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Sociabilidades

Urbanas

Revista de Antropologia e Sociologia

Publicação do Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das


Emoções
Universidade Federal da Paraíba (Campus I – João Pessoa)

Ano I
Número 3
Novembro de 2017

ISSN 2526-4702
2

Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia


GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Universidade Federal da Paraíba

Publicação Quadrimestral do GREM/UFPB


n° 3 – Novembro de 2017 – Ano I
ISSN 2526-4702

Conselho Editorial
Cláudia Turra Magni (UFPEL); Cornelia Eckert (UFRGS); Gabriel D. Noel (Argentina
- UNSAM); João Martinho Braga de Mendonça (UFPB); Jussara Freire (UFF); Lisabete
Coradini (UFRN); Luís Roberto Cardoso de Oliveira (UNB); Luiz Antonio Machado da
Silva (UERJ); Luiz Gustavo P. S. Correia (UFS); Maria Cláudia Pereira Coelho
(UERJ); Maria Cristina Rocha Barreto (UERN); Pedro Lisdero (Argentina -
CONICET); Roberta Bivar Carneiro Campos (UFPE); Rogério de Souza Medeiros
(UFPB); Simone Magalhães Brito (UFPB).

EDITORES
Raoni Borges Barbosa (UFPB/GREM)
Mauro Guilherme Pinheiro Koury (UFPB/GREM)

Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia v1 n3 novembro de 2017 ISSN 2526-4702


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Expediente
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/
Sociabilidades Urbanas ISSN 2526-4702
Editores: Raoni Borges Barbosa e Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia é uma revista


acadêmica do GREM - Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções.
Tem por objetivo debater as questões de formação do self e de culturas emotivas nas
sociabilidades urbanas contemporâneas na perspectiva teórico-metodológica das
Ciências Sociais, sobretudo a antropologia e a sociologia.

The Urban Sociabilities - Journal of Anthropology and Sociology is an academic


journal of GREM - Research Group on Anthropology and Sociology of Emotions. It
aims to discuss the issues of self and emotive cultures formation in contemporary urban
sociabilities in the theoretical-methodological perspective of Social Sciences,
especifically with de anthropology and sociology.

Secretaria Sociabilidades Urbanas.


E-Mail: socurbsgrem@gmail.com

O GREM é um Grupo de Pesquisa vinculado ao Departamento de Ciências Sociais da


Universidade Federal da Paraíba.

GREM is a Research Group at Department of Social Science, Federal University of


Paraíba, Brazil.

Endereço / Address:
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia
[Aos cuidados de Raoni Borges Barbosa]
GREM - Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções
Departamento de Ciências Sociais/CCHLA/UFPB CCHLA / UFPB – Bloco V –
Campus I – Cidade Universitária CEP 58 051-970 · João Pessoa · PB · Brasil
Ou, preferencialmente, através do e-mail: sociabilidadesurbanas@cchla.ufpb.br
Or, preferentially, by e-mail: sociabilidadesurbanas@cchla.ufpb.br

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ISSN 2526-4702

Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia / GREM


– Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções /
Departamento de Ciências Sociais /CCHLA/ Universidade Federal da
Paraíba – v. 1, n. 3, Novembro de 2017.

João Pessoa – GREM, 2017. (v.1, n.1 – Março/Junho de 2017) - Revista


Quadrimestral ISSN 2526-4702

Antropologia – 2. Sociologia – 3. Antropologia Urbana – 4. Sociologia


Urbana – Periódicos – I. GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia e
Sociologia das Emoções. Universidade Federal da Paraíba

BC-UFPB
CDU 301
CDU 572

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Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia é uma revista


acadêmica do GREM - Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções.
Tem por objetivo debater as questões de formação do self e de culturas emotivas nas
sociabilidades urbanas contemporâneas na perspectiva teórico-metodológica das
Ciências Sociais, sobretudo a antropologia e a sociologia.
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia se propõe o
esforço de construção de uma rede acadêmica de discussão e reflexão sobre o urbano
contemporâneo, em especial o brasileiro, de uma perspectiva interacionista e
figuracional da antropologia e sociologia, de modo a enfatizar o exercício de análise da
cidade enquanto comunidade paradoxal e espaço societal de intenso conflito entre
cultura objetiva e subjetiva na qual emerge a individualidade moderna.
O fazer antropológico e sociológico se direciona, nesta proposta teórico-
metodológica, para o esforço de observação e análise da formação da cultura emotiva,
dos códigos de moralidade e do self de atores sociais situados como agências criativas e
produtoras de um espaço interacional e intersubjetivo urbano específico.
Problematiza, portanto, a dimensão processual da construção e desconstrução
das cadeias de interdependência que se manifestam socialmente enquanto objetificação
de conteúdos subjetivos trocados pelos atores sociais.
As consequências desta exigência teórico-metodológica podem ser percebidas na
preocupação, quando do fazer etnográfico e da observação micro-orientada das formas e
conteúdos sociais, do registro das tensões e dos vínculos de solidariedade e conflito
entre os interactantes no formato de encontros, pertença, confiança, traição, medos,
angústias, vergonhas, ressentimentos, humilhações, sofrimento, e ainda todo um
conjunto extenso de emoções e gramáticas morais que perfazem as práticas e o
imaginário cotidiano e ordinário dos atores sociais na cidade.
Estas emoções revelam, entre outros, as disputas morais e os códigos de
moralidade em jogo nos sistemas de posição que organizam as fronteiras e hierarquias
simbólicas e materiais entre as unidades interacionais sob análise.
A agenda teórico-metodológica e os interesses temáticos abrigados na proposta
de publicação da Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia vem
sendo amadurecidos em uma rotina de pesquisa de quase quatro três décadas
desenvolvida no GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das
Emoções, cujas linhas de pesquisa, atualmente, são as seguintes: Emoções e Consumo;
Emoções e Sociabilidades Urbanas; Emoções, Moralidade e Gênero; Estudos Teóricos
em Antropologia e Sociologia das Emoções.
Nas palavras de Koury (A Antropologia e a sociologia das emoções no Brasil:
breve relato histórico do processo de consolidação de uma área temática. Trabalho
apresentado no II Simpósio Interdisicplinar de Ciências Sociais e Humanas da UERN,
2014.), fundador e coordenador do GREM:
“O GREM tem por objetivo a compreensão e análise da emergência da
individualidade e do individualismo no Brasil urbano contemporâneo. Enfatiza a
questão da formação das emoções, enquanto cultura emotiva, e desenvolve estudos e
pesquisas sobre o processo de formação e experiência sobre emoções específicas em
sociabilidades dadas. Assim, o processo de luto e da morte e do morrer; dos medos; das
formas de sociabilidades e das etiquetas sociais que envolvem as relações de amizade;
dos processos de ressentimento e humilhação; e das formas de estabelecimentos de
laços de confiança e desconfiança entre as camadas médias e periféricas no urbano
brasileiro, faz parte do núcleo de interesse do GREM. As pesquisas desenvolvidas e em
desenvolvimento no GREM se debruçam sobre as imagens e suas representações na

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conformação do homem comum urbano brasileiro. Debruça-se, também, sobre as


redundâncias, as ambivalências e as ambiguidades do ato executado ou expresso, sobre
os silêncios, sobre os discursos e narrativas fragmentados, sobre os gestos e tique que,
invariavelmente, acompanham um diálogo ou uma informação e, às vezes, ampliam,
modificam ou contextuam para além das frases ditas e dos sentidos do quer expressar.
Tratam, enfim, da cultura emotiva e as redes morais que se formam nela e através dela”.
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia parte também da
experiência acumulada nos quinze anos de publicação sobre emoções da RBSE –
Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, fundada e editada por Mauro Koury e
sediada no GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia das Emoções.
Neste ínterim, Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologias
se situa em uma tradição acadêmica de pesquisas e reflexões em antropologia e
sociologia sobre o indivíduo, o social e a cultura da perspectiva das emoções, de modo a
enfatizar esta proposta no campo das sociabilidades urbanas.

EDITORES
Raoni Borges Barbosa (UFPB/GREM)
Mauro Guilherme Pinheiro Koury (UFPB/GREM)

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NORMAS PARA OS AUTORES

1. A Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia, ISSN 2526-4702,


é uma publicação quadrimestral do GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia e
Sociologia das Emoções, com lançamentos nos meses de março, julho e novembro de
cada ano.
2. A Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia tem por editores:
Raoni Borges Barbosa e Mauro Guilherme Pinheiro Koury.
3. A Sociabilidades Urbanas pode ser lida inteiramente, de forma gratuita, no site
http://www.cchla.ufpb.br/grem/sociabilidadesurbanas/.
4. Todos os artigos apresentados aos editores da Sociabilidades Urbanas serão
submetidos à pareceristas anônimos conceituados para que emitam sua avaliação.
5. A revista aceitará somente trabalhos inéditos sob a forma de artigos, entrevistas,
traduções, resenhas e comentários de livros. Exceto nos casos de dossiês e autores
convidados ou artigos que o Coordenador do Dossiê ou o Conselho Editorial achar
importante publicar ou republicar.
6. Os textos em língua estrangeira, quando aceitos pelo Conselho Editorial, serão
publicados no original, se em língua espanhola, francesa, italiana e inglesa, podendo por
ventura vir a ser traduzido.
7. Todo artigo enviado à revista para publicação deverá ser acompanhado de uma lista
de até cinco palavras-chave e Keywords que identifiquem os principais assuntos
tratados e de um resumo informativo em português, com versão para o inglês (abstract),
com 300 palavras máximas, onde fiquem claros os propósitos, os métodos empregados
e as principais conclusões do trabalho.
8. Deverão ser igualmente encaminhados aos editores dados sobre o autor (filiação
institucional, áreas de interesse, publicações, entre outros aspectos).
9. Os editores reservam-se o direito de introduzir alterações na redação dos originais,
visando a manter a homogeneidade e a qualidade da revista, respeitando, porém, o estilo
e as opiniões dos autores. Os artigos expressarão assim, única e exclusivamente, as
opiniões e conclusões de seus autores.
10. Os artigos publicados na revista serão disponibilizados apenas on-line.

Toda correspondência referente à publicação de artigos deverá ser enviada para o e-mail
da Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia:
sociabilidadesurbanas@cchla.ufpb.br.

Regras para apresentação de originais


1. Os originais que não estiverem na formatação exigida pela Sociabilidades Urbanas
não serão considerados para avaliação e imediatamente descartados.
2. Os artigos submetidos aos editores para publicação na Sociabilidades Urbanas
deverão ser digitados em Word, fonte Times New Roman 12, espaço duplo, formato de
página A-4. Nesse padrão, o limite dos artigos será de até 30 páginas e 8 páginas para
resenhas, incluindo as notas e referências bibliográficas.

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3. Citações com mais de três linhas, no interior do texto, devem se encontrar em


separado, sem aspas, com recuo de 1 cm à direita, fonte Times New Roman 11, normal,
espaçamento entre linhas duplo; e espaçamento de 6x6.
4. O arquivo deverá ser enviado por correio eletrônico para o e-mail
sociabilidadesurbanas@cchla.ufpb.br.

Notas e remissões bibliográficas


1. As notas deverão ser sucintas e colocadas no pé-de-página.
2. As remissões bibliográficas não deverão ser feitas em notas e devem figurar no corpo
principal do texto. Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia,
ISSN 1234-5678, v. 1, n. 1, abril de 2017 ISSN 2526-4702.
3. Da remissão deverá constar o nome do autor, seguido da data de publicação da obra e
do número da página, separados por vírgulas, de acordo com o exemplo 1: Exemplo 1:
Segundo Cassirer (1979, p.46), a síntese e a produção pelo saber...
4. Usa-se o sobrenome do autor, quando no interior do parêntese, em letras maiúsculas,
conforme o exemplo 2: Exemplo 2: O eu que enuncia "eu" (BENVENISTE, 1972,
p.32)... .

Referências
1. As referências bibliográficas deverão constituir uma lista única no final do artigo, em
ordem alfabética.
2. Deverão obedecer aos seguintes modelos:

a) Tratando-se de livro:
 sobrenome do autor (em letra maiúscula), seguido do nome;
 título da obra (em itálico):
 subtítulo, (também em itálico);
 nº da edição (apenas a partir da 2ª edição);
 local de publicação, seguido de dois pontos (:);
 nome da editora;
 data de publicação.

Exemplo: BACHELARD, Gaston. La terre et les rêveries de la volonté.


Paris: Librairie José Corti, 1984. 1.

b) Tratando-se de artigo em revistas:


 sobrenome do autor (em letra maiúscula), seguido do nome;
 título do artigo sem aspas;
 nome do periódico por extenso (em itálico);
 volume e nº do periódico (entre vírgulas);
 páginas do artigo: (p. 15-21);
 data da publicação.

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Exemplo: CAMARGO, Aspásia. Os usos da história oral e da história de


vida: trabalhando com elites políticas. Revista Dados, v. 27, n. 1, p.1-15,
1984. 2.

c) Tratando-se de artigo em coletâneas:


 sobrenome do autor (em letra maiúscula), seguido do nome;
 título do artigo;
 In:
 nome do autor ou autores da coletânea seguido por (Orgs);
 título e subtítulo da coletânea em itálico;
 nº da edição (a partir da 2ª edição);
 local da publicação seguido de dois pontos (:);
 nome da editora;
 páginas do artigo;
 ano da publicação.

Exemplo: DIAS, Juliana Braz. Enviando dinheiro, construindo afetos. In:


Wilson Trajano Filho (Org.). Lugares, pessoas e grupos: as lógicas do
pertencimento em perspectiva internacional. 2ª edição. Brasília: ABA
Publicações, p. 47-73, 2012.

d) Tratando-se de artigos em revistas online:


 sobrenome do autor (em letra maiúscula), seguido do nome;
 título do artigo sem aspas;
 nome do periódico por extenso (em itálico);
 RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 15, n. 44, agosto
de 2016 ISSN 1676-8965 volume e nº do periódico (entre vírgulas);
 páginas do artigo, se houver: ( p. 15-21);
 data da publicação
 Endereço do site
 Quando se deu a consulta.

Exemplo: FERRAZ, Amélia. Viver e morrer. Revista online de


comunicação, v. 10, n. 20, p. 5-10.
www.revistaonlinedecomunicação.com.br (Consulta em: 20.06.2015).

e) Tratando-se de teses, dissertações, tccs e relatórios:


 sobrenome do autor (em letra maiúscula), seguido do nome;
 título da obra (em itálico)
 subtítulo, (também em itálico);
 Tese; Dissertação, etc.;
 local de publicação, seguido de dois pontos (:);
 nome do Programa e Universidade;
 Ano

Exemplo: BARBOSA, Raoni Borges. Medos Corriqueiros e vergonha


cotidiana: uma análise compreensiva do bairro do Varjão/Rangel.
Dissertação. João Pessoa: PPGA/UFPB, 2015

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Nota geral para as referências


1. Artigo, livro, coletânea, ensaio com mais de um autor: com até dois autores:
 Sobrenome do autor principal (em letras maiúsculas), seguido do nome e
ponto e vírgula(;)
 A seguir, o nome e sobrenome do segundo autor.
2. Artigo, livro, coletânea, ensaio com mais de dois autores:
 Sobrenome do autor principal (em letras maiúsculas), seguido do nome e,
após, et al.

Quadros e Mapas
1. Quadros, mapas, tabelas, etc. deverão ser enviados em arquivos separados,
com indicações claras, ao longo no texto, dos locais onde devem ser inseridos.
2. As fotografias deverão vir também em arquivos separados e no formato jpg ou
jpeg com resolução de, pelo menos, 100 dpi.

Norms to manuscripts’ presentation

The Urban Sociabilities – Journal of Anthropology and Sociology is a review


published every Mach, July and November with original contributions (articles and
book reviews) within any field in the Sociology or Anthropology of Emotion. All
articles and reviews will be submitted to referees. Every issue of Urban Sociabilities
will contain eight main articles and one to three book reviews. All manuscripts
submitted for editorial consideration should be sent to GREM by e-mail:
raoniborgesb@gmail.com.
Manuscripts and book reviews typed one and half space, should be submitted to
the Editors by e-mail, with notes, references, tables and illustrations on separate files.
The author's full address and the institutional affiliation should be supplied as a footnote
to the title page. Manuscripts should be submitted in Portuguese, English, French,
Spanish and Italian, the editors can translate articles to Portuguese (Sociabilidades
Urbanas´s main language) in the interest of the journal. Articles should not exceed 30
pages double-spaced, including notes and references. Reviews should not exceed 8
pages double-spaced and notes and references included.

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SUMÁRIO
ARTIGOS ........................................................................................................................................ 13
O que caracteriza notícias sobre o crime? ...................................................................................... 15
Aventuras antropológicas nas cidades brasileiras: na trilha das trajetórias acadêmicas das
antropólogas “urbanas” Eunice Durham e Ruth Cardoso ............................................................. 39
Três tradições antropológicas de análise cultural: uma abordagem crítica sobre as perspectivas
do fazer etnográfico ........................................................................................................................ 57
Os Grupos de Pesquisa na UFPB Campus I, 1992-2012: Uma análise partir d projeto Balanço
comparativo da produção da UFPB campus I sobre a cidade de João Pessoa-PB......................... 78
Vulnerabilidades da experiência citadina e acesso aos espaços públicos urbanos em duas
cidades médias: os métiers do público em Campos dos Goytacazes e Macaé (RJ) ......................... 90
A migração humana e o homem marginal ..................................................................................... 114
A Família Lundgren e a fundação da cidade de Rio Tinto: Do medo ao acirramento dos
conflitos fundiários........................................................................................................................ 124
Amizades e invenções de si: As experiências trans em Campos dos Goytacazes ........................... 136
Saindo do armário: a microterritorialidade homossexual em Campos dos Goytacazes/RJ .......... 150
Peregrinação Islâmica (hajj): Diálogos antropológicos sobre práticas “nativas” para
compreensão da comunidade religiosa muçulmana ...................................................................... 162
RESENHAS ................................................................................................................................... 175
O olhar teórico-metodológico do GREM sobre a cultura emotiva da cidade de João Pessoa:
Uma resenha ................................................................................................................................. 178
A Antropologia e a Sociologia das Emoções no Brasil: uma resenha ........................................... 182
Beleza e melancolia em dois tempos de um cotidiano de um dia de feira ..................................... 190
SOBRE OS AUTORES .................................................................................................................. 196

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ARTIGOS

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KATZ, Jack. O que caracteriza „notícias‟ sobre o crime? Tradução de Raoni Borges Barbosa.
Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v.1, n.3, p. 15-37, novembro de 2017.
ISSN 2526-4702.
Tradução
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

O que caracteriza notícias sobre o crime?1


What makes crime ‘news’?

Jack Katz
Tradução de Raoni Borges Barbosa

Resumo: Neste artigo, Katz problematiza um estudo sobre notícias de jornais,


questionando como se constrói o interesse cotidiano do leitor médio por notícias sobre o
crime. Nesse sentido, Katz apresenta uma classificação de quatro tipos de notícias sobre o
crime que impactam moralmente nos dilemas morais da população urbana a que se dirige:
os crimes de colarinho branco, os crimes contra a integridade moral coletiva, os crimes que
colocam em xeque as competências e as sensibilidades morais do homem médio e os
crimes que buscam potencializar conflitos políticos pré-existentes. Palavras-chave:
imprensa, notícias sobre o crime, fronteiras morais, dilemas morais cotidianos, vida urbana

Abstract: In this article, Katz problematizes a study of newspaper news on crime news,
questioning how the average reader's daily interest in news about crime is constructed. In
this sense, Katz presents a classification of four types of crime news that impact morally on
the moral dilemmas of the urban population to which it is directed: white collar crimes,
crimes against collective moral integrity, crimes that threaten the personal competence and
sensibilities of the average man and crimes that seek to moralize pre-existing political
conflicts. Keywords: press, crime news, moral boundaries, everyday moral dilemmas,
urban life

Como os leitores de notícias mantêm o apetite para relatos jornalísticos sobre um


crime? Dia após dia, muitas das novas histórias enquadradas no tópico criminalidade
apenas diferenciam-se, umas em relação às outras, quanto a detalhes do tipo data, lugar
e identidades das vítimas e do réu envolvidos na trama criminosa. Como os leitores vêm
a interessarem-se cotidianamente no relato hodierno sobre homicídio ou roubo, dado
que a narrativa que leram no dia anterior era substancialmente semelhante? Para ter
acesso a informações confiáveis sobre o fenômeno da criminalidade, leitores de jornais
poderiam recorrer a estudos sociológicos. Para ter acesso a entretenimento, eles
poderiam, e muitos, de fato, o fazem, ler novelas e romances policiais. Quais os
elementos distintivos de forma ou conteúdo que fazem as reportagens jornalísticas
diárias sobre o crime continuamente interessantes para o público moderno?
O estudo sociológico da mídia está crescendo, mas uma das suas questões
fundamentais, a explicação do “apetite por notícias” (CAREY, 1982; ver a conceituação
do problema na pesquisa sobre „gratificações‟: Katz, Blumer e Gurevitch, 1973),
permanece em aberto. Faz-se necessário, nesse sentido, considerar o sentido, para os

1
Este artigo foi gentilmente cedido para publicação na Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia
e Sociologia pelo Prof. Dr. Jack Katz. O artigo foi originalmente publicado na Revista Media, Culture and
Society (SAGE, London, Beverly Hills, Newbury Park and New Delhi), Vol. 9 (1987), 47-75.

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leitores, da estrutura, bem como da substância das narrativas midiáticas. No caso de


notícias sobre crimes, como se explica não somente a relativa importância dessa
categoria de notícias, mas, também: a ênfase no exercício narrativo da apropriação do
crime pelo processo de justiça criminal?; a diferenciação de tipos de narrativas sobre o
crimes?; a recorrência cotidiana do apetite pela leitura?; a maneira como o relato sobre o
crime é construído para fazê-lo parecer atual; a dispersão de relatos sobre crimes pelo
jornal?
Uma resposta teórica coerente pode ser desenvolvida mediante a abordagem de
temas até então marginais para os estudos sociológicos tanto da mídia quantos dos
problemas sociais. Primeiramente oferecerei uma análise de conteúdo de narrativas
midiáticas cotidianas sobre o crime. Sociólogos tem se tornado cada vez mais
sofisticados em examinar a organização social do processo de produção das notícias de
jornal em relação a tendências que afetam se e como narrativas particulares são
reportadas (por exemplo, ver FISHMAN, 1980). Contudo, apesar das contingências que
afetam se um elemento particular será publicado, todas as narrativas sobre crimes que
são publicadas, com efeito, preenchem um ou mais das quatro formas clássicas de
dilemas morais. Estas categorias devem ser entendidas como condições necessárias, mas
não suficientes para a publicação da narrativa sobre crime. O argumento é que histórias
sobre o crime candidatas à publicação nos jornais diários devem ser construídas em
torno de uma ou mais destas quatro formas, antes que venham a ser classificadas como
noticiáveis.
A análise substantiva foi desenvolvida e testou até a exaustão conjuntos de
narrativas midiáticas extraídas de jornais diários de Nova York e de Los Angeles ao
longo de sete anos. A primeira seção abaixo descreve as amostras e, com ilustrações dos
casos mais novos e limítrofes, reproduz em efeito o livro de códigos utilizado para
analisar as notícias de jornais.
Na segunda seção, argumento que, indiferente de quais sejam as influências
sobre as formas de organização de notícias que afetam a seleção e a rejeição de
narrativas particulares, leitores de notícias diárias possuem em relação às narrativas
publicadas uma fascinação pessoal gerada independentemente das influências acima
aludidas. Esta fascinação não corresponde primeiramente ao aprendizado sobre o crime
em si: leitores de notícias diárias não mantêm um interesse em histórias sobre crimes
com o intuito de produzir teorias sociológicas tipo folk sobre os casos lidos, ou mesmo
para se tornarem mais preparados em lidar com as realidades da criminalidade na
sociedade.
Na seção final, busco compreender os padrões revelados, a partir dos conjuntos
atuais de dados e da literatura consultada, com uma teoria da reconstrução cotidiana dos
apetites dos leitores de jornais por narrativas midiáticas sobre o crime. Minha tese é a de
que o crime é transformado em „notícia‟ pelo público moderno que busca por recursos
para provocar as sensibilidades rotineiramente enquadradas e apropriadas como
problemáticas na vida urbana moderna cotidiana.
Fronteiras morais em notícias sobre crimes
Primeiramente me interessei sobre o conteúdo recorrente de notícias de jornais
quando estudava o Ministério Público Federal para o Distrito Leste de Nova York (a
partir de agora MPFNY). A liderança do Ministério mostrava-se altamente sensível em
relação à publicidade e tinha instituído uma rotina clerical de colecionar narrativas
locais que fizesse menção à própria instituição. Trabalhando com os oito volumes de
relatos colecionados, que cobriam o Ministério desde meados de 1974 até 1978,
desenvolvi definições de vários tipos de elementos de notícias sobre crimes e empreguei

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seis estudantes de graduação para codificar as narrativas do New York Times e do


Newsday. O conjunto de dados resultantes incluía aproximadamente 550 narrativas
sobre mais ou menos 200 crimes específicos. As definições no livro de códigos foram
continuamente revisadas de modo a solucionar ambiguidades reveladas nas sessões de
correção e a assegurar que cada narrativa midiática preencheria pelo menos uma
categoria de classificação.
Este conjunto de dados obviamente tinha deficiências, mas contava também
como uma força sutil. A jurisdição de um Ministério Público Federal cobre os „crimes
de rua‟ classificados como mais ofensivos (roubo, estupro, assalto, homicídio) apenas
de uma forma relativamente menor e incidental, quando comparado como Ministérios
Públicos Estaduais. Como resultado, aqueles crimes federais que perfazem as notícias
tendem a mostrar pequenas idiossincrasias ou exceções em relação à típica narrativa
midiática sobre o crime. No propósito de descobrir as dimensões fundamentais do
elemento noticiável, casos aparentemente excepcionais ou idiossincráticos assumiram
um valor especial. Neste estudo o objetivo de pesquisa foi o de articular, mediante a
lógica da indução analítica, a base essencial ou universal do elemento noticiável do
crime; ou os conteúdos necessários que devem ser dados a uma história sobre crime
antes que esta apareça como notícia. A freqüência relativa com a qual narrativas
midiáticas de tipos diferentes apareceram não configurou uma preocupação central.
O conjunto de dados sobre o New York tinha ainda uma limitação a mais em
relação a um possível viés no critério de seleção do Ministério Público. (Averiguamos o
índice do New York Times em relação às correspondências com dois dos oitos volumes
de recortes de jornais coletados pelo Ministério Público e encontramos um número
considerável de casos adicionais, mas nenhum que configurasse um tipo qualitativo
novo). De maneira a expandir o escopo da análise, empreguei dois outros estudantes na
codificação de todos os crimes, estudais e federais, publicados na capa e na primeira
página da seção Metro do Los Angeles Times em 1981, 1982 e 1983. Para cada ano,
cada edição de Sábado, de Domingo e de Segunda foi examinada; para os outros dias da
semana, uma edição diária diferente, em cada semana, foi examinada, em um esquema
de rotação. Esta operação de codificação selecionou eventualmente 1.348 narrativas
midiáticas. Uma vez mais as categorias de classificação foram continuamente revisadas
no estilo da indução analítica, de modo a definir categorias capazes de identificar a
característica noticiável de todos os casos2.
Uma abordagem inicial sobre „os fatores associados ao elemento noticiável‟ foi
desenvolvida por Bob Roshier (1973, p. 34) em sua análise da cobertura do crime pelos
jornais britânicos. Ele descobriu que „circunstâncias caprichosas‟ – „pessoais de flores‟
roubando flores do cemitério, o roubo do carro do detetive, um banco ludibriado por
uma criança de dez anos – provocavam consideravelmente: „Esta categoria, talvez
surpreendentemente, parecia ser provavelmente a mais importante em relação à
narrativa midiática sobre o crime, de forma geral‟. Outra categoria importante era o
envolvimento de uma pessoa importante, na posição de réu, vítima ou espectador. O
estudo de Roshier sugere a hipótese de que os crimes não se tornam noticiáveis em

2
Diferentemente dos exemplos tradicionais de indução analítica, busquei definir as condições causais
necessárias, mas não suficientes. O fato de que apresentei quatro caminhos alternativos para o elemento
noticiável da narrativa midiática não é inconsistente com essa metodologia; percebi como, a depender do
objetivo da pesquisa, os quatro caminhos podem ser sintetizados em três, dois ou um. A vantagem
principal da indução analítica estava em conduzir a análise para um nível mais profundo do que poderia
ser obtido em fixar, de partida, as categorias de codificação e de aplicá-las para a produção de resultados
quantitativos. Sobre as implicações diferenciais da indução analítica em relação às questões tradicionais
da metodologia em pesquisa social, ver Katz (1982).

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razão do que se conta sobre eles, mas porque os crimes podem narrar especialmente
algo sobre outra coisa de interesse dos leitores.
Apesar da rica variedade de crimes nas notícias, descobrimos, eventualmente,
que um pequeno número de temas poderia abarcar todo o conjunto de dados da
pesquisa. De forma a ser transformado em elemento noticiável, concluímos, os crimes
devem ser retratados em uma ou mais das quatro formas já mencionadas. Cada uma
parece apontar para um questionamento da fronteira moral recorrentemente definida
pelos adultos na vida moderna cotidiana.
Competência pessoal e sensibilidade
Nesta categoria situamos o mais numeroso tipo singular de histórias sobre
crimes: narrativas de crimes engenhosos, viciosos e audaciosos - de engodos que
ludibriam o escrutínio aguçado de inspetores diligentemente preparados; dos mais
sangrentos assassinos; de grandes roubos na mais luminosa luz do dia. Tais histórias
instruem os leitores sobre a nature e os limites da competência e sensibilidade
individual. Em razão das implicações gerais das notícias que eles geram, trapaceiros
talentosos e matadores frios tem usualmente provocado um interesse público que beira à
afecção. Em uma tradição que se estende pelo menos até o tempo de Durkheim, crimes
e criminosos tem sido premiados pelo que eles dizem sobre a ingenuidade e a audácia
que leitores podem razoavelmente esperar, nem tanto dos criminosos, mas dos seus
colegas civis e deles próprios.
Uma subcategoria continha narrativas dramatizando as exceções aos modelos
demográficos presumidos de competência e de sensibilidade moral. Relatos de roubos
armados por parte de crianças (em 1982 houve um caso altamente publicizado em
Manhattan) ou por parte do homossexual (os fatos sobre o quais o filme A Dog Day’s
Afternoon se baseou), por parte de mulheres, e por parte de idosos desafiam os nossos
estereótipos não somente sobre o crime, mas sobre as capacidades associadas com
aqueles status geracionais e de gênero. Uma história sobre um ladrão de banco de 10
anos de idade apresenta uma surpreendente intencionalidade ou seriedade de propósito e
carrega implicações que atingem não apenas jovens envolvidos com crimes, mas
também atos agressivos performatizados entre crianças, assim como às exigências das
crianças em dispor de privilégios de adultos. Se uma criança de dez anos de idade é
vista como um potencial ladrão de banco, pode parecer ingênuo insistir em que a
criança vá para a cama às 21h ou que coma os seus cereais.
A jurisdição federal criminal EDNY, responsável pelo Aeroporto Kennedy,
produz regularmente narrativas que ilustram a competência em desafiar a ingenuidade.
Negociantes de contrabando, especialmente aqueles que devem atravessar seus bens
pelos pontos de inspeção, contribuem com uma série sem fim de exemplos
demonstrando as possibilidades da ingenuidade. Os leitores de notícias de Long Island e
da cidade de Nova York podem ler em um dia sobre pedras preciosas ou sobre
componentes de máquinas de alta tecnologia contrabandeadas em tubos de creme
dental, enquanto que no dia seguinte podem ler sobre quantidades surpreendentemente
grandes de heroína escondidas no interior de vaginas e de ânus.
Os relatos de notícias de crime ilustrando as dimensões da competência humana
e da sensibilidade moral incluem não apenas aqueles que retratam criminosos como
excepcionalmente insensíveis ou excepcionalmente audazes, mas também aqueles que
indicam os limites da insensibilidade criminosa. Ilustrativo deste último caso foi uma
história do NY Daily News (15 de Junho de 1977) sobre um jovem ex-presidiário de 21
anos que pulou do décimo andar do prédio da Corte Criminal do Brooklyn momentos
depois de ser sentenciado pelo crime de roubo armado. Ao perceber que o jovem “tinha

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estado em problemas com a Lei desde os 15 anos de idade”, a narrativa enfatizou que
mesmo criminosos barra pesada aparentemente podem não ser totalmente insensíveis à
dor social. Muito embora este princípio particular da filosofia social jornalística possa
ser não usual, constitui uma rotina para as notícias sobre crimes implicar algum tipo de
lição sobre o estado contemporâneo do caráter moral. Com efeito, apesar da sua
reputação como sensacionalista, o Daily News não relata rotineiramente, de fato,
suicídios ou roubos armados. Para fazer-se noticiável, um tema provocativo sobre a
competência moral pessoal será pitorescamente construído no interior da narrativa.
Integridade Coletiva
Um segundo tipo de histórias jornalísticas sobre crime endereça a integridade
moral da comunidade. Grandes roubos de bagagem no Aeroporto Kennedy e roubos na
Companhia Grumman, o maior empregador privado de „Long Island‟, serão noticiados
belo Newsday e pelo New York Times, enquanto que „subtrações‟ igualmente
significativas de estabelecimentos mentos centrais para a identidade coletiva da região
serão ignorados pela imprensa local. Virtualmente todos os roubos considerados
noticiáveis são explorados como eventos ameaçadores de uma ou outra fundação da
identidade coletiva. Com efeito, a subtração ilegal de pequenos mexilhões por parte de
pescadores comerciantes em Long Island se tornaria noticiável em razão do fato de
„piratas‟ terem sido retratados como tão cruéis a ponto de roubar „bebês‟ mexilhões,
mas também porque estas atividades seriam ditas como ameaças “aos arduamente
produzidos recursos da Great South Bay”.
O sequestro de produtos embarcados será mais adequado ao exercício de
produção de notícias se os mesmos, por acaso, são encabeçados por instituições
classificadas integrantes do caráter moral da comunidade, como, por exemplo, uma
igreja proeminente ou alguma escola pública do distrito. Perseguições de estudantes por
fumar não são geralmente noticiáveis, mas se tornam no caso de os estudantes
pertencerem a Academia de Marinha Mercante de Long Island. Tais histórias contem
uma qualidade melodramática não pronunciada: elas implicitamente tocam as ideias
populares sobre a vulnerabilidade de identidade coletiva, sugerindo que o crime ameaça
romper a sociedade em alguma parte essencial ou que o mesmo simboliza a presença, na
comunidade, de forças tão malevolentes como que para ameaçar a fábrica social
metafórica.
Na esfera nacional, a contrafacção constitui um candidato venerável para
notícias sobre crime, elencado como um perigo para as instituições comunitárias. A
contrafacção tem a distinção simbólica de representar um desafio à integridade da
economia como um todo. Sub voce ela grita o medo: “Então não pudermos confiar em
nosso dinheiro! Como o comércio poderia continuar?”
As ameaças à integridade coletiva também são representadas por crimes que
ocorrem em centros contemporâneos de bondade, lugares simbolizando a concepção
americana de vida boa: pequenos roubos de coleções de pratos em igrejas, assaltos na
Disneylândia, assassinatos no Bob‟s Big Boy ou McDonald. Estes relatos levantam o
espectro de que “o centro não suporta”, que nenhum lugar é seguramente sacro. Um
conjunto relacionado de histórias denota lugares e pessoas confiadas a serem saudáveis
para a alma e para o corpo, e descreve eventos que afetam a fé que dirige o público para
eles. Exemplos incluem narrativas de tortura ou de abuso sexual ocorrendo em centros
de cuidado de crianças ou durante o período de anestesia em consultórios de dentistas.
A identidade pessoal da vítima também pode fazer do crime um desafio
simbólico à identidade coletiva. Com efeito, o assassinato, em via pública, em 1982, da
sobrinha do ex-senador Ribicoff, em Venice (Los Angeles), gerou uma enorme

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publicidade. Os crimes tornam-se noticiáveis quando vitimizam a elite, tal como foi o
caso em uma história do Newsday sobre o roubo de vários cruzeiros de cabine de 20 a
40 pés, mas também quando eles meramente encenam a penumbra carismática das
elites. Em Los Angeles, pode-se ler sobre assaltos que ocorreram exatamente na
vizinhança, não propriamente na casa, de uma estrela famosa do cinema; em
Washington, pode-se ler sobre tráfico de drogas às sombras do Capitólio; através do
país pode-se ler sobre criminalidade banal por parte de parentes distantes do presidente.
As notícias sobre crimes deste tipo buscam as pessoas e os lugares que podem vir a ser
considerados como centrais para a identidade coletiva. De fato, notícias sobre crimes
provem o sociólogo com um mapa acessível e detalhado para se perseguir a geografia
institucional do sagrado na sociedade moderna.
Ao reconhecer implicitamente a importância para o público desta forma de
crime, alguns estatutos federais diretamente definem ataques a certos símbolos de
caráter nacional como ações criminosas. Os jornais de New York têm feito a cobertura
de perseguições criminais de indivíduos patéticos que, de maneira óbvia e amadora o
suficiente para não ser realmente ameaçadora, tem enviado notas ameaçadoras ao
presidente; assim como o caso de um jovem aparentemente bem apessoado que de
alguma forma logrou encontrar e disparar contra uma Águia Americana em Long
Island.
O grande número de relatos sobre o crime organizado também podem ser
enquadrados na categoria de crimes retratados como ameaças ao caráter da comunidade.
O crime organizado, considerado como uma emanação do „submundo‟, tem se tornado
um imaginário poderoso e versátil para o mal nos Estados Unidos. Organizado
secretamente, de compleição escura („morena‟), sempre ameaçando manchar ou
contaminar as boas pessoas, o crime organizado é uma metáfora contemporânea
estruturada ao longo de imagens antigas de moléstias infecciosas e de perigo satânico.
Uma vez rotulado como um „membro‟ do crime organizado, a desgraça individual (um
acidente automobilístico, por exemplo) pode gerar relatos jornalísticos contendo
nenhuma referência em relação ao crime ou à vítima.
De modo semelhante, narrativas podem se tornar noticiáveis se documentam de
outra forma a existência, - ainda que na total ausência de alegações sobre agressores, -
de forças vastas, incontroladas e anti-sociais. Com efeito, lemos periodicamente sobre
descobertas de depósitos de armas, apreensões de grandes armazéns de narcóticos, e
feitos de que informações relevantes para a segurança nacional tem sido acessadas por
algum tipo de esperto inocente habilidoso o bastante na manipulação de computadores.
Conflitos políticos moralizados
A terceira categoria de notícias sobre crimes que abarcam mensagens mais
gerais sobre o caráter moral é explicada pelos relatos de ofensivas armadas por parte de
organizações locais simpáticas à PLO (Palestine Liberation Organization) ou ao IRA
(Irish Republican Army); de roubos a bancos por membros do Black Liberation Army; e
de exigências de extorsão por parte de grupos de independência de Porto Rico. As
platéias para tais histórias são constituídas como partidos interessados antes da
ocorrência do crime. Longe de o efeito surpresa ser uma condição essencial para o
interesse do leitor, muitos dos mais ávidos leitores serão aqueles que já estão
predispostos à oposição aos grupos criminosos. Para estes leitores, os agressores podem
ser apontados não somente como politicamente indesejáveis ou substancialmente
equivocados, mas também como situados além das fronteiras das sensibilidades morais
respeitáveis, de modo que não merecem ser ouvidos em suas afirmações políticas: „ Eles
são realmente (basicamente, essencialmente, depois de todas as amenidades do debate

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serem ditas e feitas) pessoas más, nada além de criminosos‟. O mais óbvio desta
categoria de notícias remete ao fato de que o crime se torna noticiável não como uma
fonte de informação sobre o crime, mas como uma mensagem moralmente carregada
sobre outras questões de interesse para os leitores. Estes relatos sobre crimes preenchem
conflitos políticos com dimensões de caráter moral.
A relação entre o conflito político e o potencial noticiável do crime é complexa.
Conflitos políticos intensos crescem ao nível do noticiável, crimes que de outra maneira
não seriam classificados como de interesse geral. Por outro lado, um crime audacioso
faz noticiável um conflito político que vinham sendo ignorados pela mídia e pelo
público mais geral. Um exemplo dos anos 1970 foi o sequestro de um avião sobre Long
Island por nacionalistas croatas, assim como a morte relacionada de um policial que se
esforçava em desarmar uma bomba. Antes de ler sobre esse crime, muitos nova-
iorquinos eram ignorantes em relação às exigências e acusações dos croatas para com o
estado iugoslavo. Na história recente, a estratégia irônica de terroristas frequentemente
tem sido bem sucedida: a seriedade de ferir as vítimas tem geralmente sido percebida
não (ou não somente) como razões para condenar a crueldade dos agressores, mas como
um estímulo para reconhecer a seriedade dos seus objetivos: „Eles estão tão insatisfeitos
que ousariam até fazer isso!‟
Crime de colarinho branco
O crime de colarinho branco compreende uma quarta categoria de itens
considerados noticiáveis, porque prove uma instrução moral sobre problemas que
preocupam os leitores independentemente do crime. Crimes de colarinho branco
algumas vezes parecem ser noticiáveis em razão da dimensão dos valores envolvidos.
Mas é a magnitude do poder ou da riqueza legítima do réu, não a medida do ganho
ilegítimo, que perfaz o caráter distintivamente noticiável. Os casos ABSCAM que
condenaram um senador, vários deputados, e um número significativo de oficiais locais
por receber suborno, geraram mais notícias que muitos roubos a bancos, em que a
subtração de valores tem sido bem maior do que os montantes recebidos pelas
autoridades públicas envolvidas. Os crimes de colarinho branco frequentemente não
publicizarão qualquer quantia monetária discernível. Com efeito, os procuradores de
justiça podem citar a gravidade da ofensa, as falsas afirmações feitas em documentos
submetidos ao governo ou, ainda, os perjúrios diante de um grande júri. Em adição aos
casos ABSCAM, os mais publicizados casos EDNY nos últimos cinco anos envolveram
pequenas quantidades de dinheiro. A perseguição bem sucedida a Joseph Margiotta, o
chefe republicano do Conde Nassau, verificou tão somente U$ 5,000 como suborno
pessoal; um caso contra Bedford-Stuyvesant, cujo chefe era o democrata Sam Wright,
alegou o mesmo valor como propina. Em outra questão altamente publicizada, o
procurador de justiça investigou (mas ultimamente não apresentou) cobranças que
Kenneth Axelrod, um executivo-sênior na Companhia J. C. e um indicado da
Administração Carter para uma alta posição no Departamento do Tesouro, recebeu
corruptamente no valor de U$ 5,0000 na forma de um trabalho em seu apartamento em
Manhattan. O status da pessoa envolvida, mais do que a estrutura do crime, justifica o
potencial noticiável destes casos.
Múltiplas fronteiras e a extensão do potencial noticiável
A depender do propósito do pesquisador, as quatro categorias de notícias sobre
crimes poderiam colapsar em duas ou mesmo em uma categoria 3. Os crimes de

3
Nosso conjunto de 1.384 artigos do Los Angeles Times foi distribuído da maneira seguinte:
„competência pessoal‟, que incluía narrativas sobre crimes de violência que não preenchiam os requisitos

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colarinho branco, que envolvem acusações de criminalidade contra pessoas investidas


com uma forma de confiança sagrada, podem ser compreendidos na segunda categoria,
ameaças contra centros de integridade coletiva, cuja categoria já incluiu crimes que
vitimizam as elites. De alguma forma, todos os crimes preenchem os requisitos da
segunda categoria, haja vista que apontam para vulnerabilidades inerentes à ordem
social. Há, contudo, ao menos duas importantes razões para a distinção dos crimes em
quatro categorias.
Primeiramente as distinções nos permitem ver como os crimes se tornam
particularmente noticiáveis. Quanto mais categorias puderem ser preenchidas por um
crime, tanto maior será a história de jornal. Com efeito, o caso do sequestro de
Lindbergh (ver Hughes, 1936), uma vez promovido a „crime do século‟, foi inicialmente
o sequestro de um bebê, e, assim sendo, previsivelmente noticiável como um crime que
ilustrava uma extraordinária insensibilidade em relação a uma vítima distintamente
vulnerável; assim como um ataque a um herói nacional, e, portanto, adicionalmente
noticiável enquanto um assalto a um centro sagrado da sociedade. Mais tarde, depois
que um germano-americano, Bruno Hauptmann, foi considerado suspeito do crime, a
narrativa tornou-se um veículo para a moralização da tensão política crescente entre os
EUA e a Alemanha. Ainda mais tarde, quando questões foram levantadas sobre a
falsificação, por parte do estado, de evidências contra Hauptmann, o caso tornou-se uma
história que sugerira crimes de colarinho branco na forma de corrupção por parte de
autoridades públicas.
A história de Patty Hearst também conteve elementos que o enquadravam nas
quatro categorias de crimes: o famoso fotógrafo – Hearst portava uma metralhadora,
aparentemente fazendo guarda durante um roubo – retratava dramaticamente audácia; as
exigências feitas pelo Symbionese Liberation Army e a história política da família de
Hearst fizeram do evento um conto moral sobre os conflitos políticos dos anos de 1960;
e a riqueza e o prestígio da família de Patty Hearst lhe concederam uma cumplicidade
alegada de crime de colarinho branco.
As narrativas conectadas pela rubrica „Watergate‟ também mostram a relevância
das quatro categorias. Inicialmente relatadas como um roubo tentado, cuja vítima
pretendida seria o Partido Democrata, o caso foi explorado a princípio como um ataque
contra um centro de autoridade na sociedade americana. Watergate, então, tornou-se um
debate moral sobre a razoabilidade de suspeições sobre partidários possivelmente
tendenciosos, e, com efeito, um campo de teste para a ponderação moral das maiores
clivagens políticas no país. O caso tornou-se um fluxo de inundações de narrativas
sobre crimes de colarinho branco enquanto formas variadas da imoralidade da elite,
desde impostos pessoais falsificados até subornos envolvendo corporações
internacionais, tornaram-se implicados na investigação. E finalmente a fascinação com
Watergate transformou-se em uma inquisição sobre a competência pessoal e as
sensibilidades morais de Richard Nixon. Um roubo noticiável, a princípio, somente em
razão da estatura sagrada da vítima pretendida, Watergate tornou-se uma cobertura
midiática criminal extraordinariamente transparente e, assim sendo, extraordinariamente
reveladora.
A segunda, e, para os propósitos presentes, a mais relevante razão para distinguir
as quatro categorias de notícias sobre crimes é que cada uma aponta para aspectos
diferentes de uma explicação dos apetites por notícias de uma geração social. Cada uma
das quatro categorias ilumina uma pressão social distinta que leitores rotineiramente
confrontam em suas próprias vidas, para além de suas experiências pessoais com o

de qualquer uma das demais categorias, totalizou quase 50% de todos os artigos; „integridade coletiva‟
abarcou 33% dos artigos; „conflitos políticos moralizados‟, 8%; „crime de colarinho branco‟, 10%.

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crime. As quatro distinções nos ajudam a investigar a questão sociológica mais ampla
sobre como a vida social dos leitores empresta ao crime um caráter noticiável.
Mas, antes de apreciarmos essa questão, devemos abordar uma preocupação
intermediária. Mesmo assumindo que notícias sobre crimes preenchem as delimitadas
categorias descritas acima, uma análise de conteúdos isolada não garante a assertiva
seguinte de que há linhas correspondentes de interesse entre os leitores. A literatura
científica sobre o conhecimento do público sobre o crime, assim como os modelos de
leituras de notícias de crimes apresentam alguns fundamentos para a inevitavelmente
difícil passagem de uma análise de conteúdo de notícias para assertivas sobre a
experiência do leitor.
Notícias sobre crimes, estatísticas de criminalidade e o interesse do leitor
Como ponto inicial, é claro que os sentidos das notícias sobre crimes, quaisquer
que estes sejam, são importantes para os leitores. As notícias sobre crime têm estado
presente continuamente no cotidiano metropolitano por pelo menos 150 anos. Deve-se
argumentar que se este longo registro já indicou alguma vez um forte interesse entre os
leitores, já não mais o indica. Talvez, atualmente, os mais educados (e presumivelmente
mais sofisticados) leitores ignorem as notícias sobre crime ou as leiam apenas como
interesse superficial, falhando em absorver os conteúdos das notícias. A evidência
aponta, contudo, para outra coisa. Graber (1980, p. 50-51) solicitou a leitores de um
painel de notícias da área de Chicago que recitassem detalhes de narrativas midiáticas
sobre uma variedade de tópicos. A pesquisadora concluiu que a memória de relatos
sobre crimes excedia a memória sobre narrativas envolvendo outras questões, incluindo
educação, atividades políticas, conflitos no Oriente Médio, e o governo do estado.
Memórias de notícias sobre crimes eram praticamente da mesma magnitude,
relativamente alta, de memórias sobre notícias de acidentes e fofoca política. Em um dia
ordinário, narrativas sobre criminalidade e justiça compreendem aproximadamente 15%
dos tópicos realmente lidos4.
O fato de que leitores percebem as notícias sobre crimes espontaneamente
envolventes não significa que organizações midiáticas não estão enquadrando as
expectativas morais sobre o crime nas notícias. De fato, há tendências sistemáticas nos
relatos midiáticos sobre crimes, ao menos a forma em que o crime é apresentado
diariamente na mídia difere consistentemente do crime tal qual descrito nas estatísticas
policiais oficiais. De maneira a poder classificar o que os leitores acham tão interessante
nas notícias sobre crimes, deveríamos esclarecer a natureza deste „enquadramento‟.
As comparações de notícias sobre crimes e estatísticas criminais têm produzido
achados consistentes. Em estudos sucessivos, tem-se descoberto que o conteúdo de
notícias sobre crimes divergem enormemente dos padrões avaliados pelas estatísticas
oficiais. A relação não aparece ser aleatória ou incoerente: em muitos aspectos, o
quadro analítico que se obtém sobre o crime a partir de leituras de jornais inverte o
quadro analítico que se constrói com base em leituras de estatísticas criminais policiais.
Em um recente estudo de trinta anos sobre capas de notícias de jornal, em nove cidades,
Jacob (1980) concluiu que crimes violentos perfaziam 70% das notícias sobre crimes e
que isto correspondia a aproximadamente 20% da taxa criminal oficial. Sherizen (1978,
p. 215) contabilizou as porcentagens de crimes conhecidos pela polícia que eram
relatados em quatro jornais de Chicago em 1975: 70% dos casos de homicídios foram

4
Outros estudos de suporte (DOMINICK, 1978, p. 110), (SCHRAMM, 1949, p. 264) não encontraram
padrões diferenciais nas leituras de „notícias de recompensas imediatas‟, uma categoria que incluía as
histórias em quadrinhos, notícias sobre crimes, notícias sobre esporte e sociedade, muito embora o status
econômico fosse significativamente (e diretamente) relacionado à leitura de notícias sobre casos públicos.

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relatados, 5% dos estupros, 1% dos furtos/roubos. O pesquisador concluiu: „quanto mais


prevalente o crime, tanto menos... relatado‟. Esta sistemática „sobre-representação‟ do
crime violento nas notícias é também característica dos jornais da comunidade negra
(AMMONS et al., 1982). E em um estudo sobre os jornais britânicos, Roshier (1973)
encontrou, de modo semelhante, que os c rimes contra a pessoa eram consistentemente
sobre-representados, em contraste com as estatísticas criminais oficiais. (Ver também
Jones, 1976, sobre St. Louis; e a resenha em Garofalo, 1981, p. 323).
Os relatos de crimes de colarinho branco e de crimes comuns feitos pela mídia
tem também invertido a relação dos mesmos tal qual se verifica nas estatísticas oficiais.
Em nosso conjunto de narrativas midiáticas sobre crimes federais publicado em New
York entre 1974 e 1978, aproximadamente 66% do conjunto correspondia a crimes de
colarinho branco e 21% a crimes comuns. Em um estudo separado, contabilizamos os
tipos de casos que, de acordo com registros da corte federal, eram então processados
durante aqueles anos em jurisdições locais. Os registros da corte mostravam o inverso
dos relatos midiáticos: aproximadamente 22% dos casos criminais registrados eram de
crimes de colarinho branco, enquanto que 70% eram de crimes comuns. Esta sobre-
representação de crimes de colarinho branco tem sido documentada em estudos de
cobertura jornalística de todos os crimes, estaduais ou federais. Roshier (1974, p. 34),
sobre os jornais britânicos, e Graber (1980, p. 38 e 40), sobre a mídia impressa de
Chicago, também concluíram uma sobre-representação de aproximadamente 70% dos
criminosos como brancos e de aproximadamente 75% como criminosos de status
socioeconômico médio ou superior5.
Pra nossos propósitos, estes padrões de sobre-representação de crimes violentos
e de colarinho branco deve sugerir que organizações midiáticas tem gravemente
distorcido o entendimento dos leitores sobre o crime. Desta forma, os contos morais
isolados pela nossa análise de conteúdo de notícias de jornais – nos quais crimes
violentos e de colarinho branco assumem grande proporção – não deveriam ser
considerados como conduzindo a fontes especiais do interesse do leitor. Isto é o que eles
lêem, pode-se objetar, porque isto é o que os tem conduzido a acreditar o que o crime é!
Os leitores estão interessados nestes contos morais, porque eles acreditam que, através
dos mesmos, estão aprendendo sobre o crime na sociedade.
Tem-se frequentemente sugerido que a percepção dos leitores sobre o crime na
sociedade reflete mais os crimes como descritos na mídia do que como descritos nas
estatísticas oficiais. Mas uma inspeção mais próxima, o suposto poder das notícias de
modelar a percepção dos leitores de notícias sobre o crime na sociedade não tem sido
claramente estabelecida pela pesquisa científica. Talvez o mais famoso estudo nesta
área, a pesquisa de 30 anos sobre noticias sobre o crime nos jornais do Colorado, de F.
James Davis (1952), apresentou parcas evidências quanto à ausência de uma „relação
consistente‟ entre notícias sobre o crime e as compilações do FBI a partir de relatos da
polícia local. Mas Davis advertiu não ter encontrado evidências claras de que as

5
Dominick (1978) pesquisou crimes relatados nas páginas de capa do New York Times e do Los Angeles
Times em 1950, 1960 e 1969. Muito embora ele tenha concluído que crimes violentos eram explorados
em uma taxa três vezes maior que crimes de colarinho branco, estes quadro analíticos, quando
comparados com as estatísticas processuais, ainda indicam uma sobre-representação de crimes de
colarinho branco. Advogados de distritos estaduais preenchem mais de dez vezes estes casos do que
advogados de distritos federais, e casos de crimes de colarinho branco são tão raros que quase são
invisíveis nas estatísticas da corte estadual. Ver a revisão de literatura em Davis (1982, p. 32). Gans
(1980, p. 141), ao examinar as notícias de TV e em revistas semanais, descobriu uma cobertura
aproximadamente semelhante de „conhecidos‟ e „desconhecidos‟ com problemas com a Lei, um padrão
de igualdade que, mais uma vez, quando comparado às estatísticas da ação oficial, mostra uma forte
tendência em direção a uma cobertura de pessoas de um status social mais elevado.

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percepções públicas sobre o crime geralmente seguem mais de perto o conteúdo das
notícias de jornal do que as Taxas Uniformes de Crimes (UCR).
Com exceção de um contexto de “onda de crimes”, as notícias de jornal não
parecem dominar as percepções públicas sobre o crime. Há evidência de que o público é
consciente das diferentes imagens do crime retratadas pela estatística policial e pelas
descrições jornalísticas do crime, e que, com efeito, o público lê as duas abordagens do
crime para propósitos distintos. Stinchcombe et al. (1980) comparou a cobertura do
crime em revistas publicadas entre 1932 e 1975, com surveys periódicos inquirindo o
público sobre se a criminalidade era o maior problema social. Houve quase que uma
mudança aleatória no nível da cobertura do crime pelas revistas, mas a opinião do
público sobre a criminalidade como o maior problema social mudou de acordo com um
padrão claro, elevando-se em 1969 e permanecendo alta até 1974. Entre 1970 e 1974,
crimes violentos aumentaram dramaticamente de acordo com estatísticas oficiais, assim
como o medo do crime por parte do público, enquanto que a atenção dada ao crime na
literatura jornalística decresceu. Os autores concluíram (STINCHCOMBE et al, 1980,
p. 36-37):
O peso da evidência é que as pessoas prestam mais atenção às reais
taxas de crime do que ao nível de cobertura jornalística. Tanto quanto
se pode contar sobre os recentes desenvolvimentos do medo do crime,
o aumento radical na taxa de criminalidade observado pela polícia (e
relatado pelo FBI nos Relatos Criminais Uniformes) é também
observado pelas pessoas, e isto as amedronta 6.
Estes dados são complementados por aqueles descobertos por Herbert Jacob
(1980). Jacob não relatou sobre atitudes públicas, mas, diferentemente de Stinchcombe
et al., pesquisou relatos de jornais sobre a criminalidade. Durante o período de 1948 até
1978, o pesquisador encontrou um aumento tímido de notícias sobre o crime nas capas
de jornais, mesmo quando, nas nove cidades pesquisadas, as estatísticas da UCR (Taxas
Uniformes de Crimes) aumentaram em 300%. (As notícias sobre crimes nas capas de
jornais aumentaram de 2% a 4 %). Com efeito, o aumento no medo da criminalidade
relatado por Stinchcombe et. al, mais uma vez, parece ser relatado muito mais em
consonância com as estatísticas policiais oficiais do que com a cobertura jornalística.
Evidências sincrônicas, assim como históricas, mostram um entendimento do
crime na sociedade, por parte do público, que é mais próximo das pistas oficiais do que
das descrições midiáticas do crime. Graber (1980, p. 49) comparou características de
agressores e de vítimas em notícias e em percepções de entrevistados: „A imprensa não
retrata os criminosos e as vítimas largamente como não-brancos, pobres, e de classe
baixa, mas os entrevistados assim o fazem‟. Em seu estudo, o Chicago Tribune
identificou aproximadamente 70% dos criminosos como brancos, aproximadamente
dois terços das vítimas como femininas, e aproximadamente 75% dos criminosos como
de status socioeconômico médio ou superior. Os entrevistados de Graber, por sua vez,
estimaram a raça, o sexo e o status socioeconômico dos criminosos e das vítimas quase
que inversamente ao quadro analítico apresentado pelo Tribune7.

6
Conferir Jones (1976, p. 240), ao comparar periodicamente estatísticas do FBI e artigos de jornais
diários: „suspeita-se que os leitores são mais propensos a confiar nos mais comuns estímulos cotidianos
para formar suas impressões sobre as tendências em relação à quantidade e à distribuição da
criminalidade‟.
7
O quadro analítico de entrevistas de Graber viu também o „crime de rua‟ ocorrendo em uma freqüência
menor do que muitos crimes que são raramente narrados pela mídia: delitos envolvendo narcóticos, dirigir
bêbado, negociar com bens roubados, violações de armas, prostituição, fraude aos serviços públicos de
bem-estar, fraude ao consumidor, violação à liberdade condicional.

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Um recente estudo feito em New Orleans (SHELEY & ASHKINS, 1981)


comparou a escala de criminalidade dos Índices do FBI nas estatísticas policiais e em
um levantamento por telefone feito com os moradores da área. O público classificou o
homicídio como o quarto mais comum tipo de crime; enquanto que as estatísticas
policiais o colocavam em sétimo lugar. O público classificou o furto como o segundo
mais tipo de crime, o mesmo acontecendo nas estatísticas policiais. O roubo foi
classificado em primeiro lugar pelo público, mas em terceiro lugar pelam estatística
policial. Tal como em outras cidades, um morador de New Orleans que recebeu
informação sobre a criminalidade tão somente pela mídia local classificaria o homicídio
e o roubo no topo da lista e furto na base. Roshier (1973, p. 37) fez uso de uma
metodologia semelhante com leitores britânicos e concluiu: „As percepções do público
não parecem ser influenciadas pelas tendências dos seus jornais, mas, de fato, são
surpreendentemente próximas aos quadros analíticos oficiais‟.
O público não parece ler notícias sobre crimes em uma pesquisa ingênua pela
verdade empírica sobre a criminalidade. Outras preocupações parecem sustentar os
interesses dos leitores. Isto é sugerido pela comparação do crime tal qual representado
pela mídia jornalística e pela mídia de entretenimento. Os mais comuns crimes sérios,
de acordo com as estatísticas policiais (Índice do FBI, Parte I), os roubos e os furtos,
muito raramente são o foco de narrativas midiáticas, shows de TV (DOMINICK, 1973,
p. 245) ou de cinema; assassinatos e estupros, entre os menos frequentes crimes nas
estatísticas do FBI, estão entre os mais frequentes temas criminosos tanto nos shows
jornalísticos quanto nos de entretenimento. (Ver Garofalo, 1981, p. 326, sobre as
„similaridades nas características dos crimes, agressores e vítimas transmitidos pela
mídia jornalística e pelo drama televisivo‟.). E há um paralelo bem evidente entre o
crime nas notícias e na ficção: „o autor de um dos primeiros narradores britânicos de
detecção de crime, “Clement Lorimer; ou o Livro com Fivelas de Ferro” (1848), tornou-
se um repórter criminal para o jornal... Através das histórias deles os gêneros criminais
de ficção literária e o jornalístico caminharam de mãos dadas e mesmo atualmente são
ocasionalmente difíceis de distinguir um do outro‟ (CHINBNALL, 1980, p. 209-210). É
menos plausível assumir que o público se apropria de representações cinemáticas,
novelísticas e jornalísticas do crime como evidências sobre o crime do que sugerir que,
ao aproximar a mídia jornalística e a de entretenimento, o público não está tentando
essencialmente aprender sobre o crime.
Não há uma assertiva desprezível sobre a ingenuidade do público sob a
perspectiva de que as pessoas geralmente lêem notícias sobre o crime para entender
sobre a criminalidade? Se os especialistas criminais podem ler as notícias sobre o crime
em um contexto cotidiano, enquanto permanecem céticos sobre o material enquanto
informação criminológica, talvez o leitor leigo não seja mais um tolo. Em razão da
cultura criada pelo pessoal de aplicação da Lei, os crimes que perfazem as notícias de
ocupação cotidiana, ou que são temas de conversas informais, aparecem
substancialmente semelhantes àquelas que fazem o mesmo no âmbito dos jornais. De
acordo com o estudo de Sudnow (1965) sobre interações entre defensores e promotores
públicos, os casos que geram a maior parte dos comentários informais entre estes
profissionais da justiça criminal não são aqueles que mais acuradamente representam os
crimes estatisticamente típicos com que eles lidam. Idiossincrasias pessoais e
situacionais, não os crimes „normais‟, geram distintamente duas notícias populares. No
escritório da promotoria federal em que pude realizar uma pesquisa de observação,
vários dos casos que recebiam a maior parte dos comentários informais eram também
aqueles que se tornavam grandes narrativas de novidades e a maioria dos filmes de
Hollywood (A Dog Day‟s Afternoon, The French Connection, Prince of the City). O

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mesmo „senso comum‟ parece governar os oficiais de aplicação da lei quando fofocam
sobre os seus casos e a ambos, leitores leigos e especialistas de notícias de relatos sobre
o crime. Por que não deveriam os repórteres e editores seguir o mesmo „senso comum‟
ao selecionar notícias sobre o crime? Tal como Park há muito percebeu (1940, p. 13-
14), os jornalistas são disciplinados a serem não teóricos no exercício de determinar o
que é noticiável e no de colocarem-se na perspectiva do leitor médio ao responder
emocionalmente aos eventos.
A geração social do apetite por noticias sobre o crime
Nós já rejeitamos uma explicação hipotética do interesse do leitor, a teoria
utilitarista de que as notícias sobre o crime, ao descrever eventos não esperados,
capacita aos leitores a reduzir seus problemas práticos com o crime através da
reorganização do conhecimento sobre a criminalidade em direção a uma maior acuidade
empírica. Os leitores parecem ser tão bem conscientes da atipicidade do crime, tal como
abordado pelas notícias, que sua leitura parece ser a busca pelo „inesperado‟. Mas „o
inesperado‟ oferece apenas os princípios elementares de uma teoria adequada. Devemos
ainda especificar em que sentido mais exato o crime noticiável é „inesperado‟.
Ambiguidades do „inesperado‟ em notícias sobre o crime
Consideremos as implicações teóricas do padrão de „novidade‟ nos crimes
noticiáveis. Assim como quase todos os sociólogos interessados em notícias tem notado,
há uma urgência a partir da qual uma narrativa desse publicada para que esta não perca
o seu caráter de „notícia‟. (TUCHMAN, 1978, p. 51, sobre notícias „duras‟ e „leves;
HUGHES, 1940, p. 67, sobre notícias „grandes‟ e „pequenas‟; e ROSHCO, 1975, p. 10-
12, sobre a „novidade‟, „imediaticidade‟ e „atualidade‟ das notícias.). Mas, se no relato
do crime, se parte do pressuposto de que algo noticiável deveria ter acontecido no
passado imediato, este algo necessário é, de fato, apenas raramente o crime em si. De
200 crimes relatados na amostra previamente descrita dos jornais da área de New York,
aproximadamente 100 eram casos de crimes comuns e 70 eram casos de crime de
colarinho branco. Apenas 6% dos relatos iniciais de crimes de colarinho branco
claramente descreviam os crimes que ocorreram seis meses passados desde a data da
publicação, isto em parte porque a criminalidade indicada era tipicamente um padrão de
fraude ou corrupção que não parecia começar ou terminar em uma data particular. Mas
mesmo para crimes comuns, tais como roubos, assaltos aos correios ou a aeroportos, e
vendas de produtos contrabandeados, apenas 30% dos casos foram descritos depois de
passados seis meses desde a publicação do primeiro artigo de jornal referindo-se à
violência produzida.
Uma indicação semelhante apareceu em nossa análise de aproximadamente
1.400 artigos sobre crimes publicados no Los Angeles Times em 1981, 1982 e 1983.
Incidentes e casos de crimes foram codificados separadamente: os crimes eram
codificados como casos singulares quando já tinham sido processados até o ponto da
prisão ou para mais além disso (acusação, triagem de indícios e provas, sentença,
procedimentos pós-prisionais, etc.). Destes artigos jornalísticos sobre o crime, apenas
45% relatavam incidentes criminais ou crimes que não tinham sido oficialmente
processados até o ponto da prisão do agressor. Se o potencial noticiável do crime
pudesse ser explicado pelas expectativas violadas pelo crime em si – a experiência da
vítima do inesperado na forma de surpresa, ou as ondas de choque liberadas na
consciência do público, quando da consumação do crime – então deveríamos encontrar
uma predominância significativa de incidentes criminais recentes nas notícias sobre o
crime.

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Enquanto as notícias enfatizam eventos de ontem, os crimes abordados nos


jornais diários não necessariamente aconteceram no dia anterior ou mesmo no passado
recente. Alguns aspectos da narrativa sinalizam uma atualidade que faz o crime
noticiável, mas o elemento atual é menos frequentemente e menos claramente a
incidência do crime do que uma característica do caso criminal, um evento subsequente
afetando a vítima, ou uma vicissitude alegada da vida do criminoso. Se a violação do
„inesperado‟ de algum modo deve qualificar o crime como noticiável, o elemento
surpresa necessário não é uma questão da experiência da vítima, e tampouco do choque
empático por parte do leitor de que algo tão horrível também pode lhe acontecer.
Mais diretamente, deveríamos questionar se a surpresa é uma característica
comum, menos essencial, na experiência de ler notícias sobre o crime. Aqui eu
solicitaria ao leitor que passasse em revista sua experiência própria, de modo a
evidenciar que os mais ávidos leitores de narrativas de crimes particulares podem ser
justamente aqueles que menos se surpreendem. Durante o caso Watergate, não foram
necessariamente os leitores republicanos que eram os mais religiosos seguidores do
partido a seguirem a narrativa midiática sobre o caso; muitos americanos de esquerda se
rejubilavam com as revelações diárias do que eles consideravam como mais provas do
que já acreditavam desde há muito.
Crimes especialmente noticiáveis não parecem ser eventos especialmente
inesperados, seja para a vítima ou para os leitores de notícias. De acordo com
levantamentos de opinião bastante publicizados, os americanos acreditam que uma
proporção substancial de políticos não declarados é corrupta. Ainda assim uma acusação
oficial de corrupção contra um político sempre gerará novas coberturas midiáticas do
caso. Bancos são assaltados muito mais frequentemente que outros tipos de
estabelecimentos comerciais, mas ainda assim permanece distintamente noticiável como
um lugar de ocorrência de crimes.
Em síntese, se as notícias sobre crimes inevitavelmente carregam um senso de
inesperado, o que este senso exatamente significa, não é algo óbvio. Talvez, seguindo
Durkheim, deveríamos redirecionar a explicação e considerar se o crime é noticiável por
seu valor simbólico em articular o normativamente esperado.
As limitações históricas da perspectiva durkheimiana
Durkheim (1958, p. 67; 1964, p. 108) argumentou que no ato de violação do
social, os desviantes podem, de fato, promover o consenso coletivo – a coesão
normativa, a integração moral da sociedade, um senso generalizado de ordem na
sociedade – ao oferecer ocasiões para reações massificadas contra o desvio. As notícias
sobre crimes podem ser o melhor exemplo contemporâneo que Durkheim tinha em
mente. A leitura de notícias sobre crimes é uma experiência ritual coletiva. Lidas
diariamente por uma expressiva parcela da população, noticiais sobre o crime geram
experiências emocionais em leitores individuais, experiências que cada leitor pode
assumir que são compartilhadas por muitos outros. Muito embora cada leitor leia
isoladamente, fenomenologicamente a experiência poder ser uma coletiva
„efervescência‟ emocional de indignação moral. Mas a aplicação da perspectiva
durkheimiana na análise de notícias sobre o crime requer um raciocínio torturado.
Há uma diferença histórica fundamental entre os sentidos sociais das notícias
sobre o crime contemporâneas e aquelas das cerimônias públicas de rotulação desviante
que Durkheim tinha em mente e que Kai Erikson (1966) documentou em seu celebrado
livro sobre os puritanos do século dezessete. Narrativas contemporâneas sobre o crime
enfatizam as fases da justiça criminal que precedem a punição. Em nosso conjunto de
informações sobre notícias de crimes publicadas nos jornais da área de Nova York entre

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1974 e 1979, a perspectiva da autoridade oficial, como representada por uma descrição
de uma ação ou comentário por parte de um agente de aplicação da lei, estava presente
em menos da metade dos artigos analisado. Aproximadamente 65% dos artigos
apareciam em uma fase anterior à disposição, quando a conclusão das investigações e
alegações oficiais ainda estava indefinida. Menos de 12% dos casos primeiramente
aparecia nas notícias durante ou depois da fase de sentença. Em linhas gerais, a leitura
contemporânea de notícias sobre o crime mais desconcerta do que reafirma a ordem
social.
O estudo previamente citado sobre o Los Angeles Times oferece um suporte
adicional a essa assertiva. Aproximadamente 45 dos artigos de 1981, 1982 e 1983 (n =
1,384) tratavam de incidentes ou eventos criminosos como distintos casos de crime ou
crimes relatados como oficialmente processados até o ponto da prisão ou para mais
além. Há, portanto, uma variedade de indicadores de que as notícias sobre o crime
provocam tantas questões sobre a integridade coletiva quanto resolvem; sua estrutura
parece tão propensa a aumentar as dúvidas sobre a ordem social, mediante a
publicização de crimes que ainda são casos criminais em aberto, quanto a fortalecer um
senso de ordem coletiva mediante a celebração de um triunfo do poder coletivo sobre os
desviantes e sobre a desordem8.
Em uma perspectiva histórica de tempo longo, o jornal moderno aparece como
uma estrutura social distintiva para a observação coletiva do desvio, uma estrutura
dramaticamente diferente daquela que existia antes do século XIX. Pouco antes de um
jornal de massas de domingo ter sido fundado, na Inglaterra dos anos de 1830, as
notícias sobre crimes circulavam em broadsheets9. Um dos últimos e mais bem
sucedidos broadsheets foi amplamente disseminado nos anos de 1820; a „Última
confissão e fala antes da morte‟ do assassino de Maria Marten vendeu mais de 1.100.00
cópias (WILLIAMS, 1978, p. 43). Antes do século XIX, nas sociedades primitivas e nas
sociedades ocidentais, entre os puritanos de Erikson e entre os primitivos analisados por
Durkheim em seu livro sobre religião (1965), o desvio era encarado como um símbolo
público de massas de forma mais enfática, mediante formas exemplares de punição e de
fofoca correspondente, mesmo depois qua dúvida sobre a responsabilidade criminal era
resolvida. Broadsheets eram escritos para detalhar o comportamento do condenado
durante as torturas: „Os mais vendidos eram a literatura sobre os enforcamentos. Estes
eram as últimas confissões de morte dos assassinos e também uma justificativa para
suas execuções‟ (HUGHES, 1940, p. 140). O puritano rebelde era primeiramente posto
em julgamento, então postado sobre um estrado para a exibição pública e feito alvo
sermão, isto depois de a punição ser decidida e o rebelde ser conduzido por oficiais que
simbolizavam a identidade coletiva da sociedade. Julgamentos sobre o exercício de
magia, nas colônias americanas, e através da Europa medieval eram instrumentos de
dramatização da vontade coletiva de execução do condenado, e não processos em que
um resultado problemático era alvo de escrutínio por parte de uma oposição habilitada
(CURRIE, 1968).
Em sociedades ocidentais, a comunicação de massas para a disseminação de
notícias sobre o crime primeiramente ameaçou a confiança an ordem coletiva, então,
com a emergência da mídia impressa, veio a servir o interesse oficial na ordem social, e,
por fim, com o advento do jornal diário, mais uma vez assumiu um papel de provocação

8
Ver também Garofalo (1981): „a imprensa dá pouca atenção aos processos do sistema de justiça
criminal‟, citando três estudos. Mas conferir Roshier (1973, p. 33), sobre os jornais britânicos: „ todos os
jornais deram uma impressão exagerada das probabilidades do agressor ser apanhando pela polícia e,
quando apanhado, de ser sancionado com uma punição séria‟.
9
Folhetos de notícias e publicidades caracterizados pelo formato vertical longo.

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do público. Chibnall (1980, p. 180) descobriu que na Grã-Bretanha, na idade média,


antes do advento da mídia impressa transmitindo notícias sobre crimes, as baladas de
trovadores frequentemente menosprezaram a função de controle social mediante a
dramatização do desafio heróico dos fora-da-lei. Então, no século XVII, quando os
panfletos e broadsheets emergiram para dar uma forma escrita às notícias de crimes,
eles enfatizavam „últimos discursos antes da morte‟ em que as autoridades oficiais,
muito frequentemente através de palavras citadas (ou inventadas) do condenado, exibia
os terríveis custos do crime e louvava o caminho da virtude. Mas o jornal do século XXI
oferece um formato muito menos moralista para notícias sobre o crime. Em muitos
aspectos o jornal mais claramente celebra do que desfigura moralmente os criminosos 10.
Como Foucault (1979) analisou a mudança histórica no sentido social do desvio,
em sociedades anteriores ao Iluminismo o processo de adjudicação, no âmbito da justiça
criminal, era privado (como simbolizado pelos procedimentos na „câmara estrela 11‟) e a
punição era pública (como exemplificado pelas elaboradas cerimônias de tortura e de
execução); em sociedades posteriores ao Iluminismo, julgamentos tornaram-se o drama
público da justiça criminal, enquanto que a punição foi retirada para a privacidade das
prisões, emergindo publicamente somente raramente e, nesses casos, de forma
envergonhada. Antes do século XIX, a perspectiva do público sobre o desvio podia ter
tido um efeito moralmente integrador sobre a comunidade; mas fazer o mesmo tipo de
análise das notícias atuais sobre o crime implica ignorar sua organização social
contemporânea distintiva.
Um sub-padrão de classe social é notável nesse contexto. Quanto mais alto o
nível educacional e econômico dos leitores de um jornal, tanto mais este parece
empregar uma forma que provoca mais do que resolve as ansiedades morais dos seus
leitores. Comparando os jornais New York Times e Daily News, de Nova York, estudos
apontam que o último é mais sensacionalista e que contem uma maior proporção de
notícias sobre o crime (DEUTSCHMANN, 1959). Mas, comparando as narrativas sobre
crimes publicadas nos dois jornais, há uma pequena diferença no fato relatado. Ambos
se pautam essencialmente nas mesmas fontes e registros policiais. A diferença repousa
na linguagem utilizada para descrever o crime.
O Daily News moraliza, enquanto o New York Times usa o que é
convencionalmente considerado como termos técnicos, emocionalmente neutros, em
particular o formalmente não-preconceituoso, a linguagem oficialmente regulada da
corte e dos advogados (MEYER, 1975). Com efeito, o Daily News relata a pesca ilegal
de mexilhões subdimensionados como mexilhões que foram „apanhados‟, enquanto que
o New York Times refere-se ao evento como um „furto‟. O New York Times, sob uma
manchete de tamanho moderado, descreve um conluio em que oficiais de uma
companhia privada pagaram em dinheiro para que oficiais de alfândega assegurassem o
aceite de lâmpadas fora das especificações legais, como suborno; enquanto que o Daily
News estampa uma manchete enorme de capa: „Trapaça subterrânea com lâmpadas‟. A
diferença, que se torna ainda mais pronunciada quando se compara os jornais diários
contemporâneos nos EUA com aqueles publicados há sessenta anos, é que os jornais
com leitores de uma classe social mais alta deixam o exercício de execração moral para
os leitores, ao menos enquanto questão formal; enquanto jornais com leitores de uma
classe social relativamente mais baixa conduzem o coro de invectivas. Portanto, parece
que quanto mais moderno o jornal, ou quanto mais formalmente educados os leitores,

10
Os crimes abordados na mídia de entretenimento, contudo, pode seguir o padrão durkheimiano. Na TV,
mas nãos nos jornais, a audiência aprende que „o mal sempre é punido, no fim‟. Ver Schattenberg (1981).
11
Denominação para a corte judicial inglesa situada no palácio de Westminster, Inglaterra.

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tanto mais parece que as notícias sobre o crime são estilizadas para mais provocar do
que para resolver dúvidas12.
Leitura diária de notícias sobre crimes como um exercício ritual moral
Muito embora a freqüência de narrativas sobre crimes de homicídio, assaltos
violentos e estupros devam ser evidências de uma insensibilidade inculta no público
moderno, uma interpretação oposta é mais reveladora e mais consistente com os padrões
gerais de noticiais sobre crimes. O interesse é menos mórbido do que inspirador. Se
abordagens do crime violento mostram ao extremo a ausência de sensibilidade com a
qual membros de nossa sociedade podem tratar-se reciprocamente, o apetite dos leitores
por tais narrativas sugere que eles não são tão grosseiros e rudes a ponto de considerar
como evidente uma insensibilidade pessoal destrutiva. O fato de que, assaltos à
propriedade são menos noticiáveis do que assaltos à pessoa indica que as preocupações
fundamentais dos leitores são mais humanísticas do que materiais. Ou ainda, ao ler
sobre mais um crime brutal, os leitores podem esforçar-se em sustentar suas convicções
de que sua sensibilidade moral própria não foi ainda brutalizada a ponto de uma
indiferença fatigada. A predominância de narrativas de crimes violentos nos jornais
contemporâneos pode ser entendida como servindo ao interesse dos leitores em recriar
cotidianamente suas sensibilidades morais através do choque e do pulso da ofensa e da
violência.
Em vez da ideia empiricamente ambígua de que o crime se torna interessante na
medida em que é „inesperado‟, e no lugar de uma simples invocação das ideias de
Durkheim, argumentarei que notícias sobre o crime é tida por interessante em um
processo através do qual os adultos, na sociedade contemporânea, desenvolvem suas
perspectivas individuais sobre questões morais de relevância eminentemente pessoal,
ainda que de modo generalizado.
Cada uma das de notícias sobre o crime aponta para um tipo de questão moral e
não-criminal com a qual os adultos são confrontados diariamente. Primeiramente,
narrativas sobre o crime com implicações sobre competência e sensibilidade pessoal são
tomadas como interessantes porque os leitores sentem que devem lidar com questões
análogas na vida cotidiana. Em interações rotineiras com os outros, devemos fazer
pressuposições sobre suas qualidades essenciais, pressuposições sobre as competências
geracionais do jovem e do velho, sobre qualidades associadas ao gênero, ou sobre
qualidades como inteligência (que atualmente são menos politicamente controversas,
mas não mais visíveis que as competências supostamente associadas com a geração e
com o gênero). Se crianças podem assaltar bancos, deveríamos, então, levar a sério, em
relação ao nosso filho de sete anos de idade, o postulado de que ele gostaria de matar
seu irmão mais novo? Se há uma „Vovó Mafiosa‟, deveríamos nos preocupar com a
mulher idosa atrás de nós, na fila do supermercado, que pode ter a intenção letal de
avançar com seu carrinho sobre o nosso traseiro?
Também devemos constantemente fazer pressupostos sobre nossas próprias
competências e sensibilidades essenciais. A questão da audácia é encarada não somente
por criminosos. Quão audacioso, quão engenhoso, posso eu ser? Seria admiravelmente
audacioso; apenas razoavelmente cauteloso; ou realmente imprudentemente tolo em
submeter um artigo para publicação neste esboço atual? Notícias sobre o crime são de
amplo interesse porque dialogam dramaticamente com questões que são de relevância
direta para os desafios existenciais dos leitores, indiferente se os leitores estão

12
Conferir Schudson (1978, p. 119): „Talvez... o Times estabeleceu-se como o „alto jornalismo‟. Porque
adaptou-se à experiência de vida das pessoas, cujas posições na estrutura social lhes permite o maior nível
de controle sobre suas próprias vidas‟.

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preocupados ou não com a possibilidade de uma desgraça pessoal tornando-se vítimas


do crime.
De maneira semelhante, o segundo grupo de narrativas de notícias sobre o crime,
aqueles que retratam ameaças aos centros sagrados da sociedade, são considerados
interessantes porque os leitores entendem que eles próprios devem trabalhar, dia após
dia, para definir as perspectivas morais sobre questões alusivas às entidades coletivas. O
interesse em tais narrativas não advém somente da necessidade prática de avaliar a
segurança física de diferentes lugares, mas dos encontros inescapáveis com enigmas da
identidade coletiva. Na vida burguesa contemporânea, questões de segurança pessoal
são de menor relevância, quando comparadas a questões sobre o caráter moral coletivo
– questões mundanas, recorrentes, tais como: O que é um lugar „adequado‟ (moralmente
limpo) para levar à família para jantar?
A questão levantada por este tipo de notícia sobre o crime – a sociedade se
mantem integrada? – constitui a forma global de questões colocadas mais estreitamente
pelos leitores em suas rotinas diárias. Nos locais de trabalho cotidianos e concretos,
você é capaz de sentir a identidade coletiva do universo em que você está empregado?
Se assim é, o seu comportamento terá um significado de alguma forma ainda em falta:
você acomodará seu comportamento de algum modo a complementar ou contrariar o
caráter do todo. Os sociólogos têm por muito tempo argumentado que fatos sociais são
reais, que há uma realidade para a identidade coletiva que transcende a experiência
individual. O debate sobre a realidade da identidade coletiva é um incômodo não
somente para teóricos da sociologia, mas para os leigos e para os sociólogos em suas
ações práticas cotidianas.
As formas dessa questão, como aparecem nas vidas de cada membro da
sociedade, são extremamente diversas. Alguns se preocupam sobre o nível de „pujança‟
ou de „bem-estar‟ da „economia‟ (ou „‟os militares, ou suas „famílias‟). Nessa
ansiedade, „a economia‟ é endereçada como um todo, como uma coisa que
presumivelmente existe objetivamente, não apenas como uma síntese metafórica
conveniente para resumir alguns agregados arbitrários de eventos econômicos
individuais. Mas a medida objetiva de „sua‟ identidade está sempre em disputa. „A
economia‟ é recorrentemente experenciada como uma entidade precária coletiva, cuja
integridade pode ser ameaçada por forças ocultas, uma entidade que sobe e desce em
resposta a pressões que ninguém tem sido capaz de localizar precisamente. Muitos
leitores de notícias adaptam seus humores emocionais cotidianos, assim como suas
decisões de consumo e de investimento à base de um sentimento de otimismo ou de
pessimismo sobre o destino da „economia‟.
Ao passo que os membros de uma sociedade continuamente confrontam
questões de competência pessoas e coletiva, eles desenvolvem um apetite para notícias
sobre o crime. Preocupados sobre calcular equivocadamente suas habilidades pessoais e
a dos outros, as pessoas acham interessante o questionamento da competência moral
pessoal que é frequentemente dramatizada intensamente nas narrativas sobre crime.
Repetitivamente acessando se, como e quão efetivamente certas pessoas, organizações e
lugares representam a identidade coletiva, os membros da sociedade consomem contos
sobre a integridade vulnerável de personagens instituições e lugares.
Em relação á terceira categoria de notícias sobre o crime, narrativas que refletem
tensões pré-existentes entre grupos, as pessoas em conflitos políticos persistentes
frequentemente estão sedentos por acusações morais para serem usadas contra o caráter
de seus oponentes. Eles encontram oportunidades satisfatórias nas noticias sobre crimes.
Finalmente, que processo de estimulação diária pode estar por atrás do gosto
amplo por notícias de crimes de colarinho branco? Eu sugeriria que o potencial

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noticiável de crimes de colarinho branco é construído em uma relação dialética com as


rotinas morais cotidianas. Os crimes das pessoas em ocupações superiores de colarinho
branco são especialmente noticiáveis, não porque eles são chocantes ou surpreendentes
– não porque presume-se que tais pessoas devem ser mais decentes, respeitáveis ou
confiáveis que os trabalhadores de colarinho azul ou do que os desempregados; mas
porque elas devem ser tratadas tal como se elas assim o fossem.
É certamente inadequado atribuir o potencial noticiável de crimes de colarinho
branco às expressões chocadas de honra. Leitores de notícias mantem apetites por
narrativas de crimes de colarinho branco, dia após dia – outro político pego recebendo
suborno!; outra corporação multinacional pega corrompendo governos estrangeiros! –
enquanto crimes comuns cometidos por jovens masculinos pobres pertencentes a
minorias étnicas continuam em suas redundantes e não noticiáveis procissões, porque
todos os dias, de infinitas formas, leitores de jornais apenas sentem-se forçados a
performatizar confiança em e deferência em direção à tradição. Indiferente do quão
cínica seja a visão pessoal sobre a moralidade dos negócios, dos processos políticos e
dos líderes da vida institucional civil, ele ou ela vive cercado pelos símbolos de seus
status superiores: suas torres de escritórios, suas qualidades propagandeadas nas placas
do metrô ou do ônibus ou nos comerciais de TV, seus nomes nos hospitais. Os leitores
de narrativas midiáticas sobre crimes de colarinho branco recordam que fizeram muitos
pagamentos àquela companhia; que foram deslocados por aquela companhia de avião
ou de ônibus; que eles tiveram suas vizinhanças ou ambientes recreativos definidos por
aqueles políticos ou líderes leigos; que em cada dia de trabalho devem prestar
deferência para a pessoa naquele tipo superior de status. O potencial noticiável do crime
de colarinho branco deve muito ao caráter moral rotineiro da divisão de trabalho. (Sobre
a „divisão moral do trabalho‟, ver Hughes, 1971).
Eu argumentei que as notícias sobre o crime atraem interesse a partir de
dilemas confrontados rotineiramente, não de preocupações focadas no crime. A leitura
de notícias sobre o crime não é um processo de reflexão moral ociosa do passado
vivido; mas uma atividade eminentemente prática e orientada para o futuro. Ao ler
notícias sobre o crime, as pessoas reconhecem e usam o conto moral no contexto da
narrativa midiática para orientarem-se em direção a dilemas existenciais cujo confronto
elas não podem evitar. Que nível de competência eu deveria imputar a aquele menino de
10 anos? A economia está se fortalecendo ou enfraquecendo? Deveriam ser ouvidos e
respeitados os argumentos políticos do PLO (Palestine Liberation Organization)? Sou
sábio ao prestar deferência fervorosa ao patrão, ou deveria equilibrar devoção aparente
com cinismo auto-respeitador?
O conteúdo de notícias sobre o crime não oferece soluções, nem mesmo
conselhos sobre como o leitor deveria resolver os dilemas que ele confrontará. Em vez
disso, as notícias sobre o crime oferecem material para um desenvolvimento literal de
perspectivas morais que devem ser aplicadas a dilemas da vida cotidiana. O crime está
nos jornais de hoje, não porque contradiz as crenças que os leitores tiveram ontem, mas
porque os leitores buscam oportunidades de reinventar atitudes morais que terão de usar
hoje.
A ideia de que as notícias sobre o crime servem aos interesses dos leitores em
performatizar um desenvolvimento moral cotidiano explica não apenas o conteúdo, mas
vários aspectos da estrutura das notícias sobre os crimes. As noticiais sobre o crime
apresentam detalhes sobre as identidades da vítima e do agressor, e sobre o tempo e o
lugar do crime. Desta forma, isto encoraja os leitores a ver o evento como
potencialmente próximo ao contexto de sua própria experiência. Esta forma serve para
mobilizar a resposta do leitor na medida em que causa um choque moral ou convida ao

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ultraje; este é um tipo de „notícia quente‟ (HUGHES, 1940, p. 234), especialmente


provocadora de uma experiência emocional, induzindo uma resposta de „organismo
completo‟ (PARK, 1940, p. 670). O foco da notícia sobre o crime sobre as fases iniciais
da justiça criminal, sobre as fases posteriores à adjudicação formal e à punição, também
provocam as emoções dos leitores, desafiando-os a reagir em relação às fachadas de
incerteza presentes no caso.
Como vários estudos têm documentado (GRABER, 1980, p. 49; SHERIZEN,
1978), as notícias sobre o crime enfatizam os criminosos muito mais do que as vítimas.
Em nosso conjunto de informações sobre a área de Nova York desde a metade dos anos
de 1970, um comentário feito pela vítima ou por um representante da vítima foi relatado
em apenas 21% de 527 artigos, comparado aos 162 comentários por parte da defesa e
185 comentários por parte da promotoria. A ênfase nas vítimas teria uma relevância
prática substancial para os leitores, se eles se preocupassem em aprender como evitar os
custos do crime. Alguns jornais provincianos de „jogar fora‟ respondem diretamente a
essas preocupações. Diferentemente dos maiores jornais metropolitanos, os jornais
provincianos frequentemente apresentam notícias sobre o crime a partir do relato de um
policial local que conta a história da perspectiva interpretada da vítima (por exemplo:
„Quando dirigia de volta à casa dela, por volta das 23h, no dia cinco de Setembro, uma
residente do quarteirão 600, de Lucerne, contou que viu um carro desconhecido em seu
caminho. Quando ela saiu do carro...‟ ) e conclui com uma advertência explícita sobre o
que a vítima deveria ter feito para evitar a vulnerabilidade. Os mesmos leitores não são
menos pragmáticos em suas perspectivas sobre as notícias sobre o crime, mas suas
preocupações práticas parecem ser diferentes – mais amplas e mais generalizadas
quanto à sua relevância.
A ênfase dos jornais citadinos sobre o criminoso, bem mais do que sobre a
vítima, é compreensível se entendemos que as preocupações do leitor estão menos
concentradas em evitar a vitimização do que em desenvolver posições morais sobre as
quais o seu próprio comportamento será embasado. Se o comportamento da vítima é
geralmente tão importante quanto o do criminoso para o entendimento da causalidade da
vitimização, a ênfase no comportamento criminoso estimula as sensibilidades morais
com as quais o leitor pode desejar identificar-se. Cada dia, em uma miríade de formas, o
leitor das notícias metropolitanas deve desenvolver sua posição em dimensões de
insensibilidade moral, audácia pessoal e fé nos empreendimentos coletivos, e estas são
as questões fundamentais em relação às quais as notícias classificam os criminosos
como desafiadores da ordem social.
Esta perspectiva sobre o interesse em notícia sobre o crime torna compreensível
a contradição aparente de redundância substantiva e de interesse constantemente
continuado do leitor. Posto lado a lado, as narrativas sobre crimes violentos publicadas
em uma sequencia de dias podem parecer bastante semelhantes. Mas são experenciadas
como novidade, como „notícia-novidade‟ („new-s‟), porque as questões que abordam
emergem reiteradamente nas vidas sociais dos leitores.
A experiência de ler notícias sobre o crime induz o leitor a uma perspectiva útil
para a tomada de posições sobre dilemas morais existenciais. Os dilemas de imputação
de competência moral pessoal e de afirmação da própria sensibilidade moral, de honrar
os centros sagrados da vida coletiva, de acreditar e de desacreditar os oponentes
políticos, e de prestar deferência à superioridade moral das elites, não pode ser resolvida
por dedução de um discurso racional. Nestas áreas morais, uma medida de fé – de
compreensão da posição ou do exercício de um compromisso que sublinha as razões
que podem ser dadas paras as crenças individuais – é uma parte essencial da vida social
cotidiana. As notícias de crime, de acordo com o exposto, mobilizam o leitor mais para

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a experiência de emoções do que para uma lógica discursiva, desencadeando antes raiva
e medo do que argumentação.
De forma semelhante a vitaminas úteis ao corpo apenas por um dia, e como
exercícios físicos, cujo valor, decorre de sua prática recorrente, notícias sobre o crime
são experenciadas como interessante pelos leitores em razão de seu lugar em uma rotina
moral cotidiana. A localização mesma das narrativas de crimes nos jornais indica que
editores e leitores entendem dessa forma. Muito embora narrativas menores sobre
crimes locais tenham um espaço regular nas seções de jornal reservadas para os eventos
da cidade, as narrativas sobre crimes podem ser espalhadas de forma imprevisível ao
longo das seções gerais de notícias; elas não são ordenadamente confinadas em uma
seção substancialmente especializada como notícias de esportes ou finanças. A
localização estrutural das notícias sobre crimes reproduzem o caráter imprevisível do
fenômeno do crime, e transferem para o leitor a medida de responsabilidade em
organizar o lugar do mesmo em sua vida particular.
Os jornais modernos parecem enfatizar este papel. Quanto mais moderno e
sofisticado o jornal, quanto menos moralista é o seu estilo narrativo; quanto mais impõe
responsabilidade pela reação moral em relação ao crime sobre o leitor enquanto questão
formal. Outro aspecto moderno de notícias sobre o crime, a ênfase nas fases iniciais do
sistema de justiça criminal, situa a responsabilidade pelo „convencimento‟, - tanto em
um sentido estrito, relacionado à justiça criminal, quanto em um sentido existencial de
compromisso mediante a fé, - sobre o leitor.
Esta responsabilidade não é necessariamente desejada pelos leitores, ainda que
pareça ser que os mesmos reconheçam que não podem ignorar ou escapar dela. Muito
embora as pessoas geralmente temam o crime e critiquem as notícias como
demasiadamente negativas e perturbadoras, elas aparentemente consideram ainda mais
inquietante não lê-las. Para entender o que caracteriza as narrativas e notícias sobre o
crime, deve-se explicar a aflição voluntária de experiência de perturbação emocional
sobre o self individual, a nível coletivo das massas, dia após dia, que atravessa a
sociedade moderna. A leitura de notícias sobre o crime parece servir ao propósito
semelhante ao do banho matinal, do exercício físico rotineiro, e de fazer a barba
(DOUGLAS, p. 1966): o ritual, o valor não racional da experiência que é, de certa
forma, chocante, inconfortável, e auto-destrutivo, e que é voluntariamente assumido
pelos adultos como reconhecimento do seu fardo individual em sustentar a fé em um
mundo social ordenado.
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ECKERT, Cornélia & ROCHA, Ana Luiza Carvalho da. Aventuras antropológicas nas cidades
brasileiras: na trilha das trajetórias acadêmicas das antropólogas “urbanas” Eunice Durham e Ruth
Cardoso. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v.1, n.3, p. 39-56, novembro
de 2017. ISSN 2526-4702.
Artigo
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

Aventuras antropológicas nas cidades brasileiras: na trilha das


trajetórias acadêmicas das antropólogas “urbanas” Eunice Durham e
Ruth Cardoso

Anthropological adventures in brazilian cities: on the trail of the intellectual trajectories of


"urban" anthropologists Eunice Durham and Ruth Cardoso
Cornelia Eckert
Ana Luiza Carvalho da Rocha

Resumo: O presente artigo trata da pesquisa realizada junto ao Banco de Imagens e Efeitos
Visuais/Biev (https://www.ufrgs.br/biev/), do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social/UFRGS cujo tema foi o estudo da geração de antropólogos e
antropólogas que inauguraram e consolidaram a estilística da prática da etnografia das e nas
cidades brasileiras nos moldes de uma produção “crítica e cosmopolita”. As pesquisas
destes pesquisadores nos permitem acessar o tratamento semântico que deram ao tema da
condição de vida no contexto dos grandes centros metropolitanos, confrontando as
aprendizagens de paradigmas tradicionais e contemporâneos na abordagem da “ação” e da
“representação” de indivíduos e grupos sociais na formação da sociedade capitalista no
Brasil. O artigo aborda as conexões entre as obras de tais antropólogos e antropólogas nos
termos de uma “epistemologia do conhecimento” orientadora de uma atualização dos
estudos das memórias do viver urbano nas cidades brasileiras. Palavras-chave: narradores
urbanos, etnografia, antropologia urbana

Abstract: This article deals with the research carried out with the Visual and Image Bank /
Biev (https://www.ufrgs.br/biev/), of the Postgraduate Program in Social Anthropology /
UFRGS, whose theme was the study of the generation of anthropologists and
anthropologists who inaugurated and consolidated the stylistic practice of ethnography in
and in Brazilian cities as a "critical and cosmopolitan" production. The researches of these
anthropologists allow us to access the semantic treatment that they gave to the theme of the
condition of life in the context of the great metropolitan centers, confronting the learning of
traditional and contemporary paradigms in the approach of the "action" and
"representation" of individuals and social groups in the formation of capitalist society in
Brazil. The article discusses the connections between the works of such anthropologists in
the terms of an "epistemology of knowledge" guiding an update of the studies of memories
of urban living in Brazilian cities. Keywords: urban narrators, ethnography, urban
anthropology

Em 200713, tivemos a oportunidade de apresentar neste GT o paper intitulado


Narradores urbanos: etnografias nas cidades brasileiras, pesquisa desenvolvida no
âmbito do nosso projeto Banco de Imagem e Efeitos Visuais14, LAS – Laboratório de
Antropologia Social, PPGAS – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,

13
Artigo originalmente apresentado no 33° Encontro Nacional da ANPOCS, em 2009.
14
Ver: Site oficial Biev, https://www.ufrgs.br/biev/;
Site Biev/Produções, https://www.ufrgs.br/biev/?page_id=2364.

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IFCH – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas e ILEA – Instituto Latino-Americano


de Estudos Avançados, Universidade Federal do Rio Grande do Sul 15, consolidado no
objetivo de tratar da memória coletiva e trajetórias urbanas nas cidades brasileiras.
Naquela ocasião, abordamos os aspectos teóricos e metodológicos do projeto “filmico”
que retraça o percurso de conformação do pensamento antropológico sobre a cidade
moderna brasileira, tendo como foco central a trajetória intelectual de “antropólogos
urbanos” no Brasil ao interpretarem a cidade pesquisada. Nesta trajetória, a série situa o
personagem do antropólogo a partir de seu lugar de habitante de uma grande metrópole,
através do convite para um deslocamento pela narrativa de suas experiências
intelectuais e acadêmicas, no tempo e no espaço. Em seu métier de pesquisar a cidade
colocam-se como personagens que elaboram um olhar teórico-conceitual geracional em
torno do viver a cidade no mundo contemporâneo, estratégia encontrada para a leitura
da produção sobre experiência etnográfica entre a cidade e o seu narrador, o
antropólogo.
Em 2007, enfocamos as trajetórias dos antropólogos brasileiros Gilberto Velho
(Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro) e Ruben Oliven
(Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
Apresentamos esses estudos no formato de uma série documental16 que viabiliza
o reconhecimento de uma “estilística” da antropologia (CARDOSO DE OLIVEIRA,
1995, 177 a 189) em seus estudos da e na cidade pela sua potencialidade de gerar
conhecimento sobre o viver no contexto urbano em suas reflexões conceituais neste
campo.
Dando continuidade a este projeto, agradecemos aos coordenadores desse GT a
oportunidade de apresentar o resultado de nosso trabalho sobre as trajetórias
interpretativas de Eunice Durham e Ruth Cardoso.
O suporte filmico de trazer os antropólogos urbanos brasileiros como
personagens que narram suas pesquisas percorrendo a complexidade do conhecimento
simbólico produzido em e sobre nossas cidades, ressoa nas múltiplas interpretações das
experiências de habitar nestes contextos. Com esta motivação persegue-se o acesso ao
excedente de sentidos (RICOEUR, 2000 e CARDOSO DE OLIVEIRA, 1995, p. 177-
189) que não nega as noções que compreendem a cidade (família, migração, pobreza,
homogeneidade, heterogeneidade, deslocamento, pedaço, violência, fala do crime,
polifonia, desordem, estilo de vida, sujeitos psis ou éticos, resistência, franja,
heterogeneidade), mas não o legitima em uma lógica explicativa. Antes é dado um
tratamento semântico nos documentários, abrindo para múltiplos jogos de interpretação,
os acontecimentos do saber e da prática antropológica.
Personagens de uma comunidade interpretativa
Com um diálogo sistemático com as ciências sociais e políticas, as antropólogas
Ruth Cardoso e Eunice Durham em São Paulo, são pioneiras em inserir
questionamentos da tradição antropológica, no contexto da cidade em relação ao
fenômeno urbano nos anos 60. No Rio de Janeiro, como mostramos alhures, a partir de
70, Roberto DaMatta e Gilberto Velho (que orientaram nos Programas de Pós-

15
Ver www.biev.ufrgs.br.
16
Ver: Narradores urbanos, Gilberto Velho, https://goo.gl/ktw5ZW;
Narradores urbanos, Tereza Caldeira, https://goo.gl/uaV7L8;
Narradores urbanos, Ruben Oliven, https://goo.gl/SRhT1V;
Narradores urbanos, Jose Magnani, https://goo.gl/RphHmc;
Narradores urbanos, Antonio Augusto Arantes, https://goo.gl/yirPDs;
Narradores urbanos, Alba Zaluar, https://goo.gl/qSc7Ex;
Narradores urbanos, Helio Silva, https://goo.gl/Y6w4kz.

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Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional Universidade Federal do Rio de


Janeiro e na Universidade Federal Fluminense), também passam a dar destaque a uma
linha de pesquisa que viria a se consolidar na antropologia brasileira, seja na
denominação de estudos sobre a sociedade urbana no Brasil seja como antropologia das
sociedades complexas no Brasil. Também nos anos 70 (1974) em Porto Alegre, essa
linha de pesquisa foi inaugurada por Ruben George Oliven no programa de
especialização em antropologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Desde então, uma geração de antropólogos foram formados por esses
precursores, consolidando uma estilística de pesquisa das e nas cidades brasileiras
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 1995, p. 179)17, configurando essa produção como
“crítica e cosmopolita” (RABINOW, 1999, p.100). Suas pesquisas trazem as pistas do
tratamento semântico que deram ao tema da condição de vida no contexto urbano,
confrontando as aprendizagens de paradigmas tradicionais e contemporâneos na
abordagem da “ação” e da “representação” de indivíduos e grupos sociais na formação
da sociedade capitalista no país. Temas como mudança e reprodução social, formação
de uma sociedade multiétnica, conflitos urbanos e poder político, relações de trabalho e
do cotidiano, construção social da identidade e das distinções sociais, do desvio e da
marginalização de minorias, da pessoa e do indivíduo, da vida na família, na
comunidade, na rede social, bem como da fragmentação das relações sociais, da
dilaceração dos valores simbólicos tradicionais e do aumento da violência, da carestia,
etc, marcam a predominâncias dos problemas sociais que se colocavam como démarche
para os estudos intelectuais. Nesse processo estava em jogo analisar a desarticulação do
sistema tradicional de produção econômico e social no país, a emergência de um estado
capitalista e democrático e a resistência às políticas militarizadas e ditatoriais no
contexto latino americano, que ocorreriam nessa conjuntura.
A construção de um campo interpretativo de antropologia urbana no Brasil
Os anos 30 a 50 no Brasil são conhecidos pela consolidação dos estudos sociais
como o surgimento das faculdades de Filosofia e Ciências Humanas nos grandes centros
do país como São Paulo e Rio de Janeiro. Nestes centros circularam professores
eminentes como Roger Bastide, Emilio Willems, Claude Lévi-Strauss, Radcliffe-
Brown, Donald Pierson, Herbert Baldus, Eduardo Galvão, Arthur Ramos, René Ribeiro,
Egon Schaden, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro sobre o tema da cultura e da
sociedade associados aos estudos etnológicos sobre etnicidade. Recife é outra
importante referência a partir dos estudos de Gilberto Freyre.
Nestes centros universitários, podemos identificar os mentores do pensamento
antropológico, sistematicamente revisitados no que compõem hoje uma vastíssima obra
de artigos e livros, onde não se pode negligenciar o papel da Anpocs como fórum dessas
reflexões.
No Brasil dos anos 50 a 60, com significativa influência dos estudos culturalistas
e funcionalistas, eclodem estudos sobre o tema das mudanças sócio-culturais advindos
dos processos de imigração/migração e aculturação. Os empreendimentos etnográficos
já eram referência metodológica da maior importância, não somente nas expedições
voltadas para o estudo das sociedades indígenas, mas nas cidades de pequeno porte na
forma de estudos de comunidade. João Baptista Borges Pereira (1994) aponta os nomes

17
Como “estilo”, analisamos as imagens do tempo que configuram o conteúdo dinâmico da imaginação
criadora de diferentes autores que foram desafiados a compreender o fenômeno urbano a partir da
interpretação antropológica do viver nas cidades brasileiras como Ruth Cardoso, Eunice Durham, Ruben
Oliven, Gilberto Velho, José C. Magnani, Tereza Caldeira, Antônio Arantes, Alba Zaluar, Hélio R. S.
Silva entre outros.

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de Emilio Willems e Egon Schaden como precursores de estudos sobre o impacto de


mudanças sócio-econômicas pelo estudo de comunidades rurais, sobretudo tratando da
aculturação de imigrantes alemães e japoneses no Brasil. Na esteira destes mestres se
constata a formação de sociólogos e antropólogos. Florestan Fernandes deve ser aqui a
principal referência no campo sociológico. Na cidade de São Paulo desenvolve pesquisa
sobre folclore e etnia, sobretudo sobre a situação do negro (na condição pós-abolição da
escravatura) discriminado tanto pela ideologia dos latifundiários em crise quanto pela
ideologia do capitalismo emergente (MELATTI, 1984, p. 16-17).
Neste período é importante destacar a influência direta que a sociologia no
Brasil recebe dos ensinamentos da Escola de Chicago. A presença de Donald Pierson no
Brasil, certamente teve peso nessa difusão, aluno que foi de Robert Park e de Louis
Wirth, mentores intelectuais das inovações sobre o estudo do fenômeno urbano
introduzidos por esse movimento. Mariza Corrêa, em seus livros publicados sobre
antropologia brasileira, traz inúmeros depoimentos desses intelectuais estrangeiros e
brasileiros, que relatam esse processo de construção das Ciências Sociais e da
Antropologia no Brasil entre os anos 1930 a 1960.
É muito instigante, entre outros, o depoimento de Donald Pierson, já
estabelecido em São Paulo a partir de 1939 quando a convite do diretor da Escola de
Sociologia e Política, organiza a disciplina “Métodos e Técnicas de Pesquisa Social”, e
começa a orientar uma série de “pequenos estudos na cidade de São Paulo” (CORRÊA,
1987, p. 43) e não há como não destacar aqui o “laboratório à la Chicago” que Cruz das
Almas foi para uma geração de alunos (Cruz das Almas: a Brasilian village,
Smithsonian Institution, 1951), exercício de campo que envolveu cientistas sociais que
consolidarão a pesquisa sociológica no Brasil. Essa conjuntura é densamente descrito no
relato de Pierson (CORRÊA, 1987), mas também evidenciado nos depoimentos de
Juarez Rubens Brandão Lopes para Licia do Prado Valladares (2005). Brandão também
relata a proximidade com que as disciplinas de antropologia e sociologia se constituíram
nesse período no Brasil e a sistemática influência recebida pela Escola de Chicago. Uma
influência que marcará os estudos sobre a cultura objetiva e subjetiva, sobre o
individualismo e a pessoa moderna, na perspectiva de uma sociologia das formas sociais
fundada por Georg Simmel e retomada pela Escola de Chicago, e mais tarde a
influência dos interacionistas que Gilberto Velho destaca em seu depoimento para
Valladares (2005).
Na Antropologia Egon Schaden tem duas alunas e as influencia ao estudo sobre
aculturação. Ruth Cardoso e Eunice Durham são “orientadas” respectivamente para
tratar dos imigrantes japoneses e italianos e iniciarão seus estudos sobre o impacto dos
deslocamentos de trabalhadores do campo para a cidade, sobretudo grupos étnicos e
seus rearranjos de formas de vida na cidade. Mesmo interessadas no tema indígena,
explica Eunice em seu depoimento que para seu orientador, “não era recomendável às
mocinhas, aventuras perigosas em terras indígenas longínquas”. Como pondera Eunice
Durham em artigo escrito para livro organizado pela ABA “com a urbanização e a
industrialização, a população rural igualmente se tornou um „outro‟, que passou a
invadir e inchar as nossas cidades” (DURHAM, 2006, p. 93). No processo de
conformação de uma massa de trabalho formal e informal na cidade, emergem os
conflitos pela segregação, discriminação e desigualdades relacionadas as diferenças
sociais e de classe, que ergue novos desafios às ciências sociais.
Estes temas serão caros à geração de antropólogos formados nos anos 60 seja
nestes centros universitários seja no exterior. Estes intelectuais articularão referências
teóricas e conceituais oriundos de diferentes paradigmas. Para Melatti (1984), a
Antropologia Urbana emerge no período como área de pesquisa importante no âmbito

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da comunidade antropológica tendo por temas predominantes a análise dos processos de


migração rural-urbana e as condições de vida do proletariado nas situações de periferia
como nas favelas. Em seguida também se destacam estudos voltados para camadas
médias, sobretudo no que tange os valores urbanos, as formas de sociabilidade
(PEIRANO, 1999, p. 242) ou problemas sobre as acusações de desvio (influência do
interacionismo simbólico com Goffman e Becker) e o reconhecimento do necessário
engajamento dos trabalhos científicos a favor de minorias. A questão do poder se
colocava como um impasse a ser tratado pela pesquisa atenta as transformações sociais
e do Estado nacional, tendo por projeto compreender a construção da realidade social
brasileira nesta conjuntura a partir da formação histórico-econômica e política da nação.
A família a caminho da cidade
Realizamos a entrevista com a Professora Eunice Ribeiro Durham , na sua sala,
o NUPES – Núcleo de Pesquisas em Ensino Superior, na Universidade Estadual de São
Paulo, em 2004. Para a elaboração do roteiro de entrevista, não conhecíamos ainda o
livro A dinâmica da cultura, organizado por Omar Ribeiro Thomaz e prefaciado por
Peter Fry, que reúne a obra da Professora e a situa em uma discussão atual. Hoje este
livro é importante referência para interpretar o trabalho de Eunice Durham.
Eunice Ribeiro Durham, diz não ser uma apaixonada por São Paulo, “não sou
bairrista, e tenho muitas críticas a essa cidade”. É com essa imagem de São Paulo que
perante nossa câmera, inicia seu depoimento. Mas é nessa cidade que por razões
familiares se enraíza e, sendo São Paulo, desde cedo, um importante centro universitário
(com doutorado desde 1934), é nessa cidade que desenvolve sua formação acadêmica.
Eunice Durham inicia seus estudos no curso de Ciências Sociais na Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras em 1951. Como escreve Eunice, este é um período de
consolidação da premissa do relativismo cultural contra os preceitos evolucionistas, no
pós Guerra. O “inovador” na época era “o funcionalismo nas suas diferentes vertentes
social e cultural, britânica e americana”, avançando aspectos iniciados na teoria e
metodologia de Emile Durkheim (DURHAM, 200, p. 20). No Brasil, repercute o
trabalho funcionalista de Florestan Fernandes (tese de doutorado A função social da
guerra na sociedade tupinambá e livre docência Ensaio sobre o método de
interpretação funcionalista na sociologia). Na USP, Eunice cita ainda a influência de
Emílio Willems, que introduz os estudos de comunidade de “inspiração funcionalista
norte-americana” (DURHAM, 2004, p. 21). Willems, em seu relato publicado no citado
livro de Mariza Corrêa
(1987) destaca que na época para difundir o funcionalismo e o culturalismo, foi
fundamental a circulação da revista Sociologia (1939) que organizou com a colaboração
de Herbert Baldus e de Donald Pierson e que conhece significativo impacto sob a
direção de Oracy Nogueira (Escola de Sociologia e Política, 1949). Willems, como
sabem, realiza um importante estudo de comunidade em Cunha publicado em 1948
(Uma vila brasileira, tb. 2edição 1962). Mas os estudos de comunidade já conheciam
fortes críticas na academia: “desse modo, criticou-se amplamente o pressuposto da
integração (cultural ou social) e seu efeito inibidor no tratamento do conflito social, sua
incapacidade de apreender a mudança e, consequentemente, a formulação de uma visão
imobilista e por isso mesmo conservadora da realidade social” (DURHAM, 1986, p.
23).
Em 1961 a 1964 realiza seus estudos na USP sob a orientação de Egon Schaden.
Sua pesquisa é então sobre os imigrantes italianos, sua movimentação entre o contexto
rural e urbano e sua assimilação em uma cidade paulista: Mobilidade e assimilação: A
história do imigrante italiano num município paulista, defendido em 1964. Em

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continuidade, sua tese de doutorado defendida com Schaden em 1967 (Migração,


Trabalho e Família. Aspectos do processo de integração do trabalhador de origem
rural à sociedade urbanoindustrial, Ano de Obtenção, 1967), trata da migração de
famílias rurais para o contexto da cidade em busca do trabalho assalariado. O eixo
temático “migração, trabalho e família no contexto urbano” já é indício de uma das mais
importantes linhas de pesquisa na antropologia nessa geração.
Para Eunice não foi o fenômeno urbano que ocupou suas preocupações, mas este
é o contexto de muitos problemas sociais a serem tratados pelo método etnográfico e
por noções antropológicas herdadas de paradigmas então em voga: estrutura social,
organização social, relações culturais e simbólicas. Como argumenta em artigo de 1986:
“trata-se de pesquisas que operam com temas, conceitos e métodos da antropologia, mas
voltados para o estudo de populações que vivem nas cidades. A cidade é, portanto, antes
o lugar da investigação do que seu objeto” (DURHAM, 1986, p. 19).
Eu fiz mais uma antropologia na cidade do que uma antropologia da cidade
Essa afirmação é reveladora de uma diferenciação colocada em relação a difusão
dos preceitos difundidos pela Escola de Chicago do estudo sobre o fenômeno urbano.
Mas, reúne dessa Escola a influência “de pensar a observação participante no contexto
urbano” (VALLADARES, 2005, p.12, citando WHYTE, 1943) e já nos abre para a
compreensão da influência na sua obra dos ensinamentos malinowskianos sobre fazer
pesquisa no contexto.
Os temas nesse contexto refletem a démarche intelectual e a tendência da época
como postulava Florestan Fernandes: “desvendar os processos de desintegração da vida
tradicional rural e a formação de uma sociedade capitalista” (FRY in DURHAM, 2004,
p. 11).
Conforme Eunice:
Eu nunca na verdade me dediquei ao fenômeno urbano. Eu, para mim, o
urbano sempre foi o contexto na qual eu estudava outros problemas. Então
tanto é que eu não creio que eu tenha desenvolvido nenhuma metodologia,
nenhuma conceituação que não fosse, digamos uma metodologia, uma
conceituação que a própria antropologia propunha de modo geral. [Eu fiz
mais uma antropologia na cidade do que uma antropologia da cidade]. Eu
comecei a estudar o que se passava na cidade a partir do meu mestrado. Eu
fiz a minha dissertação para o mestrado sobre a migração italiana para SP.
Então naquele tempo a gente já estava no fim do período de estudos de
comunidade. Eu sequer fiz propriamente um estudo de comunidade, eu fiz
um estudo da imigração italiana. Eu tratei dos italianos na zona rural e na
cidade. Então a cidade entrou aí como um dos contextos nos quais os
imigrantes italianos se moviam e dentro do qual eles constituíam uma
trajetória e realizaram uma mobilização social muito significativa e acabaram
inteiramente assimilados.
Quando eu comecei esse trabalho, na verdade era um pouco reconstrução
histórica. A migração já havia terminado há bastante tempo e eu estava
trabalhando em grande parte com a segunda e a terceira geração. Havia ainda
uns velhos italianos que eu havia entrevistado. Pude mostrar o que havia de
diferente e o que havia de comum nessas duas trajetórias, a trajetória na zona
rural e a trajetória na zona urbana e como elas estavam intimamente
integradas uma com a outra, com a constante passagem e com a construção
de uma nova sociedade que a própria migração dentro do sistema novo de
agricultura capitalista estava criando. Os imigrantes italianos são parte
fundamental desse processo e, inclusive, em termos da criação de uma classe
média rural e urbana, além de um processo de substituição de uma liderança
paulista tradicional por uma elite já de origem italiana. E na verdade, todo um
processo de miscigenação, aculturação, acumulação, como tudo isso estava

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misturado. Então aí entra o problema do urbano. Mas não entro nesse tema
para analisar o crescimento das cidades médias no Brasil, ou o problema da
cidade média. Não, para mim a cidade era o contexto.. E na verdade, eu não
usei nenhuma conceituação diferente para estudar o imigrante na zona rural e
na zona urbana.
As determinações sócio-econômicas de proletarização são então relacionadas as
formas específicas de formação do estado político após a condição de escravidão que
marcara os ciclos econômicos do país para uma condição de proletarização, no processo
de industrialização e formação da massa de trabalho urbana. Os novos papéis sociais
desempenhados na consolidação de uma nova elite econômica será centro das
preocupações suas e de seu núcleo de pesquisa. Os estudos antropológicos eram
marcadamente interdisciplinares. Argumenta Eunice na entrevista:
Para tratar da passagem da sociedade tradicional paulista para análise da
sociedade paulista emergente recorria-se à sociologia, demografia,
geografia, história, economia, etc.
Para Eunice, o tema da transformação é de fato o mote de fundação de uma
antropologia brasileira: a transformação para uma cidade moderna após a liberação dos
escravos. Entender a sociedade brasileira em transformação, a partir de um olhar
antropológico, que com seu método singular poderia “interpelar a cada um de nós sobre
nós mesmos e sobre a nossa sociedade” (DURHAM, 2007, p. 224). Para Eunice, a
questão da imigração italiana era um tema relevante para tratar a partir do valor de
conhecimento antropológico e fundamental para se entender o processo da urbanização
e da industrialização, das novas possibilidades de mercado com todo o peso da herança
tradicionalista.
Nós estávamos dentro da Faculdade de Filosofia naquela época, uma
passagem muito importante que eu chamo do estudo da sociedade tradicional
para o estudo da sociedade emergente. Na sociologia [...] começam estudos
sobre o operariado, se estudava a escravidão antes e se passou a estudar o
operariado; se estudava as grandes propriedades territoriais e se passou a
estudar o empresariado. A noção de sociedades em classe entrou de uma
forma muito pesada e a imigração italiana entrava dentro desse processo de
análise de transformação. Eu acho que na Faculdade de Filosofia da época
nós passamos bem da reconstrução da sociedade tradicional paulista para
análise da sociedade paulista emergente. E isso nos grandes campos, não só
na Antropologia. A Antropologia está muito marcada pela presença da
sociologia em todo esse período, inclusive da geografia, como o trabalho de
Pierre Monbeig “Pioneiros e plantadores de São Paulo”, uma denuncia a
marcha do progresso no período cafeeiro. Esse é um trabalho absolutamente
maravilhoso. Aliás, era um geógrafo humano, não era um antropólogo, mas o
trabalho dele era muito parecido como que a gente estava fazendo em
Antropologia também, este processo de abertura do território.
Por um lado, uma aproximação que se refere a influência que as ciências sociais
conhece, no período, da teoria marxista. Ou, mais do que isso, a forte politização dos
intelectuais das ciências sociais a partir dos anos 60, que tentava dar conta das
transformações de classe, em especial, no processo de imigração da zona rural para a
zona urbana. Essa será, sobretudo, uma guinada para a sociologia. Já na antropologia “a
incorporação da crítica ao funcionalismo não resultou na delimitação de um novo
campo metodológico comum” (Durham, 1986: 23). Mas, por outro lado, diferenças de
método e universo se colocavam:
Para nós da antropologia estava muito claro que nós tínhamos uma divisão
muito razoável, os sociólogos ficam estudando o processo de urbanização e a
gente ficava estudando as pessoas. Fazia um estudo de base antropológico de

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modo de vida, de transformação de modo de vida. E assim eu trabalhei com


as periferias urbanas muito tempo.
Para a antropóloga, a teoria marxista não respondia a todas as perguntas que
levantava sobre questões de ordem cultural e simbólica, por exemplo. Não se tratava
apenas de um processo de migração, mas de refletir sobre questões que envolviam
temas como família, parentesco, religião, enfim, de transformações não só econômicas,
mas de ordem igualmente sociais e culturais.
E basicamente não é um grande problema a partir da década de 70, mas já um
pouco na década de 60 são os mitos marxistas, porque todas as minhas
pesquisas, na verdade, não se encaixavam numa interpretação marxista. Não
que eu fosse contra o marxismo e tivesse feito a minha pesquisa para
combater o marxismo. Muito pelo contrário, eu tive que fazer um esforço
enorme para poder dialogar com os marxistas, porque, imagine, naquela
época falar em família era uma coisa horrível. Família era inteiramente
retrógrado. Socialmente todo mundo queria acabar com ela, a não ser nas
classes mais tradicionais, da elite tradicional. De modo que era um tema que
para os marxistas era complicado [...]. Então a visão comum de sociedade era
que a família tinha que acabar e em termos teóricos, porque a sociedade em
construção deveria ser uma sociedade em que a família não fosse importante,
mas não só isso, porque a família não explicava nada porque toda dinâmica
estava na luta de classe. E eu não lido com o problema da classe, aliás,
explico porque eu não lido com o problema da classe é que as populações que
eu estudava não se enquadram no problema de classe propriamente dito.
Você tem, na verdade, uma população muito fluida. A classe é uma
construção teórica que não dá conta da diversidade desta população que não é
propriamente um operariado, parte dela está na fábrica, mas ela entra e sai da
fábrica também. Entram na fábrica, trabalham um tempo, faz um pecúlio... e
aí fazia força para ganhar aquele dinheiro, aí abria um negócio por conta
própria, daí falia, daí ia fazer bico. Como eu posso falar, analisar o processo
de inserção dessa população na cidade, na metrópole, a partir de um conceito
de classe? Não dava para mim. Então a Antropologia, nesse tempo, está um
pouco nessa contramão, não em função de um antimarxismo, em função de
uma dificuldade de você utilizar uma metodologia antropológica dentro de
uma conceituação marxista. Daí depois entrou a ideologia e todo mundo
ficou muito contente porque tudo a ideologia resolvia. Não adiantava mais
falar em cultura, todo mundo falava em ideologia. E houve um período
bastante complicado porque todos os meus alunos que viam fazer mestrado
ou doutorado queriam estudar a ideologia de alguma coisa.
Essa tendência é referida por Eunice Durham quando analisa a pesquisa no
Brasil no campo da antropologia em 1980 (MONTERO, 2004, p. 119), sobremaneira
nos estudos dedicados a “antropologia das formas urbanas”. Nesse campo de interesse,
há, como situa Eunice, “uma nítida preferência por temas políticos, com a preocupação
de estudar os grupos socialmente desprivilegiados, econômica e politicamente
oprimidos, assim como os movimentos sociais de protesto dessa população” (apud
MONTERO, 2004, p. 124). Políticos, sim, mas não necessariamente afundados no
radicalismo marxista que “desprovido de uma teoria do simbolismo e voltado para
problemas macroestruturais das sociedades capitalistas que só são adequadamente
captados na dimensão histórica, o marxismo não pode ser transposto de modo imediato
para a interpretação dos resultados da investigação empírica limitada, qualitativa,
multidimensional que caracteriza o trabalho de campo antropológico” (Durham, 1986:
24). Nesse artigo que escreve em 1986, intitulado “A pesquisa antropológica com
populações urbanas: problemas e perspectivas” para o livro A Aventura Antropológica
organizado por Ruth Cardoso, Eunice refere-se ao sucesso dos estudos etnográficos com
grande receptividade no público universitário. Pesquisas que tratavam do cotidiano e do

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familiar em nossa sociedade urbana tanto quanto do passado recente sobre valores e
hábitos tanto em um bairro como Copacabana como na família operária ou em uma
comunidade de base da Igreja renovada, etc (DURHAM, 1986, p. 17). Esse campo de
produção bem sucedido, seguiu os trabalhos iniciais de pesquisa de Eunice e Ruth,
experiências que repercutem junto a seus alunos de antropologia e de seus orientandos
que tratam de temas como umbanda, pentecostalismo, catolicismo, vida na periferia, nas
favelas, condições de vida da classe operária, o lazer popular, o feminismo, a pobreza,
movimento sindical, etc. Já em suas pesquisas de campo iniciais, o tema da dinâmica
cultural se modela e o mote de se dedicar ao estudo da família e rede de parentesco no
âmbito de uma sociedade em transformação, é elaborado:
Quando eu comecei a trabalhar com os italianos, aliás antes mesmo quando
eu comecei a fazer uma pequena análise de um grupo messiânico lá no
interior de MG, eu estava estudando como é que eles se converteram e ali a
conversão é toda por uma rede de parentesco. Então para falar como é que
tinha sido a conversão eu já tive que entrar num problema de parentesco.
Quando eu trabalhei com os italianos, a família se colocava como o espelho
de todo processo, o processo de acumulação primitiva, o processo de
trabalho, o processo de ascensão social [...] de modo que eu acho que não dá
para entender italiano e a imigração italiana se você não entender a questão
da família. Metade da minha família tem descendência italiana. Minha mãe
era filha de italianos casados com brasileiros e isso não era surpresa. Então
para mim o que foi surpreendente foi a importância da família na migração
rural urbana dos brasileiros. Então aí me levou toda uma reflexão sobre a
questão da família. Não é simplesmente um problema urbano, mas é um
desmonte, uma crítica de uma visão do qual, digamos, a urbanização destrói a
família. Eu estava trabalhando com modo de vida e para mim estava claro
que esta família obviamente se altera no processo, mudam os laços familiares
que constituem uma base fundamental, não só da sociabilidade mas de toda a
possibilidade de inserção do migrante na sociedade urbana. É a família que
dá o apóio. O migrante sozinho é uma figura anômica. E toda a minha análise
do processo de migração era, na verdade um processo de reprodução e
reconstrução familiar, com as pessoas migrando individualmente. Se tinha a
impressão naquele tempo que imigração era tudo individual. Bom, talvez eu
tenha sido a primeira a mostrar que não era. Mesmo quando ele migra
sozinho ele tem primeiro o apóio de um lado da sociedade que ele parte, na
qual ele deixa muitas vezes os irmãos mais novos, filhos, inclusive, a esposa,
a mulher. E depois quando vem para cá o processo de trazer os parentes e
recompor o novo, um grupo familiar de bases um pouco diferentes mas que
de qualquer forma, mobiliza esses laços de parentesco.
Como esclarece Eunice, não é a dicotomia rural e urbano que era seu enfoque.
Em seus estudos, era a ênfase sobre o processo em transformação, a inter-relação desses
dois mundos em suas crises, conflitos e descontinuidades.
Então eu pego um novo, que não era tão novo, mas que era a passagem do
velho para o novo porque a imigração estrangeira, especialmente a imigração
italiana foi fundamental na concepção da sociedade paulista. Depois eu
passei para estudar a migração rural - urbana que um segundo momento desse
processo de transformação, quer dizer, depois da II Guerra Mundial,
basicamente já tendo cessado,... a imigração estrangeira para SP, um
crescimento econômico muito rápido após a II Guerra, começa a se utilizar
uma mão-de-obra brasileira de imigrantes, que vem em grande parte da zona
rural. Eles podem passar por outras cidades antes, mas uma população que
não só vem da zona rural mas basicamente uma população que vem da
sociedade tradicional. Então aí nós resolvemos dar um passo atrás para
estudar a sociedade tradicional. Foi tentando interpretar as entrevistas que eu
tinha em função de toda a bibliografia sobre a sociedade tradicional
brasileira. E também foi muito surpreendente na verdade tendo vindo de uma

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análise de imigração italiana, desenvolvimento paulista etc. Pelo menos


naquela época, na década de 60 fiquei extremamente surpresa em constatar a
persistência da sociedade tradicional na zona rural brasileira, especialmente
na zona de imigração, quer dizer, no interior de Minas, Bahia, o nordeste
todo que são as grandes zonas de migração para SP. E daí botei isso no
contexto. O contexto qual era? O contexto da urbanização, do
desenvolvimento industrial, as novas possibilidades de emprego, sem
negligenciar o peso da herança tradicionalista no ajustamento desses
imigrantes. Novamente, era a sociedade brasileira que me interessava. Eu
nunca fiz um corte conceitual entre a sociedade rural e a sociedade urbana,
para mim essas duas coisas estão intimamente ligadas, sempre estiveram e o
que eu estava estudando na verdade era o que? Era o desenvolvimento de
uma sociedade urbano industrial. Mas esse urbano industrial também é uma
transformação do campo e é uma destruição da economia tradicional.
Tradicional o que é? É uma economia basicamente rural, ela está sendo
basicamente destruída desse processo e daí nós temos um movimento
migratório que é tal como eu defino, das zonas menos desenvolvidas para as
zonas em desenvolvimento. Eu estou numa redistribuição interna de
população, porque, aliás, tinha acontecido uma redistribuição da população
escrava, porque o café de início de expande em SP com a importação de
escravos do nordeste e de MG. Agora é a indústria que se expande com a
importação por assim dizer de imigrantes rurais do nordeste de MG, botando
a Bahia dentro desse contexto.
Eunice desenvolve sua pesquisa sobre o tema da imigração a partir da mudança
da família de trabalhadores de origem italiana do campo para a cidade. Com ousadia, é
no âmbito da família que os novos atores sociais e políticos da dinâmica da
transformação da sociedade brasileira.
“Porque a família é o espelho de todo processo, o processo de acumulação
primitiva, o processo de trabalho, o processo de ascensão social, [...] de modo
que eu acho que não dá para entender italiano e a imigração italiana se você
não entender a questão da família.”
A família é um eixo temático que estará presente em todo seu estudo seja sobre o
mundo rural, seja na cidade. Uma motivação que se relaciona a uma pertença familiar
italiana e a experiência de imigração e migração de seus familiares, mas que lhe é
essencialmente desdobrada em uma questão antropológica. Indagava-se sobre o
processo das relações familiares na condição urbana tangenciando uma reflexão crítica
sobre as análises dualistas de causa e efeito da urbanização sobre o sistema familiar.
Impor-se no ambiente acadêmico com um tema pouco considerado pelos
cientistas sociais na época, se colocava como mais um desafio na interface com as áreas
vizinhas. E para tratar, no Brasil, as situações singulares vividas pela sociedade em
transformação, Eunice traz de forma inovadora uma relação sistemática entre os
conceitos de cultura e de ideologia, sobretudo a partir da perspectiva da dinâmica
cultural, uma vez que “... o conceito de classe operária, tão valorizado na sociologia
marxista, esclarecia muito pouco da dinâmica do processo” (Durham, 2004:29).
Eunice narra que o trabalho sobre imigração na cidade, tendo por objeto a
família, se amplia em suas preocupações para as questões próprias da vida na periferia e
dos movimentos políticos urbanos:
Depois junto ao trabalho com os imigrantes, inicio os trabalhos sobre
periferia e movimentos políticos urbanos. Os movimentos sociais urbanos é
mais ou menos todo ligado a essa temática porque ele trabalha basicamente
com o mesmo tipo de população, quer dizer que a população do trabalhador
não-qualificado de origem rural recente que é a grande massa que promove
esse crescimento urbano desmesurado.
Para esse momento, Eunice destaca a transferência para o Departamento de

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Ciência Política e um diálogo nesse contexto, juntamente com sua colega Ruth Cardoso.
Um diálogo também de resistência, sem dúvida, dado a conjuntura política de ditadura
que se impôs na época.
A politização dos temas em antropologia, é uma guinada importante que
conhecerá uma demanda favorável de publico e intensificação de pesquisas no contexto
urbano. Eunice Durham adota este eixo de discussão em artigos e livros. Sua
monografia “A dinâmica cultural na sociedade moderna” apresentado na forma
mimeografada na Anpocs, circulará entre professores e alunos de pós-graduação em
todo o país. Trata-se de uma crítica ao ortodoxismo de marxistas e althusserianos, como
diz Peter Fry, “de plantão” e que “viam a família, a escola e a indústria cultural apenas
como „aparelhos ideológicos do estado‟” (FRY in DURHAM, 2004: 13). Peter Fry
também dá destaque a este artigo produzido para o Encontro anual da Anpocs em 1976,
em que, segundo ele, Eunice “sem perder de vista as relações de poder entre produtores
e consumidores da „cultura de massa‟, propõe uma análise pautada numa relação
dialógica (se não dialética) entre ambos (p. 13). Já nos anos 80, Eunice novamente faz
circular um paper de grande repercussão na academia antropológica “Cultura e
ideologia”.
Eu acabei escrevendo um trabalho sobre isso para dizer, para mostrar que
algumas coisas dessa nova visão marxista, mas não era uma visão mais
tradicional, exclusiva a questão da classe, mas as questões de produção que
discutíamos. Mostrava que no fundo eu sempre preferia trabalhar como o
conceito de cultura porque eu criticava uma visão de mistificação presente
em toda abordagem ideológica, como se existisse, digamos, uma verdade que
paira acima de todos. Era pior que o positivismo nesse ponto de vista. E que
todo mundo estava sendo enganado. Isso é muito pouco antropológico.
Diziam que religião de um povo primitivo não continha uma ideologia? Não
tem sentido esta colocação. Então boa parte desta posição da Antropologia
nas Ciências Sociais, deste período é uma posição um pouco difícil. Não
tanto o pessoal do Rio, porque quando o pessoal do Rio trabalhava no Museu,
eles vieram não das Ciências Sociais, eles vieram da geografia, da história.
Eles não tinham essa pressão da Sociologia e da Ciência Política, ao passo
que eu vim da Filosofia que, aliás, era um departamento só, Sociologia,
Antropologia e Ciência Política era tudo junto, de modo que você tinha que
fazer uma reflexão teórica que permitisse o enquadramento da Antropologia
com estes cursos, inclusive.
Na realidade é neste contexto que Eunice lembra da importância de sua revisão
crítica ao estudo de Malinowski. Da importância de restabelecer o impacto de sua obra
sobre os estudos de natureza simbólica e do método etnográfico como prática de
pesquisa essencial no estudo do Outro, relativizando seus próprios preceitos de
formação e orientação cultural. Mas não só Malinowski como a fértil discussão levada
na antropologia social britânica com Radcliffe-Brown, Evans-Pritchard, em suas
fórmulas singulares de aprenderem e reverem a teoria durkheimniana. Eunice rende
homenagem a estas referências conceituais argumentando que “o tempo todo estive
tentando realizar esta costura, em que o social fornece a armação dentro da qual a
amplitude, as variações e a dinâmica dos significados se explicitam” (DURHAM, 2004,
p.35).
Eu tive que desmontar o medo de ler Malinowski porque na época você ia ser
taxado imediatamente de reacionário. Tem histórias interessantes nessa
perspectiva. Tem o movimento estudantil e os movimentos sociais. Na época
o curso meu era sobre parentesco. E nada mais reacionário da perspectiva dos
meus alunos, todos realizando a revolução libertadora comunista no Brasil,
falar a respeito do parentesco, família. Então a gente tinha que arrumar um
jeito. Em 68 até que eu consegui alguma coisa, porque depois de eu tentar

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convencer os alunos, quando chegou em maio que é dia das mães, eu cheguei
na classe e perguntei: quem é aqui que não deu presente para as mães no dia
das mães? E foi uma vergonha, os alunos morreram dando risada, porque só
tinha um que não tinha dado o presente da mãe e daí eu perguntei: aonde é
que tá a sua mãe? Morreu. Daí eu comecei então a mostrar que há elementos
que tão muito presentes mesmo na vida dos revolucionários que é senão um
parentesco pelo menos a família, de modo que nós precisamos ver por que ela
persiste, com todo o seu atraso, por que ela persiste no Brasil. E depois para
chegar no problema da cultura, do elemento simbólico, da representação eu
arrumei um negócio ótimo. O Giannotti escreveu naquele tempo um lindo
artigo que se chamava “O ardil do trabalho”, todo um artigo marxista, me deu
muito trabalho para ler, muito difícil. Então eu pegava e dava o artigo para os
alunos, aí ninguém entendia nada aí e eu explicava tudo direitinho, daí eu era
encarada como uma pessoa legítima porque eu entendia o trabalho marxista
do Giannotti. E daí eu pegava toda a questão da representação que está lá
dentro, usando Malinowski aliás. Então a partir daí a gente conseguia um
diálogo dentro das ciências sociais da época. Eu não acho que a gente fosse
reacionária, de jeito nenhum, mas é que a gente estava trabalhando numa
outra dimensão, e isso dava muito uma postura particular, porque eu
trabalhava na faculdade de Filosofia de SP exatamente por causa desse
confronto permanente da Sociologia com a Ciência Política e com a
Antropologia. Porque no fundo todos nós queríamos ter uma mesma
linguagem comum. Era a mesma sociedade que a gente estava estudando,
deveria ter um jeito que o que um achava fosse válido para o outro, não podia
fazer uma fragmentação absoluta dos campos. Então que acho que a
Antropologia em SP foi sempre muito disciplinar. Eu usei muito Sociologia,
Estatística, Política, e trabalhei na Ciência Política durante um bom tempo.
Para o tema da cidade, essa defesa foi essencial, pois com estes preceitos, uma
geração de alunos estava estimulada a seguir na trilha da pesquisa etnográfica cuidadosa
e articulada ao diálogo conceitual marxista da época, atenta ao tema das contradições
próprias da sociedade capitalista, as relações de poder, de dominação e controle, da
desigualdade e da marginalização. Não se tratava de uma defesa da teoria funcionalista
malinowskiana ou estruturalista funcional, mas de consolidar “pressupostos básicos da
pesquisa antropológica que, até hoje, não foram abandonados e são essenciais para o
trabalho de campo: o relativismo cultural e a inter-relação entre os diferentes aspectos
da cultura e a integração entre ação e representação” (DURHAM, 2004: 32).
De fato a relação dinâmica entre ação e representação, organizados em função de
sistema de valores, aparecerão de forma contundente nas premissas teórico-conceituais
de uma leva de orientandos de Eunice Durham. Por outro lado, podemos considerar
aqui, a partir desse trabalho defendido como livre-docência, A reconstrução da
realidade. A obra etnográfica de Bronislaw Malinowski, Ano de obtenção, 1973, a
emergência de um movimento de crítica cultural ao próprio trajeto da disciplina
antropológica em face de uma crise das epistèmes explicativas que se delineava como
irreversível no cenário acadêmico.
Eunice orienta na época alunos que atuam em São Paulo começando pela própria
Ruth Cardoso na sua tese de doutorado sobre Estrutura familiar e mobilidade social:
estudo dos japoneses no Estado de São Paulo (1972); Carmen Cinira de Andrade
Macedo sobre CEB na periferia de São Paulo (1985); Alba Zaluar sobre vida e trabalho
na periferia do Rio (1984); Elisabete Dória Bilac sobre Família e trabalho feminino – a
ideologia e as práticas familiares de um grupo de trabalhadores manuais de uma
cidade do interior paulista (1983); Paula Montero sobre as práticas mágico-terapêuticas
na umbanda (1982) e Antônio Augusto Arantes que trata do Compadrio no Brasil rural
(1970), mas que logo se voltará ao estudo das complexas tramas de relações de poder
em torno do patrimônio urbano e espaço público.

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Mas é ao se referir aos alunos, que Eunice Durham introduz em sua reflexão dois
aspectos importantes no seu percurso: 1) o impacto do estruturalismo francês ou da
teoria do simbolismo nos estudos de cultura e sociedade na antropologia brasileira, e 2)
a relação intensa de troca acadêmica entre a USP e o Museu, com parte dos professores
do Museu sendo orientados por Eunice Durham ou por Ruth Cardoso, sendo que aqui,
de qualquer forma, acentua que era na USP que em grande parte, a pesquisa etnográfica
na cidade e os estudos de antropologia no contexto urbano predominavam.
Junto a importância dos estudos de Lévi-Strauss sobre a produção simbólica das
culturas e sociedades, apontando para o tema da universalidade da dimensão simbólica,
Eunice aponta para outros autores que considera importantes em sua trajetória de ensino
e pesquisa na USP destacando Marcel Mauss, Pierre Bourdieu, Victor Turner, Georges
Balandier, Clifford Geertz e Marshall Sahlins, Louis Dumont. Autores cuja influencia
sintetiza no artigo “Uma história muito pessoal de meio século de antropologia na
USP”, aqui citado como referência (2004).
Este percurso de influências se dá paralelo a uma guinada em sua trajetória nos
anos 80 marcada pela atuação política, ou mesmo militância política em diversas
instâncias de representação como a Associação Brasileira de Antropologia e na política
universitária, primeiramente pesquisando o tema da universidade no âmbito da USP e
posteriormente atuando na Capes e outras instâncias governamentais. Nesse percurso é
fundado o Núcleo de Pesquisa sobre Ensino Superior (NUPES) de estudo, local de suas
pesquisas e orientações nesse tema desde então.
Quem fundou o Nupes comigo foi o Simom Schwartzman, foi um
levantamento da história do sistema público brasileiro. E diga-se de
passagem, que eu saiba ninguém tinha feito essa história, olha isso, no início
da década de 90. As pessoas falavam sobre a universidade, de que a
universidade é uma minoria, de que você tem aqui as faculdades isoladas. A
Instituição do Ensino Superior, diz que aceitável tem que ser uma
universidade que tem que associar ensino com pesquisa. Mas daí se você vai
olhar a realidade não tem nenhuma universidade desse tipo. Aliás, tem umas
duas, mas mesmo assim a pesquisa é assim esporádica. E o resto? Toda
reivindicação é sempre na base de um ideal de vida acadêmica baseada na
pesquisa, na dedicação exclusiva. Você via por aí, pelas universidades, que o
ensino era uma farsa. Na verdade a gente não tinha a menor idéia do que é
um orçamento, do que é uma relação custo-benefício, de quanto custa o
sistema. E depois quando eu fui p ara o governo a minha preocupação era
saber quanto custavam as coisas. Então eu acho que a minha carreira foi
cortada em função da universidade. E aí como a gente trabalha muito, fica
sendo especialista sem querer, eu fui a única especialista em família. Já tinha
enchido de família, não queria mais saber, já tinha escrito que eu queria sobre
família e as pessoas vinham e queriam ser orientadas na área de família.
O outro elemento que aborda é a intensa reciprocidade e troca acadêmica com os
antropólogos radicados no Rio de Janeiro, em especial no Museu Nacional.
Boa parte da 1ª geração do Museu se formou conosco, quer dizer, o Roberto
que é o pai do grupo do Museu, se formou aqui, fez doutorado aqui e depois
os demais ou fizeram doutorado aqui ou fizeram no exterior, porque só a
universidade de SP tinha doutorado naquele tempo. Não tinha outro lugar
para fazer. O próprio desenvolvimento da Antropologia nesse período está
muito relacionada com o doutorado. A introdução da pós-graduação e a
necessidade de obtenção do doutorado estabeleceu uma relação forçada
bastante grande entre SP e os demais centros porque as pessoas ficaram se
conhecendo. Não creio que nós tenhamos tido uma posição dominante, de
modo que as coisas aqui eram muito fluidas de modo que cada um depois
tomou um caminho um pouco diferente mas que não precisava destruir o que
a gente estava fazendo do lado de cá.

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Nessa relação de vizinhança, Eunice chama a atenção para o fato de que em


grande parte, os trabalhos na USP se dedicaram a grupos populares e ao tema da
pobreza enquanto que no Rio de Janeiro as camadas médias passaram a receber uma
atenção significativa nas pesquisas de antropólogos como Gilberto Velho.
Então daí dava uma boa complementaridade, a gente não precisava ficar
disputando primazia de idéia. E depois foi com a Alba, que eu orientei aliás,
que a gente entrou com a parte firme da Antropologia, porque a Antropologia
carioca mesmo não é a parte das periferias, das favelas e que juntou um
pouco com o pessoal do Gilberto que trabalhava com Copacabana e Roberto
que trabalhava com o carnaval, futebol, etc.
Em ambos o arsenal conceitual elucida uma trilha intelectual que segue uma
tendência internacional de debates teóricos e epistêmicos. Para a geração dos anos 80 a
90, refere a importante predominância de conceitos como ideologia, identidade, pessoa,
indivíduo, individualismo, hierarquia, holismo, ethos, que valorizam a dimensão
simbólica de grupos e indivíduos no contexto urbano. Importa reconhecer então a
diversidade com que essas noções podem ser reconhecidas em grupos culturais
diferentes. A ideologia desliza para um conjunto predominantes de idéias em um
sistema de valores, de certa forma se despolitizando em prol da relatividade e crítica a
noções aparentemente naturalizadas como universais.
Eunice avalia para os anos 80, o seguinte deslize semântico:
“É que, ao mesmo tempo em que os antropólogos se politizam na prática de
campo, através de seu engajamento crescente nas lutas travadas pelas
populações que estudam, despolitizam os conceitos com os quais operam,
retirando-os da matriz histórica na qual foram gerados e projetando-os no
campo ahistórico da cultural. Mas escolhem justamente aqueles conceitos que
originalmente possuíam uma dimensão política muito clara. No fundo, o que
estamos fazendo é operar os conceitos de tal modo que, evitando o
tratamento direto da problemática social e política que neles está contida,
preservamos uma alusão a essa problemática que, afinal de contas, é
essencial para a compreensão da realidade brasileira” (DURHAM, 1986,
p.32).
Referente a predominância dos estudos sobre proletariado, pobreza, populações
na periferia urbana, condições de trabalho, lazer, formas de sociabilidade, Eunice
convoca sua parceria com Ruth Cardoso para lembrar de inúmeros seminários e
atividades de pesquisa que privilegiavam a prática etnográfica da observação da vida
cotidiana, em que a desigualdade social, a segregação espacial, os conflitos de gênero e
geração, conhecem os desdobramentos de uma geração de orientados que, seguindo a
trilha configurada, dão continuidade ao projeto de desenvolver estudos de antropologia
urbano no Brasil ou estudos de sociedades complexas no Brasil, como apontamos nos
trabalhos videográficos com José Guilherme Cantor Magnani, Tereza Caldeira, também
com Gilberto Velho, Ruben Oliven e em breve com Alba Zaluar.
Eunice avalia que nessa continuidade, duas tendências se destacam nos estudos
que pesquisam nas cidades:
“De um lado, a valorização dos métodos qualitativos tradicionais de
investigação empírica, com ênfase na observação participante. E, de outro, a
preocupação com a análise da dimensão simbólica, dentro de uma abordagem
basicamente culturalista: o conceito de cultura (...) volta a ser amplamente
utilizado e existe, inclusive, uma recuperação de certos aspectos do
culturalismo americano. Mesmo as tentativas de aproximação com o
marxismo têm sido feitas preferencialmente através do conceito de ideologia,
que remete diretamente à dimensão simbólica do comportamento social”
(Durham, 1986: 25).

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Eunice discorre então para as mudanças no próprio processo do exercício


etnográfico, onde o tema da subjetividade do pesquisador pesquisando sua própria
sociedade acrescenta novos aspectos a serem considerados. Refere-se a facilidade da
comunicação lingüística, o uso de equipamentos de gravação e captação que
supervalorizam a tomada de depoimentos e diálogos: “Privilegiando-se dessa forma os
aspectos mais normativos da cultura, a técnica de análise do discurso assume
importância crescente” (DURHAM, 1986: 26).
Eunice alerta então para a importância de avançarmos nessa discussão em face
de nossa experiência de estudar nossa sociedade complexa, fragmentada e globalizada.
Para nós, nesse artigo de 1986, Eunice aponta para o tema da memória como um
procedimento relevante para tratar da experiência vivida relacionadas aos processos de
sua produção, no tempo, diríamos, nas camadas do tempo vivido que podemos
investigar não nos limitando a “reconstuir as sombras que essa história projeta na
consciências dos homens” (DURHAM, 1986: 34) mas estar atentas aos jogos da
memória transgeracionais, uma fenomenologia da memória, nos termos de Paul Ricoeur
e que para nós converge com o nosso projeto de desenvolver uma etnografia da duração
(ECKERT e ROCHA, 2005). Para nós, a narrativa desses antropólogos, problematiza as
descontinuidades conceituais tanto quanto as reinterpretações que efetivamos lendo suas
narrativas de suas aventuras antropológicas e etnográficas na cidade.
Para complementar essa apresentação, convidamos para assistirem o
documentário sobre/com Eunice Durham que será exibido nesta Anpocs, na sessão de
Mostra de vídeos “portraits”18.
A aventura antropológica na cidade
A opção pela pesquisa sobre o processo imigratório e migratório dos japoneses
no Brasil foi o tema de doutorado que Ruth Cardoso. Ruth interpreta que esta escolha
foi a forma de inserir-se no campo de produção temático que se destacava como central
no processo de formação das cidades brasileiras: Imigração, Urbanização e
Industrialização. Esta linha de preocupação convergia com o apogeu dos debates entre
estudantes marxistas da USP e outros centros de formação sobre a luta de classes sociais
e um projeto de redemocratização do país.
Assim como Eunice, Ruth investe em pesquisar sobre como grupos imigratórios
de imaginários milenares se inserem no processo de urbanização. Desenvolver este
projeto a partir de uma perspectiva metodológica antropológica era também uma
ousadia de Ruth Cardoso, que terá em suas preocupações, o fazer etnográfico na cidade
junto a estas populações que se inseriam de formas diversas e plurais nesta nova
realidade urbana.
As leituras de Marx e Althusser, discutidas em sala de aula, se conjugavam com
a herança dos antropólogos que lhes orientavam no cotidiano acadêmico.
Predominantemente voltadas ao tema indígena, a questão da relativização do Outro
também no contexto urbano no processo de transformação da sociedade brasileira, se
consolidava nos cursos de antropologia. O tema das minorias perpassava os diferentes
territórios do país, na condição do campo, na condição da cidade. Neste processo a
leitura dos estudos urbanos da Escola de Chicago e de estudos sociológicos sobre
desenvolvimento, poder e ideologia, permitiam que a pesquisa antropológica
articulasse, a sua maneira, a questão do Estado moderno no Brasil em suas contradições.
O eixo de discussões sobre as relações entre dominantes e dominados, entre
índios e brancos, entre minorias e instituições, perpassava o clima intelectual da época.

18
Ver: Antropologia urbana e etnografia das cidade brasileiras, Narradores urbanos, Eunice Durham,
https://goo.gl/LjVHkf.

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O mote ético de conhecer a si mesmo no Outro, e a sua própria sociedade no confronto


com as Outras, tecia os saberes e as práticas da pesquisa antropológica na cidade. Com a
complexidade de que era a própria cidade o lugar da transformação a ser observado e
interpretado. Para Ruth Cardoso o fazer antropológico na cidade construía um saber
político a ser vivido no exercício da pesquisa entre pesquisador/pesquisado, sobre os
processos de mudança. Esta aventura antropológica instigava para o exercício reflexivo
sobre as transformações do método etnográfico na pesquisa junto a grupos urbanos.
Sua trajetória acadêmica em São Paulo foi interrompida pelo processo político
refugiando-se no Chile. Em seu retorno, o engajamento no CEBRAP 19, são aspectos
presentes na sua entrevista para tratar da guinada por uma antropologia que se
respaldasse de um debate político sobre sua própria sociedade e cidade. Uma linha de
pesquisa que abrigará uma geração de orientandos voltados para a prática de etnografar
na cidade: Gilberto Velho sobre camadas médias no Rio de Janeiro, José Guilherme
Cantor Magnani sobre a cultura popular na periferia da cidade, Tereza Caldeira sobre o
cotidiano dos moradores da periferia e o que pensam do poder e dos poderosos, Maria
Lucia Montes sobre cidade e cidadania.
Para não nos alongarmos e sermos repetitivas, passamos agora nesse GT, para a
exibição do vídeo-documentário com Ruth Cardoso, para apreciação fílmica de sua
trajetória acadêmica20.
Conclusão
Nesta perspectiva pretende-se seguir as trilhas dos estudos etnográficos nos
contextos urbanos que aderem as imagens de uma meditação temporal pela flexibilidade
do “movimento intelectual hermenêutico” (SOARES, 1998: 69), em outra, pela forma
como estas etnografias interpretam o viver na cidade como “produto íntegro do relato
que, recortando e traduzindo, infudem significação e reinventam sua referência
empírica, tornando-a inteligível e, portanto, comunicável” (SOARES, 1998, p. 69).
Sugere-se o reconhecimento no inter-relacionamento de suas obras e
orientações, de uma “epistemologia do conhecimento” orientadora de uma atualização
dos estudos da memória coletiva do viver urbano e neste sentido de um “efeito de
estilo” dos estudos antropológicos nas cidades. Neste ínterim, interpreta-se “as
diferentes especificações e individuações” (Cardoso de Oliveira, 1995: 183) dos estudos
da disciplina “antropologia urbana” no contexto nacional. Não se trata de identificar
aqui o que Mariza Peirano define por “nacionalismo metodológico” (Peirano, 2006, p.
78 a 86). Justamente pelas especificidades que a autora aponta para a trajetória
cosmopolita na formação das ciências sociais no Brasil, investiga-se esta qualidade da
contextualização histórica, social e cultural dos estudos, interpelando a produção
antropológica a partir do reconhecimento dos temas urbanos contemporâneos tomando
“o nós como outros” (PEIRANO, 2006, p. 86).
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19
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, fundado em 1969 por intelectuais oriundos da
Universidade Estadual de São Paulo.
20
Ver: Narradores urbanos, Ruth Cardoso, https://goo.gl/jv6vg7.

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BARBOSA, Raoni Borges. Três tradições antropológicas de análise cultural: uma abordagem crítica
sobre as perspectivas do fazer antropológico. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e
Sociologia, v.1, n.3, p. 57-77, novembro de 2017. ISSN 2526-4702.
Artigo
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

Três tradições antropológicas de análise cultural: uma abordagem


crítica sobre as perspectivas do fazer etnográfico
Three traditions of cultural analysis: A critical approach about the perspectives of doing
ethnography

Raoni Borges Barbosa

Resumo: Este artigo discute o método etnográfico de observação e de escrita sobre a


alteridade enquanto atividade central da antropologia, entendida a partir de três tradições de
analise cultural: a antropologia como hermenêutica do outro; como experiência de devir-
nativo; e como exercício compreensivo da alteridade estudada. Se, por um lado, a
etnografia significa o método ou o procedimento consolidado e quase que definidor da
produção científica de conhecimentos antropológicos, por outro lado, há um conjunto de
perspectivas e tradições do fazer etnográfico, cujas especificidades se assentam em escolhas
teórico-metodológicas relevantes para o desenvolvimento e para a produção de evidências
de uma pesquisa antropológica. A argumentação desenvolvida se apóia no entendimento de
que a antropologia se constitui em um movimento de constante reencontro do saber
acumulado. Neste encontro o ethos do fazer antropológico é atualizado enquanto ideologia
que norteia os pesquisadores e que faz possível de operacionalização uma comunicação
entre as mais distintas tradições teórico-metodológicas da antropologia. Palavras-chaves:
etnografia, tradições antropológicas, escrita racionalista, escrita processualista, escrita
reflexiva
Abstract: This article discusses the ethnographic method of observing and writing about
the alterity as a central activity of anthropology, understood through three traditions of
cultural analysis: the anthropology as the hermeneutics about the other; as a experience of
being native; and as the exercise of comprehension of the observed alterity. If on the one
hand ethnography means the method or the consolidated procedure in the scientific
production of anthropological knowledge, on the other hand, there is a set of perspectives
and traditions of ethnographic enterprise models, whose specificities are based on
theoretical and methodological relevant choices to the evidence‟s development and
production in anthropological scientific research. The argument put forward is based on the
understanding that anthropology constitutes a movement of constant revisiting the
accumulated knowledge. At this revisiting the traditions by the researcher the ethos of
anthropology is upgraded as an ideology that guides researchers and makes possible the
communication between the most different theoretical and methodological traditions of
anthropology. Keywords: ethnography, anthropological traditions, rationalist writing,
processualistic writing, reflexive writing

Este artigo discute o fazer etnográfico enquanto atividade central da


antropologia com base em reflexões de autores diversos que problematizaram esta
questão. Se, por um lado, a etnografia significa o método ou o procedimento
consolidado e quase que definidor da produção científica de conhecimentos
antropológicos, por outro lado, há um conjunto de perspectivas e tradições do fazer
etnográfico, cujas especificidades se assentam em escolhas teórico-metodológicas
relevantes para o desenvolvimento e para a produção de evidências de uma pesquisa.

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Cabe enfatizar, neste sentido, a reflexão de Peirano sobre a etnografia como


procedimento de constante reinvenção da antropologia. Trata-se não somente de um
método, ou seja, de uma forma de fazer pesquisa, mas implica posturas teóricas, éticas e
estéticas que condicionam o trabalho de campo. Para Peirano (2014, p. 379-383):
A ideia de “método etnográfico” é complexa. Essa dimensão incita ao
questionamento da etnografia como método. A pergunta central se resume a
esta: onde e quando aprendemos que “estranhar” é uma ferramenta
fundamental na pesquisa antropológica? E o que significa, no fundo, esse
estranhamento? [...] O refinamento da disciplina, então, não acontece em um
espaço virtual, abstrato e fechado. Ao contrário, a própria teoria se aprimora
pelo constante confronto com dados novos, com as novas experiências de
campo, resultando em uma invariável bricolagem intelectual. Todo
antropólogo está, portanto, constantemente reinventando a antropologia; cada
pesquisador, repensando a disciplina. [...] Etnografia não é método; toda
etnografia é também teoria.
Com base nesta assertiva, o presente estudo faz um breve passeio, de modo a
isolar didaticamente três tradições e perspectivas influentes na produção etnográfica
atual, pela obra de diversos autores. Autores estes que buscam historiar a emergência do
discurso antropológico como uma “hermenêutica do outro” (CERTEAU, 1982)
construída no ocidente em expansão colonialista; que questionam o interesse social que
subjaz a esta prática social de produzir conhecimento (Bauer; Gaskell; Allum, 2005)
sobre o diferente, sobre o estranho e distante; que teorizam mais detalhadamente o
encontro etnográfico como necessidade de construção dialógica de sentidos sobre a
alteridade (WINCH, 1979); e, também, que discorrem sobre as implicações teórico-
metodológicas, éticas e estéticas da escrita etnográfica (COLOMBO, 2005).
Neste sentido, a discussão em tela se organiza em três partes. Na primeira parte
se problematiza o fazer etnográfico como exercício de hermenêutica do outro, cujo
objetivo constitui a explicação da alteridade como realidade exterior, passível de
apreensão em quadros explicativos que correspondem à realidade vivida pelo sujeito
coletivo pesquisado, ainda que inconsciente para o mesmo. Na segunda parte, se
problematiza o fazer etnográfico como possibilidade de devir-nativo, cujo paradigma de
análise se pauta na afetação do etnógrafo pelo campo de pesquisa e se apresenta na
forma de uma escrita processualista das experiências de pesquisa. Na terceira parte, por
fim, o fazer etnográfico é discutido como exercício de compreensão da alteridade e
como oportunidade de reflexão teórico-metodológica a partir da experiência do
pesquisado em campo (BOURDIEU, 2003).
O fazer etnográfico como hermenêutica do outro
Para Certeau (1982), a etno-grafia deve ser compreendida criticamente no
horizonte de sua história, intimamente vinculada a uma linguagem de império que
diferencia sociedades primitivas e selvagens ágrafas de sociedades políticas dotadas de
escrita. A etno-grafia, neste sentido, é o resultado, plasmado em papel, da etnologia,
cujas noções definidoras, no entender de Certeau (1982, p. 211), são:
[...] a oralidade (comunicação própria da sociedade selvagem ou primitiva,
ou tradicional), a espacialidade (ou quadro sincrônico de um sistema sem
história), a alteridade (a diferença que apresenta um corte cultural), a
inconsciência (estatuto de fenômenos coletivos referidos a uma significação
que lhes é estranha e que não é dada senão a um saber vindo de algures).
A etnografia, assim, seria o antípoda da historiografia moderna, cujas noções
definidoras seriam a escrita, a temporalidade, a identidade e a consciência. Este
modelo de produção de conhecimento, que emerge na Europa entre os séculos XVI e

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XVIII como tecnologia social para lidar com o conjunto de transformações sócio-
políticas em curso (Renascimento; descoberta do Novo Mundo; Reforma Protestante;
Revoluções Burguesas e outras), já estaria presente nos relatos de Jean de Léry21 e se
repetiria no estruturalismo levi-straussiano, interessado na explicação das condições
inconscientes, cujos vetores são a oralidade, da vida social.
Malinowski (2007), muito embora esquecido por Certeau (1982), teria
sofisticado a escrita sobre o outro em um formato racionalista, empiricista e atemporal
ao definir a escrita etnográfica como escrita científica sobre a alteridade. Esta fundação
da antropologia sobre os cânones da ciência ocidental tem por objetivos explicar o
ponto de vista nativo; traduzir a verdadeira imagem e linguagem da vida tribal; e evocar
o verdadeiro espírito da vida nativa.
Como bem pontua Giumbelli (2002), o fazer etnográfico malinowskiano exige
que o pesquisador paute sua observação em princípios científicos e que viva entre os
nativos por um tempo longo, de modo a coletar dados suficientes para a construção de
quadros explicativos gerais e abstratos, na forma de leis científicas, sobre os fatos
sociais observados. Deste modo, o pesquisador deve dominar o método antropológico e
a partir deste produzir evidências sobre a cultura nativa, tal como um cientista que
praticasse uma ciência empírico-analítica, cujo interesse é o domínio técnico,
classificado como verdade, sobre o fenômeno estudado (Habermas, 1968)22.
Esta proposta de fazer etnográfico como um exercício sistemático de
hermenêutica do outro, pautada no poder atribuído à escrita de reter o passado como
realidade objetiva e de superar as distâncias espaciais mediante um texto facilmente
reproduzível e que leva consigo as experiências do lugar de origem, entende a alteridade
radical do Novo Mundo como imemorial, sincrônica e inconsciente de si, devendo,
neste sentido, ser explicada pelo olhar externo do observador. Observador este que
explica a alteridade na reprodução da diferença Nós – Eles e de acordo com os códigos
de racionalidade e estranhamento de sua cosmologia.
Certeau enfatiza como este primeiro modelo etnográfico, ainda pautado em um
método comparativo que reduz as diferenças culturais segundo uma história conjetural
de evolução dos padrões de cultura, dissolvendo-as, ainda, no pressuposto da
universalidade humana, constrói uma argumentação circular que transforma o outro
radical em uma versão caricata, primitiva e selvagem da concepção de humanidade e de
civilização ocidental. A separação entre Nós e Eles, entre o aqui conhecido e familiar e
o lá desconhecido e exótico, desta forma, se caracteriza por uma natureza estranha onde
habita a mesma humanidade, cuja estranheza cabe ao pesquisador traduzir para a
racionalidade ocidental.
Nas palavras de Certeau (1982, p. 223-225):
O que dele separa o Ocidental não são as coisas, mas a sua aparência:
essencialmente, uma língua estrangeira. Da diferença constatada resta apenas
uma língua por traduzir. [...] a tradução faz passar a realidade selvagem para
o discurso ocidental. [...] No lugar onde a Histoire a situa, a língua

21
Jean de Léry publica em 1578 sua Histoire d’um Voyage faict em la terre Du Brésil, onde relata sua
experiência de permanência na baía do Rio de Janeiro em 1556-1558 (CERTEAU, 1982, p. 214).
22
Weber (1922), em oposição à ontologia e à epistemologia racionalistas de Durkheim e de Malinowski,
postula que a realidade social deve ser apreendida diferentemente das dimensões físico-químicas e
biopsíquicas da existência, ou seja, não como dados independentes e exteriores ao sujeito que os observa
e os analisa, mas como ações sociais no âmbito de comunidades de sentido historicamente datadas e, por
isso, portadoras de amplos significados. Com base nos postulados de neutralidade axiológica e
distanciamento crítico do pesquisador em relação ao fenômeno social estudado, Weber constrói a noção
de método compreensivo, cujo interesse é o de extrair sentido das ações sociais. Trata-se, portanto, de
uma proposta histórico-hermenêutica de ciência social e cultural (HABERMAS, 1968).

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estrangeira já adquire a dupla função de ser o meio pelo qual uma


„substância‟ (a efetividade da vida selvagem) vem sustentar o discurso de um
saber europeu, e de ser uma fábula, um falar que não sabe aquilo que diz
antes que um deciframento o preveja de uma significação e de uma utilidade.
[...] O lugar de partida era um aqui (“nós”) relativizado por um alhures
(“eles”) e uma linguagem privada de “substância”. Ele se torna um lugar de
verdade já que lá se mantem o discurso que compreende um mundo. Tal é a
produção para a qual o selvagem é útil: da afirmação de uma convicção, leva
a uma posição de saber. Mas se na partida a linguagem a restaurar era
“teológica”, a que se instaura na volta é (em princípio) científica e filosófica.
Este fazer etnográfico como exercício de hermenêutica do outro se reproduz
como proposta de escrita realista (Colombo, 2005, p. 69-275), em que a verdade ou a
racionalidade do mundo do pesquisador se afirma na caricatura da alteridade radical
entendida como oposto ou como uma estação primeva da civilização ocidental. Assim
que este outro é apreendido e explicado a partir de noções reificadoras como
Natureza/Cultura, Corpo/Vestimenta, Festa/Trabalho, Bruxaria/Ciência, Prazer/Ética,
Inconsciência/Consciência, Memória/História, cabendo ao pesquisador a tradução da
realidade nativa para a racionalidade de sua cosmologia ocidental.
Neste sentido, Winch (1979), em diálogo com Pareto e Evans-Pritchard, enfatiza
o desafio do pesquisador em entender e, ato contínuo, em traduzir para os leitores de sua
cultura, a cosmologia nativa pesquisada, sem, contudo, incorrer em um discurso de
racionalidade, realidade e objetividade próprio da cosmologia ocidental. Ao discutir o
trabalho de Evans-Pritchard sobre a bruxaria e a magia entre os Azande, Winch,
contudo, se afasta do dogma ocidental, segundo o qual a cientificidade corresponderia à
realidade.
Desta forma, Winch não somente diferencia entre o lógico e o científico, como
faz Evans-Pritchard, mas argumenta, ainda, que a realidade é uma noção implícita à
uma cosmologia específica e operada por uma linguagem também culturalmente
marcada. Assim que a bruxaria e a magia entre os Azande constituem fundamentos de
sua vida social, devendo ser compreendidos segundo a racionalidade própria deste
sistema de crenças e deste repertório simbólico.
Nas palavras de Winch (1979, p. 90):
Las nociones azande de la brujería no constituyen um sistema teórico em
términos de obtener um conocimiento cuasicientifico del mundo. Esto a su
vez sugiere que ele europeo, obsesionado em presionar el pensamiento zande
hacia donde naturalmente no iria – a uma contradicción -, es el culpable del
malentendido, y no los azande. El europeo está incurriendo, de hecho, em um
error de categoria. Este planteamiento admite inferir algo más: las formas em
que la racionalidad se expresa a si misma em la cultura de las sociedades
humanas no pude ser coligida simplesmente em términos de la coherencia
lógica de las reglas, según las cuales las actividades se llevan a cabo en esa
sociedad.
O imperativo de “explicar” a alteridade radical segundo os códigos de
moralidade e de racionalidade de sua cosmologia, e não conforme o que o pesquisador
define como realidade, objetividade, racionalidade e verdade, provocarão o
deslocamento deste modo realista de fazer etnográfico para um modo cada vez mais
reflexivo e compreensivo de análise do social no âmbito das ciências sociais. No
entender de Winch, contudo, Evans-Pritchard se mantem fiel a uma proposta realista de
fazer antropológico e etnográfico quando busca explicar a bruxaria e a magia azande a
partir da diferença entre noções místicas e noções científicas de apreensão do real.
O pesquisador, nesta proposta realista de análise e de escrita do outro, movendo-
se à margem do palco de experiências cotidianas, observa a complexidade inconsciente

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dos espaços societais, traduzindo-as, a posteriori, em silogismos que abarcam de forma


a universal a realidade objetiva. Este procedimento científico está revestido pela ética
do trabalho e da produção do capitalismo emergente, de modo que seu interesse se
configura como prático- instrumental (BAUER; GASKELL; ALLUM, 2005), próprio
de uma concepção naturalista e racionalista de ciência, ainda que (cabe ressaltar a
ironia), inconsciente para este operador da ciência ocidental.
No entender de Certeau (1982, p. 233-234), o relato de Jean de Léry, modelo
realista de fazer etnográfico repetido tanto por Evans-Pritchard como por Lévi-Strauss,
é assim contextualizado:
Como o corpo nu da Índia, o corpo do mundo se torna uma superfície aberta
às inquisições da curiosidade. Na época ocorre o mesmo com relação ao
corpo da cidade e ao do doente, transformados em espaços legíveis. Pelos
“pequenos furos” de “experiências” sucessivas, o véu tradicional que
ocultava a opacidade das coisas se rasga e permite “reconhecer a terra
ocularmente”. Da transgressão que acompanha o nascimento de uma ciência,
Léry resume os dois elementos: “bom pé, bom olho”. “Ver e visitar”, diz
ainda.
Trata-se, com bem sintetiza Colombo (2005, p. 266), de um paradigma de fazer
etnográfico pautado na ruptura entre escrita científica e escrita literária, sendo aquela a
própria para o embasamento da etnografia como prática científica e, portanto, discurso
de verdade, de correspondência com a realidade, sobre o mundo. Retoricamente, este
discurso se constrói na invisibilização do pesquisador/autor do texto, que aparece de
uma perspectiva descentrada e assume um tom documentarístico em linguagem neutra e
conceitual.
O pesquisador, na proposta de fazer etnográfico como hermenêutica do outro, se
coloca à margem dos acontecimentos que explora analiticamente, tal qual um
estrangeiro/espião que pode deslocar-se pelo labirinto da cosmologia nativa sem
preocupar-se com o constrangimento de defrontar-se racional e conscientemente com
seus tabus, mal-ditos e inter-ditos. A cosmologia nativa, em síntese, se apresenta como
um fato social no sentido durkheimniano (DURKHEIM, 2007) e malinowskiano
(MALINOWSKI, 1976): exterior, geral e inconsciente; de modo que pode ser
apreendido racionalmente por um observador externo que busca sistematicamente
explicar as generalidades da vida social que estuda, seja com base em um sistema social
orgânico, seja com base em funções biopsíquicas humanas.
Este modelo de fazer etnográfico foi gradativamente criticado e substituído, no
âmbito da antropologia, conforme se desenhava o segundo deslocamento teórico-
metodológico da disciplina, a partir da década de 1970. No entender de Santos (1985, p.
19), este evento significou uma revolução científica tão importante quanto a que fundou
a modernidade no século XVI, com o paradigma de mundo-máquina como lastro
ideológico do determinismo mecanicista que preparou a expansão da modernidade
ocidental por todo o globo.
Este paradigma emergente nas ciências, contudo, e particularmente na
antropologia e no fazer etnográfico, se pauta no entendimento e na compreensão da
alteridade segundo suas próprias lógicas societárias e culturais. Resultante disto são as
crescentes valorizações de formas processuais e reflexivas de escrita sobre o outro
(COLOMBO, 2005, p. 265).
O fazer etnográfico como devir-nativo
No entender de Peirano (1995), a antropologia se encontra em crise desde o
último deslocamento sofrido pela disciplina a partir dos anos de 1960, quando se
abandonou o projeto de encontro com a alteridade radical e o fazer antropológico se

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voltou para o cotidiano das sociedades complexas. Deste processo de mudanças teria
resultado uma profunda fragmentação da disciplina, desde então ocupada na produção
de estórias e eventos como novas possibilidades discursivas.
Ortner (2011), assim como Peirano, afirma a atual ausência de um paradigma
único compartilhado pelos antropólogos: situação de crise que se verifica na confusão
de categorias e nas expressões de caos e antiestrutura no discurso antropológico. A
autora constata, neste sentido, uma série de revoluções na teoria antropológica a partir
dos anos 1960 e que redundaram, entre outros, na antropologia simbólica de Turner,
influenciada fortemente pela Escola Sociológica Francesa de Durkheim e Mauss 23; no
estruturalismo levi-straussiano24, no marxismo cultural e na economia política, mas
também no Movimento Writing Culture, a partir dos anos 1980, com sua radical crítica
ao modo realista de fazer etnográfico.
A década de 1970 (Caldeira, 1988 e 1989), neste sentido, representou um
processo de ruptura epistemológica no interior das ciências sociais, com forte influência
nas formas de fazer pesquisa na antropologia. Essa ruptura epistemológica é conhecida
como o segundo deslocamento teórico-metodológico das Ciências Sociais e se
fundamenta no questionamento das teorias funcionalistas e estruturalistas e na
emergência de novos atores na análise do social e da cultura.
A emergência do movimento feminista e das teorias de gênero, assim como dos
estudos pós-coloniais e das minorias étnicas e políticas provoca uma redefinição da
antropologia como o estudo da alteridade, e não mais necessariamente como a ciência
do primitivo isolado. Estas demandas se fortalecem no sentido da propagação do
imperativo de uma Anthropology at Home, que vem a significar o estudo das sociedades
complexas e dos modos e estilos de vida contemporâneos que caracterizam a
antropologia urbana atual.
Neste contexto conturbado e bastante rico de experimentações, o fazer
antropológico e etnográfico se desloca de uma proposta de hermenêutica do outro,
pautado em uma linguagem conceitual e neutra, para exercícios de devir-nativo
embasado na escrita processualista da “afetação”25. O conceito de devir-nativo é
explorado abaixo a partir de um diálogo com Favret-Saada e com Goldman, que se
apresentam como autores de uma proposta processualista de fazer etnográfico.
O conceito de devir se apresenta como categoria estruturadora no pensamento de
Favret-Saada (2005) e de Goldman (2003; 2005) a respeito do fazer etnográfico
enquanto método imprescindível para e na produção do conhecimento em Antropologia.
Trata-se, contudo, de um devir-nativo, cujo sentido maior é o de situar-se em campo o
mais próximo possível do que, em linguagem parsoniana (HARTLEY e HARTLEY,

23
A antropologia simbólica de Turner tinha como preocupação maior as formas de operar da sociedade
de uma perspectiva racionalista, em que os símbolos são vistos como operadores no processo social,
deslocando os atores de um status a outro e os vinculando às normas sociais.
24
Estranhamente, Ortner (2011) reconhece m Lévi-Strauss somente as influências de Marx, Freud e da
lingüística, quando seu modelo de alta abstração, exterior, totalizante e reificador do social, em que a
diversidade fenomênica da vida coletiva e mesmo psíquica resultaria da combinação de princípios simples
subjacentes às estruturas das mesmas, está situado claramente na tradição da Escola Sociológica Francesa.
Lévi-Strauss, com efeito, trabalha COM conceitos como gramática universal da cultura, a partir do
princípio de oposição binária apresentando por Durkheim ao tratar da religião como fonte das categorias
de pensamento e entendimento da cosmologia de uma sociabilidade dada. A cultura, em última análise,
constitui um sistema de classificação.
25
Ver, neste sentido, as obras do movimento Writing Culture, como as de autores como Clifford e
Marcus (1986), Marcus (1986), Marcus e Fischer (1986), Fischer (1986), Crapanzano (1986), Rosaldo
(1986), Rabinow (1986), Said (1979) e outros que também se alinham na proposta de uma escrita
etnográfica processualista, como Geertz (1988), Das (2007), Bhabha (1992, 1994), Taussig (1987),
Fabian (1983) e José Jorge de Carvalho (1999) e etc.

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1970), se configura como o status/papel desta alteridade que se quer compreender


enquanto realidade nativa objetificada em coordenadas espaço-temporais na forma de
representações coletivas, repertório simbólico, redes de interdependência e cultura
emotiva específicos.
O resultado desta experiência, uma vez plasmada no código linguístico do
etnógrafo, constituiria, para Goldman (2003), algo outro que uma teoria científica ou
uma teoria nativa. A teoria etnográfica, por seus recortes, escalas e programa de
verdades, próprios, se afasta dos modelos teóricos supracitados por perfazer uma síntese
do experimentado e vivenciado em campo sob o crivo da tênue e limitada biografia do
etnógrafo, que traduz para o texto escrito, materialmente homogêneo, uma das múltiplas
séries de acontecimentos que se imbricam na heterogeneidade e multiplicidade
semântica das relações de significação tal qual captado e filtrado pelas suas faculdades
cognitivo-emocionais (SILVA, 2009).
Nas palavras de Goldman (2003):
[...] o etnógrafo deve articular os diferentes discursos e práticas parciais (no
duplo sentido da palavra) que observa, sem jamais atingir nenhum tipo de
totalização ou síntese completa. Nosso saber é diferente daquele dos nativos
não porque seja mais objetivo, totalizante ou verdadeiro, mas simplesmente
porque decidimos conferir a todas as histórias que escutamos o mesmo valor.
(Goldman, 2003, p. 456).
A etnografia enquanto devir-nativo, ou seja, enquanto esforço por parte do
etnógrafo em projetar-se para fora de sua condição e permitir-se situar em cadeias de
interdependência que estruturam uma condição psicosocial outra que a sua, ainda que,
para muitos efeitos, somente em uma dimensão representativa, a ser analisada
detidamente a posteriori e, conseguintemente, escrita, se coloca para Goldman (Idem)
de modo diverso que uma mera observação, ou uma tentativa de conversão ou de
transformação substancial do etnógrafo em nativo.
Tal não é o sentido abarcado pelo conceito de afetação que este autor empresta
de Favret-Saada (2005). O esforço por realizar um devir-nativo, o que vem a ser, em
outras palavras, o esforço por se envolver no campo de modo a ser afetado pelas
pressões e condicionantes sociais que moldam e modulam o cotidiano do homem
comum imerso em uma sociabilidade determinada, aponta, ao contrário de
conversão/transformação/identificação com e no nativo, em direcionar a percepção, por
parte do etnógrafo, ao que Goldman (2003) define como os aspectos fundamentais na
gênese e dinâmica dos processos de estruturação de territórios existenciais para o
nativo.
Interessante notar que o autor enfatiza, aqui, ainda que não de todo consciente do
feito, como estes espaços de sociabilidade constituem vínculos emocionais entre o
indivíduo e o grupo social. Vínculos estes que conformam sentimentos de
pertencimento, de dignidade e de semelhança. O fluxo contínuo de trocas materiais e
simbólicas entre indivíduos sociais em jogo comunicacional garante, desta feita, a
construção da confiança e da confiabilidade que cimenta o grupo em torno de segredos,
projetos, identidades e representações integradores deste „Nós‟ relacional, ou seja, de
uma cultura emotiva concreta, perpassada por tensões, conflitos e clivagens (KOURY,
2010; 2010a).
E é justamente este nativo, na condição de pessoa concreta dotada de uma
agência particular e criativa, sempre situada social e culturalmente, que em suas
interações cotidianas reinventa, na transintencionalidade que caracteriza o encontro com
o Outro, o espaço cultural e societal (BARTH, 2000). Esta construção de fatos invisíveis
que compõem a sociabilidade, como insiste Goldman (2003) aludindo a Malinowski,

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cabe ao etnógrafo apreender e compreender enquanto realidade objetiva, jamais de todo


desencantada ou explicada.
Uma vez situado como estrangeiro que observa o Outro em suas redes de
interdependência, continua Goldman (Idem) tomando de empréstimo as palavras de
Geertz, o etnógrafo deve estabelecer um ponto médio entre conceitos impassíveis de
operacionalização por abarcarem demasiadamente a vida nativa em toda a sua
complexidade e politextualidade e conceitos reificadores e totalizantes, tamanho seu
grau de abstração que mais mistifica e afasta que explicita a sociabilidade nativa.
A etnografia, nestes termos, significa observar cumulativamente o Outro,
participando de sua vida, deixando-se afetar no sentido da proposta discorrida acima de
devir-nativo. Tal implica em ir além do estabelecimento de vínculos meramente formais
entre pesquisador e nativo, haja vista que entre os mesmos deve fluir uma comunicação
involuntária e não intencional, portanto bem mais complexa que a simples comunicação
verbal.
Esta modalidade de trocas simbólicas, uma vez consolidada em campo, vem a
ser a afetação. Não obstante a romantização que distorce o conceito como significando
um vaguear pura e simplesmente pelo campo por parte do etnógrafo, esperando ele que
este mesmo universo de pesquisa venha a situá-lo, como se pode inadvertidamente
concluir de palavras do próprio Goldman em sua leitura mais direta de Favret-Saada
(2005), quando este afirma que afetar-se consiste em „despossessão‟ e em „perda de si‟.
A afetação, de fato, só se faz possível na medida em que o etnógrafo disciplina o
conjunto de afetos que ele conscientemente agencia para o trabalho de campo (sua curva
de vida, suas predisposições ético – político – estético – religiosas, seu olhar sobre a
própria antropologia como prática científica e sua experiência a alteridade entre outros).
Neste sentido, Silva (2009) é enfático ao afirmar que a etnografia tem por ponto
de partida o problema teoricamente construído e as hipóteses e questões relevantes
levadas a campo pelo etnógrafo. O tratamento que Goldman (2003; 2005) e Favret-
Saada dispensam ao diário de campo reforça este argumento.
Com efeito, estes autores26, tão ávidos em postular o abandono do paradigma
cientificista na antropologia e seus métodos e técnicas correspondentes (procedimento
de investigação pergunta-resposta, pesquisa documental e outros), bem como em
acentuar a experiência humana do etnógrafo para além dos aspectos meramente
intelectuais na construção do conhecimento da disciplina, e, ainda, em desconstruir o
estatuto epistemológico do observável tido como conhecimento independente e
empiricamente verificável, supostamente destacado do nativo e que alçasse o etnógrafo
a uma situação de ser a – cultural, não hesitam em afirmar tacitamente o quanto estão
representando diante do nativo ao fazer trabalho de campo.
Esta representação mesma não entra em choque com a noção de afetação e de
etnografia como devir-nativo, ao passo que reforça enormemente o papel imprescindível
de uma sólida formação do etnógrafo nas Ciências Sociais. Favret-Saada e Goldman
repetem em uníssono o quanto suas experiências em campo e o fazer etnográfico
pressupõem uma reflexividade intensa no ato de estranhar e desnaturalizar o Outro e a si
mesmo.
26
A discussão sobre a impossibilidade de apreensão e compreensão reflexiva da alteridade radical foi
bastante importante para o movimento Writing Culture, nos anos 1980, nos EUA. Este movimento, que
contou com autores e intelectuais como Vicent Capranzano, George Marcus, James Clifford, Renato
Rosaldo, Michel Fisher, Paul Rabinow e outros, entendia a antropologia como exercício autoral sobre o
outro e sobre as experiências de campo, de modo que seus experimentos conduziram o modo
processualista de fazer etnográfico ao extremo da criatividade e da literaridade. Neste sentido, ver a
discussão de Fabian (1983) sobre a crise epistemológica e hermenêutica que marca o segundo
deslocamento da Antropologia nos EUA.

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Aqui aparece o diário de campo, sentido como o ato da escrita que reaviva a
afetação e transforma quem escreve ao permitir a (re)integração a posteriori de todo
material coletado em campo – a tal síntese operada progressivamente pelo etnógrafo de
que fala Goldman (2005) e da qual ele, o etnógrafo, é parte indelével, mesmo quando
silenciado e negado – como ferramenta para a análise de uma cultura e uma
sociabilidade dada.
Se, em um primeiro momento, Favret-Saada parece aludir ao fazer etnográfico
como um mero lançar-se ao abismo do estranhamento, o deixar-se levar e afetar pelo
campo, fica claro que a autora entende esta fase da pesquisa como um momento de
representação performática face ao nativo, de modo a ganhar sua confiança e assim
fazer a observação/participação na realidade nativa possível, jamais como movimento
empático ou de comunhão afetiva.
O diário de campo permite, neste sentido, ao etnógrafo, segundo Favret-Saada
(2005), um momento de catarse em que ele se libera do fardo de representar frente ao
nativo. O registro disciplinado da movimentação dos atores sociais no universo de
pesquisa é, ainda, a ferramenta em que o etnógrafo pouco a pouco organiza tal qual sua
percepção o permite o sistema de lugares destes mesmos atores em uma perspectiva que
descortina, em longo prazo, os padrões culturais significativos de uma sociabilidade
dada.
Aqui se evidencia o quanto a formulação de Goldman (2005) de que a afetação
seria uma perda de si pode levar a interpretações mesquinhas do fazer etnográfico. De
fato, Favret-Saada concebe a etnografia como uma aventura, o que pressupõe a
superação, por parte do etnógrafo, dos medos e medos corriqueiros (KOURY, 2002;
2004; 2008; 2011; 2012) que conformam e informam um espaço societal concreto
enquanto práticas e representações sociais.
Neste sentido, o fazer etnográfico é uma experiência angustiante, um tipo de
Schize (FAVRET-SAADA, 2005) próprio de uma aventura que busca novos territórios
e/ou ressignificações do prosaico, do cotidiano do homem comum. Esta experiência,
segmentada em três séries espaço-temporais que organizam o ser afetado (situar-se no
status/posição do nativo), o narrar e o analisar, conduzem o etnógrafo, nas palavras de
Cardoso de Oliveira (1996) ao modelo nativo, o que, para Favret-Saada (2005) implica
em acessar uma comunicação especial com o Outro que se pretende entender.
Nas palavras da própria autora:
[...] o próprio fato de que aceito ocupar esse lugar a ser afetada por ele abre
uma comunicação específica com os nativos: uma comunicação sempre
involuntária e desprovida de intencionalidade, e que pode ser verbal ou não.
(FAVRET-SAADA, 2005, p. 159).
Favret-Saada (Idem) tece a sua argumentação sobre a etnografia como devir-
nativo, em última análise, apoiada na tese da opacidade essencial do indivíduo
relacional frente a si mesmo27. Este axioma impõe ao etnógrafo o desafio de participar
da realidade nativa como indivíduo também afetado por ela, ou seja, de situar-se o mais
proximamente possível do status/posição do sujeito pesquisado, para, ato contínuo,
refletir sobre a mesma a partir de seus afetos todos de pesquisador e indivíduo social,
donde resultaria a teoria etnográfica28.
Este modo processualista de fazer etnográfico tem respaldo em uma escrita
literária (COLOMBO, 2005: 275-282), que afirma e denuncia reiteradamente a ligação
entre política e poética na pesquisa antropológica e no texto etnográfico. O pesquisador,
27
Aqui aparece uma vez mais a radicalidade do movimento Writing Culture em seu primeiro momento,
quando o próprio conceito de cultura se reduzia a uma dimensão lingüística e textual.
28
Neste sentido, ver Rosaldo (1991) e Clifford e Marcus (1986).

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nesta proposta, se apresenta como parte do processo de produção do conhecimento,


situado e engajado no centro dos acontecimentos, de modo que se relaciona
intimamente com o sujeito pesquisado, agora alçado à condição de coautor de uma
produção polifônica sobre o social e a cultura.
Estas narrativas em primeira pessoa se organizam como relatos de viagem,
iniciações em cosmologias exóticas e diários intimistas, em que o pesquisador, após os
percalços, acidentes e surpresas do campo de pesquisa, se vê aceito pelo sujeito
pesquisado. Neste processo de afetar-se pelo campo o pesquisador é reconhecido pelo
nativo como competente no saber e língua locais.
Em oposição à ambição do fazer etnográfico realista de explicar as regras
inconscientes do sistema social nativo de forma unívoca e de acordo com evidências
demonstráveis, a proposta processualista busca apresentar formas várias de interpretar
os possíveis significados da viagem de imersão que o pesquisador, tido como sujeito
psicológico individualizado, realizou na cosmologia nativa. Trata-se, assim, de um
discurso sobre impressões corporais, sentimentos suscitados e empatias construídas em
campo, não sem riscos e perigos para o status da antropologia como ciência.
Nas palavras de Colombo (2005, p. 281):
A narrativa processual nasce, decisivamente, em oposição à narração realista
e corre o risco de ficar à mercê da sua necessidade-vontade de diferenciação.
Expõe-se ao risco do excesso: ser atropelada pelo entusiasmo introspectivo
esquecendo o objeto da pesquisa (Latour, 1988a). Hesitar, excessivamente, a
respeito da experiência de campo pode deslocar o centro da pesquisa da
análise do outro para a análise da experiência pessoal, que o pesquisador
realiza observando os outros. O outro entra na representação somente para os
efeitos que produz sobre o pesquisador (GEERTZ, 1988).
A justificativa oferecida por Goldman (2003) para o fazer etnográfico parte, por
sua vez, diferentemente do que propõe Favret-Saada, do pressuposto estruturalista levi-
straussiano de que um espaço societal concreto se faz e refaz mediante a combinação de
virtualidades humanas universais. Nestes termos, cada sociedade poderia abarcar, em
potência, todo e qualquer elemento verificado em uma outra configuração societal.
Esta seria a base ontológica da existência humana enquanto grupo social que
conferiria ao método etnográfico o seu estatuto epistemológico. Caberia ao etnógrafo,
assim, acessar o que se apresenta como latente na alteridade e meramente virtual em sua
sociabilidade. Goldman (Idem) ilustra esta assertiva ao tecer os seguintes comentários
sobre o nativo enquanto realidade objetiva passível de apreensão racional:
[...] o nativo não é mais simplesmente aquele que eu fui (como ocorre no
evolucionismo) ou aquele que eu não sou (como ocorre no funcionalismo),
ou mesmo aquele que eu poderia ser (como ocorre no culturalismo); ele é o
que eu sou parcial e incompletamente (e vice-versa, é claro).
Não obstante Goldman e Favret-Saada concordarem quanto à possibilidade do
fazer etnográfico para a produção de conhecimento antropológico, estes autores partem
de premissas bastante distintas para a justificação do estatuto epistemológico da mesma.
A noção de opacidade essencial do nativo em face de si mesmo, como coloca
Favret-Saada, e o postulado de que o social é uma combinação de virtualidades
humanas universais, como ajunta Goldman apoiado em Lévi-Strauss, podem ser
discutidos de modo a se estabelecer uma síntese conceitual no sentido de que este
sujeito opaco porque naturalizado em relação a si mesmo somente é arrancado de tal
condição ao deixar-se afetar pelo Outro, ou seja, ao avançar no sentido de trazer para a
sua condição de ser social culturalmente situado uma experiência latente em outra
sociabilidade, mas virtualmente presente no seu espaço societal. Este seria, grosso

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modo, o papel do etnógrafo: sujeito opaco que se aventura na apreensão e compreensão


do Outro, não sem riscos, para poder estranhar a si mesmo como existência humana
latente e virtualmente possível em qualquer espaço societal.
Este argumento, contudo, explode os parâmetros das propostas realista e
processualista de fazer etnográfico. Resultante disto é a emergência do paradigma
compreensivo de análise do social e da cultura, que exige do pesquisador não uma visão
holista, distanciada e totalizadora sobre o nativo, ou uma postura de afetação e de perda
de si no outro, mas de distanciamento crítico e reflexividade criativa assentada na
herança teórico-metodológica da disciplina antropológica. Este modo reflexivo de fazer
etnográfico será apresentado logo abaixo.
O fazer etnográfico como exercício compreensivo
O modo compreensivo de fazer etnográfico, assim como o modo processualista,
se consolidaram no cenário de crise epistemológica e hermenêutica da antropologia,
com suas demandas de estudar não mais a alteridade radical, mas de fazer uma
antropologia em casa e que desse voz aos novos atores sociais que despontavam no
espaço público na década de 1970. Ambas as vertentes romperam com os modelos
epistemológicos da tradição antropológica de base objetivista, caminhando para uma
análise da subjetividade.
A proposta compreensiva, contudo, buscou a renovação da antropologia a partir
de teorias da ação, da análise de subjetividades em jogo interacional, trazendo, assim, a
categoria analítica das emoções como forma de ação antropológica (KOURY, 2009;
KOURY e BARBOSA, 2015; SVASEK, 2005). A proposta processualista do fazer
etnográfico, por seu turno, investiu na apresentação da subjetividade como experiência
relacional singular e não replicável entre pesquisador e pesquisado, isto é, em uma
linguagem interpretativa própria das humanidades e preocupada em estabelecer
conexões com o teatro, a música e a literatura. O texto, a criatividade autoral e as
experiências subjetivas, na vertente processualista, buscaram, assim, apresentar a
alteridade como construção do “eu do pesquisador” ou dar visibilidade às narrativas do
outro entendido como voz subalterna (TAUSSIG, 1987; CARVALHO, 1999).
Kushner (1969), à época, enfatizava o desafio, para a antropologia, de pensar a
sociedade camponesa, a comunidade, a pequena cidade, a metrópole, a nação, as redes
de interdependência que se estabelecem entre as partes de uma civilização, a cultura da
pobreza na sociedade capitalista industrial e outros temas jamais abordados pelo
discurso racionalista da etnografia. Tratava-se, assim, de fazer antropologia em casa e
de deparar-se com representações sociais e objetos culturais complexos. A civilização, a
sociedade funcionalmente diferenciada, a modernidade, a nação e o Estado aparecem
como os grandes temas que desafiam o conhecimento antropológico tradicionalmente
ancorado em lidar com sociedades que se esgotam, em grande parte, na dinâmica
interacional de seus indivíduos sociais.
Neste contexto, Geertz (2012), rompendo com sua formação estrutural-
funcionalista parsoniana, desenvolve sua perspectiva interpretativista da cultura. A
etnografia passa, então, a ser definida como um exercício de descrição densa, o que,
posteriormente, foi confundido pelo Movimento Writing Culture como um exercício
autoral sobre a alteridade e sobre si.
Nas palavras de Geertz (2012, p. 4):
(...) praticar a etnografia é estabelecer relações, selecionar informantes,
transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário, e
assim por diante. Mas não são essas coisas, as técnicas e os processos
determinados, que definem o empreendimento. O que define é o tipo de
esforço intelectual que ele representa: um risco elaborado para uma

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“descrição densa” (...)”. “O que o etnógrafo enfrenta, de fato (...) é uma


multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas
ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares
e inexplícitas, e que ele tem de, de alguma forma, primeiro apreender e
depois apresentar. E isso é verdade em todos os níveis de atividades do seu
trabalho de campo (...). (GEERTZ, 2012, p. 4).
Jacobson (1991, p. 2), em seu diálogo com Geertz, Fortes e outros autores
destacados na Antropologia, enfatiza que a etnografia, em uma proposta científica de
análise compreensiva do real, não se confunde com um mero descrever literário ou
jornalístico, cujo objetivo seria o de produzir efeitos estéticos para o leitor. Trata-se de
uma ferramenta científica pautada em critérios de validade metodológica, coerência
teórica e fidelidade às limitações próprias da pesquisa empírica.
O autor (JACOBSON, 1991, p.2) afirma, com efeito, que:
[...] the picture of the people, society, or culture that the ethnography presents
must be understood from the perspective of (1) the question or problem that it
addresses, (2) the answer, explanation, or interpretation it provides, (3) the
data it includes as evidence for the problem, for the interpretation, or for
both, and (4) the organization of these elements (problem, interpretation, and
evidence) into an argument.
Uma etnografia, nestes termos, não corresponde a um exercício autoral sobre a
alteridade ou a uma ficção persuasiva (STRATHERN, 1987), tal como advogaram
alguns autores ligados ao Movimento Writing Culture e a uma proposta processualista
de fazer etnográfico, mas a uma descrição densa, orientada teórico-metodologicamente,
do que o etnógrafo observa em campo.
O fazer etnográfico, como produção de conhecimento científico sobre a
realidade empírica observada, pode ser entendido como o processo de elaboração de um
argumento compreensivo. Argumento este que se constrói a partir de um problema,
hipótese ou questão relevante, teoricamente assentado, sobre o real.
Este primeiro elemento estrutural da etnografia, o problema, aponta para a forma
e o tipo de informação ou material etnografável a ser selecionado em campo, de modo
que evidências e provas possam ser geradas para a interpretação, compreensão ou
explicação do problema posto como objeto de pesquisa. A etnografia como argumento
compreensivo, portanto, significa a disposição textual de uma descrição, e também
análise, do real, que compreende a conexão de um problema proposto a uma resposta
lógico-racional com base em evidências, justificativas e provas produzidas pelo
pesquisador em campo.
A produção de evidências que sustentem a apreciação teórica que o etnógrafo
concebe ao problema de pesquisa está vinculada à interpretação que o mesmo produz
sobre o real, consistindo a etnografia, em síntese, em um exercício de interpretação do
comportamento, da cultura e da sociedade observados. A descrição densa, conceito
cunhado por Geertz (2012), como sinônimo da etnografia, abarca o esforço
interpretativo por parte do etnógrafo do real descrito e interpretado.
No entender de Jacobson (1991, p.4), o Interpretativismo de Geertz elucidou de
forma clara o papel da interpretação na elaboração da etnografia como argumento. O
próprio Geertz (2012, p.4), expressando-se em relação ao fazer etnográfico enquanto
exercício teórico, de interpretação e de busca dos significados, afirma:
Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias
de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas
teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca
de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado.
Neste sentido, discorre Jacobson (1991, p.4) sobre Geertz:

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According to Geertz, the object of ethnography as thick description is to


understand the “frames of interpretation” within which behavior is classified
and meaning is attributed to it. He argues (1973b, p.10) that this involves
apprehending and depicting the “complex conceptual structures” in terms of
which people behave and in terms of which that behavior is intelligible to
them. Ethnography, then, is a matter of interpreting the meaning of behavior
with reference to the cultural categories within which it is “produced,
perceived and interpreted.
Nas palavras de Jacobson (1991), Geertz não somente teria pretendido acessar os
quadros de interpretação nativos a partir das práticas e discursos observados no
exercício da etnografia, mas também compreender suas estruturas conceituais
profundas. Geertz sintetiza os objetos a serem etnografados, no seu modelo teórico-
metodológico de pesquisa, com base nos conceitos de ethos e visão de mundo (Geertz,
2012), que revelam a lógica societária de um lugar enquanto cadeias reais de
interdependência e teias de significado do mundo habitado.
Nas palavras do mestre da Antropologia Simbólica, tem-se que:
Na discussão antropológica recente, os aspectos morais (e estéticos) de uma
dada cultura, os elementos valorativos, foram resumidos sob o termo “ethos”,
enquanto os aspectos cognitivos, existenciais foram designados pelo termo
“visão de mundo”. O ethos de um povo é o tom, o caráter e a qualidade de
sua vida, seu estilo moral e estético, e sua disposição é a atitude subjacente
em relação a ele mesmo que a vida reflete. A visão de mundo que esse povo
tem é o quadro que elabora das coisas como elas são na simples realidade,
seu conceito de natureza, de si mesmo, da sociedade. Esse quadro contém
suas ideias mais abrangentes sobre a ordem (GEERTZ, 2012, p. 93).
Para Jacobson (1991), o modelo de pesquisa de Geertz avançou
consideravelmente no esforço de descrição densa do real observado, entendido como o
esforço de interpretação dos fatos sociais a partir das categorias nativas em que os
mesmos são produzidos e percebidos. Geertz, contudo, não teria avançado de forma tão
decisiva no sentido de entender a etnografia como um argumento compreensivo que
abarca possibilidades de análise.
Jacobson, neste ponto, faz questão de diferenciar as noções de descrição,
interpretação e análise enquanto termos técnicos que compreendem fases e
possibilidades do empreendimento etnográfico. A descrição consiste no registro do fato
social observado em sua lógica espaço-temporal e situacional de ocorrência, ao passo
que a interpretação implica na compreensão deste mesmo fato social a partir do “olhar
nativo”.
O exercício de análise na etnografia, por sua vez, abarca as possibilidades de
compreensão do comportamento, sociedade e cultura estudados em um nível maior de
abstração. Com efeito, o etnógrafo, ao analisar um fato social em um mundo simbólico
dado, busca ir além do que a descrição e a interpretação do fenômeno informam sobre
os quadros de interpretação e as estruturas conceituais profundas em que este se
insere.
Trata-se, assim, na análise, de situar o objeto de pesquisa etnografado tanto em
possibilidades diacrônicas de comparação em seu repertório simbólico nativo próprio,
quanto em possibilidades de compreensão em relação a fatos sociais classificados como
semelhantes em outras sociedades e culturas. Jacobson (1991), em alusão a Fortes, não
exclui do fazer etnográfico, enquanto construção de conhecimento científico sobre a
alteridade, ir além das categorias nativas para o entendimento de uma cultura, sociedade
e comportamento.

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Nas palavras do autor (Jacobson, 1991, p.5) fica claro o papel da teoria na
seleção do material etnografável e de sua consequente descrição, interpretação e análise
a partir de categorias conceituais abstratas mobilizadas pelo etnógrafo em campo:
The procedure in analysis, in contrast to description, is to “break up the
empirical sequence and concomitance of custom and social relations and
group [them]… in categories of general imports” (1970b, p.132). These
categories are theoretically based. The task is to examine behavior in terms of
these analytical categories and the relationships among them.
A etnografia, assim, por abordar uma descrição, uma interpretação e uma análise
dos modelos de ação e dos modelos de realidade um indivíduo, sociedade ou cultura
qualquer, deve ser lida criticamente como um argumento científico textualmente
disposto. Argumento este que busca fundamentar nas evidências linguísticas,
comportamentais e ecológicas produzidas no trabalho de campo, as justificativas e
afirmações que compõem o modelo compreensivo do real para o problema de pesquisa
proposto na etnografia.
Com base na postura interpretativista de Geertz, a perspectiva compreensiva
(Verstehende Soziologie) das ciências sociais vem a ser redescoberta nas leituras de um
Weber não mais mediado por uma leitura parsoniana, mas devidamente situado na sua
tradição alemã e romântica. Onde mais tarde são descobertos, entre outros, a filosofia
social e a sociologia formal simmeliana, a sociologia figuracional eliasiana, assim como
a tradição interacionista e simbólico-interacionista que se organizou a partir destas
influências trazidas para os EUA por Mead, Boas e outros nomes que se destacaram na
Escola de Chicago.
Neste cenário de crise se constrói, então, a proposta de uma antropologia da
29
prática (ORTNER, 2011). Na sua aproximação macro e micro, - em uma perspectiva
processual e de longo prazo, do social, concilia, assim, história e antropologia na
tentativa de superação de paradigmas funcionalistas e estruturalistas centrados em uma
análise exterior, totalizante e reificadora do social, - a antropologia da prática se
encontra em condições de oferecer ao discurso antropológico uma nova síntese que o
ordene para além do estado de liminaridade, de crise de identidade e de assimetria e
falhas comunicacionais entre os antropólogos, causados pela ruptura com o modelo
racionalista de fazer etnográfico e pelos experimentos processualistas de análise do
social e da cultura.
No entender de Ortner, somente a antropologia da prática pode integrar as três
assertivas básicas da antropologia de uma maneira coerente: a sociedade é um produto
da interação humana; a sociedade é uma realidade objetiva; o ator social é um produto
do social e psico- e sociogênese constituem processos que ocorrem em paralelo e em
codependência (ELIAS, 1993, 1994, 2000, 2011). Neste sentido, a antropologia da
prática se consolida como nova tendência teórico-metodológica, tendo, como uma de
suas vertentes, a antropologia das emoções30 (KOURY, 2005, 2006, 2008, 2009).

29
O conceito de prática, em termos gerais, abrange as noções de ação social que articulam a tensão e a
indeterminação nas relações entre indivíduo e sociedade, enfatizando, deste modo, os fenômenos da
contingência, do conflito e da criatividade no social entendido como jogo, trama e rede de relações em um
processo dinâmico e criativo de fazer-se e refazer-se nos processos intersubjetivos de construção de
sentidos. O conceito de prática, ao apontar o social e a cultura como fenômenos complexos e
indeterminados, traz consigo uma proposta metodológica compreensiva, e não explicativa ou meramente
intimista e autoral, do real observado.
30
A antropologia das emoções faz parte do movimento de ruptura epistemológica vivenciada nos Estados
Unidos dos anos 1970. Esta proposta teórico-metodológica opera com a categoria emoções como conceito
fundamental para a apreensão do humano e do social, a partir do qual a problemática metodológica do
entendimento da relação entre indivíduo e sociedade deve ser encarada. Constitui um caminho pautado na

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A oposição entre agente/ator/pessoa/self e prática/ação/interação/performance


passou a ser o grande argumento do discurso antropológico desde então, atualizando,
destarte, a velha (e sempre renovada) questão da relação indivíduo – sociedade que
perpassa todo o período de estruturação das ciências sociais. A antropologia da prática
inova com suas múltiplas vertentes, principalmente ao enfatizar o poder modelador da
cultura ou da estrutura social enquanto constrangimento, hegemonia ou dominação
simbólica, mas não como determinação.
Desta forma busca compreender a relação dialógica e dialética entre ação
humana e sistema cultural como todo integral. É patente o quanto este paradigma se
organiza com base em uma releitura dos clássicos para além das fórmulas que os
aprisionaram nesta ou naquela categoria.
A prática diz respeito às formas de ação de indivíduos concretos ou de tipos
humanos, no interior de uma perspectiva política, conformadora do espaço societal.
Estes indivíduos são socialmente motivados, construindo interesses e projetos na tensão
cotidiana entre sistema e ator social. A cultura aparece como manifestação do real social
e molda e modula o comportamento humano, mediante constrangimentos vários: a
cultura se torna self ao oferecer um repertório cognitivo e emocional específico para a
ação do indivíduo social. Por outro lado, este mesmo indivíduo provoca cotidianamente
rearranjos do espaço societal e da cultura, ao ressignificá-la e transformá-la.
Este forma de entender o social e a cultura como fenômenos dinâmicos,
construídos em processos intersubjetivos indeterminados, tensos e conflituais, foi
fortemente influenciada pela retomada das leituras de Simmel (1970, 1986, 1998, 2003,
2010, 2011, 2013) a partir da década de 1970. Simmel entende o social como encontro e
confrontação de subjetividades ou culturas subjetivas, cujos conteúdos emocionais e
afetivos se objetificam enquanto cultura objetiva nas mais variadas formas sociais.
Nesse confronto entre subjetividades, isto é, no processo intersubjetivo, que são
gerados os vínculos, sempre tensos e conflituais, e a todo instantes negociados e
vigiados, entre os indivíduos. Uma vez gerados os vínculos entre as subjetividades,
estes passam a conformar, constranger e tentar dominar as próprias subjetividades
impondo possibilidades de deslocamentos legítimos, pelos próprios sujeitos que os
construíram, no espaço societal. Para Simmel, a cultura emotiva e as emoções geram
códigos morais, regras de confiança, linguagens específicas e leituras de passado e
futuro que possibilitam a continuidade da cultura emotiva, ou seja, do processo
intersubjetivo objetificado no formato de vínculos e pertencimentos.
Simmel enfatiza, deste modo, o jogo dialético entre cultura subjetiva que se
objetifica e de cultura objetiva que conforma a cultura subjetiva, gerando, assim, a
cultura emotiva. Esta proposta de análise do social e da cultura tem por base uma

observação da ação social individual, do self (do “Eu” inserido em teias de significado e redes de
interdependência) e das emoções que perfazem a interação entre os atores sociais de uma sociabilidade. A
antropologia das emoções se fundamenta na observação e análise da cultura emotiva de um espaço
interacional específico. Dentro desta proposta que busca observar e compreender a constituição social dos
selves no âmbito dos jogos interacionais de ordens sociais reais que se inter-relacionam de forma
complexa, as redes de interdependência negociadas entre os atores sociais nela implicados se constroem
historicamente e engendram uma cultura emotiva dada. Os medos, a vergonha, a raiva, a ira, a alegria, a
amizade, a angústia, a insegurança, a melancolia, a pertença e outros constituem vínculos sociais reais no
formato de díades, tríades e multidões, de acordo com Simmel, que se alinham cotidianamente a partir das
subjetividades enquanto unidades interacionais. O fenômeno das emoções aponta para as tensões no
espaço societal, enquanto subjetividades que se encontram e se rearranjam como conteúdos simbólicos
segundo códigos de ação específicos por eles produzidos. As emoções revelam a relação entre indivíduo e
sociedade de uma figuração (ELIAS, 1993, 1994, 2000, 2011), sociabilidade (SIMMEL, 1970, 1986,
1998, 2003, 2010, 2011, 2013) ou ordem social (GOFFMAN, 1988, 1998, 2010, 2012, 2012a, 2014).

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proposta de escrita reflexiva e de fazer etnográfico como objetificação participante, tal


como o entendem Bourdieu (2003), Wacquant (2006) e Koury (2014).
Compartilham desta postura metodológica reflexiva largamente utilizada por
autores alinhados com um fazer etnográfico compreensivo as várias vertentes de análise
do social e da cultura influenciadas pela antropologia cultural boasiana, pela filosofia
social simmeliana, pelas etnografias simbólico-interacionistas do urbano
contemporâneo e pela proposta eliasiana de estudo de espaços interacionais como
espaços de afetos. Na antropologia brasileira atual, a proposta compreensiva de fazer
etnográfico é representada, entre outros, por autores que desenvolvem pesquisas no
campo das emoções, moralidade, e imagem 31.
Bourdieu (2003), ao refletir sobre a presença do pesquisador no campo
desenvolve o conceito de objetificação participante para assim discorrer sobre a
reflexividade científica que deve caracterizar uma pesquisa de campo de corte
etnográfico. Para o autor, o fazer etnográfico pressupõe o exercício de controle e
distanciamento das pré-noções, bem como o de reflexão sobre as condições de
possibilidade da experiência do pesquisador em campo, de modo que estes exercícios de
crítica possam redundar em conhecimentos científicos com base na objetificação da
subjetividade do cientista social.
Esta proposta metodológica compreensiva de fazer etnográfico, tão claramente
disposta por um autor estruturalista como Bourdieu, foi explicitada didaticamente por
Jacobson (1991) e é atualmente explorada por autores como Wacquant (2006) e Koury
(2014). Bourdieu, com a proposta de objetificação participante, se distancia das
propostas de fazer etnográfico como mero exercício autoral sobre a alteridade, em que a
produção objetiva de conhecimentos e a própria possibilidade de ciência como esforço
de compreensão racional do mundo são relativizados ou mesmo negados.
Para Bourdieu, a análise social implica em uma aproximação controlada,
reflexiva, de estranhamento o outro enquanto possibilidade social de configuração de
repertórios simbólicos e formas sociais. A objetificação participante, nas palavras de
Bourdieu (2003, p. 282) significa:
Não se tem de escolher entre observação participante, uma imersão
necessariamente ficcional em um meio estranho, e o objetivismo da
“contemplação à distância” de um observador que permanece tão distante de
si próprio como do seu objeto. A objetivação participante se encarrega de
explorar não a “experiência vivida” do sujeito do conhecimento, mas as
condições sociais de possibilidade – e, dessa forma, os efeitos e limites –
dessa experiência e, mais precisamente, do próprio ato de objetivação. Visa
objetivar a relação subjetiva com o próprio objeto, o que, longe de levar a um
subjetivismo relativista e mais ou menos anticientífico, é uma das condições
da objetividade científica genuína. (Tradução livre do autor).
Wacquant (2006), na esteira de Bourdieu, recusa entender a etnografia como
exercício literário, condenando a “diary disease”, bem como se nega a reduzir a teoria à
poesia. O exercício de reflexividade epistêmica constitui para Wacquant (2006, p. 23)
uma das marcas do projeto etnográfico de Bourdieu, que ele define como um “trabalho
incessante de dessubjetivação”.
Koury (2014) compartilha da noção de fazer etnográfico como objetificação
participante, de modo que advoga uma postura distanciada e reflexiva do antropólogo e
etnógrafo em campo. Isto significa, em linhas gerais, que a ida a campo do pesquisador

31
Ver, por exemplo, os trabalhos de Koury (2005, 2006, 2008, 2009, 2010, 2010a e 2014), Werneck (2009
e 2011), Rezende e Coelho (2010).

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se coloca como oportunidade do exercício crítico do olhar sobre o outro a partir de


pressupostos teórico-metodológicos sempre em processo de construção.
Esta proposta de fazer etnográfico como exercício compreensivo tem como
contraparte uma escrita reflexiva, pautada no esforço de problematizar no texto o
processo de construção interna da pesquisa antropológica. Pesquisa esta focada no
entendimento da alteridade a partir de questões propostas pelo pesquisador, situado que
esta em uma tradição teórico-metodológico de apreensão da realidade social, sempre
posta em questão no contato com o outro.
A narrativa reflexiva (COLOMBO, 2005, p. 285-286) se apresenta como uma
aproximação do real, ou seja, como modelo compreensivo da realidade estudada, de
modo que não postula a correspondência absoluta entre texto e realidade. Por outro
lado, a concepção de que a pesquisa jamais atinge um ponto final e determinante, não
impede que o pesquisador ouse elaborar generalizações e perspectivas de análise a partir
das evidências produzidas em campo.
Este saber empiricamente constituído é explorado como um sistema aberto de
símbolos, em processo contínuo de construção. Este movimento de fazer-se e refazer-se
do saber antropológico gera múltiplos horizontes narrativos (Pina Cabral, 2003), em que
pesquisador e pesquisado se reconhecem enquanto semelhantes, sem, conduto,
abdicarem de suas diferenças culturais próprias.
Considerações Finais
Este artigo buscou apresentar criticamente as três tradições mais visíveis do
fazer antropológico, vinculando-as, ato contínuo, a modos específicos de escrita
etnográfica. Neste sentido, buscou demonstrar, com base na argumentação de Peirano
(2014), que um modo específico de fazer etnográfico é bem mais que um método, um
simples procedimento de pesquisa, haja vista que a maneira de entender e praticar a
etnografia estão fortemente influenciados por escolhas teóricas do pesquisador, sendo a
própria etnografia uma atividade intrinsecamente teórica.
Neste sentido, a argumentação desenvolvida apóia-se firmemente no
entendimento de Peirano (1995) de que a antropologia, como proposta de reflexão
acadêmica e científica sobre a realidade sociocultural de uma sociabilidade dada,
constitui-se em um movimento de constante reencontro do saber acumulado. Com
efeito, neste encontro o ethos do fazer antropológico é atualizado enquanto ideologia
que norteia os pesquisadores e que faz possível de operacionalização uma comunicação
entre as mais distintas tradições teórico-metodológicas da antropologia.
Em síntese, os distintos modos de fazer etnográfico aqui apresentados
contribuíram para o enriquecimento da disciplina. Não se trata, assim, de entender as
tradições teórico-metodológicas aqui elencadas em um continuum evolucionista, ou em
um esforço de inclusão das mesmas em uma proposta mais ampla e final da boa forma
de fazer etnográfico, mas de ampliar o entendimento de como deve ser a boa etnografia
a partir da historicização dos experimentos feitos na construção do corpus antropológico
de conhecimento.
Boas etnografias cumprem, pelo menos, três condições: i) consideram a
comunicação no contexto da situação (cf. Malinowski); ii) transformam, de
maneira feliz, para a linguagem escrita o que foi vivo e intenso na pesquisa
de campo, transformando experiência em texto; e iii) detectam a eficácia
social das ações de forma analítica. (Peirano, 2014, p. 386).
Nas palavras de Peirano acima, por fim, se pode perceber influências das perspectivas
racionalistas, processualistas e compreensivas de análise do social e da cultura para a
construção de um texto etnográfico bem sucedido.

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KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Os Grupos de Pesquisa na UFPB Campus I, 1992-2012: Uma
análise partir do projeto Balanço comparativo da produção da UFPB campus I sobre a cidade de
João Pessoa-Paraíba. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v.1, n.3, p.
78-89, novembro de 2017. ISSN 2526-4702.
Artigo
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

Os Grupos de Pesquisa na UFPB Campus I, 1992-2012: Uma análise


partir d projeto Balanço comparativo da produção da UFPB campus I
sobre a cidade de João Pessoa-PB
The Research Groups at UFPB Campus I, 1992-2012: An analysis from the Project Comparative
balance of the UFPB campus I production on the city of João Pessoa-PB

Mauro Guilherme Pinheiro Koury


Resumo: Este artigo tem por objetivo uma primeira apresentação do projeto de pesquisa
Balanço comparativo da produção da UFPB campus I sobre a cidade de João Pessoa,
Paraíba, 1992-2012, inserido nas linhas de pesquisa do GREM/UFPB, intituladas
Observatório sobre Cidades e História das Ciências Sociais. O objetivo maior do projeto
consiste na elaboração de um Banco de Dados sobre a produção acadêmica que tem como
universo temático a cidade de João Pessoa. O projeto busca também produzir um balanço
da produção acadêmica dos que atuam nas Ciências Sociais, na UFPB campus I, bem como
no intercruzamento desta produção com outras áreas disciplinares no interior do campus I
da UFPB. Palavras-chave: GREM/UFPB, projeto balanço comparativo da produção UFPB
campus I sobre a cidade de João Pessoa-PB, 1992-2012, cidade de João Pessoa,
observatório sobre cidades, história das ciências sociais

Abstract: This article aims to present a first presentation of the research project
Comparative Balance of the Production of UFPB campus I on the city of João Pessoa,
Paraíba, 1992-2012, inserted in the lines of research of GREM/UFPB, entitled Observatory
on Cities and History of Social Sciences. The main objective of the project is the
elaboration of a Database on the academic production that has as its thematic universe the
city of João Pessoa, Paraiba, Brazil. The project also seeks to produce a balance of the
academic production of those who work in the Social Sciences, at UFPB campus I, as well
as in the cross-linking of this production with other disciplinary areas inside the UFPB
campus I. Keywords: GREM/UFPB, project comparative production of UFPB campus I on
the city of João Pessoa-PB, 1992-2012, city of João Pessoa, observatory on cities, history of
social sciences

O GREM Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções, como


base de pesquisa consolidada do CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico/UFPB Universidade Federal da Paraíba, completou vinte e três
anos de atividades ininterruptas de pesquisa e extensão neste ano de 2017. Criado em
1994, como suporte para pesquisas em desenvolvimento sobre emoções e formas de
sociabilidade o GREM nestes vinte e três anos realiza pesquisas sobre emoções,
sociabilidades e cultura no urbano brasileiro e, de modo particular, sobre a cidade de
João Pessoa, Paraíba.
A capital paraibana, deste modo, é um dos universos sistematicamente
trabalhados pelo GREM. Em seus estudos e pesquisas são enfocados, principalmente, as
mudanças que reestruturam e ressignificam o espaço societal urbano a partir, por

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exemplo, de estudos sobre histórias de bairros, medos corriqueiros, emoções,


sofrimento social; luto individual e público; projetos individuais e coletivos, costumes,
entre outros (KOURY, 2017; PONTES, 2017).
Este trabalho tem por objetivo uma primeira apresentação do projeto de pesquisa
Balanço comparativo da produção da UFPB campus I sobre a cidade de João Pessoa,
Paraíba, 1992-2012, inserido nas linhas de pesquisa do GREM intituladas Observatório
sobre Cidades e História das Ciências Sociais. O objetivo maior do projeto consiste na
elaboração de um Banco de Dados sobre a produção acadêmica que tem como universo
temático a cidade de João Pessoa. O projeto busca também produzir um balanço da
produção acadêmica dos que atuam nas Ciências Sociais, na UFPB campus I, bem como
no intercruzamento desta produção com outras áreas disciplinares no interior do campus
I da UFPB.
A pesquisa em pauta, em seus dois suportes, o de criação de um banco de dados,
e o da fabricação de um balanço sobre a produção acadêmica sobre a cidade de João
Pessoa, através dos diversos olhares sobre ela nos projetos dos vários grupos de
pesquisa dos diversos centros de ensino da UFPB campus I pretende, deste modo, criar
mecanismos para aumentar a eficiência e a efetividade da atividade acadêmica na
produção e na divulgação de conhecimentos mediante a superação de problemas como
arquivo morto na academia e assimetria e ausência comunicacional entre os
pesquisadores. Estes dois problemas configuram a justificativa maior da pesquisa.
O Projeto Balanço Comparativo da Produção da UFPB campus I
Os objetivos gerais do projeto Balanço Comparativo da Produção da UFPB
campus I sobre a cidade de João Pessoa, capital do Estado da Paraíba, 1992-2012
(KOURY, 2012), atualmente com sua temporalidade estendida e acrescida para o ano de
2017 podem ser resumidos em dois pontos. O primeiro objetivo é o de avaliar a
produção desenvolvida pelo GREM (temáticas trabalhadas, caminhos teóricos e
metodológicos percorridos; mapas simbólicos construídos sobre João Pessoa; canais de
divulgação da produção) e organizar um Banco de Dados que a torne acessível à
comunidade científica e outros. O segundo objetivo consiste em fazer o mesmo com a
produção desenvolvida na UFPB campus I que tenha a cidade de João Pessoa como
objeto de estudo.
A produção acadêmica, tanto do GREM como das demais instâncias de pesquisa
da UFPB campus I, vem sendo analisada criticamente, submetida a um esforço
comparativo e, por fim, sistematizada de modo a torná-la uma ferramenta de trabalho
transparente e acessível. O balanço crítico-analitico e o mapeamento da produção
acadêmica sobre João Pessoa, consolidados em um Banco de Dados operacional,
permitirão, no seu término, destarte, uma Política de Trocas e de Visibilidade, bem
como a instituição de um Fórum Permanente para a discussão Teórico-Metodológica
sobre cidades.
A pesquisa em curso almeja imprimir à atividade acadêmica da UFPB campus I
a racionalidade instrumental que ora lhe falta ao disponibilizar uma ferramenta de
trabalho que possibilite a comunicação entre os saberes e os conhecimentos já
produzidos ou em produção, bem como descortinará a simbologia construída nos
últimos 23 anos sobre a cidade de João Pessoa.
A sociologia e a antropologia urbana e das emoções são o substrato teórico-
metodológico para a apreensão da cidade de João Pessoa. Estas disciplinas se encontram
na microanálise do cotidiano da comunidade paradoxal que é a metrópole moderna.
A diversidade de modos e estilos de vida (KOURY, 2014), as interações
hipercomplexas, tensas e politextuais que perfazem a cultura emotiva urbana, em

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constante atualização e ressignificação por parte do indivíduo relacional, constituem o


objeto de estudo destas disciplinas. Neste sentido, o projeto em tela conta com uma
ampla base teórica, que se estende de autores clássicos aos estudos mais significativos
na sociologia/antropologia das emoções e urbana; entre outros, situo aqui autores como
Weber, Simmel, Durkheim, Mauss, Elias, Bourdieu, Goffman, Becker e Outros, que
vêm ajudando a sistematizar os elementos TM que vêm norteando a pesquisa.
O projeto já se encontra em sua sexta fase, com alunos de graduação bolsistas
PIBIC Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica e PIVIC Programa de
Iniciação Científica Voluntária, em sua maior parte compostos por estudantes do curso
de Ciências Sociais, mas também do Curso de História e Comunicação Social, do
campus I da UFPB.
Um pequeno balanço das seis fases do projeto
A primeira fase do projeto teve por objetivo uma aproximação ao objeto da
pesquisa, isto é, o campus I da UFPB. Desta forma, cobriu todo o campus I, no
levantamento dos Cursos de Pós-Graduação e suas interfaces com a graduação, e todos
os Grupos de Pesquisa consolidados e em consolidação (recentes) em atuação na UFPB
campus I32. Foi uma fase aproximativa à produção acadêmica do campus I da UFPB, e
de ajustes metodológicos relacionados a uma análise institucional deste campus.
Nesta primeira fase da pesquisa, - de agosto de 2013 a julho de 2014, - as
discussões teórico-metodológicas foram organizadas de modo a incutir na equipe
envolvida no projeto o espírito de grupo e um senso agudo de responsabilidade com os
dados levantados e o sentido de uma pesquisa institucional que percorre diversos
campos profissionais da universidade, e sua produção acadêmica. Bem como, repassar
os elementos teórico-metodológicos de uma pesquisa institucional. Assim que encontros
quinzenais, ou mesmo mensais, a depender do desenrolar das atividades, foram
realizados. Esses encontros foram registrados em atas produzidas em sistema de rodízio
pelos bolsistas PIBIC - Inã Cândido de Medeiro e Franciely Duarte Fernandes, e pelo
estagiário voluntário pós-graduado do GREM, então mestrando em Antropologia do
PPGA Programa de Pós-Graduação em Antropologia/UFPB, sob a minha orientação,
Raoni Borges Barbosa. Este mesmo processo continuou com encontros quinzenais da
equipe para discussões TM sobre o desenvolvimento da pesquisa em todas as suas fases.
A segunda fase, que corresponde à segunda renovação do projeto junto ao
PIBIC/PIVIC CNPq-UFPB, se deu nos anos de 2013-2014, com bolsistas PIBIC e
PIVIC. Nesta segunda fase o projeto se deteve em um balanço comparativo da produção
acadêmica dos grupos de pesquisa do campus I, em relação aos demais de diversas IES
Instituições de Ensino Superior brasileiras. Nesta segunda fase se realizou uma
comparação entre o número dos grupos de pesquisa existentes por ano (de 1992 a 2012)
em cada IES brasileira, comparativamente a UFPB; bem como entre a Região Nordeste
e a UFPB, e entre a UFPB e demais universidades ou centro de ensino universitário da
Paraíba. É este o quadro a ser analisado neste artigo.
A terceira fase se deu com a renovação do projeto para o período 2014-2015,
também com bolsistas PIBIC e PIVIC. Nesta renovação a temporalidade da pesquisa
sofreu o primeiro alargamento, passando a cobrir o período trabalhado por mais três
anos, de 1992-2015. A pesquisa contou com as bolsistas Williane Juvêncio Pontes e
Natana Mamede, e da participação de Camila Quézia Medeiros Rufino Santos e Idayane
Gonçalves Soares, todas do curso de Ciências Sociais, além do estagiário voluntário
Raoni Borges Barbosa.

32
Tem sido feito pari passu o levantamento dos Grupos de Pesquisa que deixaram de existir nesse longo
tempo analisado, por motivo do afastamento ou morte dos seus líderes, sem que houvesse uma
continuidade por outros docentes.

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Esta fase foi dividida em dois momentos. No primeiro momento, a pesquisa se


voltou para a análise dos Centros da UFPB campus I, realizando um balanço
comparativo da produção dos seus Grupos de Pesquisa existentes por Centro e
separando os de produção acadêmica mais elevada. No segundo momento, realizando
uma comparação da produção dos Grupos de Pesquisa por Centro e separando os mais
produtivos entre eles, e os que tivessem uma produção forte voltada para a cidade de
João Pessoa.
A quarta fase, que coincide com a renovação do projeto para o período 2015-
2016, também contou com bolsistas PIBIC e PIVIC, bolsistas Williane Juvêncio Pontos
e Camila Quézia Medeiros Rufino Santos, e os voluntários Evanielly Sheyla Velozo
Silva e Idayane Gonçalves Soares. Nesta fase, a pesquisa, objetivou trabalhar com o
CCHLA Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, - através de uma análise
institucional do GREM. O GREM foi escolhido por ter sido o grupo que possuía uma
das mais altas produções acadêmicas do Centro referido, e uma forte produção voltada
para a cidade de João Pessoa. Ao mesmo tempo em que se dedicou a um balanço da
produção do CE Centro de Educação, CCSA Centro de Ciências Sociais Aplicadas,
CCEN Centro de Ciências Exatas e Naturais, e do CT Centro de Tecnologia, via
programa de pós-graduação em Arquitetura.
A quinta fase da pesquisa se deu com a renovação do projeto para o período
2016-2017, também com dois bolsistas PIBIC e PIVIC. Nesta fase da pesquisa foi feito
um novo reajuste de tempo, com a temporalidade alargada para o ano de 2017.
Nesta fase deu-se continuidade ao balanço da produção acadêmica do GREM,
havendo no término uma defesa de TCC Trabalho de Conclusão de Curso em Ciências
Sociais sobre o balanço institucional do GREM, da aluna bolsista do Curso de Ciências
Sociais Williane Juvêncio Pontes, até então bolsista PIBIC e também sob minha
orientação no bacharelado de Ciências Sociais. O seu TCC voltou-se para a análise do
projeto guarda-chuva Medos Corriqueiros, sob minha coordenação, do GREM
(PONTES, 2017a). Este projeto guarda-chuva foi escolhido por possuir o maior número
de orientações concluídas e a maior produção acadêmica em forma de livros, artigos em
coletâneas, periódicos e anais de congressos sobre a cidade de João Pessoa entre os
demais concluídos ou em desenvolvimento nas demais linhas de pesquisa do grupo.
Nesta mesma fase foram iniciados levantamentos da produção acadêmica das
Pós-Graduações em Geografia e Arquitetura do campus I da UFPB. A Pós-Graduação
em Geografia centrou-se na figura de uma docente, com maior produção acadêmica,
junto com seus discentes, do programa, e com ênfase na cidade de João Pessoa. Na Pós-
Graduação em Arquitetura, o trabalho se dedicou a uma análise dos grupos de pesquisa
e dos docentes nestes grupos, chegando-se a conclusão de que a ênfase em três
pesquisadoras, com alta produção enfatizando a cidade de João Pessoa, seria mais
interessante do que aprofundar os grupos em si.
A sexta fase, que corresponde à sexta renovação do projeto, é a fase atual. Cobre
o período 2017-2018, com dois bolsistas PIBIC, Diego Amorim Novaes e Ana Beatriz
Ramos de Oliveira, ambos do Curso de História do campus I. Nesta renovação,
recentemente iniciada, a pesquisa se amplia em mais um programa de pós-graduação do
CT, com a análise do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil e Ambiental; e
dando continuidade ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura.
No primeiro caso, a Engenharia Civil e Ambiental, está-se fazendo o
levantamento da produção docente e discente, a leitura deste material, e a produção
específica sobre a cidade de João Pessoa, entre as três docentes escolhidas na fase
anterior, para se escolher um Grupo de Pesquisa ou de professores mais produtivos para

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se aprofundar em sua produção. O que deverá acontecer, provavelmente, na próxima


renovação da pesquisa, entre os anos de 2018-2019.
No segundo caso, o Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, esse
levantamento já foi concluído, e está sendo realizada a análise da produção de três
pesquisadoras e seus orientandos, de TCC, Dissertação e Tese, - com maior produção e
com ênfase dessa produção voltada para a cidade de João Pessoa. No caso da
Arquitetura, houve uma determinação a partir do levantamento realizado na quinta fase
da pesquisa, focar a análise na produção de três docentes e de seus discentes, a partir da
ênfase dada à cidade de João Pessoa, universo foco dos trabalhos de pesquisa dos
Grupos de Pesquisa ou de seus pesquisadores, a ser explorado na análise institucional
realizada pelo projeto aqui apresentado.
Como é um projeto que cobre toda a UFPB campus I, é um projeto de longa
duração, por isso renovado nos anos acima, todos com bolsistas e voluntários. O projeto
tem sido um excelente meio de formação e treinamento em pesquisa para os alunos do
Curso de Ciências Sociais, bem como de outros cursos ligados à Comunicação e
História, todos da UFPB campus I. É um projeto também que tem ampliado a visão do
que tem sido produzido nos diversos Centros do campus I da UFPB, com ênfase na
cidade de João Pessoa.
Todas as fases foram seguidas de seminários TM Teórico-Metodológicos, para
melhor enquadrar o espírito da pesquisa no âmbito de um projeto de formação e para
aquilatar as práticas dos pesquisadores ao espírito da pesquisa. A discussão teórico-
metodológica conduzida durante a pesquisa vem abordando, de forma sistemática, os
seguintes temas: métodos qualitativos e quantitativos em pesquisa social (Newman,
1994); pesquisa institucional (D‟ALESSIO, 1996, FERREIRA, 2002, KÊNIA, 2012,
PATO & CATALÃO, 2009, RONDÃO, 2006); revisão de literatura (NEWMAN, 1994;
TAYLOR & BOGDAN, 1984; WRIGHT MILLS, 1969); mapeamento da produção
acadêmica; pesquisa „estado de arte‟; imaginação sociológica; memória social e
institucional (KÊNIA, 2012, PATO & CATALÃO, 2009, RONDÃO, 2006); pesquisa
científica e poder social (KÊNIA, 2012); produção docente e discente em uma IES
(PATO & CATALÃO, 2009); influência da avaliação CNPq/CAPES sobre a produção
acadêmica (KÊNIA, 2012; RONDÃO, 2006; SANTOS, 2009; SILVA, 2009), pesquisas
sobre o urbano em diversos campos acadêmicos, tais como os trabalhos de Certeau,
Robert Park, Ernest Burgess, Georg Simmel, Karl Marx, Max Weber, Erving Goffman,
Milton Santos, Pierre Nora, Sandra Pesavento, Roberto DaMatta, Gilberto Velho,
Machado da Silva, Louis Wirth, Henrique F. Antunes, Raymond Lebrut, Walter
Benjamin, Henri Lefebvre, entre outros mais; e, por fim, sobre a produção da cidade de
João Pessoa (esta última contida, basicamente, na vastíssima produção acadêmica do
campus I sobre a cidade).
Os Seminários TM buscam, por sua vez, despertar nos envolvidos com a
pesquisa a questão da cidade como objeto e universo da pesquisa acadêmica, a partir
dos trabalhos realizados nos diversos Centros da UFPB campus I. Assim que a
problemática da memória, das imagens e das identidades que se elabora sobre o espaço
societal urbano conhecido por João Pessoa – PB estão sempre presentes nas discussões
realizadas na sala do GREM. Durante o decorrer dos seminários TM, também foram
discutidos e introduzidos textos de uma Antropologia da Ciência (LATOUR, 1994,
2002; RABINOW, 1996), buscando situar a produção científica em seu lócus espaço-
temporal e em uma política e cultura de negociações e conflito em torno do seu fazer e
dos significados atribuídos à sua importância e hegemonia, local, regional, nacional,
internacional.

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Um rápido comentário sobre a fundação e estruturação da UFPB


O ensino universitário no estado da Paraíba, em forma de uma instituição
universitária de ensino, foi criado pela Lei Estadual 1.366, de 02 de dezembro de 1955,
e instalada sob o nome de Universidade da Paraíba. Isso se deu como resultado da
junção de algumas escolas superiores já existentes no estado, e do esforço de
federalização de algumas delas (LIMEIRA e FORMIGA, 1986).
A sua federalização aconteceu posteriormente, aprovada e promulgada pela Lei
nº. 3.835 de 13 de dezembro de 1960. Nessa ação, a Universidade da Paraíba foi
transformada em Universidade Federal da Paraíba. Processo este que se completou
através da incorporação das estruturas universitárias existentes nas cidades de João
Pessoa e Campina Grande.
A partir de sua federalização, a UFPB desenvolveu uma crescente estrutura
multicampi, distinguindo-se, nesse aspecto, das demais universidades federais do
sistema de ensino superior do país que, em geral, têm suas atividades concentradas num
só espaço urbano. Essa singularidade expressou-se por sua atuação em sete campi
implantados nas cidades de João Pessoa, Campina Grande, Areia, Bananeiras, Patos,
Sousa e Cajazeiras.
No início de 2002, a UFPB passou pelo desmembramento de quatro, dos seus
sete campi. A Lei nº. 10.419 de 09 de abril de 2002 criou, por desmembramento da
UFPB, a UFCG Universidade Federal de Campina Grande, com sede em Campina
Grande. A partir de então, a UFPB ficou composta legalmente pelos campi de João
Pessoa, Areia e Bananeiras, passando os demais campi (Campina Grande, Cajazeiras,
Patos e Sousa) a serem incorporados pela UFCG.
Em 2005, porém, dentro do plano de expansão das instituições públicas de
ensino superior, denominado Expansão com Interiorização, do Governo Federal, a
UFPB formou mais um campus: o Campus IV, no Litoral Norte do Estado. Este novo
campus abrange os municípios de Mamanguape e Rio Tinto.
Em 2011, a UFPB se encontrava estruturada da seguinte forma: O Campus I, -
universo de referência desta pesquisa, - está situado na cidade de João Pessoa, e
compreende os seguintes Centros: CCEN Centro de Ciências Exatas e da Natureza;
CCHLA Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes; CCM Centro de Ciências
Médicas; CCS Centro de Ciências da Saúde; CCSA Centro de Ciências Sociais
Aplicadas; CE Centro de Educação; CT Centro de Tecnologia; CCJ Centro de Ciências
Jurídicas e CTDR Centro de Tecnologia e Desenvolvimento Regional. Novos Centros,
porém, foram criados no Campus I, em 2011, pelo CONSUNI Conselho Universitário,
passando a vigorar a partir do segundo semestre de 2012. São eles: o Centro de
Informática, o Centro de Biotecnologia, o Centro de Energias Alternativas Renováveis e
o Centro de Comunicação, Turismo e Artes.
Estes Centros do Campus I não serão avaliados nesta pesquisa como Centros
independentes, por se encontrarem em instalação durante o segundo semestre de 2012.
A produção deles será computada até o primeiro semestre de 2012 [ano base inicial da
pesquisa] no interior dos antigos Centros de onde eles foram desmembrados e a qual
seus docentes e discentes pertenciam, passando a serem computados como Centros
autônomos a partir de então (com a ampliação do ano base para 2017).
O Campus II, na cidade de Areia, compreende o Centro de Ciências Agrárias
(CCA); o Campus III, na cidade de Bananeiras, abrange o Centro de Ciências Humanas,
Sociais e Agrárias (CCHSA) e o Campus IV, nas cidades de Mamanguape e Rio Tinto,
com o Centro de Ciências Aplicadas e Educação (CCAE). Como já informado acima, a
pesquisa se debruça apenas sobre o campus I da UFPB.

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Às vezes, aqui, porém, se estabelecerá estatísticas sobre a universidade como um


todo, quando em relação com os dados regionais e nacionais dos grupos de pesquisa, via
balanços estatísticos do CNPq. Outras vezes, as produções de docentes de outros campi,
se encontram inseridos em atividades de ensino e de pesquisa e extensão no Campus I.
Como é o caso, por exemplo, do PPGA – Programa de Pós-Graduação em
Antropologia, que envolve professores do Campus I e do Campus IV. Outras vezes,
ainda, dependendo da vinculação direta e da denominação a qual Campus pertence,
alguns Grupos de Pesquisa não serão considerados como do Campus I, embora possa
haver professores do Campus I que neles atuem.
Comparando os Grupos de Pesquisa da UFPB com os de outras IES
As súmulas estatísticas dos grupos de pesquisa produzidas pelo Diretório Geral
de Pesquisa do CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
constituem um bom índice comparativo e histórico do desenvolvimento da base de
grupos de pesquisa no Brasil. A série de levantamentos realizados pelo Diretório Geral
de Pesquisa dá conta, a cada dois anos, da situação dos grupos de pesquisa espalhados
pelas universidades brasileiras, bem como pelas diversas instituições de pesquisa e
estados da federação, a partir do ano de 1993.
Durante a segunda fase desta pesquisa, como indicado anteriormente, se fez um
levantamento das súmulas estatísticas do CNPq, onde se deu prioridade à relação entre
os Grupos de Pesquisa da UFPB em comparação com os Grupos de Pesquisa de outras
instituições do Estado da Paraíba, bem como do Nordeste e Brasil, o que pode ser
acompanhado através das Tabelas 1 e 2 abaixo. Infelizmente, os dados das súmulas não
dão conta dos campi, no interior da UFPB, mas tomam a UFPB como um todo. Porém,
mesmo assim, é possível analisar o desempenho dos Grupos de Pesquisa da UFPB em
relação aos conjuntos acima indicados.
A Tabela 1, por outro lado, mostra o desenvolvimento dos grupos de pesquisa
nas diversas instituições de ensino superior do Brasil, no Nordeste, na Paraíba e na
UFPB, onde é possível realizar uma comparação entre essas informações, dentro de uma
súmula histórica entre os anos de 1993 [primeira súmula estatística] a 2010 [última
súmula disponível no Diretório Geral de Pesquisa do CNPq até o momento deste
relatório]. No caso da UFPB e demais instituições de ensino superior e de pesquisa na
Paraíba, por exemplo, é possível perceber a liderança da UFPB em termos de número de
grupos de pesquisa desde a primeira [1993] até a última súmula [2010] estatística. Em
1993, deste modo, é possível perceber a quase inexistência de grupos de pesquisa fora
da instituição UFPB: dos 118 grupos de pesquisa existentes no estado da Paraíba,
apenas 17 deles existiam fora da UFPB. Já em 2010, porém, os grupos de pesquisa fora
da instituição UFPB perfaziam juntos quase a metade dos grupos de pesquisa existentes
no estado da Paraíba. O que os coloca em concorrência com a UFPB, embora sem
ameaçar a sua liderança individual.

Tabela 1 - Distribuição dos grupos de pesquisa UFPB VS PB, NE, Brasil - 1993-2010

1993 1995 1997 2000 2002 2004 2006 2008 2010


Região
GPs % GPs % GPs % GPs % GPs % GPs % GPs % GPs % GPs %

UFPB 101 2,3 105 1,4 158 1,8 175 1,5 265 1,7 179 0,9 194 0,9 243 1,1 352 1,3

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Paraíba 118 2,7 126 1,7 181 2,1 224 1,9 318 2,1 329 1,7 372 1,8 491 2,2 662 2,4

Nordeste 434 9,9 714 9,8 987 11,4 1.720 14,6 2.274 15,0 2.760 14,2 3.269 15,5 3.863 16,9 5.044 18,3

Brasil 4.402 100 7.271 100 8.632 100 11.760 100 15.158 100 19.470 100 21.024 100 22.797 100 27.523 100

Fonte: Diretório Geral de Pesquisa do CNPq – dados trabalhados pela equipe de pesquisa

Esse dado reflete, sem dúvida, alguns momentos tensos de significação para a
produção acadêmica da UFPB e do estado da Paraíba. Um deles diz respeito ao
desmembramento, já comentado anteriormente, dos sete campi que compunham a
UFPB, com a criação da UFCG em 2002. O impacto causado pelo desmembramento, no
interior da UFPB aparecerá na súmula estatística organizada pelo Diretório Geral de
Pesquisa do CNPq a partir de 2004. É possível verificar na Tabela 1 o impacto sofrido
pela UFPB em relação ao número de grupos de pesquisa no Brasil: se em 2002 a súmula
estatística apontava a UFPB com um índice de 1,7% dos grupos de pesquisa do Brasil,
em 2004 esse percentual cai para 0,9%. O que significa em termos absolutos uma queda
de 265 grupos de pesquisa em 2002, para 179 grupos de pesquisa em 2004.
Um segundo impacto nesse mesmo período, que causou uma queda na produção
acadêmica e na composição dos grupos de pesquisa da UFPB, diz respeito ao corte de
incentivos à educação superior de ensino federal durante o governo de Fernando
Henrique Cardoso (FHC), e a política de esvaziamento das instituições federais de
ensino superior, com os incentivos à aposentadoria, durante o governo Collor e
continuada como pressão e falta de expectativas dos docentes no governo FHC. Durante
o governo de FHC, por exemplo, o esvaziamento de pessoal especializado [mestres e,
sobretudo, doutores] chegou a um grande percentual dos quadros das universidades
federais brasileira. Na UFPB, por exemplo, alguns programas de pós-graduação
perderam mais de 60% dos seus doutores, sem ter como repô-los, já que a política de
contratação era de cinco aposentados para uma vaga, que se tirava depois de muita briga
e discussão.
Um terceiro impacto, pensando na UFPB, se deu através da política de incentivo
ao ensino superior privado, também através do governo FHC. O qual desviou verbas de
pesquisa e bolsas de pós-graduação para instituições privadas sem tradição de pesquisa
e nem política de pessoal, deixando as federais como se diz popularmente a ver navios.
Impactos que abalaram as Universidades Federais de todo o país e foram marcantes no
esfacelamento da pesquisa e de Grupos de Pesquisa na UFPB, como pode ser notado na
Tabela 3 abaixo.

Tabela 2 - Grupos de pesquisa UFPB - 1993-2010

1993 1995 1997 2000 2002 2004 2006 2008 2010


Instituição
Grupos % Grupos % Grupos % Grupos % Grupos % Grupos % Grupos % Grupos % Grupos %

UFPB 101 2,3 105 1,4 158 1,8 175 1,5 265 1,7 179 0,9 194 0,9 243 1,1 352 1,3

BRASIL 4.402 100 7.271 75 8.632 100 11.760 100 15.158 100 19.470 100 21.024 100 22.797 100 27.523 100

Fonte: Diretório Geral de Pesquisa do CNPq – dados trabalhados pela equipe de pesquisa

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Esses impactos aparecem aqui mais como um conjunto de questionamentos ou


hipóteses compreensivas do que elementos de comprovação. Mas são elementos
importantes para as análises posteriores, tanto da política de produção acadêmica da
UFPB, quanto da brasileira como um todo durante os quatorzes anos do século XXI.
É possível perceber também, de outra parte, uma ampliação e esforço de
recuperação da pesquisa a partir do ano de 2008 nas universidades brasileiras e, aqui,
particularmente, da UFPB. No caso específico da UFPB, em 2008 temos 243 grupos de
pesquisa, que satisfazem a 2,2% dos grupos de pesquisa no Brasil, e em 2010, esse
número absoluto passa para 663, o que equivale a 2,4% do quadro brasileiro.

Tabela 3 - Lugar dos Grupos de pesquisa UFPB no Ranking Nacional


- 2000-2010

2000 2002 2004 2006 2008 2010


Instituição
Ranking Ranking Ranking Ranking Ranking Ranking

UFPB 11ª 9ª 26ª 26ª 23ª 20ª

UFCG - - 42ª 41ª 38ª 38ª

UEPB - - - - 66ª 67ª

Fonte: Diretório Geral de Pesquisa do CNPq – dados trabalhados pela equipe de pesquisa

Esse esforço se baseia em uma retomada da política de reforço das universidades


públicas federais no Brasil pelo governo Lula, com a procura de sanar os quadros
defasados de docentes nas instituições federais, bem como de criação de novas
universidades e ampliação de novos cursos e de número de discentes graduados e pós-
graduados.
Este reforço, apesar de louvável, precisa ser analisado com calma. Apesar de não
ser realizado neste trabalho, se faz imprescindível a sua análise para compreensão do
quadro atual de ensino e pesquisa pós-graduada nacional, local e, particularmente na
UFPB. Por outro lado, se pode pensar, como questionamento e quase hipótese de
trabalho, que houve impactos na pós-graduação e na graduação com a entrada de
grandes levas de pessoal docente, embora qualificado, mas sem experiência em ensino e
gestão, em relação às formas instituídas e fragilizadas dos cursos, bem como
departamentos e centros. Esses impactos necessitam e serão em breve analisados.
É interessante, por outro lado, analisar comparativamente os grupos de pesquisa
da UFPB comparativamente aos demais grupos de pesquisa de outras instituições de
ensino e pesquisa na Paraíba em relação ao Brasil. Tem-se, como já se comentou
anteriormente, um impacto grande com o desmembramento da UFCG da UFPB. A
UFPB, quando avaliada dois anos após o desmembramento, diagnostica-se uma grande
queda no ranking dos grupos de pesquisa nacional. Do 9º lugar cai para a 26ª posição e,
embora nos anos seguintes busque uma recomposição e um aumento de posição no
ranking, até o ano de 2010 ainda permanece no 20º lugar.
Este fato é revelador da necessidade de tentar compreender os questionamentos
acima mencionados para uma verificação dos impactos causados e suas consequências
na pesquisa e na produção acadêmica da UFPB. Necessidade de compreensão dos
impactos sejam eles de que direções caminhem: sejam os trazidos por consequência do

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desmembramento da UFCG, sejam os ocasionados pelas aposentadorias precoces nas


universidades federais, sejam ainda pela política de desinvestimento nas instituições
federais de ensino superior durante o governo FHC, sejam ainda motivados pelo
preenchimento de vagas por novos profissionais, durante o governo Lula, mas embora
com titulação, sem experiência na gestão e no ensino superior, e sem ter um movimento
lento de transmissão de saberes e processos de institucionalização locais, criando óbices
à retomada do ritmo da pesquisa que até então havia. Apesar dos esforços de muitos
neste sentido.
A continuidade da pesquisa, portanto, deve passar por uma configuração dos
grupos de pesquisa na UFPB campus I, tentando reconstruir as suas histórias e
comparativamente como se situam no interior da pesquisa nacional e local.
Notas Finais
Este trabalho, portanto, teve por objetivo realizar um apanhado geral da pesquisa
Balanço Comparativo da Produção da UFPB campus I sobre a cidade de João Pessoa,
capital do Estado da Paraíba, 1992-2012 (acrescida à temporalidade até 2017) em
suas seis fases de desenvolvimento, de um lado. E de outro lado, realizar um balanço
das súmulas estatísticas sobre os Grupos de Pesquisa do Brasil, produzidos pelo
Diretório Geral de Pesquisa do CNPq.
Deu-se ênfase a uma análise comparativa da UFPB em uma série histórica das
súmulas estatísticas do CNPq que vai de 1993 a 2010. Tanto uma comparação interna,
quanto uma comparação com outros Grupos de Pesquisa situados nacionalmente e
regionalmente. Iniciou-se, também, um amplo e exaustivo mapeamento de todos os
Grupos de Pesquisa da UFPB campus I33. Estas tarefas não somente vão permitir
praticar o conteúdo teórico processado durante toda a pesquisa, mas também
experimentar mais profundamente a UFPB, em grande parte de sua complexidade e
caos.
O projeto Mapeamento da Produção da UFPB campus I, de 1992-2017, tem
redundado em uma experiência de pesquisa das mais interessantes no sentido de vir
contribuir para renovar e substituir as representações que se tinha sobre a Universidade
Federal da Paraíba enquanto lócus de produção acadêmica e como espaço para se pensar
a cidade de João Pessoa, Paraíba. Os resultados alcançados, por outro lado, parecem
apontar mais para rupturas do que continuidades nas trajetórias temáticas, teóricas e
metodológicas na pesquisa e no ensino da UFPB campus I e da UFPB como um todo.
Embora ainda sejam mais hipóteses do que comprovações. A continuação da pesquisa
leva, enfim, necessariamente, ao aprofundamento de uma discussão sobre a montagem
deste grande quebra-cabeça que é a produção acadêmica do campus I nos últimos vinte
e cinco, e contribuirá, sem dúvida, para um melhor perfil sobre o que e quem produz na
UFPB.
Bibliografia
ABREU, Regina. Chiclete eu misturo com banana? Acerca da relação entre teoria e
pesquisa em memória social. In: Jô Gondar e Vera Dobedei (Orgs.). O Que é Memória
Social?, p. 27-42, Rio de Janeiro: Contracapa/PPGMS-UERJ, 2005.

33
Foi realizado um levantamento exaustivo das bases de pesquisa CNPq-UFPB Campus I, com o intuito
de verificar a história de cada base ou grupo de pesquisa, sua produtividade, seus docentes envolvidos,
seus técnicos e estudantes: doutorandos, mestrandos e graduandos. Foi aberto um canal de observação,
também, para a análise das vinculações dos grupos de pesquisa da UFPB com outros grupos brasileiros e
internacionais. Este levantamento será objeto de um novo artigo, em preparação.

Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia v1 n3 novembro de 2017 ISSN 2526-4702


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DOBEDEI, Vera. Memória, circunstância e movimento. In: Jô Gondar e Vera Dobedei
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FREIRE, Jussara; JUNIOR, Ailton Gualande; CONCEIÇÃO, Tayná Santos & TANTOW, Michelle
Gomes de Carvalho. Vulnerabilidades da experiência citadina: os métiers do público em Campos dos
Goytacazes e Macaé. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v.1, n.3, p. 90-112,
novembro de 2017. ISSN 2526-4702.
Artigo
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

Vulnerabilidades da experiência citadina e acesso aos espaços públicos


urbanos em duas cidades médias: os métiers do público em Campos dos
Goytacazes e Macaé (RJ)

Vulnerabilities of the city experience and the access to urban public spaces in two medium-
sized cities: the public métiers in Campos dos Goytacazes and Macaé (RJ)

Jussara Freire et Al
Resumo: Neste artigo, apresentamos parte dos resultados da pesquisa Vulnerabilidades da experiência
citadina e acesso aos espaços públicos urbanos em cidades do Norte-Fluminense, coordenada por Jussara
Freire. Esta pesquisa foi realizada de 2014 a 2016 por uma equipe de quatro pesquisadores, autores do
presente artigo e todos integrantes do grupo Cidades, espaços públicos e periferias. Partimos das
contribuições de Isaac Joseph e de Gilles Jeannot (2002 [1995]) acerca das "relações de serviços" e dos
modos segundo os quais estes autores problematizam o serviço público. Também retomamos as
contribuições de Joseph (2007) sobre a noção de espaço público, mundo sensível, observável a partir da
descrição densa de experiências citadinas ordinárias e de seus ambientes. Articulando estas abordagens,
este projeto tinha como objetivo geral retomar sua proposta ecológica de situações para descrever e
interpretar quadros interacionais e morais de sociabilidades e públicos possíveis de cidades da região
Norte-Fluminense (escolhendo duas cidades como casos particulares do possível, Macaé e Campos dos
Goytacazes). Tratava-se de analisar momentos da vida cotidiana que contam com a presença de
profissionais que exercem os "métiers du public", isto é, de orientação, gestão de fluxos ou cuidados
de/com públicos diferenciados. Palavras-chave: vulnerabilidades da experiência citadina cotidiana,
espaços públicos, públicos, mundos sensíveis, descrição densa, quadros interacionais e morais de
sociabilidades urbanas

Abstract: In this article, we present part of the results of the research Vulnerabilities of the city
experience and the access to urban public spaces in cities of Norte-Fluminense, coordinated by Jussara
Freire. This research was carried out from 2014 to 2016 by a team of four researchers, the authors of this
article and all members of the group Cities, public spaces and peripheries. We begin with the
contributions of Isaac Joseph and Gilles Jeannot (2002 [1995]) about the "service relations" and the ways
in which these authors problematize the public service. We also recall Joseph's contributions (2007) on
the notion of public space, the sensitive world, which are observable from the dense description of
ordinary city experiences and their environments. By articulating these approaches, this project had as a
general objective to retake its ecological proposal on situations to describe and interpret the interactional
and moral frameworks of sociabilities and possible publics of cities in the North-Fluminense region
(choosing two cities as particular cases of the possible, Macaé and Campos dos Goytacazes). It was a
question of analyzing moments of daily life that count on the presence of professionals who exercise the
“métiers du public”, that is, exercises of orientation, of flow management or care of / with differentiated
publics. Keywords: vulnerabilities of everyday city experience, public spaces, public spaces, sensitive
worlds, dense description, interaction and moral frameworks of urban sociabilities

Neste artigo, apresentamos parte dos resultados da pesquisa Vulnerabilidades da


experiência citadina e acesso aos espaços públicos urbanos em cidades do Norte-
Fluminense coordenada por Jussara Freire. Esta pesquisa foi realizada de 2014 a 2016
por uma equipe de quatro pesquisadores, autores do presente artigo e todos integrantes

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do grupo Cidades, espaços públicos e periferias34. Partimos das contribuições de Isaac


Joseph e de Gilles Jeannot (2002 [1995]) acerca das "relações de serviços" e dos modos
segundo os quais estes autores problematizam o serviço público. Também retomamos as
contribuições de Joseph (2007) sobre a noção de espaço público, mundo sensível,
observável a partir da descrição densa de experiências citadinas ordinárias e de seus
ambientes. Articulando estas abordagens, este projeto tinha como objetivo geral retomar
sua proposta ecológica de situações para descrever e interpretar quadros interacionais e
morais de sociabilidades e públicos possíveis de cidades da região Norte-Fluminense
(escolhendo duas cidades como casos particulares do possível, Macaé e Campos dos
Goytacazes). Tratava-se de analisar momentos da vida cotidiana que contam com a
presença de profissionais que exercem os "métiers du public", isto é, de orientação,
gestão de fluxos ou cuidados de/com públicos diferenciados.
Em suma, propusemos partir da proposta de Isaac Joseph, ajustando-a aos
contextos em análise, para compreender os sentidos conferidos ao espaço público a
partir de três eixos que orientam uma observação in situ realizada pelos três bolsistas de
iniciação cientifica e supervisionada por Jussara Freire: situações de transporte coletivo
(Ailton Gualande Junior se focalizou nas observações de filas de ônibus em terminais de
Campos35); situações de atendimento em uma unidade de saúde (Tayná Santos fez sua
pesquisa de campo em salas de espera e atendimento por balconistas em uma unidade
básica de saúde em Campos); situações de cuidados escolares com alunos com
deficiências em Campos e Macaé36. Este artigo se estrutura em três sessões, cada uma
correspondente aos eixos de observação de situações detalhados acima. Priorizamos a
descrição de algumas das situações que selecionamos por elas oferecerem a
compreensão de alguns dos sentidos do público, a natureza das transações que
pressupõem cada modalidade de relações de serviço e diferentes dimensões da
vulnerabilidade da experiência do “usuário”, mas também do agente de serviço.
Priorizamos, em todos os casos, a observação das situações em que se
encontram aqueles que exercem ofícios de regulação e/ou cuidados com os públicos.
Em particular, procuramos descrever e interpretar as competências dos “agentes de
serviços” e dos seus usuários. O objetivo específico da nossa pesquisa, que constitui
paralelamente o seu problema, é de observar como as vulnerabilidades, em um sentido
goffmaniano, emergem nestas situações, considerando a centralidade desta descrição
interpretativa para a compreensão dos obstáculos de acesso ao espaço público
(entendidos também como obstáculos de acesso, mobilidade e circulação aos/em
espaços públicos urbanos).
Neste sentido, pode-se ressaltar que os métiers do público não necessariamente
se definem, nos casos em análise, por atividades ou relações de serviço que ocorreriam
apenas em instituições governamentais. Inspirando-nos de trabalhos de Joseph (2007),
partimos intencionalmente de uma definição elástica “do público” e consideramos os
profissionais responsáveis por atendimentos, como aqueles que tecem “relações de
serviço” (Jeannot e Joseph, op. cit.) com públicos. Desta forma, os ofícios (métiers) do
público não se circunscrevem exclusiva e necessariamente em instituições estritamente
governamentais. Por exemplo, no caso da associação de “capacitação” de alunos com
deficiências em Campos, os agentes de serviço (que trabalham, portanto em uma

34
Ailton Gualande Junior e Michelle Gomes foram bolsista no quadro do Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação Científica - PIBIC/UFF em 2015 e 2016 respectivamente. Michelle Gomes também foi bolsista de iniciação
científica da Fundação de Amparo à Pesquisa Carlos Chagas em 2014 (IC/FAPERJ). A pesquisa ainda foi financiada
pela Pró-reitora de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação (PROPPI), no quadro do edital “Apoio a projetos de pesquisa
em campi fora da sede” de 2014 a 2015.
35
Freire; Gualande Junior, 2015; Freire; Gualande Junior, 2016.
36
Gomes (2017).

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associação não governamental), observados por Michelle Gomes, atendem públicos que
podem ser encaminhados por assistentes sociais ou professores de instituições
municipais (como os serviços de assistências de prefeituras, ou ainda de escolas
municipais e estaduais). Paralelamente, esta associação tece inúmeras parcerias com
profissionais e gestores da Prefeitura de Campos. Desta forma, apesar de se tratar de
uma organização não governamental, os intensos contatos com instituições
governamentais borram as fronteiras entre o que pertenceria a um público rigidamente
associado ao “Estado” e formas associativas que seriam afastadas dele. Da mesma
forma, como é o caso das relações de serviço de transporte coletivo em Campos dos
Goytacazes analisadas por Ailton Gualande Junior, as empresas são privadas e
regulamentadas por uma série de dispositivos jurídicos, e ainda fiscalizadas por
funcionários da Prefeitura Municipal de Campos dos Goytacazes. Por estes motivos,
propomos considerar todos aqueles responsáveis por atendimentos e/ou cuidados com
públicos (independentemente da instituição, organização e empresa) como agentes de
serviço, novamente no sentido de Joseph e Jeannot (op. cit.).
I. Relações de serviço, transporte coletivo e públicos (Ailton Gualande Junior)
Ofícios dos despachantes, motoristas e cobradores
Todos os dias, de madrugada, ouve-se em determinados pontos da cidade a
“zoeira” dos motores que se aquecem ao serem ligados por seus condutores. Nas
garagens, a efervescência da vida citadina anuncia-se. Motoristas e cobradores se
aprontam para passarem as próximas oito horas acomodados em suas respectivas
poltronas. Analisam o intenso fluxo de pessoas no espaço do ônibus, pontos e terminais
rodoviários. Essas personagens não só observam, mas compõem o público (DEWEY,
1927) que transita pela cidade nos ônibus do transporte coletivo. O motorista, habituado
a seus automatismos (JOSEPH, 2007) para no ponto (nem sempre) quando alguém lhe
sinaliza a intenção de embarcar. Olha para o retrovisor direito, diminui a velocidade e
para. Pressiona certa alavanca que se situa ao lado esquerdo, entre seu braço e a janela
da poltrona. A porta se abre por meio do acionamento de um sistema pneumático. O
passageiro, então, embarca. Apoia-se nas barras de ferro acopladas na escada de acesso
ao ônibus. Finalmente alcança aquele corredor cercado por todos os lados. Posiciona-se
de frente para o cobrador. Durante toda movimentação o motorista analisou a situação
por meio do retrovisor central, o qual lhe proporciona uma visão ampla do interior do
veículo. Assim que percebe o reflexo do passageiro, engata a primeira marcha, olha para
o retrovisor esquerdo e arranca. Nesse momento o passageiro se aproxima do cobrador e
equilibra-se para não cair, sinalizando a intenção de pagar a passagem. O cobrador, mais
habituado aos solavancos recebe o dinheiro, e ao certificar-se que a quantia está correta
destrava a roleta para que o passageiro possa procurar um assento desocupado.
Estes dois agentes de serviço (JOSEPH; JEANNOT, op. cit.) trabalham em
conjunto. Por vezes, o cobrador utiliza-se do som de uma moeda contra a roleta para
sinalizar ao motorista que há pessoas com a intenção de embarcar. Em outros
momentos, o tilintar da moeda significa que o condutor pode arrancar, uma vez que
todos os passageiros embarcaram. Este tipo de interação ocorre principalmente em
momentos de grande movimento, quando os pontos estão cheios e, consequentemente
os ônibus também. Nessas ocasiões, a visibilidade do motorista por meio dos
retrovisores é reduzida. Portanto, a execução de seus automatismos segue a sinalização
de seu parceiro de trabalho.
Inseridos na dinâmica de circulação do transporte coletivo, esses profissionais
experimentam relações de serviço estreitas e constantes com os “usuários”. Mesmo
quando não se engajam em uma conversa, a interação face a face torna-se inevitável no

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espaço do ônibus. Nesse sentido, retomando Joseph (2000), ambos podem ser
considerados homens públicos no sentido de que suas atividades são particularmente
orientadas por um esforço de figuração e de apresentação do eu em um espaço de
intenso fluxo de pessoas (GOFFMAN, 1991). Para Joseph, o quadro de observação
mútua gerado pela copresença dos atores leva-os a justificarem sua encenação
constantemente.
Na medida em que a pessoa que exerce a atividade de serviço é obrigada…a demonstrar
certa deferência em relação ao cliente, sua atuação pode se revestir de todas as nuanças
da teatralidade: ela pode exibir com ostentação os atributos de seu papel, limitar-se ao
laconismo imperturbável do profissional que cumpre seu contrato ou ainda mostrar-se
habilmente agressiva para demarcar seu território de atividade. (JOSEPH, op. cit, p.
47.).
Os públicos do transporte coletivo e relações de serviço
No eixo da pesquisa sobre o transporte coletivo, procurou-se mapear as
“relações de serviço” nas situações de filas do transporte coletivo em Campos os
Goytacazes/RJ, descrevendo as atividades de agentes de serviço em pontos de ônibus.
Propusemos uma etnografia cooperativa (JOSEPH, 2007; FREIRE; FREIRE;
GUALANDE JUNIOR, 2016) com o objetivo de retomar a questão da mobilidade e da
acessibilidade aos espaços públicos a partir dos “locais-movimento da cidade”
(JOSEPH, 2000) como terminais rodoviários, pontos de ônibus, ou ainda, no caso das
pesquisas realizadas por Isaac Joseph na França, estações de trem e metrô. Retomando
estas abordagens, procuramos descrever os diferentes quadros cognitivos (GOFFMAN,
2010) que ordenam as situações de espera, bem como parte da experiência citadina
campista.
A fila de espera dos ônibus representa um espaço privilegiado para apreender
modalidades de relações de serviço em meio urbano: A fila é um ajuntamento
multifocado (GOFFMAN, 2010) efêmero que reúne uma pluralidade de atores (em
particular, passageiros, despachantes, motoristas e fiscais). Nestas ocasiões, podemos
ainda apreender os sentidos do público, frequentemente conflitantes quando estes atores
compartilham estas situações e problematizam o transporte coletivo. Diferentemente de
outros contextos nacionais, no caso brasileiro o “público” do transporte público encobre
uma série de significados fortemente marcados por grandezas industriais e mercantis
(BOLTANSKI; THÉVENOT, 1991), e nos momentos de conflitos, eventualmente
cívicas (op. cit.). Do ponto de vista de muitos usuários, o transporte público é um bem
“pago” e, nesta qualidade, a expectativa é de eficiência do serviço em função da
justificativa do valor da tarifa. Do ponto de vista dos motoristas e despachantes, o
transporte público é entrelaçado com os dispositivos normativos empresariais: as filas
são administradas por eles a partir dos critérios de lotação de ônibus, privilegiando os
passageiros “pagantes”. Por sua vez, “os não pagantes”37 são aqueles em torno dos quais
emergem grande parte dos conflitos cotidianos.
As “relações de serviço” são caracterizadas, no caso do eixo desta pesquisa, por
situações em que agentes oferecem serviços (tidos como públicos, mesmo sendo
fornecidos, no caso dos despachantes e dos motoristas, por empresas privadas) para os
usuários. No caso em análise, estas relações se estabelecem entre os motoristas,
despachantes e cobradores, de um lado, e passageiros, de outro. Desta forma, o sentido
do serviço público é, no caso em análise, fortemente associado a uma transação
comercial e à mercantilização do transporte coletivo. Dessa forma, em Campos e mais

37
Categoria formulada pelos rodoviários. A primeira refere-se aos passageiros que pagam a tarifa. A segunda,
designa o grupo composto pela gratuidade do uso do transporte – idosos, deficientes e estudantes.

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amplamente no Brasil, se o transporte é definido juridicamente como um serviço


público, sua oferta depende das empresas de transporte coletivo urbano de passageiros,
por meio da obtenção de concessões públicas Esta articulação é frequentemente
questionada e ancora profundas indignações dos usuários deste serviço no cotidiano da
experiência de transporte.
A hierarquia das atividades dos agentes de serviço
O quadro de atribuições de cada um dos cargos ocupados pelos operadores do
transporte – despachante, motorista e cobrador – é particularmente delimitado. As
funções exercidas por estes indivíduos são baseadas em objetivos claros e em uma
rígida hierarquia.
O despachante ocupa uma posição de destaque nesta ordem hierárquica dos
profissionais que administram a oferta do transporte coletivo. Ele permanece nas
rodoviárias centrais, nos terminais urbanos e pontos finais dos itinerários percorridos
pelos ônibus. Suas atribuições consistem em coordenar as ações dos demais
profissionais a ele subordinados – motoristas e cobradores. Ele é responsável por uma
série de decisões dentre as quais: os horários de partidas dos ônibus (levando em
consideração que muitas linhas do transporte em Campos não possuem horários fixados
previamente pelo poder municipal); o remanejamento dos veículos da empresa para os
trajetos que apresentam ocasional e momentaneamente grandes demandas; e
principalmente, ele fiscaliza o trabalho dos demais operadores do transporte. Qualquer
ação a ser executada por motoristas e cobradores fora das regras e padrões de serviço
estabelecidos pelas empresas passa pelo crivo do despachante, que proferirá a sentença
final. Quando alguma ordem precisa ser submetida aos chefes superiores – que
permanecem na administração das empresas – é ele o responsável pela intermediação.
Nesta ordem hierárquica, o motorista ocupa uma posição intermediária. No
interior do ônibus ele adquire a responsabilidade de administração e resolução de
conflitos, gerenciando qualquer acontecimento que possa ocorrer dentro do veículo que
conduz. Desta forma, suas atribuições não se restringem ao simples ato de dirigir. Os
automatismos adquiridos ao longo de sua experiência e a relação diária com o público
proporcionam a estes atores uma competência social e técnica (JOSEPH, 2007). Além
de estar habituado a manusear o ônibus – e seus mecanismos de abertura e fechamento
de portas, ou o sinal sonoro que indica a necessidade do desembarque dos passageiros –
o motorista também regula a distribuição dos passageiros.
Isaac Joseph (2007) realizou uma extensa pesquisa sobre usuários e agentes do
serviço de transporte público em Paris. Para este autor: “Um enquadramento funciona
como uma ferramenta de orientação na ação e uma convenção de concertos dos
transtornos da inteligibilidade da ação situada” (p. 356). Desta maneira, o motorista se
depara com a complexidade dos elementos que compõem sua situação de trabalho e
reenquadra constantemente suas análises de situação de modo a agir da forma que
convém. Nesse sentido: “O complexo dramatúrgico que constitui um ônibus lhe confere
(ao motorista) pelo menos três papéis que lhe permitem articular e formular suas
performances em situação” (JOSEPH, ibid, p. 357). Isaac Joseph se refere, nesta
citação, a três modos de ação em público encenadas pelo motorista. Antes de mais nada,
ele é o agente de condução. É responsável pela condução do veículo e transporte de
passageiros. É também um agente de controle, uma vez que exerce a função de
vigilância em relação aos passageiros que embarcam. Averigua aqueles que possuem ou
não a prerrogativa da gratuidade, ao mesmo tempo em que tem o poder de decisão de
permitir quem pode acessar o ônibus, controlando os fluxos. Por fim, ele também é
aquele que concretiza a oferta do serviço do transporte, quando examina os pontos e os

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momentos em que deve parar para a o embarque de passageiros. Estes diferentes papéis
ocorrem no interior do ônibus e durante a sua locomoção, o que implica uma estreita
coordenação entre as suas atividades e aquelas do cobrador.
Por fim, na base hierárquica dos operadores do transporte encontra-se o
responsável pela arrecadação do valor da tarifa, o cobrador. Cabe a ele “liberar a
roleta”38 para a circulação dos passageiros. Semelhantemente ao motorista, o cobrador
também é um agente de controle – administra quem pode ou não passar pela roleta – e
ao mesmo tempo é responsável pela efetivação da transação comercial e de informação
aos usuários/clientes. Eventualmente, estas atribuições podem ainda se redefinir
momentaneamente. Caso se ausente o motorista ou o despachante, o cobrador pode
ocasionalmente administrar conflitos ou ordenar os fluxos de embarque e de conduta
dos passageiros.
“Quem você pensa que é?”
Esta hierarquia orienta as atividades dos operadores do transporte e a
distribuição de suas tarefas. Observamos apenas muito excepcionalmente momentos de
quebras desta distribuição ou, quando ocorreu, foi rapidamente abafada. Com efeito, o
despachante pode “suspender” motoristas e cobradores do trabalho, o que equivale em
descontos no salário do mês.
Nos momentos em que esta ordem hierárquica é colocada à prova, o conflito
torna-se inevitável. Retomamos uma situação exemplar para a compreensão dos
momentos em que emergem conflitos. Era uma tarde de domingo em uma área balneária
de Campos, Farol de São Tomé. Eu, Ailton Gualande Jr exercia, na época, a profissão
de fiscal de transporte39. Encontrava-me com outro colega fiscal no terminal rodoviário
local. No verão, a circulação de banhistas é intensa. Muitas pessoas utilizam o sistema
de transporte coletivo para se deslocar da região central de Campos até Farol, distante
aproximadamente 50 km. Pelo menos quatro empresas fazem a exploração deste
itinerário, alternando-se em horários diferenciados. Nesta tarde quente do mês de
janeiro, o terminal estava cheio de passageiros. Especialmente nesta ocasião,
determinado cobrador da empresa Jacarandá estava exercendo a função de despachante,
o que não ocorre normalmente. Durante o expediente procurou se aproximar de mim e
de meu colega, como forma de manter uma “camaradagem”, uma boa relação. Não
estava habituado a exercer a função de despachante, por isso buscava encenar uma
conduta amigável conosco. Esforçava-se para fazer com que os ônibus da empresa para
a qual trabalhava partissem superlotados. Movimentava-se de um lado a outro,
convidando os passageiros que quisessem viajar em pé para embarcar40. A razão para
este entusiasmo ficou clara na conversa informal que foi compartilhada. Afirmou que
estava prestes a ser promovido à despachante, por isso estava se empenhando em “fazer
dinheiro para mostrar serviço ao patrão”. O “fazer dinheiro” significava maximizar o
número de passageiros “pagantes” naquele ônibus. Se o resultado fosse capaz de
impressionar sua chefia, a promoção se efetivaria mais rapidamente. Para ele, além de
conferir maior poder sobre os demais colegas de profissão, ser promovido tinha também
motivação financeira. A diferença salarial girava em torno de 400 reais entre os dois
cargos.

38
Conhecida também como “catraca”, este dispositivo registra a entrada de cada passageiro, realizando a contagem
total.
39
Sobre a minha experiência profissional que se transformou paulatinamente em uma etnografia das filas de ônibus,
ver Gualande Junior, 2016.
40
Frequentemente, nos terminais e pontos, os passageiros interrompem o embarque assim que percebem que todos os
bancos do ônibus estão ocupados. Na certeza de que percorrerão todo o trajeto em pé, preferem esperar a chegada do
próximo ônibus na confiança de que terão uma poltrona para se acomodarem.

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Repentinamente, ouvimos gritos ininteligíveis proferidos por aquele cobrador


que aspirava à ascensão na carreira. Ele se dirigia a um motorista que conduzia um
ônibus de sua empresa, e que acabara de chegar do centro de Campos. Aparentemente o
motorista respondeu àquelas palavras balançando os braços, denotando menosprezo, e
seguiu viagem. Descobrimos os motivos da exaltação do despachante. Este último
ordenara ao motorista daquele veículo que não fosse até o ponto final do trajeto em um
dos extremos da praia de Farol. Ordenara-o que estacionasse imediatamente no pátio do
terminal rodoviário, para retornar com mais passageiros para o Centro da cidade. O
motorista, assim que voltou ao local onde estávamos nos procurou para relatar o
acontecido, afirmando não ter atendido ao pedido por considerá-lo incorreto. Minutos
depois o despachante juntou-se a nós, formulando críticas severas ao motorista. A
confrontação dos argumentos destes dois atores encerrou-se em agressões verbais. O
motorista não reconhecia a autoridade do despachante: “Quem você pensa que é meu
filho? Me respeita, olha minha idade, meus anos de empresa, vai se fuder!” Além disso,
queixou-se da forma desrespeitosa segundo a qual foi tratado: “Tá pensando que sou
moleque? Você nem despachante é! Vou ligar pra garagem.” Como resposta, ouviu a
seguinte frase: “Eu sou despachante sim, você tem que obedecer o despachante!”. Eu e
meu colega intervimos, afirmando que a ordem do despachante estava “errada”, afinal,
todo o trajeto do ônibus precisava ser percorrido. Não conseguíamos mediar o conflito
por dois motivos. Em primeiro lugar, nos posicionamos favoravelmente a um dos
envolvidos. Em segundo lugar, os dois funcionários em desacordo estavam
extremamente exaltados. O conflito se apaziguou por meio de um despachante de outra
empresa, que com uma grande habilidade de conciliação conseguiu evitar que o conflito
se encerrasse em violência física.
Este caso é eloqüente para observar o ordenamento industrial (BOLTANSKI;
THÉVENOT, 1999) que orienta as condutas dos operadores do transporte pela ênfase
dada à eficiência e produtividade quando estes atores regulam a entrada dos passageiros
no ônibus. Nesse caso, a informação relevante a ser considerada na situação deve provir
de critérios estatísticos que demonstrem a capacidade de eficiência nas ações dos atores.
No episódio descrito anteriormente, a lotação máxima de passageiros pagantes nos
ônibus era o fator determinante para confirmar a competência profissional. Uma vez que
o trabalho do cobrador aspirante à despachante produzisse efeitos monetários
satisfatórios, suas repentinas novas competências para o exercício deste cargo seriam
comprovadas e, assim, atenderiam aos critérios do “bom despachante”, isto é, a sua
capacidade de administrar estas situações de modo a aumentar o lucro da empresa.
De outra maneira, a rígida hierarquia existente no mundo dos operadores do
transporte fundamenta-se na grandeza doméstica (op. cit.). Nestes termos, as ações
devem conduzir-se segundo um modo de avaliação ancorado na estima e na reputação.
Para o motorista envolvido no conflito, a provação se volta assim para o
questionamento do ordenamento doméstico que orienta o engajamento dos profissionais
na empresa. Com efeito, lembrou que era mais velho e mais antigo na empresa. Estes
elementos deveriam conferir a ele “respeito” por parte de seus colegas de trabalho.
Nestes termos, no interior dos níveis hierárquicos a relação elementar pauta-se pela
confiança e pela autoridade. No caso descrito aqui, a primeira foi desconsiderada pelo
despachante, e a segunda pelo motorista.
Esta fricção entre condutas pautadas a partir de diferentes ordens de grandeza
pode culminar em um momento crítico (BOLTANSKI; THÉVENOT, 1999) 41. Este

41
O momento crítico, segundo Boltanski e Thévenot (op. cit.) faz referência à atividade crítica das pessoas, que
surgem quando pessoas em interação percebem que “algo está errado”. Nas minhas observações nos terminais, esses
momentos surgiam, por exemplo, quando ocorriam atrasos muito grandes (mais de 15 minutos) na partida dos ônibus,

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instante caracteriza-se pela percepção de um dos atores de que algo está errado, e que
portanto, não é possível manter-se calado. Este quadro gera uma performance no mundo
exterior segundo modos de justificações que se remetem a diferentes ordenamentos de
grandeza entendidas como as mais justas a serem acionadas no desacordo, e que
sustentam os sensos de justiça de quem as mobiliza.
II. Pacientes e atendentes: a vulnerabilidade da experiência de atendimento no
serviço público de saúde (Tayná Santos Conceição)
O Sistema Único de Saúde (SUS) resultou das lutas de redemocratização no
Brasil relacionadas com os movimentos de resistência da Reforma Sanitária contra a
ditadura militar. As décadas de 1960 e 1970 foram marcadas por lutas desse
movimento. Reivindicava-se a associação dos Direitos Humanos com o acesso à saúde,
o que implicava em uma reformulação das funções e atribuições do Estado
(BENEVIDES e PASSOS, 2005). A constituição de 1988 conferiu inúmeras conquistas
ao setor da saúde, assim como o esboço do Sistema Único de Saúde (SUS). Alguns dos
princípios gerais da Carta Magna (dispositivos normativos que orientam as relações de
serviço observadas em uma unidade de saúde de Campos dos Goytacazes) foram
essenciais para efetivar o SUS, dentre os quais destacamos: a autonomia dos Estados e
Municípios; o princípio de descentralização; a valorização da cidadania, estimulando a
participação popular. Essas questões gerais, em conjunto com a previdência e a
assistência social, guiaram também os princípios de igualdade e de universalidade (op.
cit.). Em 2003, o Ministério da Saúde propôs a Política Nacional de Humanização de
Atenção e da Gestão na Saúde (PNH). O plano tinha a finalidade de articular e
administrar as variadas dimensões relacionais entre gestores, profissionais e usuários,
elementos constitutivas do SUS. A pauta central na agenda pública passou a ser “a
humanização”, o qual nortearia desde então a gestão das unidades de saúde.
A unidade de saúde Aizita42 no centro de Campos dos Goytacazes
Campos é a maior cidade em extensão territorial do Estado do Rio de Janeiro
(IBGE, 2010). Entre março de 2009 e dezembro de 2010 a cidade aderiu ao “Pacto pela
Saúde”, dispositivo referente a um conjunto de reformas institucionais que condiciona a
implementação do Sistema Único de Saúde (SUS), uma vez que um de seus princípios
consiste em uma articulação da esfera municipal, estadual e federal (TCE-RJ, 2012). A
partir desse momento, o município apresentou um notável aumento no índice de
desenvolvimento do SUS, expandindo (numérico e qualitativamente) suas unidades de
saúde e reorganizando as estruturas existentes (op. cit.). De acordo com o IBGE (2010),
a cidade conta com 88 unidades de saúde pública, além daquelas estabelecidas por meio
de convênios entre a iniciativa privada, Estado e Município.
De acordo com o que os funcionários da Alzita compartilharam comigo durante
minha observação de situação de 2015 a 2016, a unidade realiza cerca de 21.600
atendimentos por mês. Do início ao fim de meu trabalho de campo, identifiquei que os
usuários eram moradores de 30 bairros diferentes. Esta unidade atende cerca de 35,29%
da população campista. A Aizita é uma unidade ambulatória e emergencial, por isso

o que levava os passageiros a reclamarem ao despachante da empresa responsável, originando, assim, um desacordo
em torno de algo considerado, pelos reclamantes, como errado e inaceitável. Os argumentos que se estabelecem entre
os acusadores e acusados se originam de um movimento de reflexividade e posterior performance exterior. Desse
modo, as pessoas envolvidas nesse tipo de situação precisam justificar suas ações de crítica, para sustentar suas ações.
As argumentações dos atores se pautam segundo princípios superiores comuns presentes nos diferentes ordenamentos
que podem estar presentes na situação: mercantil, industrial, cívico.
42
O verdadeiro nome da unidade de saúde foi alterado por exigência ética com a finalidade de preservar a identidade
de meus interlocutores.

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permanece aberta 24 horas por dia e recebe dois médicos por plantão. A sala de espera,
de onde realizei minhas observações, é composta por 30 cadeiras de plástico. Quando o
paciente chega, deve preencher manualmente a ficha de atendimento com os auxiliares
de consultórios (antigamente denominados de auxiliar operacional de saúde). Estes
agentes de serviços são os primeiros atendentes com o qual o usuário interage, o que já
anuncia uma série de competência destes atores em situação de emergência. Apesar de
dispor de computadores, não há nenhum programa ou sistema de atendimento
informatizado disponível na unidade. No caso do eixo da pesquisa, observei os
atendimentos dos pacientes que chegavam na sala de espera da unidade. Além disso,
realizei 10 entrevistas (5 com usuários, 3 com auxiliares responsáveis pelo atendimento
e 2 com médicos) durante as quais cada um problematizou, desde diferentes lugares e
posições, o atendimento na unidade analisada.
O momento do atendimento segue uma ordem ritualizada (GOFFMAN, 2011)
das ações e procedimentos dos funcionários. Apesar do conjunto de dinâmicas e
imponderáveis que emergem constantemente na unidade, as atividades dos agentes de
serviço responsáveis pelo atendimento são altamente padronizadas e regulamentas pela
Política Nacional de Humanização de 2003. Como em muitas unidades de saúde, tais
procedimentos eram tidos como uma forma de garantir um tratamento humanizado no
serviço de saúde, gramática central que se fixa com e posteriormente ao SUS. Segundo
uma de minhas interlocutoras, tal padronização e sua repetição de “caso” em “caso”
permitia preservar a justa distância entre os profissionais e os pacientes de modo que o
agente de serviço pudesse se proteger do transbordamento emotivo gerado por algumas
situações. O “atendimento padronizado” foi suspenso momentaneamente em um
determinado dia em que um recém-nascido de três meses faleceu na unidade. Os
funcionários procuravam confortar os parentes presentes. Quando os pais não estavam
mais próximos dos funcionários, estes últimos comentavam o que tinha ocorrido, apesar
de ter visivelmente afetados pela morte do bebê. Tentavam continuar o curso rotineiro
de seu trabalho, ainda muito comovidos pela dor da mãe. Começaram a trocar
comentários jocosos nos quais repetiam constantemente a palavra “morte”. Por
exemplo, uma auxiliar exclamou em tom aparentemente irônico: “Meu celular morreu
totalmente”. Neste caso, tanto a repetição do termo quanto o tom de ironia pareciam
relacionados com um modo de reduzir a tensão coletiva e o mal-estar da situação e
procurar restituir a sequência anterior à chegada dos pais com o filho morto nos braços.
Em outros termos, neste dia, a conduta padrão dos agentes de serviço foi quebrada: os
funcionários se desestabilizaram e se esforçaram para voltar à ordem anterior do que
provocou o distúrbio conduzido por uma ética prática, procurando administrar a tensão
e compaixão geradas pela situação e suas integridades profissionais (CORCUFF, 1998;
VÉRAN, 2013)43. .
Paralelamente, nas entrevistas que realizei com os usuários, estes também
comentavam a repetição das seqüências de atendimento quando procuravam a unidade

43
A proposta de um regime de ação de compaixão (de interpelação ética em situações de face a face) é apresentada
por Corcuff (1998) a partir de uma análise, em contexto francês, dos engajamentos de enfermeiras com seus
pacientes, e de agentes da Agência Nacional Para o Emprego (ANPE) com desempregados. O autor analisa os modos
de engajamentos nas situações em que enfermeiras e agentes se deparam com a "miséria" do outro, destacando uma
tensão entre a compaixão e a preservação da integridade pessoal dos profissionais. Desta forma, o autor observa uma
ética prática que não é atravessada por uma explicação de princípios, mas é corporificada, fracamente reflexiva e
verbalizada (op. cit. p. 7). Véran (2013), dialogando com esta abordagem e os autores mobilizados por Corcuff (em
particular Lévinas), retomou o problema do sofrimento em presença em contexto de frente a frente com risco de vida
a partir de uma análise de uma operação dos Médicos Sem Fronteiras no Haiti, após um surto de cólera. Neste caso, o
autor insista em um dos aspectos levantados por Corcuff: As “blindagens”, “distâncias”, “bloqueios” contra a
compaixão para resolver esta tensão entre a “atenção exclusiva à singularidade e as exigências comuns de justiça”, e
para proteger a integridade pessoal contra os riscos de desagregação" (op. cit. p. 13).

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Aizita. A recepção segue um padrão de perguntas (dados pessoais) com a chegada do


paciente. Na “triagem”, são realizadas perguntas sobre os sintomas manifestados no
paciente, configurando-se como pré-diagnóstico, que é finalizado pela avaliação dos
médicos.
Dirigir-se a uma consulta médica, do ponto de vista do usuário, era também lido
como um evento altamente ritualizado. Com efeito, o atendimento é marcado por uma
série de etapas antes de encontrar o médico. Procuramos compreender em particular
como os diferentes atores qualificavam a ritualização do atendimento, uma vez que esta
dimensão parecia informar a existência de uma “gramática da humanização” que orienta
fortemente as práticas profissionais, mas constantemente colocada à prova pelas
avaliações dos usuários. Portanto, por vezes, os sentidos da ritualização para os
funcionários estão relacionados às políticas de saúde executadas, isto é, se o PNH
estabelece o acolhimento como procedimento de humanização e se a unidade, adotando
estas orientações de acolhimentos, tornar-se-ia “mais humana”. Logo, o “sistema mais
humanizado” corresponde, do ponto de vista dos funcionários, a um tipo de
ordenamento institucional reformulado que permite despersonalizar o perfil do paciente.
Por sua vez, do lado dos usuários, essa ritualização do atendimento causava
estranhamento. Nas entrevistas e nas minhas observações, muitos pacientes
compartilharam que já sabiam o que o médico ou enfermeiro iam perguntar ou falar, ou
ainda, como a (o) recepcionista irá se portar. Com a previsão das ações médicas, os
usuários se tornam mais receosos e sentem sua dignidade ameaçada. Em um dos relatos
de uma usuária, podemos observar as queixas sobre o “atendimento monossilábico” e a
previsão das perguntas às quais responderão os pacientes:
“Esses dias eu peguei uma enfermeira que conversava bastante com a gente, mas no
Azita essa foi uma exceção eles são muito monossilábicos, eles não têm essa relação.
Tanto que o atendimento é tão rápido, ele olha sua ficha e olha pra você, isso quebra um
pouco, então não é uma relação de conflito, mas também não é uma relação onde a
gente vai manter o diálogo, só alonga um pouco quando a gente pede uma declaração.
Por exemplo, eu já tomei soro lá, e eu converso mais com as enfermeiras, porque eu não
consigo ficar quieta [...] quando eu passava em São Paulo [cidade de origem da
entrevistada] no posto de atendimento, eu sempre passava no mesmo médico e aí a
gente acaba criando essa relação, de perguntar se está tudo bem, se está estudando, de
saber como está um e o outro” (entrevista com uma usuária da Unidade Alzita).
Os momentos de chegada do paciente na unidade, e o retorno para a sala de
espera são denominados de “acolhimento”. Este se traduz pelos instantes em que se
define um pré-diagnóstico, realizado por enfermeiros e técnicos em enfermagem que
anotam os sintomas do paciente no “prontuário” a ser entregue ao médico na hora da
consulta. Vale destacar que a “triagem” e o “acolhimento” são dispositivos de
atendimento que foram elaborados após a promulgação do SUS, no PNH e no contexto
em que se problematizaram formas de garantir a “humanização” dos tratamentos em
unidades de saúde.
As diretrizes e os dispositivos do PNH efetivam os princípios do SUS e orientam
as atividades “no cotidiano das práticas de atenção e gestão, qualificando a saúde
pública no Brasil e incentivando trocas solidárias entre gestores, trabalhadores e
usuários”44. Na unidade Alzita, o momento da espera é problematizado como um meio
que garante um “cuidado humanizado” pelo fato de que aproximaria os usuários com os
profissionais do serviço público de saúde. Por sua vez, esta característica é tematizada,
pela PNH, como aquela a partir da qual são consideradas as necessidades dos usuários.
Apesar da dimensão rotineira das atividades dos profissionais no início do atendimento,
44
In: http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/secretarias/sas/humanizasus, acesso em 03 de
2015.

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a espera é então vista como um espaço muito dinâmico, que estabeleceria uma inter-
relação entre usuários e profissionais da saúde. Em relação aos atendimentos, os
funcionários compartilharam que perceberam melhorias no que tange ao acolhimento,
doravante “humanizado”. Comparando com experiências pessoais anteriores, observam
que há hoje maior tolerância com as diferenças sociais, culturais e sexuais, pelos
recursos sistemáticos destes dispositivos. Isso representa, segundo eles, uma “prova da
humanização” do SUS.
Para acessar o atendimento com o médico, os usuários precisam percorrer
etapas, cada uma com sentidos diferenciados do ponto de vista destes indivíduos. Um
importante ponto para compreender refere-se aos modos pelas quais diferentes atores
qualificavam a ritualização do atendimento, uma vez que esta dimensão parecia
informar a existência de uma “gramática da humanização” que orienta fortemente as
práticas profissionais, mas que é constantemente colocada à prova pelas avaliações dos
usuários. Frequentemente os sentidos da ordem ritualizada para os funcionários estão
relacionados às políticas de saúde executadas, mas também às distâncias que este agente
de serviço precisa preservar para garantir a rotina de seu trabalho. Logo, o “sistema
mais humanizado” corresponde, do ponto de vista dos profissionais do Alzita, a um tipo
de ordenamento institucional e cívico (BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991)
reformulado, que permite despersonalizar o perfil do paciente. Por sua vez, do lado dos
usuários, essa ritualização do atendimento causa estranhamento, talvez em função da
polissemia que o cuidado médico implica (o qual pode oscilar entre uma expectativa de
cuidado familiar e um tratamento médico despersonalizado). Por este motivo, muitos
dos pacientes se indignavam por certas modalidades de tratamentos e viam neles os
fundamentos de suas dignidades ameaçadas.
A Espera
O fato de que conflitos emergem principalmente em situações de espera é
relacionado com a natureza da vulnerabilidade da experiência do usuário do serviço de
saúde. Neste sentido, a menção ao “último recurso”, o conflito, é significativa à
vulnerabilidade da experiência do usuário nesta situação, pois a espera aumenta não
somente uma incerteza e insegurança quanto ao encaminhamento que lhe será dado,
mas também um desgaste físico provocado pelo longo período de tempo durante o qual
o paciente (um doente) permanece sentado em cadeiras pouco confortáveis ou em pé.
Observando que tais conflitos eram recorrentes nas situações que observei no posto,
perguntei aos entrevistados porque frequentam a unidade de saúde em questão. As
respostas se referiam à localização da unidade, sobre encontrar nela a possibilidade de
ser atendido, reiterando o medo de ir a outras unidades de saúde pública.
Assim, evitar a frequentação de certas instituições pode estar relacionado com a
reputação desta, ou com o extenso tempo de espera. Desta forma, a unidade do Azita é
aquela escolhida não por critérios de proximidade ou de qualidade, mas em comparação
com unidades a serem evitadas. A chegada na Azita gera incertezas e tensões que
pairam (e em alguns casos, se confirmam) no ato do atendimento médico por parte de
um usuário que, por falta de outras opções, é forçado a confiar com desconfiança neste
serviço.
As relações de conflito
A mudança na tonalidade da voz empregada por usuários, as discussões com
funcionários e as reclamações são frequentes quando se sentem “ameaçados” pela longa
espera e a falta de informação. Segundo Goffmam (1995), uma regra de conduta pode
servir como um guia das ações, realizada não porque é eficiente, mas sim apropriada à

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situação, sendo mantidas pela honra de quase tudo. Quando a unidade de saúde não
atende as expectativas, os próprios usuários recorrem à forma do “barraco”. É no
momento em que o usuário não tem sua expectativa almejada que ele verbaliza sua
indignação. Estes conflitos estão normalmente associados a reclamações e “bate-bocas”
que ocorrem quando o usuário vê no tratamento que recebeu o desrespeito de sua
dignidade. A falta de reconhecimento, a negação da sua vivência e de sua dor representa
para o usuário um verdadeiro insulto moral (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2002),
gerando desconfianças, medos e angústias quando acessam o serviço de saúde.
Para os profissionais, os conflitos são negados e/ou encarados como
desimportantes mediante o “bom trabalho” de curar doentes e/ou receitar
medicamentos. Orientam suas atividades a partir dos dispositivos normativos que
regulam tais situações. Para os usuários, elevar o tom da voz significa tentar retomar o
controle da situação, enquanto para os funcionários, os conflitos são irrelevantes dadas à
necessidade de medicalização do paciente. Em suma, os diferentes sentidos de justiça e
injustiça em presença mobilizam constantemente a “gramática da humanização”. Tendo
em vista que parte dos conflitos ocorridos na unidade estão ligados ao tipo de
atendimento, torna-se desumanizado do ponto de vista dos usuários. Veremos então,
como a “gramática da humanização” é tratada por estes atores e como ela ancora
diferentes conflitos.
Humanização da saúde
Ao longo das observações surgiram inúmeros conflitos relacionados com diferentes
formas de qualificar e de dar sentido ao que seria a “humanização”. Para os funcionários,
esta categoria é frequentemente empregada e traduz um serviço público visto como mais
humanizado após o PNH. Ainda podem, por vezes, associar o atendimento ao acolhimento.
Por sua vez, os usuários do serviço raramente se referiam à “humanização”, geralmente
evitando mobilizar esta gramática. Portanto, “humanizar” a saúde no SUS se apresentava
por meio da qualificação (por profissionais) de práticas de saúde como o acesso,
acolhimento, a atenção integral, ou ainda, a valorização dos trabalhadores e usuários,
segundo os princípios norteadores do PNH.
O conceito de humanização apresenta pelo menos duas dimensões nas relações de
serviços de saúde. Durante as entrevistas, os usuários associavam a humanização à
“integralidade” e a “integridade” das pessoas que representavam o público dos
atendimentos. Em outros termos, a problematização da humanização está diretamente
relacionada com os atendimentos de saúde, uma vez que muitos usuários não se sentem
reconhecidos e tratados “dignamente” como pessoas nestas situações.
Para os funcionários, um sistema humanizado é aquele “acolhedor”, que atende as
necessidades médicas. Por outro lado, para os usuários, não pode existir um sistema
humanizado sem sentir o que pode ser “a dor do outro”. Assim, o usuário se remete a
necessidade de estar atento e compreender o seu sofrimento nestas situações. Observou-se
uma polarização de sentidos quanto à categoria de “humanização” relacionada com as
diferentes posições ocupadas pelos atores nestes momentos.
Estes atores expressam então que oferecem um atendimento “humanizado”,
nivelando “o humano” com o equipamento normativo que orientam suas atividades
cotidianas. Desta forma, se as etapas e os procedimentos são rotinizados por meio destes
repertórios normativos, não há sensação de conflito de qualquer tipo. Por outro lado, do
ponto de vista dos usuários, vimos que o reconhecimento do sofrimento, da dor, da
experiência da doença, bem como da atenção dada pelos profissionais em relação a esta
expectativa representa o fundamento da definição de um tratamento humanizado.
Os direitos previstos em normas jurídicas que regulamentam o setor da saúde são
orientados pela universalidade e igualdade nos serviços de saúde pública. Porém, estes
mesmos direitos são aplicados de forma particularizada e desigual no espaço público

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(KANT DE LIMA, 2001). Dessa forma, apesar da ênfase dada ao tópico do universalismo,
as situações que observei configuram ao contrário, e próximo às contribuições de Kant de
Lima, definições e concepções de públicos que mais particulariza o sistema do que o
universalizam. Usuários e funcionários manifestam dificuldades em se sentir parte do
serviço de saúde, isso por conta dos inúmeros obstáculos, que variam segundo quem fala
(por parte dos profissionais, falta de equipamentos, falta de medicamento e etc. e dos
usuários, dos obstáculos às suas humanizações). Assim, os conflitos que emergem entre
usuários e funcionários estão intimamente relacionados com as tensões entre dispositivos
universais e situações particulares nas quais o tratamento geral e igual para todos é
constantemente colocado à prova.
Logo, as gramáticas presentes na unidade observada são pouco conciliáveis, de
modo que tampouco há um consensos sobre formas de qualificar “a humanidade” por conta
das tensões e conflitos cotidianos entre profissionais e usuários. A expectativa de ser “bem
tratado”, como usuário digno e humano, é interrompida quando o atendimento é conduzido
de modo apressado e expeditivo, ou ainda, com uma impessoalidade facilmente associada à
busca de maximizar a “eficiência do serviço” (portanto orientado a partir de registros
fortemente liberais). Paradoxalmente, estas características de atendimento são vistas como
um exemplo de humanização do ponto de vista do profissional diante do crescente
ordenamento industrial do serviço público de saúde (que ecoa com a observação de situação
anterior do serviço de transporte).
III. Atendimento às pessoas com deficiência: Relações de serviço e
vulnerabilidades (Michelle Gomes de Carvalho Tantow)
Os personagens das relações de serviço
O eixo da pesquisa que corresponde a situações de cuidado a pessoas com
deficiência propõe analisar e descrever parte de quadros interacionais que orientam
situações de encontro entre profissionais de cuidados (care) e pessoas (“jovens” e
“alunos”) com deficiências. Nestes momentos, as competências e atividades de “agentes
de serviço” diferem sensivelmente daquelas até então exploradas neste artigo. De
acordo com as modalidades de cooperações entre estes atores, emergem – como
procuraremos demonstrar – experiências (de ambos os lados) particularmente
vulneráveis.
A observação etnográfica in situ (CEFAÏ ET al., 2011) foi realizada em três
instituições: duas escolas municipais (educação infantil e outra de ensino fundamental)
localizadas em Macaé, e uma associação que atende pessoas com deficiência em
Campos dos Goytacazes.
Dentre “os alunos” e “jovens” que frequentavam a escola e a associação,
destacamos que suas “deficiências” podem ser caracterizadas a partir da tipificação
proposta por Goffman (2013): aqueles que apresentavam características e atributos
visíveis, o desacreditado (op. cit.), pois, não é possível disfarçar a falta de um dado
atributo, como por exemplo, o caso de um dos alunos “cadeirante” com deficiência
múltipla; e o desacreditável, cuja “deficiência” não era perceptível imediatamente
(como o surdo).
Os alunos nas escolas observadas eram autistas e com deficiências múltiplas
e/ou baixa visão. Na associação, alguns dos “jovens” eram surdos, outros ainda tinham
sido diagnosticados como “transtorno de conduta”, com Síndrome de Down, com
deficiências intelectual e/ou motora.
Entremeando as contribuições de Isaac Joseph com as categorias que emergiram
ao longo de minha pesquisa de campo, nos referimos ao agente de serviço para designar
as profissionais (professoras, cuidadoras, auxiliares de serviços escolares ou outras
especialistas) que “prestam serviços” em instituições escolares ou na associação,

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serviços estes relacionados com modalidades de aprendizados e cuidados às “pessoas


com deficiência”. Observa-se, ainda que, no espaço escolar, é recorrentemente
mobilizada a categoria de “alunos com necessidades educacionais especiais” (ANEE),
tal como é denominada pelos profissionais, que implica a atuação de um agente
específico que realiza o Atendimento Educacional Especializado (AEE) a esse público.
Na legislação, alguns dispositivos jurídicos definem as atribuições dos
profissionais responsáveis pelos atendimentos com públicos especiais, insistindo no seu
caráter diferenciado e singular. A Resolução CNE/CEB Nº 4 de outubro de 2009, por
exemplo, destaca mais precisamente as competências das profissionais de AEE. Na
prática, suas atividades devem ainda favorecer a execução planejamento e dinâmicas
pedagógicas do professor regente de modo que todos os alunos de uma sala de aula
possam igualmente acompanhar seus conteúdos. Ele deve “reduzir” eventuais
descompassos entre os alunos com necessidades educacionais especiais e os outros da
turma, multiplicando atividades destinadas a garantir um “aprendizagem universal”.
Paralelamente, as auxiliares, oferecem serviços escolares de cuidado (care)
(HIRATA e GUIMARÃES, 2012) para estes públicos, que abrangem um grande leque
de atividades: auxílios de higiene corporal, circulação e tradução (em Libras, por
exemplo) para com os alunos deficientes. Outra importante competência deste agente de
serviço se refere às suas habilidades e sensibilidades quando presenciam sofrimentos e
embaraços que permeiam as rotinas escolares dos públicos que ele atende (que inclui
aqueles dos pais destes alunos) em contato com todos os outros membros da
comunidade escolar. Essa dimensão emocional está relacionada com o que Angelo
Soares, retomando Goffman, denominou de “qualificações sociais” ou de “capacidade
de evitar o embaraço para si e para o outro” (SOARES, In HIRATA e GUIMARÃES,
2012, p.47). A competência de evitar o embaraço do outro implicava um conjunto de
dinâmicas, do ponto de vista do agente de serviço, preservar o estigmatizado das
jocosidades, reservas ou francas incompreensões que professores e alunos podiam
apresentar nas situações em que seu comportamento escapava das expectativas de
condutas normais no espaço escolar. A auxiliar era assim um personagem que também
devia administrar a preservação da face dos alunos, usuários qualificados nas bordas da
normalidade para garantir os ajuntamentos (GOFFMAN, 2010) e a composição do
comum no espaço escolar.
Os ambientes de atendimento
A associação
Na cidade de Campos, a associação analisada atende cerca de 400 pessoas com
distintas deficiências. Quase toda a sede é equipada de rampas e corredores largos,
dispositivos de acessibilidade que permitem a mobilidade dos “cadeirantes” ou de
pessoas com deficiência motora. Possui diversos serviços e programas para atender
pessoas com deficiências de ampla faixa etária, de 0 a 59 anos. Nas minhas
observações, priorizei o programa de capacitação, apresentado como uma iniciativa
cujo objetivo era de transmitir conhecimentos e proporcionar habilidades profissionais
para jovens e adultos (entre dezesseis a trinta anos), o que consistia, neste caso, em
prepará-los para realizar atividades específicas em supermercados (por exemplo,
armazenar ou empacotar mercadorias). Dois princípios morais orientavam a condução
do projeto: a “autonomia” e a “inserção no mercado de trabalho”. Para tanto, o projeto
promovia atividades de qualificações administrativas, operacionais (no âmbito de um
mercado simulado), serviços gerais e atendimento pedagógico (apoio educacional). Essa
associação realizava parcerias e convênios com órgãos públicos e privados e estes
recursos financeiros garantem a manutenção da sede, o pagamento dos profissionais e

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educadores do projeto e a compra de equipamentos e materiais necessários para a


execução dos programas.
As Escolas
A escola municipal de ensino fundamental e outra de educação infantil estão
localizadas em Macaé, também na região norte fluminense. As duas escolas foram
construídas em um bairro próximo ao centro da cidade e uma se encontra em frente à outra.
A escola de ensino fundamental, isto é do 1º ao 5º ano atende alunos de 7 e 10 anos a outra
de educação infantil, crianças de 2 a 6 anos de idade. Somente a primeira possui rampas de
acesso para o segundo andar e uma sala de atendimentos multidisciplinar na qual
trabalhava o profissional de AEE. Por esse motivo, as crianças com deficiência da segunda
escola eram atendidas pela profissional de AEE na primeira escola (a de educação
fundamental). A profissional descreveu a dificuldade de compatibilizar os horários para
atender os alunos destas duas escolas que necessitam do acompanhamento especializado,
pois o atendimento deve ser no “contraturno” do aluno, para que o mesmo não perca horas
de aula na sala regular de ensino. Destacou que a sala multifuncional não está sempre
disponível. Ainda se deparava com queixas de muitos pais pelo fato de que estes últimos
deviam freqüentar a escola em horários correspondentes como aqueles de trabalho. Por este
motivo, frequentemente, o acompanhante da criança atendida não conseguia estar presente,
ou ainda, o horário disponível coincidia com outros atendimentos especializados que o
aluno pode também necessitar (fonoaudiologia, fisioterapia, equoterapia). Em suma, estes
tipos de rotinas exigem dos profissionais uma grande flexibilidade, um “autocontrole” de si
e das emoções, resultando por vezes em “um desgaste” do profissional, retomando seus
termos. Destaco que eu, autora desta sessão, exercia a função de auxiliar em uma das
escolas estudadas nela, experiência que norteou meu interesse em compor a pesquisa
apresentada em introdução deste trabalho.
Cooperação, auxílio e atendimentos
Durante a prestação de serviço, os agentes de serviços encenam diferentes papeis
que ecoam com as análises de Goffman. O agente de serviço encena simultaneamente o
papel de profissional confiante e de pessoa sensível, duas exigências requisitadas tanto
pelos demais profissionais da escola quanto para os pais. Mas tal fachada ou, “imagem
do eu delineada em termos de atributos sociais aprovados” (GOFFMAN, 2013, p. 14)
pode sofrer faltas ou quebras, quando o ator não consegue dar continuidade ao seu papel
a interação, o que pode implicar uma autodestruição do self (GOFFMAN, 2009, p.
197).
Na associação, durante um treinamento no setor administrativo, foi solicitado
pela instrutora que folhas de material emborrachado e coloridas, registradas no caderno
de recebimento, fossem guardadas e organizadas por grupo de cores no armário.
Tentando decifrar as orientações com grande dificuldade, uma usuária com deficiência
auditiva entendeu que era para guardar as cores misturadas. Após uma nova tentativa da
instrutora explicando à aluna o procedimento, esta última pensou lhe era solicitar apenas
a folha amarela, entregando-a para instrutora. Observando a situação, outra usuária que
aparentemente possuía maior domínio da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS)
explicou nesta linguagem o que era efetivamente solicitada pela instrutora. A aluna,
que finalmente havia compreendido a solicitação, organizou a arrumação dos rolos de
acordo com suas cores olhando para aquela que lhe havia explicado em LIBRAS e
perguntando na mesma linguagem: “entendi?”. Após responder positivamente apara a
aluna, não sem certo embaraço por parte da instrutora, prosseguiram-se as demais
atividades de instrução.

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Nesta situação, o agente de serviço a quem é atribuído a responsabilidade de


“estimular a autonomia do usuário” apresentou uma fachada fragilizada pela colega que
cooperou para resolver o problema de comunicação. Esta teve o êxito que deveria ter
sido aquele estimulado pela agente de serviço. Para concertar sua fachada, a agente de
serviço riu e confirmou o sinal de “entendeu?” para a aluna surda. Após este pequeno
mal-estar, resolvido com a cooperação de sua colega que reparação a tensão que pairou
sobre a situação, a instrutora conseguiu voltar ao curso das rotinas das atividades. A
risada e os outros comentários jocosos foram táticas, que permitiram suspender as
ameaças que ameaçava a fachada da instrutora.
Os objetos e os dispositivos de orientação das relações de serviço
Os objetos, ou não-humanos (LATOUR apud FREIRE, 2013), constituem
frequentemente importantes dispositivos (LATOUR, op. Cit.) mobilizados para orientar
as atividades dos agentes de serviço. Os dispositivos não-humanos tornam-se freqüentes
pontos de ancoragem de situações de atendimento, isto é, de interação e comunicação
entre o “usuário” e os agentes de serviço. Literalmente, os dispositivos são, em certos
casos, condição para garantir a compreensão mútua que reduzem fatores ansiógenos
gerados por limitações de fala ou de mobilidade.
Pode-se descrever como professoras ou profissionais de sala multifuncional
recorrem recorrentemente à “prancheta de comunicação” quando atendem crianças
autistas. A prancheta contém várias imagens que ilustrem “ações gerais” (como
“comer”, “beber”, “brincar”) e a representação de uma série de outras ações e de
emoções. Outras imagens ilustram, por exemplo, a tristeza, a alegria, a dor ou a raiva.
Desta forma, a prancheta é um dispositivo particularmente empregado com crianças
autistas cujo objetivo é de proporcionar uma comunicação não verbal, que orientam as
atividades de cuidados com elas. A auxiliar apresenta a prancheta para a criança – o
autista tendo grande dificuldade de expressão verbal – e esta aponta com o dedo para
uma das figuras. Evidentemente, como na situação que exploramos abaixo, os
dispositivos nem sempre apresentam a eficácia esperada pelo agente de serviço.
Um dia, a criança autista que eu acompanhava chegou à escola com uma sacola
plástica cheio de imagens de meios de transportes, que havia recortado de uma capa de
jogo e de um livro. O aluno tinha uma paixão pelos meios de transporte e falavam
constantemente deles. Isso, enquanto auxiliar, me parecia “uma fixação”. Ainda assim,
observando este interesse, selecionei um conjunto de materiais com estes objetos,
pensando que minha estratégia poderia ser um meio de me aproximar dele e, assim,
auxiliá-lo para o aprendizado de conteúdos programáticos e escolares (como a
compreensão de quantidades, das cores, das letras etc.), que poderia assimilar por meio
de temas de seu interesse. Neste caso, explorei a correspondência e associação de cores
com objetos. Porém, durante a aula, o aluno não conseguia largar sua sacola. Também
recusava usar os outros materiais produzidos pela professora nesta aula. Agitava-se
quando a professora e eu tentávamos trocar a sacola com as suas figuras pelo material
pedagógico previsto para a aula. Orientei minhas atividades considerando exigências
pedagógicas escolares: tentei trocar o material (o dele por aquele da professora),
chamando a atenção do aluno na direção do conteúdo da aula. Este respondeu às
minhas propostas por estereotipias e gemidos. Percebendo sua recusa, não insisti.
Paralelamente, saí desta situação com o sentimento de ter fracassado, observando as
manifestações de sofrimento e recusa do aluno.
Percebendo que a agitação do aluno poderia se converter em um quadro de crise,
a solução que encontrei foi de utilizar folhas brancas com círculos coloridos desenhados
com giz de cera, mobilizando a técnica de “palavras e apontamentos” (usei esse termos

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para ilustrar uma ação ou uma atividade realizada pelo aluno), palavras-chaves que
permitiriam designar objetos e pessoas. O ato de apontar servia para reforçar de forma
concreta as características do objeto trabalhado: “Esse carro (figura) na sua mão é azul,
igual a este círculo, e sua bermuda também, você tem algum carro dessa cor?” (diz,
apontando para a sua camisa branca). Nesse momento a criança procurou mais figuras
espalhadas pela mesa, e me mostrou um helicóptero branco, com uma fina linha
vermelha no meio. Perguntei: “um helicóptero, em qual círculo ele deve ficar?”.
Respondeu-me mostrando o círculo em branco. Concluí: “Muito bem! Helicóptero
branco, no círculo branco!”. Esse quadro aponta para uma das dificuldades enfrentadas
por profissionais durante a relação de serviço no espaço escolar. Os agentes de serviço
dedicam parte importante de seu tempo de trabalho para realizar planejamentos, mas
estes esforços podem ser constantemente colocados à prova pelas características do
público que atendem, como nesta situação.
Paralelamente, as “sensibilidades” humanas são também outras importantes
competências das agentes de serviço. Na escola, as pessoas diretamente responsáveis
pelos alunos com deficiência, são as auxiliares de serviços escolares. Na associação
analisada, aquelas que ocupam funções semelhantes são chamadas de “pessoal de
apoio”. Em ambos os casos, suas funções consistem em “ajudar professores” e atender
crianças ou jovens com deficiência ou necessidades educacionais especiais. Tais
auxiliares passam grande parte (que pode variar sensivelmente segundo o nível de
dependência do usuário) de seu expediente ao lado do “jovem” ou “aluno” dependente
destes cuidados para seu aprendizado. O termo “auxiliar” é eloqüente das atividades
deste profissional, pois estes profissionais auxiliam ao processo de aprendizagem, à
alimentação e higiene do usuário do serviço. Por exemplo, na escola de ensino
fundamental, um aluno com múltiplas deficiências que auxiliava, não poderia seguir
uma rotina escolar sem auxílio destas profissionais (marcada por dificuldade de
locomoção, de ida ao banheiro ou por refeições). Quando ia ao banheiro, eu, enquanto
auxiliar deste aluno, pedia licença à professora e ela e eu levávamos o aluno até a porta
do banheiro. Por falhas de equipamento de acessibilidade da escola, tínhamos que
interromper momentaneamente a aula para levantar o aluno e conduzi-lo até o banheiro:
uma segurando-o por trás enquanto a outra elevava as pernas do jovem para colocá-lo
no assento sanitário. Em seguida saíamos do banheiro para dar privacidade ao aluno e
voltávamos quando ele chamava. Na sequência, eu entregava o papel ou lenço
umedecido para o aluno, “estimulando sua autonomia”, mas quando isso não era
possível, eu ou a própria professora terminava a higienização. Enfim, nós duas
vestíamos o usuário. Ocasionalmente, vestimos juntos o aluno, pois uma poderia
precisar manter o aluno em pé enquanto a outra colocava sua bermuda e o ajudava em
sentar na cadeira de rodas. Depois, a rotina da aula poderia prosseguir. Ambas fazíamos
estes gestos semelhantemente àqueles de enfermeiros, isto é, profissionalizando
cuidados íntimos no esforço de diminuir o incômodo do aluno.
Estes tipos de situações, por afetar a intimidade do aluno, realçam a
vulnerabilidade da experiência do aluno com deficiência e a natureza da sensibilidade
que as agentes de serviço. Nesse quadro as vulnerabilidades dos usuários e dos agentes
se apresentam segundo situações variadas e se relacionam, em alguns casos, com as
dificuldades provocadas pelos cuidados com pessoas que apresentam dependências
profundas e com a inadequação do equipamento da situação, que proporciona. O
equipamento do ambiente de trabalho é assim outro fator que contribui para o aumento
ou redução da vulnerabilidade destes tipos de “usuários”. Quando este é falho, pode
limitar consideravelmente as ações das profissionais considerando a urgência dos
cuidados rotineiros.

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O apoio emocional é outra importante dimensão dos ofícios do público das


agentes de serviço. Entremeia-se com a capacidade de lidar com as emoções dos
“usuários”. Se o trabalhador do care (HIRATA E GUIMARÃES, 2012) se esforça em
profissionalizar relações de cuidados, ele também é um profissional que é testemunha
de sofrimento alheiro e orienta suas ações a partir de uma ética prática. Paralelamente,
o agente de serviço mantém alguns requisitos morais e instrumentais (GOFFMAN,
2013a) a partir dos quais pode estabilizar sua fachada, os quais permitem dar
continuidade à relação que tece com o usuário sem que sua subjetividade afete por
demais esta relação.
Em uma conversa com uma das instrutoras da associação, esta comentou uma
situação com um jovem diagnosticado com distúrbio de conduta. Este jovem de 18
anos, raramente participa das atividades da associação. Sempre pedia sair da sala de
aula para conversar com os profissionais da coordenação, justificando a saída pela
necessidade de tratar de assuntos importantes com os coordenadores (geralmente,
segundo minha interlocutora, os assuntos se relacionam com passeios, dinheiro ou
futebol). Um dia, pude observar uma situação semelhante a esta na qual este aluno foi
contrariado. . Como era de costume, a instrutora procedia da mesma forma: pede para o
jovem aguardar até que um representante da coordenação chegasse e depois ser por ele
chamado. Porém, naquele dia, não foi atendido. Ele se enfureceu e agrediu verbalmente
a instrutora na frente de seus colegas. Todos estavam acostumados com os surtos de
agressividade de seu colega. A instrutora manteve uma distância segura, evitando ficar
de costas para ele. Posicionou-se de modo a poder ter um contato físico de contenção
(um abraço pelas costas) caso a agressividade verbal se transformasse em agressividade
física. Pouco tempo depois, duas secretárias chegaram e levaram o jovem até a
coordenação.
Nesta situação, a instrutora evitou de falar ou agir de modo que pudesse ser
interpretado, pelo jovem, como uma agressão. Sua reação se fundamentou, segundo ela,
na sua formação e experiência anterior com alunos que apresentavam sintomas
semelhantes. De certa forma, a instrutora adotou uma atitude blasée (SIMMEL, 1973),
ciente que seria a melhor forma de reagir para garantir a continuidade da situação. Esta
situação me parece exemplar para apontar para uma das competências dos agentes de
serviços: agem entremeando condutas padronizadas, frequentemente resultante de uma
formação profissional voltada para o atendimento destes públicos, com condutas
aparentemente intuitivas, por sua vez, resultante do tempo de experiência com alunos
com deficiência. Quanto maior a temporalidade da relação entre o agente de serviço e
alunos com deficiência, mais o primeiro parece conseguir antecipar os transtornos que
podem emergir a qualquer momento e encontrar resposta que minimize conflitos
latentes. Em particular, uma habilidade crucial da agente serviço é a de administrar estas
situações de modo a evitar o desamparo do aluno e transbordamento emocional que,
nestes casos, podem facilmente se converter em violência física. Com efeito, quando
esta agente de serviço comentou sua reação, insistiu no fato de que saber agir de modo
conveniente com tal situação decorria de da experimentação de médio ou longo prazo
com este aluno, que configura uma saber situacional a partir do qual volta-se à
configuração anterior ao transtorno.
Tensão e correções de condutas nas relações de serviço
Outro dia, na associação, a instrutora do mercado simulado, solicitou a um dos
“jovens”, em treinamento e com Síndrome de Down, que os alimentos do carrinho de
compras deveriam ser postos no balcão para registro na planilha de entrada. Haviam
produtos soltos no carrinho e outros dentro de sacolas amarradas. Marcos, um dos alunos,
retirou alguns produtos do carrinho e separou os itens por categorias (perfumaria, limpeza,

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alimentos, etc.). Abriu algumas sacolas e colocou no balcão os alimentos que se


encontravam nelas. A instrutora então corrigiu Marcos, que tentava abrir uma das duas
últimas sacolas, e lhe diz “os da sacola não, pode deixar aí”. Quando Marcos terminou de
guardar todos os alimentos (deixando de lado apenas as sacolas), a instrutora pergunta se
tinha terminado. O jovem respondeu pela afirmativa e a instrutora olhou para o carrinho,
questionando-o “O carrinho está vazio? Acho que não, então será que você terminou
mesmo? O que você acha?”. O jovem, confuso, começou a tocar na sacola, aguardando
algum sinal por parte de sua instrutora e, após alguns segundos, meneou a cabeça para
significar uma resposta afirmativa e terminou sua tarefa.
Nesta situação, é notável a expectativa do aluno em contar com a orientação da
supervisora para o aluno saber se age da forma como convém.. No entanto, o distúrbio se
produziu neste caso pelo fato de que a agente produziu um quadro de contradição, que
criara uma tensão interna no aluno até ser concertada.
Considerações finais
Neste artigo, selecionamos situações de relações de serviço com o objetivo de
compreender a arquitetura dos regimes de engajamentos (THÉVENOT, 2007) que
configura métiers do público e, por extensão, serviços públicos em Campos ou Macaé,
casos particulares do possível. Apesar das evidentes e drásticas diferenças entre os objetos
dos eixos desta pesquisa, observamos transversalmente, de situação em situação, a
combinação, ainda que em graus diferenciados, de grandezas e ordenamentos industriais,
mercantis, cívicos, domésticos45 e de “humanização” (FREIRE, 2010) que podem orientar
algumas destas relações de serviço. A descrição destes ordenamentos nos pareceu crucial
para a compreensão das formas de apreender a categoria de “usuários” e de “serviços
públicos” nestes municípios de médio porte. Vale ainda destacar que as situações de
serviços que envolvem relações de cuidados, o care torna-se um dispositivo que norteia
atividades de agentes de serviço que não necessariamente se aproxima de um regime de
familiaridade e do próximo (THÉVENOT, 2007), como observamos quando apontamos
para a ética prática que orienta as atividades de alguns profissionais do cuidado em
instituições escolares e de saúde.
Estes ordenamentos orientam as interações entre agentes de serviço e “usuários”
descritas neste trabalho e as atividades dos profissionais, o que não significa que todos estes
regimes se combinavam uniformemente segundo as situações de serviços exploradas. Na
descrição proposta neste artigo, demos também ênfase aos momentos de emergência de
críticas, de tensões e, ocasionalmente, de conflitos abertos entre agentes de serviço e/ou
usuários. Com efeito, consideramos que destes momentos, podemos extrair mais
nitidamente uma gramática “do serviço público” nos contextos analisados.
No caso do transporte, a observação de momentos críticos em filas de espera
apontou para constantes provações decorrentes de exigências mercantis e, ocasionalmente,
industriais, orientadoras das atividades dos agentes de serviços, as quais se tencionavam
com aquelas dos usuários, exclusivamente cívicas. O “público” do serviço de transporte
coletivo era uma categoria acionada principalmente pelos “usuários”, que se associava com
repertórios do direito à livre circulação (FREIRE & AILTON, 2016): em situações turvas
(toubles), os usuários deste serviço constantemente lembravam de seus direitos de ir e vir,
colocados à prova pela precariedade dos equipamentos de locomoção, dos atrasos dos
ônibus e das questionadas modalidades de atendimentos pelos operadores de transporte, em
nada “universais”. Em outros termos, pode-se problematizar os sentidos do público, nesse
caso, no interstício dos modos de administrar o transporte coletivo por empresas e gestores
públicos (“o usuário” deste serviço mantendo-se continuamente como personagem ausente
por estes atores, Mamani, 2017) e das tentativas de vocalização de “passageiros” cujo
horizonte de publicização é constantemente colocado à prova.
45
Referimo-nos, com estas noções, ao modelo de Boltanski e Thévenot (1991) e de Thévenot (2007).

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Nas situações de atendimentos na área de saúde, do ponto de vista dos agentes deste
serviço, “o público” podia ser ocasionalmente associado à gramática 46 da “humanização”.
Como observamos se “a humanização” era associada, pelos usuários que foram nossos
interlocutores, aos repertórios do respeito, da dignidade e integridade a partir dos quais
reivindicavam-se uma consideração do sofrimento de pacientes. Do lado dos agentes de
serviços, ela era fortemente assimilada aos dispositivos normativos que redefiniram
modalidades e equipamentos de atendimentos, os quais passaram a orientar, com um
conjunto de rituais, as diferentes etapas de atendimentos de pacientes. Segundo os
profissionais, os protocolos estipulados por normas de atendimentos eram tidas, por eles,
como modalidades que garantiriam “a universalização” de um serviço doravante fortemente
protocolarizado, o que realçava a grandeza industrial de um serviço norteado por exigências
e comprovações de quantidade de atendimentos, de sua eficácia e eficiência. Neste caso, “o
protocolo” se apresenta como uma condição do serviço e uma garantia, na unidade, de que
pacientes com doenças e ferimentos graves sejam tratados com prioridade e com
atendimentos específicos, ou ainda, como um dispositivo de controle a partir do qual se
elabora estatísticas da unidade. Observa-se ainda que para os profissionais, os protocolos da
“saúde humanizada” também se relacionavam com modalidades de efetivação de ética
prática, a partir das quais era possível um distanciamento profissional diante do sofrimento
em presença, o que era precisamente o ponto de vista criticado pelos usuários do serviço
que, em geral, raramente se sentiam “humanos” quando frequentavam a unidade analisada.
Paralelamente, muitos agentes de serviço podiam se indignar quando considerada os
obstáculos ao projeto de uma “saúde humanizada”. Nestes casos, partindo de suas rotinas
profissionais, indignavam-se com a falta de medicamentos essenciais, ou ainda, de
aparelhos médicos, ou com outros equipamentos quebrados que nunca forma concertados
ou substituídos. Do ponto de vista dos usuários, como vimos, a “humanização” do serviço
era constantemente criticada. Dentre a profusão de indignações dos usuários, podemos
destacar as consequências de um atendimento cegamente e em demasia protocolarizado
diante da dor e do sofrimento do paciente, do tempo de espera do atendimento médico na
unidade, da falta de medicamentos ou equipamentos descobertos em situação de doença, da
dificuldade de encaminhamentos para outras unidades da cidade também escassas em
equipamentos e medicamentos. Desta forma, se as normas jurídicas que regulamentam o
serviço de saúde são apresentadas a partir dos repertórios de universalidade, de igualdade e
de humanização, a análise de situação também permite apontar para os modos segundos os
quais como “o direito à saúde” se aplica de forma particularizado e desigual (Kant de Lima,
2001), pois como alguns interlocutores compartilharam, uma melhor garantia para a
elaboração de um diagnóstico confiável deveria ser feito em uma unidade de saúde
particular que dispõe de equipamentos adequados e de medicamentos.
As situações analisadas em mundos escolares e de formação de alunos com
deficiências, pode-se observar paralelos em relação àquelas das relações de serviço na área
de saúde, porém com repertórios normativos diferenciados. Neste caso, “as auxiliares” são
tornam-se profissionais determinantes para “universalizar” o acesso à educação ou à
“inclusão” do mercado do trabalho. Neste caso, tal “universalização” consiste em garantir
um “acesso igual à educação” por meio de um acompanhamento particularizado e cuidados
corporais e afetivos, em mediar as interações entre professores e pais, ou ainda, em reduzir
os embaraços que podem ser provocados quando “alunos normais” (no caso das escolas de
Campos e Macaé) encontram-se em copresença com “alunos com deficiência”. Na
associação, os princípios orientadores das atividades das profissionais, são fortemente
marcados pelos repertórios “de inclusão no mercado do trabalho” e de “autonomia”. Pode-

46
O termo “gramática” se refere ao conjunto de regras a serem seguidas para agir de forma ajustada diante das outras
pessoas que compartilham a mesma situação (LEMIEUX, 2000; BOLTANSKI, 1990 e THÉVENOT e
BOLTANSKI, 1991). Sobre uma gramática de “humanização” em contexto brasileiro, Cf. Freire (2010) e Freire e
Teixeira Pinheiro (2017).

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se, assim, observar, nas situações exploradas, como os sentidos conferidos ao público
entremeiam-se com uma gramática de autonomia do usuário, a qual orienta as atividades
profissionais e os engajamentos destes agentes. Breviglieri (2009), ao analisar as
perspectivas normativas que promovem a figura do indivíduo e o bem essencial da
autonomia na tradição liberal. Destacou que o que pode evocar “um excesso de
proximidade” (op. Cit.) pode se converter facilmente em uma ameaça da autonomia.
Retomando esta proposta, observa-se como nas situações analisadas neste texto “a ética
prática” dos agentes de serviço é também uma modalidade de preservar o “justo
distanciamento” em relação a certas dependências de usuários (por exemplo, a higiene
corporal). Assim, a ética prática opera também como forma de lidar com atividades que
pressupõem contatos em nível de intimidade e permite evitar, em certas ocasiões, o
embaraço e a compreensão do usuário (e do profissional) em relação a um contato
dificilmente suportável devido às implicações de uma necessária proximidade (como ocorre
durante os cuidados de higiene, de alimentação etc.) que, neste caso, pressupõe um conjunto
de habilidades dos agentes de serviços. Paralelamente, como vimos, o peso da gramática da
autonomia pode implicar em um pressuposto de incompetência generalizada destes usuários
pelos profissionais, ou ainda, em desconsiderar a pluralidade de deficiências e as
especificidades de atendimentos neste caso (como vimos com este aluno surdo que não
poderia ouvir e entender a recomendação da instrutora sem uma tradução em Libras).
Enfim, este artigo procurou explorar uma série de situações de relações de serviços,
interações entre profissionais de atendimento que agem de acordo com um amplo leque de
repertórios normativos e outras, que esperam, nestes mesmos momentos, cooperações
destes profissionais para circular, se tratar ou se formar (no caso deste artigo). A expectativa
dos usuários que frequentem alguns destes serviços (o transporte, em particular, pela sua
combinação com os mundos das empresas) é, como vimos, marcada por desconfiança,
suspeita e antecipação da provável “má qualidade” da prestação por ela ser associado a um
“público”. Paralelamente, os “direitos de usuários”, como costuma ser lembrado nos
momentos críticos de relações de serviço, são também frequentemente evocados desta
forma por profissionais de saúde e escolares. Porém, de ambas as partes, incluindo as
definições encontradas nos dispositivos jurídicos, “o usuário” não é, no conjunto de
normatividades que orientam as transações cotidianas, apenas um “sujeito de direito”; é
também um “cliente”, um “passageiro”, “um pagante”, “um não pagante”, “um portador de
necessidades especiais”, um “deficiente”, uma “senha”, “um paciente”, “um dependente”,
“um cidadão”, “uma pessoa em curso de construção” (etc.) em busca de um serviço. Pode-
se observar que as situações analisadas apontam para profundos contrastes em relação as
contribuições de Gilles Jeannot sobre o serviço público na França ou em outros contextos
europeus “bons para pensar”, na nossa proposta, as problematizações do serviço público em
contexto brasileiro. Apresentando o conjunto de problematizações que contribuem para o
estatuto do usager na França, Jeannot (1998) aponta para o fato de que, aos poucos, o
debate se volta para “a efetividade do acesso aos serviços públicos” no sentido dos
engenheiros do final dos anos 50 na França. Paulatinamente, o usager figura como
personagem na junção da oferta e a demanda e de difusão de um projeto de racionalização
industrial associado à intervenção pública. Posteriormente, já na década de 70, o serviço
púbico se constrói a partir de um compromisso entre “um princípio de uniformidade de uma
oferta estandardizada e um princípio de igualdade de tratamento”, por vezes alvo de críticas,
uma vez que são assim desconsideradas peculiaridades e singularidades das situações. Os
movimentos de problematizações seguintes, mais recentes, consistem “em reintroduzir a
singularidade do usuário nos dispositivos de produção de serviços públicos. – Serviços
públicos foram assim conduzidos em se interrogar ativamente sobre o que produz a
qualidade das prestações que oferecem aos usuários e em introduzir novos métodos de
gestão mais reativa; – Diversas tentativas de des-regularização ou de privatização (...)

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tenderem em desestabilizar certas rigidezes burocráticas ou em questionar os monopólios,


tornando o usuário em um ator econômico em um mercado”.
Partindo do contraste entre estas observações de Jeannot e o que procuramos
discutir neste artigo, o qual se configura como uma proposta de agenda de pesquisas
futuras, as problematizações sobre os serviços públicos são evidentemente demasiadamente
diferenciadas em contexto brasileiro, de modo que “o usuário” de serviço não é comparável
ao “usager”, correspondência sem adequação, para retomar Paul Ricœur. Encerramos,
portanto, este texto com hipóteses a serem exploradas em próximos trabalhos.
Em primeiro lugar, a categoria “usuário”, no Brasil, remete há décadas à assistência
social, única área em efetivamente problematizar esta categoria em uma continua
temporalidade, para se referir a públicos de atendimentos por assistentes sociais. Em um
efeito de ressignificações de nomenclaturas de outros contextos internacionais, tal categoria
é também presente em dispositivos jurídicos de saúde e transporte, particularmente no
processo de redemocratização (que atualmente parece se evaporar), mas não se configura
como personagem reconhecido, histórico e transversalmente, pelos serviços públicos
nacionais. Em segundo lugar, os mais recentes sentidos da categoria “usuário” ainda
podem ser associados com problematizações públicas voltadas para intervenções,
geralmente mediadas por profissionais governamentais ou de organização não-
governamental, para “dependentes químicos”, isto é, literalmente, “usuários de drogas” (e
não de um serviço público). Em terceiro lugar, pela dinâmica dos serviços públicos
brasileiros e pela pouca confiabilidade depositada neles - que podem ser por exemplo
associado, além do que exploramos nas situações mais tensas apresentadas, a profissionais
como policiais miliares - os agentes de serviço (que se convertem neste caso em “agentes do
Estado”) podem representar francas ameaças para os públicos de modo que tal
problematização, nem que seja nos estudos acadêmicos, perca sentido de ser analisada a
partir de uma problemática de qualidade de serviço público, quando dele pode surgir uma
ameaça.
Enfim, nestes três últimos apontamentos intuitivos e hipotéticos, podemos
compreender ainda a relativa ausência de uma discussão sobre “a qualidade” de serviços
públicos em contexto brasileiro, que parece desprovida de sentido diante da experimentação
geralmente tensa da maioria das relações de serviços cotidianas ou da suspeita decorrente da
associação entre “agentes de serviço” e “agente de Estado”. Em todos os casos, e do ponto
de vista de usuários (no sentido novamente literal), tal combinação contribui para
compreender algumas das dimensões da crescente vulnerabilidade das experiências de
atendimentos enquadrados como sendo ofertados por serviços públicos.
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de 2017. ISSN 2526-4702.
Tradução
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

A migração humana e o homem marginal


Human migration and the marginal man

Robert E. Park
Tradução de Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Resumo: As migrações, como todas as colisões incidentais, conflitos e fusões de povos e


de culturas que ocasionam, são contabilizadas entre as forças decisivas da história. Todo
avanço na cultura, como se tem dito, começa com um novo período de migração e
movimento das populações. As tendências atuais indicam que, muito embora a mobilidade
dos indivíduos tenha aumentado a migração dos povos, relativamente, diminuiu. As
consequências da migração e da mobilidade parecem, no geral, no entanto, parecem ser as
mesmas. Em ambos os casos, o cake of custom é quebrado e o indivíduo é liberado para
novas empresas e para novas associações. Uma das consequências da migração é criar uma
situação em que o mesmo indivíduo - que pode ou não ter um sangue misto - se encontra
lutando para viver em dois grupos culturais diversos. O efeito é produzir um caráter instável
- um tipo de personalidade com formas características de comportamento. Este é o "homem
marginal". É na mente do homem marginal que as culturas conflitantes se encontram e se
fundem. É, portanto, na mente do homem marginal que o processo de civilização está
visivelmente em curso, e é na mente do homem marginal que o processo de civilização
pode ser melhor estudado. Palavras-chave: migração, homem marginal, culturas
conflitantes, processo de civilização

Abstract: Migrations, with all the incidental collision, conflicts, and fusions of peoples and
of cultures which they occasion, have been accounted among the decisive forces in history.
Every advance in culture, it has been said, commences with a new period of migration and
movement of populations. Present tendencies indicate that while the mobility of individuals
has increased, the migration of peoples has relatively decreased. The consequences,
however, of migration and mobility seem, on the whole, to be the same. In both cases the
"cake of custom" is broken and the individual is freed for new enterprises and for new
associations. One of the consequences of migration is to create a situation in which the
same individual-who may or may not be a mixed blood-finds himself striving to live in two
diverse cultural groups. The effect is to produce an unstable character-a personality type
with characteristic forms of behavior. This is the "marginal man." It is in the mind of the
marginal man that the conflicting cultures meet and fuse. It is, therefore, in the mind of the
marginal man that the process of civilization is visibly going on, and it is in the mind of the
marginal man that the process of civilization may best be studied. Keywords: migrations,
marginal man, conflicting cultures, process of civilization

Estudiosos da grande sociedade, olhando para a humanidade na longa


perspectiva da história, frequentemente se dispõem a buscar uma explicação para as
diferenças culturais existentes entre raças e povos em alguma causa ou em alguma
condição dominante. Uma escola de pensamento, representada com grande destaque por
Montesquieu, encontrou essa explicação no clima e no ambiente físico. Outra escola,


Publicado originalmente sob o título “Human migration and the marginal man”. The American Journal
of Sociology, v. 33, n. 6, p. 881-893, May, 1928. A Sociabilidades Urbanas Revista de Antropologia e
Sociologia agradece a autorização para a tradução e publicação em português.

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identificada com o nome de Arthur de Gobineau (1915), autor de The Inequality of


Human Races (A desigualdade das raças humanas), procurou uma explicação para as
culturas divergentes nas qualidades inatas das raças biologicamente herdadas. Essas
duas teorias têm isso em comum, ou seja, ambas concebem a civilização e a sociedade
como resultado de processos evolutivos, - processos pelos quais o homem adquiriu
novos traços hereditários, - e não processos pelos quais novas relações foram
estabelecidas entre os homens. Em contraste com estes dois, Frederick Teggart
recentemente reiterou e amplificou o que pode ser chamado de teoria catastrófica da
civilização, uma teoria que remonta a Hume47, na Inglaterra, e a Turgot48, na França.
Deste ponto de vista, o clima e os traços raciais inatos, importantes como podem ter
sido na evolução das raças, têm sido de pouca influência na criação de diferenças
culturais existentes. De fato, as raças e as culturas, até agora, longe de serem idênticas, -
ou até mesmo o produto de condições e forças semelhantes, - talvez possam ser postas
uma contra a outra como efeitos de contraste, o resultado de tendências antagônicas,
para que a civilização possa florescer a custa das diferenças raciais ao invés de ser
conservada por elas. De qualquer forma, se é verdade que as raças são produtos do
isolamento e da endogamia, é tão certo que a civilização, por outro lado, é uma
conseqüência do contato e da comunicação. As forças que foram decisivas na história da
humanidade são aquelas que juntaram os homens em frutuosa competição, conflito e
cooperação. Entre as mais importantes dessas influências estão - de acordo com o que
eu chamo de teoria catastrófica do progresso, - a migração e as colisões, conflitos e
fusões incidentais de pessoas e culturas que elas ocasionaram. "Todo avanço na
cultura", - diz Bücher (1911), em seu livro Evolução Industrial, - "começa, por assim
dizer, com um novo período de errância" e, em apoio a esta tese, ele ressalta que as
formas de comércio anteriores eram migratórias, e que as primeiras indústrias a se
libertar da agricultura doméstica e se tornar ocupações independentes foram realizadas
de forma itinerante. "Os grandes fundadores da religião, os primeiros poetas e filósofos,
os músicos e atores de épocas passadas, são todos grandes vagabundos. Até hoje, o
inventor, o pregador de uma nova doutrina e o virtuoso viajam de um lugar para outro
em busca de adeptos e admiradores - apesar do imenso desenvolvimento recente nos
meios de comunicação da informação" (Bücher, 1911, p. 347).
As influências das migrações não foram limitadas, é claro, pelas mudanças que
efetuaram nas culturas existentes. Em longo prazo, determinaram as características
raciais dos povos históricos. "Todo o ensinamento da etnologia", como observa Griffith
Taylor (1927, p. 336), "mostra que os povos de raça mista são a regra e não a exceção".
Toda nação, após o exame, acaba por ser uma mistura mais ou menos bem sucedida. A
esse filtro constante de raças e povos, a geografia humana deu o título de "movimento
histórico", porque, como diz Miss Ellen Churchill Semple (1911, p. 75) em seu volume
sobre as Influências do Ambiente Geográfico, "está subjacente à maior parte da história
escrita e constitui a maior parte da história não escrita, especialmente, a das tribos
selvagens e nômades".
As mudanças na raça é verdade, seguem, inevitavelmente, a certa distância, as
mudanças na cultura. Os movimentos e a mistura de pessoas, - que trazem mudanças
rápidas, súbitas e muitas vezes catastróficas nos costumes e hábitos, - são seguidos, com
o passar do tempo, - como resultado do cruzamento, - por modificações no
temperamento e no físico. Provavelmente nunca houve um caso em que as raças tenham

47
David Hume (1711-1776) filósofo, historiador e ensaísta britânico, nascido na Escócia, que se tornou
célebre por seu empirismo radical e seu ceticismo filosófico. [Nota do tradutor].
48
Anne Robert Jacques Turgot (1727-1781). Economista e estadista francês cuja obra é considerada um
elo entre a fisiocracia e a escola britânica de economia clássica. (Nota do tradutor]

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vivido juntas nos contatos íntimos que uma economia comum impõe, na qual a
contiguidade racial não tenha produzido híbridos raciais. No entanto, mudanças nas
características raciais e nos traços culturais seguem taxas muito diferentes, e é notório
que as mudanças culturais não são consolidadas e transmitidas biologicamente, ou pelo
menos apenas, se for o caso, em uma proporção muito pequena. As características
adquiridas não são herdadas biologicamente.
Os escritores que enfatizam a importância da migração como uma agência de
progresso são invariavelmente levados a atribuir um papel semelhante à guerra. Assim,
Theodor Waitz, comentando a questão da migração como uma agência da civilização,
aponta que as migrações são "raramente de natureza pacífica no início". Da guerra, ele
diz: "A primeira consequência da guerra é que relações fixas são estabelecidas entre os
povos, que tornam possível uma relação amigável, relação esta que se torna a mais
importante, favorecendo o intercâmbio do conhecimento e experiência, do que com o
mero intercâmbio de mercadorias" (Waitz, 1963, p. 347). E então ele acrescenta:
Sempre que vemos um povo, de qualquer grau de civilização, que não
vive em contato e ação recíproca com os outros, geralmente
encontraremos certa estagnação, inércia mental e falta de atividade,
que tornam qualquer mudança de condição social e política
impossível. Esta é, em tempos de paz, transmitida como uma doença
eterna, e a guerra aparece, então, apesar do que os apóstolos da paz
possam dizer, como um anjo salvador, que desperta o espírito nacional
e torna todas as forças mais elásticas (Waitz, 1863, p. 348).
Entre os escritores que concebem o processo histórico em termos de intrusões,
tanto pacíficas, quanto hostis, de um só povo ao domínio de outro, se encontra os
sociólogos Ludwig Gumplowicz49 e Franz Oppenheim (1914). O primeiro, no esforço
de definir o processo social de forma abstrata, o descreveu como a interação de grupos
étnicos heterogêneos, onde a subordinação resultante e a super-ordenação de raças
constituem a ordem social – a sociedade, - de fato.
Do mesmo modo, Oppenheim, em seu estudo sobre a origem sociológica do
estado, acredita que demonstrou que, em todos os casos, o estado teve seu começo
histórico na imposição, pela conquista e força, da autoridade de um nômade sobre um
povo sedentário e agrícola. Os fatos que Oppenheim reuniu para sustentar sua tese
mostram, de qualquer forma, que as instituições sociais, na verdade, em muitos casos
pelo menos, surgiram abruptamente por uma mutação, em vez de um processo de
seleção evolutiva e a acumulação gradual de pequenas variações? (Oppenheimer, 1914).
Não é aparentemente evidente o porquê uma teoria que insiste na importância da
mudança catastrófica na evolução da civilização não deva, ao mesmo tempo, levar em
consideração a revolução como um fator em progresso. Se a paz e a estagnação como
sugere Waitz, tendem a assumir a forma de uma doença social; se, como diz Summer,
"a sociedade precisa ter algum fermento em si" para acabar com esta estagnação e
emancipar as energias dos indivíduos encarcerados dentro de uma ordem social
existente; parece que alguma "loucura aventureira", como as cruzadas da Idade Média,
ou algum entusiasmo romântico, como o que se expressou na Revolução Francesa, ou
na mais recente aventura bolchevique na Rússia, pode ser tão eficaz quanto a migração
ou a guerra para interromper a rotina do hábito existente e quebrar o cake of customs50.
As doutrinas revolucionárias são naturalmente baseadas em uma concepção de mudança
49
Ludwig Gumplowicz (1839- 1909). Autor de uma teoria sociológica do Estado baseada na
luta de raças e na conquista dos povos mais fracos pelos mais fortes. [Nota do tradutor].
50
Expressão inglesa que sugere o conjunto de costumes em que uma sociedade está enraizada. [Nota do
tradutor].

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catastrófica e não evolutiva. A estratégia revolucionária, tal como foi elaborada e


racionalizada nas Reflexões sobre a Violência de Georges Sorel (1914), faz da grande
catástrofe, da greve geral, um artigo de fé. Desse modo, tornam-se um meio de manter a
moral e impor a disciplina nas massas revolucionárias.
A primeira e mais óbvia diferença entre revolução e migração é que na migração
a ruptura da ordem social é iniciada pelo impacto de uma população invasora e
completada pelo contato e fusão de nativos com povos estrangeiros. No caso do
primeiro, o fermento revolucionário e as forças que perturbaram a sociedade
normalmente tiveram, ou parecem ter tido, suas fontes e origens, principalmente, se não
inteiramente, dentro, e não fora, da sociedade afetada. É duvidoso que possa ser
sustentado com sucesso que toda revolução, cada Aufklärung (esclarecimento), todo
despertar intelectual e renascimento tenha sido ou será provocado por algum movimento
populacional invasor ou pela intrusão de alguma agência cultural externa. Pelo menos,
parece ser necessária alguma modificação desta visão, pois, com o crescimento do
comércio e da comunicação houve, progressivamente e relativamente, mais movimento
e menor migração. O comércio, ao juntar as extremidades da terra, tornou as viagens
relativamente seguras. Além disso, com o desenvolvimento da indústria de máquinas e
o crescimento das cidades, são as commodities (mercadorias) em vez dos homens que
circulam. O mascate, que carrega suas mercadorias nas costas, cede lugar ao vendedor
ambulante, e o catálogo de mala postal agora atinge regiões remotas, que, até mesmo, os
mascates estrangeiros raramente, se é que alguma vez, penetraram. Com o
desenvolvimento de uma economia mundial e a interpenetração dos povos, as
migrações, como Karl Bücher (1901) apontou, mudaram seu caráter:
As migrações que ocorrem na abertura da história dos povos europeus
são migrações de tribos inteiras, empurrando e pressionando unidades
coletivas de leste a oeste que duraram séculos. As migrações da Idade
Média sempre afetam classes individuais específicas: os cavaleiros nas
cruzadas, os comerciantes, os artesãos salariais, os jornalistas, os
malabaristas e os trovadores, os servos que procuram proteção nos
muros de uma cidade. As migrações modernas são, pelo contrário,
geralmente, uma questão de interesse privado, os indivíduos sendo
liderados pelos motivos mais variados e, quase invariavelmente sem
organização. O processo que se repete diariamente mil vezes é unido
apenas por uma característica única, que é a questão de mudança de
localidade por pessoas que buscam condições de vida mais favoráveis
(Bücher, 1901, p. 349).
A migração, que a princípio assumia a forma de uma invasão, seguida pelo
deslocamento forçado ou pela subjugação de um povo por outro, assumiu o caráter de
uma penetração pacífica. A migração dos povos, em outras palavras, foi transmutada
para a mobilidade de indivíduos, e as guerras que esses movimentos tão frequentemente
ocasionaram assumiram o caráter de lutas internas, das quais as greves e as revoluções
devem ser consideradas como tipos.
Além disso, se alguém tentasse avaliar todas as formas em que ocorreram
mudanças catastróficas, seria necessário incluir as mudanças que são efetuadas pelo
surgimento súbito de algum novo movimento religioso como o maometanismo ou o
cristianismo, ambos iniciados como movimentos cismáticos e sectários, e que, por
extensão e evolução interna, se tornaram religiões independentes. Observado desse
ponto de vista, a migração assume um personagem menos original e excepcional do que
até agora foi concebido pelos escritores, a quem o problema mais intrigou. Aparece,
meramente, como uma de uma série de formas nas quais as mudanças históricas podem

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ocorrer. No entanto, considerado abstratamente como um tipo de ação coletiva, a


migração humana exibe em todos os lugares características que são suficientemente
típicas para torná-la um assunto de investigação e estudo independente, tanto em relação
à sua forma quanto em relação aos efeitos que produz.
A migração não é, no entanto, identificada com mero movimento. Isso envolve,
pelo menos, a mudança de residência e a quebra dos laços domésticos. Os movimentos
de ciganos e outros povos párias, - porque não produzem mudanças importantes na vida
cultural, - devem ser considerados antes que um fato geográfico, como um fenômeno
social. A vida nômade é estabilizada com base no movimento, e mesmo que os ciganos
agora viajem de automóvel, eles ainda mantêm comparativamente inalterados a sua
antiga organização e os seus costumes tribais. O resultado é que a sua relação com as
comunidades, que podem ser encontradas a qualquer momento, deve ser descrita como
simbiótica, em vez de social. Isso tende a ser verdade para qualquer seção ou classe da
população - os hobos, por exemplo, e os moradores de hotel - que são instáveis e
móveis.
A migração como fenômeno social deve ser estudada não apenas em seus efeitos
mais grosseiros, como se manifesta nas mudanças no costume e nos mores, mas pode
ser contemplada em seus aspectos subjetivos, como se manifesta no tipo novo de
personalidade que produz. Quando a organização tradicional da sociedade desmorona,
como resultado do contato e colisão com uma nova cultura estrangeira, o efeito é, por
assim dizer, o de emancipar o homem individual. As energias anteriormente controladas
pelo costume e pela tradição são isentadas. O indivíduo torna-se livre para novas
aventuras, mas ele encontra-se mais ou menos sem direção e controle. A declaração de
Frederick J. Teggart sobre esta questão é a seguinte:
Como resultado da quebra dos modos de ação e do pensamento
habituais, o indivíduo experimenta uma "liberação" das restrições e
constrangimentos a que tem sido submetido e evidencia essa
"liberação" em uma auto-afirmação agressiva. A sobre-expressão da
individualidade é uma das características marcadas em todas as épocas
de mudança. Por outro lado, o estudo dos efeitos psicológicos da
colisão e do contato entre diferentes grupos revela o fato de que o
aspecto mais importante da "liberação" não consiste em libertar o
soldado, o guerreiro ou o enraivecido da restrição dos modos de ação
convencionais, mas liberar o julgamento individual das inibições dos
modos de pensamento convencionais. Assim, pode ser visto [ele
acrescenta] que o estudo do modus operandi de mudança no tempo
oferece um foco comum aos esforços dos historiadores políticos, dos
historiadores da literatura e das idéias, dos psicólogos e dos estudantes
de ética e da teoria da educação (Teggart, 1925, p. 196).
As mudanças sociais, de acordo com Teggart, têm sua origem em eventos que
"liberam" os indivíduos dos quais a sociedade é composta. Inevitavelmente, no entanto,
esta versão é seguida no decorrer do tempo pela reintegração dos indivíduos lançados
em uma nova ordem social. Contudo, certas mudanças incidem no caráter dos próprios
indivíduos. Eles se tornam, no processo, não apenas emancipados, mas esclarecidos.
O indivíduo emancipado invariavelmente se torna, em certo sentido e até certo
ponto, cosmopolita. Ele aprende a olhar para o mundo em que nasceu e se criou com
algo do desapego de um estranho. Ele adquire, em suma, um viés intelectual. Simmel
descreveu a posição do estrangeiro na comunidade, e a sua personalidade, em termos de
movimento e migração.
"Se o vagar", diz ele, "considerado como a libertação de cada ponto no espaço, é
o oposto conceitual da fixação em qualquer ponto, então certamente a forma sociológica

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do estrangeiro apresenta a união de ambas as especificações". O estrangeiro permanece,


mas não se pauta como estabelecido. Ele é um perambulador potencial. Isso significa
que ele não se encontra enlaçado, - como os outros estão, - pelas convenções e acordos
locais. "Ele é o homem mais livre, prática e teoricamente. Ele vê a sua relação com os
outros com menos preconceito; ele os submete a padrões mais gerais, mais objetivos, e
não se encontra confinado em sua ação por costume, piedade ou precedentes".
O efeito da mobilidade e da migração é o de secularizar as relações
anteriormente sentidas como sagradas. Pode-se descrever o processo, em seu duplo
aspecto, ou seja, como secularização da sociedade e como individuação da pessoa. Para
uma imagem breve, vívida e autêntica da forma como a migração do tipo anterior, - a
migração de um povo, - de fato, provocou a destruição de uma civilização precedente e
liberou os povos envolvidos para a criação de uma civilização posterior, - uma
sociedade mais secular e mais livre, - sugiro a Introdução de Gilbert Murray (1907) para
o seu livro The Rise of the Greek Epic, em que procura reproduzir os eventos da invasão
nórdica da região do Egeu.
O que se seguiu, diz ele, foi um período de caos:
Um caos no qual uma civilização antiga é quebrada em fragmentos,
suas leis são nulas, e a intrincada rede de expectativas normais, que
forma a própria essência da sociedade humana, despedaçada tantas
vezes e de forma tão profunda, por contínuos desapontamentos que,
finalmente, deixa de haver, de modo absoluto, qualquer expectativa
normal. Para os colonos fugitivos pelas margens que seguiram para
Ionia, e a seguir, também, para Doris e Aeolis, não havia deuses
tribais ou obrigações tribais, porque não havia tribos. Não havia leis
antigas, porque não havia ninguém para administrar e nem mesmo
para lembrá-las; apenas as compulsões que o poder mais forte do
momento resolveu impor. A vida familiar e a família haviam
desaparecido, com todos seus incontáveis laços. O homem, agora, não
estava mais vivendo com uma esposa de sua própria raça, mas com
uma mulher estranha e perigosa, de linguagem e de deuses
alienígenas, a mulher cujo marido ou pai talvez tivesse sido
assassinado ou, na melhor das hipóteses, que havia sido comprado
como escravo pelo assassino. O velho lavrador ariano, como veremos
a seguir, viveu com seus rebanhos em uma espécie de conexão
familiar. Quando ele matava o "seu irmão o boi", por estresse ou por
razões religiosas, esperava que suas mulheres o chorassem quando o
assassinato era realizado. Mas, agora, ele deixou o seu próprio
rebanho longe, e este foi devorado por inimigos. E, a partir de então,
ele viveu com animais de estranhos, de quem roubou ou se manteve
em servidão. Ele deixou os túmulos de seus pais, os fantasmas
bondosos de seu próprio sangue, que colheram a comida de sua mão e
o amaram; e agora estava cercado pelos túmulos de mortos estranhos,
de fantasmas estranhos cujos nomes não ele conhecia e que estavam
além de seu poder de controle, e a quem aplacar com medo e aversão.
O único fato concreto a seguir, a partir de agora, como o centro de sua
fidelidade, era o de abastecer o lugar de seu antigo coração familiar,
seus deuses, seus costumes tribais e santidades. Era um circuito de
muros de pedras, uma Polis; o muro que ele e seus companheiros,
homens de diversas línguas e cultos unidos por uma tremenda
necessidade, construíram para ser a única barreira entre eles e um
mundo de inimigos (Murray, 1907, p. 78-79).

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Foi no interior dos muros da polis e nessa companhia mista que a civilização
grega nasceu. Todo o segredo da vida grega antiga, a sua relativa liberdade das
superstições mais grosseiras e do medo dos deuses, está ligada, dizem-nos, com esse
período de transição e caos, no qual o mundo primitivo anterior pereceu e da qual uma
mais livre, e mais esclarecida ordem social surgiu. O pensamento foi emancipado, a
filosofia nasceu e a opinião pública se estabeleceu como uma autoridade contra a
tradição e o costume. Como Arnold Guyot, em seu Earth and Man (1857), citado por
Thomas (1921, p. 205), diz: "O grego com seus festivais, suas canções, suas poesias,
parece celebrar, em um hino perpétuo, a libertação do homem dos poderosos grilhões da
natureza".
O que ocorreu na Grécia, primeiro, ocorreu a seguir no resto da Europa e, agora,
está acontecendo na América. O movimento e a migração dos povos, a expansão do
mercado e do comércio e, particularmente, o crescimento, nos tempos modernos, desse
cadinho de raças e culturas, que são as cidades metropolitanas, afrouxaram os laços
locais, destruíram as culturas da tribo e do povo, e substituíram as lealdades locais pela
liberdade das cidades; e a ordem sagrada do costume tribal, pela organização racional
que chamamos de civilização.
Nessas grandes cidades, onde todas as paixões, e todas as energias da
humanidade são liberadas, estamos em posição de inquirir os processos da civilização,
por assim dizer, sob um microscópio.
É nas cidades que os antigos grupos de clãs e parentes se fragmentaram e foram
substituídos por organizações sociais baseadas em interesses racionais e predileções
temperamentais. É nas cidades que se realiza, de forma mais intensa, a grande divisão
do trabalho que permite e, mais ou menos compele o homem individual, a concentrar
suas energias e seus talentos na tarefa particular a que se encontra melhor equipado para
executar, e desta forma o emancipa, e a seus companheiros, do controle da natureza e
das circunstâncias que dominava completamente o homem primitivo.
Acontece, entretanto, que o processo de aculturação e de assimilação, e o
amalgama que acompanha os estoques raciais, não prosseguem com a mesma facilidade
e a mesma velocidade em todos os casos. Especificamente, onde os indivíduos expostos
a uma vida comum são de culturas divergentes e de conjuntos raciais muito diferentes, a
assimilação e o amalgama não ocorre tão rapidamente quanto ocorrem em outros casos.
Todos os nossos chamados problemas raciais emergem de situações em que a
assimilação e amalgamação não ocorreram, ou ocorrem muito devagar. Como já disse
em outro lugar, o principal obstáculo para a assimilação cultural das raças não é o seu
aspecto mental diferente, mas sim os seus traços físicos divergentes. Não é por causa da
mentalidade dos japoneses que eles não assimilam tão facilmente quanto os europeus. É
por que
o japonês apresenta em seus traços uma distinção distintiva racial, que
ele usa, por assim dizer, como um uniforme racial que o qualifica. Ele
não pode se tornar um mero indivíduo, indistinguível na massa
cosmopolita da população, como é verdade, por exemplo, em relação
aos irlandeses e, em menor grau, de algumas outras raças imigrantes.
O japonês, como o negro, está condenado a permanecer entre nós
como uma abstração, um símbolo, - e um símbolo não apenas de sua
própria raça, mas do Oriente e daquela ameaça vaga e mal-definida a
que às vezes nos referimos como "perigo amarelo" (Park, 1914).
Sob tais circunstâncias, povos de diferentes estoques raciais podem viver lado a
lado em uma relação de simbiose, cada um desempenhando um papel em uma economia
comum, todavia, e em grande medida, não acasalando; cada qual mantendo uma

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organização ou sociedade tribal mais ou menos completa e própria, como os ciganos ou


os párias indianos. Esta era a situação dos judeus na Europa até os tempos modernos, e
existe uma relação um tanto semelhante entre as populações nativas brancas e hindus no
Sudeste da África e nas Índias Ocidentais.
No entanto, em um longo prazo, os povos e as raças que vivem juntos,
compartilhando a mesma economia, inevitavelmente se cruzarão, e dessa maneira, se
não houvesse outras, as relações meramente cooperativas e econômicas se tornarão
sociais e culturais. Quando a migração leva à conquista econômica ou política, a
assimilação se faz inevitável. Os povos conquistadores impõem a sua cultura e os seus
padrões aos conquistados e, a partir de então, segue um período de endosmose cultural.
Às vezes, as relações entre os povos conquistadores e conquistados assumem a
forma de escravidão; às vezes elas assumem a forma, como na Índia, de um sistema de
castas. Mas, em ambos os casos, os povos dominantes e sujeitos se tornam, no tempo,
partes integrantes de uma mesma sociedade. A escravidão e a casta são meramente
formas de acomodação, em que o problema da raça encontra uma solução temporária. O
caso dos judeus é diferente. Os judeus nunca foram sujeitados, pelo menos na Europa.
Nunca foram reduzidos à posição de uma casta inferior. Em seus guetos, - que
escolheram, e depois foram forçados a viver, - eles preservaram suas próprias tradições
tribais e sua independência cultural, se não política. O judeu que deixou o gueto não se
libertou; deserdou e se tornou aquele objeto execrável, um apóstata. A relação do gueto
judeu com a comunidade maior em que ele vivia foi, e até certo ponto ainda é simbólica,
em vez de social.
Quando, no entanto, as paredes do gueto medieval foram derrubadas e o judeu
foi autorizado a participar da vida cultural dos povos entre os quais vivia, apareceu um
novo tipo de personalidade, a saber, um híbrido cultural, um homem que vive e
compartilha intimamente a vida cultural e as tradições de dois povos distintos; nunca
muito disposto a quebrar, mesmo que ele tenha permissão de fazê-lo, o seu passado e
suas tradições, e não muito aceito, por causa do preconceito racial, na nova sociedade
em que agora procurava encontrar um lugar. É um homem à margem de duas culturas e
duas sociedades, que nunca completamente se interpenetram e se fundem. O judeu
emancipado foi, e é historicamente e tipicamente o homem marginal, o primeiro
cosmopolita e cidadão do mundo. Ele é, por excelência, o estranho, que Georg Simmel
(1908) descreveu, ele próprio judeu, com uma visão e compreensão tão profunda em seu
grande livro Zociologie (Sociologia).
A maioria, senão todas as características do judeu, certamente, a sua
preeminência como comerciante e o seu interesse intelectual, a sua sofisticação, o seu
idealismo e a sua falta de sentido histórico, são as características do homem da cidade, o
homem que se expande e se modifica a todo o momento, que vive de preferência em um
hotel - em suma, o cosmopolita. As autobiografias de imigrantes judeus, dos quais um
grande número foi publicado na América, nos últimos anos, são versões diferentes da
mesma história - a história do homem marginal; do homem que, emergindo do gueto em
que morava na Europa, procura encontrar um lugar em uma vida mais livre, mais
complexa e cosmopolita de uma cidade americana.
Pode-se aprender com estas autobiografias como o processo de assimilação
realmente ocorre no imigrante individual. Nas mentes mais sensíveis, os seus efeitos são
tão profundos e tão perturbadores, como algumas das conversões religiosas de que
William James (1902) nos deu um relato tão clássico em suas Variedades de
Experiência Religiosa. Nessas autobiografias de imigrantes, o conflito de culturas, tal
como ocorre na mente do imigrante, é apenas o conflito de um self dividido, o self
antigo e o novo. E, muitas vezes, não há um movimento satisfatório nesse conflito que,

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muitas vezes, termina em uma profunda desilusão, como descrito, por exemplo, na
autobiografia de Lewisohn (1922) Up Stream (Rio Acima).
Contudo, a hesitação inquietante de Lewisohn, - entre a segurança calorosa do
gueto, que ele abandonou, e a liberdade fria do mundo exterior, na qual ele ainda não se
sente em casa, - é típica. Um século antes, Heinrich Heine 51, dilacerado pelas mesmas
lealdades conflitantes, e lutando para ser ao mesmo tempo um alemão e um judeu,
promulgou um papel semelhante. Foi o segredo e a tragédia da vida de Heine, de acordo
com o seu biógrafo mais recente, que as circunstâncias o condenaram a viver em dois
mundos, em nenhum dos quais ele já não sentia como seu, e não mais pertencia. Foi isso
que amargou a sua vida intelectual e deu a seus escritos o caráter de conflito espiritual e
instabilidade. Conflito este que, de acordo com Lewis Browne (1927, p. 355), é a
evidência de uma “angústia espiritual” (spiritual distress). A sua mente já não tinha a
integridade baseada na convicção: "os seus braços eram fracos" - para continuar a
cotação - "porque a sua mente estava dividida; as suas mãos estavam inquietas, porque a
sua alma estava em tumulto".
Algo do mesmo senso de dicotomia e conflito moral é provavelmente
característica de todos os imigrantes durante o período de transição, quando os velhos
hábitos estão sendo descartados e os novos ainda não estão formados. É inevitavelmente
um período de turbulência interior e de autoconsciência intensa.
Não há dúvida de que os períodos de transição e crise nas vidas da maioria das
pessoas podem ser comparáveis com o que o imigrante experimenta quando sai de casa
para buscar a sua fortuna em um país estranho. Mas, no caso do homem marginal, o
período de crise é relativamente permanente. O resultado é que isso tende a se tornar um
tipo de personalidade. Normalmente, o homem marginal é de um sangue misto, como o
mulato nos Estados Unidos ou o Eurasiático na Ásia, mas é apenas aparentemente,
porque o homem de sangue misto é aquele que vive em dois mundos, nos quais ele é
mais ou menos um estranho. O cristão convertido na Ásia ou na África exibe muitas
características, se não a maioria, do homem marginal: a mesma instabilidade espiritual,
a autoconsciência intensificada, a inquietação e o mal-estar.
É na mente do homem marginal que a turbulência moral que os novos contatos
culturais ocasionam, se manifesta nas formas mais óbvias. É na mente do homem
marginal, por fim, - onde as mudanças e fusões da cultura estão acontecendo - que
podemos estudar melhor os processos de civilização e de progresso.

Referências
BROWNE, Lewis (with the collaboration of Elsa Weihl). That man Heine: a biography.
New York: Macmillan Company, 1927.
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51
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ARAÚJO, Marianna de Queiroz. A Família Lundgren e a fundação da cidade de Rio Tinto: Do medo ao
acirramento dos conflitos fundiários. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia,
v.1, n.3, p. 124-135, novembro de 2017. ISSN 2526-4702.
Artigo
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

A Família Lundgren e a fundação da cidade de Rio Tinto: Do medo ao


acirramento dos conflitos fundiários

The Lundgren Family and the foundation of the city of Rio Tinto: From fear to the tension
increase of land conflicts
Marianna de Queiroz Araújo

Resumo: O presente artigo pretende analisar os significados sociaisdo projeto político e


econômico de domínio dos Lundgren em Rio Tinto que se baseava no estabelecimento e
manutenção de relações sociais fortemente hierarquizadas. Tomo a implantação da
Companhia de Tecidos Rio Tinto e seu regime de poder como contraponto ao
reconhecimento dos limites étnicos, ondeas práticas de dominação tiveram papel
determinante, condicionando a organização social e a organização política dos indígenas
potiguara.A negação e o silenciamento da identidade étnica provocados pelas instancias
econômicas de controle e submissão só foram revertidos através do enfrentamento com a
Companhia Rio Tinto e as usinas de cana-de-açúcar,levando os Potiguarajá na década de
1990 a se organizarem pela demarcação de suas terras. Palavras-chave: indígenas
potiguara, identidade étnica, Rio Tinto, conflitos fundiários

Abstract: The present article intends to analyze the social meanings of the political and
economic project of dominion of the Lundgren in Rio Tinto, Paraiba, Brazil, that was based
on the establishment and maintenance of social relations strongly hierarchical. I take the
implantation of the Rio Tinto Fabric Company and its power regime as a counterpoint to
the recognition of ethnic boundaries, where the practices of domination played a
determining role, conditioning the social organization and political organization of the
indigenous people of Potiguara. The denial and silencing of ethnic identity caused by
economic instances of control and submission were only reversed through confrontation
with Companhia Rio Tinto and sugarcane mills, leading the Potiguara as early as the 1990
to organize by demarcation of their lands. Keywords: indigenous potiguara, ethnic
identity, city of Rio Tinto, land conflicts

Os grandes estudiosos da história das cidades bem sabem que o surgimento dos
núcleos urbanos se deu, ao longo dos tempos, pelos mais diferentes motivos. Algumas
cidades ganharam corpo a partir da implantação de um porto marítimo, como foi o caso
de Recife; outras foram erguidas para dar suporte à extração de minérios, como ocorreu
em diversas cidades de Minas Gerais. A fundação da cidade de Rio Tinto, escopo deste
artigo se deu a partir da instalação da Companhia de Tecidos Rio Tinto, os Lundgren,
grupo familiar proprietário do empreendimento fabril, costumam ser referenciados
como os fundadores da cidade, essa formação desponta como fio condutor das análises
aqui apresentadas.
Rio Tinto é um dos municípios do estado da Paraíba, distante 52 km da capital
João Pessoa, com uma população de 24.154 habitantes, segundo dados do Censo
Demográfico de 2017 do IBGE. Este município possui uma área de 465 km² de
extensão territorial e encontra-se localizado na Mesorregião da Mata Paraibana, mais

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precisamente na Microrregião do Litoral Norte. Sua história é marcada pela construção


da Companhia de Tecidos Rio Tinto. Este foi um empreendimento industrial de grandes
proporções e que definiu as características espaciais e sociais na região durante anos.
Nas últimas três décadas a cidade de Rio Tinto experimenta um conflito social
de amplas proporções que envolve disputas em diversos planos. Entre os grandes
agentes envolvidos neste contexto, se destacam: os indígenas potiguara pertencentes a
Terra Indígena de Monte-Mór52, a família Lundgren e as usinas de açúcar, nesse bojo se
inserem diversos conflitos fundiários que serão aqui apresentados.Tomarei como
referência as relações de poder que permitiram a dominação da Companhia de Tecidos
Rio Tinto sobre as famílias dos potiguara que foram vítimas de violência,negação e
silenciamento da identidade étnica.
Localizando os Potiguara em seu território
Os Potiguara ocupam o Litoral Atlântico do Estado da Paraíba, inserido na foz
do rio Camaratuba e foz do rio Mamanguape, tendo como limite norte o município de
Mataraca e ao sul o de Rio Tinto.
O território de aproximadamente 33.757, 7329 hectares53 apresenta resquícios de
Mata Atlântica, tabuleiros costeiros, com solo argiloso-arenoso, de coloração escura e
relevo suavemente ondulado. A presençados Potiguara se dá distribuída em 32 aldeias,
pertencentes a três terras indígenas contíguas 54 localizadas nos municípios de Baia da
Traição, Marcação e Rio Tinto. Há ainda aqueles que vivem em outras cidades como
Mamanguape, João Pessoa, Rio Grande do Norte e até mesmo no Rio de Janeiro e em
São Paulo. Esse contexto sócio-ecológico-territorial (Mura, 2006) no qual estão
inseridos os Potiguaraé fruto de consequências sociais, culturais e materiais.
Numerosos documentos, relatos e iconografias registram as primeiras incursões
de colonizadores em terras Potiguaras, dando prosseguimento à usurpação de seu vasto
território e buscando o aproveitamento de suas riquezas naturais. Conforme Panet
(2002, p. 22-23):
(...) em 1574 a Coroa Portuguesa resolve dividir a então Capitania de
Itamaracá em duas capitanias, criando assim a Capitania Real da
Paraíba, tendo como limites o rio Goiana e a Baía da Traição.
Os índios Potiguaras eram os habitantes nativos da região, e os
primeiros exploradores foram os franceses, quando expulsos da
Capitania de Itamaracá, seguiram ao sul pelo oceano até a foz de um
rio navegável chamado pelos nativos de Mamanguape. Instalaram-se
perto do rio, na Baía da Traição. Através da aliança com os índios, os
franceses extraíram o pau-brasil, aproveitaram a terra fértil da região
para o cultivo de diversas formas de agricultura, permanecendo na
região até o período da fundação da cidade da Paraíba, atual João

52
A Terra Indígena Potiguara de Monte-Mór foi identificada e delimitada pela FUNAI (Fundação
Nacional do Índio) em 2004, com portaria declaratória de 13 de dezembro de 2007, autorizando a
demarcação física da área, que ocorreu em 20096. O processo de demarcação da Terra Indígena segue
aguardando homologação da Presidência da República e sofre uma contestação judicial por parte da
Miriri Alimentos e Bioenergia S/A que alega ser proprietária da maior parte da área demarcada. Tendo
adquirido os imóveis por compra a Companhia de Tecidos Rio Tinto e à Agropastoril Rio Vermelho S/A
(Palitot, 2015).
53
Informação obtida a partir de dados do Distrito Sanitário Especial Indígena, o DSEI Potiguara do
Ministério da Saúde.
54
O conjunto das aldeias constitui três Terras Indígenas (TIs) contíguas, perfazendo um total de 33.757
hectares. A TI Potiguara (população de 8.109 pessoas), a TI Jacaré de São Domingos (população de 449
pessoas) e a TI Potiguara de Monte Mór (população de 4.447 pessoas), (Cardoso, et al, 2012, p.15).

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Pessoa, quando Martim Leitão os expulsou e rumou para a Baía da


Traição, combatendo os últimos contingentes.
Os portugueses, juntamente com outras famílias e os jesuítas, foram os
primeiros proprietários de sesmarias da região e do vale do
Mamanguape. Nesse período, dá-se início ao aldeamento dos índios
Potiguaras e o levantamento quantitativo dos engenhos da região,
sendo os trabalhos interrompidos, na época da invasão holandesa.
Nesse período, com a retirada dos holandeses, foi restaurado o antigo
aldeamento indígena, iniciado antes da invasão e sua população
cresceu com a vinda dos colonos portugueses. Devido a
desentendimentos entre os índios e portugueses, nova aldeia foi
construída e denominada Monte-mór. Os índios foram transferidos
para a nova aldeia, e em virtude de seus costumes de vida, não
compreendidos pelos europeus, o aldeamento foi em seguida
denominado Vila da Preguiça. Na antiga aldeia permaneceram as
autoridades e os Portugueses. Com solo fértil, água cristalina do Rio
Mamanguape, florestas de pau-brasil e porto natural (Porto de
Salema), a região prosperou através da exportação de seus produtos,
“comércio de cabotagem”, e principalmente com a intensificação do
cultivo de cana-de-açúcar, e a construção de engenhos.
Os aldeamentos missionários constituíam-se numa forma de ocupar efetivamente
os territórios, instituindo reservas de mão-de-obra. Os índios “mansos” eram de
interesse da coroa portuguesa, o objetivo era transformá-los em trabalhadores
subordinados à coroa. De acordo com Moonen (2008) foram instalados quatro
aldeamentos na Paraíba, sendo eles: Jacoca e Alhandra, localizados na microrregião do
Litoral Sul; e Monte-Mór e São Miguel, localizados na microrregião do Litoral Norte.
Na segunda metade do século XVIII os aldeamentos missionários de São Miguel
e Baía da Traição vão ser modificados pelas leis estabelecidas pelo Marquês de Pombal
que determina a expulsão das ordens missionárias e a elevação das aldeias à categoria
de vilas de índios, que fez com que os Potiguara perdessem a posse do seu território.
Nesse período o Estado passa a promover a emancipação de municípios, bem como
fazendeiros se utilizam dessas terras para incorporar parcelas de territórios tradicionais
dos indígenas, os quais passam da condição de dono das terras, para a de empregados.
O diretório pombalinofoi responsável por um movimento de homogeneização
ao incentivar os casamentos mistos e a fixação de colonos nas aldeias. Nesse contexto o
aldeamento de São Miguel na Baía da Traição passou a ser chamado Vila São Miguel e
o aldeamento da Preguiça como Vila de Nossa Senhora dos Prazeres de Monte-Mór.
De acordo com Vieira (2012, p.31), no decorrer do século XIX,
(...) a província da Paraíba solicitou ao Governo Imperial a divisão das
terras de aldeamentos com a finalidade de lotear as supostas terras
devolutas sobre a alegação de que em alguns antigos aldeamentos não
mais existiam índios. Nesse contexto, a Lei de Terras de 1850
promoveu a formulação dos procedimentos jurídicos responsáveis
pela regularização da propriedade fundiária no Império. O marco
dessa política na Paraíba foi o loteamento das terras dos antigos
aldeamentos, dentre eles, os dos Potiguara realizado pelo engenheiro
Antônio Justa de Araújo. Ele procedeu a divisão da terra e, quase toda
a extensão do aldeamento da Preguiça, deixando de fora aquelas do
aldeamento de São Miguel, por razões desconhecidas na
historiografia.

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Após a promulgação da Lei de Terras, os descasos das autoridades associados à


precária condição dos indígenas fizeram com que houvesse constantes usurpações e
compras das terras indígenas. A divisão do território em lotes interferiu profundamente
nas formas de organização dos aglomerados residenciais reflexo dos diversos regimes
jurídicos que os Potiguara foram submetidos ao longo de séculos, o que revela
processos diferenciados de ocupação e usos dos espaços.
Palitot (2005, p. 29) argumenta que os Potiguara se viam cada vez mais recuados
pela espoliação territorial e o avanço da patronagem, sendo obrigados a conviverem e
disputar suas terras com pequenos agricultores e latifundiários, até que duas grandes
agências entram no campo para modificar esta dinâmica, são elas: a introdução do
Serviço de Proteção aos Índios (SPI) 55 na Baía da Traição que estabelece um regime
tutelar de controle das terras e a chegada da Companhia de Tecidos Rio Tinto (CTRT),
em Rio Tinto. Por um lado, a agência indigenista se limitava às ideologias nacionais da
incorporação desses grupos à sociedade, por outro a intensificação e as frentes de
ocupação dos territórios tradicionais dos Potiguara se dava de forma intensa. Os
arrendamentos de terra se davam de forma constante e a Companhia de Tecidos Rio
Tinto se instalava nesse cenário de conflitos e usurpação do território tradicional
Potiguara, que será melhor descrito no próximo item.
A chegada da família Lundgren
No início do século XX, mais especificamente entre os anos de 1917 e 1918, a
Companhia de Tecidos Rio Tinto se instala na região do vale do Mamanguape, mais
precisamente na atual cidade de Rio Tinto, passando a ter espraiamento pelo Brasil
inteiro através da rede de lojas “Casas Pernambucanas”, tendo como proprietários a
poderosa família Lundgren (Moonen, op. cit, p. 23). Essa família exercia poder em
Pernambuco e na Paraíba, a partir da implantação de indústrias de tecidos consideradas
como uma das mais importantes manufaturas do país. As terras até então ocupadas por
indígenas do aldeamento de Monte-Mór foram vendidas pelo coronel Alberto César de
Albuquerque por vinte e três contos de réis à família Lundgren. De acordo com Góes
(1964, p.125):
Dez anos após a morte de Herman Lundgren, os seus filhos Frederico
e Arthur, à frente da já próspera Fábrica de Tecidos Paulista,
resolveram ampliar as suas atividades, com a construção de outro
estabelecimento, que fosse modelar em tudo e por tudo, de acordo
com o mais avançado padrão da técnica industrial. Não seria apenas
uma fábrica, mas uma arriscada experiência social, pois que, no plano,
já estava prevista a futura cidade: da fábrica, a vila; da vila, a cidade.
A família Ludgren teve muitos privilégios, dentre eles a boa localização das
terras, que possuíam portos naturais, além da riqueza e diversidade das florestas. Além
disso, o Estado beneficiou a família com uma isenção fiscal de 25 anos. A Companhia
adquiriu cerca de 660 km² de terras ociosas, e em 1917 iniciou seus trabalhos de
drenagense canalização das águas no local de instalações da fábrica e a criação de uma
olaria para a produção dos chamados tijolos aparentes56, utilizados para a construção da
maioria das edificações da cidade. Além da ocupação das terras os Ludgren buscava um
controle firme de toda a população, por essa razão “optaram pela procura de terras
distantes de cidades movimentadas e, consequentemente longe da atuação de

55
O SPI foi criado em 20 de junho de 1910, pelo decreto nº. 8072.
56
Tijolo maciço de estilo Holandês.

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movimentos sindicais, ameaçadores de seu domínio e controle sobre a mão-de-obra”


(PANET, op.cit., p.27).
Conforme Moonen (op.cit., p. 24):
Em pouco tempo a Companhia apoderou-se das terras do extinto
aldeamento de Monte-mór hoje Rio Tinto (...) Invadindo enormes
extensões da área indígena da Bahia da Traição, principalmente para
cortar madeira de lei para a construção da fábrica, e de lenha para
alimentar suas máquinas, utilizando inclusive índios como mão-de-
obra.
As matas nativas, depois de derrubadas, foram substituídas por plantios de
eucaliptos, como é o caso de parte da região que pertencia à aldeia potiguara Jaraguá
que teve moradores desalojados e grandes porções de sua Mata Atlântica desmatada
para a construção da fábrica, conforme depoimento concedido abaixo:
Jaraguá nesse tempo, olhe estava tudo desmatado, a Companhia
derrubou pra depois plantar eucalipto pra botar nas fornalha da
fábrica. Trabalhei pra companhia nesse tempo, aqui a gentenão tinha
muita chance não (Senhor Zé Boto. Entrevista concedida em Abril de
2012).

No final de 1925 a Companhia começou a funcionar tendo se apropriado de


grande parte do território indígena. A Vila Monte-Mór é ocupada para a ampliação do
empreendimento urbano-fabril, com a construção de uma nova unidade industrial e da
vila operária. A partir desse momento, os Lundgren passam a atrair mão de obra,
empregando muitos Potiguara na implantação de roçados para abastecer o “barracão” e
na abertura e conservação de estradas (AMORIM, 1970, p. 42).Os indígenas que
ficaram vivendo sob o domínio dos Lundgren relatam uma época de intenso trabalho na
fábrica, nas lavouras e no corte de madeira.
Com efeito, entre os Potiguara, a lembrança do período da “Companhia” está
muito presente. É importante destacar o significado e as implicações que esta presença
carreou para os modos de vida destes habitantes originários. Seu Zé Boto, que nasceu na
aldeia Jaraguá falou a respeito de certos acontecimentos, sendo ele ex-trabalhador no
corte de lenha para a empresa:
Eu trabalhei sim, carregando madeira sabe? pra companhia, porque a
companhia mandava até no mangue, no mangue a companhia
mandava.A companhia tinha mais de 30 barco, sabe a ponte da
Caieira? Vinha madeira de cima do rio, era o dia todo, da Barra de
Mamanguape para chegar na serraria, madeira da mata ia buscar lá
(...) A companhia funcionava com madeira. Ali na Senzala57 também
era tanto goiamum58 os caras ia buscar lenha para Companhia e levava
dessas lata de querosene, começava a tirar as lenhas e já levava os
goiamum, isso aqui tudo era mangue, quando olhava estava estrelado
de goiamum ninguém queria, hoje em dia até os filhotinho que tão
nascendo o povo tá pegando, a vida é assim mesmo (Senhor Zé Boto.
Entrevista concedida em Dezembro de 2016).
Esses processos históricos ocasionaram diversas transformações no território
Potiguara que são sentidas e vistas até hoje. O Senhor Zé Boto ainda narra sobre as
modificações nos corpos d‟água da região. Ele afirma que devido ao fato de os navios

57
Bairro de Rio Tinto.
58
Espécie de caranguejo (Cardisomaguanhumi).

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que chegavam para o transporte de equipamentos e tecidos serem de grande porte, era
difícil a locomoção nos rios, já que esses apresentavam várias curvas. Sendo assim, para
facilitar a navegação a Companhia “abriu” novos rios:
Eu ás vezes até choro com desgosto (...) pra o que eu vi e pra o que eu
vejo agora. Ai se eu falar, quem não conhece não vai acreditar... a
maré acabada aí. Porque o cara que, o engenheiro que cavou esse rio,
aquele rio da draga (...) ele falou, disse: Olha; a gente vai cavar esse
rio, mas o passar do tempo, o rio vai voltar mermo pra onde era. Mas
sabe por que não aconteceu isso? Porque o rio aqui acabou-se.
Aterrou, aterrou tudo aqui, pronto aí o rio ficou morto, sem força (...)
Mas como o rio aqui aterrou, fechou, que hoje ninguém disse que é
rio, né? Aí pronto, aí acabou com o rio. Mas se o rio aqui tivesse
ainda, pelo menos 30% do que era, 30%, eu vou falar assim: Ôxe,
tinha aberto aí com tudo...A dificuldade do barco entrar aqui que tinha
muita volta, aí não tem aquela reta aquele barco que veio de baixo
entrava para Taberaba chamava comporta, esse meio daquela reta só
era mangue, então o que deu? A companhia resolveu cavar aquele rio,
como? na base da pá do enxadeco, cortaram o mangue. Na hora que
começou cavar só parou quando terminou, era uma turma de dia e
outra de noite, uma turma de um lado, outra de outro, até se encontrar,
enchia as canoa e recebia a ficha, cortaram o rio (...) O que fizeram
com esse aqui? Mataram o rio, que não ia ter mais movimento de
barco aqui né? La no encontro do rio afundaram uma alvarenga59, ela
era bem comprida tem uns 15 metros afundaram ela, ficou um
canalzinho. Hoje tá lá um canal que foi caindo barreira que foi
enlarguecendo60, que quem vê o começo não acredita. (Seu Zé Boto.
Entrevista concedida em Julho de 2013).
A Companhia necessitava semanalmente de milhares de metros cúbicos de lenha
para operar seus geradores termoelétricos. Em função dessa necessidade, a retirada de
madeiras e outros recursos florestais era proibida, sendo severamente fiscalizada e
punida caso os vigias achassem que isso ameaçava os recursos de domínio da
Companhia (PANET,op.cit.,).
De acordo com Marques, 2009, p.117
Entre os Potiguara, as denominações “sargento” e “capangas” são
utilizadas para referenciar os vigias e para demonstrar o medo que
ainda hoje é guardado como más lembranças do tempo da “amorosa”.
Nesse tempo, os indígenas não podiam se reconhecer como tal, caso
algum quisesse se rebelar era duramente castigado pelos capangas do
Frederico. Tempos de medo, de “assombração”, de silêncio e de
usurpação das terras tradicionais são palavras utilizadas pelos
Potiguara ao referenciar o momento da instalação da CTRT.
Vários tipos de represálias eram efetuadas a quem desobedece as ordens do
coronel FredericoLundgren:
As torturas e mortes eram realizadas nas instalações da fábrica ou no
meio do mato, em lugares ermos. Na fábrica, falam que os índios eram
atirados dentro de uma das caldeiras. Havia um lugar na Mata do
Burro D‟água onde dentro de um buraco tinha umas agarras de ferro,
onde os cabocos eram atirados. Aqueles que ficaram negavam ou não

59
Alvarenga é uma embarcação de porte variável, desprovida de propulsão própria.
60
Aumentando de tamanho.

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expunham a identidade étnica, como uma forma de viver sob o jugo


da Companhia (Palitot, op.cit., p. 70).
Muitos Potiguara relatam que quando uma família se recusava a entregar suas
terras para os Lundgren tinham suas casas atacadas e destruídas pelos capangas do
Coronel Frederico durante a noite impossibilitando a fuga, muitos indígenas tinham
medo de se aproximar de suas famílias para não serem pegos, devido a esse fato muitos
optaram pela dispersão ao migrarem para outras aldeias ou cidades do entorno.
O monopólio dos Lundgren na cidade de Rio Tinto era sustentado pelas relações
de poder estabelecidas. A companhia possuía muitas chefias desde as ofertas de
trabalho, moradia, lazer, religião e saúde. Deste modo, os moradores se viam sujeitados
aos mandos e desmandos do Coronel Lundgren. Somente os trabalhadores mais velhos
da fábrica podiam trabalhar na agricultura, era-lhes cedido um pequeno pedaço de terra
para o cultivo de alguns alimentos nos “roçados”, essa atividade era imposta e
controlada pelo Coronel Frederico. Os produtos agrícolas tinham um preço regulado e
eram comprados pela Companhia, que então os revendia em seu “barracão”, a preços
altos. Para os trabalhadores que cultivavam em terras ditas da Companhia era cobrado
um dia de trabalho semanal gratuito na fábrica, como pagamento do aluguel da casa e
do terreno61, conforme o depoimento abaixo:
Só quem tinha coco era a companhia, pobre não tinha não, a
companhia não aceitava não. Não podia plantar nada, a não ser uma
raminha de batata se tivesse um espaçozinho pequeno, outra coisa a
companhia não aceitava, tinha que pagar pra poder trabalhar. Era
aqueles coqueiro grande, alto, pronto, aqueles da vila, aqueles era da
companhia, era daqueles que tinha na Gameleira62, tinha um balcão
onde eles descascavam o coco ali, dali vinha pegar pro barracão da
companhia que era onde é o Banco do Brasil e a garagem da Viação
Rio Tinto, era um só, ali tinha de tudo, agora tudo das propriedade
dela, a companhia mandava nos Tanque, Piru, nesses mundo
Laranjeira perto de Piabuçu com a divisa de Mamanguape, Salema
era da Companhia e aqui até Brejinho tudo isso era dela, e em toda
fazenda tinha os legumes e o administrador tomava conta (...) Meu pai
pagou muita diária, toda semana tinha que trabalhar um dia seja lá
como fosse, era o aluguel da casa, morada, e era muita sorte o cara
conseguir uma casa(Entrevista com Seu Ze Boto, concedida em
Dezembro de 2016).
De acordo com Panet (op. cit., p. 28), nos períodos entre 1920 a 1948, foram
construídas 2613 casas para os operários. Em 1923 foram construídas a farmácia, a
igreja, o grupo escolar, clubes recreativos e padaria. Em 1940 foi construído o hospital e
o barracão da companhia. A instalação dos equipamentos e a construção da fábrica se
deram entre 1923 e 1941, sendo que a fábrica deu início às atividades a partir de
1924vindo a se tornar uma das maiores da América do Sul. Famílias inteiras foram
aliciadas pelos agentes da companhia, iludidas com promessas de melhorias da
qualidade de vida, quando chegavam à Rio Tinto eram amontoadas em galpões até que
fossem construídas as casas, que variavam de acordo com o número de trabalhadores da
fábrica e com o cargo exercido.
Havia diferentes tipos de casa para as variadas funções na fábrica. As casas e
chalés localizados nas principais ruas da cidade eram maiores e ocupados por diretores e

61
Palmeira (1977) faz uma análise da relação entre proprietário de terra e morador, apontando como estas
se configuravam por meio de um contrato que ligava, por dependência, ambos agentes sociais.
62
Rua da Gamileira localizada na aldeia Monte-Mór.

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chefes de setores. As casas que se localizavam no entorno eram menores, e as que se


localizavam aos fundos das casas menores, eram conjugadas.
As memórias relatam uma vida agitada na cidade, com feira movimentada, festas
e cinema. Contudo a partir dos anos de 1960 houve uma diminuição dos funcionários da
fábrica, pois alguns setores da companhia passaram por um processo de mudança dos
maquinários. Nesse período alguns funcionários com mais de 10 anos de trabalho
receberam como indenização as casas que moravam, pois essa forma de acordo se
colocava como um instrumento de liberação das responsabilidades trabalhistas da
CTRT.
Segundo Palitot (2005, op. cit.), a chegada da CTRC na cidade de Rio Tinto, fez
com que essa se desenvolvesse enquanto centro industrial de grande sucesso. No
entanto, entre as décadas de 1960 e 1970 o mercado foi se tornando mais competitivo, e
as transformações tecnológicas ocorridas nas indústrias da região Sudeste do país
ocasionaram uma crise na fábrica, por não conseguir se adaptar ao novo mercado que
surgia, o que fez com que a mesma fechasse suas portas.
Além do fator tecnológico, outros foram apontados como resultantes do declínio
da fábrica, entre eles: os problemas jurídicos envolvendo questões de herança. Todo o
processo de decadência e desentendimento familiares se estendeu até 1990 quando a
Companhia de Tecidos Rio Tinto fechou definitivamente suas portas. Hoje a fábrica
encontra-se desativada, nas antigas instalações funciona a Policlínica Rio Tinto, uma
pequena fábrica de toalhas e o Campus IV da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
As usinas e o acirramento dos conflitos
Na década de 1980 grande parte das terras da Companhia foram vendidas para as
usinas de álcool, incentivadas pelo Proálcool (Programa Nacional do Álcool)63. Esse
programa tinha como desígnio estimular a produção do álcool, para o atendimento das
necessidades do mercado interno e externo e da política de combustíveis automotivos.
Para Palitot (op.cit.), é nesse contexto específico que as usinas canavieiras de
Pernambuco e da Paraíba investem nessas áreas antes exploradas pela Companhia,
comprando/arrendando as terras, que seriam utilizadas para a plantação ou incentivando
proprietários rurais na produção para essas empresas.
Com o fechamento da fábrica e a transferência das terras para as usinas, as
condições de reprodução social das famílias residentes na área se tornaram ainda mais
difíceis, com intimidações cada vez maiores no acesso aos recursos agrícolas e
pesqueiros. O Senhor Zé Boto afirma que as usinas são as maiores responsáveis pelo
desmatamento da vegetação local e pelo assoreamento dos rios. Em suas palavras:
Agora quem é culpado disso? Vocês sabe? Não sabe? (...) Tão fácil de
saber quem é o culpado, coisa mais fácil do mundo; os usineiros, são
culpado por tudo isso aí, né só aqui não, todo canto, os usineiro (...) já
ouviu falar de um tar de buraco do padre (voçoroca 64)? Pronto só era
esse, agora tem do padre, tem da freira tem do São Cristóvão, tem de
todo mundo ali dentro agora. É cratera funda, é grande, é esquisita (...)
cobre quase um canoé65 desse todo (...) isso foi criado por quê? O
desmatamento minha gente, acabou com tudo, viu? O desmatamento.
Hoje eu vejo na televisão, ói tem que florestar 30m, vamos dizer, da

63
O Programa Nacional do Álcool foi criado em 1974, a partir do decreto n° 76.5930. Nesse período,
foram instaladas várias destilarias no litoral brasileiro motivadas pelo aumento do preço do petróleo a
nível mundial e pela queda do preço do açúcar no mercado.
64
Escavação no solo ou em rocha decomposta causada por erosão do lençol de escoamento de águas
pluviais.
65
O canoé é uma espécie típica de manguezal.

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margem do rio pra fora, isso vai resolver o que meu Deus? Nada vai
resolver, só problema, viu? Porque mexeram em todas as vertentes, aí
deixaram aquelas boladinha de mata que a gente vê nas vertentes,
pronto, mas se o lançamento de terra já vem de cima do alto, né? Não
ficou essa bolada de mata, ali, ele resolveu nada? Não resolveu, vê
que essa margem tá toda aterrada no mundo acima, tudinho, porque
ninguém andava ali dentro, esse trecho de caminho que a gente passa
ai, daquela rua pra essa outra aí, quem vai ali por fora (...) ali do lado e
de outro ninguém andava, porque aquilo não existia, viu? Aquilo não
existia, aquilo ali, tudo isso aí, tudo foi aterro, foi aterro que a
Companhia fez (...) então vamos dizer que esses paús 66era tudo ligado,
de cima do alto ao mangue, tudo era ligado, mas conforme ela queria a
estrada até porto novo, aí ela saiu aterrando, e fazendo a estrada,
pronto. É o que aconteceu, foi isso, mais mesmo assim ela não
prejudicou, a companhia, não! Quem prejudicou foi a usina, a
companhia cortava, mas cortava de machado e a usina veio e arrancou
pelo pé, pela cepa, não sobrou nada, vegetação nenhuma sobrou onde
a usina passou, e nem vai sobrar, porque (...) o pior de tudo é que ela
queima, aí dizem a usina tem tantos hectare de mata, não sei o que,
que ele fala, como é essa quantia de mata? Tem duas hectare aqui, tem
mais duas (...) lá na casa da mulesta, isso vai resolver nada? Não
resolve. (Senhor Zé Boto. Entrevista concedida em Julho de 2013).
Com a chegada das usinas, a cana-de-açúcar avançou pelos espaços produtivos
dos habitantes, devastando as áreas de vegetação existentes e restringindo as atividades
de agricultura e de pesca. Os terrenos melhores (as chãs67) foram utilizados para a
plantação da cana, restando as encostas acidentadas para o cultivo de alimentos dos
moradores. Os recursos disponíveis tornaram-se cada vez mais escassos e a população
se viu encurralada em espaços reduzidos (Araújo, 2017).
Os desmatamentos empreendidos para o plantio de cana-de-açúcar transformam
rapidamente o cenário das relações sociais na região levando indígenas já na década de
1990 a se organizarem pela demarcação de suas terras. As chamadas “retomadas” foram
feitas com a substituição dos canaviais pelo plantio de “roça” (macaxeira), como uma
forma de resistência, que permitiu os grupos indígenas lutarem para enfraquecer as
usinas de açúcar.
Segundo Cardoso (et al, 2012, p.17-18):
Os Potiguara, a partir de então, iniciam um processo de auto-
demarcação do território recorrendo à Universidade Federal da
Paraíba (UFPB) para a obtenção de apoio técnico na empreitada. Em
1981, o governador da Paraíba determina que um órgão da Secretaria
de Agricultura elabore um projeto de desenvolvimento para as
famílias da reserva de Baía da Traição, que ficou conhecido como
Projeto Integrado. Setores da igreja consideraram a atitude uma
manobra para desviar a atenção da luta indígena pela posse da terra e
debateram com os índios no sentido de não aceitarem a proposta.
Finalmente nos anos de 1983 e 1984, o trabalho de demarcação da
área é concluído, delimitando um território de 21.238 ha. Tal
demarcação excluiu a antiga sesmaria de Monte-Mor, onde havia
“propriedades” da Cia de Tecidos Rio Tinto e de algumas usinas.
Também outras localidades habitadas pelos Potiguara como Lagoa
Grande e Grupiúna ficaram de fora, bem como a cidade de Baía da

66
Tipo de solo arenoso para plantio.
67
Terreno plano.

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Traição e área de reserva do manguezal do rio Mamanguape. As


aldeias Jacaré de São Domingos e Grupiúna se mobilizaram no
sentido de reivindicar o reconhecimento do território tradicional,
sendo homologada em 1993. Monte-Mor foi o terceiro território a ser
reconquistado. No sentido inverso, os Potiguara passaram a
“empurrar” os canaviais pra fora do seu território. A “retomada”,
como dizem, foi feita com a substituição do canavial pelo plantio de
“roça”. O início do processo de retomada foi em 2003 quando nove
barracas foram armadas na borda da cidade de Marcação em áreas de
canavial.
O processo de regularização fundiária se arrastou por mais de dez anos em
virtude de contestações judiciais e de interesses políticos que dificultaram o
atendimento das demandas territoriais de várias famílias Potiguara. Embora sem uma
solução definitiva para a não demarcação do território, os indígenas não cessaram a
mobilização, em meio a todas essas questões burocráticas os Potiguara foram
estabelecendo alianças e fortalecendo sua luta com as “retomadas”, como forma de
resistência contra o poderio das usinas. Os Potiguara de Marcação e Rio Tinto
plantavam as “roças” que tendiam à ampliação dos cultivos como o feijão, o milho, a
mandioca entre outros que eram posteriormente destruídas a mando dos usineiros, desta
forma, os indígenas passaram à retirada da cana de seu território. Intensificou-se
cotidianamente a construção de casas e os cultivos de fruticultura, hortaliças,
leguminosas, tubérculos e das “roças”, contrastando com a paisagem canavieira
(Marques, op.cit.).
O território é, nesses termos, entendido não como mero “espaço”, mas como um
suporte da noção de controle político – o qual se dá por parte de certas configurações
temporais. Portanto, a “retomada” do território, se configura como um movimento
político de reafirmação étnica, onde a luta pela reconquista do território tradicional se
opôs a monocultura da cana que corresponde a uma prática prejudicial ao ambiente, que
fez com que faixas de mata fossem gradativamente destruídas, além dos prejuízos no
solo causados pelo excesso de vinhoto utilizado como fertilizante nos canaviais.
De acordo com o cacique Aníbal:
Quando a usina entrou aqui já foi derrubando a mata, derrubando tudo
pra plantar cana-de-açúcar e aí tá a destruição da floresta (...) toda
acabada. Nosso território mudou por completo, a erosão tá acabando
com tudo com o rio. A cana-de-açúcar só trouxe pra gente aqui só foi
desgraça mesmo pra nossa vida (...) o sofrimento do nosso povo. Aqui
mesmo em Jaraguá nós não temos cana-de-açúcar não, aqui lutei,
lutemos, onde era cana antes agora é povo, viu? (Cacique Aníbal
Cordeiro Campos, entrevista concedida em Setembro de 2016).
Os indígenas eram obrigados a arrendar suas terras para os usineiros, em virtude
da marginalização que estavam submetidos, a “retomada” foi um movimento contrário
dos próprios indígenas de se rebelar contra essa forma de subordinação. Esse processo
de recuperação do território garantiu a apropriação de recursos e a mudança das relações
de poder. Todas essas estratégias de resistência à dominação no processo de empenhos e
iniciativas para defesa e recuperação do território trouxeram a possibilidade da
realização de atividades produtivas que estavam sendo restringidas.
Pode-se dizer que antes que se estabelecessem dinâmicas próprias do
desenvolvimento capitalista, com exploração de mão de obra e de recursos dos
territórios, os Potiguara podiam desenvolver suas atividades num meio ambiente que
satisfazia suas necessidades, onde a escassez de recursos não estava posta.

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Nesse sentido, a resistência ao plantio de cana pode ser percebida como uma
estratégia que põe fim a sujeição do trabalho no corte da cana. Como afirma o Cacique
Aníbal “o que era cana agora é povo” que nos remete a um marco de consolidação de
um esforço realizado pelo grupo para a obtenção do seu território tradicional usurpado
por instancias econômicas ao longo do processo histórico. Portanto a “retomada” das
terras foi o elemento que tornou possível o acesso a determinadas parcelas de terras que
estavam sendo negadas ou restringidos.
Para Peres (2002, p.5),
A luta destas famílias indígenas pela retomada do seu território
tradicional é também uma luta socioambiental; expressa o protesto
coletivo diante de uma situação de privações étnicas e ambientais
causadas pela agro-indústria canavieira que inviabiliza as condições
materiais e simbólicas de sustentação do campesinato Potiguara.
Só após as “retomadas” é que os Potiguara passaram a ocupar melhores terrenos
para a agricultura e construção de casas. Nesse sentido, a luta pela terra para os
Potiguara não remete tão somente a uma demanda legal, a terra é entendida como
espaço simbólico. O acesso ao território possibilita a reprodução social nos moldes
tradicionais, uma vez que no território estão impressos os acontecimentos e os fatos
históricos que mantém viva a memória do grupo. Nesses termos a noção de ocupação
tradicional não deve ser entendida como sendo algo rígido, fixo no tempo, mas do
contrário, possuidora de uma fluidez proveniente das relações sociais. Trata-se,
sobretudo das narrativas dos atores sociais que dão sentido ao território como lugar de
pertencimento e referência para sua identidade étnica (ARAÚJO, op.cit.).
Ao analisar os processos históricos e políticos em que os indígenas da região
Nordeste passaram, João Pacheco de Oliveira (2004) refere-se ao processo de
territorialização como sendo um processo de reorganização social, com isto entendendo
a atribuição de espaços específicos e bem delimitados a grupos sociais e étnicos
subordinados ao poder colonial.
Oliveira entende a noção de territorialização como sendo
um processo de reorganização social que implica: i) a criação de uma
nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma
identidade étnica diferenciadora; ii) a constituição de mecanismos
políticos especializados; iii) a redefinição do controle social sobre os
recursos ambientais; iv) a reelaboração da cultura e da relação com o
passado. (Oliveira, op.cit., p.22).
O destaque colocado pelo autor sobre uma dimensão coletiva na formação
daidentidade étnica, coloca em evidência o diálogo com as formulações de Barth
(2000a) sobre os grupos étnicos como constituindo um tipo organizacional que canaliza
os fluxos da cultura. Como descrito os Potiguara ao longo do século XX, se
reorganizaram enquanto grupo étnico diferenciado em buscado direito de uso exclusivo
sobreparte dos territórios por eles ocupados.
Considerações Finais
Diante do exporto concluímos que a cidade de Rio Tinto teve sua formação com
a implantação da indústria têxtil, sobre o domínio da família Lundgren que por muitos
anos exerceu poder e controle sobre o espaço do antigo aldeamento de Monte-Mór,
trazendo prejuízos aos indígenas potiguara que se encontravam com restrições de acesso
ao território, efeitos da dominação industrial.
O processo histórico descrito coloca em evidência os diferentes contextos em
que estiveram inseridos os indígenas potiguara, assinalando a complexidade das

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relações sociais e étnicas, onde as práticas de dominação tiveram papel determinante,


condicionando a organização social e a organização política dos indígenas.A luta pela
regularização fundiária e a elaboração de uma nova identidade entre os Potiguara se dá
em meio a um campo social carregado de conflitos e que passa por rápidas mudanças
nos esquemas de controle dos recursos naturais. As terras reivindicadas são espaços
tanto físicos quanto geográficos, assumindo um lugar central para os indígenas que
depois de muitas décadas, instituíram-se novamente como uma coletividade marcada
por origens e interesses comuns, na contracorrente de forças políticas e econômicas que
os desejavam subordinados.
Referências
ARAÚJO, Marianna de Queiroz. Ecologia doméstica e transação de conhecimento
entre grupos domésticos potiguara da aldeia Jaraguá de Monte- Mór, PB. Dissertação
(Mestrado em Antropologia). João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2017.
BARTH, Fredrik. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In LASK, Tomke (Org.). O guru,
o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria.
2000.
CARDOSO, T. et al. Etnomapeamento Potiguara da Paraíba. Funai. Brasília, 2012.
IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. https://goo.gl/7pZuxy. Acesso
Setembro/2017.
MARQUES, Amanda Christinne Nascimento. Território de Memória e Territorialidades
da Vitória dos Potiguara da aldeia Três Rios. Dissertação (Mestrado em Geografia).
João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2009.
MURA, Fabio. À procura do “bom viver”: território, tradição de conhecimento e
ecologia doméstica entre os Kaiowa. Tese (Doutorado em Antropologia). Rio de
Janeiro: PPGAS / Museu Nacional-UFRJ, 2006.
OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos „índios misturados‟? Situação
colonial, territorialização e fluxos culturais. In J. P. de Oliveira (Org.), A viagem da
volta: Etnicidade, Política e Reelaboração Cultural no Nordeste Indígena. 2ª Ed. Rio
de Janeiro: Contra Capa, 2004.
PALMEIRA, Moacir. Casa e trabalho: notas sobre as relações sociais na “plantation”
tradicional. Contraponto, v. 2, n. 2, p. 103-114, 1977.
PALITOT, Estevão Martins. Os Potiguara da Baia da Traição e Mont-Mor: história,
etnicidade e cultura”. Dissertação (Mestrado em Sociologia). João Pessoa:
Universidade Federal da Paraíba, 2005.
PERES, Sidnei. A Identificação da T.I. Potiguara de Monte‐Mor e as Conseqüências
(Im) previstas do Decreto 1775/96”. Boletim GERI. Brasília, 2002. Disponível em:
http://www.unb.br/ics/dan/geri/boletim06‐port.htm. Acesso em Setembro de 2017.
VIEIRA, José Glebson. Amigos e competidores: política faccional e feitiçaria nos
Potiguara da Paraíba. Tese. São Paulo: USP, 2012.

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SANTOS, Rafael França Gonçalves. Amizades e invenções de si: As experiências trans em Campos dos
Goytacazes. Sociabilidades Urbanas: Revista de Antropologia e Sociologia, v. 1, n. 3, p. 136-148,
novembro de 2017 ISSN 2526-4702.
ARTIGO
www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

Amizades e invenções de si: As experiências trans em Campos dos


Goytacazes

Friendships and Inventions of Self: Trans Experiences in Campos dos Goytacazes

Rafael França Gonçalves dos Santos

Resumo: As experiências trans estão, muitas vezes, associadas à prostituição, à violência e


marginalidade, produzindo uma verdade apresentada como natural e irrefutável. Este
trabalho busca trilhar outros caminhos analíticos e encontrar outros olhares onde só se tem
visto o negativo. Nos limites deste artigo, proponho apresentar como o tema da amizade
está situado nos estudos acadêmicos e em seguida problematizar a amizade como uma
forma de relação que concorre para os processos de constituição das subjetividades trans -
travestis e transexuais -, em Campos dos Goytacazes nas duas últimas décadas. Palavras-
chave: experiência trans, amizade, subjetividades, Campos dos Goytacazes
Abstract: Trans experiences are often associated with prostitution, violence and
marginality, producing a truth presented as natural and irrefutable. This work seeks to track
other analytical paths and find other looks where only the negative has been seen. Within
the limits of this article, I propose to present as the theme of friendship is situated in
academic studies and then discuss the friendship as a form of relationship that contributes
to the processes of constitution of trans - transvestites and transsexual subjectivities - in
Campos dos Goytacazes in the two last decades. Keywords: trans experience, friendship,
subjectivities, Campos dos Goytacazes

As experiências trans estão, muitas vezes, associadas à prostituição, à violência e


marginalidade, produzindo uma verdade apresentada como natural e irrefutável. Este
artigo busca por trilhar outros caminhos analíticos e encontrar outros olhares onde só se
tem visto o negativo 68. Portanto, nos limites deste artigo, proponho apresentar como o
tema da amizade está situado nos estudos acadêmicos e em seguida problematizar a
amizade como uma forma de relação que concorre para os processos de constituição das
subjetividades trans69 - travestis e transexuais -, em Campos dos Goytacazes nas duas
últimas décadas.

68
Esta reflexão faz parte da pesquisa sobre amizade e experiências trans que tenho desenvolvido para o
meu doutorado no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro, intitulado: Montagens de si: relações de amizade e experiências trans (femininas) em Campos
dos Goytacazes.
69
Travestis, transexuais e transgêneros são alguns dos termos usados para nomear sujeitos que vivem e/ou
experienciam um determinado movimento de transição no gênero e/ou no sexo. Há um debate acalorado
na academia e nos movimentos sociais sobre qual termo é mais adequado para qualificar cada
experiência. Uma saída encontrada por alguns é a utilização do trans*, já outros defendem simplesmente
trans. Como no meu campo de pesquisa surgiram diversas outras formas de nomeação, optei por utilizar o
termo trans para me referir às interlocutoras e pontuar, quando necessário as especificidades que o
compõem.

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Estudar a amizade é possível?


A amizade e os amigos são algo que realmente importa? Há alguma relevância
acadêmica e social em se tratar tal tema enquanto um campo de pesquisa? É possível,
viável e pertinente pensar e problematizar um tipo de relação humana que é tão presente
quanto tênue e que por vezes escapa ao propósito cartesiano de duplo? E, ainda mais,
qual o sentido e que importância pode haver em pensar tais questões ligadas às trans,
sujeitos qualificados, descritos e historicamente nomeados como abjetos, marginais ou
menos importantes em seu estatuto de humanidade (se é que o têm)?
Uma primeira questão a ser colocada é que a amizade ou, melhor dizendo, as
formas de amizade, possuem uma historicidade, sofreram e sofrem transformações ao
longo da história da humanidade, portanto, é passível de ser estudada, problematizada e
indagada historicamente; e isto nos remete à ideia de desnaturalizar ou simplificar a
amizade como uma relação exclusivamente de solidariedade, fraternidade e/ou
irmandade. Ainda que tais aproximações sejam possíveis nos dias atuais, importa
compreender que isso só é possível porque existe uma história da amizade, e que não foi
sempre assim. Da Antiguidade à Idade Média, do período Moderno aos dias atuais, as
relações entre amigos e amigas foram transformadas e deram novos e diferentes
sentidos à intimidade, à política e à própria ideia do que deve ser público e privado.
As indagações apresentadas pelo pensador francês Michel Foucault são
apontadas, muitas vezes, como o início de um interesse mais detido sobre a amizade
enquanto uma forma de constituição das subjetividades. Particularmente no momento
em que desenvolvia as pesquisas para o 2º e 3º volumes de seu projeto sobre a História
da Sexualidade, Foucault se interessa bastante pela questão da amizade e chega a sugerir
que esta poderia compor um modo de vida70.
Na Grécia Antiga Aristóteles rompeu com a ideia platônica de amor-philia e
construiu a amizade como uma obra-prima da razão, portanto uma atividade filosófica,
em contraposição ao amor, que seria uma forma de impulso, portanto não filosófico. A
amizade em Aristóteles está ligada ao exercício da vida pública, o governo do Estado e
à ideia do homem como um animal político. Como destacaram as historiadoras Marilda
Ionta e Natália Campos: “Para Aristóteles, a política é uma forma de amizade, assim
como a família. (...) Ele compara a amizade entre irmãos à democracia; é um processo
de fraternização e, por conseguinte, a amizade é, em princípio, democrática por ser
fraternal.” (IONTA & CAMPOS, 2008, p. 178) As historiadoras desenvolvem uma
reflexão sobre as diferenças entre as concepções de amizade entre os gregos e os
romanos na Antiguidade, mas destacam que em ambas as sociedades a amizade fora
acionada como elemento capaz de garantir certa coesão do tecido social. No contexto
romano, marcado por tensões políticas e práticas de conspiração, o senador Cícero
escreve Lélio ou A Amizade, e defende a ideia de concórdia, como uma forma de manter
o consenso e o acordo, com isso evocava mais uma veza relação entre amizade e
política. (Ibidem, p. 181) Fazendo referência à interpretação de Ortega, Ionta e Campos
destacam que:
(...) a philia grega, vínculo por excelência coextensivo da cidadania e, por
conseguinte, da política na Grécia, é substituída na sociedade romana pela
concórdia, que se converte na relação política básica dos romanos. Sem
concórdia, a amizade só pode existir como um afastamento da política.
(Ibidem, p. 181).

70
Como está escrito em Da amizade como modo de vida (FOUCAULT, 1981); um texto que não mais que
três páginas, e com uma densidade de uma reflexão que tomaria tempo de muitos intelectuais.

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Já no período conhecido como medieval estas relações são transformadas em


nome da nova ordem social que se estabelecia. A philia da antiguidade clássica, que
tinha as características de ser preferencial, recíproca e mutável, perdeu espaço para uma
nova forma de amizade, qualificada com ágape; esta seria marcada por um vínculo de
obediência, imutabilidade e sem reciprocidade, pois o vínculo maior se daria entre os
seres humanos e o divino, Deus. Tem-se, então, a criação de uma ideia de amor ao
próximo e ligação de todos como irmãos a partir da unidade divina. Com isto, operou-se
um deslocamento definitivo, que Ortega atribui a Agostinho: “Com a passagem da
óptica dual (eu-você) à óptica triádica (eu-você-Deus), Agostinho realizada o
deslocamento definitivo da concepção clássica à cristã da amizade: „Feliz o que Vos
ama, feliz o que ama o amigo em Vós, e o inimigo por amor de Vós‟” (ORTEGA, 2002,
p. 72).
Em Genealogias da amizade, Francisco Ortega também identifica no período da
Idade Média a criação da hostilidade em relação à homossexualidade, pois “numerosas
acusações de sodomia feitas na Alta Idade Média e no Renascimento, correspondiam a
um comportamento que teria sido qualificado de amizade em outra época” (Ibidem, p.
89). E na Renascença Montaigne investiu na separação da amizade em relação à família,
como havia sido feito durante a Idade Média, mas Montaigne de alguma forma ainda
pensa a amizade como uma forma de parentesco. Assim, de Aristóteles a Cícero, e
chegando até os ensaios de Montaigne, há um investimento em se produzir a ideia de
um modelo de amizade perfeita. (VINCENT-BUFFAULT, 1996, p. 9).
Chegamos, enfim, à modernidade, que será analisada por alguns pensadores
como a época em que há uma decomposição do espaço público e de crescente
privatização e des-politização. Hannah Arendt, Michel Foucault, Richard Sennett,
Norbert Elias e Philippe Àries são apontados por Ortega como os autores que analisam
este processo que dá cada vez mais relevo à vida íntima e promove o encarceramento da
amizade no espaço do privado. Conforme destaca Ortega:
Notamos, assim, como a percepção das relações de amizade como
pertencentes à intimidade, totalmente distantes do público, e, às vezes,
incorporadas nas relações de parentesco – algo que nos parece tão natural,
que nunca pensamos em questionar-, é, na verdade um fenômeno recente, que
se inicia no século XIX. Durante a Idade Moderna, essas relações faziam
parte de uma sociabilidade e convivialidade próprias de uma sociedade com
uma forte vida pública, fora dos quadros contratuais, dos laços de família e
das relações comerciais, como foi anteriormente o caso da Antiguidade
greco-latina, em que os vínculos de amizade constituíam elementos da vida
pública (ORTEGA, 2002. p. 109).
A partir do século XVIII começa-se a perceber os indícios de que a amizade
assumiria um novo lugar nas relações sociais, passando a fazer parte de um repertório
intimista e privado, e também privativo. “A nova amizade será mais íntima, mais
privada, mais afetiva e exclusiva, e, em consequência, menos política” (Ibidem, p. 139).
Nietzsche talvez seja o ponto de inflexão nesse movimento de despolitização da
amizade. Segundo Ionta e Campos, para o filósofo Jacques Derrida foi Nietzsche quem
rompeu com o cânone da amizade, provocando fissuras nas concepções falocêntricas da
amizade (IONTA & CAMPOS, 2008, p. 184).
Talvez tomada como um tema menor ou pouco capaz de despertar o interesse de
pesquisadores, por muito tempo a amizade ficou relegada, caindo muitas vezes no
esquecimento. É possível que isto seja um indicativo do por que tenhamos tão poucos
trabalhos produzidos sobre a história da amizade. No levantamento bibliográfico feito
para esta pesquisa, encontrei uma quantidade expressiva de materiais sobre a amizade
referida enquanto sinônimo de solidariedade, laço de afeição, fraternidade etc., ou seja,

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compreendendo apenas um dos espectros possíveis de análise da amizade. Importa


destacar, também, que muitos desses materiais foram produzidos no campo da
Sociologia e Antropologia, como a importante pesquisa de Cláudia Barcellos Rezende,
Os significados da amizade: duas visões de pessoa e sociedade (2002), em que a
antropóloga investe na análise sobre a amizade enquanto um dispositivo de interação
social em dois espaços distintos: Rio de Janeiro, no Brasil, e Londres, na Inglaterra.
Nesta pesquisa Rezende elenca uma vasta bibliografia socioantropológica sobre a
temática da amizade na formação do indivíduo, pontuando a importância da confiança e
dos laços afetivos entre os amigos e amigas, chegando a considerar que nas relações de
amizade se chegaria a não hierarquia entre os amigos, em oposição ao modelo familiar,
em que cada um ocupa um lugar específico (REZENDE, 2002, p.78), (de pai, irmão,
filho etc).
O interesse da Antropologia sobre a amizade, segundo Rezende, adveio da
comparação entre amizade e família (Ibidem, p. 111) e é uma das questões mais
discutidas ainda neste campo. Há de se registrar, também, uma aproximação com os
estudos da Sociologia e da Antropologia das Emoções, particularmente nos trabalhos do
antropólogo brasileiro Mauro Guilherme Pinheiro Koury (2015, 2012, 2012a).
Como é um tema muito associado aos debates presentes na filosofia e na política
(IONTA & CAMPOS, 2008, 176), parte considerável da literatura que se detém sobre a
amizade de forma mais vertical e problematizadora está ligada a essas áreas. Na
reflexão que segue, três autores identificados como filósofos ou cientistas políticos
contribuíram para formular um olhar desnaturalizado sobre a amizade.
O primeiro contato com esta literatura foi feito com a trilogia produzida pelo
filósofo espanhol Francisco Ortega (2002), que desde a década de 1990 está no Brasil.
Em seguida encontrei o trabalho apresentado como tese de livre docência pelo professor
Edson Passetti (2003), que atua na área de Ciência Política; por fim, mas não menos
relevante, consegui acesso ao importante livro do filósofo Jacques Derrida (2003),
Políticas da Amizade.
Há, ainda, algumas pesquisas produzidas por historiadoras brasileiras. As cores
da amizade, de Marilda Ionta (2007), com uma análise das missivas trocadas entre
Mário de Andrade e três mulheres amigas; Mulheres, ditaduras e memórias: “Não
imagine que precise ser triste para ser militante”, de Susel Oliveira da Rosa (2009),
que na primeira parte narra a história de Nilce Cardoso e dá destaque às amizades como
um “tecido afetivo”; e A aventura de contar-se: feminismos, escrita de si e invenções da
subjetividade, de Margareth Rago (2013), que contribui sobremaneira para refletir sobre
a historicidade presente na constituição das subjetividades. Fora do contexto brasileiro
dois outros trabalhos contribuíram para alimentar a visão da amizade a partir de uma
abordagem não natural: A amizade no mundo clássico, de David Konstan (2005), e Da
amizade: uma história do exercício da amizade nos séculos XVIII e XIX, de Anne
Vincent-Buffault (1996).
Entendo, portanto, que essas contribuições, particularmente da filosofia,
ajudarão a sustentar a ideia de que a amizade não pode ser tomada apenas como um laço
de fraternidade ou solidariedade, pois como destacou Passetti, a fraternidade, desde a
época da Revolução Francesa, prezava por um efeito apaziguador (PASSETTI, 2003, p.
205), e esta explicação pode ser encontrada em Hannah Arendt (2008, p. 22) que
explica:

A fraternidade que a Revolução Francesa acrescentou à liberdade e à


igualdade, que sempre foram categorias da esfera política do homem – essa
fraternidade tem seu lugar natural entre os reprimidos e os perseguidos, os

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explorados e humilhados, que o século XVIII chamava de infelizes, les


malbeureux, e o século XIX de miseráveis, les miserábles.

Ortega percebe que Arendt entende a amizade como um fenômeno público, que tem
potencial político, enquanto que a fraternidade contribui para o apagamento das
diferenças e anulação da pluralidade (ORTEGA, 2009. p. 31).
É, portanto, esta ideia da amizade como uma potência do político que se almeja
explorar nesta pesquisa; entendendo que por mais que a linguagem do familiar - irmão,
mãe, afilhada -, componham as relações de amizade entre as trans, não é possível que
estas sejam identificadas apenas como sintoma de uma relação privada. Das 18
entrevistas realizadas entre 2015 e 2016, percebi uma recorrência das relações de
amizade vividas no privado como forma de se chegar à cena pública, dita de outra
maneira, seria como ter na amizade privada um impulso para sair do privado e assumir a
constituição de uma cena da cidade, recriando os espaços de gênero, e reiterando por
certo os espaços heterotópicos, como as ruas de prostituição. As amizades
possibilitariam uma experiência da solidão partilhada com outros iguais. A solidão
aparece aqui no sentido atribuído por Foucault e Sennett (1981) como sendo “a
sensação de ser um entre muitos, de ter uma vida interior que é mais que um reflexo da
vida dos outros”.
Eu sou uma pessoa sozinha
Muitas das entrevistadas se apresentaram enquanto “pessoas sozinhas”.
Atribuíam essa noção à ausência de vínculos familiares fortes, à falta de um parceiro
fixo ou mesmo o pouco contato diário com amigos e colegas. Inicialmente poder-se-ía
pensar que esta condição de estar só significa um afastamento do tecido social, mas não
é exatamente isso que ocorre. A solidão torna-se um espaço de existência e cria
possibilidades de encontros.
Esses “encontros”, de acordo com Rosa (2009, p. 97), podem ser de duas ordens:
os “que nos dão alegria são aqueles que aumentam a nossa potência – as “potências
aumentativas” –, enquanto os geradores de tristeza – as “servidões diminutivas” – a
diminuem”. Durante as entrevistas foram narradas histórias de encontros que geram
potências de vida, impulsos de criação, como no caso de Andréa e Anna Laurah; bem
como aqueles geradores de tristeza, lembrado por Luciana, mas não menos potentes em
sua capacidade de criação subjetiva.
Para explicar sua entrada no universo das drogas, que teria ocorrido em paralelo
à entrada no circuito da prostituição, Luciana não hesitou em se qualificar como “uma
drogada”, como se esta experiência qualificasse todo o seu ser. Isso, certamente, está em
sintonia com a marginalização em curso na nossa sociedade sobre as substâncias
consideradas como drogas ilícitas. Quando perguntei se ela poderia falar um pouco
sobre o assunto, a resposta veio em tom de pergunta e desabafo:
Falar o que? (risos), que eu sou uma drogada?! É, Rafael... você sabe que é
complicado, né?! Você sabe que a gente é muito carente, né?! Não sei se
você é assim. O nosso mundo é um mundo muito solitário. (...) É, o mundo
gay. É um mundo muito solitário, um mundo de poucas oportunidades; acho
que tem que ser como você mesmo, é meter a cara... estudar; como eu fui...
hoje eu poderia ter meu carro, poderia ter uma vida. Como eu te falei: eu já
ganhei dinheiro, eu já ganhei dinheiro mesmo... poderia ter meu carro. Já tive
uma moto; não vendi por causa das drogas, vendi por opção, que eu já tava
enjoado mesmo dela, entendeu?! Só que a gente se sente muito carente, muito
sozinho e, a nossa vida... a gente que vive de rua é uma vida muito louca. Eu,
pra mim ir pra rua, eu tenho que me drogar antes, porque eu não consigo ficar
naquela rua, sã. (Entrevista com Luciana Campos, em 16/11/2015).

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Luciana pratica em seu discurso sobre a solidão e a carência, uma invenção de si


como “uma drogada”, e cria um trajeto explicativo para justificar o uso de drogas a
partir da experiência da solidão, sendo esta provocada por sua condição trans. A falta
(de afeto, emprego, dinheiro dentre outras) é o que ajudaria na aproximação com as
drogas. Aquilo que ela qualifica como “mundo gay” é mais bem entendido, na verdade,
como o universo trans. As diferenças de aceitação da sociedade são nítidas. A própria
Luciana explica que há pouco mais de 10 anos, quando trabalhava na Prefeitura,
precisava criar estratégias para não ser percebida enquanto trans:
Que eu sempre trabalhei, graças a Deus. Eu sou professor... eu sou professor
de artesanato; trabalhei na Prefeitura como é... instrutor de Artes e Ofícios.
Eu de dia, eu sou um rapazinho; de dia boto um, um pano... um top que eu
tenho aqui pra amassar meu peito, jogo uma blusa... claro, quando eu
trabalhava... jogava uma blusa larga, de bofe e calça comprida de bofe, e
tenizinho. Tinha cabelão. Que eu tirei, agora tô com black e tal; usava
megahair na cintura, pegava fazia um rabo de cavalo e ia trabalhar, bonita. As
pessoas ficavam assim.. se era mulher, se era sapatão, se era homem. De dia
eu era assim, entendeu?! (Entrevista com Luciana Campos, em 16/11/2015).
Luciana usava uma estratégia para não ser percebida enquanto trans, pois fica
evidente que como “gay” ela seria aceita, mas como trans não. Isso é sintomático de
como na cidade há um entendimento dos lugares possíveis a serem ocupados pelas
trans, e este certamente não é o cargo de um professor ou professora. A falta de
estabilidade no emprego a obrigava a negociar com o sistema, pois:
Não era concursado! Se eu fosse concursado. O preconceito hoje existe... e
hoje é... se eu disser pra você... como eu falei pra você, é... se Deus
perguntar se eu quero ser “veado” novamente, eu vou querer ser “veado” e
vou querer ser travesti, mas hoje eu me arrependo um pouco, não pelo...
como que eu vou dizer?!, pelo termo de serviço.. que eu já fui pessoas pra
procurar serviço e as pessoas não me aceitaram, porque eu sou travesti,
porque eu tenho esse peito, entendeu?! Hoje ainda existe, entendeu?! Nós
estamos em 2015, né?! Como que se diz?! (...) Século 21, entendeu?! Acho
que isso já não era pra tá mais na cabeça das pessoas, concorda comigo?!
(Entrevista com Luciana Campos, em 16/11/2015).
Esse tipo de situação concorre para que Luciana tenha como possibilidade de
vida o espaço da prostituição, o que é visto por ela como algo muito ruim, e as drogas
aparecem como uma possibilidade de suportar aquilo que é insuportável, deplorável e
degradante, pois como ela mesma diz:
Eu não gosto de pista, não me sinto bem.. É... como que eu vou dizer?! Rua é
pra quem gosta. Tem as que gostam realmente. Aquilo ali, acho que pra
mim... vou até bater na boca 3 vezes, porque eu dependo daquilo dali hoje...
eu até tenho medo de falar... assim, não cuspir no prato que você comeu.
Entendeu?! , mas, que é... aquilo dali, que é pra mim deprimente é, sabe?!
Você pegar homem sujo, você pega homem gordo, você pega homem com o
pau todo cheio de sebo, sabe?! E tão te pagando, você acha que... eles... eles
acham que você é obrigada a fazer o que eles querem. Você leva garrafada,
você leva bolsada de coco, bolsa de mijo, ovo podre... (...) A única coisa que
eu sofri ali foi uma garrafada, aqui óh (mostra a marca que tem no rosto,
acima dos olhos). Tem ainda uma marquinha aqui... (aponta para a parte
superior dos olhos) (Luciana Campos, 16/11/2015).
São estas experiências que constituem o corpo e a subjetividade trans de Luciana, e a
fazem avaliar que mesmo com tudo isto, se tivesse que nascer de novo, gostaria de ser
“veado”, e ser travesti, mesmo reconhecendo as dificuldades que enfrenta por ter
“peito”.

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Por outro lado, Anna Laurah e Andréa acionam o dispositivo da solidão para dar
sentido a outros repertórios na constituição de si.
Eu sou uma pessoa sozinha! Pra minha vida, pra eu agir a minha vida, eu sou
uma pessoa sozinha! (Entrevista com Anna Laurah, em 08/10/2015)
A gente transexual, a gente somos muito sozinha. Os transexuais são muito
sozinhas! A gente é ligada muito uma pra outra; a gente somos muito afetiva,
samos muito mãe, gosto do lado mãe, de... a gente somos muito ligadas à
família, a gente somos muito ligada às... a gente passa a ficar muito próximo
a sobrinho, à irmãs, essas coisas... a gente somos muito assim: afetiva, dentro
de casa, a mor de mãe, essas coisas... a gente é muito ligada à casa. Pra isso
eu gosto muito do ciclo das transexuais, que é o meu mundo. (Entrevista com
Andréa Castro, em 29/02/2016).
Andréa aciona a questão da solidão para dar sentido a sua experiência, e ainda a
constitui como algo ligado à afetividade e à dimensão do que é ser mulher: o lado
maternal é um elemento que integra o repertório de construção de si no feminino.
Por outro lado, evidencia-se que essa experiência da solidão não é algo solitário,
pois justamente por partilhar esse sentimento com outras trans por meio da amizade, é
que ela se constitui. A rede formada pelas trans é o que dá suporte para a vida de
Andréa, e torna possível a sua existência e constitui um espaço em que se produz sua
subjetividade:
Ah, amizade pra mim em primeiro lugar é muito importante, e
principalmente por essas pessoas que tem a mesma mentalidade, a mesma
sintonia minha sabia?! Porque... hoje em dia é tão difícil amizade! Sempre
foi, mas não tanto como é agora, né?! Então, todas elas, ainda mais as antigas
da minha época, a gente criou uma certa amizade, que se tornou familiar; a
gente somos confidentes uma da outra, sabe?! É muito importante pra mim
isso. (Entrevista com Andréa, em 29/02/2016).
É interessante considerar que na atualidade essa rede é tecida também pelos
meios virtuais: como o Whatsapp e o Facebook. Se em tempos passados as escritas de si
eram feitas nos diários íntimos, hoje parecem assumir sua forma atualizada nas redes
sociais, particularmente no Facebook. É por meio dele que muitas trans se fazem vistas,
mantêm contato com amigas que foram para a Europa, ou constroem uma imagem de si
como a que foi lembrada por Joyce, ao comentar a visualização do perfil do Facebook
de uma concorrente do concurso Musa Gay de Campos, no qual ela foi jurada:
Já foi... no ano ... eu fui jurado esse ano. É ... eu entro no Face dela eu vejo...
elas quando vão dormir, que deixa alguma coisa no Face, eu vejo ela muito...
é... assim... as coisas que elas deixa, é muito assim, sofrimento. Eu acho
que... você acha que elas não queriam ter essa vida?! (Entrevista com Joyce,
em 07/10/2015).
Joyce acredita que muitas trans têm uma vida muito sofrida, e por isso algumas
têm atitudes ruins com ela. Ela observa que este sofrimento está explicitado, por
exemplo, nas postagens que elas fazem no Facebook. Assim, esta ferramenta de contato
virtual torna-se, também, um espaço para constituição da imagem de si vista pelos
outros.
O Facebook é uma ferramenta citada por quase todas as entrevistadas que são
alfabetizadas e possuem acesso à internet, em notebooks ou no celular. Ele funciona
como um espaço de interação, em que glórias e tristezas são partilhadas com “as
amigas”. Os corpos feitos com silicone, as idas aos bailes de Carnaval, pagodes e outras
festas, as roupas “belíssimas”, as viagens internacionais e os muitos lugares visitados,
enfim, é toda uma sorte de eventos que são partilhados no Facebook, aos quais as
amigas, próximas ou distantes, podem ter acesso.

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É uma forma, também, de apresentar a si mesma como alguém que está tendo
conquistas na vida. Percebi isso, particularmente, quando as travestis que estão em
Campos falam de suas amigas europeias, que vivem hoje na Itália, Portugal, Espanha,
Suíça.
Quando soube dessas informações, e tendo o nome dessas “amigas” que estão
“lá fora”, fui ao Facebook de minhas interlocutoras para buscar um contato com essas
pessoas, e percebi que as postagens eram totalmente liberadas, ou seja, mesmo aqueles
que não eram seus amigos na rede social, poderiam vê-las; percebi, ainda, uma forma de
apresentação de si pautada em situações de glamour e riqueza muitas, inclusive,
postaram fotos em pontos turísticos europeus.
Como destacou Renata, por meio do Facebook, ela tem contato e mantém uma
relação de intimidade com muitas amigas que estão na Europa, como com Regina que:
(...) postou uma foto agora no Facebook, hoje, ela tá na Alemanha. Tenho
duas amigonas minhas. Elas vieram aqui pra... pra comprar um apartamento,
todas duas. Uma veio, logo depois a outra veio. Veio... E elas são
amiguíssimas lá. E elas são maravilhosas. Ela veio pra comprar um
apartamento aqui e pra trocar a documentação, entendeu?! Trocar, botar o
nome feminino na identidade. (Renata Melila, 06/10/2015).
Fazendo um rastreamento exploratório nas páginas do Facebook das minhas
interlocutoras, percebi que a maior parte delas estava conectada entre si, e ainda tinham
muitas outras amigas trans. Essa rede virtual de amizade mostrou-se bastante intensa no
final de 2015, quando um episódio marcou a cidade, mas que logo foi esquecido.
Uma travesti de 27 anos foi agredida em uma casa de shows da cidade, após ser
expulsa do banheiro feminino. O episódio mobilizou muitos usuários amigos de
Yasmin, que fizeram diversos comentários denunciando a transfobia; foram dezenas de
comentários na página do Facebook de Yasmin, muitos dos quais apresentando
solidariedade, proposta de união para denunciar o ocorrido e de enfrentamento a este
tipo de preconceito.
Além de tornar possível uma circulação de afetos doces em meio à solidão, a
sensação de estar em contato com alguém que vive a mesma experiência é algo
apontado por Andréa como fundamental, pois só assim se consegue uma troca justa, um
entendimento considerado verdadeiro. A troca de confidências é um elemento
integrador. É interessante notar, ainda, como ela compara essa relação a algo familiar,
na medida em que o lugar da família é visto como esse de afetos fortes e verdadeiros.
Solidão que nada! Amizade e constituição da subjetividade
Na concepção contemporânea de amizade, entende-se que o amigo ou a amiga é
aquele e aquela com quem se pode falar com menos pudores, alguém pronto e disposto
a saber a verdade sobre si e partilhar desta verdade sob o manto do segredo. Quando
explica o peso da amizade juvenil entre os adolescentes franceses no século 19, a
historiadora Anne Vincent-Buffault (1996) percebe que as amizades potencializam a
formação de laços fortes de confiança e afeto, tecidos em um contexto em que os
amores e outros sentimentos eram rigidamente controlados.
Para ela: “O gosto do segredo, que os controles excessivos engendram, não
deixa também de ter um papel na invenção dos rituais da troca amistosa” (Ibidem, 1996,
p. 117). Assim, o amigo torna-se aquela que pode ter acesso ao eu mais íntimo e
“verdadeiro”, na medida em que neste tipo de relação os filtros sociais seriam menos
rigorosos.
Ao perceber este exercício da amizade entre os jovens franceses no século XIX,
Anne Vincent-Buffault indica um aspecto constitutivo das relações de amizade ainda

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reivindicado por aqueles que nomeiam e descrevem seus amigos: a intimidade. Trata-se
aqui de uma intimidade percebida como um eu verdadeiro, reservado, guardado para
poucos, aquele eu que não se expõe à avaliação cotidiana dos jogos sociais. Isto estaria
ligado a uma possibilidade de ser livre, ou seja, de não estar submetido à regras, leis e
normas impostas pela sociedade. Desta forma, este lugar idílico da amizade é descrito
com ternura e afeto, como se fosse possível criar um espaço confortável em contextos
de rigidez e controle.
Não há, no trabalho de Vincent-Buffault, uma análise mais detalhada das
especificidades das amizades entre pessoas não heterossexuais. Pelo que é analisado
pela autora, também nas amizades heterossexuais há códigos e normatizações que fazem
deste lugar da amizade uma zona de oxigenação do “eu verdadeiro”. No caso das
experiências das homossexualidades e trans esta zona parece ser ainda mais intensa e
produtiva.
Talvez esta realidade se dê porque, diferentemente da heterossexualidade que é
produzida sob códigos do que é socialmente aceitável, as homossexualidades e as
experiências trans são tecidas sob o signo do abjeto, marginal, inominável e, portanto,
não devem existir os eus a partir dessas experiências. É por isso que se há de supor que
as relações de amizade são para estes sujeitos uma possibilidade real da criação de si, de
invenção, efetivação e fortalecimento de projetos de subjetividades.
Carmem Dora Guimarães (2004) escreveu sobre o funcionamento de uma rede
de amigos mineiros que foi tecida na cidade do Rio de Janeiro durante a década de
1970. Ela percebeu que, para estes homens homossexuais de classe média, esta rede era
fundamental para a constituição de um si mais autêntico, na medida em que menos
heteronormativo. Ou seja, era somente quando estavam juntos, em uma cidade distante
do local de origem, que estes amigos criavam modos de vida autênticos. A autenticidade
corresponde, aqui, à ideia de que não precisavam performar uma identidade
heterossexual, como fazia na cidade natal.
Isso não me permitiria conferir à amizade uma exclusividade na constituição das
subjetividades homossexuais ou trans, mas certamente é um indício da potencialidade
desta forma de relação, ligada à possibilidade de experiências que darão contornos a
outras subjetividades, que não aquelas prescritas pelo padrão da heterossexualidade.
A ideia de produzir um eu autêntico, no exercício da produção de si, pode ser
percebida nas palavras de Wanessa Lóes (32 anos) ao me explicar como se deu, em sua
trajetória, a experiência de vestir roupas femininas. No início este era um ato solitário e
secreto:
(...) eu passava batom, fazia as coisas escondido. E já cheguei a botar roupa
escondido com ele vivo, em casa de amigos que moram em outros bairros,
entendeu?! Já cheguei a fazer com ele vivo; mas, após eu ter tido... ele me
aceitar como gay. Ele nunca me viu com roupa de mulher; mas, após ele me
aceitar como gay, assim... isso não ser mais... uma questão, eu já botava
roupa escondido. Então, foi mais... é... e foi pros 20 assim, eu já botei, assim,
a noite só. Entendeu?! (Entrevista com Wanessa Lóes, em 16 de outubro de
2015).
Wanessa, que perdera a mãe ainda criança, explica que precisava viver esta
feminilidade de forma secreta, pois até então morava com seu pai que, após expulsá-la
de casa, ao descobrir sua homossexualidade aos 15 anos, a aceitou de volta, mas com a
condição de que fosse apenas homossexual, trans não. Num movimento que envolve
respeito pela figura do pai, necessidade de ter um abrigo e um exercício da solidão, ela
resolve viver esta experiência de forma privada.
Esse âmbito do privado, entretanto, começa a se expandir quando conhece
Gustavo, que fora apresentado por outra amiga (lésbica) comum a ambos. Considero

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importante destacar a sexualidade dessa amiga, pois apesar das especificidades de cada
identidade (lésbica, gay, bissexual, travesti e transexual), pode-se considerar que todos
esses sujeitos partilham, em alguma medida, de um conjunto de experiências que
compõem aquilo que se chama de sexualidades dissidentes. Foi com Gustavo, após a
morte de seu pai, que Wanessa se “montou” para sair à rua pela primeira vez:
...foi com ele...é; que eu me montei foi pela primeira vez com ele lá, lá na
casa dele. (...) Lembro! Eu fiquei cheia de vergonha de sair na rua. Eu falei:
“Gustavo, a gente vai sair na rua...”, ele olhava pra ver se tinha algum
conhecido. É muito estranho... é muito. Eu ficava com medo não de
encontrar, é... e não de encontrar o meu pai, mas assim, eu ficava com
vergonha... nunca tinha feito aquilo, entendeu?! Muito, muito diferente...
(Entrevista com Wanessa Lóes, em 16 de outubro de 2015).
O objetivo do investimento na montagem era apenas um:
Pra andar... só pra passear mesmo (risos) ... e pra ter aquela sensação que eu
nunca tinha tido, de se mostrar ao público com roupa de mulher... passar
andando com roupa de mulher, entendeu?! (Entrevista com Wanessa Lóes,
em 16 de outubro de 2015).
Ou seja, mulher, sentir-se mulher não é algo que possa se bastar
individualmente, pelo contrário, é parte das técnicas de si, que como analisa Foucault, é
um exercício que envolve o outro, o coletivo.
Wanessa indica que este sentimento de si é preciso ser exposto ao social, ou seja,
é preciso ser mostrado. Esta sensação ela caracteriza, mais à frente, como uma sensação
de liberdade, pois seria o momento de sua vida em que poderia ser “ela mesma”. Essa
ideia de mostrar seu eu verdadeiro perpassa grande parte dos discursos das
entrevistadas; o que é algo bastante curioso, na medida em que este eu seria a expressão
de uma essência feminina já percebida desde a época da infância. E é neste ponto que se
produz uma diferença fundamental entre a travesti e a transexual. Andréa explica que as
transexuais:
São muito complicada, a gente somos taxadas até como doida. É! Eu fiz,
quando eu fiz o tratamento com psicanalista, ele falou: “São uma cabeça
muito...”, ele mesmo me falou: “São um universo muito complicado o de
vocês”. Porque o travesti, ele já se aceita, o travesti, ele se aceita por que? Ele
é um objeto de prazer, ele se transforma pra dar prazer ao corpo dele, e o
travesti, ele bota formas femininas pra atrair o homem, mas como pode atrair
uma mulher também. E a gente transexual, não é que a gente não goste de
mulher, a gente somos mulheres também. A cabeça da gente é de mulher. E é
diferente. Pra isso, eu não gosto de amizade, muita amizade com travesti. Eu
sou muito sozinha, eu gosto de amizade com mulher, com hetero, ou com
gays mesmo, ou... assim, ou os transexuais, a nossa conexão é diferente.
(Entrevista com Andréa, em 29 de fevereiro de 2016).
Andréa explica que a cabeça das transexuais é muito diferente das travestis, pois
para ela a transexual é uma mulher de verdade, uma pessoa que se sente como uma
mulher, mas que está aprisionada no casulo de um corpo masculino. Como ela explicou
no início da entrevista: “Essa que tá falando com você aqui é uma pessoa que tá falando
de dentro de um casulo, que tá aprisionada, sou eu. Porque o corpo, eu sempre quis
destruir o corpo masculino, eu tenho horror.” (Entrevista com Andréa, em 29 de
fevereiro de 2016).
Esse discurso reivindicatório de um comportamento feminino que seria
direcionado por uma “cabeça” feminina também aparece na história de Wanessa, ao
explicar sua trajetória de “gayzinho” até hoje, quando se identifica, se percebe, e se
construiu como uma mulher – transexual. Tanto para Wanessa quanto para Andréa essa

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distância da compreensão de si é o que justifica um afastamento das amizades delas com


as travestis, pois identificam que os interesses, as conversas e as formas de pensar
seriam bem diferenciadas. Apesar de todas elas, travestis e transexuais, terem um corpo
que possa socialmente ser qualificado como feminino, as transexuais teriam também
uma “cabeça” de mulher, enquanto as travestis seriam constituídas por uma “cabeça” de
homem. Assim, a ideia de uma eu verdadeiro que fica escondido por conta das amarras
sociais é apresentada pelas entrevistadas como algo que precisa ser vivido e, muitas
vezes, é em busca desta expressão do eu que elas se engajam nos muitos processos de
transformação de si e de criação de uma visibilidade para o social.
Fazendo um caminho a contrapelo do que foi verificado nas entrevistas, minha
proposta não é compreender como esse eu é vivido por elas, mas sim, buscar entender
como elas acionam discursos dos mais diversos campos do saber para criar esta ideia de
um eu anterior ao sujeito; com isso suspeito ser possível criar elementos que auxiliem
na compreensão desta histórica forma de criação de subjetividades classificadas,
enquadradas e assumidas como travestis, transexuais, transgêneros ou, simplesmente,
trans.
A fala de Wanessa ajuda a qualificar o entendimento desta ideia do eu que a
antecede; ao descrever a sensação que sentiu ao se vestir de mulher e andar em vias
públicas pela primeira vez:
(...) foi uma sensação de liberdade... Eu nunca tinha me sentindo tão eu,
assim. Eu nunca tinha ... eu acho que foi... Eu lembro, eu lembro até hoje...
Eu nunca vou... eu, eu nunca vou esquecer dele porque foi um divisor de
águas. Porque, até então, eu tinha feito isso dentro de quarto, escondido...
nunca tinha ido pra rua. Entendeu?! E a gente foi pra rua, passear, comum.
(Entrevista com Wanessa Lóes, em 16 de outubro de 2015).
A compreensão de que esta prática de si não é solitária, é corroborada pela
presença do amigo de Wanessa. Na trajetória ade Wanessa a figura do amigo foi
fundamental. Pelo que ela descreve, eles começaram juntos a arte do fazer-se, vestindo
roupas de mulher para dar pequenas saídas pelas ruas, durantes o período da noite. Ele,
no entanto, abandonou a “carreira” e hoje não mais se “monta; Wanessa manteve-se
firme no processo, e construiu, cada vez mais, uma identidade feminina.
A figura do amigo neste processo inicial é extremamente relevante, pois ele
funciona tanto como tecido afetivo, de que nos fala Foucault, quanto como espaço de
realização, na medida em que pode oferecer um espaço físico, em geral sua casa, para
receber a amiga. Na sequência apresentada por Wanessa, evidenciam-se, ainda, outros
elementos que figuram na construção da amizade, como a confiança, a cumplicidade e o
carinho. Estas são matérias primas das montagens de si trans, pois é um tipo de apoio
que confere coragem àquelas que ousam se lançar neste campo de batalhas cotidianas.
Outro aspecto relevante na trajetória de Wanessa, é que o aquele se tornou o
amigo que viabilizou seu sonho de estar no feminino na cena pública, foi apresentado
para ela por uma amiga lésbica.
Eu fiquei amiga dele por uma amiga minha que era lésbica que tava ficando
com uma amiga dele, e ele morava lá perto de casa também. E quando ele
tava com esse caso... é porque ele foi expulso da casa da mãe dele também; aí
ele foi, ele foi morar com esse caso dele, o Thierry. Eles ficaram um bom
tempo... acho que 8 anos, 9 anos. (Wanessa Lóes, 16 de outubro de 2015).
A amizade que se constitui a partir da formação de uma rede; e, neste caso, os pontos de
sustentam a rede, os nós que garantem a sua formação, parece ser a experiência de uma
sexualidade ou uma performance de gênero dissidente.

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Considerações finais
Concluir um texto, uma reflexão, uma pesquisa certamente não é tarefa das mais
fáceis. Talvez ainda menos confortável seja a ideia de finalizar um artigo que trata de
uma pesquisa ainda em construção. Por isso, essas considerações finais seguirão em
forma de questões que têm sido gestadas, amadurecidas e também abandonadas no
percurso da pesquisa.
O que pode a amizade neste contexto atual de normatividades de gênero e
sexualidade? De que maneira as técnicas de si, vividas coletivamente, contribuem para a
criação de outros modos de vida (um modo de vida trans?) em cidades, bairros ou casas
pautadas por uma normatividade de gênero fundada no binarismo?
Do público ao privado, as amizades trans recolocam a questão do político nas
amizades e reiteram sua dimensão privativa. É interessante perceber, entretanto, que
tipo de privado está em invenção nessas relações, e como este redimensiona a noção do
público, visto que o privado criado e vivido nas amizades trans está voltado para o
público, para uma apresentação de si na cidade, como uma forma de ter apoio e
coragem para enfrentar a sociedade e publicizar uma subjetividade qualificada,
nomeada e historicamente tratada como abjeta, menos humana e sem importância.
Referências
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TAVARES, Tatiane Cardoso. Saindo do armário: a microterritorialidade homossexual em Campos dos


Goytacazes/RJ. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v.1, n.3, p. 150-160,
novembro de 2017. ISSN 2526-4702.
Artigo
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

Saindo do armário: a microterritorialidade homossexual em Campos


dos Goytacazes/RJ

Coming out of the closet: homosexual microterritoriality in Campos dos Goytacazes / RJ

Tatiane Cardoso Tavares


Resumo: As microterritorialidades urbanas são aqueles locais que em um determinado momento ou
horário é apropriado por um determinado grupo social e em outros momentos ou períodos do dia
outros grupos sociais se apropriam desse mesmo espaço. Em sua prática, as microterritorializações são
baseadas da produção de sociabilidade que podemos identificar nitidamente nas microterritorializações
promovidas por homens homossexuais que se apropriam dos espaços da cidade muitas vezes a fim de
encontrar seus pares para relações afetivas e sexuais. Nesse contexto, pretende-se estudar as
microterritorializações dos homens homossexuais na cidade de Campos dos Goytacazes, identificando
de que maneira estes se apropriam do espaço e as diferentes formas de representação. A relevância da
pesquisa está em diagnosticar se as relações mediadas eletronicamente produzem e/ou reforçam essa
microterritorialidade gay na cidade de Campos dos Goytacazes. Deste modo, propomos nesta pesquisa
uma análise das microterritorialidades produzidas pelo aplicativo Grindr na cidade de Campos dos
Goytacazes, suas formas de apropriação. Palavras-chaves: microterritorialidade, Grindr,
homossexuais

Abstract: The urban microterritorialities are those places that at a certain moment or time are
appropriate by a particular social group and at other times or period of the day other social groups take
ownership of that same space. In their practice the microterritorializations are based on the production
of sociability that we can clearly identify in the microterritorialisations promoted by homosexual men
who appropriate the spaces of the city often in order to find their peers for affective and sexual
relations. In this context, we intend to study the microterritorializations of homosexual men in the city
of Campos dos Goytacazes, identifying how they appropriate the space and the different forms of
representation. The relevance of the research is to question whether electronically mediated relations
produce and/or reinforce this gay microterritoriality in the city of Campos dos Goytacazes. In this way,
we propose in this research an analysis of the microterritorialities produced by the Grindr application
in the city of Campos dos Goytacazes, its forms of appropriation. Keywords: microterritoriality,
Grindr, homosexuals

O movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (LGBT) teve seu


início em meados do século XX, juntamente com vários outros movimentos sociais que
surgiram como forma de contestar valores culturais, políticos e, em alguns casos
econômicos, contestando desse modo certas estruturas da sociedade ocidental.
Apesar de haver décadas de luta a favor dos direitos LGBTs, estes ainda sofrem
com o preconceito em muitos países ao redor do mundo, inclusive no Brasil. Apesar de
em alguns países já terem sido permitidos legalmente o casamento entre pessoas do
mesmo sexo, e direitos como comunhão de bens, pensão alimentícia, planos de saúde,
herança, em mais de 70 países é considerado crime ser cidadão LGBT, segundo dados
da ILGA.
No caso do Brasil, o Supremo Tribunal Federal - STF em 2011 reconheceu a
equiparação da união homossexual à heterossexual. Porém a decisão do STF não é
equivalente a uma Lei e na verdade necessitam entrar na justiça para garantirem o

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reconhecimento da Lei os seus direitos. Então em 2013, o Conselho Nacional de Justiça


- CNJ decidiu que os cartórios brasileiros fossem obrigados a celebrar casamento entre
os homossexuais e também não poderiam mais se recusar a converter união estável
homoafetiva em casamento. Na prática, mesmo após a resolução do CNJ, diversos
casais homoafetivos ainda têm dificuldades para conseguir celebrar sua união e
convertê-la em casamento, como no caso da cidade de Campos dos Goytacazes que é
conhecida por seu conservadorismo que se reflete em seus juízes que negam a
realização de casamentos homoafetivos71.
A discussão a respeito da homossexualidade ao longo dos últimos anos vem
adquirindo notoriedade nas pesquisas acadêmicas. Devido à luta dos homossexuais na
conquista pelos seus direitos, pelo reconhecimento de suas famílias, fez com que este
movimento crescesse ainda mais na busca da visibilidade dos LGBT‟s. A expansão da
internet representa uma nova ferramenta de combate ao preconceito, auxiliando a
divulgação das notícias relacionadas ao movimento e como forma de publicação das
conquistas alcançadas ou noticiar situações de preconceitos.
No presente artigo, utiliza-se como ferramenta de análise a internet, pois essa
possibilita maior comunicação entre os sujeitos, dessa forma provoca uma facilidade de
conectividade entre os participantes dessa interação. Construindo deste modo uma nova
dinâmica de relação entre as pessoas suscitando a afinidade dos sujeitos com o espaço
em que vivem. O espaço geográfico saiu do campo do real, constituindo um espaço
virtual. Através do meio virtual que podemos entender os novos tipos de
territorialidades.
A internet de acordo com estudos de Bernardes e Turra Neto (2013) é uma
ferramenta para expansão e criação de territórios devido à facilidade de divulgação que
a rede proporciona para interação entre os sujeitos. Para Bernardes e Turra Neto (2013)
a internet facilita a divulgação de informações, provocando a coexistência de diferentes
grupos sociais no mesmo espaço virtual.Contudo há perguntas que pretendemos
responder com esta pesquisa, em que medida, aplicativos de redes geosociais para
smartphones72 como o Grindr influenciam os gays para onde ir, e como através desse
aplicativo é criado o “microterritório gay”.
Buscamos descrever, entender e analisar as dinâmicas e as relações dos homens
homossexuais assim como seu modo de apropriação do espaço e a produção da
microterritorialidade desse grupo e suas diferentes formas de representação.
Selecionamos os homens homossexuais porque em pré-análise para essa pesquisa
identificamos que esse é o grupo dentro dos LGBT‟s em Campos dos Goytacazes que
mais se articulam na internet e promovem o encontro em determinadas áreas centrais da
cidade de Campos dos Goytacazes.
Nesse viés, buscamos uma análise do sujeito que se relaciona com o meio virtual
e de que forma este meio virtual se reflete na sociedade, imprimindo nela mudanças
sociais, comportamentais, de relacionamentos entre indivíduos, culturais e territoriais.

71
Campos dos Goytacazes parece não se preocupar com a decisão tomada em 2013 pelo CNJ e segue
tendo juízes que não realizam a cerimônia de casamento homoafetiva. Os cartórios da cidade não se
negam a celebrar o casamento entre homossexuais, porém os funcionários sempre alertam quanto ao
indeferimento constante da documentação por parte dos juízes, e ainda argumentam que esse
indeferimento está ligado a questões religiosas por parte dos juízes da cidade. Um dos cartórios do centro
da cidade de Campos dos Goytacazes na tentativa de ajudar os casais pede que os mesmos procurem a
Justiça itinerante no Fórum de Campos dos Goytacazes, alegando que somente o órgão consegue realizar
casamentos homoafetivos na cidade. Em 2016, foi celebrado o primeiro casamento homoafetivo público
em Campos dos Goytacazes através da Justiça Itinerante no Fórum da cidade. Este casamento foi
possibilitado porque um novo juiz tomou posse e não se recusou a realizar a cerimônia.
72
Telefones móveis da terceira geração tecnológica, conhecidos também como os celulares inteligentes.

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Objetivemos através dessas e outras questões entender qual a relação que se estabelece
do mundo virtual com o território a partir de aplicativos de rede geosocial 73.
Metodologia
Dentre as microterritorialidades urbanas existentes selecionamos aquelas
influenciadas por aplicativos de rede geosocial e que tem como objetivo o lazer de um
determinado grupo social para o desenvolvimento da metodologia de pesquisa que foi
aplicada na cidade de Campos dos Goytacazes.
Sendo assim, a partir de um questionamento-chave – como em que medida as
relações de interface produzem microterritorialidade – erguemos a hipótese que as
relações mediadas eletronicamente estabelecem novas formas de sociabilidade e
colocamos os seguintes pressupostos que nortearam as atividades desenvolvidas nesta
pesquisa, identificar os locais e lugares na cidade de Campos dos Goytacazes e o
desenvovimento da microterritorialidade gay; Como as relações mediadas
eletronicamente reforçam essa microterritorialidade; Além de analisar e interpretar os
sujeitos quanto a influência das relações mediadas eletronicamente como as relações
face a face na decisão de quais locais frequentarem.
Tomamos primeiramente como ferramenta para o recorte da área de pesquisa o
estudo de Tavares (2015), onde foi feito o mapeamento dos serviços de
telecomunicação ofertados na cidade de Campos dos Goytacazes. O estudo de Tavares
(2015, p. 24) consistiu em uma análise sobre:
[...] a infraestrutura da rede de telecomunicações que consiste no
mapeamento e entendimento da rede de telefonia móvel celular e da
rede de Internet, que possibilita a identificação não somente da oferta
como da qualidade dos serviços além de discernir as áreas na cidade
com maiores objetos técnicos dos sistemas de telecomunicações.
Partindo da compreensão e do mapeamento da rede de
telecomunicação é factível definir da área de estudo dentre as
centralidades do lazer noturno na cidade de Campos dos Goytacazes.
Entendemos a importância deste mapeamento porque se faz necessário que haja
nos locais pré-selecionados a existência de oferta de serviços de telecomunicação para
que pudessemos aferir a influência das redes no território.

73
Uma rede geossocial é um tipo de rede social que inclui funcionalidades relacionadas com a
georreferenciação, tais como a geocodificação ou a geoetiquetagem.

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Deste modo, definida a área de estudo efetiva-se a observação sistemática dos


locais em que se aplicará a pesquisa por meio das relações mediadas eletrônicamente.
Neste viés, utilizaremos uma rede geosocial, o aplicativo para smartphones Grindr, para
diagnosticarmos para onde as pessoas que utilizam essa ferramenta costumam se
encontrar na cidade e como de fato se da essa sociabilidade.
Para entendermos como funciona essa sociabilidade e como esta pode produzir
microterritórios, foram entrevistados dez homens homossexuais que utilizam as mídias
sociais e residem em Campos dos Goytacazes. Entretanto, num recorte específico,
selecionamos cinco usuários, porque entendemos que foram esses que mais
contribuíram para a presente pesquisa.
As entrevistas seguiram a metodologia estruturada aberta e ocorreram de forma
presencial no período de abril a julho de 2016. Cada entrevista teve uma variabilidade
de tempo de um sujeito para outro, ficando em uma média de vinte minutos.
Selecionamos os entrevistados em eventos LGBT‟s da cidade de Campos dos
Goytacazes, sejam em festas ou em encontros e seminários acerca da temática
homossexual.
Por fim, após esta breve descrição da metodologia de pesquisa desenvolvida
para a identificação, interpretação e entendimento da microterritorialidade gay e suas
respectivas sociabilidades virtuais e reais cometemos uma análise dos resultados
alcançados.
As redes geosociais e as microterritorialidades gay na cidade de Campos dos
Goytacazes/RJ
Grindr: sociabilidade e sexualidade gay no território
As novas formas de comunicação e interação através da internet faz com que as
pessoas estejam sempre conectadas a rede. E, que os smartphones têm importante papel
para a criação dessas novas microterritorialidades, pois é através da inserção desses
dispositivos móveis que houve modificações tecnológicas significativas e assim criaram
os mais diversos aplicativos de interação virtual.
Deste modo, Lemos (2010, p. 9) afirma que:
Com a internet móvel e locativa não se trata de investigar as relações
desmaterializadas do ciberespaço. Como tudo se passa em um
contexto local, concreto e material, temos de olhar como uma rede de
atores (redes, dispositivos, sujeitos, contexto) altera o processo
comunicacional no espaço urbano; como se tencionam comunicação e
espacialização.
Nesse viés percebemos que as relações dinâmicas dos internautas produzem
formas contemporâneas de sociabilidade e deste modo reconfiguram o espaço urbano e
abrolham novas formas de territorialização. Concordamos com Cetrulo (1999, apud
Souza, 2013, p. 103) quando afirma que a sociabilidade é:
O sentimento de estar se relacionando com outras pessoas e estar
tendo prazer com esse relacionamento. Deve ser um sentimento de
satisfação, de prazer, por estar integrado a um grupo com o objetivo
exclusivo de gozar a relação com outras pessoas.
De acordo com Simmel (1983) a sociabilidade traz a experiência da afetividade
entre as pessoas que se identificam com um determinado grupo e produz uma sensação
de bem estar e pertencimento ao grupo. Partindo desse pressuposto concordamos com
Costa e Bernardes (2013) que afirmam que milhares de pessoas buscam na internet

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lazer, parceiros, sexo e relacionamento. Podemos relacionar essa busca aos mais
diversos motivos como, por exemplo, medo da solidão, falta de tempo e o embaraço de
achar alguém. É notório que essas dificuldades são intensificadas quando falamos
acerca dos relacionamentos homoafetivos, por conta dos pensamentos de nossa
sociedade heteronormativa e discursos que tangem a religiosidade.
Pela existência dessas dificuldades dissertadas a cima, percebemos a diversidade
de aplicativos para smartphones de relacionamento e paquera destinado ao público
homossexual e bissexual do gênero masculino. Trata-se de redes geosociais que buscam
parceiros que estejam próximo geograficamente e que estejam à procura de
relacionamento e principalmente de sexo.
É sabido que não se trata de existir somente aplicativos com estes fins para
homossexuais, pelo contrário, existem os mais diversos aplicativos de redes geosociais
para o público heterossexual e cissexual. Contudo, percebemos que por medo de
homofobia, homossexuais buscam lugares específicos como bares mais privativos, e
isso não seriamdiferentes no espaço virtual. Por isso, diagnosticamos o Grindr como o
aplicativo de rede geosocial que mais tem adesão e popularidade entre os homossexuais.
O Grindr foi criado em 2009 pelo norte-americano Joel Simkhai. O criador
afirma que teve a ideia do aplicativo visto a necessidade de encontrar alguém
virtualmente rapidamente para um encontro presencial. Joel afirma que muitos
aplicativos e sites não levavam em conta a localização geográfica das pessoas e isso
impossibilitava o encontro presencial em curto prazo de tempo.
O aplicativo possui três versões, duas básicas que não requer assinatura e uma
versão premium necessitando desta forma de uma assinatura que custa por volta de US$
2,49. Com o Grindr o usuário cria um perfil que possui alguns detalhes pessoais como
nome, idade, altura, peso, classificação étnica, status de relacionamento do usuário, o
que ele busca no Grindr, a faixa etária que o mesmo busca no aplicativo e foto.
Desta forma, através desse perfil é possível que o usuário inicie uma busca de
homens disponíveis. Essa busca aparece em forma de uma grade de imagens com os
perfis dos homens disponíveis dos mais próximos aos mais distantes geograficamente
do usuário que iniciou a busca. Também há opções de bate-papo, de enviar fotos
exclusivamente para outro usuário e tornar um perfil “favorito”.

Fig. 1 - Interface do aplicativo Grindr


A diferença da versão do aplicativo gratuito para versão paga está basicamente
na quantidade de perfis que o aplicativo carrega de uma só vez após a busca do usuário,
além de não ter anúncios e propagandas. Em suma a potencialidade do aplicativo é a
possibilidade do encontro rápido através de redes de geolocalização. Através do recurso
de GPS (Global Positioning System), o Grindr tornou-se uma forma popular das pessoas
interagirem no mundo virtual e no mundo real.

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Sendo assim, podemos afirmar que o Grindr é uma importante ferramenta de


articulação das novas formas de sociabilidade existente. Mais especificamente quanto
ao público homossexual, o aplicativo é um potencializador da sociabilidade gay.
Podemos afirmar que o Grindr é utilizado muitas vezes para descobrir quem também é
gay que está perto do usuário.
Desta forma, ocorre uma significação e/ou ressignificação da sociabilidade, do
homem com o lugar, do homem em vivência social e com a tecnologia à medida que em
uma boate uma determinada pessoa habilite o aplicativo para saber quem naquele
ambiente é gay, e mais, quem está disponível. Assim, descobrindo um homem gay há
poucos metros depende somente dos usuários do Grindr o desenvolvimento ou não
desse encontro.
Nesse víeis, pré-selecionamos como um dos objetos desta pesquisa o aplicativo
Grindr, que promove o encontro face a face de seus usuários no espaço urbano. O
aplicativo busca aproximar homens homossexuais, seja reconhecendo-os em ambientes
fechados ou em outros locais diversificados, promovendo em muitos casos a produção
de uma microterritorialidade gay na cidade. Desta forma, foi possível analisar e
entender as microterritorialidades produzidas pelo aplicativo Grindr na cidade de
Campos dos Goytacazes e suas formas de apropriação.
A microterritorialidade Gay em Campos dos Goytacazes/RJ
Podemos afirmar que a sociedade campista é predominantemente
heteronormativa e por ser em sua maioria de valores tradicionais e conservadores
apresentam intolerância aos homossexuais o que pode ser notado ao analisarmos os
dados estatísticos quanto a casos de homofobia no município.
Deste modo, buscamos entender como os homens homossexuais da cidade de
Campos dos Goytacazes se articulam no espaço urbano. De que forma eles promovem
encontros e festividades. Como em meio a uma sociedade conservadora eles encontram
seus pares e o quanto as mídias sociais auxiliam essas buscas e mantém a discrição de
muitos perante a sociedade.
As entrevistas foram de suma importância para que conseguíssemos identificar
os locais da cidade de Campos dos Goytacazes que produzem microterritorialidade gay,
além de identificar quais aplicativos de rede geosocial mais utilizados pelos homens
homossexuais de Campos dos Goytacazes.
Todos os entrevistados sabiam previamente da realização da pesquisa e mesmo
que tenhamos selecionado os cinco entrevistados mais relevantes, não foram
descartados outros homens homossexuais em trabalho de campo. Na verdade, foram
observados diversos homens homossexuais e ainda ocorreram diversas conversas
informais em campo, porque entendemos que para perceber como essa
microterritorialidade é produzida se faz necessário o mergulho do pesquisador nas
dinâmicas desse grupo pela observação sistemática para indicar, entender e interpretar
as distintas relações existentes.
As microterritorialidades urbanas são aqueles locais que em um determinado
momento ou horário é apropriado por um determinado grupo social e em outros
momentos ou períodos do dia outros grupos sociais se apropriam desse mesmo espaço.
Em sua prática as microterritorializações são baseadas da produção de sociabilidade que
podemos identificar nitidamente nas microterritorializações promovidas por homens
homossexuais que se apropriam dos espaços da cidade muitas vezes a fim de encontrar
seus pares para relações afetivas e sexuais.
Costa (2007) afirma que a microterritorialidades urbanas são formas de
agregação humana que conformam as configurações espaciais contemporâneas, ou seja,

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os diversos grupos sociais existentes se apropriam e convivem no espaço urbano, e


através das diferentes práticas culturais e identitárias que os grupos sociais se
diferenciam entre si e produzem microterritorializações.
Podemos afirmar assim que os aplicativos de rede geosociais tem forte
influência em onde ir para os homens homossexuais de Campos dos Goytacazes, e que
através desses aplicativos houve uma maior concentração de homens homossexuais no
The Underground Pub, Deixa Fluir Bar e no Altos 539 Bar | Galeria produzindo assim a
microterritorialidade gay de Campos dos Goytacazes.
O The Underground é um pub com capacidade de público pequena de
aproximadamente 84 pessoas, localizado no bairro Parque Tamandaré, área nobre da
cidade de Campos dos Goytacazes. O pub não foi criado para o público homossexual,
inicialmente havia festas de bandas de rock in rollo que limitava o público as pessoas
mais simpatizantes ao gênero musical em questão.
Com o decorrer do tempo os donos do pub começaram a diversificar suas festas
e seus DJ‟s e com isso surgiram festas com gêneros musicais mais voltados para o pop e
músicas populares. Essa diversificação das festas atraiu um novo público para o pub, os
homossexuais, e fez com que o pub se tornasse um ponto de encontro dos gays de
Campos, dando assim um novo significado a este pub.
O pub funciona de terça a sábado e no decorrer da semana ocorrem diversas
festas e bandas no pub, mais especificamente as sextas-feiras e sábado as festas são
voltadas para as músicas pop atraindo assim o público homossexual.Dessa forma
percebemos a produção de uma microterritorialidade gay no The Underground pub.

Fig. 2 - The Underground Pub área interna Fig. 3 - The Underground Pub área externa
O Deixa Fluir bar é muito frequentado por universitários e conhecido por unir
diversas tribos em um só lugar. Diferentes grupos encontramos nesse bar incluindo
LGBT‟s mais especificamente os homens homossexuais. Quando abriu o bar o dono
não tinha intenção de ter um bar alternativo que agregasse as mais diferentes tribos, mas
alguns relatos narram que o bar foi ficando popular entre os universitários e jovens em
geral por conta dos preços mais acessíveis. O bar está localizado na Pelinca, bairro
nobre de Campos dos Goytacazes e famoso por concentrar a noite campista. Funciona
de terça-feira a sábado e alguns dias da semana têm atrações como DJs e música ao
vivo. Um bar de característica informal, o cliente vai até ao balcão para ser servido e em
sua maioria o público fica em pé na área externa do bar ou até mesmo na rua.

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Exatamente esse clima de informalidade que faz o Deixa Fluir atrair cada vez mais
frequentadores.
Ainda que o bar receba semanalmente um grande público LGBT não é muito
difícil de escutar relatos de homofobia entre os frequentadores do Deixa Fluir. Podemos
afirmar que por conta desses casos rotineiros de homofobia no bar Deixa Fluir e por se
tratar de um bar muito aberto não permitindo a privacidade de muitos que não querem
se expor ou daqueles que não são homossexuais assumidos que em sua grande maioria
os homens homossexuais preferem o encontro no The Underground pub.

Fig. 4 - Deixa Fluir Bar área interna Fig. 5 - Deixa Fluir Bar do lado de fora

O Altos 539 - Bar | Galeria está localizado no Centro de Campos dos Goytacazes
e funciona de quarta a sábado, tendo em sua programação festas alternativas diferentes
toda semana. Festas com DJ‟s da cena pop, eletrônica e populares, shows com bandas
alternativas e karaokê de músicas pop e populares o bar e galeria adquiriu espaço entre
os jovens gays da cidade.
O Altos 539 Bar | Galeria desde sua criação é voltado para um público mais
alternativo da cidade e promove eventos voltados diretamente para este público e em
poucos meses de funcionamento (o Bar e Galeria funciona desde maio de 2016) se
tornou extremamente atrativo aos grupos homossexuais de Campos dos Goytacazes.

Fig. 6 - Altos 539 - Bar | Galeria área externa Fig. 7 - Altos 539 - Bar | Galeria área interna

O The Underground Pub por si só apresenta características que atraem o público


homossexual como o já citado gênero musical e determinadas festas em alguns dias da
semana. O que percebemos é que com a inserção dos aplicativos de rede geosocial

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ocorre um reforço dessas microterritorializações. Assim como, o Altos 539 Bar | Galeria
que desde sua criação é voltado para um público mais alternativo da cidade e promove
eventos voltados diretamente para este público e em poucos meses de funcionamento (o
Bar e Galeria funciona desde maio de 2016) se tornou extremamente atrativo aos grupos
homossexuais de Campos dos Goytacazes.
A microterritorialização gay no The Underground Pub se dá pela rápida
sociabilidade existente entre os gays no pub em determinada festa, em dias específicos e
que se desfaz ao fim do evento. Concordamos desse modo com Costa (2010, p. 9) que
afirma que existem microterritórios onde relações coletivas humanas acontecem numa
dinâmica incrivelmente rápida no sentido da construção e desconstrução de espaços de
convivência e a da transitoriedade dos indivíduos que participam de tais agregações.
Já no Altos 539 Bar | Galeria a microterritorialização gay acontece
semanalmente todos os dias em que o local está em funcionamento. Evidente que em
determinados dias da semana há um maior fluxo de gays no local, como por exemplo, as
quintas-feiras, mas de uma forma geral o bar e galeria atrai de quarta-feira a sábado um
público gay considerável e que são motivados a frequentar o bar e galeria para que seja
possível o encontro com seus pares no lazer noturno de Campos dos Goytacazes.
Podemos ainda incluir como um microterritório gay de Campos dos Goytacazes
o bar Deixa Fluir que possui uma grande concentração de homens homossexuais
semanalmente e que mesmo tendo diversos casos de homofobia no local esses homens
homossexuais não deixam de frequentá-lo, e isso vai ao encontro à própria definição de
Costa (2010) de microterritório que argumenta ser uma área de interação ou conflito.
É o microterritório urbano (como uma área que delimita a interação
e/ou o conflito entre práticas racionais e afetivas e dá forma às práticas
sociais singulares que se diferenciam de outras por fronteiras
flutuantes e instáveis) que efetiva a própria agregação social e suas
características singulares. Por se estabelecer por processos de
interação entre movimentos globais e experiências locais e pela
dialética entre empirismo e incoerência e lógica formal coerente, cada
microterritório urbano tende a ser uma totalidade singular em relação
com outras totalidades que podem ser entendidas em diversas
condições escalares. (COSTA, p. 9, 2010)
Desse modo podemos afirmar que o The Underground Pub, o Deixa Fluir Bar e
o Altos 539 Bar | Galeria são microterritórios de homens homossexuais na cidade de
Campos dos Goytacazes e o surgimento desses microterritórios fortalecem as interações
desse grupo no espaço. Costa (p. 11, 2010) afirma que:
Microterritórios produzidos [...] fortalecem a própria produção,
manutenção e condicionam a agregação humana ou sociabilidade.
Sendo assim, a sociabilidade produzida por esse grupo virtualmente é
refletida no espaço tornando as mídias sociais ferramentas de
articulação desse grupo pelo espaço urbano.
Percebemos desse modo que a internet tem importante papel para articulação,
crescimento e territorialidade desse grupo social na cidade de Campos dos Goytacazes.
As influências das mídias sociais aos sujeitos desse grupo social são evidentes e geram
e/ou reforçam as microterritorializações pela cidade. Podemos afirmar que os
microterritórios gays identificados e analisados nessa pesquisa estão diretamente
envolvidos ao lazer noturno em área central da cidade de Campos dos Goytacazes e que
existência de outros pelo município de Campos dos Goytacazes não foram abordados
nesse estudo, que se limitou ao recorte à área central da cidade.

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Considerações Finais
Campos dos Goytacazes, como uma cidade média do interior do Estado do Rio
de Janeiro, possui papel importante na economia da região norte fluminense. Com a
amplitude do setor petroquímico e de universidades, a cidade elevou seu setor de
serviços principalmente àqueles ligados ao lazer noturno. O espaço urbano de Campos
dos Goytacazes vem sofrendo alterações nos últimos anos e isso implicou na produção
de estabelecimentos como bares, restaurantes e casas noturnas. Esse processo de
modificação veio acompanhado de uma maior diversificação cultural, pelas quais são
motivadas novas territorialidades por conta do surgimento/crescimento de algumas
identidades.
Essa pesquisa teve como recorte as especificidades da apropriação do espaço
urbano de um grupo social específico os homens homossexuais. Ainda que muitas vezes
esse grupo permaneça camuflado em nossa sociedade heteronormativa, existem espaços
na cidade onde se manifesta a sociabilidade desse grupo. Percebemos que na cidade de
Campos dos Goytacazes podem existir diversos espaços de convivência dos homens
homossexuais, contudo nos prostramos na presente pesquisa aos locais de lazer noturno
em área central da cidade que seja frequentado pelos homens homossexuais. Entre eles,
o The Underground Pub, o Deixa Fluir bar e o Altos 539 Bar | Galeria se destacaram
como microterritorializações de homens homossexuais, que produzem uma espécie de
espaço de reconhecimento das diversidades sexuais existentes.
O The Underground Pub, o Deixa Fluir Bar e o Altos 539 Bar | Galeria são
frequentados por sujeitos heterossexuais e outros grupos existentes de LGBT‟s, porém
esses locais possuem forte visibilidade quanto a conquista do espaço por homens
homossexuais que adotam significado a esses estabelecimentos de lazer noturno ao seu
grupo e agregam a esses locais características de espaço de diversidades sexuais e
público plural.
As microterritorializações como as do The Underground Pub, Deixa Fluir Bar e
Altos 539 Bar | Galeria são eruptivas pelas novas formas de comunicação
contemporânea onde os sujeitos se articulam virtualmente a fim de identificar e
promover possíveis sociabilidades com seus pares. Dessa forma, avolumam a
sociabilidade contrapondo a segregação que esses sujeitos sofrem na sociedade por
conta de sua homossexualidade.
Essas microterritorialidades são geradas e/ou reforçadas devido às relações de
interface, isto é, as relações medidas eletronicamente por mídias sociais como as redes
sociais e redes geosociais. Através das mídias sociais ocorre o reconhecimento de locais
para possíveis encontros, como as festas que ocorrem as sextas-feiras e sábados no The
Underground Pub.
Através de aplicativos de rede geosocial como o Grindr, os sujeitos encontram
seus pares e reconhecem os locais na cidade onde podem promover o encontro face a
face. Neste sentido, as microterritorializações, como as do The Underground Pub, Deixa
Fluir Bar e Altos 539 Bar | Galeria são motivadas pela produção de sociabilidade virtual
que as relações de interface geram.
Referências
BERNARDES, A. H. Desenvolvimento de uma metodologia de pesquisa: Centralidade
urbana de lazer noturno e relações de interface. Relatório de atividades – auxílio à
pesquisa 1 – APQ 1. FAPERJ, 2014.

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GOLDFARB, Maria Patrícia Lopes & LIMA, Vanessa Karla Mota de S. Peregrinação Islâmica (hajj):
Diálogos antropológicos sobre práticas “nativas” para compreensão da comunidade religiosa
muçulmana. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v.1, n.3, p. 162-174,
novembro de 2017. ISSN 2526-4702.
Artigo
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

Peregrinação Islâmica (hajj): Diálogos antropológicos sobre práticas


“nativas” para compreensão da comunidade religiosa muçulmana

Islamic Pilgrimage (hajj): Anthropological dialogues on "natives" practices for understanding of


religious community muslim

Maria Patrícia Lopes Goldfarb


Vanessa Karla Mota de S. Lima

Resumo: O termo Islã (‫اإل سال م‬, transl. al-Islā) vem do árabe Islām, que deriva da quarta
forma verbal da raiz slm, aslama, e significa "submissão” (a Deus). A teologia islâmica se
divide em duas categorias de pensamento: crenças (o Iman) e práticas (o Din ou Pilares da
Fé), importantes para o que constitui o ser muçulmano. A peregrinação anual dos
muçulmanos à Meca (Hajj) é um dos pilares da fé islâmica. Esse trabalho busca discutir de
que modo a Hajj cria significados e conduz os indivíduos à noção de identidade comunal,
que se expressa em discursos e práticas cotidianas, empreendida por muçulmanos de
comunidades sunitas em João Pessoa-PB e Caruaru-PE. Observamos na pesquisa que o
ritual de peregrinação islâmica é um mecanismo de reafirmação da Ummah, para além das
diversas identidades culturais locais. Os laços que unem os peregrinos são distintos da
consangüinidade ou do território, mas se firmam através de significados presentes no
discurso da unidade moral, ideológica, política e religiosa, entre os muçulmanos de todas as
partes do mundo. Palavras-chave: peregrinação, identidade muçulmana, comunidade
imaginada
Abstract: The term Islam (. ‫اإل سال م‬, transl al-Islam) comes from Islaam Arabic, which
derives the fourth verbal form of the root slm, aslama, and means "submission" (God). The
Islamic theology is divided into two categories of thought, belief (Iman) and practices (Din
or Pillars of Faith), important for what constitutes being Muslim. The annual pilgrimage of
Muslims to Mecca (Hajj) is one of the pillars of the Islamic faith. This paper discusses how
the Hajj creates meanings and leads individuals to the notion of communal identity, which
is expressed in speeches and daily practices, undertaken by Muslims of the Sunni
community in João Pessoa-PB and Caruaru-PE. We noted in the research that the Islamic
pilgrimage ritual is a reaffirmation mechanism of the ummah, in addition to various local
cultural identities. The ties that bind the pilgrims are distinct from consanguinity or
territory, but stay themselves through meanings present in the discourse of moral unity,
ideological, political, religious and Muslims all over the world. Keywords: pilgrimage,
muslim identity, imagined community

As peregrinações estão ligadas a deslocamentos territoriais de pessoas que


buscam os chamados “lugares santos” ou de devoção, práticas historicamente ligadas a
“religiões universais”, como é o caso do catolicismo ou islamismo (TURNER, 2008).
As peregrinações de cunho religioso são um fenômeno mundial, que abarcam pessoas
de todas as partes do mundo, impulsionando cada vez mais o turismo, o consumo e as
trocas entre culturas distintas.

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Objetivamos discutir de que modo a Hajj (peregrinação à Meca), que liga-se a


práticas devocionais, possibilita e amplia significados que conduz a noção de
identidades comunais entre muçulmanos islâmicos. Para isso relacionamos Hajj à
existência de uma comunidade transnacional muçulmana chamada Ummah. Neste
sentido, entendemos esta peregrinação como fundamental para “criação e organização
de identidades e comunidades religiosas supralocais” (PINTO, 2006, p. 167).
Tomamos como modelo empírico de análise comunidades islâmicas Sunitas74,
que vivem nos Estados da Paraíba e Pernambuco, região nordeste do Brasil. O
Islamismo hoje é praticado por cerca de 1,57 bilhões de muçulmanos, ou seja, quase
25% da população mundial, localizados em sua maioria na Ásia, Oriente Médio e
África. Ao contrário do que se pensa a maioria dos muçulmanos não é árabe (RIBEIRO,
2012). Segundo dados do jornal Folha de São Paulo (2009), apesar de ser uma religião
em crescente expansão, o Islamismo ainda é minoria na Europa e Américas, como é o
caso do Brasil.
No documentário da emissora de rádio e televisão inglesa BBC, “A História das
Religiões – Islamismo”75, o Islã é definido não apenas como um sistema de crenças, ao
qual o fiel se submete, mas, como uma postura da vida. O Islã, portanto, mais do que
um termo linguístico, engloba uma multiplicidade de sentidos e transforma-se a partir
dos significados que lhe são atribuídos pelos muçulmanos.
De acordo com a teologia, a religião islâmica é “eterna”, ou seja, é a verdadeira
religião, dada por Deus aos homens desde os primórdios. O Islã seria, portanto, a
religião “natural” da humanidade. E entre os pilares da crença islâmica está à
peregrinação a Meca, sobre a qual reside esta análise, que representa demonstração
máxima de profissão de fé; que se destina a todo aquele que tiver condições de realizar
tal empreendimento.
Para a realização da pesquisa76, optamos pelo chamado método etnográfico, com
ênfase na “observação participante” e privilegiando a “técnica da análise do discurso”.
(DURHAM, 2004, p. 25- 26). É necessário frisar que entendemos a etnografia como
uma experiência física e subjetiva de completa imersão no universo estudado, quer seja
teoricamente analisado ou empiricamente observado (MAGNANI , 2002).
Este trabalho faz parte de uma pesquisa vem se desenvolvendo desde o ano de
2012 junto ao Grupo de Estudos Culturais (GEC) do CNPq ,efetivada nas cidades de
João Pessoa (Litoral paraibano), Caruaru e Canhotinho (Agreste de Pernambuco). Em
João Pessoa, são dois os espaços de deslocamento para realização da pesquisa: a
Academia Mesquita Brothers, localizada no bairro do Bessa, onde se reúne um grupo de
muçulmanos pessoenses sob a orientação de um dos líderes islâmico na cidade77: o
Muhammed Al-Mesquita, para estudos, palestras de orientação religiosa, debates e
orações; e na Mesquita e Centro Islâmico Pessoense localizados no Bairro dos Estados e

74
Sunitas correspondem a uma denominação de seguidores do Islamismo, conhecidos como “Povo do
Suna”, pelo fato de afirmarem seguir o “Suna”, ou “Caminho Percorrido” (nome dado às palavras e atos
do profeta Maomé e seus primeiros seguidores). As divisões islâmicas surgiram após a morte de Maomé,
em consequência da disputa entre seus seguidores pela liderança da comunidade, pelo direito à sucessão
do Profeta, surgiram duas divisões majoritárias os “sunitas” e os “xiitas”. Os sunitas acreditam que
Maomé não deixou herdeiros legítimos e que seu sucessor deveria ser eleito com uma votação entre as
pessoas da comunidade islâmica. A maioria dos muçulmanos é sunita no Brasil e no mundo (LIMA,
2012).
75
The Islamic Word. Documentário. 2005. Duração: 54min. Reino Unido, BBC.
76
A pesquisa teve inicio durante a graduação em Ciências Sociais na UFPB, e segue em curso no
Mestrado em Antropologia na mesma instituição.
77
De acordo com Montenegro (2002), as instituições que incorporam os muçulmanos são legalmente
chamadas de Associações beneficentes, estando as mais antigas localizadas em São Paulo.

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dirigido pelo seu presidente, o Iman78 marroquino Mustafá Rafai. É lá que se


concentram o maior grupo de muçulmanos pessoenses e estrangeiros (são diversas as
nacionalidades desses muçulmanos: países da África, Marrocos, Jordânia e Líbano) com
o propósito de participarem dos estudos (nas sextas-feiras), das orações diárias e de
encontros islâmicos. Já os visitantes e revertidos brasileiros, isto é, os novos adeptos do
islamismo, que passam a pregar uma “obediência religiosa”, estudam regularmente a
língua árabe aos domingos. De acordo com dados fornecidos pelos frequentadores,
cerca de quarenta e cinco pessoas compõem a comunidade muçulmana na capital
paraibana.

Figuras 1 e 2: Mesquita e Centro Islâmico de João Pessoa; Jummah.


Fonte: Trabalho de Campo, julho de 2015.
No agreste de Pernambuco o Centro Cultural Islâmico, em Caruaru, é uma filial
do Centro Cultural Islâmico em São Paulo, liderado pelo Sher Wafi Farah, que após
visitar os muçulmanos da região e comprovar as dificuldades dos fieis para se
locomoverem até Recife79, decidiu apoiar à fundação da filial na cidade.
A liderança do Centro Cultural Islâmico em Caruaru está nas mãos do estudioso
Hosnir Badawi, que segundo relata, procura “passar a mensagem da religião” e o faz
ministrando palestras nas escolas estaduais, particulares e universidades sobre a relação
entre religião islâmica e educação, além de debates sobre a revolta escravocrata
muçulmana dos malês80 e seus desdobramentos históricos e culturais no Brasil. Segundo
os frequentadores, cerca de dez pessoas compõe o Centro Cultural Islâmico em Caruaru.
Na visita que fizemos em junho de 2015, mês do Ramadã. É necessário destacar
que o jejum do Ramadã acontece sempre no nono mês do calendário lunar islâmico (por
isso a cada ano as datas diferem no calendário gregoriano); onde os muçulmanos são
proibidos (desde o nascer até o pôr-do-sol) de comer, beber e ter relações sexuais. É
preciso manter a pureza ritual após a alvorada, não permite atribuir atos falsos a Deus e
aos profetas, brigar ou mentir. O Ramadã tem duração de vinte oito a trinta dias.
Em 2015 o jejum do Ramadã aconteceu entre os dias 18 de junho a 17 de julho,
e estavam presentes na reunião da Jum´a81 o líder, que conduziu a oração e pronunciou
o sermão, três mulheres muçulmanas e três crianças, membros de famílias revertidas ao
islamismo. Ainda fizemos incursões à cidade de Canhotinho, cerca de 130 quilômetros
de Caruaru-PE.

78
Refere-se à pessoa que coordena as orações, sendo sempre uma figura notável ou autoridade religiosa.
79
O Centro Islâmico de Recife foi fundado em 1989 e reinaugurado em 1997, está localizado na Rua da
Glória, nº 353, Boa Vista, e é liderado pelo sheik egípcio Mabrouk Al Saway Said.
80
Refere-se a uma revolta ocorrida na Bahia, século XIX, liderada por negros muçulmanos chamados de
Malês. Estes tinham um importante diferencial em relação a outros escravos e negros africanos: sabiam
ler e escrever (LIMA, 2012, p. 26).
81
Oração congregacional das sextas-feiras.

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Figuras 3 e 4: Centro Cultural Islâmico em Caruaru e Momento de orações.


Fonte: trabalho de campo, julho de 2015
Além da observação participante - que supõe um processo de interação entre
pesquisador e grupo observado - com conversas informais e vivencia prolongada em
determinados rituais marcantes para o calendário muçulmano, foram feitas entrevistas
abertas com pessoas nas diferentes cidades; registros fotográficos dos momentos de
orações, festas ou do cotidiano das pessoas, bem como iniciamos a confecção de um
vídeo etnográfico sobre a temática82.
Notas sobre o islã
O termo Islã (‫اإلسالم‬, transl. al-Islā) provem do árabe Islām, que por sua vez
deriva da quarta forma verbal da raiz slm, aslama, e significa “submissão à vontade de
Deus” (MONTENEGRO, 2000, p. 19). De acordo com Barbosa-Ferreira (2007, p.19),
o Islã liga-se a ideia de “obediência”, isto é, entrega “completa a Deus”. Entre os fieis
observamos a proeminência do conceito de “verdade” para definir a religião islâmica
(ELIADE, 2012, p. 17).
A religião é tomada nesse artigo a partir dos ensinamentos de Durkheim, que a
define como um processo dual entre sagrado (ritos religiosos, extraordinário,
experiências do crente com o sobrenatural) e profano (a vida pública diária, o
cotidiano); categorizada como produto da sociedade e seus processos coletivos. Assim,
as religiões organizam a vida, ideias e práticas a partir das crenças religiosas; cujo
“objetivo é exprimir o mundo” (DURKHEIM, 1989, p. 211). Baseamo-nos também o
pensamento do antropólogo Clifford Geertz, que define a religião como:
(...) um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas,
penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens
através da formulação de conceitos de uma ordem de existência geral
e vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que as
disposições e motivações parecem singularmente realistas (GEERTZ,
2011, p. 66).
Desse modo, nos mostra que o sagrado contém, em si mesmo, um sentido de
obrigação, não apenas encorajando a devoção como a exigindo; induzindo a aceitação
intelectual e reforçando o compromisso emocional (GEERTZ, 2011, p. 93).
Não há, portanto, como separar religião e „cultura‟, pois para os “crentes”, viver
a religião é se inserir num grupo social de pertencimento. Como nos mostra Kemp, a
lógica religiosa possui centralidade e faz com que os indivíduos concebam sua
participação no grupo social como algo regido por mecanismos coletivistas (KEMP,
apud DAMASCENO, 2010, p. 72).
No caso da religião islâmica, é a aceitação da Ummah como uma comunidade
universal, para além das fronteiras étnicas ou geográficas, que define essa identidade
comunal, embora não homogênea. Para um muçulmano, o vínculo fundamental não é a
82
O filme intitulado “A Casa da Ummah- Caminhos do Islã no Nordeste do Brasil”, esta sendo realizado
numa parceria entre o Grupo de Estudos Culturais (GEC) e o Laboratório Arandu, da UFPB, com
previsão de veiculação para 2016.

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Watan (terra natal), mas sim a Ummah, ou comunidade de fiéis, em que todos são iguais
em submissão perante Allah (LIMA, 2012, p. 44). A construção da identidade coletiva
se dá a partir da identificação com as normas oriundas da lei de Deus, interpretadas por
uma autoridade definida que atua como intermediária entre Deus e a humanidade.
(CASTELLS, 2010).
Essa comunidade de fé se propõe universal, a despeito de todas as diferenças
culturais, econômicas ou sociais dos seus membros, embora não sem conflitos, que,
seguindo Weber (1994), é formada por relações sociais “comunitárias”, que repousa no
sentimento subjetivo dos participantes a uma mesma coletividade.Por isso, para
compreensão de comunidades muçulmanas essa “comunidade de fé” é compreendida a
partir da definição alcorânica de Ummah. Esse seria o significado que, segundo
estudiosos muçulmanos, mais se aproximaria do termo “nação” no Islã.
O sentido de “nação” é atribuído a partir de um tempo “eterno”, primevo,
fundado na concepção do Tawhid ou unicidade de Deus, onde comunidades
muçulmanas podem se estabelecer independentes de um Estado, a partir desta definição
abstrata de Ummah.
Ummah: notas sobre uma comunidade imaginada islâmica
Um árabe, nem um não árabe tem qualquer superioridade sobre um árabe; o
branco não tem superioridade sobre o negro, nem o negro é superior ao
branco; ninguém é superior, exceto pela piedade e boas ações. Aprendam que
todo muçulmano é irmão de todo muçulmano e que os muçulmanos constituem
uma irmandade. (Muhammad, discurso de despedida)83.
A teologia islâmica se divide em duas categorias de pensamento principais:
crenças (o Iman) e práticas (o Din), ambas fundantes do que constitui o ser
muçulmano. Nos pilares e práticas da fé, que confere a religião o status e um modo de
vida, encontramos, por exemplo, a Jihad (guerra santa), o Alcorão, o Ramadã, o Ijmá
(questões morais, religiosas ou jurídicas contempladas no Corão), a Sharia (código de
leis do islamismo) e a Hajj (peregrinação à Meca).Essas crenças e práticas outorgam aos
fiéis à convicção de serem todos os muçulmanos, pertencentes a uma mesma
irmandade: a “Ummah”, sendo dever de cada um promover a união da Dal-Islam (Casa
do Islã). Portanto, trata-se de um projeto que envolve aspectos confessionais, sociais,
econômicos e políticos.
No estabelecimento da nova religião, Muhammad anunciava à
Ummah à vontade de Deus sendo, portanto, uma forma teocrática de
governo porque Deus dirigia a Ummah. A Ummah, em Medina se
consolida; esta era a comunidade de crentes fiéis a Deus ligados não
mais pelo sangue, mas sim pela fé. O indivíduo não queria mais se
submeter às leis e costumes tribais administrados pelos chefes das
tribos. Em outras palavras, sua lealdade suprema não pertencia mais à
tribo, mas à nova identidade islâmica. (AL-AHSAN, 1992, p. 19.)
A Ummah está diretamente relacionada com a experiência da partilha
comunitária do ser muçulmano (BARBOSA-FERREIRA, 2010). É importante destacar
que Ummah se opõe a ideia de “unidade árabe” ou de qualquer único grupo étnico, ante
uma variedade de “comunidades de origem”. Portanto, a noção de Ummah foi
fundamental para o fortalecimento do islã e o alargamento de suas fronteiras, onde o
mundo é o seu limite, onde quer que exista uma “comunidade de crentes”
(MONTENEGRO, 2002, p. 71).

83
Disponível em: http://www.islamreligion.com/pt/articles/523/.

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Tomamos a ideia de Benedict Anderson (2008, 1ª edição de 1983), de


comunidade imaginada para pensarmos a Ummah. Este autor discute questões
relacionadas ao nacionalismo (sua análise histórica) e como a ideia de unificação
territorial fez ressurgir politicamente o que denomina de “comunidades imaginadas”
(2008, p.32), elaboradas a partir do advento do capitalismo, da imprensa e de narrativas
históricas; cuja realidade se dá por meio de esforços para uma construção identitária
comum aos povos.
Nesta comunidade as relações de solidariedade “horizontais” tendem a agregar
os sujeitos, fundadas em laços flexíveis, diversificados e não restritos a fronteiras
geográficas (ANDERSON, 2008, p. 33-34). Para o autor, essa concepção já era
encontrada em comunas religiosas, inclusive citando o modelo de Ummah islâmica,
apontando para a importância das peregrinações.
Mas a imaginação que adjetiva a essas comunidades não pressupõe falseamento,
pois fundamenta-se nos discursos, nas crenças e nas narrativas que, neste caso, auxiliam
a institucionalização da “comunidade islâmica”. Como nos mostra Vieira (2011, p.
195), para o muçulmano, a nacionalidade é uma ficção forjada pela tradição europeia,
não sendo mais importante que a “cola” que une os muçulmanos: a comunhão com
Allah (Tawhid): “[...] no Islã, não existe distinção entre muçulmanos em função da
nacionalidade, a comunidade e seus agregados (baleghs e dhimmis) estão unidos,
universalmente (Tawhid), em um único povo de Deus” (VIEIRA, 2011, p. 202).
A Ummah islâmica, portanto, tem especificidades84, cujos sinais diacríticos
como a língua e escrita sagradas (no caso árabe), vestes, narrativas históricas e rituais,
dentre outros, conferem ao/a fiel uma nova identidade religiosa. O discurso da unicidade
entre os fieis é o que conectaria todos entre si e em torno dessa comunidade de
pertencimento, construída e configurada por processos econômicos, históricos e
simbólicos, entre diferentes grupos muçulmanos (WEBER, 1994).
Para o fiel muçulmano a Ummah, no sentido alcorânico de comunidade, adquire
sentidos no partilhar da memória coletiva, dos sinais diacríticos, das querelas políticas85
e nas celebrações do calendário muçulmano, seja no mesmo tempo ritual ou no espaço
da sacralidade, unidos pela performance ritual, pelos sentidos corporais e/ou pelo
sentimento da fé86.
É preciso ainda destacar que o projeto de Umaah dialoga com as comunidades
religiosas locais, formadas por membros que seguem determinados interesses
ideológicos, histórias ou estilo de vida, o que demarca diferentes políticas de conversões
de fieis ou a vinculação a determinados países e seus representantes religiosos (como
Egito, Dubai, etc.).

84
É notório, portanto, que o conceito de comunidade religiosa não é uma particularidade da fé islâmica,
tendo em vista que outras religiões monoteístas, como o cristianismo e o judaísmo, têm essa mesma
ênfase na comunidade de “irmãos” que se “encontram” no ideal da fé que professam e se reconhecem
(DUMONT, 1985).
85
É por meio dessa identificação transnacional, através da assimilação das ideologias, do pensamento
político e práticas sociais pertinentes aos muçulmanos que assuntos como a questão palestina, as
revoluções árabes, guerras e conflitos civis em países de maioria muçulmana, as restrições religiosas
impostas às minorias muçulmanas em países como a França, por exemplo, além das demandas territoriais
e as querelas internacionais envolvendo o ato de extremistas islâmicos, tornam-se questões das
comunidades muçulmanas locais por todo o mundo, interferindo diretamente em suas maneiras de
vivenciarem a fé.
86
Com base em Barbosa-Ferreira (2007, p. 20-21), podemos dizer que a religião islâmica é bastante
performática, não apenas nas festas e rituais extraordinários, mas também no cotidiano do exercício da fé.

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Notas sobre hajj: a peregrinação dos muçulmanos à “cidade sagrada” de Meca


De acordo com Pinto (2006), no caso do Islã a peregrinação é uma prática muito
importante, respeitada e valorizada, que incorpora adeptos de diferentes lugares ou
comunidades religiosas, que se unem em torno de um mesmo percurso devocional e
ritual; o que também nos aproxima da ideia de “communitas” de Turner (2008).
Hajj é a peregrinação anual à cidade sagrada dos muçulmanos: Meca (SURATA
3:97), e deve ser realizada pelos fieis pelo menos uma vez na vida. A peregrinação
acontece durante o décimo segundo mês islâmico, que objetiva, sobretudo, unir a
Ummah em um ritual comum a todos, num mesmo espaço sagrado e tempo não
ordinário.
Durante a peregrinação podemos observar inúmeros benefícios tanto
individuais como coletivos. Como a manifestação na prática dos
verdadeiros traços da universalidade do Islam, da fraternidade e da
igualdade entre os muçulmanos. A sua realização transcende os
limites de lugar, idioma e cor. Igualando a todos governantes e
governados, ricos e pobres, aonde todos são iguais sendo o melhor
ante Deus o mais temente87.
Nesse tempo sagrado há uma separação entre as atividades ordinárias (rotina)
/extraordinárias (rituais). E no que diz respeito à peregrinação islâmica, tempo e espaço
são categorias experenciadas de modo extraordinário dentro da lógica espaço-temporal
da religião. Para Barbosa-Ferreira (2007) o tempo islâmico é prescritivo; e tempo
sagrado é imbuído de significados a partir da prática religiosa do fiel, onde “(...) é
preciso incorporar ao cotidiano uma cosmologia que subverte até mesmo a vida comum
e impõe uma outra noção de espaço e tempo (...), que devem ser aprendidos por aquele
que se reverte e realizados por quem se diz muçulmano” (BARBOSA-FERREIRA,
2007, p. 750, 757).
O espaço de Meca é para o fiel um espaço “energizado”, onde a fé nas escrituras
sagradas, nos seus personagens e suas narrativas são mitificados por meio dos rituais,
que requer do fiel-peregrino mudanças de vida e adaptação às doutrinas islâmicas e sua
tradição. Assim, antes de iniciar a peregrinação deve-se tomar a atitude de “Al-Ihram”,
que consiste tanto na mudança de roupas (brancas) como de comportamento
(BARBOSA-FERREIRA, 2007).
A Hajj acontece entre os dias 8 a 12 do mês de Dhu All-Hijja (Mês da
Peregrinação)88, que dura entre 4 a 5 dias,tida como a grande peregrinação e
considerada pelos fieis como mais meritória89. Antes dela os muçulmanos podem fazer
a Umra: Pequena Peregrinação (que dura entre três ou quatro dias). Durante a
87
https://www.facebook.com/allahounicoquemereceseradorado/posts/1624846391123903:0. Acesso em:
15 de maio de 2016.
88
O início desse mês varia de acordo com a observação da lua crescente que é realizada por estudiosos
muçulmanos. São as instituições nacionais baseadas na orientação da Arábia Saudita que emitem notas
sobre o início dos meses do Ramadã e do Dhu Al-Hijja (Peregrinação).
89
As peregrinações a Meca eram uma atividade comum já na Arábia pré-islâmica, sendo considerada a
prática religiosa mais importante entre as tribos que habitavam aqueles territórios, eram empreendidas
peregrinações para os denominados haram (santuário). Dentre esses santuários, o mais importante da
época era a Caaba (Pedra Negra), localizado em Meca, que abrigava mais de 360 ídolos de toda a Arábia.
A Caaba era resguardada pelo clã dos Coraixitas, proeminentes membros da sociedade de Meca, e de
onde adveio o profeta Muhammad. A tradição islâmica atribui a origem da Caaba a uma construção
erguida por Adão. Posteriormente, Allah teria ordenado a Abraão que convocassem todos os homens a
visitarem o local. Com o advento do Islã, o retorno e conquista de Muhammad da cidade de Meca, a
peregrinação em torno da Caaba foi mantida, mas a adoração passou a ser restrita a um único deus, Allah
(LIMA, 2013).

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peregrinação ocorrem visitações a lugares tidos como sagrados, com a realização de


rituais, cumprindo regras e comportamentos.
A peregrinação a Meca é um dos pilares da religião islâmica e um anseio de todo
revertido. Com os muçulmanos pessoenses não poderia ser diferente. Por meio do
trabalho de campo verificamos que entre os revertidos muçulmanos de João Pessoa
apenas o Ibrahim realizou o Hajj. Cabe destacar que Ibrain (nome fictício) é um ex-
pastor evangélico, revertido ao Islã, que por anos foi importante liderança do Islã na
Paraíba. Em 2014, Ibrahim nos relatou como havia sido sua primeira experiência como
peregrino no Hajj:
Fiz o Hajj no ano de 2011. O Hajj só realizei uma vez. Fiz Umhra no
Ramadan de 2014. Compreendo que o hajj para um muçulmano é um
grande privilégio concedido por Allah (swt), para o cumprimento
sagrado deste pilar, que é visitar a Casa Sagrada, pois muitos
muçulmanos desejam participar do hajj e não recebem a oportunidade,
mesmo possuindo todas as condições para dele participar. Enfim, ser
um Hajj é ser convidado de Allah (swt), com o intuito de
verdadeiramente efetivar, pela infinita graça do Todo-Poderoso, uma
mudança radical em sua vida. Para mim foi uma experiência singular.
Por ser novo revertido, não me encontrava preparado para tão
grandiosa experiência. No Ramadan de 2011, resolvi durante todo o
mês, por incentivo de uma leitura que fiz de um livro, pedir a Allah
(swt) que me concedesse o privilégio de estar em Meca participando
do Hajj. Mas não esperava que os irmãos que fazem o CDIAL (Centro
de Divulgação do Islam para a América Latina) fossem me incluir no
grupo dos hajjs daquele ano. Ao me deparar com a majestosa visão da
Caaba, conhecedor de parte da historicidade daquele lugar, veio a
mim o que aprendi no Colégio Estadual de Santa Rita, minha cidade
natal, sobre a Casa construída pelo profeta Abraão e seu filho Isaque,
que a paz e bênçãos de Allah sejam com eles. Ao contemplar a
religiosidade de dois milhões de peregrinos (número anunciado dos
hajjs daquele ano), beber das águas da fonte que saciou a sede do filho
de Sara e de Abraão, só pude me derramar em lágrimas e agradecer a
Deus por tamanho privilégio. É algo que as palavras não conseguem
relatar... Tudo mudou. Todos os temores caíram por terra. Meus
valores mudaram. Meu alvo agora estava devidamente fixado na vida
futura. Voltei como uma criança recém-nascida que chega ao mundo,
pura e isenta de todo e qualquer pecado. Aprendi a verdadeiramente
crer que Allah (swt) é o Senhor da nossa história e o que Ele
predestinou, seja de bem ou de mal para seus servos, ninguém poderá
modificar. Compreendi que verdadeiramente esta vida é o grande teste
que enfrentamos para definir como será nossa vida futura.
Alhamdulillah!
[...] É sonho de quem visitou a Casa de Allah voltar a estar naquele
esplendoroso lugar, onde se respira paz e tranquilidade a todo o
momento. Já voltei uma vez na Umhra, mas sonho em ali está outras
vezes, principalmente realizando o Hajj, pois cada evento nos
transporta desta vida para a compreensão da plenitude de vida que
Deus tem reservado para quem não lhe atribui parceiros e crer de
forma correta em sua Unicidade”. (Entrevista realizada no Centro
Islâmico de João Pessoa).
Como podemos ver na fala acima, o ritual religioso Hajj é de suma importância
para os fiéis, em especial os recém-revertidos, representando um momento simbólico e
um instrumento de fortalecimento da identidade religiosa comunal. Hajj é entendido

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como um mecanismo de coesão social, experiência social que outorga aos peregrinos e
os fieis em geral o sentido e uma identidade religiosa, por meio de uma inserção nesta
comunidade: a Ummah.
Notas sobre a festa do sacrifício (eid al-adha)
No décimo dia do mês de Dhu al-Hijjah (Mês da Peregrinação), décimo segundo
mês do calendário lunar islâmico e no último dia do Hajj ocorre a festa do Eid Al-Adha
(Grande festa ou Festa do Sacrifício). Ela é realizada após setenta dias do final do
Ramadã e recomenda-se que tenha duração de quatro dias (o período da grande
peregrinação ou Hajj) nos países de maioria muçulmana.
Durante a celebração, as famílias muçulmanas com condições financeiras devem
sacrificar um bezerro macho, saudável e que esteja em idade adulta. A prescrição
corânica é para que todos os muçulmanos participem desta celebração, tanto os que
estão em peregrinação como os que estão em seus países; e nesta ocasião também há
troca de presentes.
No primeiro dia da festa as pessoas devem vestir as suas melhores roupas e ir à
mesquita para as orações, seguindo o horário estabelecido por Meca. Depois das orações
é realizado o ritual do sacrifício do animal. Cabe destacar que o sacrifício é uma
celebração para exaltar a obediência do personagem Abraão que, segundo a tradição
islâmica, obedeceu a Deus ao se dispor a imolar seu filho90; representando o sacrifício
como o ápice dessa “entrega” do fiel a Deus.
A matança dos carneiros é um ato simbólico de entrega do fiel a Deus,
marca também o final do Hajj, final de um “sacrifício” pessoal que se
revela em um sacrifício explícito: o carneiro imolado substitui o
homem. Essa experiência que se atribui ao mito é incorporada no
ritual [...] (BARBOSA-FERREIRA, 2007, p. 755).

Figura 8- Área adaptada para abate dos animais na festa do Al-Adha (Sacrifício) na Mesquita e
Centro Islâmico. Fonte: Arquivo pessoal
A imolação do animal segue todo um ritual, com prescrições e regras durante e
depois do abate, sendo o animal considerado elemento de transição entre Deus e os
homens. Em 2013 acompanhamos a festa do Eid Al-Adha celebrada no Centro Islâmico,

90
Ver: Surata 37, versículo 102. Abraão também faz parte das narrativas da Bíblia Sagrada. A tradição
cristã atribui essa narrativa a Isaque, que teria o direito de primogenitura por ser o filho de Sara, esposa de
Abraão. Porém, para os muçulmanos a primogenitura é de Ismael, filho de Abraão com a egípcia Hagar.
Durante o Hajj, muito dos rituais remontam ao drama vivido por esses personagens: Abraão, Hagar, Sara
e Ismael.

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João Pessoa-PB, que durou um dia. Dois carneiros foram sacrificados na área adaptada
para o abate no centro islâmico pessoense.
Foi significativo ver que o abate do animal foi realizado por um muçulmano
marroquino, que de modo pedagógico ensinava a um revertido paraibano como se
deveria preparar o animal, fazer o abate,retirar a pele e repartir o animal.Os cordeiros
foram assados e distribuídos entre os membros da comunidade muçulmana e vizinhos
não muçulmanos considerados necessitados.

Figura 9 - Marroquino ensina revertido técnicas do sacrifício. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisa
A celebração do Al-Adha é uma das mais importantes do calendário islâmico, e
em João Pessoa contou com a presença de muitos estrangeiros (africanos, árabes, turco,
marroquino, libanês e jordaniano) na comunidade, além dos brasileiros que se reuniram
para celebrar o ritual. O sermão foi proferido por um muçulmano jordaniano sobre o
significado do al-Adhan para os fiéis.
Como nos mostra Victor Turner, este ritual incorpora valores simbólicos que são
reatualizados e ressignificados, seja no âmbito da construção da identidade pessoal do
fiel- peregrino ou do ponto de vista de pertencimento a comunidade imaginada. Os que
empreendem o hajj, e num certo grau também os que participam apenas da festa do Al-
Adha,são marcados por uma experiência de liminaridade, isto é: “(...) um intervalo entre
dois períodos distintos de envolvimento intensivo na existência social estruturada, fora
da qual uma pessoa escolhe cumprir seus deveres de peregrino” (TURNER, 2008, p.
163), que posteriormente lhe confere valoração religiosa e status social entre os seus
parceiros de crença; por representar uma experiência que cria vínculos e significados.
Assim, através da festa do Al-Adha observamos que tal celebração é uma das
partes dos processos rituais que formam a estrutura da Grande peregrinação, dando aos
que não podem realizá-la uma oportunidade de vivenciar sua fé e reatualizar os votos
com Allah e com a comunidade muçulmana.
Por isso, as peregrinações podem ser caracterizadas como “communitas
normativa” (Turner, 2008, p. 158), pois estão ligadas as estruturas dos sistemas
religiosos que as desenvolvem, sendo empreendimentos sociais formados por
obrigações e uma ordem de fraternidade.
Conclusão
Por meio do trabalho de campo, conversas informais com as comunidades
observadas e de leituras sobre a temática, verificamos que a Ummah reproduz a ideia de
identidade muçulmana, que transcende as diferenças consanguíneas ou territoriais. A
hajj, por sua vez, nos mostra como as peregrinações realizam este trabalho de

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unificação de todos, o que pode ser visto como “mecanismo disciplinador”, com forte
poder normativo.
Como nos aponta Pinto (2006), nestas peregrinações há uma busca de tradição,
que se configura nas crenças e partilha de valores ditos tradicionais, posto que sagrados
ou sacralizados, que asseguram a supremacia da unidade da Ummah ante os processos
locais de diferenciação socioculturais. Assim, rituais e símbolos são usados para
reafirmação da doutrina e reinvenção das tradições, por meio da repetição de padrões
religiosos universais e abstratos, que são ritualizados pelos fieis e autoridades religiosas.
Enfim, as peregrinações como a Hajj fazem parte de projetos político-religiosos,
que se formam por meio de esforços de construção de uma comunicação trans-islâmica,
para além das diferenças territoriais ou sectárias. Tanto a grande peregrinação como as
celebrações a esta ligadas estão acompanhadas por um forte simbolismo religioso, que
servem como marcadores identitários e\ou como instrumentos devocionais.
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RESENHAS

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BARBOSA, Raoni Borges. O olhar teórico-metodológico do GREM sobre a cultura emotiva da cidade
de João pessoa: Uma resenha.. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v.1, n.3,
p. 178-181, novembro de 2017. ISSN 2526-4702.
Resenha
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

O olhar teórico-metodológico do GREM sobre a cultura emotiva da


cidade de João Pessoa: Uma resenha

The theoretical-methodological perspective of the GREM on the emotional culture of the city
of João Pessoa: A review

PONTES, Williane Juvêncio. Medos corriqueiros e cidade: Uma análise institucional


do Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções / UFPB. Coleção
Cadernos do GREM N° 12. Recife: Bagaço; João Pessoa: Edições do GREM, 2017.

A presente obra de Pontes (2017), originalmente um trabalho de conclusão de


curso de graduação em ciências sociais, intitulada Medos corriqueiros e cidade: Uma
análise institucional do Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções
/ UFPB, caracteriza-se pela exposição bastante didática dos seus elementos
constituintes. A autora conseguiu apresentar ao leitor um quadro teórico-metodológico e
temático claro e coerente sobre o seu objeto de pesquisa, isto é, os processos de
formação e os sentidos do olhar da instituição acadêmica GREM Grupo de Pesquisa em
Antropologia e Sociologia das Emoções sobre a cidade de João Pessoa, e também o
sobre o seu universo de pesquisa em análise, que vem a ser a história registrada em
arquivos da instituição GREM.
A obra de Pontes, com efeito, foi construída com base em uma proposta teórico-
metodológica de análise compreensiva e processual desta instituição acadêmica, de
modo a poder abordar as memórias, os projetos, os mapas simbólicos, as trajetórias
temáticas e conceituais, o processo de refinamento teórico-metodológico, a produção de
questões relevantes, a formação de quadros de pesquisadores, a organização de redes de
interlocução e de visibilidade, a participação nos eventos acadêmicos, e a produção do
material acadêmico do grupo. A partir de então enfatiza, ato contínuo, como o GREM
percebe a cidade de João Pessoa enquanto laboratório de pesquisa, enquanto cultura
emotiva e códigos de moralidade e enquanto sociabilidade urbana em acelerado
processo de modernização durante o século XX, mas, principalmente, desde os anos de
1970 (KOURY, 2017).
A pretensão da obra foi, em síntese, a de produzir um mosaico científico
(BECKER, 1993) sobre a cidade de João Pessoa através do olhar do GREM,
acompanhando os trabalhos desenvolvidos pela equipe do grupo, docente e discentes,
em um projeto guarda-chuva ainda em andamento, intitulado Medos Corriqueiros, a
partir do cruzamento analítico de etnografias, dados estatísticos, bancos de imagens,
entrevistas e cartografias produzidas, na cidade, sobre os mais diversos temas do
cotidiano urbano. Temas estes como a vida noturna e boêmia da cidade de João Pessoa;
os registros fotográficos de suas, ruas, avenidas, praças e parques; e a evolução da
paisagem humana e urbana de seus bairros nobres e populares e de seus lugares
históricos de maior visibilidade urbana.

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Este mosaico científico sobre o urbano local, a partir de um apanhado e balanço


institucional e acadêmico de um conjunto de pesquisas acopladas ao projeto Medos
Corriqueiros em desenvolvimento no GREM, buscou enfatizar a tensão entre indivíduo,
cultura e sociedade como eixo teórico organizador e condutor da crítica aos modos e
estilos de vida dos moradores da cidade de João Pessoa, cuja cultura emotiva tem
sofrido um considerável processo de transformação em decorrência do crescimento
demográfico e urbano exponencial da cidade nas últimas cinco décadas, vindo a
conformar-se como um lugar de medos generalizados e banais, os medos corriqueiros, e
de estranhamento do outro, sentido como vetor de ameaças. O universo de pesquisa
trabalhado por Pontes, o GREM, - concebido a partir do trabalho e da ação acadêmica
de seus pesquisadores docentes e discentes, - foi analisado como instituição acadêmica
situada em três contextos históricos bem marcados. Primeiramente, o contexto de
consolidação dos estudos em Antropologia e Sociologia na UFPB, que abarca o período
de 1983 a 1994, - anos de gestação do Projeto GREM, - e que tem como eixo temático a
análise da desigualdade, da pobreza urbana, da transformação urbana dos espaços rurais,
da exploração do trabalho assalariado e das lutas e resistências em torno da
sindicalização de trabalhadores rurais, entre outros.
Nesta primeira fase de organização institucional, as categorias-chave de análise
da relação entre indivíduo, social e da cultura partem de noções como homem comum
pobre e trabalho, no sentido marxiano do termo, e são ainda influenciadas por uma
abordagem estruturalista dos fenômenos sociais. O segundo contexto de produção
acadêmica e de ação institucional do GREM perfaz um movimento de transição para
uma postura teórico-metodológica mais interacionista, pragmatista e processual, tendo
como eixo de análise a construção social da individualidade e da subjetividade no
urbano contemporâneo.
Este segundo contexto institucional abarca o período de 1994 a 1999 e
desenvolve como categorias-chave de análise as noções de homem comum e de
subjetividade, sofrendo forte influência da leitura simmeliana do papel e do lugar da
individualidade e dos processos intersubjetivos na construção da modernidade
capitalista ocidental. O terceiro contexto GREM de fazer pesquisa acadêmica, - já
fortemente marcado por pesquisas sobre a cidade de João Pessoa enquanto cultura
emotiva, - compreende o processo de afirmação da Antropologia e da Sociologia das
Emoções no cenário local, regional e nacional, com a maturação de projetos GREM
sobre emoções específicas, - como os sentimentos de luto, de medos corriqueiros, de
pertença e de vergonha cotidiana, - e sobre a construção social do self, da
intersubjetividade e de culturas emotivas.
Este é também o contexto de fundação da RBSE – Revista Brasileira de
Sociologia da Emoção e da organização de Grupos de Trabalhos em eventos pelo país e
pelo exterior. Essa terceira e última fase de produção acadêmica se estende de 1999 até
os dias atuais e desenvolveu categorias-chave de análise como homem comum urbano e
como emoções.
Pontes logrou apresentar ao leitor um recorte temporal bastante interessante do
GREM, situando as preocupações e trajetórias teórico-metodológicas e temáticas do
grupo, sintetizadas nos conceitos analíticos centrais de cada contexto de maturação
acadêmica da instituição sob análise. Uma vez delimitado historicamente o universo de
pesquisa, a autora situa o seu objeto empírico: a produção acadêmica do GREM sobre a
cidade de João Pessoa a partir do projeto de pesquisa guarda-chuva GREM Medos
Corriqueiros: A construção social da semelhança e da dessemelhança entre os
habitantes urbanos das cidades brasileiras na contemporaneidade (KOURY, 2002).

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O objeto de pesquisa, com efeito, é trabalhado da mesma forma cuidadosa com


que se expôs o universo de pesquisa: Ao descrever o seu objeto, a autora descreve e
analisa a história acadêmica e a trajetória teórico-metodológica e temática do projeto de
pesquisa Medos Corriqueiros. Descobre e apresenta analiticamente suas três fases
constitutivas, conectando este processo de maturação de um projeto GREM aos demais
projetos do grupo e também ao seu desenvolvimento institucional.
Cabe ressaltar, na obra de Pontes, a produção de listagens dos projetos GREM e
de suas respectivas produções e publicações acadêmicas, assim como a síntese das fases
GREM e das fases do Projeto Medos Corriqueiros a partir de quadros sinóticos de
esquemas conceituais, apresentados oportunamente pela autora no decorrer da sua
monografia. A autora verifica e situa o projeto GREM Medos Corriqueiros, um projeto
guarda-chuva, como estratégia central de organização das atividades do GREM.
Os medos corriqueiros, nesse sentido, sintetizam a Antropologia e a Sociologia
das Emoções do GREM e de Koury, seu pesquisador central e membro fundador.
Aponta para uma teoria da ação social intersubjetiva focada na análise da tensão, da
indeterminação, dos desencontros e dissensos, e da criatividade de atores sociais em
jogo comunicacional para o ajustar-se sempre às novas situações sociais.
Diferentemente do ator social habermasiano, que busca o consenso no discurso e
no agir comunicativo; do ator social parsoniano, que desempenha um status – papel
cristalizado em sistemas de ação; ou mesmo do ator social turneriano, que dramatiza da
sua posição o drama social culturalmente sincrônico; Pontes apresenta o esforço do
GREM em construir conceitualmente o ator social como dramatizador crítico e
reflexivo de seus papéis sociais, e como agente social criativo, que deve ser entendido
de uma ótica compreensiva weberiana, mas também conforme um esforço etnográfico
que situa seu ethos e sua visão de mundo (GEERTZ, 1978) enquanto self auto-
espelhado (COOLEY, 2017) partícipe da construção social e cultura do mim meadiano
(MEAD, 1934). Nesse sentido, Pontes conclui sua obra situando, também de forma
bastante didática, a forma como o GREM percebe a cidade de João Pessoa, isto é, como
o grupo de pesquisa vem organizando um mosaico científico sobre a cidade.
A cidade de João Pessoa, assim, aparece como sociabilidade urbana
caracterizada por uma cultura do medo, da banalização da violência e da evitação do
outro, tido como estranho e como ameaça; como sociabilidade urbana periférica e
pobre, em que a vida cotidiana era, e ainda em certa medida o é, organizada em redes
homofílicas, de compadrio, amizade, reconhecimento, lealdade e confiança no outro;
como sociabilidade urbana em processo de modernização conservadora, de modo que a
modernidade é sentida como desejo de individualidade e como ameaça às tradições e
conformações autoritárias e excludentes do espaço urbano, gerando, assim, sentimentos
de amor e ódio à cidade; como sociabilidade urbana caracterizada por disputas morais
em torno do pertencer à cidade e pelos medos corriqueiros, reais e imaginários, da falta
de fé, falta de confiança e receio de errar, e falta de segurança pessoal e receio de errar;
como memórias de uma sociabilidade urbana pessoalizada, pacata e provinciana, em
que a pobreza e a violência urbana eram contidas e controladas nos espaço periféricos
da cidade, tidas pela elite dominante como paisagem urbana; como exercício de uma
nova sensibilidade, pautada na privatização das emoções, no individualismo, na
melancolia e nos medos corriqueiros supracitados, de modo que o morador da cidade
cada vez mais dificilmente se reconhece na cidade, e no outro relacional, como uma
extensão de si mesmo, mas quase sempre se percebe a partir de situações de
estranhamento do outro e de constrangimento de si. Em síntese, Pontes conseguiu
realizar com esta obra a análise institucional do GREM e do olhar do GREM sobre a
cidade de João Pessoal, tal como se propôs quando pretendeu desenvolver uma pesquisa

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181

estado de arte da memória institucional do GREM, compondo um quadro do mosaico


científico e dos mapas simbólicos do grupo sobre a cidade de João Pessoa. A obra é de
grande relevância, ainda, por apontar de forma didática um rico caminho para a
produção de pesquisa sobre o fazer acadêmico de grupos acadêmicos de pesquisa, de
modo que se possa melhor consolidar a trajetória teórico-metodológica e temática de
linhagens e escolas de pensamento antropológico e sociológico no Brasil.
Raoni Borges Barbosa (GREM-UFPB / PPGA-UFPE)

Referências
BECKER, Howard. Métodos de pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo: HUCITEC,
1993.
COOLEY, Charles Horton. O self social: o significado do EU. Revista Brasileira de
Sociologia da Emoção, v.16, n. 47, p. 173-192, 2017.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Medos Corriqueiros: A construção social da
semelhança e da dessemelhança entre os habitantes urbanos das cidades brasileiras na
contemporaneidade. Projeto de Pesquisa, GREM: João Pessoa, 16p.
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Etnografias urbanas sobre pertença e medos na
cidade: Estudos em Antropologia das Emoções. Coleção Cadernos do GREM N° 11.
Editora Bagaço: Recife; Edições do GREM: João Pessoa, 2017.
MEAD, George Herbert. Mind, self and society. Chicago: University of Chicago Press,
1934.

Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia v1 n3 novembro de 2017 ISSN 2526-4702


182

OLIVEIRA, Ana B. Ramos de & NOVAES, Diego A Antropologia e a Sociologia das Emoções no
Brasil: uma resenha. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v.1, n.3, p. 182-
188, novembro de 2017. ISSN 2526-4702.
Resenha
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

A Antropologia e a Sociologia das Emoções no Brasil: uma resenha


The Anthropology and the Sociology of Emotions in Brazil: A Review

KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro; Raoni Borges Barbosa. Da Subjetividade às


Emoções: A Antropologia e a Sociologia das Emoções no Brasil. Coleção Cadernos do
GREM n. 7, Recife/João Pessoa: Ed. Bagaço/Edições do GREM, 2015.

O livro Da Subjetividade às Emoções: A Antropologia e a Sociologia das


Emoções no Brasil, dos autores Koury e Barbosa, aborda o desenvolvimento das
disciplinas de sociologia e antropologia das emoções no Brasil através da análise da
trajetória de produção teórico-metodológica de dois pesquisadores da área. O primeiro
capítulo, Gilberto Velho: um precursor da antropologia das emoções no Brasil, se
desenvolve em torno da obra do autor citado, Gilberto Velho91, considerado como o
precursor da antropologia e da sociologia das emoções no Brasil. Na década de 1990,
este campo de conhecimento ganha espaço no Brasil, possibilitando uma maior
especialização da análise das emoções na sociedade. De acordo com o autor, essa
temática é resultante do segundo deslocamento das disciplinas de antropologia e
sociologia, e do pensamento crítico nas ciências sociais, ocorrido na década de 1970.
No segundo capítulo, Koury: uma história das emoções, Barbosa se dispõe a
descrever a trajetória de produção acadêmica de Mauro Koury, identificando o seu
arcabouço teórico bem como os recortes temáticos, geográficos e temporais utilizados
por ele no GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções /
UFPB. Além de uma apresentação geral e preambular, o autor se preocupa em expor as
categorias de análise identificadas nos trabalhados de forma global e didática. Faz
também uma descrição precisa, e ainda sintética, dos trabalhos reunidos para análise
nesta obra.
Na introdução do primeiro artigo, Koury se propõe a expor a metodologia e os
conceitos utilizados por Velho. Deste modo, busca enxergar os processos que
conformam o indivíduo, além das relações impessoais, na sociedade complexa. As
noções de Projeto e Campo de Possibilidades, enquanto conceitos considerados como
centrais na análise de Velho são amplamente discutidos no texto. Como explica Koury,
Gilberto Velho tem como base teórica de investigação a sociedade brasileira, e a analisa
através de uma dualidade estruturante de sistemas hierárquicos e sistemas
individualistas. Ao enxergar uma diversidade de padrões comportamentais, Velho
identifica na relação tensa entre indivíduo, sociedade e cultura, a ascensão da
individualidade e do individualismo no Brasil contemporâneo. Para isso, faz uso de um
arcabouço teórico francamente simmeliano, unindo a fenomenologia em diálogo com o
interacionismo desenvolvido em três gerações pela Escola de Chicago. Koury destaca
ainda que Gilberto Velho foi o inovador da antropologia brasileira quando se propôs a

91
Gilberto Velho (1945-2012) foi professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e fez parte
da primeira turma do Programa de Pós-Graduação em Antropologia do Museu Nacional.

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trabalhar com as sociedades complexas e com o ambiente urbano, até então ignorados
pela disciplina.
No item “Trajetória”, Koury expõe o direcionamento da pesquisa de Velho,
como proveniente dos temas de aulas de Antropologia Urbana com o professor Anthony
Leeds92. Gilberto Velho, então, faz um projeto de conclusão da disciplina, e se dedica a
estudar as formas de habitar no Rio de Janeiro. Nesse projeto, desenvolve a pesquisa
que lhe daria, posteriormente, sua dissertação de mestrado93, e define o seu objeto de
trabalho: o modo de habitar da baixa classe média, no bairro de Copacabana, mais
especificamente no o prédio em que o pesquisador morava, de pequenos apartamentos,
onde habitavam pessoas por ele (Velho) consideradas de “baixo padrão moral”.
Koury dá destaque a alguns aspectos da obra, como, por exemplo, o estudo do
outro próximo; o tornar o lugar em que morava como objeto de pesquisa, se
contrapondo, assim, de forma radical, a uma antropologia então centrada no exótico das
populações distantes e isoladas; a interdisciplinaridade da obra; além do lançamento de
um artigo-manifesto Organização Social do meio urbano (junto com o sociólogo Luiz
Antônio Machado da Silva), onde defendem a necessidade de uma sociologia e
antropologia urbanas no Brasil. Neste ponto, Koury discute a tese de doutorado de
Velho, Nobre e anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia – defendida em 1975 –, em
que estuda novamente uma parcela da classe média do bairro carioca de Copacabana
nas suas variantes de relacionamento com as drogas.
No item “Observando o familiar”, Koury apresenta e discute o artigo homônimo
de Velho, publicado em 1978. De acordo com o autor, Gilberto Velho constrói uma
crítica epistemológica assertiva à antropologia no que diz respeito ao esforço desta em
analisar o outro distante. Na medida em que desloca o olhar analítico para o cotidiano e
para a cidade, Velho dá relevância ao processo de autocrítica do pesquisador e de seus
valores como ferramenta para enxergar através de “uma névoa que naturaliza o
ambiente” (p.36). Esse processo de exotização do próximo é fruto, de acordo com
Koury, de uma leitura de Weber e de Clifford Geertz, dando ênfase ao caráter
interpretativo da análise.
No item “As Noções de Projetos e Campos de Possibilidades”, Koury expõe
estes dois conceitos, que considera fundamentais para a construção da pesquisa de
Velho. Trata-se de ferramentas que unem as emoções, decisões e expectativas de
indivíduos ao quadro social mais amplo da sociedade, unindo o campo fenomenológico
de Schütz ao interacionismo de Goffman e Becker, à luz das análises simmelianas e
weberianas94.
Koury reafirma ainda o protagonismo de Velho na formação de uma
antropologia e sociologia das emoções no Brasil, a partir da assimilação e conjunção,
92
Professor da Universidade do Texas, visitante do PPGA do museu na década de 1970.
93
A Utopia urbana. Um estudo de Antropologia Social. Dissertação defendida em 1971 e, depois, editada
em livro pela Editora Zahar em 1973.
94
Koury faz então uma breve pausa na descrição do trabalho de Velho para expor alguns autores que
fundamentam a sua análise. Primeiramente evoca Alfred Schütz, que realiza uma união entre a
fenomenologia e a sociologia. Este autor, por sua vez, tem como base Edmund Husserl, cujo trabalho
consiste na construção de uma filosofia fenomenológica que vê o indivíduo como um ser consciente que
interpreta o mundo através da atenção às intenções das ações. Além de Husserl, outro fundante da obra de
Schütz é Weber, que também será largamente usado por Velho. Sua sociologia compreensiva da ação
social é unida à fenomenologia de Husserl no empreendimento de identificar as decisões dos indivíduos,
que em sequência representam suas curvas de vida e trajetórias, singulares e individualizadas mesmo que
pertencentes a determinadas tradições históricas. Dessa forma, há uma união entre os mundos
individualizados husserlnianos e da “ação como portadora de intencionalidades e sentidos [...], como
criadora do social e do individual específicos (p. 43)”.

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mesmo que não planejada, das teorias de Weber e Husserl através de Schütz. Essa
assimilação permitiu a Velho dar início à empreitada de chegar perto de identificar uma
cultura emotiva no Brasil urbano, investigando as ações criadoras dos indivíduos e
grupos, em sua constante e tensa relação.
A noção de projeto, por sua vez, diz respeito aos planejamentos construídos
subjetivamente e inseridos em uma cultura histórica que delimita certas possibilidades e
incita certos anseios nos indivíduos que a ela pertencem e a constroem. No entanto, para
Koury,
O conceito de projeto individual para Velho, assim, não é um
fenômeno puramente interno e subjetivo, mas, formulado e elaborado
dentro de um campo de possibilidades, e circunscrito histórica e
culturalmente, tanto em termos da própria noção de indivíduo no
social, quanto às temáticas, prioridades e paradigmas culturalmente
existentes (p. 45).
Velho, fazendo uso desse conjunto de conceitos, pesquisa diversos temas, tais
como: questões geracionais, a psicologização das sociedades contemporâneas, relações
entre cultura objetiva e subjetiva, entre outras.
Koury expõe a bibliografia em que encontra o par de conceitos, projeto e campo
de possibilidades. Eles aparecem primeiro no livro Individualismo e Cultura, de 1981,
depois em Projeto e Metamorfose, de 1991 e, posteriormente, em todos os trabalhos do
autor.
O campo de possibilidades, como explica Koury,
[...] corresponde ao espaço para a formulação e implementação dos
projetos individuais ou coletivos elaborados. Satisfaz, portanto, às
opções construídas no interior de um processo sócio-histórico dado e
com um grande potencial interpretativo do mundo simbólico da
cultura (p. 48).
É dentro do campo de possibilidades de uma determinada cultura
temporalmente localizada, então, que se relacionam os projetos. Koury segue
descrevendo a relação entre projeto e campo de possibilidades, tanto em sua qualidade
individual, grupal e sociocultural, dando destaque à variedade de interações entre eles,
tanto construtivas quanto destrutivas.
Em decorrência dessas interações tensas entre projetos e trajetórias de vida,
Velho identifica o que chama de metamorfose. Trata-se das mudanças nos projetos em
decorrência das disputas e negociações da realidade. Dessa forma, planos e sonhos são
esquecidos e resgatados, abandonados e recriados, alterados e reafirmados conforme as
mudanças interativas com os campos de possibilidades dos grupos, culturas e
sociedades em tenso jogo. “A curva de vida, assim, nada mais é do que o conjunto de
trajetórias, de negociações, de mudanças e experimentações de um indivíduo em relação
com outros.” (p. 53)
Koury, por fim, conclui o capítulo resgatando os autores que embasam o
pensamento de Velho. São eles: Erving Goffman, Howard Becker, Robert Park, Louis
Wirth, Howard Hughes, Alfred Schütz, Peter Berger, além de Georg Simmel e Max
Weber.
No segundo capítulo, já de início, Barbosa elenca o grupo intelectual que provê
o conjunto teórico que auxilia Koury em sua pesquisa, majoritariamente centrada na
cidade de João Pessoa, capital da Paraíba. Entre os autores citados estão Mead,
Goffman, Scheff, Velho, DaMatta, além da Escola de Chicago. Dessa forma, o esquema
conceitual de Koury se situa, segundo Barbosa, dentro da antropologia das emoções, e

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consiste em uma “filiação simbólico-interacionista influenciada pela filosofia social


simmeliana, pela sociologia figuracional eliasiana [...] (p. 61)”. Koury busca apreender
a ascensão do indivíduo individualista no Brasil urbano contemporâneo através da
análise de seu código moral, na medida em que performa processos intersubjetivos que
formam e são formados por uma cultura objetiva e formas sociais. O autor realiza tal
empreendimento através da análise dos sentimentos de “luto, medos, constrangimentos,
vergonha, gratidão, pertença, segredos, confiança e confiabilidade, lealdade,
solidariedade e outros (p. 62)”, em uma perspectiva de mudança histórica,
principalmente, no que diz respeitos à mudança do ethos rural para o urbano.
Na obra Emoções, Sociedade e Cultura95, como explica Barbosa, Koury realiza
um levantamento bibliográfico da antropologia e da sociologia, que culminam na
antropologia e na sociologia das emoções atuais, destacando o crescimento do campo no
Brasil nos últimos 27 anos. Busca, dessa forma, duplamente a identificação das formas
relacionais que compõem a trama emotiva do urbano contemporâneo brasileiro e da
relação entre cultura subjetiva e cultura objetiva no escopo da antropologia e da
sociologia das emoções. Na medida em que investiga a intersubjetividade, parte da ideia
da “singularidade de cada sujeito relacional (p. 67)” e, por isso, se opõe aos paradigmas
macrossociológicos que sustentam categorias estanques, bem como a ideia de análises
totalizantes e lineares do social.
Em A Sociologia da Emoção: O Brasil urbano sob a ótica do luto (KOURY,
2003), e em diversos outros trabalhos dela oriundos, continua Barbosa, Koury expõe o
resultado de uma pesquisa realizada nas 27 capitais brasileiras a fim de identificar a
transformação dos sentimentos de luto, morte e morrer em padrões relacionais próprios
de uma sociedade mais individualista, impessoal e mercantil. Koury identifica nessa
sociedade uma mudança nas formas relacionais que incide precisamente sobre seu teor
relacional e intersubjetivo, enfraquecendo as tradições, a familiaridade dos códigos
morais e a cultura emotiva, transformando todos em estranhos e potencializando uma
tensão entre o público e o privado. Neste movimento, o luto seria higienicamente
varrido para o âmbito privado.
Esta tensão entre o espaço relacional e o espaço individual diz respeito a uma
mudança decorrente do processo de constituição da pessoa moderna, explicitado por
Elias e resgatado por Koury, em que os limiares da vergonha e da repulsa são
expandidos, conformando um processo de privatização das emoções. A subjetividade é
tida como lugar do irracional e dos segredos enquanto o público é tido como ambiente
de trocas mercantis e racionalidade.
No que diz respeito ao luto, o que se identifica é a amplificação e disseminação
de uma melancolia definida como a “presentificação de um sentimento permanente de
perda, vivida no interior de um sujeito em dor e sem ter com quem repartir [...] (p. 72)”.
Em uma perspectiva social, essa privatização levaria à constituição de indivíduos
relacionais com personalidades blasé, indiferentes e anônimos, de modo que as práticas
relacionais de pujança da subjetividade são substituídas pela constituição de um espaço
racional e objetivo.
Reforçando as características do macroprocesso por que passa a sociedade
brasileira com a urbanização, Barbosa expõe o arcabouço teórico primário que Koury
utiliza em seu estudo. Trata-se de Arendt, Durkheim, Sennet, Weber, Walter Benjamin e
Freud, no que diz respeito às suas análises da construção da sociedade moderna e a
falência da res pública. Por fim conclui que

95
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Emoções, Sociedade e Cultura: a categoria de análise emoções
como objeto de investigação na sociologia. Curitiba: Editora CRV, 2009.

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O material etnográfico produzido nesta pesquisa aponta que a morte, o


morrer e o luto passaram a serem sentidos pela classe média urbana
brasileira a partir de sentimentos e experiências de solidão, de
indiferença, de perda da fé, de insegurança e medo de expressar-se, de
culpa, vergonha e constrangimento, de desconforto e mal-estar, de
desencantamento e desilusão do mundo, todos eles apontando para
uma ruptura profunda com uma cosmologia religiosa antes
hegemônica em uma sociedade relacional. (p. 75)
No item “Medos, Vergonha, Confiança e Pertença: os usos das emoções nas
estratégias de sociabilidade em cenários tensos”, Barbosa descreve a obra O Vínculo
Ritual: Um estudo sobre a sociabilidade entre jovens no urbano brasileiro
contemporâneo (KOURY, 2006) e as demais publicações decorrentes da pesquisa por
onde o trabalho se constituiu96. A obra descreve os processos de constituição, inclusão,
preservação e exclusão de um grupo específico, denominado grupo Delta, composto por
jovens de 15 a 30 anos, de biografias difíceis e residentes de bairros populares da cidade
de João Pessoa. O grupo é descrito a partir dos diversos rituais que ilustram a moral e o
ideal de vida, constantemente vigiada e reiterada pelos integrantes, que distingue o
grupo do seu exterior.
Esta análise, de acordo com Barbosa, está inserida em um ambiente descrito por
Koury em que a modernidade urbana brasileira alonga as linhas de interdependência e
esfacela instituições tradicionais desindividualizantes como a família e a religiosidade,
levando os indivíduos e grupos a um isolamento cada vez mais agudo. A partir daí são
estabelecidas balizas que ajudam o pesquisador a identificar a funcionalidade do grupo
Delta. Processos como a denominação, o envergonhamento, o resgate e a valorização do
indivíduo são larga e continuamente utilizados pelos membros do grupo para a
preservação do mesmo.
A onomástica, - o processo de denominação, de uso de apelidos e
alcunhas, e de classificação moral dos indivíduos no ato de alçá-los à
condição de pessoa renascida no e para o grupo, - aparece como
elemento de socialização dos novos membros, bem como de uma
prática ritual que remete a uma envergonhamento do self pelo grupo e
o trabalho ininterrupto de superação desta vergonha. (p. 81)
O processo simbólico de entrada no grupo é marcado pelo batismo, que
representa uma morte e um renascimento do ingressante. O batismo, assim, materializa
a morte, presentificado no envergonhamento do apelido, e também através da ilustração
do passado do ingressante como tempo de crise existencial, e o renascimento, que
resolve esse passado de vergonha, no momento em que passa a integrar o grupo.
Como salienta Barbosa, Koury destaca o medo e a vergonha como emoções
fundamentais para a criação e sobrevivência de um grupo relacional como o descrito.
Uma tensão permanente que exige uma etiqueta e discrição no agir dentro do grupo. Há
uma pressão moral que envergonha constantemente os membros Deltas no sentido de
que estes permaneçam fieis aos ideais do grupo e internalizem a percepção de si
mesmos como membros intricados ao grupo, ao Nós Relacional, e do receio desta nova
identidade fenecer uma vez fora dele.
Dessa forma, o medo, a vergonha e também o orgulho, na medida em que
histórias de sacrifício pessoal em favor do grupo são compartilhadas em sua dinâmica,

96
Os demais trabalhos de Koury são: (1) Sistema de Nominação, Pertença, Medos Corriqueiros e
Controle Social. O uso de apelidos entre um grupo de jovens da cidade de João Pessoa, Paraíba. Campos,
v. 5, n. 1, pp. 69-91, 2004; (2) Viver a cidade: um estudo sobre pertença e medos. RBSE – Revista
Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 4, n. 11, p. 148-156, Agosto de 2005.

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valorizando os seus membros, são as emoções basilares para a sustentação de um grupo


relacional, configurando uma cultura emotiva específica. Por fim, Barbosa (p.75)
conclui: “Koury, a partir da reflexão etnográfica sobre os Deltas, discorre sobre o social
como jogo tenso, conflitual, indeterminado, de disputas morais e negociações
identitárias (onomástica, toponímia, administração das tensões)”.
No item “Medos e medos corriqueiros como emoções centrais da sociabilidade
urbana brasileira”, Barbosa apresenta uma série de estudos de Koury97 compreendidos
na mesma temática. Os medos e medos corriqueiros aqui são entendidos como eixos
centrais de uma análise que permite identificar as relações de estranhamento e
pertencimento, ordem e desordem, normalidade e desvio que conformam uma sociedade
específica.
Barbosa em seguida trata de delinear os conceitos de coragem, em oposição ao
medo, do social e de sofrimento social utilizado por Koury ao longo de seus trabalhos
para caracterizar a sociedade atual.
Koury coloca a questão do medo e da desconfiança generalizados
como elementos fundamentais de uma sociedade atomizada, na qual
cada indivíduo se situa em interações de impessoalidade. Por outro
lado, o autor frisa que a relação indivíduo-sociedade não se pauta em
determinismos, de modo que a cultura objetiva é constantemente
reconfigurada e ressignificada pelos indivíduos e suas trocas
simbólicas (p. 92).
Também define a amizade enquanto relação intersubjetiva caracterizada pela
interdependência, pelo compartilhamento de segredos e pelo seu caráter confessional.
Na contemporaneidade, tal relação também é abalada pelos processos de privatização e
individualismo acentuados.
Neste contexto, como explica Barbosa, Koury se dispõe a identificar as
dinâmicas cotidianas de formação do Nós coletivo em diferentes grupos relacionais,
fenômeno pautado por diversas práticas que giram em torno do sentimento de confiança
e, por consequência, também de medo.
O seu objetivo é o de compreender a dinâmica da sociabilidade na
cidade, ou seja, o imaginário do homem comum, seus segredos,
alianças, estigmas, projetos, estranhamentos, e toda uma série de
fatores sociais que revelam o ethos de uma cultura e sociedade em
processo acelerado de mudanças na configuração urbana e societal (p.
96).
Em seguida, Barbosa ilustra as obras que compõem o segmento dos medos e dos
corriqueiros, salientando a sua pertinência a um projeto de modernização que esvazia o
público em favor do privado e enfraquece as redes de solidariedade. Aqui, o medo é tido
como catalizador de um processo de atomização da sociedade, cada vez mais contida na
segurança do lar privado, enquanto o que o autor chama de indústria do medo, cresce e
representa cerca de 10% do PIB nacional.
Em sua leitura, Barbosa chega à conclusão de que
A cidade aparece como comunidade paradoxal, na qual os indivíduos
gozam, por um lado, de maior liberdade, na criação de si próprios ao

97
As obras de Koury são as seguintes: (1) Medo, vida cotidiana e sociabilidade. Política & Trabalho –
Revista de Ciências Sociais, nº 18, p. 09-21, 2002; (2) Medos Corriqueiros e Sociabilidade. João Pessoa:
Edições GREM / Ed. UFPB, 2005; (3) Pertencimento, medos corriqueiros e redes de solidariedade.
Sociologias, v. 12, nº 25, p. 286-311, 2010; (4) Medos Corriqueiros urbanos e mídia: o imaginário sobre
juventude e violência no Brasil atual. Revista Sociedade e Estado, v. 26, n. 3, p. 471-485, 2011.

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se experimentarem e vivenciarem enquanto pessoas envolvidas em


laços de pertença e em projetos e narrativas de vida no âmbito de
modos e estilos de vida diversos e contraditórios. Por outro lado, se
sentem solitários e confusos no esvaziamento progressivo das redes
pessoalizadas de existência, onde retiravam sua segurança ontológica.
(p. 99).

Por fim, Barbosa, no item “Solidariedade e conflito em cenários tensos no


urbano contemporâneo brasileiro” expõe o projeto de “Análise de um bairro
considerado violento na cidade de João Pessoa, PB – Solidariedade e conflito nos
processos de interação cotidiana sob intensa pessoalidade”, em que analisa as práticas
de sociabilidade em um contexto de maior impessoalidade no espaço público. A
investigação é feita sob um escopo histórico de identificação do crescimento e das
migrações ocorridas em direção ao bairro, contribuindo também para o enfraquecimento
das relações pessoalizadas.
O livro Da subjetividade às emoções, assim, fornece elementos importantes aos
estudiosos, pesquisadores, estudantes e ao publico em geral sobre o processo de
formação do campo para a análise das emoções no interior da antropologia e sociologia
no Brasil. O que torna o livro imprescindível na estante daqueles interessados na teoria
e na pesquisa antropológica e sociológica na contemporaneidade brasileira e mundial.

Ana B. R. de Oliveira
Diego A. Novaes

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KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro.Beleza e melancolia em dois tempos de um cotidiano de uma dia
de feira. Sociabilidades Urbanas: Revista de Antropologia e Sociologia, v1, n3, p. 190-193, novembro
de 2017. ISSN 2526-4702.
RESENHA
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

Beleza e melancolia em dois tempos de um cotidiano de um dia de feira


Beauty and melancholy in two moments of a daily life of a fair day

COURA, Roberto. A feira de Campina Grande -1978 e Cores da Feira -2014.


Publicação comemorativa do sesquicentenário de Campina Grande. Campina Grande:
Secretaria de Planejamento de Campina Grande, 2014.

Em 1978, o fotógrafo Roberto Coura organizou uma Mostra Fotográfica sob o


tema A Feira de Campina Grande, Paraíba, Brasil. Essa Mostra ganhou em 2007 o
formato de livro do qual tive a honra de ser um dos apresentadores. O nome do livro:
COURA, Roberto. A Feira de Campina Grande. Campina Grande: Editora
Universitária UFCG, 2007.
Esta primeira Mostra disponibilizava, aos olhos dos visitantes, um dia de feira,
em fotografias em preto e branco, com muitas das fotografias nela contida premiadas
nacional e internacionalmente. O formato livro instigava o olhar do leitor atento a
perscrutar cada foto e o conjunto fotográfico que se abria em suas mãos sobre a magia
de um dia de feira nas lentes preto e branco do fotógrafo. Inicio a apresentação da
Mostra fotográfica em preto e branco em seu formato livro, em 2007, com as seguintes
palavras:
Entre as diversas possibilidades novas trazidas pela fotografia se
encontra, sem dúvida, a do encantamento. O cotidiano parece ser
repassado à eternidade através de flashes, de recortes através das
lentes do fotógrafo, deixando um registro misto. Uma espécie de
anotação de algo que aconteceu, mas também de um olhar que busca
captar o comum, mas que revela flagrantes que o ultrapassam e dão
um novo sentido estético, artístico e social ao que não se vê fora das
fotografias, porque, talvez, tão presente nas relações apressadas que a
cotidianidade permite e expande a quem a freqüenta, encantando com
o seu produto final revelado o olhar que observa. É nesse campo de
possibilidades que o encantamento permite que o conjunto fotográfico
sobre a Feira de Campina Grande pelas lentes de Roberto Coura entra
em cena. Nele a Feira de Campina Grande é enaltecida e revelada em
todo o seu esplendor cotidiano e realçada pelo magnífico jogo de
sombras e matizes de cinza que a fotografia em preto e branco
permite. A feira passa a ser fragmentada pelo olhar de Coura em
magníficas representações de tipos humanos que dão colorido ao
movimento do lugar: passantes, feirantes, clientes, vendedores,
carregadores, barbeiros, prostitutas, pedintes, crianças, homens e
mulheres, velhos e moços em atividade, em posição de espera, no
posto de observantes em devaneio ao ato da paisagem ou da cena em
torno, ou em pose de descanso e de entrega.
Eis que, em 2014, Roberto Coura retorna a Mostra Fotográfica sobre a Feira de
Campina Grande com um novo e instigante ensaio sobre as Cores da Feira, além de

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brindar aos visitantes com uma fotografia colorida que enaltece a feira de Campina
Grande em sua atual beleza e decadência. Com um olhar fotográfico sempre atento ao
cotidiano plural e fragmentado de um dia de feira abre ao observador um caminho
comparativo de duas épocas da feira por ele retratada: a de 1978, em preto e branco, e a
de 2014, em cores. E mais: brinda ao publico leitor e amante da fotografia artístico-
documental de um dia de feira, em dois tempos, com um álbum fotográfico composto
por dois livros, A Feira de Campina Grande, com os registros de 1978 em preto e
branco, e as Cores da Feira, com os registros de 2013-2014 em fotos coloridas, em uma
publicação comemorativa do sesquicentenário do município de Campina Grande.
Os olhos do fotógrafo Coura, nos dois registros fotográficos disponibilizados aos
visitantes da nova Mostra Comparativa de Dois Tempos da Feira de Campina Grande,
e a seguir ao leitor dos dois ensaios fotográficos em formato de dois livros emoldurados
e ricamente apresentados como dois volumes em um único suporte, levam ao leitor não
apenas aos dois tempos de uma feira registrada fotograficamente, mas a momentos de
comparação de dois movimentos aparentemente iguais, na mesma objetivação e busca
de enquadramento de cenas e locais da feira registrados na primeira Mostra e revistos na
segunda captura, agora colorida. Leva ao leitor a duas leituras e, ao mesmo tempo, a
fundi-las em uma única sensação, a melancólica decadência, já anunciada na pulsante
feira de 1978, e aprofundada, de uma forma magnificamente colorida, nos registros da
mesma feira quase quarenta anos depois.
O talento artístico e a sensibilidade ao social do olhar de Roberto Coura instigam
o visitante, e agora leitor-observador das duas Mostras eternizadas em livro, a perscrutar
as fisionomias, as socialidades e sociabilidades registradas, como máscaras de
temporalidades vividas em dois momentos da feira, e expostos ao seu observar em
impressionantes capturas preto e branco e coloridas que impregnam os corpos de
homens e mulheres com suas figuras, tipos, expressões, rugas, modos, posturas,
comportamentos, formas de ação e organização. Registra a decadência e as vidas que a
realiza, e faz um inventário sobre as possibilidades do humano, que se impõe enquanto
personagem de tempos que parecem anunciar um fim, um triste final, não só de mais um
dia de feira, mas o fim da feira na cidade; mas que, ao mesmo tempo, presentifica o
viver sem se importar com esse amanhã que se anuncia melancolicamente e
magistralmente registrado pelas lentes do fotógrafo Roberto Coura.
Os homens e mulheres, crianças, jovens, velhos, vendedores, trabalhadores,
compradores, visitantes se colocam à câmera de Coura sempre com a docilidade ou,
sucessivamente, com a firmeza do olhar, e continuamente na imponência de sua
presença no mundo, no seu lugar de comércio e consumo popular, que é o espaço da
feira, onde se movimentam e trafegam com naturalidade. Ou, como me expressei na
apresentação do livro de 2007, a feira trás em seu registro melancólico de sua
decadência a sua marca, nesses frequentadores plurais que a perfomam como um
Ponto de encontro e desencontro, de venda e compra, de oferenda e
recebimento, de oferta e procura e de treinamento e socialidade.
As lentes de Coura registram essa imponência de um dia de feira, em sua
plenitude. A feira é documentada pela sociabilidade que a informa e as formas de
reciprocidade produzidas dos e pelos tipos humanos nela presentes, seja nos matizes do
cinza que a foto preto e branco adentra, seja no explodir em cores, das verduras, das
frutas, das carnes expostas nas feiras, e nas técnicas artesanais de pequenos produtores e
seus produtos hortigranjeiros, ou de artesãos do barro, da palha, da música, ou das
profissões abertas de personagens diversos que a frequentam, como o barbeiro, o
vendedor de ervas medicinais, ou os vendedores de ervas para magia religiosa, ou dos
corpos que se oferecem na arte de mendigar, na prostituição, nas artes e nas técnicas

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corporais maussianamente incrustadas nos diversos espaços sociais que marcam o lugar
da feira, nas marcas do tempo e dos hábitos, das culturas emotivas e diversas
moralidades que os caracterizam em um ambiente social em duas temporalidades.
Ambas anunciando o lento caminhar da decadência e, melancolicamente o seu início de
fim, nas fotos de 1978 em preto e branco, ou escancarando o fim, nas pulsantes
fotografias coloridas de 2014.
Esse fim, em 2014, é representado também pela diminuição do espaço físico da
feira, e pela diminuição dos alimentos provindos de pequenos artesões e pequenos
agricultores e a entrada triunfante de produtos industrializados e importados do Paraguai
e da China, que vão de CDs a eletrodomésticos. Nada escapa ao olhar fotográfico de
Roberto Coura e a sua sensibilidade para o social e o culturalmente expresso. O
fotógrafo inquire a realidade em que se dispõe a fotografar, e nessa inquirição quebra o
cotidiano com a sua câmera. Com o seu olhar fotográfico invade o mundo do comum
onde tudo parece ser visto e naturalizado e tonifica o espaço pela fragmentação do
lugar, dando ambivalência ao olhar que posa, propositadamente ou de forma
espontânea, e ao olhar que registra e documenta.
Novos personagens que se colocam de forma espontânea ou em poses para as
lentes de Coura, e antigos personagens, já registrados em 1978 e que se reapresentam ao
olhar fotográfico quase quarenta anos depois: jovens que se tornaram velhos, crianças
que se tornaram adultos e assumiram o lugar dos pais nos negócios da feira, vão
assumindo ao olhar do leitor-observador movimentos comparativos de temporalidades
que permanecem aparentemente iguais, mas que constroem histórias e estórias
particulares no repassar da vida em momentos temporal e historicamente distintos.
Um e outro, olhar fotográfico e olhar dos que se deixam fotografar, e um terceiro
olhar, o do leitor-observador se tornam, deste modo, ambivalentes e ambíguos na
fotografia revelada. O olhar que observa é remetido ao encantamento que a
ambivalência e a ambiguidade fotográfica permite, não se sabendo qual é real no
instantâneo produzido pela interação entre fotógrafo e fotografado, através da máquina
de fotografia, e se interrogando sobre os limites temporais demarcados e anunciados
como princípios de fim que, melancolicamente, Coura revela. E os apresenta na sua
estupenda profusão de matizes de cinza ou na explosão de cores, nos dois tempos da
fotografia de um dia de feira, na cidade de Campina Grande.
Homens, mulheres, velhos, novos e crianças são flagrados em ação, que os
imobilizam em instantâneos na interface da cena em que se situam no momento do
flagrante, dispondo aos olhos da máquina, sob o olhar de Roberto Coura, os espaços, os
tempos e os ritmos da feira, objeto da produção e encantamento fotográfico disposto nos
ensaios: a diversidade de produtos: verduras, legumes, cereais, carnes, utensílios
domésticos, cestarias, cerâmicas, vestuário, flores, alimentação, fumos, serviços, entre
tantos mais; a distribuição de barracas, as formas de ocupação e uso de cada uma no
jogo entre passantes, vendedores e possíveis compradores; o acompanhar do ritmo e das
temporalidades da feira, desde a instalação até o final do dia com flashes memoráveis
dos momentos dispostos e dos movimentos ritmados propensos a cada horário e
atividade, são apresentados aos olhos que vêem na sua organização tumultuada do agito
local: de um lugar de compra e venda e, ao mesmo tempo, de troca de afetos, de
conversas, de procuras e de encontros e desencontros.
Os ensaios fotográficos sobre a Feira de Campina Grande de Roberto Coura,
portanto, mais do que registros documentais sobre o processo social de uma feira
famosa na região provoca e estimula o observador a mergulhar com ele no universo
multifacetado captado na realidade cotidiana de um centro popular de abastecimento e

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compras. Os decompõe na fragmentação deste universo em flagrantes e instantâneos de


uma realidade fotográfica, e nos dois tempos da temporalidade registrada, 1978 e 2014.
Os recompõe, por fim, como ensaios de olhar e os disponibiliza aos olhares
públicos na viagem inaugurada e que requer novas transformações, redefinições e
montagens pelos olhos que nele e com ele navegarão, encantando o leitor-observador e
ao mesmo tempo o colocando em um tempo melancólico de finalização, de um evento
que tenta se modificar e se moldar aos novos tempos no mesmo momento que parece se
entregar a um final, de um tempo que o diagnostica como já passado na
contemporaneidade de uma cidade que se quer „moderna‟. O mundo de imagens
registrado nestes dois livros-ensaios de Coura, assim, traz ao leitor-observador um
mundo de sensações de um fotógrafo engajado com a vida e com a arte. Um
aprendizado para os olhos atentos da arte de fotografar de um fotógrafo amante do que
faz, e um alerta melancólico e belo no registro do fim de um lugar de sociabilidade e
comércio campinense.

Mauro Guilherme Pinheiro Koury (Coordenador do GREI Grupo Interdisciplinar de


Estudos em Imagens/PPGA/UFPB)

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SOBRE OS AUTORES
Ailton Gualande Junior
Mestrando no PPGSA/IFCS/UFRJ e membro do Grupo de Pesquisa Cidades, Espaços,
Públicos e Periferias CEP28/UFF. E-Mail: jf@id.uff.br.
Ana Beatriz Ramos de Oliveira
Bolsista PIBIC-GREM/UFPB. Graduanda em História na UFPB. E-Mail:
bia3ramos@mail.com.
Ana Luiza Carvalho da Rocha
Professora Doutorada da Universidade FEEVALE. Participa do Grupo de Pesquisa
Metropolização de Desenvolvimento Regional/FEEVALE/RS (Novo Hamburgo), do
Núcleo de Antropologia Visual (Navisual; do Núcleo de Pesquisa em Culturas
Contemporâneas (NUPECS), e do Banco de Imagens e Efeitos
Visuais/BIEV/Laboratório de Antropologia Social/ Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas/IFCH/UFRGS (Porto Alegre). E-Mail: miriabilis@gmail.com.
Cornelia Eckert
Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS.
É pesquisadora CNPq. Coordena, juntamente com Ana Luiza Carvalho da Rocha, o
projeto Banco de Imagens e Efeitos Visuais, (BIEV, com sede no ILEA, UFRGS),
coordena o Núcleo de Antropologia Visual (NAVISUAL) e participa do Núcleo de
Pesquisa em Estudos Contemporâneos (NUPECS), PPGAS, UFRGS. E-Mail:
chicaeckert@gmail.com.
Diego Amorim Novaes
Bolsista PIBIC-GREM/UFPB. Graduando em História na UFPB. E-Mail:
diegoanovaes@gmail.com.
Jussara Freire
Professora do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense.
Professora permanente do Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Regional,
Ambiente e Políticas Públicas – PPGDAP /UFF. Professora colaboradora do Programa
de Pós Graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte-Fluminense
Darcy Ribeiro (PPGPS/UENF). Membro do Coletivo de Estudos sobre violência e
sociabilidade (CEVIS). Coordenadora do Grupo de Pesquisa Cidades, Espaços Públicos
e Periferias (CEP28). E-Mail: jf@id.uff.br.
Jack Katz
Professor Doutor junto ao Departamento de Sociologia da Universidade da Califórnia –
Los Angeles USA. E-Mail: JackKatz@soc.ucla.edu.
Maria Patrícia Lopes Goldfarb
Professora Doutora em Sociologia. Professora Associada do Departamento de Ciências
Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia PPGA /UFPB. Líder do
GEC - Grupo de Estudos Culturais do CNPq. E-Mail: patriciagoldfarb@yahoo.com.br.
Marianna de Queiroz Araújo

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Mestra pelo Programa de Pós Graduação em Antropologia da Universidade Federal da


Paraíba – PPGA/UFPB. E-Mail: mariannaqueirozaraujo@gmail.com.
Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade
Federal da Paraíba. Coordenador do GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia e
Sociologia das Emoções. Editor da RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da
Emoção. Editor da Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia.
Editor da Série de Livros Cadernos do GREM, na mesma Universidade. E-Mail:
maurokoury@gmail.com.
Michelle Gomes de Carvalho Tantow
Graduada no curso de Ciências Sociais – UFF e membro do Grupo de Pesquisa Cidades,
Espaços, Públicos e Periferias CEP28/UFF. E-Mail: jf@id.uff.br..
Rafael França Gonçalves dos Santos
Doutorando em história pela UFRRJ. Mestre em Ciência Política pela UENF.
Licenciando em História pela UGB-FERP, 2008. E-Mail: Rafael.fgs@hotmail.com.
Raoni Borges Barbosa
Doutorando pelo PPGA da Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisador do
GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções, na
Universidade Federal da Paraíba. Editor da Sociabilidades Urbanas – Revista de
Antropologia e Sociologia. Editor assistente da RBSE – Revista Brasileira de
Sociologia da Emoção. Editor assistente da Série de Livros Cadernos do GREM. E-
Mail: raoniborgesb@gmail.com.
Robert Ezra Park
Nascido em 1864 e falecido em 1944, Park destacou-se como um dos clássicos da
segunda geração da Escola de Chicago. Seus estudos em Sociologia e Antropologia
Urbana ficaram famosos por desenvolver conceitos como ordem moral, região moral e
ecologia humana, assim como por abordar a questão urbana e o urbanismo a partir da
cidade de Chicago e de jornais da época em uma perspectiva naturalista das micro-
interações humanas.
Tatiane Cardoso Tavares
Bacharel em Geografia pela UFF. Graduanda em Licenciatura em Geografia no IFF. E-
Mail: tatianecardoso@live.com.
Tayná Santos Conceição
Graduanda em Ciências Sociais (UFF), bolsista PIBIC/UFF e membro do Grupo de
Pesquisa Cidades, Espaços Públicos e Periferias (CEP28). E-Mail:
taynasantosb2@gmail.com.
Vanessa Karla Mota de S. Lima
Mestre em Antropologia pelo PPGA/CCHLA/UFPB. Pesquisadora do GEC - Grupo de
Estudos Culturais do CNPq. E-Mail: vkmota@hotmail.com.

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