou com o povoado abandonado); quais são
seus alimentos; como é seu físico (andam nus ou cobrem suas
vergonhas); quais são suas armas e adornos; e quanto tempo a
expedição permaneceu entre eles (KALIL, 2008, p. 70).
5
Ulrich Schmidl, também grafado como Schmidel e Schmidt foi um soldado viajante e cronista de
origem germânica. Permaneceu por cerca de dezessete anos no sul da América (1536 – 1553).
26
forma geral, os indígenas seriam um grupo homogêneo que possuiria algumas
diferenças externas. Para Schmidel, os indígenas seriam “seres ingênuos que oscilavam
entre dois opostos: ‘bons selvagens’ e ‘cães imundos’” (Ibidem, p. 73). Essas
construções variariam de acordo com a interação que o autor teria tido com os índios.
Caso eles tenham sido solícitos e prestativos, eram vistos como bons selvagens, caso se
negassem a fornecer alimentos, ou, apresentassem resistência, eram vistos como cães
imundos ou cães famintos, fazendo aqui referência aos rituais antropofágicos.
Esses diferentes discursos viriam de uma falta de conhecimento dos nativos
americanos. Eram vistos como “bons selvagens” quando se pensava na evangelização e
como “cães famintos” quando se tentava justificar a escravidão. Assim, a alteridade
humana seria, ao mesmo tempo, revelada e recusada (Ibidem, p. 74-75). Em ambos os
discurso os indígenas eram colocados como seres inferiores e eram constantemente
contrapostos a “heróis” europeus. Havia então uma “projeção de conceitos europeus
sobre os habitantes do novo continente” (Ibidem, p. 76), como pode ser percebido, por
exemplo, em relação ao diferente valor dado ao ouro, que para os indígenas tinha um
valor cerimonial enquanto para os europeus possuía um valor econômico e essa
diferença era vista como sinal da inferioridade – não se a aceitava a “espantosa”
incompreensão por parte dos indígenas do valor do ouro como mercadoria.
Tais representações, por sua vez, estariam relacionadas às possibilidades de
conversão dos nativos. Através da busca de humanidade nos indígenas tenta-se justificar
a conversão ou a “guerra justa” e escravização. Daí a alternância dos relatos entre a
humanidade e a bestialidade dos índios, a qual pode ser bem percebida na abordagem do
canibalismo. As narrativas sobre antropofagia podiam ser empregadas para justificar a
escravização ou a tomada de terras, como a apresentarem como rituais que
demostrariam uma crença em algo, o que poderia mais facilmente ser convertido na
crença cristã.
A segunda visão que deve ser explorada é a que se baseia nos eixos de Ação
demoníaca/Providência divina em contraposição à Agência humana/ao livre-arbítrio. Os
autores Kalil e Fernandes identificam três visões que são comuns aos escritos desse
período, sendo elas: sem livre-arbítrio e sob a influência de forças demoníacas; sem
livre-arbítrio e sob a influência da Providência divina; e como agentes humanos
responsáveis por suas ações (KALIL; FERNANDES, 2014, p. 236 -244). Tais visões
associam-se à atuação dos religiosos na colonização dos novos territórios. Aprendendo
as línguas, eles “tiveram papel ativo na ocupação e pacificação dos índios” (Ibidem, p.
27
236). Assim, Kalil e Fernandes buscam compreender então, “outros elementos que
também integram os relatos missionários, como a ênfase maior ou menor dada à
capacidade humana, à vontade do indivíduo, ao livre-arbítrio nos registros sobre a
alteridade indígena e o cotidiano missionário” (Ibidem, p. 236). Tal análise, portanto,
requer a compreensão dos sentidos históricos dos conceitos de livre-arbítrio, agência,
liberdade e vontade. Citando os autores,
28
Na segunda perspectiva os índios, são vistos “como essencialmente bons e
pueris, obedientes, calmos e cordatos, felizes com a presença dos missionários e
propensos à (quando não desejosos da) conversão” (Ibidem, p. 240). Aqui, o livre-
arbítrio também não é levado em consideração, mas o realce é dado à Providência
divina. Os índios não demostrariam nenhum sinal de idolatraria e mesmo quando eles
reagiam continuavam sendo vistos como bons, pois apenas se revoltavam contra a ação
dos estrangeiros.
A conversão, como foi dito acima, era vista como uma propensão. Os maus
comportamentos viriam da falta de conhecimento da graça divina. A falta de qualquer
religião era vista como uma forma de bondade e de ausência do demônio. E também
como um sinal de que os índios estariam abertos à conversão. No entanto, quando eram
encontrados traços de uma crença, esses também poderiam ser vistos como elementos a
serem moldados, facilitando também esse processo.
E, por fim, a visão dos bárbaros conscientes. Essa é a única visão que não os
coloca como influenciados por forças externas. Eles eram normalmente vistos como
maus, mas com autonomia em suas ações, exercendo a agência humana e o livre-
arbítrio. As revoltas eram tramadas quando se sentiam prejudicados, e elas se davam
através de ações premeditas e definidas. Aqui há uma diferenciação com relação às
visões apresentadas anteriormente por Kalil, de bom selvagem/cão imundo. Nas
análises anteriores o eixo agência humana/livre-arbítrio é desconsiderado, dando-se
ênfase ao da ação demoníaca/ Providência divina. Dessa maneira, os índios podiam ser
bem ou mal intencionados.
29
apresentariam nenhuma crença (CUNHA, 1990, p. 92). Elas teriam o propósito de
convencer os Reis Católicos da facilidade de dominação destes territórios que eram tão
ricamente providos (GERBI apud CUNHA, 1990).
Os indígenas brasileiros6 desse período são vistos a partir das construções de
Caminha e Vespucci. Eles iniciam
6
Cunha (1990, p. 91), ressalta que ao falar dos indígenas brasileiros, faz-se referencia aos Tupis e por
extensão ao Guaranis, estes sendo contrapostos aos Aimoré, Ouetaca e Tapuia, acusados de barbárie.
30
No século XIX, com o Romantismo, a historiografia do IHGB e as propostas
de ensino do Colégio Pedro II, algumas visões sobre o indígena foram começando a ser
consolidadas. Elas partiram das concepções anteriores e adaptaram-se aos interesses do
período, no caso a consolidação da identidade brasileira, sendo esse um período de forte
nacionalismo. O índio continua sendo visto de forma genérica, de forma unívoca. Sua
representação é considerada como tripartida: o índio construído pela literatura,
idealizado e romanceado; os índios do século XIX; e, também, os bárbaros selvagens,
não afeitos ao trabalho, bêbados e degradados quando incorporados à vida na cidade. Na
literatura, vê-se a criação do estereotipo do indígena heróico, mas portando virtudes
tipicamente europeias. Representava-se o índio como parte do passado, sinalizando para
seu desaparecimento. No entanto, com relação aos índios contemporâneos, continua-se
a percepção de que seriam povos bárbaros. Eles passam a ser vistos como um empecilho
ao progresso e a evolução, e, sendo seres menos desenvolvidos, deveriam ficar sob a
tutela do Estado. Essas visões do índio, que deve ser combatido ou assimilado, seguiram
até o final do século XX (PALHARES, 2014, p. 373).
Apenas nas décadas de 1970 e 1980 inicia-se uma revisão historiográfica sobre
a questão indígena, impulsionada pelo alargamento do conceito de fonte e também pela
aproximação da História a outras áreas das Ciências Sociais. A história seria usada
agora para ser a voz dos que foram silenciados, entendendo-se que teria havido um
genocídio dos indígenas. No entanto, essa percepção, apesar de denunciar os abusos
sofridos, continuava colocando o índio no passado, não reconhecendo a continuidade de
sua história. Também nesse período começa-se a desenvolver uma crítica à ideia
unívoca do índio, pensando-se agora em “povos” e “culturas” indígenas. Começa-se a
pensar em múltiplas identidades étnicas que se identificam e unificam apenas na luta
pela positivação e reconhecimento de sua multiplicidade.
Apesar dos avanços na historiografia, é possível perceber que algumas “ideias
equivocadas” (FREIRE apud PALHARES, 2014, p. 381) em relação aos indígenas
foram perpetuadas ao longo do tempo. Palhares ressalta seis delas (2014, p. 381). São
elas: a do índio genérico, único; a dos índios como seres com culturas atrasadas; a de
que as culturas indígenas seriam culturas congeladas no passado, culturas estáticas; a
dos índios como seres que só existem no passado e assim há a negação do direito à
31
história a esses povos; a de que o brasileiro seria um não índio; e por fim, a do índio
como o bom selvagem contemporâneo7.
Essas ideias são muitas vezes perpetuadas através dos livros didáticos. Isso é
perceptível quando analisamos os temas aos quais os índios estão relacionados nessas
publicações. O trabalho de Gobbi é relevante aqui. Ela faz uma análise das coleções de
livros didáticos recomendados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) para
o Ensino Fundamental nos anos de 1999, 2002 e 2005 (GOBBI, 2007). Apesar dos
livros analisados se aterem a um pequeno recorte temporal, muitos aspectos apontados
podem ser remetidos a períodos anteriores.
O primeiro tema abordado pela autora foi o de “Primitivismo e
Evolucionismo”. Na maioria das coleções estudadas foi possível perceber a associação
entre “povos indígenas” e “primitivos”. Essa associação ocorre, em geral, de forma
depreciativa e está ligada a uma concepção evolucionista da História. Aqui pensa-se a
História em etapas de desenvolvimento. Assim, os indígenas eram abordados a partir de
sua relação com os portugueses, indicando-se implicitamente uma relação de
superioridade de uma cultura sobre a outra, possibilitada por essa concepção de
História. Essa superioridade é explicada em alguns livros como relativa às habilidades
de escrita e agricultura, destacando-se o que o índio “não tem” em relação ao europeu
(Ibidem, p.58).
Os povos indígenas também apareceram associados à “Pré-História”, o que
gera uma confusão, pois ao partir de uma visão etnocêntrica, cria-se uma ideia de
congelamento de algumas culturas em determinados períodos, ou seja, os índios
passariam a existir a partir do contato com o europeu. A História em etapas também é
importante para essa ideia de congelamento, já que se todas as civilizações passam pelos
mesmos estágios, para uma estar atrasada em relação à outra, ela teria que ter se
consolidado posteriormente. A visão etnocêntrica também esta presente na utilização do
termo “descobrimento”, que se coloca como um julgamento a historicidade do povo da
América. Há também referências ao passado que se fazem muitas vezes sem
contextualização. Assim é criada uma percepção de que os índios são parte do passado,
que estariam em extinção.
É importante ressaltar que apenas no governo Lula, com a promulgação da Lei
10.639/03, modificada pela Lei 11.645/088, o estudo da história da cultura afro-
7
Com relação a esta ultima construção, será feita uma reflexão mais à frente, já que ela pode ser
percebida inclusive nos discursos indígenas, o que levanta algumas questões.
32
brasileira e dos povos indígenas tornou-se obrigatório, tanto para escolas indígenas
quanto para as não-indígenas, sendo este um fato que deve ser atendido respeitando-se
as especificidades. No entanto, como já foi demonstrado, essa memória é manipulada. E
o fato dessas leis só terem sido promulgadas a partir do ano de 2003, confirma o
silênciamento e impedimento das memórias indígenas.
8
A Lei 10.639/03, de 9 de janeiro de 2003, altera a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que apesar
de explicitar a necessidade se abordar a incidência das culturas indígenas e afro-descendentes no estudo
da História do Brasil, ainda não trás a obrigatoriedade.
9
Awê iõ txonang – Festa das Águas – Um filme de Isaque Pataxó. Direção: Isaque Pataxó. 2006-2011.
Filme produzido com o apoio da Faculdade de Educação/UFMG , da Biblioteca Universitária/UFMG, da
Fundação Nacional do Índio, e da Secretaria de estado da Educação de Minas Gerais.
10
Essa reserva é constituída por três aldeias de etnia Pataxó. A aldeia Guarani ou sede; a aldeia Imbiriçu;
e a aldeia Encontro das Águas. Apesar de serem aldeamentos distintos, mantêm relações muito próximas,
apresentando uma unidade cultural e identitária de tradição Pataxó.
11
Voltaremos a falar sobre esse curso no capítulo três, onde ele será melhor explicado e outras iniciativas
serão apresentadas.
33
passado. Assim, o ritual é uma representação inferior de um evento, trazido através da
memória.
O filme “Awê iõ txonang – Festa das Águas – Um filme de Isaque Pataxó”,
fala sobre o ritual das aguas chamado de “O tempo da Chuva”. Essa festa ocorre sempre
no dia 5 de outubro, quando começa o período da chuva, que para eles simboliza a
fartura e a harmonia. O ritual é constituído de um tempo de preparação, que se inicia em
agosto, onde eles renovam o Kijeme12, preparam as tintas que serão usadas nas pinturas,
preparam o cawin13, se preparam para as competições que ocorrerão durante as
comemorações, se reúnem em torno de fogueiras, cantando e fumando Tibério14. O dia
da festa inicia-se com um ritual que busca, através de cantos em agradecimento aos
espíritos, força e agilidade para os jogos. Após os jogos, banham-se nas águas do rio e
seguem para o cozinhado. Eles comem moqueca de peixe e farinha, e pirão, e tomam o
cawin. Depois passam para os batizados e casamentos. O ritual é finalizado com o
banho de lama.
Na festa em questão a relação com o tempo mítico é bem perceptível. Na
mitologia Pataxó, os índios dessa etnia teriam vindo da água. Em um belo dia de céu
azul, uma grande nuvem se formou. O último pingo dessa chuva a cair na terra se
transformou no índio Txopai. Ele era forte, corajoso e sábio. Ele andou pela terra se
encantando com suas belezas. Mas ele começou a se sentir solitário e por isso realizou
um ritual para que os outros índios nascessem. Assim, começou uma nova chuva e cada
pingo que caia na terra se transformava em um novo índio. Txopai então passou sua
sabedoria para esses índios e partiu para o itohã, uma espécie de céu, para proteger seu
povo15. Essa chuva foi enviada por Niamisû, o espirito da chuva, que é considerado
protetor do povo e da natureza.
12
A palavra Kijeme pode ser traduzida como uma construção típica Pataxó. No caso em questão, essa casa
é uma pequena construção feita atrás do rio em que os índios se banham. Ela é destinada à preparação das
mulheres para o ritual. No filme, ela não é mostrada, mas pode-se perceber que as mulheres estão
afastadas do resto do grupo, esperando o momento em que o cacique as chamará. Antes de serem
chamadas, elas terminam as pinturas e a ornamentação nesse Kijeme. Esse processo também faz parte do
ritual.
13
Cawin é uma bebida típica. Ela é feita a partir da fermentação da mandioca. Seu uso é mais ritualístico.
14
O Tibério é um tipo de fumo feito de diversas ervas. Seu uso é ritualístico. Diferente dos yawalapíti
estudados por Castro (2007), seu uso não se restringe aos homens adultos. Homens e mulheres de
diferentes idades fumam o Tibério nesses momentos. Ele é percebido como um facilitador do contato com
os espíritos ou antepassados.
15
Esses dados vieram da cartilha “Niatum miãga hãmãgui – filhos das águas e da mata”. Essa cartilha
foi produzida pelo povo Pataxó de Minas Gerais, com o apoio do Ministério do Meio Ambiente, da
FUNASA, do IEF – regional do Rio Doce, da PUC Minas, do CIPAC e da FUNAI. A cartilha fala sobre a
relação dos Pataxó com a natureza tentando criar uma conscientização sobre a importância de sua
preservação.
34
A “Festa das Águas” é como um ritual que acontece desde o tempo dos
antepassados. A temática da água faz referencia ao tempo de sua criação. Ela se faz
presente no uso do “pau de chuva” e do banho, ao final do ritual, que representa uma
purificação do corpo e a recepção destes espíritos. A água também é importante nos
batizados também simbolizando essa recepção dos espíritos protetores. O espirito do Pai
da Mata, principal protetor dos Pataxó, é evocado. Ele aparece antes dos batismos,
participando destes. Ele é o espirito principal para os Pataxó, sendo considerado como
um símbolo da continuação da cultura Pataxó antiga, e por tanto um símbolo
importantíssimo na construção da identidade e na configuração da memória.
A questão do corpo é muito abordada no filme. No caso dos Pataxó, porém, ela
esta mais ligada às pinturas do que as restrições alimentares. As pinturas têm
significados diversos e são utilizadas por índios de todas as idades. Elas são vistas como
uma forma de identificação com os antepassados, mostrando-se como uma
representação memorial de tempos idos ao mesmo tempo que refletem sentimentos,
sendo uma forma de expressão. Isso é representado na primeira fala do filme em
questão:
A festa das águas ela é em outubro porque, dia 5 de outubro, porque o
outubro é a época que começa as... é a época da chuva, da fartura,
onde as plantas ficam mais verdes, os pássaros, enfim... Tudo se torna,
fica em harmonia. É... 5 de outubro acontece a festa das águas, muito
importante para os Pataxós. Os Pataxós, nós viemos da água, por isso
a importância do banho nesse 5 de outubro. É, nós usamos pintura
específicas para esse dia, as mulheres usam uma pintura e os homens
usam outra pintura. A do rosto da mulher, que é esse aqui, significa o
rio, as águas indo, levando embora coisas ruins e trazendo coisas boas.
A gente pinta em cima do olho pra gente ter mais uma visão longe das
coisas, ver além do que os nossos olhos veem. A da barriga, que é essa
daqui, é porque nós mulheres Pataxós ficamos encarregadas, Niamisû
deu pra nós, é... A importância da gente tá multiplicando os Pataxós,
pra gente nunca deixar a nação Pataxó morrer. E essa aqui é o
casamento, os homens usam no casamento, então é a união das
famílias. O homem com a mulher (Trecho transcrito do filme Awê iõ
txonang).
35
restando apenas alguns vocábulos que não chegam a constituir uma língua de fato. E na
questão da alimentação no caso Pataxó, devido a restrições territoriais, também teve que
ser alterada, assemelhando-se mais a dos não-índios.
O filme apresenta-se como um enunciado de memória, que busca a
consolidação de uma identidade, sendo mais que uma construção historiográfica. Há
uma preocupação maior em mostrar a perspectiva indígena do que em montar um
documento histórico. Isso fica claro pela ausência de falas e predomínio do canto. E
reafirma a percepção de uma diferente relação entre memória, identidade e história, cujo
caráter interrelacional e dinâmico foi tão bem traduzido por esta narrativa fílmica.
Como vimos, as memórias indígenas foram elaboradas de forma fragmentada.
Em paralelo, os índios constroem sua memória com base na cosmologia, relacionando-
se com os mitos de seus antepassados e com suas relações com a natureza. A memória
oficial continua apoiando-se em imagens que começaram a ser construídas no século
XVI. Naquela época, ela servia aos propósitos de catequese e exploração. Atualmente,
eles continuam seguindo os interesses da cultura predominante, reforçando as relações
de poder. Deslegitimando a memória indígena, deslegitimam-se suas lutas por direitos.
No entanto, novas iniciativas vêm surgindo, abrindo a possibilidade da consolidação de
uma memória compartilhada. Como veremos, elas se baseiam em políticas
interculturais, no diálogo entre culturas, que busca a cura das cicatrizes simbólicas
provenientes dos séculos de exploração.
36
Capítulo 3
EM BUSCA DE UMA MEMÓRIA COMPARTILHADA
____________________________________________________________
37
Alguns desafios devem ser transpostos para que uma educação intercultural
seja possibilitada. Primeiramente, é necessário que haja uma ênfase nos processos de
construção das identidades culturais através das memórias. Essas devem ser contadas e
narradas nos contextos educacionais, reforçando a ideia da dinamicidade das culturas e
das identidades e buscando o diálogo entre diferentes saberes, conhecimentos e práticas
(Ibidem, p. 53-54). É necessário também pensar na interação com o “outro”. Não apenas
em situações pontuais, mas em dinâmicas sistemáticas, que busquem uma construção
conjunta do conhecimento através de diferentes dimensões dos processos educativos. E
por fim, é necessário o “empoderamento” dos diferentes atores sociais, para que sejam
reconhecidos seus papéis ativos na constituição da sociedade civil. Nas palavras de
Candau,
A perspectiva intercultural que defendo quer promover uma educação
para o reconhecimento do “outro”, para o diálogo entre os diferentes
grupos sociais e culturais. Uma educação para a negociação cultural,
que enfrenta os conflitos provocados pela assimetria de poder entre os
diferentes grupos socioculturais nas nossas sociedades e é capaz de
favorecer a construção de um projeto comum, pelo qual as diferenças
sejam dialeticamente integradas. A perspectiva intercultural está
orientada à construção de uma sociedade democrática, plural, humana,
que articule políticas de igualdade com políticas de identidade
(Ibidem, p. 52).
38
memórias gostaríamos de construir. Como já foi demostrado, os livros didáticos que
vêm sendo utilizados nas escolas ainda se apoiam numa visão hierarquizada da
sociedade. No entanto, através de algumas iniciativas interculturais novos materiais vêm
surgindo, como apresentaremos a seguir. A questão que fica é a forma como eles serão
apropriados pelos docentes.
1.1. FIEI
A primeira iniciativa que achamos importante ressaltar é o Curso de Formação
Intercultural de Educadores Indígenas. Esse curso existe desde 1995. Ele foi criado
através de diálogos entre índios das etnias pataxó, xacriabá, maxakali e krenac, a
UFMG, o Instituto Estadual de Florestas (IEF) e a Administração Regional de
Governador Valadares da Fundação Nacional do índio (FUNAI).16 A primeira turma se
formou em 1999 e desde então o número de alunos vem aumentando. Seu objetivo é
habilitar professores indígenas, através de uma educação intercultural, para ensinarem
em escolas de Ensino Médio e Fundamental17.
Essa iniciativa destaca-se pela grande produção de materiais didáticos, além da
tentativa de “empoderamento” das sociedades indígenas envolvidas. O diálogo é
incentivado, não só entre índios e não-índios, mas também entre índios de diferentes
etnias, reforçando a ideia da diversidade dentro das culturas indígenas. Busca-se
também o diálogo entre diferentes saberes, conhecimentos e práticas, pensando-se em
novos métodos educacionais.
Ao longo do curso os alunos devem desenvolver trabalhos que deverão ser
aplicados nas aldeias em que trabalham. Esses trabalhos são apresentados, por vezes,
nas áreas comuns da faculdade, sendo abertos à comunidade acadêmica e aos
interessados. No entanto, apesar da abertura ao diálogo, as ações são mais voltadas às
comunidades indígenas, acarretando que o curso tenha uma representatividade ainda
limitada na construção de uma memória compartilhada entre índios e não-índios, sendo
mais importante na consolidação das identidades étnicas. Já a produção didática pode
ser fundamental nesse aspecto, já que ao ser construída em parcerias horizontais, pode
16
Órgão criado em 1967, vinculado ao Ministério da Justiça. Tem como objetivos previstos em lei a
demarcação das terras indígenas, além da assistência a saúde e a educação dos índios.
17
Informações tiradas do Projeto Pedagógico do curso. Disponível em: <
https://www2.ufmg.br/prograd/prograd/Pro-Reitoria-de-Graduacao/Cursos/Humanas/Educacao-Basica-
Indigena-Formacao-Intercultural-de-Professor-FIEI>.
39
ser utilizada como espaço de memória, mediante uma apropriação pelos professores
não-indígenas.
18
Disponível em: <http://www.thydewa.org/thydewa/>. Acesso em: 12 fev. 2016.
19
Disponível em: <http://www.indioeduca.org/?p=69>. Acesso em: 12 fev. 2016.
40
Por fim, achamos interessante abordar a ideia de “novo bom selvagem” que
vem sendo difundida com relação aos indígenas brasileiros. Palhares a coloca como
uma ideia equivocada que viria de uma suavização de antigas concepções, mas que
atribuiria ao indígena “um lugar moral – pois vivem em harmonia com a natureza e
delas tiram apenas o que precisam para sobreviver – e, ao mesmo tempo
preservacionista – pois não destroem as matas” (PALHARES, 2011, p.1772). Nessa
perspectiva, os índios continuariam a ser entendidos como uma única etnia e como
presos à floresta. O autor usa a concepção de Norbert Elias, que amplia a questão do
conflito pelo poder e as tensões entre sociedades no interior do Estado e pensa em uma
fossilização do habitus em reservas indígenas, como uma forma de evitar a
modernidade e se apegar as tradições (Ibidem, p.1771).
Essa construção do novo bom selvagem aparece como uma constante nos
materiais de produção indígena analisados, como demostrado pelas citações a seguir:
41
Mas a despeito da importância das críticas apresentadas por Palhares à releitura
contemporânea da noção do “bom selvagem”, pode-se aqui lançar uma questão
provocativa. Será que a atual apropriação dessa noção pelos indígenas não pode ser
entendida como uma tática de afirmação identitária, de forma a propiciar-lhes um
diferencial cultural perante o não-índio? Será que não podemos pensar que os grupos
indígenas vêm reconfigurando uma memória manipulada a seu respeito, em prol de um
fortalecimento simbólico, em uma busca da sobrevivência cultural? Não será essa a
memória compartilhada que buscamos?
Cunha ressalta que em situações de intenso contato, a cultura original assume
uma outra função, se tornando uma cultura de contraste. Isso, ao invés de significar uma
perda de cultura, causa uma acentuação dessas, que ao se simplificarem, diminuindo os
traços que se tornam diacríticos, se enrijecem, buscando uma maior visibilidade
(CUNHA, 1986, p.99). Ela continua dizendo que os traços culturais que buscam a
garantia da distinção de determinado grupo dependem “dos outros grupos em presença e
da sociedade em que se acham inseridos, já que os sinais diacríticos devem poder se
opor, por definição, a outros do mesmo tipo” (CUNHA, 1986, p.100). Assim, podemos
pensar nessa apropriação da memória do bom selvagem como uma forma de
diferenciação e oposição. Diante dos abusos e descasos das sociedades modernas com
relação à natureza, ao se colocarem como “guardiões” ou “protetores” desta, os
indígenas se afirmam na diferença, se consolidando como um grupo diverso. Ao mesmo
tempo em que se unem e fortificam em suas lutas políticas e justificam suas
reinvindicações por territórios, afirmando sua maior pertença e cuidado com estes.
Apesar da compreensão dos receios de manipulação identitária envolvidos
nessa construção, acreditamos que os indígenas têm se apoiado nessa ideia como forma
de afirmação da alteridade étnico-cultural. Essa afirmação, apesar de comportar o risco
de evocar novamente uma concepção unívoca do índio no tempo contemporâneo,
também traz uma possibilidade de afirmação frente ao “outro”. Apesar das culturas
indígenas serem diversas, elas enfrentam problemas comuns, o que acreditamos levar a
uma aproximação dos povos pelo menos nas lutas por direitos. Assim, a ideia do “novo
bom selvagem” seria uma tática simbólica a lhes prover reconhecimento político, mas
sem necessariamente generalizar uma representação monolítica e idealizada dos
indígenas, já que estas continuam tendo suas especificidades, como já foi demonstrado
pelas diferentes concepções cosmológicas. Assim, acreditando na importância dos
diálogos interculturais, não seria esse um ponto inicial para a construção de uma
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memória compartilhada, já que, apesar de partir de uma concepção eurocêntrica, essa se
tornou uma forma de afirmação identitária e de resistência?
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CONCLUSÃO
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memórias. Ela seria um reflexo da dificuldade de afirmação destes perante o “outro”,
devido a uma apropriação manipulada da memória que esta mais baseada nas relações
de poder do que nas características identitárias.
No segundo capitulo, mostramos algumas construções narrativas construídas
acerca do indígena, tentando mostrar que a memória pode se apoiar tanto nas
identidades, quanto nas relações de poder. No primeiro caso apresentado, busca-se a
manutenção dos meios de exploração e opressão mantidos pelos interesses da cultura
preponderante. Já no segundo busca-se a construção de uma identidade étnica, baseada
na cosmologia. Entre ambos, são promovidas inúmeras formas de apropriação,
bricolagens e ressignificações.
No ultimo capítulo, pensa-se como essa construção compartilhada da memória
pode e vem sendo desenvolvida em projetos interculturais voltados para a educação.
Tenta-se mostrar que essas iniciativas, apesar de criarem espaços para a promoção das
diferenças, como nas políticas multiculturais diferencialistas, esses espaços são
pensados através do diálogo e de uma construção conjunta. Essas políticas visam, não
só a afirmação frente ao outro, mas a compreensão e aceitação pelo outro.
Assim, acreditamos que há a possibilidade de construção de uma memória
indígena compartilhada, que abarque a dinamicidade das culturas, e a diversidade de
identidades. Essa teria a finalidade de “empoderar” os índios, abrindo espaços de
diálogo, permitindo uma maior inserção nos espaços públicos e políticos e legitimando
suas lutas. Essa memória depende, em grande medida, da apropriação de novos
materiais e métodos pelos docentes, criando assim uma escola mais democrática e
participativa.
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Referências documentais
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Pataxó. 2006-2011. Filme produzido com o apoio da Faculdade de Educação/UFMG ,
da Biblioteca Universitária/UFMG, da Fundação Nacional do Índio, e da Secretaria de
estado da Educação de Minas Gerais.
Niatum miãga hãmãgui – filhos das águas e da mata. Cartilha produzida pelo povo
Pataxó de Minas Gerais, com o apoio do Ministério do Meio Ambiente, da FUNASA,
do IEF – regional do Rio Doce, da PUC Minas, do CIPAC e da FUNAI.
Pataxó, Lucidalva. Ãgohó Lua Pataxó. 1ª ed. Belo Horizonte: Faculdade de Letras,
2011.
Site da Organização não-governamental Thidéwá. Disponível em:
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Site do projeto Índio Educa. Disponível em: <http://www.indioeduca.org/?p=69>.
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https://www2.ufmg.br/prograd/prograd/Pro-Reitoria-
deGraduacao/Cursos/Humanas/Educacao-Basica-Indigena-Formacao-Intercultural-de-
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conciliação. Resumo apresentado no 6º Seminário Brasileiro de história da
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