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Urbanas
Ano I
Número 3
Novembro de 2017
ISSN 2526-4702
2
Conselho Editorial
Cláudia Turra Magni (UFPEL); Cornelia Eckert (UFRGS); Gabriel D. Noel (Argentina
- UNSAM); João Martinho Braga de Mendonça (UFPB); Jussara Freire (UFF); Lisabete
Coradini (UFRN); Luís Roberto Cardoso de Oliveira (UNB); Luiz Antonio Machado da
Silva (UERJ); Luiz Gustavo P. S. Correia (UFS); Maria Cláudia Pereira Coelho
(UERJ); Maria Cristina Rocha Barreto (UERN); Pedro Lisdero (Argentina -
CONICET); Roberta Bivar Carneiro Campos (UFPE); Rogério de Souza Medeiros
(UFPB); Simone Magalhães Brito (UFPB).
EDITORES
Raoni Borges Barbosa (UFPB/GREM)
Mauro Guilherme Pinheiro Koury (UFPB/GREM)
Expediente
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/
Sociabilidades Urbanas ISSN 2526-4702
Editores: Raoni Borges Barbosa e Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Endereço / Address:
Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia
[Aos cuidados de Raoni Borges Barbosa]
GREM - Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções
Departamento de Ciências Sociais/CCHLA/UFPB CCHLA / UFPB – Bloco V –
Campus I – Cidade Universitária CEP 58 051-970 · João Pessoa · PB · Brasil
Ou, preferencialmente, através do e-mail: sociabilidadesurbanas@cchla.ufpb.br
Or, preferentially, by e-mail: sociabilidadesurbanas@cchla.ufpb.br
ISSN 2526-4702
BC-UFPB
CDU 301
CDU 572
EDITORES
Raoni Borges Barbosa (UFPB/GREM)
Mauro Guilherme Pinheiro Koury (UFPB/GREM)
Toda correspondência referente à publicação de artigos deverá ser enviada para o e-mail
da Sociabilidades Urbanas - Revista de Antropologia e Sociologia:
sociabilidadesurbanas@cchla.ufpb.br.
Referências
1. As referências bibliográficas deverão constituir uma lista única no final do artigo, em
ordem alfabética.
2. Deverão obedecer aos seguintes modelos:
a) Tratando-se de livro:
sobrenome do autor (em letra maiúscula), seguido do nome;
título da obra (em itálico):
subtítulo, (também em itálico);
nº da edição (apenas a partir da 2ª edição);
local de publicação, seguido de dois pontos (:);
nome da editora;
data de publicação.
Quadros e Mapas
1. Quadros, mapas, tabelas, etc. deverão ser enviados em arquivos separados,
com indicações claras, ao longo no texto, dos locais onde devem ser inseridos.
2. As fotografias deverão vir também em arquivos separados e no formato jpg ou
jpeg com resolução de, pelo menos, 100 dpi.
SUMÁRIO
ARTIGOS ........................................................................................................................................ 13
O que caracteriza notícias sobre o crime? ...................................................................................... 15
Aventuras antropológicas nas cidades brasileiras: na trilha das trajetórias acadêmicas das
antropólogas “urbanas” Eunice Durham e Ruth Cardoso ............................................................. 39
Três tradições antropológicas de análise cultural: uma abordagem crítica sobre as perspectivas
do fazer etnográfico ........................................................................................................................ 57
Os Grupos de Pesquisa na UFPB Campus I, 1992-2012: Uma análise partir d projeto Balanço
comparativo da produção da UFPB campus I sobre a cidade de João Pessoa-PB......................... 78
Vulnerabilidades da experiência citadina e acesso aos espaços públicos urbanos em duas
cidades médias: os métiers do público em Campos dos Goytacazes e Macaé (RJ) ......................... 90
A migração humana e o homem marginal ..................................................................................... 114
A Família Lundgren e a fundação da cidade de Rio Tinto: Do medo ao acirramento dos
conflitos fundiários........................................................................................................................ 124
Amizades e invenções de si: As experiências trans em Campos dos Goytacazes ........................... 136
Saindo do armário: a microterritorialidade homossexual em Campos dos Goytacazes/RJ .......... 150
Peregrinação Islâmica (hajj): Diálogos antropológicos sobre práticas “nativas” para
compreensão da comunidade religiosa muçulmana ...................................................................... 162
RESENHAS ................................................................................................................................... 175
O olhar teórico-metodológico do GREM sobre a cultura emotiva da cidade de João Pessoa:
Uma resenha ................................................................................................................................. 178
A Antropologia e a Sociologia das Emoções no Brasil: uma resenha ........................................... 182
Beleza e melancolia em dois tempos de um cotidiano de um dia de feira ..................................... 190
SOBRE OS AUTORES .................................................................................................................. 196
ARTIGOS
KATZ, Jack. O que caracteriza „notícias‟ sobre o crime? Tradução de Raoni Borges Barbosa.
Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v.1, n.3, p. 15-37, novembro de 2017.
ISSN 2526-4702.
Tradução
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/
Jack Katz
Tradução de Raoni Borges Barbosa
Abstract: In this article, Katz problematizes a study of newspaper news on crime news,
questioning how the average reader's daily interest in news about crime is constructed. In
this sense, Katz presents a classification of four types of crime news that impact morally on
the moral dilemmas of the urban population to which it is directed: white collar crimes,
crimes against collective moral integrity, crimes that threaten the personal competence and
sensibilities of the average man and crimes that seek to moralize pre-existing political
conflicts. Keywords: press, crime news, moral boundaries, everyday moral dilemmas,
urban life
1
Este artigo foi gentilmente cedido para publicação na Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia
e Sociologia pelo Prof. Dr. Jack Katz. O artigo foi originalmente publicado na Revista Media, Culture and
Society (SAGE, London, Beverly Hills, Newbury Park and New Delhi), Vol. 9 (1987), 47-75.
2
Diferentemente dos exemplos tradicionais de indução analítica, busquei definir as condições causais
necessárias, mas não suficientes. O fato de que apresentei quatro caminhos alternativos para o elemento
noticiável da narrativa midiática não é inconsistente com essa metodologia; percebi como, a depender do
objetivo da pesquisa, os quatro caminhos podem ser sintetizados em três, dois ou um. A vantagem
principal da indução analítica estava em conduzir a análise para um nível mais profundo do que poderia
ser obtido em fixar, de partida, as categorias de codificação e de aplicá-las para a produção de resultados
quantitativos. Sobre as implicações diferenciais da indução analítica em relação às questões tradicionais
da metodologia em pesquisa social, ver Katz (1982).
razão do que se conta sobre eles, mas porque os crimes podem narrar especialmente
algo sobre outra coisa de interesse dos leitores.
Apesar da rica variedade de crimes nas notícias, descobrimos, eventualmente,
que um pequeno número de temas poderia abarcar todo o conjunto de dados da
pesquisa. De forma a ser transformado em elemento noticiável, concluímos, os crimes
devem ser retratados em uma ou mais das quatro formas já mencionadas. Cada uma
parece apontar para um questionamento da fronteira moral recorrentemente definida
pelos adultos na vida moderna cotidiana.
Competência pessoal e sensibilidade
Nesta categoria situamos o mais numeroso tipo singular de histórias sobre
crimes: narrativas de crimes engenhosos, viciosos e audaciosos - de engodos que
ludibriam o escrutínio aguçado de inspetores diligentemente preparados; dos mais
sangrentos assassinos; de grandes roubos na mais luminosa luz do dia. Tais histórias
instruem os leitores sobre a nature e os limites da competência e sensibilidade
individual. Em razão das implicações gerais das notícias que eles geram, trapaceiros
talentosos e matadores frios tem usualmente provocado um interesse público que beira à
afecção. Em uma tradição que se estende pelo menos até o tempo de Durkheim, crimes
e criminosos tem sido premiados pelo que eles dizem sobre a ingenuidade e a audácia
que leitores podem razoavelmente esperar, nem tanto dos criminosos, mas dos seus
colegas civis e deles próprios.
Uma subcategoria continha narrativas dramatizando as exceções aos modelos
demográficos presumidos de competência e de sensibilidade moral. Relatos de roubos
armados por parte de crianças (em 1982 houve um caso altamente publicizado em
Manhattan) ou por parte do homossexual (os fatos sobre o quais o filme A Dog Day’s
Afternoon se baseou), por parte de mulheres, e por parte de idosos desafiam os nossos
estereótipos não somente sobre o crime, mas sobre as capacidades associadas com
aqueles status geracionais e de gênero. Uma história sobre um ladrão de banco de 10
anos de idade apresenta uma surpreendente intencionalidade ou seriedade de propósito e
carrega implicações que atingem não apenas jovens envolvidos com crimes, mas
também atos agressivos performatizados entre crianças, assim como às exigências das
crianças em dispor de privilégios de adultos. Se uma criança de dez anos de idade é
vista como um potencial ladrão de banco, pode parecer ingênuo insistir em que a
criança vá para a cama às 21h ou que coma os seus cereais.
A jurisdição federal criminal EDNY, responsável pelo Aeroporto Kennedy,
produz regularmente narrativas que ilustram a competência em desafiar a ingenuidade.
Negociantes de contrabando, especialmente aqueles que devem atravessar seus bens
pelos pontos de inspeção, contribuem com uma série sem fim de exemplos
demonstrando as possibilidades da ingenuidade. Os leitores de notícias de Long Island e
da cidade de Nova York podem ler em um dia sobre pedras preciosas ou sobre
componentes de máquinas de alta tecnologia contrabandeadas em tubos de creme
dental, enquanto que no dia seguinte podem ler sobre quantidades surpreendentemente
grandes de heroína escondidas no interior de vaginas e de ânus.
Os relatos de notícias de crime ilustrando as dimensões da competência humana
e da sensibilidade moral incluem não apenas aqueles que retratam criminosos como
excepcionalmente insensíveis ou excepcionalmente audazes, mas também aqueles que
indicam os limites da insensibilidade criminosa. Ilustrativo deste último caso foi uma
história do NY Daily News (15 de Junho de 1977) sobre um jovem ex-presidiário de 21
anos que pulou do décimo andar do prédio da Corte Criminal do Brooklyn momentos
depois de ser sentenciado pelo crime de roubo armado. Ao perceber que o jovem “tinha
estado em problemas com a Lei desde os 15 anos de idade”, a narrativa enfatizou que
mesmo criminosos barra pesada aparentemente podem não ser totalmente insensíveis à
dor social. Muito embora este princípio particular da filosofia social jornalística possa
ser não usual, constitui uma rotina para as notícias sobre crimes implicar algum tipo de
lição sobre o estado contemporâneo do caráter moral. Com efeito, apesar da sua
reputação como sensacionalista, o Daily News não relata rotineiramente, de fato,
suicídios ou roubos armados. Para fazer-se noticiável, um tema provocativo sobre a
competência moral pessoal será pitorescamente construído no interior da narrativa.
Integridade Coletiva
Um segundo tipo de histórias jornalísticas sobre crime endereça a integridade
moral da comunidade. Grandes roubos de bagagem no Aeroporto Kennedy e roubos na
Companhia Grumman, o maior empregador privado de „Long Island‟, serão noticiados
belo Newsday e pelo New York Times, enquanto que „subtrações‟ igualmente
significativas de estabelecimentos mentos centrais para a identidade coletiva da região
serão ignorados pela imprensa local. Virtualmente todos os roubos considerados
noticiáveis são explorados como eventos ameaçadores de uma ou outra fundação da
identidade coletiva. Com efeito, a subtração ilegal de pequenos mexilhões por parte de
pescadores comerciantes em Long Island se tornaria noticiável em razão do fato de
„piratas‟ terem sido retratados como tão cruéis a ponto de roubar „bebês‟ mexilhões,
mas também porque estas atividades seriam ditas como ameaças “aos arduamente
produzidos recursos da Great South Bay”.
O sequestro de produtos embarcados será mais adequado ao exercício de
produção de notícias se os mesmos, por acaso, são encabeçados por instituições
classificadas integrantes do caráter moral da comunidade, como, por exemplo, uma
igreja proeminente ou alguma escola pública do distrito. Perseguições de estudantes por
fumar não são geralmente noticiáveis, mas se tornam no caso de os estudantes
pertencerem a Academia de Marinha Mercante de Long Island. Tais histórias contem
uma qualidade melodramática não pronunciada: elas implicitamente tocam as ideias
populares sobre a vulnerabilidade de identidade coletiva, sugerindo que o crime ameaça
romper a sociedade em alguma parte essencial ou que o mesmo simboliza a presença, na
comunidade, de forças tão malevolentes como que para ameaçar a fábrica social
metafórica.
Na esfera nacional, a contrafacção constitui um candidato venerável para
notícias sobre crime, elencado como um perigo para as instituições comunitárias. A
contrafacção tem a distinção simbólica de representar um desafio à integridade da
economia como um todo. Sub voce ela grita o medo: “Então não pudermos confiar em
nosso dinheiro! Como o comércio poderia continuar?”
As ameaças à integridade coletiva também são representadas por crimes que
ocorrem em centros contemporâneos de bondade, lugares simbolizando a concepção
americana de vida boa: pequenos roubos de coleções de pratos em igrejas, assaltos na
Disneylândia, assassinatos no Bob‟s Big Boy ou McDonald. Estes relatos levantam o
espectro de que “o centro não suporta”, que nenhum lugar é seguramente sacro. Um
conjunto relacionado de histórias denota lugares e pessoas confiadas a serem saudáveis
para a alma e para o corpo, e descreve eventos que afetam a fé que dirige o público para
eles. Exemplos incluem narrativas de tortura ou de abuso sexual ocorrendo em centros
de cuidado de crianças ou durante o período de anestesia em consultórios de dentistas.
A identidade pessoal da vítima também pode fazer do crime um desafio
simbólico à identidade coletiva. Com efeito, o assassinato, em via pública, em 1982, da
sobrinha do ex-senador Ribicoff, em Venice (Los Angeles), gerou uma enorme
publicidade. Os crimes tornam-se noticiáveis quando vitimizam a elite, tal como foi o
caso em uma história do Newsday sobre o roubo de vários cruzeiros de cabine de 20 a
40 pés, mas também quando eles meramente encenam a penumbra carismática das
elites. Em Los Angeles, pode-se ler sobre assaltos que ocorreram exatamente na
vizinhança, não propriamente na casa, de uma estrela famosa do cinema; em
Washington, pode-se ler sobre tráfico de drogas às sombras do Capitólio; através do
país pode-se ler sobre criminalidade banal por parte de parentes distantes do presidente.
As notícias sobre crimes deste tipo buscam as pessoas e os lugares que podem vir a ser
considerados como centrais para a identidade coletiva. De fato, notícias sobre crimes
provem o sociólogo com um mapa acessível e detalhado para se perseguir a geografia
institucional do sagrado na sociedade moderna.
Ao reconhecer implicitamente a importância para o público desta forma de
crime, alguns estatutos federais diretamente definem ataques a certos símbolos de
caráter nacional como ações criminosas. Os jornais de New York têm feito a cobertura
de perseguições criminais de indivíduos patéticos que, de maneira óbvia e amadora o
suficiente para não ser realmente ameaçadora, tem enviado notas ameaçadoras ao
presidente; assim como o caso de um jovem aparentemente bem apessoado que de
alguma forma logrou encontrar e disparar contra uma Águia Americana em Long
Island.
O grande número de relatos sobre o crime organizado também podem ser
enquadrados na categoria de crimes retratados como ameaças ao caráter da comunidade.
O crime organizado, considerado como uma emanação do „submundo‟, tem se tornado
um imaginário poderoso e versátil para o mal nos Estados Unidos. Organizado
secretamente, de compleição escura („morena‟), sempre ameaçando manchar ou
contaminar as boas pessoas, o crime organizado é uma metáfora contemporânea
estruturada ao longo de imagens antigas de moléstias infecciosas e de perigo satânico.
Uma vez rotulado como um „membro‟ do crime organizado, a desgraça individual (um
acidente automobilístico, por exemplo) pode gerar relatos jornalísticos contendo
nenhuma referência em relação ao crime ou à vítima.
De modo semelhante, narrativas podem se tornar noticiáveis se documentam de
outra forma a existência, - ainda que na total ausência de alegações sobre agressores, -
de forças vastas, incontroladas e anti-sociais. Com efeito, lemos periodicamente sobre
descobertas de depósitos de armas, apreensões de grandes armazéns de narcóticos, e
feitos de que informações relevantes para a segurança nacional tem sido acessadas por
algum tipo de esperto inocente habilidoso o bastante na manipulação de computadores.
Conflitos políticos moralizados
A terceira categoria de notícias sobre crimes que abarcam mensagens mais
gerais sobre o caráter moral é explicada pelos relatos de ofensivas armadas por parte de
organizações locais simpáticas à PLO (Palestine Liberation Organization) ou ao IRA
(Irish Republican Army); de roubos a bancos por membros do Black Liberation Army; e
de exigências de extorsão por parte de grupos de independência de Porto Rico. As
platéias para tais histórias são constituídas como partidos interessados antes da
ocorrência do crime. Longe de o efeito surpresa ser uma condição essencial para o
interesse do leitor, muitos dos mais ávidos leitores serão aqueles que já estão
predispostos à oposição aos grupos criminosos. Para estes leitores, os agressores podem
ser apontados não somente como politicamente indesejáveis ou substancialmente
equivocados, mas também como situados além das fronteiras das sensibilidades morais
respeitáveis, de modo que não merecem ser ouvidos em suas afirmações políticas: „ Eles
são realmente (basicamente, essencialmente, depois de todas as amenidades do debate
serem ditas e feitas) pessoas más, nada além de criminosos‟. O mais óbvio desta
categoria de notícias remete ao fato de que o crime se torna noticiável não como uma
fonte de informação sobre o crime, mas como uma mensagem moralmente carregada
sobre outras questões de interesse para os leitores. Estes relatos sobre crimes preenchem
conflitos políticos com dimensões de caráter moral.
A relação entre o conflito político e o potencial noticiável do crime é complexa.
Conflitos políticos intensos crescem ao nível do noticiável, crimes que de outra maneira
não seriam classificados como de interesse geral. Por outro lado, um crime audacioso
faz noticiável um conflito político que vinham sendo ignorados pela mídia e pelo
público mais geral. Um exemplo dos anos 1970 foi o sequestro de um avião sobre Long
Island por nacionalistas croatas, assim como a morte relacionada de um policial que se
esforçava em desarmar uma bomba. Antes de ler sobre esse crime, muitos nova-
iorquinos eram ignorantes em relação às exigências e acusações dos croatas para com o
estado iugoslavo. Na história recente, a estratégia irônica de terroristas frequentemente
tem sido bem sucedida: a seriedade de ferir as vítimas tem geralmente sido percebida
não (ou não somente) como razões para condenar a crueldade dos agressores, mas como
um estímulo para reconhecer a seriedade dos seus objetivos: „Eles estão tão insatisfeitos
que ousariam até fazer isso!‟
Crime de colarinho branco
O crime de colarinho branco compreende uma quarta categoria de itens
considerados noticiáveis, porque prove uma instrução moral sobre problemas que
preocupam os leitores independentemente do crime. Crimes de colarinho branco
algumas vezes parecem ser noticiáveis em razão da dimensão dos valores envolvidos.
Mas é a magnitude do poder ou da riqueza legítima do réu, não a medida do ganho
ilegítimo, que perfaz o caráter distintivamente noticiável. Os casos ABSCAM que
condenaram um senador, vários deputados, e um número significativo de oficiais locais
por receber suborno, geraram mais notícias que muitos roubos a bancos, em que a
subtração de valores tem sido bem maior do que os montantes recebidos pelas
autoridades públicas envolvidas. Os crimes de colarinho branco frequentemente não
publicizarão qualquer quantia monetária discernível. Com efeito, os procuradores de
justiça podem citar a gravidade da ofensa, as falsas afirmações feitas em documentos
submetidos ao governo ou, ainda, os perjúrios diante de um grande júri. Em adição aos
casos ABSCAM, os mais publicizados casos EDNY nos últimos cinco anos envolveram
pequenas quantidades de dinheiro. A perseguição bem sucedida a Joseph Margiotta, o
chefe republicano do Conde Nassau, verificou tão somente U$ 5,000 como suborno
pessoal; um caso contra Bedford-Stuyvesant, cujo chefe era o democrata Sam Wright,
alegou o mesmo valor como propina. Em outra questão altamente publicizada, o
procurador de justiça investigou (mas ultimamente não apresentou) cobranças que
Kenneth Axelrod, um executivo-sênior na Companhia J. C. e um indicado da
Administração Carter para uma alta posição no Departamento do Tesouro, recebeu
corruptamente no valor de U$ 5,0000 na forma de um trabalho em seu apartamento em
Manhattan. O status da pessoa envolvida, mais do que a estrutura do crime, justifica o
potencial noticiável destes casos.
Múltiplas fronteiras e a extensão do potencial noticiável
A depender do propósito do pesquisador, as quatro categorias de notícias sobre
crimes poderiam colapsar em duas ou mesmo em uma categoria 3. Os crimes de
3
Nosso conjunto de 1.384 artigos do Los Angeles Times foi distribuído da maneira seguinte:
„competência pessoal‟, que incluía narrativas sobre crimes de violência que não preenchiam os requisitos
de qualquer uma das demais categorias, totalizou quase 50% de todos os artigos; „integridade coletiva‟
abarcou 33% dos artigos; „conflitos políticos moralizados‟, 8%; „crime de colarinho branco‟, 10%.
crime. As quatro distinções nos ajudam a investigar a questão sociológica mais ampla
sobre como a vida social dos leitores empresta ao crime um caráter noticiável.
Mas, antes de apreciarmos essa questão, devemos abordar uma preocupação
intermediária. Mesmo assumindo que notícias sobre crimes preenchem as delimitadas
categorias descritas acima, uma análise de conteúdos isolada não garante a assertiva
seguinte de que há linhas correspondentes de interesse entre os leitores. A literatura
científica sobre o conhecimento do público sobre o crime, assim como os modelos de
leituras de notícias de crimes apresentam alguns fundamentos para a inevitavelmente
difícil passagem de uma análise de conteúdo de notícias para assertivas sobre a
experiência do leitor.
Notícias sobre crimes, estatísticas de criminalidade e o interesse do leitor
Como ponto inicial, é claro que os sentidos das notícias sobre crimes, quaisquer
que estes sejam, são importantes para os leitores. As notícias sobre crime têm estado
presente continuamente no cotidiano metropolitano por pelo menos 150 anos. Deve-se
argumentar que se este longo registro já indicou alguma vez um forte interesse entre os
leitores, já não mais o indica. Talvez, atualmente, os mais educados (e presumivelmente
mais sofisticados) leitores ignorem as notícias sobre crime ou as leiam apenas como
interesse superficial, falhando em absorver os conteúdos das notícias. A evidência
aponta, contudo, para outra coisa. Graber (1980, p. 50-51) solicitou a leitores de um
painel de notícias da área de Chicago que recitassem detalhes de narrativas midiáticas
sobre uma variedade de tópicos. A pesquisadora concluiu que a memória de relatos
sobre crimes excedia a memória sobre narrativas envolvendo outras questões, incluindo
educação, atividades políticas, conflitos no Oriente Médio, e o governo do estado.
Memórias de notícias sobre crimes eram praticamente da mesma magnitude,
relativamente alta, de memórias sobre notícias de acidentes e fofoca política. Em um dia
ordinário, narrativas sobre criminalidade e justiça compreendem aproximadamente 15%
dos tópicos realmente lidos4.
O fato de que leitores percebem as notícias sobre crimes espontaneamente
envolventes não significa que organizações midiáticas não estão enquadrando as
expectativas morais sobre o crime nas notícias. De fato, há tendências sistemáticas nos
relatos midiáticos sobre crimes, ao menos a forma em que o crime é apresentado
diariamente na mídia difere consistentemente do crime tal qual descrito nas estatísticas
policiais oficiais. De maneira a poder classificar o que os leitores acham tão interessante
nas notícias sobre crimes, deveríamos esclarecer a natureza deste „enquadramento‟.
As comparações de notícias sobre crimes e estatísticas criminais têm produzido
achados consistentes. Em estudos sucessivos, tem-se descoberto que o conteúdo de
notícias sobre crimes divergem enormemente dos padrões avaliados pelas estatísticas
oficiais. A relação não aparece ser aleatória ou incoerente: em muitos aspectos, o
quadro analítico que se obtém sobre o crime a partir de leituras de jornais inverte o
quadro analítico que se constrói com base em leituras de estatísticas criminais policiais.
Em um recente estudo de trinta anos sobre capas de notícias de jornal, em nove cidades,
Jacob (1980) concluiu que crimes violentos perfaziam 70% das notícias sobre crimes e
que isto correspondia a aproximadamente 20% da taxa criminal oficial. Sherizen (1978,
p. 215) contabilizou as porcentagens de crimes conhecidos pela polícia que eram
relatados em quatro jornais de Chicago em 1975: 70% dos casos de homicídios foram
4
Outros estudos de suporte (DOMINICK, 1978, p. 110), (SCHRAMM, 1949, p. 264) não encontraram
padrões diferenciais nas leituras de „notícias de recompensas imediatas‟, uma categoria que incluía as
histórias em quadrinhos, notícias sobre crimes, notícias sobre esporte e sociedade, muito embora o status
econômico fosse significativamente (e diretamente) relacionado à leitura de notícias sobre casos públicos.
5
Dominick (1978) pesquisou crimes relatados nas páginas de capa do New York Times e do Los Angeles
Times em 1950, 1960 e 1969. Muito embora ele tenha concluído que crimes violentos eram explorados
em uma taxa três vezes maior que crimes de colarinho branco, estes quadro analíticos, quando
comparados com as estatísticas processuais, ainda indicam uma sobre-representação de crimes de
colarinho branco. Advogados de distritos estaduais preenchem mais de dez vezes estes casos do que
advogados de distritos federais, e casos de crimes de colarinho branco são tão raros que quase são
invisíveis nas estatísticas da corte estadual. Ver a revisão de literatura em Davis (1982, p. 32). Gans
(1980, p. 141), ao examinar as notícias de TV e em revistas semanais, descobriu uma cobertura
aproximadamente semelhante de „conhecidos‟ e „desconhecidos‟ com problemas com a Lei, um padrão
de igualdade que, mais uma vez, quando comparado às estatísticas da ação oficial, mostra uma forte
tendência em direção a uma cobertura de pessoas de um status social mais elevado.
percepções públicas sobre o crime geralmente seguem mais de perto o conteúdo das
notícias de jornal do que as Taxas Uniformes de Crimes (UCR).
Com exceção de um contexto de “onda de crimes”, as notícias de jornal não
parecem dominar as percepções públicas sobre o crime. Há evidência de que o público é
consciente das diferentes imagens do crime retratadas pela estatística policial e pelas
descrições jornalísticas do crime, e que, com efeito, o público lê as duas abordagens do
crime para propósitos distintos. Stinchcombe et al. (1980) comparou a cobertura do
crime em revistas publicadas entre 1932 e 1975, com surveys periódicos inquirindo o
público sobre se a criminalidade era o maior problema social. Houve quase que uma
mudança aleatória no nível da cobertura do crime pelas revistas, mas a opinião do
público sobre a criminalidade como o maior problema social mudou de acordo com um
padrão claro, elevando-se em 1969 e permanecendo alta até 1974. Entre 1970 e 1974,
crimes violentos aumentaram dramaticamente de acordo com estatísticas oficiais, assim
como o medo do crime por parte do público, enquanto que a atenção dada ao crime na
literatura jornalística decresceu. Os autores concluíram (STINCHCOMBE et al, 1980,
p. 36-37):
O peso da evidência é que as pessoas prestam mais atenção às reais
taxas de crime do que ao nível de cobertura jornalística. Tanto quanto
se pode contar sobre os recentes desenvolvimentos do medo do crime,
o aumento radical na taxa de criminalidade observado pela polícia (e
relatado pelo FBI nos Relatos Criminais Uniformes) é também
observado pelas pessoas, e isto as amedronta 6.
Estes dados são complementados por aqueles descobertos por Herbert Jacob
(1980). Jacob não relatou sobre atitudes públicas, mas, diferentemente de Stinchcombe
et al., pesquisou relatos de jornais sobre a criminalidade. Durante o período de 1948 até
1978, o pesquisador encontrou um aumento tímido de notícias sobre o crime nas capas
de jornais, mesmo quando, nas nove cidades pesquisadas, as estatísticas da UCR (Taxas
Uniformes de Crimes) aumentaram em 300%. (As notícias sobre crimes nas capas de
jornais aumentaram de 2% a 4 %). Com efeito, o aumento no medo da criminalidade
relatado por Stinchcombe et. al, mais uma vez, parece ser relatado muito mais em
consonância com as estatísticas policiais oficiais do que com a cobertura jornalística.
Evidências sincrônicas, assim como históricas, mostram um entendimento do
crime na sociedade, por parte do público, que é mais próximo das pistas oficiais do que
das descrições midiáticas do crime. Graber (1980, p. 49) comparou características de
agressores e de vítimas em notícias e em percepções de entrevistados: „A imprensa não
retrata os criminosos e as vítimas largamente como não-brancos, pobres, e de classe
baixa, mas os entrevistados assim o fazem‟. Em seu estudo, o Chicago Tribune
identificou aproximadamente 70% dos criminosos como brancos, aproximadamente
dois terços das vítimas como femininas, e aproximadamente 75% dos criminosos como
de status socioeconômico médio ou superior. Os entrevistados de Graber, por sua vez,
estimaram a raça, o sexo e o status socioeconômico dos criminosos e das vítimas quase
que inversamente ao quadro analítico apresentado pelo Tribune7.
6
Conferir Jones (1976, p. 240), ao comparar periodicamente estatísticas do FBI e artigos de jornais
diários: „suspeita-se que os leitores são mais propensos a confiar nos mais comuns estímulos cotidianos
para formar suas impressões sobre as tendências em relação à quantidade e à distribuição da
criminalidade‟.
7
O quadro analítico de entrevistas de Graber viu também o „crime de rua‟ ocorrendo em uma freqüência
menor do que muitos crimes que são raramente narrados pela mídia: delitos envolvendo narcóticos, dirigir
bêbado, negociar com bens roubados, violações de armas, prostituição, fraude aos serviços públicos de
bem-estar, fraude ao consumidor, violação à liberdade condicional.
mesmo „senso comum‟ parece governar os oficiais de aplicação da lei quando fofocam
sobre os seus casos e a ambos, leitores leigos e especialistas de notícias de relatos sobre
o crime. Por que não deveriam os repórteres e editores seguir o mesmo „senso comum‟
ao selecionar notícias sobre o crime? Tal como Park há muito percebeu (1940, p. 13-
14), os jornalistas são disciplinados a serem não teóricos no exercício de determinar o
que é noticiável e no de colocarem-se na perspectiva do leitor médio ao responder
emocionalmente aos eventos.
A geração social do apetite por noticias sobre o crime
Nós já rejeitamos uma explicação hipotética do interesse do leitor, a teoria
utilitarista de que as notícias sobre o crime, ao descrever eventos não esperados,
capacita aos leitores a reduzir seus problemas práticos com o crime através da
reorganização do conhecimento sobre a criminalidade em direção a uma maior acuidade
empírica. Os leitores parecem ser tão bem conscientes da atipicidade do crime, tal como
abordado pelas notícias, que sua leitura parece ser a busca pelo „inesperado‟. Mas „o
inesperado‟ oferece apenas os princípios elementares de uma teoria adequada. Devemos
ainda especificar em que sentido mais exato o crime noticiável é „inesperado‟.
Ambiguidades do „inesperado‟ em notícias sobre o crime
Consideremos as implicações teóricas do padrão de „novidade‟ nos crimes
noticiáveis. Assim como quase todos os sociólogos interessados em notícias tem notado,
há uma urgência a partir da qual uma narrativa desse publicada para que esta não perca
o seu caráter de „notícia‟. (TUCHMAN, 1978, p. 51, sobre notícias „duras‟ e „leves;
HUGHES, 1940, p. 67, sobre notícias „grandes‟ e „pequenas‟; e ROSHCO, 1975, p. 10-
12, sobre a „novidade‟, „imediaticidade‟ e „atualidade‟ das notícias.). Mas, se no relato
do crime, se parte do pressuposto de que algo noticiável deveria ter acontecido no
passado imediato, este algo necessário é, de fato, apenas raramente o crime em si. De
200 crimes relatados na amostra previamente descrita dos jornais da área de New York,
aproximadamente 100 eram casos de crimes comuns e 70 eram casos de crime de
colarinho branco. Apenas 6% dos relatos iniciais de crimes de colarinho branco
claramente descreviam os crimes que ocorreram seis meses passados desde a data da
publicação, isto em parte porque a criminalidade indicada era tipicamente um padrão de
fraude ou corrupção que não parecia começar ou terminar em uma data particular. Mas
mesmo para crimes comuns, tais como roubos, assaltos aos correios ou a aeroportos, e
vendas de produtos contrabandeados, apenas 30% dos casos foram descritos depois de
passados seis meses desde a publicação do primeiro artigo de jornal referindo-se à
violência produzida.
Uma indicação semelhante apareceu em nossa análise de aproximadamente
1.400 artigos sobre crimes publicados no Los Angeles Times em 1981, 1982 e 1983.
Incidentes e casos de crimes foram codificados separadamente: os crimes eram
codificados como casos singulares quando já tinham sido processados até o ponto da
prisão ou para mais além disso (acusação, triagem de indícios e provas, sentença,
procedimentos pós-prisionais, etc.). Destes artigos jornalísticos sobre o crime, apenas
45% relatavam incidentes criminais ou crimes que não tinham sido oficialmente
processados até o ponto da prisão do agressor. Se o potencial noticiável do crime
pudesse ser explicado pelas expectativas violadas pelo crime em si – a experiência da
vítima do inesperado na forma de surpresa, ou as ondas de choque liberadas na
consciência do público, quando da consumação do crime – então deveríamos encontrar
uma predominância significativa de incidentes criminais recentes nas notícias sobre o
crime.
1974 e 1979, a perspectiva da autoridade oficial, como representada por uma descrição
de uma ação ou comentário por parte de um agente de aplicação da lei, estava presente
em menos da metade dos artigos analisado. Aproximadamente 65% dos artigos
apareciam em uma fase anterior à disposição, quando a conclusão das investigações e
alegações oficiais ainda estava indefinida. Menos de 12% dos casos primeiramente
aparecia nas notícias durante ou depois da fase de sentença. Em linhas gerais, a leitura
contemporânea de notícias sobre o crime mais desconcerta do que reafirma a ordem
social.
O estudo previamente citado sobre o Los Angeles Times oferece um suporte
adicional a essa assertiva. Aproximadamente 45 dos artigos de 1981, 1982 e 1983 (n =
1,384) tratavam de incidentes ou eventos criminosos como distintos casos de crime ou
crimes relatados como oficialmente processados até o ponto da prisão ou para mais
além. Há, portanto, uma variedade de indicadores de que as notícias sobre o crime
provocam tantas questões sobre a integridade coletiva quanto resolvem; sua estrutura
parece tão propensa a aumentar as dúvidas sobre a ordem social, mediante a
publicização de crimes que ainda são casos criminais em aberto, quanto a fortalecer um
senso de ordem coletiva mediante a celebração de um triunfo do poder coletivo sobre os
desviantes e sobre a desordem8.
Em uma perspectiva histórica de tempo longo, o jornal moderno aparece como
uma estrutura social distintiva para a observação coletiva do desvio, uma estrutura
dramaticamente diferente daquela que existia antes do século XIX. Pouco antes de um
jornal de massas de domingo ter sido fundado, na Inglaterra dos anos de 1830, as
notícias sobre crimes circulavam em broadsheets9. Um dos últimos e mais bem
sucedidos broadsheets foi amplamente disseminado nos anos de 1820; a „Última
confissão e fala antes da morte‟ do assassino de Maria Marten vendeu mais de 1.100.00
cópias (WILLIAMS, 1978, p. 43). Antes do século XIX, nas sociedades primitivas e nas
sociedades ocidentais, entre os puritanos de Erikson e entre os primitivos analisados por
Durkheim em seu livro sobre religião (1965), o desvio era encarado como um símbolo
público de massas de forma mais enfática, mediante formas exemplares de punição e de
fofoca correspondente, mesmo depois qua dúvida sobre a responsabilidade criminal era
resolvida. Broadsheets eram escritos para detalhar o comportamento do condenado
durante as torturas: „Os mais vendidos eram a literatura sobre os enforcamentos. Estes
eram as últimas confissões de morte dos assassinos e também uma justificativa para
suas execuções‟ (HUGHES, 1940, p. 140). O puritano rebelde era primeiramente posto
em julgamento, então postado sobre um estrado para a exibição pública e feito alvo
sermão, isto depois de a punição ser decidida e o rebelde ser conduzido por oficiais que
simbolizavam a identidade coletiva da sociedade. Julgamentos sobre o exercício de
magia, nas colônias americanas, e através da Europa medieval eram instrumentos de
dramatização da vontade coletiva de execução do condenado, e não processos em que
um resultado problemático era alvo de escrutínio por parte de uma oposição habilitada
(CURRIE, 1968).
Em sociedades ocidentais, a comunicação de massas para a disseminação de
notícias sobre o crime primeiramente ameaçou a confiança an ordem coletiva, então,
com a emergência da mídia impressa, veio a servir o interesse oficial na ordem social, e,
por fim, com o advento do jornal diário, mais uma vez assumiu um papel de provocação
8
Ver também Garofalo (1981): „a imprensa dá pouca atenção aos processos do sistema de justiça
criminal‟, citando três estudos. Mas conferir Roshier (1973, p. 33), sobre os jornais britânicos: „ todos os
jornais deram uma impressão exagerada das probabilidades do agressor ser apanhando pela polícia e,
quando apanhado, de ser sancionado com uma punição séria‟.
9
Folhetos de notícias e publicidades caracterizados pelo formato vertical longo.
10
Os crimes abordados na mídia de entretenimento, contudo, pode seguir o padrão durkheimiano. Na TV,
mas nãos nos jornais, a audiência aprende que „o mal sempre é punido, no fim‟. Ver Schattenberg (1981).
11
Denominação para a corte judicial inglesa situada no palácio de Westminster, Inglaterra.
tanto mais parece que as notícias sobre o crime são estilizadas para mais provocar do
que para resolver dúvidas12.
Leitura diária de notícias sobre crimes como um exercício ritual moral
Muito embora a freqüência de narrativas sobre crimes de homicídio, assaltos
violentos e estupros devam ser evidências de uma insensibilidade inculta no público
moderno, uma interpretação oposta é mais reveladora e mais consistente com os padrões
gerais de noticiais sobre crimes. O interesse é menos mórbido do que inspirador. Se
abordagens do crime violento mostram ao extremo a ausência de sensibilidade com a
qual membros de nossa sociedade podem tratar-se reciprocamente, o apetite dos leitores
por tais narrativas sugere que eles não são tão grosseiros e rudes a ponto de considerar
como evidente uma insensibilidade pessoal destrutiva. O fato de que, assaltos à
propriedade são menos noticiáveis do que assaltos à pessoa indica que as preocupações
fundamentais dos leitores são mais humanísticas do que materiais. Ou ainda, ao ler
sobre mais um crime brutal, os leitores podem esforçar-se em sustentar suas convicções
de que sua sensibilidade moral própria não foi ainda brutalizada a ponto de uma
indiferença fatigada. A predominância de narrativas de crimes violentos nos jornais
contemporâneos pode ser entendida como servindo ao interesse dos leitores em recriar
cotidianamente suas sensibilidades morais através do choque e do pulso da ofensa e da
violência.
Em vez da ideia empiricamente ambígua de que o crime se torna interessante na
medida em que é „inesperado‟, e no lugar de uma simples invocação das ideias de
Durkheim, argumentarei que notícias sobre o crime é tida por interessante em um
processo através do qual os adultos, na sociedade contemporânea, desenvolvem suas
perspectivas individuais sobre questões morais de relevância eminentemente pessoal,
ainda que de modo generalizado.
Cada uma das de notícias sobre o crime aponta para um tipo de questão moral e
não-criminal com a qual os adultos são confrontados diariamente. Primeiramente,
narrativas sobre o crime com implicações sobre competência e sensibilidade pessoal são
tomadas como interessantes porque os leitores sentem que devem lidar com questões
análogas na vida cotidiana. Em interações rotineiras com os outros, devemos fazer
pressuposições sobre suas qualidades essenciais, pressuposições sobre as competências
geracionais do jovem e do velho, sobre qualidades associadas ao gênero, ou sobre
qualidades como inteligência (que atualmente são menos politicamente controversas,
mas não mais visíveis que as competências supostamente associadas com a geração e
com o gênero). Se crianças podem assaltar bancos, deveríamos, então, levar a sério, em
relação ao nosso filho de sete anos de idade, o postulado de que ele gostaria de matar
seu irmão mais novo? Se há uma „Vovó Mafiosa‟, deveríamos nos preocupar com a
mulher idosa atrás de nós, na fila do supermercado, que pode ter a intenção letal de
avançar com seu carrinho sobre o nosso traseiro?
Também devemos constantemente fazer pressupostos sobre nossas próprias
competências e sensibilidades essenciais. A questão da audácia é encarada não somente
por criminosos. Quão audacioso, quão engenhoso, posso eu ser? Seria admiravelmente
audacioso; apenas razoavelmente cauteloso; ou realmente imprudentemente tolo em
submeter um artigo para publicação neste esboço atual? Notícias sobre o crime são de
amplo interesse porque dialogam dramaticamente com questões que são de relevância
direta para os desafios existenciais dos leitores, indiferente se os leitores estão
12
Conferir Schudson (1978, p. 119): „Talvez... o Times estabeleceu-se como o „alto jornalismo‟. Porque
adaptou-se à experiência de vida das pessoas, cujas posições na estrutura social lhes permite o maior nível
de controle sobre suas próprias vidas‟.
a experiência de emoções do que para uma lógica discursiva, desencadeando antes raiva
e medo do que argumentação.
De forma semelhante a vitaminas úteis ao corpo apenas por um dia, e como
exercícios físicos, cujo valor, decorre de sua prática recorrente, notícias sobre o crime
são experenciadas como interessante pelos leitores em razão de seu lugar em uma rotina
moral cotidiana. A localização mesma das narrativas de crimes nos jornais indica que
editores e leitores entendem dessa forma. Muito embora narrativas menores sobre
crimes locais tenham um espaço regular nas seções de jornal reservadas para os eventos
da cidade, as narrativas sobre crimes podem ser espalhadas de forma imprevisível ao
longo das seções gerais de notícias; elas não são ordenadamente confinadas em uma
seção substancialmente especializada como notícias de esportes ou finanças. A
localização estrutural das notícias sobre crimes reproduzem o caráter imprevisível do
fenômeno do crime, e transferem para o leitor a medida de responsabilidade em
organizar o lugar do mesmo em sua vida particular.
Os jornais modernos parecem enfatizar este papel. Quanto mais moderno e
sofisticado o jornal, quanto menos moralista é o seu estilo narrativo; quanto mais impõe
responsabilidade pela reação moral em relação ao crime sobre o leitor enquanto questão
formal. Outro aspecto moderno de notícias sobre o crime, a ênfase nas fases iniciais do
sistema de justiça criminal, situa a responsabilidade pelo „convencimento‟, - tanto em
um sentido estrito, relacionado à justiça criminal, quanto em um sentido existencial de
compromisso mediante a fé, - sobre o leitor.
Esta responsabilidade não é necessariamente desejada pelos leitores, ainda que
pareça ser que os mesmos reconheçam que não podem ignorar ou escapar dela. Muito
embora as pessoas geralmente temam o crime e critiquem as notícias como
demasiadamente negativas e perturbadoras, elas aparentemente consideram ainda mais
inquietante não lê-las. Para entender o que caracteriza as narrativas e notícias sobre o
crime, deve-se explicar a aflição voluntária de experiência de perturbação emocional
sobre o self individual, a nível coletivo das massas, dia após dia, que atravessa a
sociedade moderna. A leitura de notícias sobre o crime parece servir ao propósito
semelhante ao do banho matinal, do exercício físico rotineiro, e de fazer a barba
(DOUGLAS, p. 1966): o ritual, o valor não racional da experiência que é, de certa
forma, chocante, inconfortável, e auto-destrutivo, e que é voluntariamente assumido
pelos adultos como reconhecimento do seu fardo individual em sustentar a fé em um
mundo social ordenado.
Referências
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Journalism Quarterly, n. 59, p. 310-313, 1982.
CARE, J. The Discovery of Objectivity. American Journal of Sociology, n. 87, p. 1182-
1187, 1982.
CHIBNALL, S. The Crime Reporter: A Study in the Production of Commercial
Knowledge. Sociology, n. 9, p. 49-66, 1975.
CHIBANLL, S. Chronicles of the Gallows: The Social History of Crime Reporting. In:
H. Christian (Org.), The Sociology of Journalism and the Press (Sociological Review
Monograph 29). Stoke-on-Trent: J. H. Brookes, 1980, p. 179-217.
CURRIE, E. Crimes Without Criminals: Witchcraft and its Control in Renaissance
Europe. Law & Society Review, n. 3, p. 7-32, 1968.
ECKERT, Cornélia & ROCHA, Ana Luiza Carvalho da. Aventuras antropológicas nas cidades
brasileiras: na trilha das trajetórias acadêmicas das antropólogas “urbanas” Eunice Durham e Ruth
Cardoso. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v.1, n.3, p. 39-56, novembro
de 2017. ISSN 2526-4702.
Artigo
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/
Resumo: O presente artigo trata da pesquisa realizada junto ao Banco de Imagens e Efeitos
Visuais/Biev (https://www.ufrgs.br/biev/), do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social/UFRGS cujo tema foi o estudo da geração de antropólogos e
antropólogas que inauguraram e consolidaram a estilística da prática da etnografia das e nas
cidades brasileiras nos moldes de uma produção “crítica e cosmopolita”. As pesquisas
destes pesquisadores nos permitem acessar o tratamento semântico que deram ao tema da
condição de vida no contexto dos grandes centros metropolitanos, confrontando as
aprendizagens de paradigmas tradicionais e contemporâneos na abordagem da “ação” e da
“representação” de indivíduos e grupos sociais na formação da sociedade capitalista no
Brasil. O artigo aborda as conexões entre as obras de tais antropólogos e antropólogas nos
termos de uma “epistemologia do conhecimento” orientadora de uma atualização dos
estudos das memórias do viver urbano nas cidades brasileiras. Palavras-chave: narradores
urbanos, etnografia, antropologia urbana
Abstract: This article deals with the research carried out with the Visual and Image Bank /
Biev (https://www.ufrgs.br/biev/), of the Postgraduate Program in Social Anthropology /
UFRGS, whose theme was the study of the generation of anthropologists and
anthropologists who inaugurated and consolidated the stylistic practice of ethnography in
and in Brazilian cities as a "critical and cosmopolitan" production. The researches of these
anthropologists allow us to access the semantic treatment that they gave to the theme of the
condition of life in the context of the great metropolitan centers, confronting the learning of
traditional and contemporary paradigms in the approach of the "action" and
"representation" of individuals and social groups in the formation of capitalist society in
Brazil. The article discusses the connections between the works of such anthropologists in
the terms of an "epistemology of knowledge" guiding an update of the studies of memories
of urban living in Brazilian cities. Keywords: urban narrators, ethnography, urban
anthropology
13
Artigo originalmente apresentado no 33° Encontro Nacional da ANPOCS, em 2009.
14
Ver: Site oficial Biev, https://www.ufrgs.br/biev/;
Site Biev/Produções, https://www.ufrgs.br/biev/?page_id=2364.
15
Ver www.biev.ufrgs.br.
16
Ver: Narradores urbanos, Gilberto Velho, https://goo.gl/ktw5ZW;
Narradores urbanos, Tereza Caldeira, https://goo.gl/uaV7L8;
Narradores urbanos, Ruben Oliven, https://goo.gl/SRhT1V;
Narradores urbanos, Jose Magnani, https://goo.gl/RphHmc;
Narradores urbanos, Antonio Augusto Arantes, https://goo.gl/yirPDs;
Narradores urbanos, Alba Zaluar, https://goo.gl/qSc7Ex;
Narradores urbanos, Helio Silva, https://goo.gl/Y6w4kz.
17
Como “estilo”, analisamos as imagens do tempo que configuram o conteúdo dinâmico da imaginação
criadora de diferentes autores que foram desafiados a compreender o fenômeno urbano a partir da
interpretação antropológica do viver nas cidades brasileiras como Ruth Cardoso, Eunice Durham, Ruben
Oliven, Gilberto Velho, José C. Magnani, Tereza Caldeira, Antônio Arantes, Alba Zaluar, Hélio R. S.
Silva entre outros.
misturado. Então aí entra o problema do urbano. Mas não entro nesse tema
para analisar o crescimento das cidades médias no Brasil, ou o problema da
cidade média. Não, para mim a cidade era o contexto.. E na verdade, eu não
usei nenhuma conceituação diferente para estudar o imigrante na zona rural e
na zona urbana.
As determinações sócio-econômicas de proletarização são então relacionadas as
formas específicas de formação do estado político após a condição de escravidão que
marcara os ciclos econômicos do país para uma condição de proletarização, no processo
de industrialização e formação da massa de trabalho urbana. Os novos papéis sociais
desempenhados na consolidação de uma nova elite econômica será centro das
preocupações suas e de seu núcleo de pesquisa. Os estudos antropológicos eram
marcadamente interdisciplinares. Argumenta Eunice na entrevista:
Para tratar da passagem da sociedade tradicional paulista para análise da
sociedade paulista emergente recorria-se à sociologia, demografia,
geografia, história, economia, etc.
Para Eunice, o tema da transformação é de fato o mote de fundação de uma
antropologia brasileira: a transformação para uma cidade moderna após a liberação dos
escravos. Entender a sociedade brasileira em transformação, a partir de um olhar
antropológico, que com seu método singular poderia “interpelar a cada um de nós sobre
nós mesmos e sobre a nossa sociedade” (DURHAM, 2007, p. 224). Para Eunice, a
questão da imigração italiana era um tema relevante para tratar a partir do valor de
conhecimento antropológico e fundamental para se entender o processo da urbanização
e da industrialização, das novas possibilidades de mercado com todo o peso da herança
tradicionalista.
Nós estávamos dentro da Faculdade de Filosofia naquela época, uma
passagem muito importante que eu chamo do estudo da sociedade tradicional
para o estudo da sociedade emergente. Na sociologia [...] começam estudos
sobre o operariado, se estudava a escravidão antes e se passou a estudar o
operariado; se estudava as grandes propriedades territoriais e se passou a
estudar o empresariado. A noção de sociedades em classe entrou de uma
forma muito pesada e a imigração italiana entrava dentro desse processo de
análise de transformação. Eu acho que na Faculdade de Filosofia da época
nós passamos bem da reconstrução da sociedade tradicional paulista para
análise da sociedade paulista emergente. E isso nos grandes campos, não só
na Antropologia. A Antropologia está muito marcada pela presença da
sociologia em todo esse período, inclusive da geografia, como o trabalho de
Pierre Monbeig “Pioneiros e plantadores de São Paulo”, uma denuncia a
marcha do progresso no período cafeeiro. Esse é um trabalho absolutamente
maravilhoso. Aliás, era um geógrafo humano, não era um antropólogo, mas o
trabalho dele era muito parecido como que a gente estava fazendo em
Antropologia também, este processo de abertura do território.
Por um lado, uma aproximação que se refere a influência que as ciências sociais
conhece, no período, da teoria marxista. Ou, mais do que isso, a forte politização dos
intelectuais das ciências sociais a partir dos anos 60, que tentava dar conta das
transformações de classe, em especial, no processo de imigração da zona rural para a
zona urbana. Essa será, sobretudo, uma guinada para a sociologia. Já na antropologia “a
incorporação da crítica ao funcionalismo não resultou na delimitação de um novo
campo metodológico comum” (Durham, 1986: 23). Mas, por outro lado, diferenças de
método e universo se colocavam:
Para nós da antropologia estava muito claro que nós tínhamos uma divisão
muito razoável, os sociólogos ficam estudando o processo de urbanização e a
gente ficava estudando as pessoas. Fazia um estudo de base antropológico de
familiar em nossa sociedade urbana tanto quanto do passado recente sobre valores e
hábitos tanto em um bairro como Copacabana como na família operária ou em uma
comunidade de base da Igreja renovada, etc (DURHAM, 1986, p. 17). Esse campo de
produção bem sucedido, seguiu os trabalhos iniciais de pesquisa de Eunice e Ruth,
experiências que repercutem junto a seus alunos de antropologia e de seus orientandos
que tratam de temas como umbanda, pentecostalismo, catolicismo, vida na periferia, nas
favelas, condições de vida da classe operária, o lazer popular, o feminismo, a pobreza,
movimento sindical, etc. Já em suas pesquisas de campo iniciais, o tema da dinâmica
cultural se modela e o mote de se dedicar ao estudo da família e rede de parentesco no
âmbito de uma sociedade em transformação, é elaborado:
Quando eu comecei a trabalhar com os italianos, aliás antes mesmo quando
eu comecei a fazer uma pequena análise de um grupo messiânico lá no
interior de MG, eu estava estudando como é que eles se converteram e ali a
conversão é toda por uma rede de parentesco. Então para falar como é que
tinha sido a conversão eu já tive que entrar num problema de parentesco.
Quando eu trabalhei com os italianos, a família se colocava como o espelho
de todo processo, o processo de acumulação primitiva, o processo de
trabalho, o processo de ascensão social [...] de modo que eu acho que não dá
para entender italiano e a imigração italiana se você não entender a questão
da família. Metade da minha família tem descendência italiana. Minha mãe
era filha de italianos casados com brasileiros e isso não era surpresa. Então
para mim o que foi surpreendente foi a importância da família na migração
rural urbana dos brasileiros. Então aí me levou toda uma reflexão sobre a
questão da família. Não é simplesmente um problema urbano, mas é um
desmonte, uma crítica de uma visão do qual, digamos, a urbanização destrói a
família. Eu estava trabalhando com modo de vida e para mim estava claro
que esta família obviamente se altera no processo, mudam os laços familiares
que constituem uma base fundamental, não só da sociabilidade mas de toda a
possibilidade de inserção do migrante na sociedade urbana. É a família que
dá o apóio. O migrante sozinho é uma figura anômica. E toda a minha análise
do processo de migração era, na verdade um processo de reprodução e
reconstrução familiar, com as pessoas migrando individualmente. Se tinha a
impressão naquele tempo que imigração era tudo individual. Bom, talvez eu
tenha sido a primeira a mostrar que não era. Mesmo quando ele migra
sozinho ele tem primeiro o apóio de um lado da sociedade que ele parte, na
qual ele deixa muitas vezes os irmãos mais novos, filhos, inclusive, a esposa,
a mulher. E depois quando vem para cá o processo de trazer os parentes e
recompor o novo, um grupo familiar de bases um pouco diferentes mas que
de qualquer forma, mobiliza esses laços de parentesco.
Como esclarece Eunice, não é a dicotomia rural e urbano que era seu enfoque.
Em seus estudos, era a ênfase sobre o processo em transformação, a inter-relação desses
dois mundos em suas crises, conflitos e descontinuidades.
Então eu pego um novo, que não era tão novo, mas que era a passagem do
velho para o novo porque a imigração estrangeira, especialmente a imigração
italiana foi fundamental na concepção da sociedade paulista. Depois eu
passei para estudar a migração rural - urbana que um segundo momento desse
processo de transformação, quer dizer, depois da II Guerra Mundial,
basicamente já tendo cessado,... a imigração estrangeira para SP, um
crescimento econômico muito rápido após a II Guerra, começa a se utilizar
uma mão-de-obra brasileira de imigrantes, que vem em grande parte da zona
rural. Eles podem passar por outras cidades antes, mas uma população que
não só vem da zona rural mas basicamente uma população que vem da
sociedade tradicional. Então aí nós resolvemos dar um passo atrás para
estudar a sociedade tradicional. Foi tentando interpretar as entrevistas que eu
tinha em função de toda a bibliografia sobre a sociedade tradicional
brasileira. E também foi muito surpreendente na verdade tendo vindo de uma
Ciência Política e um diálogo nesse contexto, juntamente com sua colega Ruth Cardoso.
Um diálogo também de resistência, sem dúvida, dado a conjuntura política de ditadura
que se impôs na época.
A politização dos temas em antropologia, é uma guinada importante que
conhecerá uma demanda favorável de publico e intensificação de pesquisas no contexto
urbano. Eunice Durham adota este eixo de discussão em artigos e livros. Sua
monografia “A dinâmica cultural na sociedade moderna” apresentado na forma
mimeografada na Anpocs, circulará entre professores e alunos de pós-graduação em
todo o país. Trata-se de uma crítica ao ortodoxismo de marxistas e althusserianos, como
diz Peter Fry, “de plantão” e que “viam a família, a escola e a indústria cultural apenas
como „aparelhos ideológicos do estado‟” (FRY in DURHAM, 2004: 13). Peter Fry
também dá destaque a este artigo produzido para o Encontro anual da Anpocs em 1976,
em que, segundo ele, Eunice “sem perder de vista as relações de poder entre produtores
e consumidores da „cultura de massa‟, propõe uma análise pautada numa relação
dialógica (se não dialética) entre ambos (p. 13). Já nos anos 80, Eunice novamente faz
circular um paper de grande repercussão na academia antropológica “Cultura e
ideologia”.
Eu acabei escrevendo um trabalho sobre isso para dizer, para mostrar que
algumas coisas dessa nova visão marxista, mas não era uma visão mais
tradicional, exclusiva a questão da classe, mas as questões de produção que
discutíamos. Mostrava que no fundo eu sempre preferia trabalhar como o
conceito de cultura porque eu criticava uma visão de mistificação presente
em toda abordagem ideológica, como se existisse, digamos, uma verdade que
paira acima de todos. Era pior que o positivismo nesse ponto de vista. E que
todo mundo estava sendo enganado. Isso é muito pouco antropológico.
Diziam que religião de um povo primitivo não continha uma ideologia? Não
tem sentido esta colocação. Então boa parte desta posição da Antropologia
nas Ciências Sociais, deste período é uma posição um pouco difícil. Não
tanto o pessoal do Rio, porque quando o pessoal do Rio trabalhava no Museu,
eles vieram não das Ciências Sociais, eles vieram da geografia, da história.
Eles não tinham essa pressão da Sociologia e da Ciência Política, ao passo
que eu vim da Filosofia que, aliás, era um departamento só, Sociologia,
Antropologia e Ciência Política era tudo junto, de modo que você tinha que
fazer uma reflexão teórica que permitisse o enquadramento da Antropologia
com estes cursos, inclusive.
Na realidade é neste contexto que Eunice lembra da importância de sua revisão
crítica ao estudo de Malinowski. Da importância de restabelecer o impacto de sua obra
sobre os estudos de natureza simbólica e do método etnográfico como prática de
pesquisa essencial no estudo do Outro, relativizando seus próprios preceitos de
formação e orientação cultural. Mas não só Malinowski como a fértil discussão levada
na antropologia social britânica com Radcliffe-Brown, Evans-Pritchard, em suas
fórmulas singulares de aprenderem e reverem a teoria durkheimniana. Eunice rende
homenagem a estas referências conceituais argumentando que “o tempo todo estive
tentando realizar esta costura, em que o social fornece a armação dentro da qual a
amplitude, as variações e a dinâmica dos significados se explicitam” (DURHAM, 2004,
p.35).
Eu tive que desmontar o medo de ler Malinowski porque na época você ia ser
taxado imediatamente de reacionário. Tem histórias interessantes nessa
perspectiva. Tem o movimento estudantil e os movimentos sociais. Na época
o curso meu era sobre parentesco. E nada mais reacionário da perspectiva dos
meus alunos, todos realizando a revolução libertadora comunista no Brasil,
falar a respeito do parentesco, família. Então a gente tinha que arrumar um
jeito. Em 68 até que eu consegui alguma coisa, porque depois de eu tentar
convencer os alunos, quando chegou em maio que é dia das mães, eu cheguei
na classe e perguntei: quem é aqui que não deu presente para as mães no dia
das mães? E foi uma vergonha, os alunos morreram dando risada, porque só
tinha um que não tinha dado o presente da mãe e daí eu perguntei: aonde é
que tá a sua mãe? Morreu. Daí eu comecei então a mostrar que há elementos
que tão muito presentes mesmo na vida dos revolucionários que é senão um
parentesco pelo menos a família, de modo que nós precisamos ver por que ela
persiste, com todo o seu atraso, por que ela persiste no Brasil. E depois para
chegar no problema da cultura, do elemento simbólico, da representação eu
arrumei um negócio ótimo. O Giannotti escreveu naquele tempo um lindo
artigo que se chamava “O ardil do trabalho”, todo um artigo marxista, me deu
muito trabalho para ler, muito difícil. Então eu pegava e dava o artigo para os
alunos, aí ninguém entendia nada aí e eu explicava tudo direitinho, daí eu era
encarada como uma pessoa legítima porque eu entendia o trabalho marxista
do Giannotti. E daí eu pegava toda a questão da representação que está lá
dentro, usando Malinowski aliás. Então a partir daí a gente conseguia um
diálogo dentro das ciências sociais da época. Eu não acho que a gente fosse
reacionária, de jeito nenhum, mas é que a gente estava trabalhando numa
outra dimensão, e isso dava muito uma postura particular, porque eu
trabalhava na faculdade de Filosofia de SP exatamente por causa desse
confronto permanente da Sociologia com a Ciência Política e com a
Antropologia. Porque no fundo todos nós queríamos ter uma mesma
linguagem comum. Era a mesma sociedade que a gente estava estudando,
deveria ter um jeito que o que um achava fosse válido para o outro, não podia
fazer uma fragmentação absoluta dos campos. Então que acho que a
Antropologia em SP foi sempre muito disciplinar. Eu usei muito Sociologia,
Estatística, Política, e trabalhei na Ciência Política durante um bom tempo.
Para o tema da cidade, essa defesa foi essencial, pois com estes preceitos, uma
geração de alunos estava estimulada a seguir na trilha da pesquisa etnográfica cuidadosa
e articulada ao diálogo conceitual marxista da época, atenta ao tema das contradições
próprias da sociedade capitalista, as relações de poder, de dominação e controle, da
desigualdade e da marginalização. Não se tratava de uma defesa da teoria funcionalista
malinowskiana ou estruturalista funcional, mas de consolidar “pressupostos básicos da
pesquisa antropológica que, até hoje, não foram abandonados e são essenciais para o
trabalho de campo: o relativismo cultural e a inter-relação entre os diferentes aspectos
da cultura e a integração entre ação e representação” (DURHAM, 2004: 32).
De fato a relação dinâmica entre ação e representação, organizados em função de
sistema de valores, aparecerão de forma contundente nas premissas teórico-conceituais
de uma leva de orientandos de Eunice Durham. Por outro lado, podemos considerar
aqui, a partir desse trabalho defendido como livre-docência, A reconstrução da
realidade. A obra etnográfica de Bronislaw Malinowski, Ano de obtenção, 1973, a
emergência de um movimento de crítica cultural ao próprio trajeto da disciplina
antropológica em face de uma crise das epistèmes explicativas que se delineava como
irreversível no cenário acadêmico.
Eunice orienta na época alunos que atuam em São Paulo começando pela própria
Ruth Cardoso na sua tese de doutorado sobre Estrutura familiar e mobilidade social:
estudo dos japoneses no Estado de São Paulo (1972); Carmen Cinira de Andrade
Macedo sobre CEB na periferia de São Paulo (1985); Alba Zaluar sobre vida e trabalho
na periferia do Rio (1984); Elisabete Dória Bilac sobre Família e trabalho feminino – a
ideologia e as práticas familiares de um grupo de trabalhadores manuais de uma
cidade do interior paulista (1983); Paula Montero sobre as práticas mágico-terapêuticas
na umbanda (1982) e Antônio Augusto Arantes que trata do Compadrio no Brasil rural
(1970), mas que logo se voltará ao estudo das complexas tramas de relações de poder
em torno do patrimônio urbano e espaço público.
Mas é ao se referir aos alunos, que Eunice Durham introduz em sua reflexão dois
aspectos importantes no seu percurso: 1) o impacto do estruturalismo francês ou da
teoria do simbolismo nos estudos de cultura e sociedade na antropologia brasileira, e 2)
a relação intensa de troca acadêmica entre a USP e o Museu, com parte dos professores
do Museu sendo orientados por Eunice Durham ou por Ruth Cardoso, sendo que aqui,
de qualquer forma, acentua que era na USP que em grande parte, a pesquisa etnográfica
na cidade e os estudos de antropologia no contexto urbano predominavam.
Junto a importância dos estudos de Lévi-Strauss sobre a produção simbólica das
culturas e sociedades, apontando para o tema da universalidade da dimensão simbólica,
Eunice aponta para outros autores que considera importantes em sua trajetória de ensino
e pesquisa na USP destacando Marcel Mauss, Pierre Bourdieu, Victor Turner, Georges
Balandier, Clifford Geertz e Marshall Sahlins, Louis Dumont. Autores cuja influencia
sintetiza no artigo “Uma história muito pessoal de meio século de antropologia na
USP”, aqui citado como referência (2004).
Este percurso de influências se dá paralelo a uma guinada em sua trajetória nos
anos 80 marcada pela atuação política, ou mesmo militância política em diversas
instâncias de representação como a Associação Brasileira de Antropologia e na política
universitária, primeiramente pesquisando o tema da universidade no âmbito da USP e
posteriormente atuando na Capes e outras instâncias governamentais. Nesse percurso é
fundado o Núcleo de Pesquisa sobre Ensino Superior (NUPES) de estudo, local de suas
pesquisas e orientações nesse tema desde então.
Quem fundou o Nupes comigo foi o Simom Schwartzman, foi um
levantamento da história do sistema público brasileiro. E diga-se de
passagem, que eu saiba ninguém tinha feito essa história, olha isso, no início
da década de 90. As pessoas falavam sobre a universidade, de que a
universidade é uma minoria, de que você tem aqui as faculdades isoladas. A
Instituição do Ensino Superior, diz que aceitável tem que ser uma
universidade que tem que associar ensino com pesquisa. Mas daí se você vai
olhar a realidade não tem nenhuma universidade desse tipo. Aliás, tem umas
duas, mas mesmo assim a pesquisa é assim esporádica. E o resto? Toda
reivindicação é sempre na base de um ideal de vida acadêmica baseada na
pesquisa, na dedicação exclusiva. Você via por aí, pelas universidades, que o
ensino era uma farsa. Na verdade a gente não tinha a menor idéia do que é
um orçamento, do que é uma relação custo-benefício, de quanto custa o
sistema. E depois quando eu fui p ara o governo a minha preocupação era
saber quanto custavam as coisas. Então eu acho que a minha carreira foi
cortada em função da universidade. E aí como a gente trabalha muito, fica
sendo especialista sem querer, eu fui a única especialista em família. Já tinha
enchido de família, não queria mais saber, já tinha escrito que eu queria sobre
família e as pessoas vinham e queriam ser orientadas na área de família.
O outro elemento que aborda é a intensa reciprocidade e troca acadêmica com os
antropólogos radicados no Rio de Janeiro, em especial no Museu Nacional.
Boa parte da 1ª geração do Museu se formou conosco, quer dizer, o Roberto
que é o pai do grupo do Museu, se formou aqui, fez doutorado aqui e depois
os demais ou fizeram doutorado aqui ou fizeram no exterior, porque só a
universidade de SP tinha doutorado naquele tempo. Não tinha outro lugar
para fazer. O próprio desenvolvimento da Antropologia nesse período está
muito relacionada com o doutorado. A introdução da pós-graduação e a
necessidade de obtenção do doutorado estabeleceu uma relação forçada
bastante grande entre SP e os demais centros porque as pessoas ficaram se
conhecendo. Não creio que nós tenhamos tido uma posição dominante, de
modo que as coisas aqui eram muito fluidas de modo que cada um depois
tomou um caminho um pouco diferente mas que não precisava destruir o que
a gente estava fazendo do lado de cá.
18
Ver: Antropologia urbana e etnografia das cidade brasileiras, Narradores urbanos, Eunice Durham,
https://goo.gl/LjVHkf.
19
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, fundado em 1969 por intelectuais oriundos da
Universidade Estadual de São Paulo.
20
Ver: Narradores urbanos, Ruth Cardoso, https://goo.gl/jv6vg7.
BARBOSA, Raoni Borges. Três tradições antropológicas de análise cultural: uma abordagem crítica
sobre as perspectivas do fazer antropológico. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e
Sociologia, v.1, n.3, p. 57-77, novembro de 2017. ISSN 2526-4702.
Artigo
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/
XVIII como tecnologia social para lidar com o conjunto de transformações sócio-
políticas em curso (Renascimento; descoberta do Novo Mundo; Reforma Protestante;
Revoluções Burguesas e outras), já estaria presente nos relatos de Jean de Léry21 e se
repetiria no estruturalismo levi-straussiano, interessado na explicação das condições
inconscientes, cujos vetores são a oralidade, da vida social.
Malinowski (2007), muito embora esquecido por Certeau (1982), teria
sofisticado a escrita sobre o outro em um formato racionalista, empiricista e atemporal
ao definir a escrita etnográfica como escrita científica sobre a alteridade. Esta fundação
da antropologia sobre os cânones da ciência ocidental tem por objetivos explicar o
ponto de vista nativo; traduzir a verdadeira imagem e linguagem da vida tribal; e evocar
o verdadeiro espírito da vida nativa.
Como bem pontua Giumbelli (2002), o fazer etnográfico malinowskiano exige
que o pesquisador paute sua observação em princípios científicos e que viva entre os
nativos por um tempo longo, de modo a coletar dados suficientes para a construção de
quadros explicativos gerais e abstratos, na forma de leis científicas, sobre os fatos
sociais observados. Deste modo, o pesquisador deve dominar o método antropológico e
a partir deste produzir evidências sobre a cultura nativa, tal como um cientista que
praticasse uma ciência empírico-analítica, cujo interesse é o domínio técnico,
classificado como verdade, sobre o fenômeno estudado (Habermas, 1968)22.
Esta proposta de fazer etnográfico como um exercício sistemático de
hermenêutica do outro, pautada no poder atribuído à escrita de reter o passado como
realidade objetiva e de superar as distâncias espaciais mediante um texto facilmente
reproduzível e que leva consigo as experiências do lugar de origem, entende a alteridade
radical do Novo Mundo como imemorial, sincrônica e inconsciente de si, devendo,
neste sentido, ser explicada pelo olhar externo do observador. Observador este que
explica a alteridade na reprodução da diferença Nós – Eles e de acordo com os códigos
de racionalidade e estranhamento de sua cosmologia.
Certeau enfatiza como este primeiro modelo etnográfico, ainda pautado em um
método comparativo que reduz as diferenças culturais segundo uma história conjetural
de evolução dos padrões de cultura, dissolvendo-as, ainda, no pressuposto da
universalidade humana, constrói uma argumentação circular que transforma o outro
radical em uma versão caricata, primitiva e selvagem da concepção de humanidade e de
civilização ocidental. A separação entre Nós e Eles, entre o aqui conhecido e familiar e
o lá desconhecido e exótico, desta forma, se caracteriza por uma natureza estranha onde
habita a mesma humanidade, cuja estranheza cabe ao pesquisador traduzir para a
racionalidade ocidental.
Nas palavras de Certeau (1982, p. 223-225):
O que dele separa o Ocidental não são as coisas, mas a sua aparência:
essencialmente, uma língua estrangeira. Da diferença constatada resta apenas
uma língua por traduzir. [...] a tradução faz passar a realidade selvagem para
o discurso ocidental. [...] No lugar onde a Histoire a situa, a língua
21
Jean de Léry publica em 1578 sua Histoire d’um Voyage faict em la terre Du Brésil, onde relata sua
experiência de permanência na baía do Rio de Janeiro em 1556-1558 (CERTEAU, 1982, p. 214).
22
Weber (1922), em oposição à ontologia e à epistemologia racionalistas de Durkheim e de Malinowski,
postula que a realidade social deve ser apreendida diferentemente das dimensões físico-químicas e
biopsíquicas da existência, ou seja, não como dados independentes e exteriores ao sujeito que os observa
e os analisa, mas como ações sociais no âmbito de comunidades de sentido historicamente datadas e, por
isso, portadoras de amplos significados. Com base nos postulados de neutralidade axiológica e
distanciamento crítico do pesquisador em relação ao fenômeno social estudado, Weber constrói a noção
de método compreensivo, cujo interesse é o de extrair sentido das ações sociais. Trata-se, portanto, de
uma proposta histórico-hermenêutica de ciência social e cultural (HABERMAS, 1968).
voltou para o cotidiano das sociedades complexas. Deste processo de mudanças teria
resultado uma profunda fragmentação da disciplina, desde então ocupada na produção
de estórias e eventos como novas possibilidades discursivas.
Ortner (2011), assim como Peirano, afirma a atual ausência de um paradigma
único compartilhado pelos antropólogos: situação de crise que se verifica na confusão
de categorias e nas expressões de caos e antiestrutura no discurso antropológico. A
autora constata, neste sentido, uma série de revoluções na teoria antropológica a partir
dos anos 1960 e que redundaram, entre outros, na antropologia simbólica de Turner,
influenciada fortemente pela Escola Sociológica Francesa de Durkheim e Mauss 23; no
estruturalismo levi-straussiano24, no marxismo cultural e na economia política, mas
também no Movimento Writing Culture, a partir dos anos 1980, com sua radical crítica
ao modo realista de fazer etnográfico.
A década de 1970 (Caldeira, 1988 e 1989), neste sentido, representou um
processo de ruptura epistemológica no interior das ciências sociais, com forte influência
nas formas de fazer pesquisa na antropologia. Essa ruptura epistemológica é conhecida
como o segundo deslocamento teórico-metodológico das Ciências Sociais e se
fundamenta no questionamento das teorias funcionalistas e estruturalistas e na
emergência de novos atores na análise do social e da cultura.
A emergência do movimento feminista e das teorias de gênero, assim como dos
estudos pós-coloniais e das minorias étnicas e políticas provoca uma redefinição da
antropologia como o estudo da alteridade, e não mais necessariamente como a ciência
do primitivo isolado. Estas demandas se fortalecem no sentido da propagação do
imperativo de uma Anthropology at Home, que vem a significar o estudo das sociedades
complexas e dos modos e estilos de vida contemporâneos que caracterizam a
antropologia urbana atual.
Neste contexto conturbado e bastante rico de experimentações, o fazer
antropológico e etnográfico se desloca de uma proposta de hermenêutica do outro,
pautado em uma linguagem conceitual e neutra, para exercícios de devir-nativo
embasado na escrita processualista da “afetação”25. O conceito de devir-nativo é
explorado abaixo a partir de um diálogo com Favret-Saada e com Goldman, que se
apresentam como autores de uma proposta processualista de fazer etnográfico.
O conceito de devir se apresenta como categoria estruturadora no pensamento de
Favret-Saada (2005) e de Goldman (2003; 2005) a respeito do fazer etnográfico
enquanto método imprescindível para e na produção do conhecimento em Antropologia.
Trata-se, contudo, de um devir-nativo, cujo sentido maior é o de situar-se em campo o
mais próximo possível do que, em linguagem parsoniana (HARTLEY e HARTLEY,
23
A antropologia simbólica de Turner tinha como preocupação maior as formas de operar da sociedade
de uma perspectiva racionalista, em que os símbolos são vistos como operadores no processo social,
deslocando os atores de um status a outro e os vinculando às normas sociais.
24
Estranhamente, Ortner (2011) reconhece m Lévi-Strauss somente as influências de Marx, Freud e da
lingüística, quando seu modelo de alta abstração, exterior, totalizante e reificador do social, em que a
diversidade fenomênica da vida coletiva e mesmo psíquica resultaria da combinação de princípios simples
subjacentes às estruturas das mesmas, está situado claramente na tradição da Escola Sociológica Francesa.
Lévi-Strauss, com efeito, trabalha COM conceitos como gramática universal da cultura, a partir do
princípio de oposição binária apresentando por Durkheim ao tratar da religião como fonte das categorias
de pensamento e entendimento da cosmologia de uma sociabilidade dada. A cultura, em última análise,
constitui um sistema de classificação.
25
Ver, neste sentido, as obras do movimento Writing Culture, como as de autores como Clifford e
Marcus (1986), Marcus (1986), Marcus e Fischer (1986), Fischer (1986), Crapanzano (1986), Rosaldo
(1986), Rabinow (1986), Said (1979) e outros que também se alinham na proposta de uma escrita
etnográfica processualista, como Geertz (1988), Das (2007), Bhabha (1992, 1994), Taussig (1987),
Fabian (1983) e José Jorge de Carvalho (1999) e etc.
Aqui aparece o diário de campo, sentido como o ato da escrita que reaviva a
afetação e transforma quem escreve ao permitir a (re)integração a posteriori de todo
material coletado em campo – a tal síntese operada progressivamente pelo etnógrafo de
que fala Goldman (2005) e da qual ele, o etnógrafo, é parte indelével, mesmo quando
silenciado e negado – como ferramenta para a análise de uma cultura e uma
sociabilidade dada.
Se, em um primeiro momento, Favret-Saada parece aludir ao fazer etnográfico
como um mero lançar-se ao abismo do estranhamento, o deixar-se levar e afetar pelo
campo, fica claro que a autora entende esta fase da pesquisa como um momento de
representação performática face ao nativo, de modo a ganhar sua confiança e assim
fazer a observação/participação na realidade nativa possível, jamais como movimento
empático ou de comunhão afetiva.
O diário de campo permite, neste sentido, ao etnógrafo, segundo Favret-Saada
(2005), um momento de catarse em que ele se libera do fardo de representar frente ao
nativo. O registro disciplinado da movimentação dos atores sociais no universo de
pesquisa é, ainda, a ferramenta em que o etnógrafo pouco a pouco organiza tal qual sua
percepção o permite o sistema de lugares destes mesmos atores em uma perspectiva que
descortina, em longo prazo, os padrões culturais significativos de uma sociabilidade
dada.
Aqui se evidencia o quanto a formulação de Goldman (2005) de que a afetação
seria uma perda de si pode levar a interpretações mesquinhas do fazer etnográfico. De
fato, Favret-Saada concebe a etnografia como uma aventura, o que pressupõe a
superação, por parte do etnógrafo, dos medos e medos corriqueiros (KOURY, 2002;
2004; 2008; 2011; 2012) que conformam e informam um espaço societal concreto
enquanto práticas e representações sociais.
Neste sentido, o fazer etnográfico é uma experiência angustiante, um tipo de
Schize (FAVRET-SAADA, 2005) próprio de uma aventura que busca novos territórios
e/ou ressignificações do prosaico, do cotidiano do homem comum. Esta experiência,
segmentada em três séries espaço-temporais que organizam o ser afetado (situar-se no
status/posição do nativo), o narrar e o analisar, conduzem o etnógrafo, nas palavras de
Cardoso de Oliveira (1996) ao modelo nativo, o que, para Favret-Saada (2005) implica
em acessar uma comunicação especial com o Outro que se pretende entender.
Nas palavras da própria autora:
[...] o próprio fato de que aceito ocupar esse lugar a ser afetada por ele abre
uma comunicação específica com os nativos: uma comunicação sempre
involuntária e desprovida de intencionalidade, e que pode ser verbal ou não.
(FAVRET-SAADA, 2005, p. 159).
Favret-Saada (Idem) tece a sua argumentação sobre a etnografia como devir-
nativo, em última análise, apoiada na tese da opacidade essencial do indivíduo
relacional frente a si mesmo27. Este axioma impõe ao etnógrafo o desafio de participar
da realidade nativa como indivíduo também afetado por ela, ou seja, de situar-se o mais
proximamente possível do status/posição do sujeito pesquisado, para, ato contínuo,
refletir sobre a mesma a partir de seus afetos todos de pesquisador e indivíduo social,
donde resultaria a teoria etnográfica28.
Este modo processualista de fazer etnográfico tem respaldo em uma escrita
literária (COLOMBO, 2005: 275-282), que afirma e denuncia reiteradamente a ligação
entre política e poética na pesquisa antropológica e no texto etnográfico. O pesquisador,
27
Aqui aparece uma vez mais a radicalidade do movimento Writing Culture em seu primeiro momento,
quando o próprio conceito de cultura se reduzia a uma dimensão lingüística e textual.
28
Neste sentido, ver Rosaldo (1991) e Clifford e Marcus (1986).
Nas palavras do autor (Jacobson, 1991, p.5) fica claro o papel da teoria na
seleção do material etnografável e de sua consequente descrição, interpretação e análise
a partir de categorias conceituais abstratas mobilizadas pelo etnógrafo em campo:
The procedure in analysis, in contrast to description, is to “break up the
empirical sequence and concomitance of custom and social relations and
group [them]… in categories of general imports” (1970b, p.132). These
categories are theoretically based. The task is to examine behavior in terms of
these analytical categories and the relationships among them.
A etnografia, assim, por abordar uma descrição, uma interpretação e uma análise
dos modelos de ação e dos modelos de realidade um indivíduo, sociedade ou cultura
qualquer, deve ser lida criticamente como um argumento científico textualmente
disposto. Argumento este que busca fundamentar nas evidências linguísticas,
comportamentais e ecológicas produzidas no trabalho de campo, as justificativas e
afirmações que compõem o modelo compreensivo do real para o problema de pesquisa
proposto na etnografia.
Com base na postura interpretativista de Geertz, a perspectiva compreensiva
(Verstehende Soziologie) das ciências sociais vem a ser redescoberta nas leituras de um
Weber não mais mediado por uma leitura parsoniana, mas devidamente situado na sua
tradição alemã e romântica. Onde mais tarde são descobertos, entre outros, a filosofia
social e a sociologia formal simmeliana, a sociologia figuracional eliasiana, assim como
a tradição interacionista e simbólico-interacionista que se organizou a partir destas
influências trazidas para os EUA por Mead, Boas e outros nomes que se destacaram na
Escola de Chicago.
Neste cenário de crise se constrói, então, a proposta de uma antropologia da
29
prática (ORTNER, 2011). Na sua aproximação macro e micro, - em uma perspectiva
processual e de longo prazo, do social, concilia, assim, história e antropologia na
tentativa de superação de paradigmas funcionalistas e estruturalistas centrados em uma
análise exterior, totalizante e reificadora do social, - a antropologia da prática se
encontra em condições de oferecer ao discurso antropológico uma nova síntese que o
ordene para além do estado de liminaridade, de crise de identidade e de assimetria e
falhas comunicacionais entre os antropólogos, causados pela ruptura com o modelo
racionalista de fazer etnográfico e pelos experimentos processualistas de análise do
social e da cultura.
No entender de Ortner, somente a antropologia da prática pode integrar as três
assertivas básicas da antropologia de uma maneira coerente: a sociedade é um produto
da interação humana; a sociedade é uma realidade objetiva; o ator social é um produto
do social e psico- e sociogênese constituem processos que ocorrem em paralelo e em
codependência (ELIAS, 1993, 1994, 2000, 2011). Neste sentido, a antropologia da
prática se consolida como nova tendência teórico-metodológica, tendo, como uma de
suas vertentes, a antropologia das emoções30 (KOURY, 2005, 2006, 2008, 2009).
29
O conceito de prática, em termos gerais, abrange as noções de ação social que articulam a tensão e a
indeterminação nas relações entre indivíduo e sociedade, enfatizando, deste modo, os fenômenos da
contingência, do conflito e da criatividade no social entendido como jogo, trama e rede de relações em um
processo dinâmico e criativo de fazer-se e refazer-se nos processos intersubjetivos de construção de
sentidos. O conceito de prática, ao apontar o social e a cultura como fenômenos complexos e
indeterminados, traz consigo uma proposta metodológica compreensiva, e não explicativa ou meramente
intimista e autoral, do real observado.
30
A antropologia das emoções faz parte do movimento de ruptura epistemológica vivenciada nos Estados
Unidos dos anos 1970. Esta proposta teórico-metodológica opera com a categoria emoções como conceito
fundamental para a apreensão do humano e do social, a partir do qual a problemática metodológica do
entendimento da relação entre indivíduo e sociedade deve ser encarada. Constitui um caminho pautado na
observação da ação social individual, do self (do “Eu” inserido em teias de significado e redes de
interdependência) e das emoções que perfazem a interação entre os atores sociais de uma sociabilidade. A
antropologia das emoções se fundamenta na observação e análise da cultura emotiva de um espaço
interacional específico. Dentro desta proposta que busca observar e compreender a constituição social dos
selves no âmbito dos jogos interacionais de ordens sociais reais que se inter-relacionam de forma
complexa, as redes de interdependência negociadas entre os atores sociais nela implicados se constroem
historicamente e engendram uma cultura emotiva dada. Os medos, a vergonha, a raiva, a ira, a alegria, a
amizade, a angústia, a insegurança, a melancolia, a pertença e outros constituem vínculos sociais reais no
formato de díades, tríades e multidões, de acordo com Simmel, que se alinham cotidianamente a partir das
subjetividades enquanto unidades interacionais. O fenômeno das emoções aponta para as tensões no
espaço societal, enquanto subjetividades que se encontram e se rearranjam como conteúdos simbólicos
segundo códigos de ação específicos por eles produzidos. As emoções revelam a relação entre indivíduo e
sociedade de uma figuração (ELIAS, 1993, 1994, 2000, 2011), sociabilidade (SIMMEL, 1970, 1986,
1998, 2003, 2010, 2011, 2013) ou ordem social (GOFFMAN, 1988, 1998, 2010, 2012, 2012a, 2014).
31
Ver, por exemplo, os trabalhos de Koury (2005, 2006, 2008, 2009, 2010, 2010a e 2014), Werneck (2009
e 2011), Rezende e Coelho (2010).
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João Pessoa-Paraíba. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v.1, n.3, p.
78-89, novembro de 2017. ISSN 2526-4702.
Artigo
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/
Abstract: This article aims to present a first presentation of the research project
Comparative Balance of the Production of UFPB campus I on the city of João Pessoa,
Paraíba, 1992-2012, inserted in the lines of research of GREM/UFPB, entitled Observatory
on Cities and History of Social Sciences. The main objective of the project is the
elaboration of a Database on the academic production that has as its thematic universe the
city of João Pessoa, Paraiba, Brazil. The project also seeks to produce a balance of the
academic production of those who work in the Social Sciences, at UFPB campus I, as well
as in the cross-linking of this production with other disciplinary areas inside the UFPB
campus I. Keywords: GREM/UFPB, project comparative production of UFPB campus I on
the city of João Pessoa-PB, 1992-2012, city of João Pessoa, observatory on cities, history of
social sciences
32
Tem sido feito pari passu o levantamento dos Grupos de Pesquisa que deixaram de existir nesse longo
tempo analisado, por motivo do afastamento ou morte dos seus líderes, sem que houvesse uma
continuidade por outros docentes.
Tabela 1 - Distribuição dos grupos de pesquisa UFPB VS PB, NE, Brasil - 1993-2010
UFPB 101 2,3 105 1,4 158 1,8 175 1,5 265 1,7 179 0,9 194 0,9 243 1,1 352 1,3
Paraíba 118 2,7 126 1,7 181 2,1 224 1,9 318 2,1 329 1,7 372 1,8 491 2,2 662 2,4
Nordeste 434 9,9 714 9,8 987 11,4 1.720 14,6 2.274 15,0 2.760 14,2 3.269 15,5 3.863 16,9 5.044 18,3
Brasil 4.402 100 7.271 100 8.632 100 11.760 100 15.158 100 19.470 100 21.024 100 22.797 100 27.523 100
Fonte: Diretório Geral de Pesquisa do CNPq – dados trabalhados pela equipe de pesquisa
Esse dado reflete, sem dúvida, alguns momentos tensos de significação para a
produção acadêmica da UFPB e do estado da Paraíba. Um deles diz respeito ao
desmembramento, já comentado anteriormente, dos sete campi que compunham a
UFPB, com a criação da UFCG em 2002. O impacto causado pelo desmembramento, no
interior da UFPB aparecerá na súmula estatística organizada pelo Diretório Geral de
Pesquisa do CNPq a partir de 2004. É possível verificar na Tabela 1 o impacto sofrido
pela UFPB em relação ao número de grupos de pesquisa no Brasil: se em 2002 a súmula
estatística apontava a UFPB com um índice de 1,7% dos grupos de pesquisa do Brasil,
em 2004 esse percentual cai para 0,9%. O que significa em termos absolutos uma queda
de 265 grupos de pesquisa em 2002, para 179 grupos de pesquisa em 2004.
Um segundo impacto nesse mesmo período, que causou uma queda na produção
acadêmica e na composição dos grupos de pesquisa da UFPB, diz respeito ao corte de
incentivos à educação superior de ensino federal durante o governo de Fernando
Henrique Cardoso (FHC), e a política de esvaziamento das instituições federais de
ensino superior, com os incentivos à aposentadoria, durante o governo Collor e
continuada como pressão e falta de expectativas dos docentes no governo FHC. Durante
o governo de FHC, por exemplo, o esvaziamento de pessoal especializado [mestres e,
sobretudo, doutores] chegou a um grande percentual dos quadros das universidades
federais brasileira. Na UFPB, por exemplo, alguns programas de pós-graduação
perderam mais de 60% dos seus doutores, sem ter como repô-los, já que a política de
contratação era de cinco aposentados para uma vaga, que se tirava depois de muita briga
e discussão.
Um terceiro impacto, pensando na UFPB, se deu através da política de incentivo
ao ensino superior privado, também através do governo FHC. O qual desviou verbas de
pesquisa e bolsas de pós-graduação para instituições privadas sem tradição de pesquisa
e nem política de pessoal, deixando as federais como se diz popularmente a ver navios.
Impactos que abalaram as Universidades Federais de todo o país e foram marcantes no
esfacelamento da pesquisa e de Grupos de Pesquisa na UFPB, como pode ser notado na
Tabela 3 abaixo.
UFPB 101 2,3 105 1,4 158 1,8 175 1,5 265 1,7 179 0,9 194 0,9 243 1,1 352 1,3
BRASIL 4.402 100 7.271 75 8.632 100 11.760 100 15.158 100 19.470 100 21.024 100 22.797 100 27.523 100
Fonte: Diretório Geral de Pesquisa do CNPq – dados trabalhados pela equipe de pesquisa
Fonte: Diretório Geral de Pesquisa do CNPq – dados trabalhados pela equipe de pesquisa
33
Foi realizado um levantamento exaustivo das bases de pesquisa CNPq-UFPB Campus I, com o intuito
de verificar a história de cada base ou grupo de pesquisa, sua produtividade, seus docentes envolvidos,
seus técnicos e estudantes: doutorandos, mestrandos e graduandos. Foi aberto um canal de observação,
também, para a análise das vinculações dos grupos de pesquisa da UFPB com outros grupos brasileiros e
internacionais. Este levantamento será objeto de um novo artigo, em preparação.
FREIRE, Jussara; JUNIOR, Ailton Gualande; CONCEIÇÃO, Tayná Santos & TANTOW, Michelle
Gomes de Carvalho. Vulnerabilidades da experiência citadina: os métiers do público em Campos dos
Goytacazes e Macaé. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v.1, n.3, p. 90-112,
novembro de 2017. ISSN 2526-4702.
Artigo
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/
Vulnerabilities of the city experience and the access to urban public spaces in two medium-
sized cities: the public métiers in Campos dos Goytacazes and Macaé (RJ)
Jussara Freire et Al
Resumo: Neste artigo, apresentamos parte dos resultados da pesquisa Vulnerabilidades da experiência
citadina e acesso aos espaços públicos urbanos em cidades do Norte-Fluminense, coordenada por Jussara
Freire. Esta pesquisa foi realizada de 2014 a 2016 por uma equipe de quatro pesquisadores, autores do
presente artigo e todos integrantes do grupo Cidades, espaços públicos e periferias. Partimos das
contribuições de Isaac Joseph e de Gilles Jeannot (2002 [1995]) acerca das "relações de serviços" e dos
modos segundo os quais estes autores problematizam o serviço público. Também retomamos as
contribuições de Joseph (2007) sobre a noção de espaço público, mundo sensível, observável a partir da
descrição densa de experiências citadinas ordinárias e de seus ambientes. Articulando estas abordagens,
este projeto tinha como objetivo geral retomar sua proposta ecológica de situações para descrever e
interpretar quadros interacionais e morais de sociabilidades e públicos possíveis de cidades da região
Norte-Fluminense (escolhendo duas cidades como casos particulares do possível, Macaé e Campos dos
Goytacazes). Tratava-se de analisar momentos da vida cotidiana que contam com a presença de
profissionais que exercem os "métiers du public", isto é, de orientação, gestão de fluxos ou cuidados
de/com públicos diferenciados. Palavras-chave: vulnerabilidades da experiência citadina cotidiana,
espaços públicos, públicos, mundos sensíveis, descrição densa, quadros interacionais e morais de
sociabilidades urbanas
Abstract: In this article, we present part of the results of the research Vulnerabilities of the city
experience and the access to urban public spaces in cities of Norte-Fluminense, coordinated by Jussara
Freire. This research was carried out from 2014 to 2016 by a team of four researchers, the authors of this
article and all members of the group Cities, public spaces and peripheries. We begin with the
contributions of Isaac Joseph and Gilles Jeannot (2002 [1995]) about the "service relations" and the ways
in which these authors problematize the public service. We also recall Joseph's contributions (2007) on
the notion of public space, the sensitive world, which are observable from the dense description of
ordinary city experiences and their environments. By articulating these approaches, this project had as a
general objective to retake its ecological proposal on situations to describe and interpret the interactional
and moral frameworks of sociabilities and possible publics of cities in the North-Fluminense region
(choosing two cities as particular cases of the possible, Macaé and Campos dos Goytacazes). It was a
question of analyzing moments of daily life that count on the presence of professionals who exercise the
“métiers du public”, that is, exercises of orientation, of flow management or care of / with differentiated
publics. Keywords: vulnerabilities of everyday city experience, public spaces, public spaces, sensitive
worlds, dense description, interaction and moral frameworks of urban sociabilities
34
Ailton Gualande Junior e Michelle Gomes foram bolsista no quadro do Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação Científica - PIBIC/UFF em 2015 e 2016 respectivamente. Michelle Gomes também foi bolsista de iniciação
científica da Fundação de Amparo à Pesquisa Carlos Chagas em 2014 (IC/FAPERJ). A pesquisa ainda foi financiada
pela Pró-reitora de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação (PROPPI), no quadro do edital “Apoio a projetos de pesquisa
em campi fora da sede” de 2014 a 2015.
35
Freire; Gualande Junior, 2015; Freire; Gualande Junior, 2016.
36
Gomes (2017).
associação não governamental), observados por Michelle Gomes, atendem públicos que
podem ser encaminhados por assistentes sociais ou professores de instituições
municipais (como os serviços de assistências de prefeituras, ou ainda de escolas
municipais e estaduais). Paralelamente, esta associação tece inúmeras parcerias com
profissionais e gestores da Prefeitura de Campos. Desta forma, apesar de se tratar de
uma organização não governamental, os intensos contatos com instituições
governamentais borram as fronteiras entre o que pertenceria a um público rigidamente
associado ao “Estado” e formas associativas que seriam afastadas dele. Da mesma
forma, como é o caso das relações de serviço de transporte coletivo em Campos dos
Goytacazes analisadas por Ailton Gualande Junior, as empresas são privadas e
regulamentadas por uma série de dispositivos jurídicos, e ainda fiscalizadas por
funcionários da Prefeitura Municipal de Campos dos Goytacazes. Por estes motivos,
propomos considerar todos aqueles responsáveis por atendimentos e/ou cuidados com
públicos (independentemente da instituição, organização e empresa) como agentes de
serviço, novamente no sentido de Joseph e Jeannot (op. cit.).
I. Relações de serviço, transporte coletivo e públicos (Ailton Gualande Junior)
Ofícios dos despachantes, motoristas e cobradores
Todos os dias, de madrugada, ouve-se em determinados pontos da cidade a
“zoeira” dos motores que se aquecem ao serem ligados por seus condutores. Nas
garagens, a efervescência da vida citadina anuncia-se. Motoristas e cobradores se
aprontam para passarem as próximas oito horas acomodados em suas respectivas
poltronas. Analisam o intenso fluxo de pessoas no espaço do ônibus, pontos e terminais
rodoviários. Essas personagens não só observam, mas compõem o público (DEWEY,
1927) que transita pela cidade nos ônibus do transporte coletivo. O motorista, habituado
a seus automatismos (JOSEPH, 2007) para no ponto (nem sempre) quando alguém lhe
sinaliza a intenção de embarcar. Olha para o retrovisor direito, diminui a velocidade e
para. Pressiona certa alavanca que se situa ao lado esquerdo, entre seu braço e a janela
da poltrona. A porta se abre por meio do acionamento de um sistema pneumático. O
passageiro, então, embarca. Apoia-se nas barras de ferro acopladas na escada de acesso
ao ônibus. Finalmente alcança aquele corredor cercado por todos os lados. Posiciona-se
de frente para o cobrador. Durante toda movimentação o motorista analisou a situação
por meio do retrovisor central, o qual lhe proporciona uma visão ampla do interior do
veículo. Assim que percebe o reflexo do passageiro, engata a primeira marcha, olha para
o retrovisor esquerdo e arranca. Nesse momento o passageiro se aproxima do cobrador e
equilibra-se para não cair, sinalizando a intenção de pagar a passagem. O cobrador, mais
habituado aos solavancos recebe o dinheiro, e ao certificar-se que a quantia está correta
destrava a roleta para que o passageiro possa procurar um assento desocupado.
Estes dois agentes de serviço (JOSEPH; JEANNOT, op. cit.) trabalham em
conjunto. Por vezes, o cobrador utiliza-se do som de uma moeda contra a roleta para
sinalizar ao motorista que há pessoas com a intenção de embarcar. Em outros
momentos, o tilintar da moeda significa que o condutor pode arrancar, uma vez que
todos os passageiros embarcaram. Este tipo de interação ocorre principalmente em
momentos de grande movimento, quando os pontos estão cheios e, consequentemente
os ônibus também. Nessas ocasiões, a visibilidade do motorista por meio dos
retrovisores é reduzida. Portanto, a execução de seus automatismos segue a sinalização
de seu parceiro de trabalho.
Inseridos na dinâmica de circulação do transporte coletivo, esses profissionais
experimentam relações de serviço estreitas e constantes com os “usuários”. Mesmo
quando não se engajam em uma conversa, a interação face a face torna-se inevitável no
espaço do ônibus. Nesse sentido, retomando Joseph (2000), ambos podem ser
considerados homens públicos no sentido de que suas atividades são particularmente
orientadas por um esforço de figuração e de apresentação do eu em um espaço de
intenso fluxo de pessoas (GOFFMAN, 1991). Para Joseph, o quadro de observação
mútua gerado pela copresença dos atores leva-os a justificarem sua encenação
constantemente.
Na medida em que a pessoa que exerce a atividade de serviço é obrigada…a demonstrar
certa deferência em relação ao cliente, sua atuação pode se revestir de todas as nuanças
da teatralidade: ela pode exibir com ostentação os atributos de seu papel, limitar-se ao
laconismo imperturbável do profissional que cumpre seu contrato ou ainda mostrar-se
habilmente agressiva para demarcar seu território de atividade. (JOSEPH, op. cit, p.
47.).
Os públicos do transporte coletivo e relações de serviço
No eixo da pesquisa sobre o transporte coletivo, procurou-se mapear as
“relações de serviço” nas situações de filas do transporte coletivo em Campos os
Goytacazes/RJ, descrevendo as atividades de agentes de serviço em pontos de ônibus.
Propusemos uma etnografia cooperativa (JOSEPH, 2007; FREIRE; FREIRE;
GUALANDE JUNIOR, 2016) com o objetivo de retomar a questão da mobilidade e da
acessibilidade aos espaços públicos a partir dos “locais-movimento da cidade”
(JOSEPH, 2000) como terminais rodoviários, pontos de ônibus, ou ainda, no caso das
pesquisas realizadas por Isaac Joseph na França, estações de trem e metrô. Retomando
estas abordagens, procuramos descrever os diferentes quadros cognitivos (GOFFMAN,
2010) que ordenam as situações de espera, bem como parte da experiência citadina
campista.
A fila de espera dos ônibus representa um espaço privilegiado para apreender
modalidades de relações de serviço em meio urbano: A fila é um ajuntamento
multifocado (GOFFMAN, 2010) efêmero que reúne uma pluralidade de atores (em
particular, passageiros, despachantes, motoristas e fiscais). Nestas ocasiões, podemos
ainda apreender os sentidos do público, frequentemente conflitantes quando estes atores
compartilham estas situações e problematizam o transporte coletivo. Diferentemente de
outros contextos nacionais, no caso brasileiro o “público” do transporte público encobre
uma série de significados fortemente marcados por grandezas industriais e mercantis
(BOLTANSKI; THÉVENOT, 1991), e nos momentos de conflitos, eventualmente
cívicas (op. cit.). Do ponto de vista de muitos usuários, o transporte público é um bem
“pago” e, nesta qualidade, a expectativa é de eficiência do serviço em função da
justificativa do valor da tarifa. Do ponto de vista dos motoristas e despachantes, o
transporte público é entrelaçado com os dispositivos normativos empresariais: as filas
são administradas por eles a partir dos critérios de lotação de ônibus, privilegiando os
passageiros “pagantes”. Por sua vez, “os não pagantes”37 são aqueles em torno dos quais
emergem grande parte dos conflitos cotidianos.
As “relações de serviço” são caracterizadas, no caso do eixo desta pesquisa, por
situações em que agentes oferecem serviços (tidos como públicos, mesmo sendo
fornecidos, no caso dos despachantes e dos motoristas, por empresas privadas) para os
usuários. No caso em análise, estas relações se estabelecem entre os motoristas,
despachantes e cobradores, de um lado, e passageiros, de outro. Desta forma, o sentido
do serviço público é, no caso em análise, fortemente associado a uma transação
comercial e à mercantilização do transporte coletivo. Dessa forma, em Campos e mais
37
Categoria formulada pelos rodoviários. A primeira refere-se aos passageiros que pagam a tarifa. A segunda,
designa o grupo composto pela gratuidade do uso do transporte – idosos, deficientes e estudantes.
momentos em que deve parar para a o embarque de passageiros. Estes diferentes papéis
ocorrem no interior do ônibus e durante a sua locomoção, o que implica uma estreita
coordenação entre as suas atividades e aquelas do cobrador.
Por fim, na base hierárquica dos operadores do transporte encontra-se o
responsável pela arrecadação do valor da tarifa, o cobrador. Cabe a ele “liberar a
roleta”38 para a circulação dos passageiros. Semelhantemente ao motorista, o cobrador
também é um agente de controle – administra quem pode ou não passar pela roleta – e
ao mesmo tempo é responsável pela efetivação da transação comercial e de informação
aos usuários/clientes. Eventualmente, estas atribuições podem ainda se redefinir
momentaneamente. Caso se ausente o motorista ou o despachante, o cobrador pode
ocasionalmente administrar conflitos ou ordenar os fluxos de embarque e de conduta
dos passageiros.
“Quem você pensa que é?”
Esta hierarquia orienta as atividades dos operadores do transporte e a
distribuição de suas tarefas. Observamos apenas muito excepcionalmente momentos de
quebras desta distribuição ou, quando ocorreu, foi rapidamente abafada. Com efeito, o
despachante pode “suspender” motoristas e cobradores do trabalho, o que equivale em
descontos no salário do mês.
Nos momentos em que esta ordem hierárquica é colocada à prova, o conflito
torna-se inevitável. Retomamos uma situação exemplar para a compreensão dos
momentos em que emergem conflitos. Era uma tarde de domingo em uma área balneária
de Campos, Farol de São Tomé. Eu, Ailton Gualande Jr exercia, na época, a profissão
de fiscal de transporte39. Encontrava-me com outro colega fiscal no terminal rodoviário
local. No verão, a circulação de banhistas é intensa. Muitas pessoas utilizam o sistema
de transporte coletivo para se deslocar da região central de Campos até Farol, distante
aproximadamente 50 km. Pelo menos quatro empresas fazem a exploração deste
itinerário, alternando-se em horários diferenciados. Nesta tarde quente do mês de
janeiro, o terminal estava cheio de passageiros. Especialmente nesta ocasião,
determinado cobrador da empresa Jacarandá estava exercendo a função de despachante,
o que não ocorre normalmente. Durante o expediente procurou se aproximar de mim e
de meu colega, como forma de manter uma “camaradagem”, uma boa relação. Não
estava habituado a exercer a função de despachante, por isso buscava encenar uma
conduta amigável conosco. Esforçava-se para fazer com que os ônibus da empresa para
a qual trabalhava partissem superlotados. Movimentava-se de um lado a outro,
convidando os passageiros que quisessem viajar em pé para embarcar40. A razão para
este entusiasmo ficou clara na conversa informal que foi compartilhada. Afirmou que
estava prestes a ser promovido à despachante, por isso estava se empenhando em “fazer
dinheiro para mostrar serviço ao patrão”. O “fazer dinheiro” significava maximizar o
número de passageiros “pagantes” naquele ônibus. Se o resultado fosse capaz de
impressionar sua chefia, a promoção se efetivaria mais rapidamente. Para ele, além de
conferir maior poder sobre os demais colegas de profissão, ser promovido tinha também
motivação financeira. A diferença salarial girava em torno de 400 reais entre os dois
cargos.
38
Conhecida também como “catraca”, este dispositivo registra a entrada de cada passageiro, realizando a contagem
total.
39
Sobre a minha experiência profissional que se transformou paulatinamente em uma etnografia das filas de ônibus,
ver Gualande Junior, 2016.
40
Frequentemente, nos terminais e pontos, os passageiros interrompem o embarque assim que percebem que todos os
bancos do ônibus estão ocupados. Na certeza de que percorrerão todo o trajeto em pé, preferem esperar a chegada do
próximo ônibus na confiança de que terão uma poltrona para se acomodarem.
41
O momento crítico, segundo Boltanski e Thévenot (op. cit.) faz referência à atividade crítica das pessoas, que
surgem quando pessoas em interação percebem que “algo está errado”. Nas minhas observações nos terminais, esses
momentos surgiam, por exemplo, quando ocorriam atrasos muito grandes (mais de 15 minutos) na partida dos ônibus,
instante caracteriza-se pela percepção de um dos atores de que algo está errado, e que
portanto, não é possível manter-se calado. Este quadro gera uma performance no mundo
exterior segundo modos de justificações que se remetem a diferentes ordenamentos de
grandeza entendidas como as mais justas a serem acionadas no desacordo, e que
sustentam os sensos de justiça de quem as mobiliza.
II. Pacientes e atendentes: a vulnerabilidade da experiência de atendimento no
serviço público de saúde (Tayná Santos Conceição)
O Sistema Único de Saúde (SUS) resultou das lutas de redemocratização no
Brasil relacionadas com os movimentos de resistência da Reforma Sanitária contra a
ditadura militar. As décadas de 1960 e 1970 foram marcadas por lutas desse
movimento. Reivindicava-se a associação dos Direitos Humanos com o acesso à saúde,
o que implicava em uma reformulação das funções e atribuições do Estado
(BENEVIDES e PASSOS, 2005). A constituição de 1988 conferiu inúmeras conquistas
ao setor da saúde, assim como o esboço do Sistema Único de Saúde (SUS). Alguns dos
princípios gerais da Carta Magna (dispositivos normativos que orientam as relações de
serviço observadas em uma unidade de saúde de Campos dos Goytacazes) foram
essenciais para efetivar o SUS, dentre os quais destacamos: a autonomia dos Estados e
Municípios; o princípio de descentralização; a valorização da cidadania, estimulando a
participação popular. Essas questões gerais, em conjunto com a previdência e a
assistência social, guiaram também os princípios de igualdade e de universalidade (op.
cit.). Em 2003, o Ministério da Saúde propôs a Política Nacional de Humanização de
Atenção e da Gestão na Saúde (PNH). O plano tinha a finalidade de articular e
administrar as variadas dimensões relacionais entre gestores, profissionais e usuários,
elementos constitutivas do SUS. A pauta central na agenda pública passou a ser “a
humanização”, o qual nortearia desde então a gestão das unidades de saúde.
A unidade de saúde Aizita42 no centro de Campos dos Goytacazes
Campos é a maior cidade em extensão territorial do Estado do Rio de Janeiro
(IBGE, 2010). Entre março de 2009 e dezembro de 2010 a cidade aderiu ao “Pacto pela
Saúde”, dispositivo referente a um conjunto de reformas institucionais que condiciona a
implementação do Sistema Único de Saúde (SUS), uma vez que um de seus princípios
consiste em uma articulação da esfera municipal, estadual e federal (TCE-RJ, 2012). A
partir desse momento, o município apresentou um notável aumento no índice de
desenvolvimento do SUS, expandindo (numérico e qualitativamente) suas unidades de
saúde e reorganizando as estruturas existentes (op. cit.). De acordo com o IBGE (2010),
a cidade conta com 88 unidades de saúde pública, além daquelas estabelecidas por meio
de convênios entre a iniciativa privada, Estado e Município.
De acordo com o que os funcionários da Alzita compartilharam comigo durante
minha observação de situação de 2015 a 2016, a unidade realiza cerca de 21.600
atendimentos por mês. Do início ao fim de meu trabalho de campo, identifiquei que os
usuários eram moradores de 30 bairros diferentes. Esta unidade atende cerca de 35,29%
da população campista. A Aizita é uma unidade ambulatória e emergencial, por isso
o que levava os passageiros a reclamarem ao despachante da empresa responsável, originando, assim, um desacordo
em torno de algo considerado, pelos reclamantes, como errado e inaceitável. Os argumentos que se estabelecem entre
os acusadores e acusados se originam de um movimento de reflexividade e posterior performance exterior. Desse
modo, as pessoas envolvidas nesse tipo de situação precisam justificar suas ações de crítica, para sustentar suas ações.
As argumentações dos atores se pautam segundo princípios superiores comuns presentes nos diferentes ordenamentos
que podem estar presentes na situação: mercantil, industrial, cívico.
42
O verdadeiro nome da unidade de saúde foi alterado por exigência ética com a finalidade de preservar a identidade
de meus interlocutores.
permanece aberta 24 horas por dia e recebe dois médicos por plantão. A sala de espera,
de onde realizei minhas observações, é composta por 30 cadeiras de plástico. Quando o
paciente chega, deve preencher manualmente a ficha de atendimento com os auxiliares
de consultórios (antigamente denominados de auxiliar operacional de saúde). Estes
agentes de serviços são os primeiros atendentes com o qual o usuário interage, o que já
anuncia uma série de competência destes atores em situação de emergência. Apesar de
dispor de computadores, não há nenhum programa ou sistema de atendimento
informatizado disponível na unidade. No caso do eixo da pesquisa, observei os
atendimentos dos pacientes que chegavam na sala de espera da unidade. Além disso,
realizei 10 entrevistas (5 com usuários, 3 com auxiliares responsáveis pelo atendimento
e 2 com médicos) durante as quais cada um problematizou, desde diferentes lugares e
posições, o atendimento na unidade analisada.
O momento do atendimento segue uma ordem ritualizada (GOFFMAN, 2011)
das ações e procedimentos dos funcionários. Apesar do conjunto de dinâmicas e
imponderáveis que emergem constantemente na unidade, as atividades dos agentes de
serviço responsáveis pelo atendimento são altamente padronizadas e regulamentas pela
Política Nacional de Humanização de 2003. Como em muitas unidades de saúde, tais
procedimentos eram tidos como uma forma de garantir um tratamento humanizado no
serviço de saúde, gramática central que se fixa com e posteriormente ao SUS. Segundo
uma de minhas interlocutoras, tal padronização e sua repetição de “caso” em “caso”
permitia preservar a justa distância entre os profissionais e os pacientes de modo que o
agente de serviço pudesse se proteger do transbordamento emotivo gerado por algumas
situações. O “atendimento padronizado” foi suspenso momentaneamente em um
determinado dia em que um recém-nascido de três meses faleceu na unidade. Os
funcionários procuravam confortar os parentes presentes. Quando os pais não estavam
mais próximos dos funcionários, estes últimos comentavam o que tinha ocorrido, apesar
de ter visivelmente afetados pela morte do bebê. Tentavam continuar o curso rotineiro
de seu trabalho, ainda muito comovidos pela dor da mãe. Começaram a trocar
comentários jocosos nos quais repetiam constantemente a palavra “morte”. Por
exemplo, uma auxiliar exclamou em tom aparentemente irônico: “Meu celular morreu
totalmente”. Neste caso, tanto a repetição do termo quanto o tom de ironia pareciam
relacionados com um modo de reduzir a tensão coletiva e o mal-estar da situação e
procurar restituir a sequência anterior à chegada dos pais com o filho morto nos braços.
Em outros termos, neste dia, a conduta padrão dos agentes de serviço foi quebrada: os
funcionários se desestabilizaram e se esforçaram para voltar à ordem anterior do que
provocou o distúrbio conduzido por uma ética prática, procurando administrar a tensão
e compaixão geradas pela situação e suas integridades profissionais (CORCUFF, 1998;
VÉRAN, 2013)43. .
Paralelamente, nas entrevistas que realizei com os usuários, estes também
comentavam a repetição das seqüências de atendimento quando procuravam a unidade
43
A proposta de um regime de ação de compaixão (de interpelação ética em situações de face a face) é apresentada
por Corcuff (1998) a partir de uma análise, em contexto francês, dos engajamentos de enfermeiras com seus
pacientes, e de agentes da Agência Nacional Para o Emprego (ANPE) com desempregados. O autor analisa os modos
de engajamentos nas situações em que enfermeiras e agentes se deparam com a "miséria" do outro, destacando uma
tensão entre a compaixão e a preservação da integridade pessoal dos profissionais. Desta forma, o autor observa uma
ética prática que não é atravessada por uma explicação de princípios, mas é corporificada, fracamente reflexiva e
verbalizada (op. cit. p. 7). Véran (2013), dialogando com esta abordagem e os autores mobilizados por Corcuff (em
particular Lévinas), retomou o problema do sofrimento em presença em contexto de frente a frente com risco de vida
a partir de uma análise de uma operação dos Médicos Sem Fronteiras no Haiti, após um surto de cólera. Neste caso, o
autor insista em um dos aspectos levantados por Corcuff: As “blindagens”, “distâncias”, “bloqueios” contra a
compaixão para resolver esta tensão entre a “atenção exclusiva à singularidade e as exigências comuns de justiça”, e
para proteger a integridade pessoal contra os riscos de desagregação" (op. cit. p. 13).
a espera é então vista como um espaço muito dinâmico, que estabeleceria uma inter-
relação entre usuários e profissionais da saúde. Em relação aos atendimentos, os
funcionários compartilharam que perceberam melhorias no que tange ao acolhimento,
doravante “humanizado”. Comparando com experiências pessoais anteriores, observam
que há hoje maior tolerância com as diferenças sociais, culturais e sexuais, pelos
recursos sistemáticos destes dispositivos. Isso representa, segundo eles, uma “prova da
humanização” do SUS.
Para acessar o atendimento com o médico, os usuários precisam percorrer
etapas, cada uma com sentidos diferenciados do ponto de vista destes indivíduos. Um
importante ponto para compreender refere-se aos modos pelas quais diferentes atores
qualificavam a ritualização do atendimento, uma vez que esta dimensão parecia
informar a existência de uma “gramática da humanização” que orienta fortemente as
práticas profissionais, mas que é constantemente colocada à prova pelas avaliações dos
usuários. Frequentemente os sentidos da ordem ritualizada para os funcionários estão
relacionados às políticas de saúde executadas, mas também às distâncias que este agente
de serviço precisa preservar para garantir a rotina de seu trabalho. Logo, o “sistema
mais humanizado” corresponde, do ponto de vista dos profissionais do Alzita, a um tipo
de ordenamento institucional e cívico (BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991)
reformulado, que permite despersonalizar o perfil do paciente. Por sua vez, do lado dos
usuários, essa ritualização do atendimento causa estranhamento, talvez em função da
polissemia que o cuidado médico implica (o qual pode oscilar entre uma expectativa de
cuidado familiar e um tratamento médico despersonalizado). Por este motivo, muitos
dos pacientes se indignavam por certas modalidades de tratamentos e viam neles os
fundamentos de suas dignidades ameaçadas.
A Espera
O fato de que conflitos emergem principalmente em situações de espera é
relacionado com a natureza da vulnerabilidade da experiência do usuário do serviço de
saúde. Neste sentido, a menção ao “último recurso”, o conflito, é significativa à
vulnerabilidade da experiência do usuário nesta situação, pois a espera aumenta não
somente uma incerteza e insegurança quanto ao encaminhamento que lhe será dado,
mas também um desgaste físico provocado pelo longo período de tempo durante o qual
o paciente (um doente) permanece sentado em cadeiras pouco confortáveis ou em pé.
Observando que tais conflitos eram recorrentes nas situações que observei no posto,
perguntei aos entrevistados porque frequentam a unidade de saúde em questão. As
respostas se referiam à localização da unidade, sobre encontrar nela a possibilidade de
ser atendido, reiterando o medo de ir a outras unidades de saúde pública.
Assim, evitar a frequentação de certas instituições pode estar relacionado com a
reputação desta, ou com o extenso tempo de espera. Desta forma, a unidade do Azita é
aquela escolhida não por critérios de proximidade ou de qualidade, mas em comparação
com unidades a serem evitadas. A chegada na Azita gera incertezas e tensões que
pairam (e em alguns casos, se confirmam) no ato do atendimento médico por parte de
um usuário que, por falta de outras opções, é forçado a confiar com desconfiança neste
serviço.
As relações de conflito
A mudança na tonalidade da voz empregada por usuários, as discussões com
funcionários e as reclamações são frequentes quando se sentem “ameaçados” pela longa
espera e a falta de informação. Segundo Goffmam (1995), uma regra de conduta pode
servir como um guia das ações, realizada não porque é eficiente, mas sim apropriada à
situação, sendo mantidas pela honra de quase tudo. Quando a unidade de saúde não
atende as expectativas, os próprios usuários recorrem à forma do “barraco”. É no
momento em que o usuário não tem sua expectativa almejada que ele verbaliza sua
indignação. Estes conflitos estão normalmente associados a reclamações e “bate-bocas”
que ocorrem quando o usuário vê no tratamento que recebeu o desrespeito de sua
dignidade. A falta de reconhecimento, a negação da sua vivência e de sua dor representa
para o usuário um verdadeiro insulto moral (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2002),
gerando desconfianças, medos e angústias quando acessam o serviço de saúde.
Para os profissionais, os conflitos são negados e/ou encarados como
desimportantes mediante o “bom trabalho” de curar doentes e/ou receitar
medicamentos. Orientam suas atividades a partir dos dispositivos normativos que
regulam tais situações. Para os usuários, elevar o tom da voz significa tentar retomar o
controle da situação, enquanto para os funcionários, os conflitos são irrelevantes dadas à
necessidade de medicalização do paciente. Em suma, os diferentes sentidos de justiça e
injustiça em presença mobilizam constantemente a “gramática da humanização”. Tendo
em vista que parte dos conflitos ocorridos na unidade estão ligados ao tipo de
atendimento, torna-se desumanizado do ponto de vista dos usuários. Veremos então,
como a “gramática da humanização” é tratada por estes atores e como ela ancora
diferentes conflitos.
Humanização da saúde
Ao longo das observações surgiram inúmeros conflitos relacionados com diferentes
formas de qualificar e de dar sentido ao que seria a “humanização”. Para os funcionários,
esta categoria é frequentemente empregada e traduz um serviço público visto como mais
humanizado após o PNH. Ainda podem, por vezes, associar o atendimento ao acolhimento.
Por sua vez, os usuários do serviço raramente se referiam à “humanização”, geralmente
evitando mobilizar esta gramática. Portanto, “humanizar” a saúde no SUS se apresentava
por meio da qualificação (por profissionais) de práticas de saúde como o acesso,
acolhimento, a atenção integral, ou ainda, a valorização dos trabalhadores e usuários,
segundo os princípios norteadores do PNH.
O conceito de humanização apresenta pelo menos duas dimensões nas relações de
serviços de saúde. Durante as entrevistas, os usuários associavam a humanização à
“integralidade” e a “integridade” das pessoas que representavam o público dos
atendimentos. Em outros termos, a problematização da humanização está diretamente
relacionada com os atendimentos de saúde, uma vez que muitos usuários não se sentem
reconhecidos e tratados “dignamente” como pessoas nestas situações.
Para os funcionários, um sistema humanizado é aquele “acolhedor”, que atende as
necessidades médicas. Por outro lado, para os usuários, não pode existir um sistema
humanizado sem sentir o que pode ser “a dor do outro”. Assim, o usuário se remete a
necessidade de estar atento e compreender o seu sofrimento nestas situações. Observou-se
uma polarização de sentidos quanto à categoria de “humanização” relacionada com as
diferentes posições ocupadas pelos atores nestes momentos.
Estes atores expressam então que oferecem um atendimento “humanizado”,
nivelando “o humano” com o equipamento normativo que orientam suas atividades
cotidianas. Desta forma, se as etapas e os procedimentos são rotinizados por meio destes
repertórios normativos, não há sensação de conflito de qualquer tipo. Por outro lado, do
ponto de vista dos usuários, vimos que o reconhecimento do sofrimento, da dor, da
experiência da doença, bem como da atenção dada pelos profissionais em relação a esta
expectativa representa o fundamento da definição de um tratamento humanizado.
Os direitos previstos em normas jurídicas que regulamentam o setor da saúde são
orientados pela universalidade e igualdade nos serviços de saúde pública. Porém, estes
mesmos direitos são aplicados de forma particularizada e desigual no espaço público
(KANT DE LIMA, 2001). Dessa forma, apesar da ênfase dada ao tópico do universalismo,
as situações que observei configuram ao contrário, e próximo às contribuições de Kant de
Lima, definições e concepções de públicos que mais particulariza o sistema do que o
universalizam. Usuários e funcionários manifestam dificuldades em se sentir parte do
serviço de saúde, isso por conta dos inúmeros obstáculos, que variam segundo quem fala
(por parte dos profissionais, falta de equipamentos, falta de medicamento e etc. e dos
usuários, dos obstáculos às suas humanizações). Assim, os conflitos que emergem entre
usuários e funcionários estão intimamente relacionados com as tensões entre dispositivos
universais e situações particulares nas quais o tratamento geral e igual para todos é
constantemente colocado à prova.
Logo, as gramáticas presentes na unidade observada são pouco conciliáveis, de
modo que tampouco há um consensos sobre formas de qualificar “a humanidade” por conta
das tensões e conflitos cotidianos entre profissionais e usuários. A expectativa de ser “bem
tratado”, como usuário digno e humano, é interrompida quando o atendimento é conduzido
de modo apressado e expeditivo, ou ainda, com uma impessoalidade facilmente associada à
busca de maximizar a “eficiência do serviço” (portanto orientado a partir de registros
fortemente liberais). Paradoxalmente, estas características de atendimento são vistas como
um exemplo de humanização do ponto de vista do profissional diante do crescente
ordenamento industrial do serviço público de saúde (que ecoa com a observação de situação
anterior do serviço de transporte).
III. Atendimento às pessoas com deficiência: Relações de serviço e
vulnerabilidades (Michelle Gomes de Carvalho Tantow)
Os personagens das relações de serviço
O eixo da pesquisa que corresponde a situações de cuidado a pessoas com
deficiência propõe analisar e descrever parte de quadros interacionais que orientam
situações de encontro entre profissionais de cuidados (care) e pessoas (“jovens” e
“alunos”) com deficiências. Nestes momentos, as competências e atividades de “agentes
de serviço” diferem sensivelmente daquelas até então exploradas neste artigo. De
acordo com as modalidades de cooperações entre estes atores, emergem – como
procuraremos demonstrar – experiências (de ambos os lados) particularmente
vulneráveis.
A observação etnográfica in situ (CEFAÏ ET al., 2011) foi realizada em três
instituições: duas escolas municipais (educação infantil e outra de ensino fundamental)
localizadas em Macaé, e uma associação que atende pessoas com deficiência em
Campos dos Goytacazes.
Dentre “os alunos” e “jovens” que frequentavam a escola e a associação,
destacamos que suas “deficiências” podem ser caracterizadas a partir da tipificação
proposta por Goffman (2013): aqueles que apresentavam características e atributos
visíveis, o desacreditado (op. cit.), pois, não é possível disfarçar a falta de um dado
atributo, como por exemplo, o caso de um dos alunos “cadeirante” com deficiência
múltipla; e o desacreditável, cuja “deficiência” não era perceptível imediatamente
(como o surdo).
Os alunos nas escolas observadas eram autistas e com deficiências múltiplas
e/ou baixa visão. Na associação, alguns dos “jovens” eram surdos, outros ainda tinham
sido diagnosticados como “transtorno de conduta”, com Síndrome de Down, com
deficiências intelectual e/ou motora.
Entremeando as contribuições de Isaac Joseph com as categorias que emergiram
ao longo de minha pesquisa de campo, nos referimos ao agente de serviço para designar
as profissionais (professoras, cuidadoras, auxiliares de serviços escolares ou outras
especialistas) que “prestam serviços” em instituições escolares ou na associação,
para ilustrar uma ação ou uma atividade realizada pelo aluno), palavras-chaves que
permitiriam designar objetos e pessoas. O ato de apontar servia para reforçar de forma
concreta as características do objeto trabalhado: “Esse carro (figura) na sua mão é azul,
igual a este círculo, e sua bermuda também, você tem algum carro dessa cor?” (diz,
apontando para a sua camisa branca). Nesse momento a criança procurou mais figuras
espalhadas pela mesa, e me mostrou um helicóptero branco, com uma fina linha
vermelha no meio. Perguntei: “um helicóptero, em qual círculo ele deve ficar?”.
Respondeu-me mostrando o círculo em branco. Concluí: “Muito bem! Helicóptero
branco, no círculo branco!”. Esse quadro aponta para uma das dificuldades enfrentadas
por profissionais durante a relação de serviço no espaço escolar. Os agentes de serviço
dedicam parte importante de seu tempo de trabalho para realizar planejamentos, mas
estes esforços podem ser constantemente colocados à prova pelas características do
público que atendem, como nesta situação.
Paralelamente, as “sensibilidades” humanas são também outras importantes
competências das agentes de serviço. Na escola, as pessoas diretamente responsáveis
pelos alunos com deficiência, são as auxiliares de serviços escolares. Na associação
analisada, aquelas que ocupam funções semelhantes são chamadas de “pessoal de
apoio”. Em ambos os casos, suas funções consistem em “ajudar professores” e atender
crianças ou jovens com deficiência ou necessidades educacionais especiais. Tais
auxiliares passam grande parte (que pode variar sensivelmente segundo o nível de
dependência do usuário) de seu expediente ao lado do “jovem” ou “aluno” dependente
destes cuidados para seu aprendizado. O termo “auxiliar” é eloqüente das atividades
deste profissional, pois estes profissionais auxiliam ao processo de aprendizagem, à
alimentação e higiene do usuário do serviço. Por exemplo, na escola de ensino
fundamental, um aluno com múltiplas deficiências que auxiliava, não poderia seguir
uma rotina escolar sem auxílio destas profissionais (marcada por dificuldade de
locomoção, de ida ao banheiro ou por refeições). Quando ia ao banheiro, eu, enquanto
auxiliar deste aluno, pedia licença à professora e ela e eu levávamos o aluno até a porta
do banheiro. Por falhas de equipamento de acessibilidade da escola, tínhamos que
interromper momentaneamente a aula para levantar o aluno e conduzi-lo até o banheiro:
uma segurando-o por trás enquanto a outra elevava as pernas do jovem para colocá-lo
no assento sanitário. Em seguida saíamos do banheiro para dar privacidade ao aluno e
voltávamos quando ele chamava. Na sequência, eu entregava o papel ou lenço
umedecido para o aluno, “estimulando sua autonomia”, mas quando isso não era
possível, eu ou a própria professora terminava a higienização. Enfim, nós duas
vestíamos o usuário. Ocasionalmente, vestimos juntos o aluno, pois uma poderia
precisar manter o aluno em pé enquanto a outra colocava sua bermuda e o ajudava em
sentar na cadeira de rodas. Depois, a rotina da aula poderia prosseguir. Ambas fazíamos
estes gestos semelhantemente àqueles de enfermeiros, isto é, profissionalizando
cuidados íntimos no esforço de diminuir o incômodo do aluno.
Estes tipos de situações, por afetar a intimidade do aluno, realçam a
vulnerabilidade da experiência do aluno com deficiência e a natureza da sensibilidade
que as agentes de serviço. Nesse quadro as vulnerabilidades dos usuários e dos agentes
se apresentam segundo situações variadas e se relacionam, em alguns casos, com as
dificuldades provocadas pelos cuidados com pessoas que apresentam dependências
profundas e com a inadequação do equipamento da situação, que proporciona. O
equipamento do ambiente de trabalho é assim outro fator que contribui para o aumento
ou redução da vulnerabilidade destes tipos de “usuários”. Quando este é falho, pode
limitar consideravelmente as ações das profissionais considerando a urgência dos
cuidados rotineiros.
Nas situações de atendimentos na área de saúde, do ponto de vista dos agentes deste
serviço, “o público” podia ser ocasionalmente associado à gramática 46 da “humanização”.
Como observamos se “a humanização” era associada, pelos usuários que foram nossos
interlocutores, aos repertórios do respeito, da dignidade e integridade a partir dos quais
reivindicavam-se uma consideração do sofrimento de pacientes. Do lado dos agentes de
serviços, ela era fortemente assimilada aos dispositivos normativos que redefiniram
modalidades e equipamentos de atendimentos, os quais passaram a orientar, com um
conjunto de rituais, as diferentes etapas de atendimentos de pacientes. Segundo os
profissionais, os protocolos estipulados por normas de atendimentos eram tidas, por eles,
como modalidades que garantiriam “a universalização” de um serviço doravante fortemente
protocolarizado, o que realçava a grandeza industrial de um serviço norteado por exigências
e comprovações de quantidade de atendimentos, de sua eficácia e eficiência. Neste caso, “o
protocolo” se apresenta como uma condição do serviço e uma garantia, na unidade, de que
pacientes com doenças e ferimentos graves sejam tratados com prioridade e com
atendimentos específicos, ou ainda, como um dispositivo de controle a partir do qual se
elabora estatísticas da unidade. Observa-se ainda que para os profissionais, os protocolos da
“saúde humanizada” também se relacionavam com modalidades de efetivação de ética
prática, a partir das quais era possível um distanciamento profissional diante do sofrimento
em presença, o que era precisamente o ponto de vista criticado pelos usuários do serviço
que, em geral, raramente se sentiam “humanos” quando frequentavam a unidade analisada.
Paralelamente, muitos agentes de serviço podiam se indignar quando considerada os
obstáculos ao projeto de uma “saúde humanizada”. Nestes casos, partindo de suas rotinas
profissionais, indignavam-se com a falta de medicamentos essenciais, ou ainda, de
aparelhos médicos, ou com outros equipamentos quebrados que nunca forma concertados
ou substituídos. Do ponto de vista dos usuários, como vimos, a “humanização” do serviço
era constantemente criticada. Dentre a profusão de indignações dos usuários, podemos
destacar as consequências de um atendimento cegamente e em demasia protocolarizado
diante da dor e do sofrimento do paciente, do tempo de espera do atendimento médico na
unidade, da falta de medicamentos ou equipamentos descobertos em situação de doença, da
dificuldade de encaminhamentos para outras unidades da cidade também escassas em
equipamentos e medicamentos. Desta forma, se as normas jurídicas que regulamentam o
serviço de saúde são apresentadas a partir dos repertórios de universalidade, de igualdade e
de humanização, a análise de situação também permite apontar para os modos segundos os
quais como “o direito à saúde” se aplica de forma particularizado e desigual (Kant de Lima,
2001), pois como alguns interlocutores compartilharam, uma melhor garantia para a
elaboração de um diagnóstico confiável deveria ser feito em uma unidade de saúde
particular que dispõe de equipamentos adequados e de medicamentos.
As situações analisadas em mundos escolares e de formação de alunos com
deficiências, pode-se observar paralelos em relação àquelas das relações de serviço na área
de saúde, porém com repertórios normativos diferenciados. Neste caso, “as auxiliares” são
tornam-se profissionais determinantes para “universalizar” o acesso à educação ou à
“inclusão” do mercado do trabalho. Neste caso, tal “universalização” consiste em garantir
um “acesso igual à educação” por meio de um acompanhamento particularizado e cuidados
corporais e afetivos, em mediar as interações entre professores e pais, ou ainda, em reduzir
os embaraços que podem ser provocados quando “alunos normais” (no caso das escolas de
Campos e Macaé) encontram-se em copresença com “alunos com deficiência”. Na
associação, os princípios orientadores das atividades das profissionais, são fortemente
marcados pelos repertórios “de inclusão no mercado do trabalho” e de “autonomia”. Pode-
46
O termo “gramática” se refere ao conjunto de regras a serem seguidas para agir de forma ajustada diante das outras
pessoas que compartilham a mesma situação (LEMIEUX, 2000; BOLTANSKI, 1990 e THÉVENOT e
BOLTANSKI, 1991). Sobre uma gramática de “humanização” em contexto brasileiro, Cf. Freire (2010) e Freire e
Teixeira Pinheiro (2017).
se, assim, observar, nas situações exploradas, como os sentidos conferidos ao público
entremeiam-se com uma gramática de autonomia do usuário, a qual orienta as atividades
profissionais e os engajamentos destes agentes. Breviglieri (2009), ao analisar as
perspectivas normativas que promovem a figura do indivíduo e o bem essencial da
autonomia na tradição liberal. Destacou que o que pode evocar “um excesso de
proximidade” (op. Cit.) pode se converter facilmente em uma ameaça da autonomia.
Retomando esta proposta, observa-se como nas situações analisadas neste texto “a ética
prática” dos agentes de serviço é também uma modalidade de preservar o “justo
distanciamento” em relação a certas dependências de usuários (por exemplo, a higiene
corporal). Assim, a ética prática opera também como forma de lidar com atividades que
pressupõem contatos em nível de intimidade e permite evitar, em certas ocasiões, o
embaraço e a compreensão do usuário (e do profissional) em relação a um contato
dificilmente suportável devido às implicações de uma necessária proximidade (como ocorre
durante os cuidados de higiene, de alimentação etc.) que, neste caso, pressupõe um conjunto
de habilidades dos agentes de serviços. Paralelamente, como vimos, o peso da gramática da
autonomia pode implicar em um pressuposto de incompetência generalizada destes usuários
pelos profissionais, ou ainda, em desconsiderar a pluralidade de deficiências e as
especificidades de atendimentos neste caso (como vimos com este aluno surdo que não
poderia ouvir e entender a recomendação da instrutora sem uma tradução em Libras).
Enfim, este artigo procurou explorar uma série de situações de relações de serviços,
interações entre profissionais de atendimento que agem de acordo com um amplo leque de
repertórios normativos e outras, que esperam, nestes mesmos momentos, cooperações
destes profissionais para circular, se tratar ou se formar (no caso deste artigo). A expectativa
dos usuários que frequentem alguns destes serviços (o transporte, em particular, pela sua
combinação com os mundos das empresas) é, como vimos, marcada por desconfiança,
suspeita e antecipação da provável “má qualidade” da prestação por ela ser associado a um
“público”. Paralelamente, os “direitos de usuários”, como costuma ser lembrado nos
momentos críticos de relações de serviço, são também frequentemente evocados desta
forma por profissionais de saúde e escolares. Porém, de ambas as partes, incluindo as
definições encontradas nos dispositivos jurídicos, “o usuário” não é, no conjunto de
normatividades que orientam as transações cotidianas, apenas um “sujeito de direito”; é
também um “cliente”, um “passageiro”, “um pagante”, “um não pagante”, “um portador de
necessidades especiais”, um “deficiente”, uma “senha”, “um paciente”, “um dependente”,
“um cidadão”, “uma pessoa em curso de construção” (etc.) em busca de um serviço. Pode-
se observar que as situações analisadas apontam para profundos contrastes em relação as
contribuições de Gilles Jeannot sobre o serviço público na França ou em outros contextos
europeus “bons para pensar”, na nossa proposta, as problematizações do serviço público em
contexto brasileiro. Apresentando o conjunto de problematizações que contribuem para o
estatuto do usager na França, Jeannot (1998) aponta para o fato de que, aos poucos, o
debate se volta para “a efetividade do acesso aos serviços públicos” no sentido dos
engenheiros do final dos anos 50 na França. Paulatinamente, o usager figura como
personagem na junção da oferta e a demanda e de difusão de um projeto de racionalização
industrial associado à intervenção pública. Posteriormente, já na década de 70, o serviço
púbico se constrói a partir de um compromisso entre “um princípio de uniformidade de uma
oferta estandardizada e um princípio de igualdade de tratamento”, por vezes alvo de críticas,
uma vez que são assim desconsideradas peculiaridades e singularidades das situações. Os
movimentos de problematizações seguintes, mais recentes, consistem “em reintroduzir a
singularidade do usuário nos dispositivos de produção de serviços públicos. – Serviços
públicos foram assim conduzidos em se interrogar ativamente sobre o que produz a
qualidade das prestações que oferecem aos usuários e em introduzir novos métodos de
gestão mais reativa; – Diversas tentativas de des-regularização ou de privatização (...)
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PARK, Robert Ezra. A migração humana e o homem marginal. Tradução de Mauro Guilherme Pinheiro
Koury. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v.1, n.3, p. 114-123, novembro
de 2017. ISSN 2526-4702.
Tradução
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/
Robert E. Park
Tradução de Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Abstract: Migrations, with all the incidental collision, conflicts, and fusions of peoples and
of cultures which they occasion, have been accounted among the decisive forces in history.
Every advance in culture, it has been said, commences with a new period of migration and
movement of populations. Present tendencies indicate that while the mobility of individuals
has increased, the migration of peoples has relatively decreased. The consequences,
however, of migration and mobility seem, on the whole, to be the same. In both cases the
"cake of custom" is broken and the individual is freed for new enterprises and for new
associations. One of the consequences of migration is to create a situation in which the
same individual-who may or may not be a mixed blood-finds himself striving to live in two
diverse cultural groups. The effect is to produce an unstable character-a personality type
with characteristic forms of behavior. This is the "marginal man." It is in the mind of the
marginal man that the conflicting cultures meet and fuse. It is, therefore, in the mind of the
marginal man that the process of civilization is visibly going on, and it is in the mind of the
marginal man that the process of civilization may best be studied. Keywords: migrations,
marginal man, conflicting cultures, process of civilization
Publicado originalmente sob o título “Human migration and the marginal man”. The American Journal
of Sociology, v. 33, n. 6, p. 881-893, May, 1928. A Sociabilidades Urbanas Revista de Antropologia e
Sociologia agradece a autorização para a tradução e publicação em português.
47
David Hume (1711-1776) filósofo, historiador e ensaísta britânico, nascido na Escócia, que se tornou
célebre por seu empirismo radical e seu ceticismo filosófico. [Nota do tradutor].
48
Anne Robert Jacques Turgot (1727-1781). Economista e estadista francês cuja obra é considerada um
elo entre a fisiocracia e a escola britânica de economia clássica. (Nota do tradutor]
vivido juntas nos contatos íntimos que uma economia comum impõe, na qual a
contiguidade racial não tenha produzido híbridos raciais. No entanto, mudanças nas
características raciais e nos traços culturais seguem taxas muito diferentes, e é notório
que as mudanças culturais não são consolidadas e transmitidas biologicamente, ou pelo
menos apenas, se for o caso, em uma proporção muito pequena. As características
adquiridas não são herdadas biologicamente.
Os escritores que enfatizam a importância da migração como uma agência de
progresso são invariavelmente levados a atribuir um papel semelhante à guerra. Assim,
Theodor Waitz, comentando a questão da migração como uma agência da civilização,
aponta que as migrações são "raramente de natureza pacífica no início". Da guerra, ele
diz: "A primeira consequência da guerra é que relações fixas são estabelecidas entre os
povos, que tornam possível uma relação amigável, relação esta que se torna a mais
importante, favorecendo o intercâmbio do conhecimento e experiência, do que com o
mero intercâmbio de mercadorias" (Waitz, 1963, p. 347). E então ele acrescenta:
Sempre que vemos um povo, de qualquer grau de civilização, que não
vive em contato e ação recíproca com os outros, geralmente
encontraremos certa estagnação, inércia mental e falta de atividade,
que tornam qualquer mudança de condição social e política
impossível. Esta é, em tempos de paz, transmitida como uma doença
eterna, e a guerra aparece, então, apesar do que os apóstolos da paz
possam dizer, como um anjo salvador, que desperta o espírito nacional
e torna todas as forças mais elásticas (Waitz, 1863, p. 348).
Entre os escritores que concebem o processo histórico em termos de intrusões,
tanto pacíficas, quanto hostis, de um só povo ao domínio de outro, se encontra os
sociólogos Ludwig Gumplowicz49 e Franz Oppenheim (1914). O primeiro, no esforço
de definir o processo social de forma abstrata, o descreveu como a interação de grupos
étnicos heterogêneos, onde a subordinação resultante e a super-ordenação de raças
constituem a ordem social – a sociedade, - de fato.
Do mesmo modo, Oppenheim, em seu estudo sobre a origem sociológica do
estado, acredita que demonstrou que, em todos os casos, o estado teve seu começo
histórico na imposição, pela conquista e força, da autoridade de um nômade sobre um
povo sedentário e agrícola. Os fatos que Oppenheim reuniu para sustentar sua tese
mostram, de qualquer forma, que as instituições sociais, na verdade, em muitos casos
pelo menos, surgiram abruptamente por uma mutação, em vez de um processo de
seleção evolutiva e a acumulação gradual de pequenas variações? (Oppenheimer, 1914).
Não é aparentemente evidente o porquê uma teoria que insiste na importância da
mudança catastrófica na evolução da civilização não deva, ao mesmo tempo, levar em
consideração a revolução como um fator em progresso. Se a paz e a estagnação como
sugere Waitz, tendem a assumir a forma de uma doença social; se, como diz Summer,
"a sociedade precisa ter algum fermento em si" para acabar com esta estagnação e
emancipar as energias dos indivíduos encarcerados dentro de uma ordem social
existente; parece que alguma "loucura aventureira", como as cruzadas da Idade Média,
ou algum entusiasmo romântico, como o que se expressou na Revolução Francesa, ou
na mais recente aventura bolchevique na Rússia, pode ser tão eficaz quanto a migração
ou a guerra para interromper a rotina do hábito existente e quebrar o cake of customs50.
As doutrinas revolucionárias são naturalmente baseadas em uma concepção de mudança
49
Ludwig Gumplowicz (1839- 1909). Autor de uma teoria sociológica do Estado baseada na
luta de raças e na conquista dos povos mais fracos pelos mais fortes. [Nota do tradutor].
50
Expressão inglesa que sugere o conjunto de costumes em que uma sociedade está enraizada. [Nota do
tradutor].
Foi no interior dos muros da polis e nessa companhia mista que a civilização
grega nasceu. Todo o segredo da vida grega antiga, a sua relativa liberdade das
superstições mais grosseiras e do medo dos deuses, está ligada, dizem-nos, com esse
período de transição e caos, no qual o mundo primitivo anterior pereceu e da qual uma
mais livre, e mais esclarecida ordem social surgiu. O pensamento foi emancipado, a
filosofia nasceu e a opinião pública se estabeleceu como uma autoridade contra a
tradição e o costume. Como Arnold Guyot, em seu Earth and Man (1857), citado por
Thomas (1921, p. 205), diz: "O grego com seus festivais, suas canções, suas poesias,
parece celebrar, em um hino perpétuo, a libertação do homem dos poderosos grilhões da
natureza".
O que ocorreu na Grécia, primeiro, ocorreu a seguir no resto da Europa e, agora,
está acontecendo na América. O movimento e a migração dos povos, a expansão do
mercado e do comércio e, particularmente, o crescimento, nos tempos modernos, desse
cadinho de raças e culturas, que são as cidades metropolitanas, afrouxaram os laços
locais, destruíram as culturas da tribo e do povo, e substituíram as lealdades locais pela
liberdade das cidades; e a ordem sagrada do costume tribal, pela organização racional
que chamamos de civilização.
Nessas grandes cidades, onde todas as paixões, e todas as energias da
humanidade são liberadas, estamos em posição de inquirir os processos da civilização,
por assim dizer, sob um microscópio.
É nas cidades que os antigos grupos de clãs e parentes se fragmentaram e foram
substituídos por organizações sociais baseadas em interesses racionais e predileções
temperamentais. É nas cidades que se realiza, de forma mais intensa, a grande divisão
do trabalho que permite e, mais ou menos compele o homem individual, a concentrar
suas energias e seus talentos na tarefa particular a que se encontra melhor equipado para
executar, e desta forma o emancipa, e a seus companheiros, do controle da natureza e
das circunstâncias que dominava completamente o homem primitivo.
Acontece, entretanto, que o processo de aculturação e de assimilação, e o
amalgama que acompanha os estoques raciais, não prosseguem com a mesma facilidade
e a mesma velocidade em todos os casos. Especificamente, onde os indivíduos expostos
a uma vida comum são de culturas divergentes e de conjuntos raciais muito diferentes, a
assimilação e o amalgama não ocorre tão rapidamente quanto ocorrem em outros casos.
Todos os nossos chamados problemas raciais emergem de situações em que a
assimilação e amalgamação não ocorreram, ou ocorrem muito devagar. Como já disse
em outro lugar, o principal obstáculo para a assimilação cultural das raças não é o seu
aspecto mental diferente, mas sim os seus traços físicos divergentes. Não é por causa da
mentalidade dos japoneses que eles não assimilam tão facilmente quanto os europeus. É
por que
o japonês apresenta em seus traços uma distinção distintiva racial, que
ele usa, por assim dizer, como um uniforme racial que o qualifica. Ele
não pode se tornar um mero indivíduo, indistinguível na massa
cosmopolita da população, como é verdade, por exemplo, em relação
aos irlandeses e, em menor grau, de algumas outras raças imigrantes.
O japonês, como o negro, está condenado a permanecer entre nós
como uma abstração, um símbolo, - e um símbolo não apenas de sua
própria raça, mas do Oriente e daquela ameaça vaga e mal-definida a
que às vezes nos referimos como "perigo amarelo" (Park, 1914).
Sob tais circunstâncias, povos de diferentes estoques raciais podem viver lado a
lado em uma relação de simbiose, cada um desempenhando um papel em uma economia
comum, todavia, e em grande medida, não acasalando; cada qual mantendo uma
muitas vezes, termina em uma profunda desilusão, como descrito, por exemplo, na
autobiografia de Lewisohn (1922) Up Stream (Rio Acima).
Contudo, a hesitação inquietante de Lewisohn, - entre a segurança calorosa do
gueto, que ele abandonou, e a liberdade fria do mundo exterior, na qual ele ainda não se
sente em casa, - é típica. Um século antes, Heinrich Heine 51, dilacerado pelas mesmas
lealdades conflitantes, e lutando para ser ao mesmo tempo um alemão e um judeu,
promulgou um papel semelhante. Foi o segredo e a tragédia da vida de Heine, de acordo
com o seu biógrafo mais recente, que as circunstâncias o condenaram a viver em dois
mundos, em nenhum dos quais ele já não sentia como seu, e não mais pertencia. Foi isso
que amargou a sua vida intelectual e deu a seus escritos o caráter de conflito espiritual e
instabilidade. Conflito este que, de acordo com Lewis Browne (1927, p. 355), é a
evidência de uma “angústia espiritual” (spiritual distress). A sua mente já não tinha a
integridade baseada na convicção: "os seus braços eram fracos" - para continuar a
cotação - "porque a sua mente estava dividida; as suas mãos estavam inquietas, porque a
sua alma estava em tumulto".
Algo do mesmo senso de dicotomia e conflito moral é provavelmente
característica de todos os imigrantes durante o período de transição, quando os velhos
hábitos estão sendo descartados e os novos ainda não estão formados. É inevitavelmente
um período de turbulência interior e de autoconsciência intensa.
Não há dúvida de que os períodos de transição e crise nas vidas da maioria das
pessoas podem ser comparáveis com o que o imigrante experimenta quando sai de casa
para buscar a sua fortuna em um país estranho. Mas, no caso do homem marginal, o
período de crise é relativamente permanente. O resultado é que isso tende a se tornar um
tipo de personalidade. Normalmente, o homem marginal é de um sangue misto, como o
mulato nos Estados Unidos ou o Eurasiático na Ásia, mas é apenas aparentemente,
porque o homem de sangue misto é aquele que vive em dois mundos, nos quais ele é
mais ou menos um estranho. O cristão convertido na Ásia ou na África exibe muitas
características, se não a maioria, do homem marginal: a mesma instabilidade espiritual,
a autoconsciência intensificada, a inquietação e o mal-estar.
É na mente do homem marginal que a turbulência moral que os novos contatos
culturais ocasionam, se manifesta nas formas mais óbvias. É na mente do homem
marginal, por fim, - onde as mudanças e fusões da cultura estão acontecendo - que
podemos estudar melhor os processos de civilização e de progresso.
Referências
BROWNE, Lewis (with the collaboration of Elsa Weihl). That man Heine: a biography.
New York: Macmillan Company, 1927.
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Holt and Co., 1911.
GOBINEAU, Arthur de, The Inequality of Human Races London: William Heinemann,
1915.
GRIFFITH Taylor, Environment and Race: A Study of the Evolution, Migration,
Settlement, and Status of the Races of Men, Oxford: University Press, 1927.
51
Christian Johann Heinrich Heine (1797-1856). Poeta romântico alemão, conhecido como “o último dos
românticos”. [Nota do tradutor].
ARAÚJO, Marianna de Queiroz. A Família Lundgren e a fundação da cidade de Rio Tinto: Do medo ao
acirramento dos conflitos fundiários. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia,
v.1, n.3, p. 124-135, novembro de 2017. ISSN 2526-4702.
Artigo
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/
The Lundgren Family and the foundation of the city of Rio Tinto: From fear to the tension
increase of land conflicts
Marianna de Queiroz Araújo
Abstract: The present article intends to analyze the social meanings of the political and
economic project of dominion of the Lundgren in Rio Tinto, Paraiba, Brazil, that was based
on the establishment and maintenance of social relations strongly hierarchical. I take the
implantation of the Rio Tinto Fabric Company and its power regime as a counterpoint to
the recognition of ethnic boundaries, where the practices of domination played a
determining role, conditioning the social organization and political organization of the
indigenous people of Potiguara. The denial and silencing of ethnic identity caused by
economic instances of control and submission were only reversed through confrontation
with Companhia Rio Tinto and sugarcane mills, leading the Potiguara as early as the 1990
to organize by demarcation of their lands. Keywords: indigenous potiguara, ethnic
identity, city of Rio Tinto, land conflicts
Os grandes estudiosos da história das cidades bem sabem que o surgimento dos
núcleos urbanos se deu, ao longo dos tempos, pelos mais diferentes motivos. Algumas
cidades ganharam corpo a partir da implantação de um porto marítimo, como foi o caso
de Recife; outras foram erguidas para dar suporte à extração de minérios, como ocorreu
em diversas cidades de Minas Gerais. A fundação da cidade de Rio Tinto, escopo deste
artigo se deu a partir da instalação da Companhia de Tecidos Rio Tinto, os Lundgren,
grupo familiar proprietário do empreendimento fabril, costumam ser referenciados
como os fundadores da cidade, essa formação desponta como fio condutor das análises
aqui apresentadas.
Rio Tinto é um dos municípios do estado da Paraíba, distante 52 km da capital
João Pessoa, com uma população de 24.154 habitantes, segundo dados do Censo
Demográfico de 2017 do IBGE. Este município possui uma área de 465 km² de
extensão territorial e encontra-se localizado na Mesorregião da Mata Paraibana, mais
52
A Terra Indígena Potiguara de Monte-Mór foi identificada e delimitada pela FUNAI (Fundação
Nacional do Índio) em 2004, com portaria declaratória de 13 de dezembro de 2007, autorizando a
demarcação física da área, que ocorreu em 20096. O processo de demarcação da Terra Indígena segue
aguardando homologação da Presidência da República e sofre uma contestação judicial por parte da
Miriri Alimentos e Bioenergia S/A que alega ser proprietária da maior parte da área demarcada. Tendo
adquirido os imóveis por compra a Companhia de Tecidos Rio Tinto e à Agropastoril Rio Vermelho S/A
(Palitot, 2015).
53
Informação obtida a partir de dados do Distrito Sanitário Especial Indígena, o DSEI Potiguara do
Ministério da Saúde.
54
O conjunto das aldeias constitui três Terras Indígenas (TIs) contíguas, perfazendo um total de 33.757
hectares. A TI Potiguara (população de 8.109 pessoas), a TI Jacaré de São Domingos (população de 449
pessoas) e a TI Potiguara de Monte Mór (população de 4.447 pessoas), (Cardoso, et al, 2012, p.15).
55
O SPI foi criado em 20 de junho de 1910, pelo decreto nº. 8072.
56
Tijolo maciço de estilo Holandês.
57
Bairro de Rio Tinto.
58
Espécie de caranguejo (Cardisomaguanhumi).
que chegavam para o transporte de equipamentos e tecidos serem de grande porte, era
difícil a locomoção nos rios, já que esses apresentavam várias curvas. Sendo assim, para
facilitar a navegação a Companhia “abriu” novos rios:
Eu ás vezes até choro com desgosto (...) pra o que eu vi e pra o que eu
vejo agora. Ai se eu falar, quem não conhece não vai acreditar... a
maré acabada aí. Porque o cara que, o engenheiro que cavou esse rio,
aquele rio da draga (...) ele falou, disse: Olha; a gente vai cavar esse
rio, mas o passar do tempo, o rio vai voltar mermo pra onde era. Mas
sabe por que não aconteceu isso? Porque o rio aqui acabou-se.
Aterrou, aterrou tudo aqui, pronto aí o rio ficou morto, sem força (...)
Mas como o rio aqui aterrou, fechou, que hoje ninguém disse que é
rio, né? Aí pronto, aí acabou com o rio. Mas se o rio aqui tivesse
ainda, pelo menos 30% do que era, 30%, eu vou falar assim: Ôxe,
tinha aberto aí com tudo...A dificuldade do barco entrar aqui que tinha
muita volta, aí não tem aquela reta aquele barco que veio de baixo
entrava para Taberaba chamava comporta, esse meio daquela reta só
era mangue, então o que deu? A companhia resolveu cavar aquele rio,
como? na base da pá do enxadeco, cortaram o mangue. Na hora que
começou cavar só parou quando terminou, era uma turma de dia e
outra de noite, uma turma de um lado, outra de outro, até se encontrar,
enchia as canoa e recebia a ficha, cortaram o rio (...) O que fizeram
com esse aqui? Mataram o rio, que não ia ter mais movimento de
barco aqui né? La no encontro do rio afundaram uma alvarenga59, ela
era bem comprida tem uns 15 metros afundaram ela, ficou um
canalzinho. Hoje tá lá um canal que foi caindo barreira que foi
enlarguecendo60, que quem vê o começo não acredita. (Seu Zé Boto.
Entrevista concedida em Julho de 2013).
A Companhia necessitava semanalmente de milhares de metros cúbicos de lenha
para operar seus geradores termoelétricos. Em função dessa necessidade, a retirada de
madeiras e outros recursos florestais era proibida, sendo severamente fiscalizada e
punida caso os vigias achassem que isso ameaçava os recursos de domínio da
Companhia (PANET,op.cit.,).
De acordo com Marques, 2009, p.117
Entre os Potiguara, as denominações “sargento” e “capangas” são
utilizadas para referenciar os vigias e para demonstrar o medo que
ainda hoje é guardado como más lembranças do tempo da “amorosa”.
Nesse tempo, os indígenas não podiam se reconhecer como tal, caso
algum quisesse se rebelar era duramente castigado pelos capangas do
Frederico. Tempos de medo, de “assombração”, de silêncio e de
usurpação das terras tradicionais são palavras utilizadas pelos
Potiguara ao referenciar o momento da instalação da CTRT.
Vários tipos de represálias eram efetuadas a quem desobedece as ordens do
coronel FredericoLundgren:
As torturas e mortes eram realizadas nas instalações da fábrica ou no
meio do mato, em lugares ermos. Na fábrica, falam que os índios eram
atirados dentro de uma das caldeiras. Havia um lugar na Mata do
Burro D‟água onde dentro de um buraco tinha umas agarras de ferro,
onde os cabocos eram atirados. Aqueles que ficaram negavam ou não
59
Alvarenga é uma embarcação de porte variável, desprovida de propulsão própria.
60
Aumentando de tamanho.
61
Palmeira (1977) faz uma análise da relação entre proprietário de terra e morador, apontando como estas
se configuravam por meio de um contrato que ligava, por dependência, ambos agentes sociais.
62
Rua da Gamileira localizada na aldeia Monte-Mór.
63
O Programa Nacional do Álcool foi criado em 1974, a partir do decreto n° 76.5930. Nesse período,
foram instaladas várias destilarias no litoral brasileiro motivadas pelo aumento do preço do petróleo a
nível mundial e pela queda do preço do açúcar no mercado.
64
Escavação no solo ou em rocha decomposta causada por erosão do lençol de escoamento de águas
pluviais.
65
O canoé é uma espécie típica de manguezal.
margem do rio pra fora, isso vai resolver o que meu Deus? Nada vai
resolver, só problema, viu? Porque mexeram em todas as vertentes, aí
deixaram aquelas boladinha de mata que a gente vê nas vertentes,
pronto, mas se o lançamento de terra já vem de cima do alto, né? Não
ficou essa bolada de mata, ali, ele resolveu nada? Não resolveu, vê
que essa margem tá toda aterrada no mundo acima, tudinho, porque
ninguém andava ali dentro, esse trecho de caminho que a gente passa
ai, daquela rua pra essa outra aí, quem vai ali por fora (...) ali do lado e
de outro ninguém andava, porque aquilo não existia, viu? Aquilo não
existia, aquilo ali, tudo isso aí, tudo foi aterro, foi aterro que a
Companhia fez (...) então vamos dizer que esses paús 66era tudo ligado,
de cima do alto ao mangue, tudo era ligado, mas conforme ela queria a
estrada até porto novo, aí ela saiu aterrando, e fazendo a estrada,
pronto. É o que aconteceu, foi isso, mais mesmo assim ela não
prejudicou, a companhia, não! Quem prejudicou foi a usina, a
companhia cortava, mas cortava de machado e a usina veio e arrancou
pelo pé, pela cepa, não sobrou nada, vegetação nenhuma sobrou onde
a usina passou, e nem vai sobrar, porque (...) o pior de tudo é que ela
queima, aí dizem a usina tem tantos hectare de mata, não sei o que,
que ele fala, como é essa quantia de mata? Tem duas hectare aqui, tem
mais duas (...) lá na casa da mulesta, isso vai resolver nada? Não
resolve. (Senhor Zé Boto. Entrevista concedida em Julho de 2013).
Com a chegada das usinas, a cana-de-açúcar avançou pelos espaços produtivos
dos habitantes, devastando as áreas de vegetação existentes e restringindo as atividades
de agricultura e de pesca. Os terrenos melhores (as chãs67) foram utilizados para a
plantação da cana, restando as encostas acidentadas para o cultivo de alimentos dos
moradores. Os recursos disponíveis tornaram-se cada vez mais escassos e a população
se viu encurralada em espaços reduzidos (Araújo, 2017).
Os desmatamentos empreendidos para o plantio de cana-de-açúcar transformam
rapidamente o cenário das relações sociais na região levando indígenas já na década de
1990 a se organizarem pela demarcação de suas terras. As chamadas “retomadas” foram
feitas com a substituição dos canaviais pelo plantio de “roça” (macaxeira), como uma
forma de resistência, que permitiu os grupos indígenas lutarem para enfraquecer as
usinas de açúcar.
Segundo Cardoso (et al, 2012, p.17-18):
Os Potiguara, a partir de então, iniciam um processo de auto-
demarcação do território recorrendo à Universidade Federal da
Paraíba (UFPB) para a obtenção de apoio técnico na empreitada. Em
1981, o governador da Paraíba determina que um órgão da Secretaria
de Agricultura elabore um projeto de desenvolvimento para as
famílias da reserva de Baía da Traição, que ficou conhecido como
Projeto Integrado. Setores da igreja consideraram a atitude uma
manobra para desviar a atenção da luta indígena pela posse da terra e
debateram com os índios no sentido de não aceitarem a proposta.
Finalmente nos anos de 1983 e 1984, o trabalho de demarcação da
área é concluído, delimitando um território de 21.238 ha. Tal
demarcação excluiu a antiga sesmaria de Monte-Mor, onde havia
“propriedades” da Cia de Tecidos Rio Tinto e de algumas usinas.
Também outras localidades habitadas pelos Potiguara como Lagoa
Grande e Grupiúna ficaram de fora, bem como a cidade de Baía da
66
Tipo de solo arenoso para plantio.
67
Terreno plano.
Nesse sentido, a resistência ao plantio de cana pode ser percebida como uma
estratégia que põe fim a sujeição do trabalho no corte da cana. Como afirma o Cacique
Aníbal “o que era cana agora é povo” que nos remete a um marco de consolidação de
um esforço realizado pelo grupo para a obtenção do seu território tradicional usurpado
por instancias econômicas ao longo do processo histórico. Portanto a “retomada” das
terras foi o elemento que tornou possível o acesso a determinadas parcelas de terras que
estavam sendo negadas ou restringidos.
Para Peres (2002, p.5),
A luta destas famílias indígenas pela retomada do seu território
tradicional é também uma luta socioambiental; expressa o protesto
coletivo diante de uma situação de privações étnicas e ambientais
causadas pela agro-indústria canavieira que inviabiliza as condições
materiais e simbólicas de sustentação do campesinato Potiguara.
Só após as “retomadas” é que os Potiguara passaram a ocupar melhores terrenos
para a agricultura e construção de casas. Nesse sentido, a luta pela terra para os
Potiguara não remete tão somente a uma demanda legal, a terra é entendida como
espaço simbólico. O acesso ao território possibilita a reprodução social nos moldes
tradicionais, uma vez que no território estão impressos os acontecimentos e os fatos
históricos que mantém viva a memória do grupo. Nesses termos a noção de ocupação
tradicional não deve ser entendida como sendo algo rígido, fixo no tempo, mas do
contrário, possuidora de uma fluidez proveniente das relações sociais. Trata-se,
sobretudo das narrativas dos atores sociais que dão sentido ao território como lugar de
pertencimento e referência para sua identidade étnica (ARAÚJO, op.cit.).
Ao analisar os processos históricos e políticos em que os indígenas da região
Nordeste passaram, João Pacheco de Oliveira (2004) refere-se ao processo de
territorialização como sendo um processo de reorganização social, com isto entendendo
a atribuição de espaços específicos e bem delimitados a grupos sociais e étnicos
subordinados ao poder colonial.
Oliveira entende a noção de territorialização como sendo
um processo de reorganização social que implica: i) a criação de uma
nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma
identidade étnica diferenciadora; ii) a constituição de mecanismos
políticos especializados; iii) a redefinição do controle social sobre os
recursos ambientais; iv) a reelaboração da cultura e da relação com o
passado. (Oliveira, op.cit., p.22).
O destaque colocado pelo autor sobre uma dimensão coletiva na formação
daidentidade étnica, coloca em evidência o diálogo com as formulações de Barth
(2000a) sobre os grupos étnicos como constituindo um tipo organizacional que canaliza
os fluxos da cultura. Como descrito os Potiguara ao longo do século XX, se
reorganizaram enquanto grupo étnico diferenciado em buscado direito de uso exclusivo
sobreparte dos territórios por eles ocupados.
Considerações Finais
Diante do exporto concluímos que a cidade de Rio Tinto teve sua formação com
a implantação da indústria têxtil, sobre o domínio da família Lundgren que por muitos
anos exerceu poder e controle sobre o espaço do antigo aldeamento de Monte-Mór,
trazendo prejuízos aos indígenas potiguara que se encontravam com restrições de acesso
ao território, efeitos da dominação industrial.
O processo histórico descrito coloca em evidência os diferentes contextos em
que estiveram inseridos os indígenas potiguara, assinalando a complexidade das
SANTOS, Rafael França Gonçalves. Amizades e invenções de si: As experiências trans em Campos dos
Goytacazes. Sociabilidades Urbanas: Revista de Antropologia e Sociologia, v. 1, n. 3, p. 136-148,
novembro de 2017 ISSN 2526-4702.
ARTIGO
www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/
68
Esta reflexão faz parte da pesquisa sobre amizade e experiências trans que tenho desenvolvido para o
meu doutorado no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro, intitulado: Montagens de si: relações de amizade e experiências trans (femininas) em Campos
dos Goytacazes.
69
Travestis, transexuais e transgêneros são alguns dos termos usados para nomear sujeitos que vivem e/ou
experienciam um determinado movimento de transição no gênero e/ou no sexo. Há um debate acalorado
na academia e nos movimentos sociais sobre qual termo é mais adequado para qualificar cada
experiência. Uma saída encontrada por alguns é a utilização do trans*, já outros defendem simplesmente
trans. Como no meu campo de pesquisa surgiram diversas outras formas de nomeação, optei por utilizar o
termo trans para me referir às interlocutoras e pontuar, quando necessário as especificidades que o
compõem.
70
Como está escrito em Da amizade como modo de vida (FOUCAULT, 1981); um texto que não mais que
três páginas, e com uma densidade de uma reflexão que tomaria tempo de muitos intelectuais.
Ortega percebe que Arendt entende a amizade como um fenômeno público, que tem
potencial político, enquanto que a fraternidade contribui para o apagamento das
diferenças e anulação da pluralidade (ORTEGA, 2009. p. 31).
É, portanto, esta ideia da amizade como uma potência do político que se almeja
explorar nesta pesquisa; entendendo que por mais que a linguagem do familiar - irmão,
mãe, afilhada -, componham as relações de amizade entre as trans, não é possível que
estas sejam identificadas apenas como sintoma de uma relação privada. Das 18
entrevistas realizadas entre 2015 e 2016, percebi uma recorrência das relações de
amizade vividas no privado como forma de se chegar à cena pública, dita de outra
maneira, seria como ter na amizade privada um impulso para sair do privado e assumir a
constituição de uma cena da cidade, recriando os espaços de gênero, e reiterando por
certo os espaços heterotópicos, como as ruas de prostituição. As amizades
possibilitariam uma experiência da solidão partilhada com outros iguais. A solidão
aparece aqui no sentido atribuído por Foucault e Sennett (1981) como sendo “a
sensação de ser um entre muitos, de ter uma vida interior que é mais que um reflexo da
vida dos outros”.
Eu sou uma pessoa sozinha
Muitas das entrevistadas se apresentaram enquanto “pessoas sozinhas”.
Atribuíam essa noção à ausência de vínculos familiares fortes, à falta de um parceiro
fixo ou mesmo o pouco contato diário com amigos e colegas. Inicialmente poder-se-ía
pensar que esta condição de estar só significa um afastamento do tecido social, mas não
é exatamente isso que ocorre. A solidão torna-se um espaço de existência e cria
possibilidades de encontros.
Esses “encontros”, de acordo com Rosa (2009, p. 97), podem ser de duas ordens:
os “que nos dão alegria são aqueles que aumentam a nossa potência – as “potências
aumentativas” –, enquanto os geradores de tristeza – as “servidões diminutivas” – a
diminuem”. Durante as entrevistas foram narradas histórias de encontros que geram
potências de vida, impulsos de criação, como no caso de Andréa e Anna Laurah; bem
como aqueles geradores de tristeza, lembrado por Luciana, mas não menos potentes em
sua capacidade de criação subjetiva.
Para explicar sua entrada no universo das drogas, que teria ocorrido em paralelo
à entrada no circuito da prostituição, Luciana não hesitou em se qualificar como “uma
drogada”, como se esta experiência qualificasse todo o seu ser. Isso, certamente, está em
sintonia com a marginalização em curso na nossa sociedade sobre as substâncias
consideradas como drogas ilícitas. Quando perguntei se ela poderia falar um pouco
sobre o assunto, a resposta veio em tom de pergunta e desabafo:
Falar o que? (risos), que eu sou uma drogada?! É, Rafael... você sabe que é
complicado, né?! Você sabe que a gente é muito carente, né?! Não sei se
você é assim. O nosso mundo é um mundo muito solitário. (...) É, o mundo
gay. É um mundo muito solitário, um mundo de poucas oportunidades; acho
que tem que ser como você mesmo, é meter a cara... estudar; como eu fui...
hoje eu poderia ter meu carro, poderia ter uma vida. Como eu te falei: eu já
ganhei dinheiro, eu já ganhei dinheiro mesmo... poderia ter meu carro. Já tive
uma moto; não vendi por causa das drogas, vendi por opção, que eu já tava
enjoado mesmo dela, entendeu?! Só que a gente se sente muito carente, muito
sozinho e, a nossa vida... a gente que vive de rua é uma vida muito louca. Eu,
pra mim ir pra rua, eu tenho que me drogar antes, porque eu não consigo ficar
naquela rua, sã. (Entrevista com Luciana Campos, em 16/11/2015).
Por outro lado, Anna Laurah e Andréa acionam o dispositivo da solidão para dar
sentido a outros repertórios na constituição de si.
Eu sou uma pessoa sozinha! Pra minha vida, pra eu agir a minha vida, eu sou
uma pessoa sozinha! (Entrevista com Anna Laurah, em 08/10/2015)
A gente transexual, a gente somos muito sozinha. Os transexuais são muito
sozinhas! A gente é ligada muito uma pra outra; a gente somos muito afetiva,
samos muito mãe, gosto do lado mãe, de... a gente somos muito ligadas à
família, a gente somos muito ligada às... a gente passa a ficar muito próximo
a sobrinho, à irmãs, essas coisas... a gente somos muito assim: afetiva, dentro
de casa, a mor de mãe, essas coisas... a gente é muito ligada à casa. Pra isso
eu gosto muito do ciclo das transexuais, que é o meu mundo. (Entrevista com
Andréa Castro, em 29/02/2016).
Andréa aciona a questão da solidão para dar sentido a sua experiência, e ainda a
constitui como algo ligado à afetividade e à dimensão do que é ser mulher: o lado
maternal é um elemento que integra o repertório de construção de si no feminino.
Por outro lado, evidencia-se que essa experiência da solidão não é algo solitário,
pois justamente por partilhar esse sentimento com outras trans por meio da amizade, é
que ela se constitui. A rede formada pelas trans é o que dá suporte para a vida de
Andréa, e torna possível a sua existência e constitui um espaço em que se produz sua
subjetividade:
Ah, amizade pra mim em primeiro lugar é muito importante, e
principalmente por essas pessoas que tem a mesma mentalidade, a mesma
sintonia minha sabia?! Porque... hoje em dia é tão difícil amizade! Sempre
foi, mas não tanto como é agora, né?! Então, todas elas, ainda mais as antigas
da minha época, a gente criou uma certa amizade, que se tornou familiar; a
gente somos confidentes uma da outra, sabe?! É muito importante pra mim
isso. (Entrevista com Andréa, em 29/02/2016).
É interessante considerar que na atualidade essa rede é tecida também pelos
meios virtuais: como o Whatsapp e o Facebook. Se em tempos passados as escritas de si
eram feitas nos diários íntimos, hoje parecem assumir sua forma atualizada nas redes
sociais, particularmente no Facebook. É por meio dele que muitas trans se fazem vistas,
mantêm contato com amigas que foram para a Europa, ou constroem uma imagem de si
como a que foi lembrada por Joyce, ao comentar a visualização do perfil do Facebook
de uma concorrente do concurso Musa Gay de Campos, no qual ela foi jurada:
Já foi... no ano ... eu fui jurado esse ano. É ... eu entro no Face dela eu vejo...
elas quando vão dormir, que deixa alguma coisa no Face, eu vejo ela muito...
é... assim... as coisas que elas deixa, é muito assim, sofrimento. Eu acho
que... você acha que elas não queriam ter essa vida?! (Entrevista com Joyce,
em 07/10/2015).
Joyce acredita que muitas trans têm uma vida muito sofrida, e por isso algumas
têm atitudes ruins com ela. Ela observa que este sofrimento está explicitado, por
exemplo, nas postagens que elas fazem no Facebook. Assim, esta ferramenta de contato
virtual torna-se, também, um espaço para constituição da imagem de si vista pelos
outros.
O Facebook é uma ferramenta citada por quase todas as entrevistadas que são
alfabetizadas e possuem acesso à internet, em notebooks ou no celular. Ele funciona
como um espaço de interação, em que glórias e tristezas são partilhadas com “as
amigas”. Os corpos feitos com silicone, as idas aos bailes de Carnaval, pagodes e outras
festas, as roupas “belíssimas”, as viagens internacionais e os muitos lugares visitados,
enfim, é toda uma sorte de eventos que são partilhados no Facebook, aos quais as
amigas, próximas ou distantes, podem ter acesso.
É uma forma, também, de apresentar a si mesma como alguém que está tendo
conquistas na vida. Percebi isso, particularmente, quando as travestis que estão em
Campos falam de suas amigas europeias, que vivem hoje na Itália, Portugal, Espanha,
Suíça.
Quando soube dessas informações, e tendo o nome dessas “amigas” que estão
“lá fora”, fui ao Facebook de minhas interlocutoras para buscar um contato com essas
pessoas, e percebi que as postagens eram totalmente liberadas, ou seja, mesmo aqueles
que não eram seus amigos na rede social, poderiam vê-las; percebi, ainda, uma forma de
apresentação de si pautada em situações de glamour e riqueza muitas, inclusive,
postaram fotos em pontos turísticos europeus.
Como destacou Renata, por meio do Facebook, ela tem contato e mantém uma
relação de intimidade com muitas amigas que estão na Europa, como com Regina que:
(...) postou uma foto agora no Facebook, hoje, ela tá na Alemanha. Tenho
duas amigonas minhas. Elas vieram aqui pra... pra comprar um apartamento,
todas duas. Uma veio, logo depois a outra veio. Veio... E elas são
amiguíssimas lá. E elas são maravilhosas. Ela veio pra comprar um
apartamento aqui e pra trocar a documentação, entendeu?! Trocar, botar o
nome feminino na identidade. (Renata Melila, 06/10/2015).
Fazendo um rastreamento exploratório nas páginas do Facebook das minhas
interlocutoras, percebi que a maior parte delas estava conectada entre si, e ainda tinham
muitas outras amigas trans. Essa rede virtual de amizade mostrou-se bastante intensa no
final de 2015, quando um episódio marcou a cidade, mas que logo foi esquecido.
Uma travesti de 27 anos foi agredida em uma casa de shows da cidade, após ser
expulsa do banheiro feminino. O episódio mobilizou muitos usuários amigos de
Yasmin, que fizeram diversos comentários denunciando a transfobia; foram dezenas de
comentários na página do Facebook de Yasmin, muitos dos quais apresentando
solidariedade, proposta de união para denunciar o ocorrido e de enfrentamento a este
tipo de preconceito.
Além de tornar possível uma circulação de afetos doces em meio à solidão, a
sensação de estar em contato com alguém que vive a mesma experiência é algo
apontado por Andréa como fundamental, pois só assim se consegue uma troca justa, um
entendimento considerado verdadeiro. A troca de confidências é um elemento
integrador. É interessante notar, ainda, como ela compara essa relação a algo familiar,
na medida em que o lugar da família é visto como esse de afetos fortes e verdadeiros.
Solidão que nada! Amizade e constituição da subjetividade
Na concepção contemporânea de amizade, entende-se que o amigo ou a amiga é
aquele e aquela com quem se pode falar com menos pudores, alguém pronto e disposto
a saber a verdade sobre si e partilhar desta verdade sob o manto do segredo. Quando
explica o peso da amizade juvenil entre os adolescentes franceses no século 19, a
historiadora Anne Vincent-Buffault (1996) percebe que as amizades potencializam a
formação de laços fortes de confiança e afeto, tecidos em um contexto em que os
amores e outros sentimentos eram rigidamente controlados.
Para ela: “O gosto do segredo, que os controles excessivos engendram, não
deixa também de ter um papel na invenção dos rituais da troca amistosa” (Ibidem, 1996,
p. 117). Assim, o amigo torna-se aquela que pode ter acesso ao eu mais íntimo e
“verdadeiro”, na medida em que neste tipo de relação os filtros sociais seriam menos
rigorosos.
Ao perceber este exercício da amizade entre os jovens franceses no século XIX,
Anne Vincent-Buffault indica um aspecto constitutivo das relações de amizade ainda
reivindicado por aqueles que nomeiam e descrevem seus amigos: a intimidade. Trata-se
aqui de uma intimidade percebida como um eu verdadeiro, reservado, guardado para
poucos, aquele eu que não se expõe à avaliação cotidiana dos jogos sociais. Isto estaria
ligado a uma possibilidade de ser livre, ou seja, de não estar submetido à regras, leis e
normas impostas pela sociedade. Desta forma, este lugar idílico da amizade é descrito
com ternura e afeto, como se fosse possível criar um espaço confortável em contextos
de rigidez e controle.
Não há, no trabalho de Vincent-Buffault, uma análise mais detalhada das
especificidades das amizades entre pessoas não heterossexuais. Pelo que é analisado
pela autora, também nas amizades heterossexuais há códigos e normatizações que fazem
deste lugar da amizade uma zona de oxigenação do “eu verdadeiro”. No caso das
experiências das homossexualidades e trans esta zona parece ser ainda mais intensa e
produtiva.
Talvez esta realidade se dê porque, diferentemente da heterossexualidade que é
produzida sob códigos do que é socialmente aceitável, as homossexualidades e as
experiências trans são tecidas sob o signo do abjeto, marginal, inominável e, portanto,
não devem existir os eus a partir dessas experiências. É por isso que se há de supor que
as relações de amizade são para estes sujeitos uma possibilidade real da criação de si, de
invenção, efetivação e fortalecimento de projetos de subjetividades.
Carmem Dora Guimarães (2004) escreveu sobre o funcionamento de uma rede
de amigos mineiros que foi tecida na cidade do Rio de Janeiro durante a década de
1970. Ela percebeu que, para estes homens homossexuais de classe média, esta rede era
fundamental para a constituição de um si mais autêntico, na medida em que menos
heteronormativo. Ou seja, era somente quando estavam juntos, em uma cidade distante
do local de origem, que estes amigos criavam modos de vida autênticos. A autenticidade
corresponde, aqui, à ideia de que não precisavam performar uma identidade
heterossexual, como fazia na cidade natal.
Isso não me permitiria conferir à amizade uma exclusividade na constituição das
subjetividades homossexuais ou trans, mas certamente é um indício da potencialidade
desta forma de relação, ligada à possibilidade de experiências que darão contornos a
outras subjetividades, que não aquelas prescritas pelo padrão da heterossexualidade.
A ideia de produzir um eu autêntico, no exercício da produção de si, pode ser
percebida nas palavras de Wanessa Lóes (32 anos) ao me explicar como se deu, em sua
trajetória, a experiência de vestir roupas femininas. No início este era um ato solitário e
secreto:
(...) eu passava batom, fazia as coisas escondido. E já cheguei a botar roupa
escondido com ele vivo, em casa de amigos que moram em outros bairros,
entendeu?! Já cheguei a fazer com ele vivo; mas, após eu ter tido... ele me
aceitar como gay. Ele nunca me viu com roupa de mulher; mas, após ele me
aceitar como gay, assim... isso não ser mais... uma questão, eu já botava
roupa escondido. Então, foi mais... é... e foi pros 20 assim, eu já botei, assim,
a noite só. Entendeu?! (Entrevista com Wanessa Lóes, em 16 de outubro de
2015).
Wanessa, que perdera a mãe ainda criança, explica que precisava viver esta
feminilidade de forma secreta, pois até então morava com seu pai que, após expulsá-la
de casa, ao descobrir sua homossexualidade aos 15 anos, a aceitou de volta, mas com a
condição de que fosse apenas homossexual, trans não. Num movimento que envolve
respeito pela figura do pai, necessidade de ter um abrigo e um exercício da solidão, ela
resolve viver esta experiência de forma privada.
Esse âmbito do privado, entretanto, começa a se expandir quando conhece
Gustavo, que fora apresentado por outra amiga (lésbica) comum a ambos. Considero
importante destacar a sexualidade dessa amiga, pois apesar das especificidades de cada
identidade (lésbica, gay, bissexual, travesti e transexual), pode-se considerar que todos
esses sujeitos partilham, em alguma medida, de um conjunto de experiências que
compõem aquilo que se chama de sexualidades dissidentes. Foi com Gustavo, após a
morte de seu pai, que Wanessa se “montou” para sair à rua pela primeira vez:
...foi com ele...é; que eu me montei foi pela primeira vez com ele lá, lá na
casa dele. (...) Lembro! Eu fiquei cheia de vergonha de sair na rua. Eu falei:
“Gustavo, a gente vai sair na rua...”, ele olhava pra ver se tinha algum
conhecido. É muito estranho... é muito. Eu ficava com medo não de
encontrar, é... e não de encontrar o meu pai, mas assim, eu ficava com
vergonha... nunca tinha feito aquilo, entendeu?! Muito, muito diferente...
(Entrevista com Wanessa Lóes, em 16 de outubro de 2015).
O objetivo do investimento na montagem era apenas um:
Pra andar... só pra passear mesmo (risos) ... e pra ter aquela sensação que eu
nunca tinha tido, de se mostrar ao público com roupa de mulher... passar
andando com roupa de mulher, entendeu?! (Entrevista com Wanessa Lóes,
em 16 de outubro de 2015).
Ou seja, mulher, sentir-se mulher não é algo que possa se bastar
individualmente, pelo contrário, é parte das técnicas de si, que como analisa Foucault, é
um exercício que envolve o outro, o coletivo.
Wanessa indica que este sentimento de si é preciso ser exposto ao social, ou seja,
é preciso ser mostrado. Esta sensação ela caracteriza, mais à frente, como uma sensação
de liberdade, pois seria o momento de sua vida em que poderia ser “ela mesma”. Essa
ideia de mostrar seu eu verdadeiro perpassa grande parte dos discursos das
entrevistadas; o que é algo bastante curioso, na medida em que este eu seria a expressão
de uma essência feminina já percebida desde a época da infância. E é neste ponto que se
produz uma diferença fundamental entre a travesti e a transexual. Andréa explica que as
transexuais:
São muito complicada, a gente somos taxadas até como doida. É! Eu fiz,
quando eu fiz o tratamento com psicanalista, ele falou: “São uma cabeça
muito...”, ele mesmo me falou: “São um universo muito complicado o de
vocês”. Porque o travesti, ele já se aceita, o travesti, ele se aceita por que? Ele
é um objeto de prazer, ele se transforma pra dar prazer ao corpo dele, e o
travesti, ele bota formas femininas pra atrair o homem, mas como pode atrair
uma mulher também. E a gente transexual, não é que a gente não goste de
mulher, a gente somos mulheres também. A cabeça da gente é de mulher. E é
diferente. Pra isso, eu não gosto de amizade, muita amizade com travesti. Eu
sou muito sozinha, eu gosto de amizade com mulher, com hetero, ou com
gays mesmo, ou... assim, ou os transexuais, a nossa conexão é diferente.
(Entrevista com Andréa, em 29 de fevereiro de 2016).
Andréa explica que a cabeça das transexuais é muito diferente das travestis, pois
para ela a transexual é uma mulher de verdade, uma pessoa que se sente como uma
mulher, mas que está aprisionada no casulo de um corpo masculino. Como ela explicou
no início da entrevista: “Essa que tá falando com você aqui é uma pessoa que tá falando
de dentro de um casulo, que tá aprisionada, sou eu. Porque o corpo, eu sempre quis
destruir o corpo masculino, eu tenho horror.” (Entrevista com Andréa, em 29 de
fevereiro de 2016).
Esse discurso reivindicatório de um comportamento feminino que seria
direcionado por uma “cabeça” feminina também aparece na história de Wanessa, ao
explicar sua trajetória de “gayzinho” até hoje, quando se identifica, se percebe, e se
construiu como uma mulher – transexual. Tanto para Wanessa quanto para Andréa essa
Considerações finais
Concluir um texto, uma reflexão, uma pesquisa certamente não é tarefa das mais
fáceis. Talvez ainda menos confortável seja a ideia de finalizar um artigo que trata de
uma pesquisa ainda em construção. Por isso, essas considerações finais seguirão em
forma de questões que têm sido gestadas, amadurecidas e também abandonadas no
percurso da pesquisa.
O que pode a amizade neste contexto atual de normatividades de gênero e
sexualidade? De que maneira as técnicas de si, vividas coletivamente, contribuem para a
criação de outros modos de vida (um modo de vida trans?) em cidades, bairros ou casas
pautadas por uma normatividade de gênero fundada no binarismo?
Do público ao privado, as amizades trans recolocam a questão do político nas
amizades e reiteram sua dimensão privativa. É interessante perceber, entretanto, que
tipo de privado está em invenção nessas relações, e como este redimensiona a noção do
público, visto que o privado criado e vivido nas amizades trans está voltado para o
público, para uma apresentação de si na cidade, como uma forma de ter apoio e
coragem para enfrentar a sociedade e publicizar uma subjetividade qualificada,
nomeada e historicamente tratada como abjeta, menos humana e sem importância.
Referências
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In: Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
BUTLER, Judith P. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In:
Guacira Lopes Louro (org.). O Corpo educado: pedagogias da sexualidade. 3. ed., Belo
Horizonte: Autêntica, 2010.
BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e a subversão da identidade. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
DERRIDA, Jacques, Políticas da amizade. Porto: Campo das Letras, 2003.
FOUCAULT, Michel. Da amizade como modo de vida. 1981. Disponível em:
http://portalgens.com.br/portal/images/stories/pdf/amizade.pdf. Acessado em
03/09/2013.
FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert.
Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da
hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
FOUCAULT, Michel. Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
FOUCAULT, Michel e SENNETT, Richard. Sexuality and solitude, Tradução de Lígia
Melo da Costa, Maria Beatriz Chagas Lucca e Sérgio Augusto Chagas de Laia. London
Review of Books, p. 04-07, 21 May - 3 June, 1981.
GUIMARÃES, Carmen Dora. O homossexual visto por entendidos. Rio de Janeiro:
Garamond, 2004.
IONTA, Marilda. As cores da amizade: as cartas de Anita Malfatti, Oneyda Alvarenga,
Henriqueta Lisboa e Mário de Andrade. São Paulo: Annablume, FAPESP, 2007.
IONTA, Marilda & CAMPOS, Natália Ferreira. Da arte da amizade entre antigos e
modernos. In: Margareth Rago e Pedro Paulo A. Funari (orgs.). Subjetividades antigas e
modernas. São Paulo: Annablume, 2008.
Abstract: The urban microterritorialities are those places that at a certain moment or time are
appropriate by a particular social group and at other times or period of the day other social groups take
ownership of that same space. In their practice the microterritorializations are based on the production
of sociability that we can clearly identify in the microterritorialisations promoted by homosexual men
who appropriate the spaces of the city often in order to find their peers for affective and sexual
relations. In this context, we intend to study the microterritorializations of homosexual men in the city
of Campos dos Goytacazes, identifying how they appropriate the space and the different forms of
representation. The relevance of the research is to question whether electronically mediated relations
produce and/or reinforce this gay microterritoriality in the city of Campos dos Goytacazes. In this way,
we propose in this research an analysis of the microterritorialities produced by the Grindr application
in the city of Campos dos Goytacazes, its forms of appropriation. Keywords: microterritoriality,
Grindr, homosexuals
71
Campos dos Goytacazes parece não se preocupar com a decisão tomada em 2013 pelo CNJ e segue
tendo juízes que não realizam a cerimônia de casamento homoafetiva. Os cartórios da cidade não se
negam a celebrar o casamento entre homossexuais, porém os funcionários sempre alertam quanto ao
indeferimento constante da documentação por parte dos juízes, e ainda argumentam que esse
indeferimento está ligado a questões religiosas por parte dos juízes da cidade. Um dos cartórios do centro
da cidade de Campos dos Goytacazes na tentativa de ajudar os casais pede que os mesmos procurem a
Justiça itinerante no Fórum de Campos dos Goytacazes, alegando que somente o órgão consegue realizar
casamentos homoafetivos na cidade. Em 2016, foi celebrado o primeiro casamento homoafetivo público
em Campos dos Goytacazes através da Justiça Itinerante no Fórum da cidade. Este casamento foi
possibilitado porque um novo juiz tomou posse e não se recusou a realizar a cerimônia.
72
Telefones móveis da terceira geração tecnológica, conhecidos também como os celulares inteligentes.
Objetivemos através dessas e outras questões entender qual a relação que se estabelece
do mundo virtual com o território a partir de aplicativos de rede geosocial 73.
Metodologia
Dentre as microterritorialidades urbanas existentes selecionamos aquelas
influenciadas por aplicativos de rede geosocial e que tem como objetivo o lazer de um
determinado grupo social para o desenvolvimento da metodologia de pesquisa que foi
aplicada na cidade de Campos dos Goytacazes.
Sendo assim, a partir de um questionamento-chave – como em que medida as
relações de interface produzem microterritorialidade – erguemos a hipótese que as
relações mediadas eletronicamente estabelecem novas formas de sociabilidade e
colocamos os seguintes pressupostos que nortearam as atividades desenvolvidas nesta
pesquisa, identificar os locais e lugares na cidade de Campos dos Goytacazes e o
desenvovimento da microterritorialidade gay; Como as relações mediadas
eletronicamente reforçam essa microterritorialidade; Além de analisar e interpretar os
sujeitos quanto a influência das relações mediadas eletronicamente como as relações
face a face na decisão de quais locais frequentarem.
Tomamos primeiramente como ferramenta para o recorte da área de pesquisa o
estudo de Tavares (2015), onde foi feito o mapeamento dos serviços de
telecomunicação ofertados na cidade de Campos dos Goytacazes. O estudo de Tavares
(2015, p. 24) consistiu em uma análise sobre:
[...] a infraestrutura da rede de telecomunicações que consiste no
mapeamento e entendimento da rede de telefonia móvel celular e da
rede de Internet, que possibilita a identificação não somente da oferta
como da qualidade dos serviços além de discernir as áreas na cidade
com maiores objetos técnicos dos sistemas de telecomunicações.
Partindo da compreensão e do mapeamento da rede de
telecomunicação é factível definir da área de estudo dentre as
centralidades do lazer noturno na cidade de Campos dos Goytacazes.
Entendemos a importância deste mapeamento porque se faz necessário que haja
nos locais pré-selecionados a existência de oferta de serviços de telecomunicação para
que pudessemos aferir a influência das redes no território.
73
Uma rede geossocial é um tipo de rede social que inclui funcionalidades relacionadas com a
georreferenciação, tais como a geocodificação ou a geoetiquetagem.
lazer, parceiros, sexo e relacionamento. Podemos relacionar essa busca aos mais
diversos motivos como, por exemplo, medo da solidão, falta de tempo e o embaraço de
achar alguém. É notório que essas dificuldades são intensificadas quando falamos
acerca dos relacionamentos homoafetivos, por conta dos pensamentos de nossa
sociedade heteronormativa e discursos que tangem a religiosidade.
Pela existência dessas dificuldades dissertadas a cima, percebemos a diversidade
de aplicativos para smartphones de relacionamento e paquera destinado ao público
homossexual e bissexual do gênero masculino. Trata-se de redes geosociais que buscam
parceiros que estejam próximo geograficamente e que estejam à procura de
relacionamento e principalmente de sexo.
É sabido que não se trata de existir somente aplicativos com estes fins para
homossexuais, pelo contrário, existem os mais diversos aplicativos de redes geosociais
para o público heterossexual e cissexual. Contudo, percebemos que por medo de
homofobia, homossexuais buscam lugares específicos como bares mais privativos, e
isso não seriamdiferentes no espaço virtual. Por isso, diagnosticamos o Grindr como o
aplicativo de rede geosocial que mais tem adesão e popularidade entre os homossexuais.
O Grindr foi criado em 2009 pelo norte-americano Joel Simkhai. O criador
afirma que teve a ideia do aplicativo visto a necessidade de encontrar alguém
virtualmente rapidamente para um encontro presencial. Joel afirma que muitos
aplicativos e sites não levavam em conta a localização geográfica das pessoas e isso
impossibilitava o encontro presencial em curto prazo de tempo.
O aplicativo possui três versões, duas básicas que não requer assinatura e uma
versão premium necessitando desta forma de uma assinatura que custa por volta de US$
2,49. Com o Grindr o usuário cria um perfil que possui alguns detalhes pessoais como
nome, idade, altura, peso, classificação étnica, status de relacionamento do usuário, o
que ele busca no Grindr, a faixa etária que o mesmo busca no aplicativo e foto.
Desta forma, através desse perfil é possível que o usuário inicie uma busca de
homens disponíveis. Essa busca aparece em forma de uma grade de imagens com os
perfis dos homens disponíveis dos mais próximos aos mais distantes geograficamente
do usuário que iniciou a busca. Também há opções de bate-papo, de enviar fotos
exclusivamente para outro usuário e tornar um perfil “favorito”.
Fig. 2 - The Underground Pub área interna Fig. 3 - The Underground Pub área externa
O Deixa Fluir bar é muito frequentado por universitários e conhecido por unir
diversas tribos em um só lugar. Diferentes grupos encontramos nesse bar incluindo
LGBT‟s mais especificamente os homens homossexuais. Quando abriu o bar o dono
não tinha intenção de ter um bar alternativo que agregasse as mais diferentes tribos, mas
alguns relatos narram que o bar foi ficando popular entre os universitários e jovens em
geral por conta dos preços mais acessíveis. O bar está localizado na Pelinca, bairro
nobre de Campos dos Goytacazes e famoso por concentrar a noite campista. Funciona
de terça-feira a sábado e alguns dias da semana têm atrações como DJs e música ao
vivo. Um bar de característica informal, o cliente vai até ao balcão para ser servido e em
sua maioria o público fica em pé na área externa do bar ou até mesmo na rua.
Exatamente esse clima de informalidade que faz o Deixa Fluir atrair cada vez mais
frequentadores.
Ainda que o bar receba semanalmente um grande público LGBT não é muito
difícil de escutar relatos de homofobia entre os frequentadores do Deixa Fluir. Podemos
afirmar que por conta desses casos rotineiros de homofobia no bar Deixa Fluir e por se
tratar de um bar muito aberto não permitindo a privacidade de muitos que não querem
se expor ou daqueles que não são homossexuais assumidos que em sua grande maioria
os homens homossexuais preferem o encontro no The Underground pub.
Fig. 4 - Deixa Fluir Bar área interna Fig. 5 - Deixa Fluir Bar do lado de fora
O Altos 539 - Bar | Galeria está localizado no Centro de Campos dos Goytacazes
e funciona de quarta a sábado, tendo em sua programação festas alternativas diferentes
toda semana. Festas com DJ‟s da cena pop, eletrônica e populares, shows com bandas
alternativas e karaokê de músicas pop e populares o bar e galeria adquiriu espaço entre
os jovens gays da cidade.
O Altos 539 Bar | Galeria desde sua criação é voltado para um público mais
alternativo da cidade e promove eventos voltados diretamente para este público e em
poucos meses de funcionamento (o Bar e Galeria funciona desde maio de 2016) se
tornou extremamente atrativo aos grupos homossexuais de Campos dos Goytacazes.
Fig. 6 - Altos 539 - Bar | Galeria área externa Fig. 7 - Altos 539 - Bar | Galeria área interna
ocorre um reforço dessas microterritorializações. Assim como, o Altos 539 Bar | Galeria
que desde sua criação é voltado para um público mais alternativo da cidade e promove
eventos voltados diretamente para este público e em poucos meses de funcionamento (o
Bar e Galeria funciona desde maio de 2016) se tornou extremamente atrativo aos grupos
homossexuais de Campos dos Goytacazes.
A microterritorialização gay no The Underground Pub se dá pela rápida
sociabilidade existente entre os gays no pub em determinada festa, em dias específicos e
que se desfaz ao fim do evento. Concordamos desse modo com Costa (2010, p. 9) que
afirma que existem microterritórios onde relações coletivas humanas acontecem numa
dinâmica incrivelmente rápida no sentido da construção e desconstrução de espaços de
convivência e a da transitoriedade dos indivíduos que participam de tais agregações.
Já no Altos 539 Bar | Galeria a microterritorialização gay acontece
semanalmente todos os dias em que o local está em funcionamento. Evidente que em
determinados dias da semana há um maior fluxo de gays no local, como por exemplo, as
quintas-feiras, mas de uma forma geral o bar e galeria atrai de quarta-feira a sábado um
público gay considerável e que são motivados a frequentar o bar e galeria para que seja
possível o encontro com seus pares no lazer noturno de Campos dos Goytacazes.
Podemos ainda incluir como um microterritório gay de Campos dos Goytacazes
o bar Deixa Fluir que possui uma grande concentração de homens homossexuais
semanalmente e que mesmo tendo diversos casos de homofobia no local esses homens
homossexuais não deixam de frequentá-lo, e isso vai ao encontro à própria definição de
Costa (2010) de microterritório que argumenta ser uma área de interação ou conflito.
É o microterritório urbano (como uma área que delimita a interação
e/ou o conflito entre práticas racionais e afetivas e dá forma às práticas
sociais singulares que se diferenciam de outras por fronteiras
flutuantes e instáveis) que efetiva a própria agregação social e suas
características singulares. Por se estabelecer por processos de
interação entre movimentos globais e experiências locais e pela
dialética entre empirismo e incoerência e lógica formal coerente, cada
microterritório urbano tende a ser uma totalidade singular em relação
com outras totalidades que podem ser entendidas em diversas
condições escalares. (COSTA, p. 9, 2010)
Desse modo podemos afirmar que o The Underground Pub, o Deixa Fluir Bar e
o Altos 539 Bar | Galeria são microterritórios de homens homossexuais na cidade de
Campos dos Goytacazes e o surgimento desses microterritórios fortalecem as interações
desse grupo no espaço. Costa (p. 11, 2010) afirma que:
Microterritórios produzidos [...] fortalecem a própria produção,
manutenção e condicionam a agregação humana ou sociabilidade.
Sendo assim, a sociabilidade produzida por esse grupo virtualmente é
refletida no espaço tornando as mídias sociais ferramentas de
articulação desse grupo pelo espaço urbano.
Percebemos desse modo que a internet tem importante papel para articulação,
crescimento e territorialidade desse grupo social na cidade de Campos dos Goytacazes.
As influências das mídias sociais aos sujeitos desse grupo social são evidentes e geram
e/ou reforçam as microterritorializações pela cidade. Podemos afirmar que os
microterritórios gays identificados e analisados nessa pesquisa estão diretamente
envolvidos ao lazer noturno em área central da cidade de Campos dos Goytacazes e que
existência de outros pelo município de Campos dos Goytacazes não foram abordados
nesse estudo, que se limitou ao recorte à área central da cidade.
Considerações Finais
Campos dos Goytacazes, como uma cidade média do interior do Estado do Rio
de Janeiro, possui papel importante na economia da região norte fluminense. Com a
amplitude do setor petroquímico e de universidades, a cidade elevou seu setor de
serviços principalmente àqueles ligados ao lazer noturno. O espaço urbano de Campos
dos Goytacazes vem sofrendo alterações nos últimos anos e isso implicou na produção
de estabelecimentos como bares, restaurantes e casas noturnas. Esse processo de
modificação veio acompanhado de uma maior diversificação cultural, pelas quais são
motivadas novas territorialidades por conta do surgimento/crescimento de algumas
identidades.
Essa pesquisa teve como recorte as especificidades da apropriação do espaço
urbano de um grupo social específico os homens homossexuais. Ainda que muitas vezes
esse grupo permaneça camuflado em nossa sociedade heteronormativa, existem espaços
na cidade onde se manifesta a sociabilidade desse grupo. Percebemos que na cidade de
Campos dos Goytacazes podem existir diversos espaços de convivência dos homens
homossexuais, contudo nos prostramos na presente pesquisa aos locais de lazer noturno
em área central da cidade que seja frequentado pelos homens homossexuais. Entre eles,
o The Underground Pub, o Deixa Fluir bar e o Altos 539 Bar | Galeria se destacaram
como microterritorializações de homens homossexuais, que produzem uma espécie de
espaço de reconhecimento das diversidades sexuais existentes.
O The Underground Pub, o Deixa Fluir Bar e o Altos 539 Bar | Galeria são
frequentados por sujeitos heterossexuais e outros grupos existentes de LGBT‟s, porém
esses locais possuem forte visibilidade quanto a conquista do espaço por homens
homossexuais que adotam significado a esses estabelecimentos de lazer noturno ao seu
grupo e agregam a esses locais características de espaço de diversidades sexuais e
público plural.
As microterritorializações como as do The Underground Pub, Deixa Fluir Bar e
Altos 539 Bar | Galeria são eruptivas pelas novas formas de comunicação
contemporânea onde os sujeitos se articulam virtualmente a fim de identificar e
promover possíveis sociabilidades com seus pares. Dessa forma, avolumam a
sociabilidade contrapondo a segregação que esses sujeitos sofrem na sociedade por
conta de sua homossexualidade.
Essas microterritorialidades são geradas e/ou reforçadas devido às relações de
interface, isto é, as relações medidas eletronicamente por mídias sociais como as redes
sociais e redes geosociais. Através das mídias sociais ocorre o reconhecimento de locais
para possíveis encontros, como as festas que ocorrem as sextas-feiras e sábados no The
Underground Pub.
Através de aplicativos de rede geosocial como o Grindr, os sujeitos encontram
seus pares e reconhecem os locais na cidade onde podem promover o encontro face a
face. Neste sentido, as microterritorializações, como as do The Underground Pub, Deixa
Fluir Bar e Altos 539 Bar | Galeria são motivadas pela produção de sociabilidade virtual
que as relações de interface geram.
Referências
BERNARDES, A. H. Desenvolvimento de uma metodologia de pesquisa: Centralidade
urbana de lazer noturno e relações de interface. Relatório de atividades – auxílio à
pesquisa 1 – APQ 1. FAPERJ, 2014.
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muçulmana. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v.1, n.3, p. 162-174,
novembro de 2017. ISSN 2526-4702.
Artigo
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/
Resumo: O termo Islã (اإل سال م, transl. al-Islā) vem do árabe Islām, que deriva da quarta
forma verbal da raiz slm, aslama, e significa "submissão” (a Deus). A teologia islâmica se
divide em duas categorias de pensamento: crenças (o Iman) e práticas (o Din ou Pilares da
Fé), importantes para o que constitui o ser muçulmano. A peregrinação anual dos
muçulmanos à Meca (Hajj) é um dos pilares da fé islâmica. Esse trabalho busca discutir de
que modo a Hajj cria significados e conduz os indivíduos à noção de identidade comunal,
que se expressa em discursos e práticas cotidianas, empreendida por muçulmanos de
comunidades sunitas em João Pessoa-PB e Caruaru-PE. Observamos na pesquisa que o
ritual de peregrinação islâmica é um mecanismo de reafirmação da Ummah, para além das
diversas identidades culturais locais. Os laços que unem os peregrinos são distintos da
consangüinidade ou do território, mas se firmam através de significados presentes no
discurso da unidade moral, ideológica, política e religiosa, entre os muçulmanos de todas as
partes do mundo. Palavras-chave: peregrinação, identidade muçulmana, comunidade
imaginada
Abstract: The term Islam (. اإل سال م, transl al-Islam) comes from Islaam Arabic, which
derives the fourth verbal form of the root slm, aslama, and means "submission" (God). The
Islamic theology is divided into two categories of thought, belief (Iman) and practices (Din
or Pillars of Faith), important for what constitutes being Muslim. The annual pilgrimage of
Muslims to Mecca (Hajj) is one of the pillars of the Islamic faith. This paper discusses how
the Hajj creates meanings and leads individuals to the notion of communal identity, which
is expressed in speeches and daily practices, undertaken by Muslims of the Sunni
community in João Pessoa-PB and Caruaru-PE. We noted in the research that the Islamic
pilgrimage ritual is a reaffirmation mechanism of the ummah, in addition to various local
cultural identities. The ties that bind the pilgrims are distinct from consanguinity or
territory, but stay themselves through meanings present in the discourse of moral unity,
ideological, political, religious and Muslims all over the world. Keywords: pilgrimage,
muslim identity, imagined community
74
Sunitas correspondem a uma denominação de seguidores do Islamismo, conhecidos como “Povo do
Suna”, pelo fato de afirmarem seguir o “Suna”, ou “Caminho Percorrido” (nome dado às palavras e atos
do profeta Maomé e seus primeiros seguidores). As divisões islâmicas surgiram após a morte de Maomé,
em consequência da disputa entre seus seguidores pela liderança da comunidade, pelo direito à sucessão
do Profeta, surgiram duas divisões majoritárias os “sunitas” e os “xiitas”. Os sunitas acreditam que
Maomé não deixou herdeiros legítimos e que seu sucessor deveria ser eleito com uma votação entre as
pessoas da comunidade islâmica. A maioria dos muçulmanos é sunita no Brasil e no mundo (LIMA,
2012).
75
The Islamic Word. Documentário. 2005. Duração: 54min. Reino Unido, BBC.
76
A pesquisa teve inicio durante a graduação em Ciências Sociais na UFPB, e segue em curso no
Mestrado em Antropologia na mesma instituição.
77
De acordo com Montenegro (2002), as instituições que incorporam os muçulmanos são legalmente
chamadas de Associações beneficentes, estando as mais antigas localizadas em São Paulo.
78
Refere-se à pessoa que coordena as orações, sendo sempre uma figura notável ou autoridade religiosa.
79
O Centro Islâmico de Recife foi fundado em 1989 e reinaugurado em 1997, está localizado na Rua da
Glória, nº 353, Boa Vista, e é liderado pelo sheik egípcio Mabrouk Al Saway Said.
80
Refere-se a uma revolta ocorrida na Bahia, século XIX, liderada por negros muçulmanos chamados de
Malês. Estes tinham um importante diferencial em relação a outros escravos e negros africanos: sabiam
ler e escrever (LIMA, 2012, p. 26).
81
Oração congregacional das sextas-feiras.
Watan (terra natal), mas sim a Ummah, ou comunidade de fiéis, em que todos são iguais
em submissão perante Allah (LIMA, 2012, p. 44). A construção da identidade coletiva
se dá a partir da identificação com as normas oriundas da lei de Deus, interpretadas por
uma autoridade definida que atua como intermediária entre Deus e a humanidade.
(CASTELLS, 2010).
Essa comunidade de fé se propõe universal, a despeito de todas as diferenças
culturais, econômicas ou sociais dos seus membros, embora não sem conflitos, que,
seguindo Weber (1994), é formada por relações sociais “comunitárias”, que repousa no
sentimento subjetivo dos participantes a uma mesma coletividade.Por isso, para
compreensão de comunidades muçulmanas essa “comunidade de fé” é compreendida a
partir da definição alcorânica de Ummah. Esse seria o significado que, segundo
estudiosos muçulmanos, mais se aproximaria do termo “nação” no Islã.
O sentido de “nação” é atribuído a partir de um tempo “eterno”, primevo,
fundado na concepção do Tawhid ou unicidade de Deus, onde comunidades
muçulmanas podem se estabelecer independentes de um Estado, a partir desta definição
abstrata de Ummah.
Ummah: notas sobre uma comunidade imaginada islâmica
Um árabe, nem um não árabe tem qualquer superioridade sobre um árabe; o
branco não tem superioridade sobre o negro, nem o negro é superior ao
branco; ninguém é superior, exceto pela piedade e boas ações. Aprendam que
todo muçulmano é irmão de todo muçulmano e que os muçulmanos constituem
uma irmandade. (Muhammad, discurso de despedida)83.
A teologia islâmica se divide em duas categorias de pensamento principais:
crenças (o Iman) e práticas (o Din), ambas fundantes do que constitui o ser
muçulmano. Nos pilares e práticas da fé, que confere a religião o status e um modo de
vida, encontramos, por exemplo, a Jihad (guerra santa), o Alcorão, o Ramadã, o Ijmá
(questões morais, religiosas ou jurídicas contempladas no Corão), a Sharia (código de
leis do islamismo) e a Hajj (peregrinação à Meca).Essas crenças e práticas outorgam aos
fiéis à convicção de serem todos os muçulmanos, pertencentes a uma mesma
irmandade: a “Ummah”, sendo dever de cada um promover a união da Dal-Islam (Casa
do Islã). Portanto, trata-se de um projeto que envolve aspectos confessionais, sociais,
econômicos e políticos.
No estabelecimento da nova religião, Muhammad anunciava à
Ummah à vontade de Deus sendo, portanto, uma forma teocrática de
governo porque Deus dirigia a Ummah. A Ummah, em Medina se
consolida; esta era a comunidade de crentes fiéis a Deus ligados não
mais pelo sangue, mas sim pela fé. O indivíduo não queria mais se
submeter às leis e costumes tribais administrados pelos chefes das
tribos. Em outras palavras, sua lealdade suprema não pertencia mais à
tribo, mas à nova identidade islâmica. (AL-AHSAN, 1992, p. 19.)
A Ummah está diretamente relacionada com a experiência da partilha
comunitária do ser muçulmano (BARBOSA-FERREIRA, 2010). É importante destacar
que Ummah se opõe a ideia de “unidade árabe” ou de qualquer único grupo étnico, ante
uma variedade de “comunidades de origem”. Portanto, a noção de Ummah foi
fundamental para o fortalecimento do islã e o alargamento de suas fronteiras, onde o
mundo é o seu limite, onde quer que exista uma “comunidade de crentes”
(MONTENEGRO, 2002, p. 71).
83
Disponível em: http://www.islamreligion.com/pt/articles/523/.
84
É notório, portanto, que o conceito de comunidade religiosa não é uma particularidade da fé islâmica,
tendo em vista que outras religiões monoteístas, como o cristianismo e o judaísmo, têm essa mesma
ênfase na comunidade de “irmãos” que se “encontram” no ideal da fé que professam e se reconhecem
(DUMONT, 1985).
85
É por meio dessa identificação transnacional, através da assimilação das ideologias, do pensamento
político e práticas sociais pertinentes aos muçulmanos que assuntos como a questão palestina, as
revoluções árabes, guerras e conflitos civis em países de maioria muçulmana, as restrições religiosas
impostas às minorias muçulmanas em países como a França, por exemplo, além das demandas territoriais
e as querelas internacionais envolvendo o ato de extremistas islâmicos, tornam-se questões das
comunidades muçulmanas locais por todo o mundo, interferindo diretamente em suas maneiras de
vivenciarem a fé.
86
Com base em Barbosa-Ferreira (2007, p. 20-21), podemos dizer que a religião islâmica é bastante
performática, não apenas nas festas e rituais extraordinários, mas também no cotidiano do exercício da fé.
como um mecanismo de coesão social, experiência social que outorga aos peregrinos e
os fieis em geral o sentido e uma identidade religiosa, por meio de uma inserção nesta
comunidade: a Ummah.
Notas sobre a festa do sacrifício (eid al-adha)
No décimo dia do mês de Dhu al-Hijjah (Mês da Peregrinação), décimo segundo
mês do calendário lunar islâmico e no último dia do Hajj ocorre a festa do Eid Al-Adha
(Grande festa ou Festa do Sacrifício). Ela é realizada após setenta dias do final do
Ramadã e recomenda-se que tenha duração de quatro dias (o período da grande
peregrinação ou Hajj) nos países de maioria muçulmana.
Durante a celebração, as famílias muçulmanas com condições financeiras devem
sacrificar um bezerro macho, saudável e que esteja em idade adulta. A prescrição
corânica é para que todos os muçulmanos participem desta celebração, tanto os que
estão em peregrinação como os que estão em seus países; e nesta ocasião também há
troca de presentes.
No primeiro dia da festa as pessoas devem vestir as suas melhores roupas e ir à
mesquita para as orações, seguindo o horário estabelecido por Meca. Depois das orações
é realizado o ritual do sacrifício do animal. Cabe destacar que o sacrifício é uma
celebração para exaltar a obediência do personagem Abraão que, segundo a tradição
islâmica, obedeceu a Deus ao se dispor a imolar seu filho90; representando o sacrifício
como o ápice dessa “entrega” do fiel a Deus.
A matança dos carneiros é um ato simbólico de entrega do fiel a Deus,
marca também o final do Hajj, final de um “sacrifício” pessoal que se
revela em um sacrifício explícito: o carneiro imolado substitui o
homem. Essa experiência que se atribui ao mito é incorporada no
ritual [...] (BARBOSA-FERREIRA, 2007, p. 755).
Figura 8- Área adaptada para abate dos animais na festa do Al-Adha (Sacrifício) na Mesquita e
Centro Islâmico. Fonte: Arquivo pessoal
A imolação do animal segue todo um ritual, com prescrições e regras durante e
depois do abate, sendo o animal considerado elemento de transição entre Deus e os
homens. Em 2013 acompanhamos a festa do Eid Al-Adha celebrada no Centro Islâmico,
90
Ver: Surata 37, versículo 102. Abraão também faz parte das narrativas da Bíblia Sagrada. A tradição
cristã atribui essa narrativa a Isaque, que teria o direito de primogenitura por ser o filho de Sara, esposa de
Abraão. Porém, para os muçulmanos a primogenitura é de Ismael, filho de Abraão com a egípcia Hagar.
Durante o Hajj, muito dos rituais remontam ao drama vivido por esses personagens: Abraão, Hagar, Sara
e Ismael.
João Pessoa-PB, que durou um dia. Dois carneiros foram sacrificados na área adaptada
para o abate no centro islâmico pessoense.
Foi significativo ver que o abate do animal foi realizado por um muçulmano
marroquino, que de modo pedagógico ensinava a um revertido paraibano como se
deveria preparar o animal, fazer o abate,retirar a pele e repartir o animal.Os cordeiros
foram assados e distribuídos entre os membros da comunidade muçulmana e vizinhos
não muçulmanos considerados necessitados.
Figura 9 - Marroquino ensina revertido técnicas do sacrifício. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisa
A celebração do Al-Adha é uma das mais importantes do calendário islâmico, e
em João Pessoa contou com a presença de muitos estrangeiros (africanos, árabes, turco,
marroquino, libanês e jordaniano) na comunidade, além dos brasileiros que se reuniram
para celebrar o ritual. O sermão foi proferido por um muçulmano jordaniano sobre o
significado do al-Adhan para os fiéis.
Como nos mostra Victor Turner, este ritual incorpora valores simbólicos que são
reatualizados e ressignificados, seja no âmbito da construção da identidade pessoal do
fiel- peregrino ou do ponto de vista de pertencimento a comunidade imaginada. Os que
empreendem o hajj, e num certo grau também os que participam apenas da festa do Al-
Adha,são marcados por uma experiência de liminaridade, isto é: “(...) um intervalo entre
dois períodos distintos de envolvimento intensivo na existência social estruturada, fora
da qual uma pessoa escolhe cumprir seus deveres de peregrino” (TURNER, 2008, p.
163), que posteriormente lhe confere valoração religiosa e status social entre os seus
parceiros de crença; por representar uma experiência que cria vínculos e significados.
Assim, através da festa do Al-Adha observamos que tal celebração é uma das
partes dos processos rituais que formam a estrutura da Grande peregrinação, dando aos
que não podem realizá-la uma oportunidade de vivenciar sua fé e reatualizar os votos
com Allah e com a comunidade muçulmana.
Por isso, as peregrinações podem ser caracterizadas como “communitas
normativa” (Turner, 2008, p. 158), pois estão ligadas as estruturas dos sistemas
religiosos que as desenvolvem, sendo empreendimentos sociais formados por
obrigações e uma ordem de fraternidade.
Conclusão
Por meio do trabalho de campo, conversas informais com as comunidades
observadas e de leituras sobre a temática, verificamos que a Ummah reproduz a ideia de
identidade muçulmana, que transcende as diferenças consanguíneas ou territoriais. A
hajj, por sua vez, nos mostra como as peregrinações realizam este trabalho de
unificação de todos, o que pode ser visto como “mecanismo disciplinador”, com forte
poder normativo.
Como nos aponta Pinto (2006), nestas peregrinações há uma busca de tradição,
que se configura nas crenças e partilha de valores ditos tradicionais, posto que sagrados
ou sacralizados, que asseguram a supremacia da unidade da Ummah ante os processos
locais de diferenciação socioculturais. Assim, rituais e símbolos são usados para
reafirmação da doutrina e reinvenção das tradições, por meio da repetição de padrões
religiosos universais e abstratos, que são ritualizados pelos fieis e autoridades religiosas.
Enfim, as peregrinações como a Hajj fazem parte de projetos político-religiosos,
que se formam por meio de esforços de construção de uma comunicação trans-islâmica,
para além das diferenças territoriais ou sectárias. Tanto a grande peregrinação como as
celebrações a esta ligadas estão acompanhadas por um forte simbolismo religioso, que
servem como marcadores identitários e\ou como instrumentos devocionais.
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The theoretical-methodological perspective of the GREM on the emotional culture of the city
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Resenha
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/
91
Gilberto Velho (1945-2012) foi professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e fez parte
da primeira turma do Programa de Pós-Graduação em Antropologia do Museu Nacional.
trabalhar com as sociedades complexas e com o ambiente urbano, até então ignorados
pela disciplina.
No item “Trajetória”, Koury expõe o direcionamento da pesquisa de Velho,
como proveniente dos temas de aulas de Antropologia Urbana com o professor Anthony
Leeds92. Gilberto Velho, então, faz um projeto de conclusão da disciplina, e se dedica a
estudar as formas de habitar no Rio de Janeiro. Nesse projeto, desenvolve a pesquisa
que lhe daria, posteriormente, sua dissertação de mestrado93, e define o seu objeto de
trabalho: o modo de habitar da baixa classe média, no bairro de Copacabana, mais
especificamente no o prédio em que o pesquisador morava, de pequenos apartamentos,
onde habitavam pessoas por ele (Velho) consideradas de “baixo padrão moral”.
Koury dá destaque a alguns aspectos da obra, como, por exemplo, o estudo do
outro próximo; o tornar o lugar em que morava como objeto de pesquisa, se
contrapondo, assim, de forma radical, a uma antropologia então centrada no exótico das
populações distantes e isoladas; a interdisciplinaridade da obra; além do lançamento de
um artigo-manifesto Organização Social do meio urbano (junto com o sociólogo Luiz
Antônio Machado da Silva), onde defendem a necessidade de uma sociologia e
antropologia urbanas no Brasil. Neste ponto, Koury discute a tese de doutorado de
Velho, Nobre e anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia – defendida em 1975 –, em
que estuda novamente uma parcela da classe média do bairro carioca de Copacabana
nas suas variantes de relacionamento com as drogas.
No item “Observando o familiar”, Koury apresenta e discute o artigo homônimo
de Velho, publicado em 1978. De acordo com o autor, Gilberto Velho constrói uma
crítica epistemológica assertiva à antropologia no que diz respeito ao esforço desta em
analisar o outro distante. Na medida em que desloca o olhar analítico para o cotidiano e
para a cidade, Velho dá relevância ao processo de autocrítica do pesquisador e de seus
valores como ferramenta para enxergar através de “uma névoa que naturaliza o
ambiente” (p.36). Esse processo de exotização do próximo é fruto, de acordo com
Koury, de uma leitura de Weber e de Clifford Geertz, dando ênfase ao caráter
interpretativo da análise.
No item “As Noções de Projetos e Campos de Possibilidades”, Koury expõe
estes dois conceitos, que considera fundamentais para a construção da pesquisa de
Velho. Trata-se de ferramentas que unem as emoções, decisões e expectativas de
indivíduos ao quadro social mais amplo da sociedade, unindo o campo fenomenológico
de Schütz ao interacionismo de Goffman e Becker, à luz das análises simmelianas e
weberianas94.
Koury reafirma ainda o protagonismo de Velho na formação de uma
antropologia e sociologia das emoções no Brasil, a partir da assimilação e conjunção,
92
Professor da Universidade do Texas, visitante do PPGA do museu na década de 1970.
93
A Utopia urbana. Um estudo de Antropologia Social. Dissertação defendida em 1971 e, depois, editada
em livro pela Editora Zahar em 1973.
94
Koury faz então uma breve pausa na descrição do trabalho de Velho para expor alguns autores que
fundamentam a sua análise. Primeiramente evoca Alfred Schütz, que realiza uma união entre a
fenomenologia e a sociologia. Este autor, por sua vez, tem como base Edmund Husserl, cujo trabalho
consiste na construção de uma filosofia fenomenológica que vê o indivíduo como um ser consciente que
interpreta o mundo através da atenção às intenções das ações. Além de Husserl, outro fundante da obra de
Schütz é Weber, que também será largamente usado por Velho. Sua sociologia compreensiva da ação
social é unida à fenomenologia de Husserl no empreendimento de identificar as decisões dos indivíduos,
que em sequência representam suas curvas de vida e trajetórias, singulares e individualizadas mesmo que
pertencentes a determinadas tradições históricas. Dessa forma, há uma união entre os mundos
individualizados husserlnianos e da “ação como portadora de intencionalidades e sentidos [...], como
criadora do social e do individual específicos (p. 43)”.
mesmo que não planejada, das teorias de Weber e Husserl através de Schütz. Essa
assimilação permitiu a Velho dar início à empreitada de chegar perto de identificar uma
cultura emotiva no Brasil urbano, investigando as ações criadoras dos indivíduos e
grupos, em sua constante e tensa relação.
A noção de projeto, por sua vez, diz respeito aos planejamentos construídos
subjetivamente e inseridos em uma cultura histórica que delimita certas possibilidades e
incita certos anseios nos indivíduos que a ela pertencem e a constroem. No entanto, para
Koury,
O conceito de projeto individual para Velho, assim, não é um
fenômeno puramente interno e subjetivo, mas, formulado e elaborado
dentro de um campo de possibilidades, e circunscrito histórica e
culturalmente, tanto em termos da própria noção de indivíduo no
social, quanto às temáticas, prioridades e paradigmas culturalmente
existentes (p. 45).
Velho, fazendo uso desse conjunto de conceitos, pesquisa diversos temas, tais
como: questões geracionais, a psicologização das sociedades contemporâneas, relações
entre cultura objetiva e subjetiva, entre outras.
Koury expõe a bibliografia em que encontra o par de conceitos, projeto e campo
de possibilidades. Eles aparecem primeiro no livro Individualismo e Cultura, de 1981,
depois em Projeto e Metamorfose, de 1991 e, posteriormente, em todos os trabalhos do
autor.
O campo de possibilidades, como explica Koury,
[...] corresponde ao espaço para a formulação e implementação dos
projetos individuais ou coletivos elaborados. Satisfaz, portanto, às
opções construídas no interior de um processo sócio-histórico dado e
com um grande potencial interpretativo do mundo simbólico da
cultura (p. 48).
É dentro do campo de possibilidades de uma determinada cultura
temporalmente localizada, então, que se relacionam os projetos. Koury segue
descrevendo a relação entre projeto e campo de possibilidades, tanto em sua qualidade
individual, grupal e sociocultural, dando destaque à variedade de interações entre eles,
tanto construtivas quanto destrutivas.
Em decorrência dessas interações tensas entre projetos e trajetórias de vida,
Velho identifica o que chama de metamorfose. Trata-se das mudanças nos projetos em
decorrência das disputas e negociações da realidade. Dessa forma, planos e sonhos são
esquecidos e resgatados, abandonados e recriados, alterados e reafirmados conforme as
mudanças interativas com os campos de possibilidades dos grupos, culturas e
sociedades em tenso jogo. “A curva de vida, assim, nada mais é do que o conjunto de
trajetórias, de negociações, de mudanças e experimentações de um indivíduo em relação
com outros.” (p. 53)
Koury, por fim, conclui o capítulo resgatando os autores que embasam o
pensamento de Velho. São eles: Erving Goffman, Howard Becker, Robert Park, Louis
Wirth, Howard Hughes, Alfred Schütz, Peter Berger, além de Georg Simmel e Max
Weber.
No segundo capítulo, já de início, Barbosa elenca o grupo intelectual que provê
o conjunto teórico que auxilia Koury em sua pesquisa, majoritariamente centrada na
cidade de João Pessoa, capital da Paraíba. Entre os autores citados estão Mead,
Goffman, Scheff, Velho, DaMatta, além da Escola de Chicago. Dessa forma, o esquema
conceitual de Koury se situa, segundo Barbosa, dentro da antropologia das emoções, e
95
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Emoções, Sociedade e Cultura: a categoria de análise emoções
como objeto de investigação na sociologia. Curitiba: Editora CRV, 2009.
96
Os demais trabalhos de Koury são: (1) Sistema de Nominação, Pertença, Medos Corriqueiros e
Controle Social. O uso de apelidos entre um grupo de jovens da cidade de João Pessoa, Paraíba. Campos,
v. 5, n. 1, pp. 69-91, 2004; (2) Viver a cidade: um estudo sobre pertença e medos. RBSE – Revista
Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 4, n. 11, p. 148-156, Agosto de 2005.
97
As obras de Koury são as seguintes: (1) Medo, vida cotidiana e sociabilidade. Política & Trabalho –
Revista de Ciências Sociais, nº 18, p. 09-21, 2002; (2) Medos Corriqueiros e Sociabilidade. João Pessoa:
Edições GREM / Ed. UFPB, 2005; (3) Pertencimento, medos corriqueiros e redes de solidariedade.
Sociologias, v. 12, nº 25, p. 286-311, 2010; (4) Medos Corriqueiros urbanos e mídia: o imaginário sobre
juventude e violência no Brasil atual. Revista Sociedade e Estado, v. 26, n. 3, p. 471-485, 2011.
Ana B. R. de Oliveira
Diego A. Novaes
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro.Beleza e melancolia em dois tempos de um cotidiano de uma dia
de feira. Sociabilidades Urbanas: Revista de Antropologia e Sociologia, v1, n3, p. 190-193, novembro
de 2017. ISSN 2526-4702.
RESENHA
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/
brindar aos visitantes com uma fotografia colorida que enaltece a feira de Campina
Grande em sua atual beleza e decadência. Com um olhar fotográfico sempre atento ao
cotidiano plural e fragmentado de um dia de feira abre ao observador um caminho
comparativo de duas épocas da feira por ele retratada: a de 1978, em preto e branco, e a
de 2014, em cores. E mais: brinda ao publico leitor e amante da fotografia artístico-
documental de um dia de feira, em dois tempos, com um álbum fotográfico composto
por dois livros, A Feira de Campina Grande, com os registros de 1978 em preto e
branco, e as Cores da Feira, com os registros de 2013-2014 em fotos coloridas, em uma
publicação comemorativa do sesquicentenário do município de Campina Grande.
Os olhos do fotógrafo Coura, nos dois registros fotográficos disponibilizados aos
visitantes da nova Mostra Comparativa de Dois Tempos da Feira de Campina Grande,
e a seguir ao leitor dos dois ensaios fotográficos em formato de dois livros emoldurados
e ricamente apresentados como dois volumes em um único suporte, levam ao leitor não
apenas aos dois tempos de uma feira registrada fotograficamente, mas a momentos de
comparação de dois movimentos aparentemente iguais, na mesma objetivação e busca
de enquadramento de cenas e locais da feira registrados na primeira Mostra e revistos na
segunda captura, agora colorida. Leva ao leitor a duas leituras e, ao mesmo tempo, a
fundi-las em uma única sensação, a melancólica decadência, já anunciada na pulsante
feira de 1978, e aprofundada, de uma forma magnificamente colorida, nos registros da
mesma feira quase quarenta anos depois.
O talento artístico e a sensibilidade ao social do olhar de Roberto Coura instigam
o visitante, e agora leitor-observador das duas Mostras eternizadas em livro, a perscrutar
as fisionomias, as socialidades e sociabilidades registradas, como máscaras de
temporalidades vividas em dois momentos da feira, e expostos ao seu observar em
impressionantes capturas preto e branco e coloridas que impregnam os corpos de
homens e mulheres com suas figuras, tipos, expressões, rugas, modos, posturas,
comportamentos, formas de ação e organização. Registra a decadência e as vidas que a
realiza, e faz um inventário sobre as possibilidades do humano, que se impõe enquanto
personagem de tempos que parecem anunciar um fim, um triste final, não só de mais um
dia de feira, mas o fim da feira na cidade; mas que, ao mesmo tempo, presentifica o
viver sem se importar com esse amanhã que se anuncia melancolicamente e
magistralmente registrado pelas lentes do fotógrafo Roberto Coura.
Os homens e mulheres, crianças, jovens, velhos, vendedores, trabalhadores,
compradores, visitantes se colocam à câmera de Coura sempre com a docilidade ou,
sucessivamente, com a firmeza do olhar, e continuamente na imponência de sua
presença no mundo, no seu lugar de comércio e consumo popular, que é o espaço da
feira, onde se movimentam e trafegam com naturalidade. Ou, como me expressei na
apresentação do livro de 2007, a feira trás em seu registro melancólico de sua
decadência a sua marca, nesses frequentadores plurais que a perfomam como um
Ponto de encontro e desencontro, de venda e compra, de oferenda e
recebimento, de oferta e procura e de treinamento e socialidade.
As lentes de Coura registram essa imponência de um dia de feira, em sua
plenitude. A feira é documentada pela sociabilidade que a informa e as formas de
reciprocidade produzidas dos e pelos tipos humanos nela presentes, seja nos matizes do
cinza que a foto preto e branco adentra, seja no explodir em cores, das verduras, das
frutas, das carnes expostas nas feiras, e nas técnicas artesanais de pequenos produtores e
seus produtos hortigranjeiros, ou de artesãos do barro, da palha, da música, ou das
profissões abertas de personagens diversos que a frequentam, como o barbeiro, o
vendedor de ervas medicinais, ou os vendedores de ervas para magia religiosa, ou dos
corpos que se oferecem na arte de mendigar, na prostituição, nas artes e nas técnicas
corporais maussianamente incrustadas nos diversos espaços sociais que marcam o lugar
da feira, nas marcas do tempo e dos hábitos, das culturas emotivas e diversas
moralidades que os caracterizam em um ambiente social em duas temporalidades.
Ambas anunciando o lento caminhar da decadência e, melancolicamente o seu início de
fim, nas fotos de 1978 em preto e branco, ou escancarando o fim, nas pulsantes
fotografias coloridas de 2014.
Esse fim, em 2014, é representado também pela diminuição do espaço físico da
feira, e pela diminuição dos alimentos provindos de pequenos artesões e pequenos
agricultores e a entrada triunfante de produtos industrializados e importados do Paraguai
e da China, que vão de CDs a eletrodomésticos. Nada escapa ao olhar fotográfico de
Roberto Coura e a sua sensibilidade para o social e o culturalmente expresso. O
fotógrafo inquire a realidade em que se dispõe a fotografar, e nessa inquirição quebra o
cotidiano com a sua câmera. Com o seu olhar fotográfico invade o mundo do comum
onde tudo parece ser visto e naturalizado e tonifica o espaço pela fragmentação do
lugar, dando ambivalência ao olhar que posa, propositadamente ou de forma
espontânea, e ao olhar que registra e documenta.
Novos personagens que se colocam de forma espontânea ou em poses para as
lentes de Coura, e antigos personagens, já registrados em 1978 e que se reapresentam ao
olhar fotográfico quase quarenta anos depois: jovens que se tornaram velhos, crianças
que se tornaram adultos e assumiram o lugar dos pais nos negócios da feira, vão
assumindo ao olhar do leitor-observador movimentos comparativos de temporalidades
que permanecem aparentemente iguais, mas que constroem histórias e estórias
particulares no repassar da vida em momentos temporal e historicamente distintos.
Um e outro, olhar fotográfico e olhar dos que se deixam fotografar, e um terceiro
olhar, o do leitor-observador se tornam, deste modo, ambivalentes e ambíguos na
fotografia revelada. O olhar que observa é remetido ao encantamento que a
ambivalência e a ambiguidade fotográfica permite, não se sabendo qual é real no
instantâneo produzido pela interação entre fotógrafo e fotografado, através da máquina
de fotografia, e se interrogando sobre os limites temporais demarcados e anunciados
como princípios de fim que, melancolicamente, Coura revela. E os apresenta na sua
estupenda profusão de matizes de cinza ou na explosão de cores, nos dois tempos da
fotografia de um dia de feira, na cidade de Campina Grande.
Homens, mulheres, velhos, novos e crianças são flagrados em ação, que os
imobilizam em instantâneos na interface da cena em que se situam no momento do
flagrante, dispondo aos olhos da máquina, sob o olhar de Roberto Coura, os espaços, os
tempos e os ritmos da feira, objeto da produção e encantamento fotográfico disposto nos
ensaios: a diversidade de produtos: verduras, legumes, cereais, carnes, utensílios
domésticos, cestarias, cerâmicas, vestuário, flores, alimentação, fumos, serviços, entre
tantos mais; a distribuição de barracas, as formas de ocupação e uso de cada uma no
jogo entre passantes, vendedores e possíveis compradores; o acompanhar do ritmo e das
temporalidades da feira, desde a instalação até o final do dia com flashes memoráveis
dos momentos dispostos e dos movimentos ritmados propensos a cada horário e
atividade, são apresentados aos olhos que vêem na sua organização tumultuada do agito
local: de um lugar de compra e venda e, ao mesmo tempo, de troca de afetos, de
conversas, de procuras e de encontros e desencontros.
Os ensaios fotográficos sobre a Feira de Campina Grande de Roberto Coura,
portanto, mais do que registros documentais sobre o processo social de uma feira
famosa na região provoca e estimula o observador a mergulhar com ele no universo
multifacetado captado na realidade cotidiana de um centro popular de abastecimento e
SOBRE OS AUTORES
Ailton Gualande Junior
Mestrando no PPGSA/IFCS/UFRJ e membro do Grupo de Pesquisa Cidades, Espaços,
Públicos e Periferias CEP28/UFF. E-Mail: jf@id.uff.br.
Ana Beatriz Ramos de Oliveira
Bolsista PIBIC-GREM/UFPB. Graduanda em História na UFPB. E-Mail:
bia3ramos@mail.com.
Ana Luiza Carvalho da Rocha
Professora Doutorada da Universidade FEEVALE. Participa do Grupo de Pesquisa
Metropolização de Desenvolvimento Regional/FEEVALE/RS (Novo Hamburgo), do
Núcleo de Antropologia Visual (Navisual; do Núcleo de Pesquisa em Culturas
Contemporâneas (NUPECS), e do Banco de Imagens e Efeitos
Visuais/BIEV/Laboratório de Antropologia Social/ Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas/IFCH/UFRGS (Porto Alegre). E-Mail: miriabilis@gmail.com.
Cornelia Eckert
Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS.
É pesquisadora CNPq. Coordena, juntamente com Ana Luiza Carvalho da Rocha, o
projeto Banco de Imagens e Efeitos Visuais, (BIEV, com sede no ILEA, UFRGS),
coordena o Núcleo de Antropologia Visual (NAVISUAL) e participa do Núcleo de
Pesquisa em Estudos Contemporâneos (NUPECS), PPGAS, UFRGS. E-Mail:
chicaeckert@gmail.com.
Diego Amorim Novaes
Bolsista PIBIC-GREM/UFPB. Graduando em História na UFPB. E-Mail:
diegoanovaes@gmail.com.
Jussara Freire
Professora do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense.
Professora permanente do Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Regional,
Ambiente e Políticas Públicas – PPGDAP /UFF. Professora colaboradora do Programa
de Pós Graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte-Fluminense
Darcy Ribeiro (PPGPS/UENF). Membro do Coletivo de Estudos sobre violência e
sociabilidade (CEVIS). Coordenadora do Grupo de Pesquisa Cidades, Espaços Públicos
e Periferias (CEP28). E-Mail: jf@id.uff.br.
Jack Katz
Professor Doutor junto ao Departamento de Sociologia da Universidade da Califórnia –
Los Angeles USA. E-Mail: JackKatz@soc.ucla.edu.
Maria Patrícia Lopes Goldfarb
Professora Doutora em Sociologia. Professora Associada do Departamento de Ciências
Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia PPGA /UFPB. Líder do
GEC - Grupo de Estudos Culturais do CNPq. E-Mail: patriciagoldfarb@yahoo.com.br.
Marianna de Queiroz Araújo