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O campo de pesquisa em etnomodelagem: as abordagens

êmica, ética e dialética

Milton Rosa
Daniel Clark Orey
Universidade Federal de Ouro Preto

Resumo

Neste artigo, oferecemos um conceito alternativo de pesquisa


por meio da aquisição dos conhecimentos êmico e ético para a
implementação da etnomodelagem, que tem o objetivo de conectar os
aspectos culturais da matemática com os seus aspectos acadêmicos.
Nessa perspectiva, a utilização das abordagens êmica e ética facilita a
tradução de situações-problema presentes nos sistemas, retirados da
realidade de grupos culturais distintos, para a matemática acadêmica.
O conhecimento êmico é essencial para a compreensão intuitiva e
empática das práticas matemáticas desenvolvidas por determinado
grupo cultural, enquanto o conhecimento ético é essencial para a
comparação entre essas práticas. Discutimos também a abordagem
dialética para a pesquisa em etnomodelagem, que utiliza ambos os
conhecimentos êmico e ético por meio de um processo dialógico,
auxiliando uma compreensão mais completa sobre o conhecimento
das práticas matemáticas desenvolvidas pelos membros de distintos
grupos culturais. Nesse sentido, o conhecimento êmico é uma
valiosa fonte de inspiração para a elaboração de hipóteses éticas.
Em tal contexto dialético, um currículo matemático baseado na
perspectiva da etnomodelagem favorece o desenvolvimento da
geração do conhecimento matemático para garantir a integração
equilibrada do domínio efetivo dos objetivos educacionais, que são
essenciais para o reconhecimento e a utilização do conhecimento
êmico dos alunos.

Palavras-chave

Etnomodelagem – Etnomodelos – Abordagem êmica – Abordagem


ética – Abordagem dialética.

Contato:
Milton Rosa
milton@cead.ufop.br

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 38, n. 04, p. 865-879, out./dez. 2012. 865
The field of research in ethnomodeling: emic, ethical and
dialectical approaches
Milton Rosa
Daniel Clark Orey
Universidade Federal de Ouro Preto

Abstract

In this article, we offer an alternative concept of research through


the acquisition of emic and ethical knowledge for implementing
ethnomodeling, which aims to connect the cultural aspects of
mathematics with its academic aspects. From this perspective,
the use of emic and ethical approaches facilitates the translation
of problem situations present in the systems, extracted from the
reality of distinct cultural groups, into academic mathematics.
Emic knowledge is essential to the intuitive and empathic
understanding of the mathematical practices developed by a
particular cultural group, while ethical knowledge is essential
for comparing these practices. We also discuss the dialectical
approach to research on ethnomodeling, which uses both emic
and ethical knowledge through a dialogic process, aiding a
fuller understanding of the knowledge of the mathematical
practices developed by members of different cultural groups. In
this sense, emic knowledge is a valuable source of inspiration
for the development of ethical hypotheses. In such a dialectical
context, a mathematics curriculum based on the ethnomodeling
perspective favors the generation of mathematical knowledge
to ensure the balanced integration of the effective mastery of
educational objectives, which are essential for the recognition
and use of students’ emic knowledge.

Keywords

Ethnomodeling – Ethnomodels – Emic approach – Ethical approach


– Dialectical approach

Contact:
Milton Rosa
milton@cead.ufop.br

866 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 38, n. 04, p. 865-879, out./dez. 2012.
Ao investigarem o conhecimento desen- Os termos êmico e ético também são
volvido pelos membros de grupos culturais dis- utilizados como uma analogia entre os obser-
tintos, os pesquisadores e investigadores podem vadores de dentro, denominados insiders, e os
encontrar práticas matemáticas originais, que observadores de fora, denominados outsiders
podem ser consideradas como etnomatemáti- (CAMPOS, 2002). A abordagem ética refere-se a
cas. Contudo, a captação dos conhecimentos uma interpretação de aspectos de outra cultura
desenvolvidos por esses grupos exige um es- a partir das categorias daqueles que a obser-
forço incessante para a compreensão dos fenô- vam, isto é, dos próprios pesquisadores e inves-
menos científicos, a partir dos referenciais e das tigadores. Por outro lado, a abordagem êmica
categorias nativas, para que uma prática mate- procura compreender determinada cultura com
mática também possa ser expressa no sistema base nos referenciais dela própria. Em outras
acadêmico. Assim, devemos ser cautelosos para palavras, a abordagem ética é a visão externa,
não corrermos o risco de transmiti-las com base dos observadores e investigadores que estão
em fatos e fenômenos julgados a partir de nossa olhando de fora, em uma postura transcultural,
própria visão e de nosso perfil cultural. comparativa e descritiva, enquanto a aborda-
Nesse contexto, o entendimento dos gem êmica é a visão interna, dos observados
pesquisadores e investigadores sobre os traços que estão olhando de dentro, em uma postura
culturais de determinado grupo é uma inter- particular, única e analítica. Então, a aborda-
pretação que, frequentemente, enfatiza as ca- gem ética corresponde à visão do eu em dire-
racterísticas superficiais da cultura analisada, ção ao outro, ao passo que a abordagem êmica
gerando uma interpretação indevida do conhe- corresponde à visão do eu em direção ao nosso.
cimento desenvolvido pelos membros daque- Em nosso ponto de vista, a abordagem
le grupo cultural. Um desafio que se coloca a ética é inevitável e necessária. Contudo, é de
partir dessa abordagem é a maneira como as extrema importância que determinada cultura
práticas matemáticas, culturalmente enraiza- seja primeiramente observada a partir da abor-
das, podem ser extraídas ou compreendidas dagem êmica, que procura compreender como
sem permitir que a cultura dos pesquisadores e os membros desse grupo cultural entendem as
investigadores interfira na cultura dos membros próprias manifestações culturais. Entretanto,
do grupo cultural sob estudo. No entanto, isso ao contrário da abordagem ética, a êmica não
pode ocorrer, pois os membros dos grupos cul- é automática, inevitável e implícita. Pelo con-
turais têm a própria interpretação de sua cultu- trário, precisamos esforçar-nos para utilizá-la,
ra, denominada abordagem êmica, em oposição pois isso equivale a ver o mundo com os olhos
à interpretação dos pesquisadores e investiga- do outro. O quadro 1 mostra as diferenças entre
dores, denominada abordagem ética. as abordagens êmica e ética.

Quadro 1 – Diferenças entre as abordagens êmica e ética


Abordagem êmica Abordagem ética
Perspectiva dos nativos (internos) Perspectiva dos observadores (externos)
Visão local (interna) Visão global (externa)
Tradução prescritiva Tradução descritiva
Cultural Analítico
Estruturas mentais Estruturas comportamentais
Transcrição cultural Transcrição acadêmica

Com relação ao conhecimento cientí- fenômeno matemático, a partir de uma pers-


fico, a falta de entendimento de determinado pectiva êmica, favorece a determinação de

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conceituações que somente têm embasamento considerada como uma aplicação prática da et-
na matemática tradicional. Nesse sentido, a nomatemática, que adiciona uma perspectiva
apresentação das práticas matemáticas apenas cultural aos conceitos da modelagem.
terão relevância se as conclusões éticas forem
tomadas depois que adquirirmos uma relevante Etnomodelagem
compreensão êmica sobre essas práticas.
Diante de tal perspectiva, os pesquisado- Os estudos conduzidos por Ascher (2002),
res, investigadores e educadores que assumem Gerdes (1991), Orey (2000), Rosa e Orey (2009)
uma abordagem êmica acreditam que fatores e Urton (1997) revelam práticas matemáticas
como a origem cultural e linguística, os valores sofisticadas que incluem princípios geométricos
sociais, a moral e os estilos de vida influenciam em trabalhos artesanais, conceitos arquitetôni-
o desenvolvimento do conhecimento matemá- cos e práticas desenvolvidas nas atividades de
tico que é deflagrado no próprio contexto cul- produção de artefatos pelos membros dos gru-
tural. Assim, Rosa (2010) afirma que diferentes pos culturais distintos. Eglash et al. (2006) afir-
grupos culturais desenvolveram maneiras dife- mam que esses procedimentos estão relaciona-
rentes de fazer matemática para que pudessem dos com as relações numéricas encontradas no
entender e compreender os ambientes cultural, cálculo, na medição, nos jogos, na navegação,
social, político, econômico e natural nos quais na astronomia e na modelagem.
estavam inseridos. Além disso, cada grupo Nessa perspectiva, Rosa e Orey (2010a)
cultural tem desenvolvido maneiras únicas e argumentam que a etnomodelagem pode ser
distintas para matematizar a própria realidade considerada como o estudo das práticas mate-
(D’AMBROSIO, 1990). máticas desenvolvidas pelos membros dos gru-
Nesse contexto, a matematização é pos culturais distintos por meio da modelagem.
o processo por meio do qual os membros de Então, os procedimentos da etnomodelagem
diferentes grupos culturais utilizam distintas envolvem as práticas matemáticas desenvolvi-
ferramentas matemáticas que podem auxiliá- das e utilizadas em diversas situações-problema
-los a organizar, analisar, compreender, en- enfrentadas no cotidiano dos membros desses
tender, modelar e resolver situações-problema grupos. Segundo Caldeira (2007), a etnomode-
específicas que são enfrentadas no cotidiano lagem considera o conhecimento adquirido a
(ROSA; OREY, 2006). Tais ferramentas permi- partir das práticas matemáticas utilizadas no
tem a identificação e a descrição de práticas grupo cultural ou na comunidade. Nesse sen-
matemáticas que são específicas de um con- tido, existe a necessidade de entendermos que
texto cultural e que visam auxiliar os membros o conhecimento matemático origina-se nas
dos grupos culturais a decobrirem relações e práticas sociais que estão enraizadas nas rela-
regularidades, esquematizarem, formularem e ções culturais. D’Ambrosio (1993) e Rosa e Orey
visualizarem situações-problema de maneiras (2003) afirmam que esse ponto de vista permite
diferenciadas, transferindo-as do mundo real a exploração de práticas matemáticas distintas
para os conceitos matemáticos da academia por meio da valorização e do respeito aos co-
por meio da matematização. nhecimentos adquiridos quando os indivíduos
Dessa maneira, é de suma importância interagem com o próprio ambiente.
a busca por uma abordagem metodológica al- De acordo com Rosa e Orey (2010a), a et-
ternativa que tem como objetivo o registro das nomodelagem pode ser considerada como a re-
práticas matemáticas que ocorrem em diferen- gião de intersecção entre a antropologia cultural,
tes contextos culturais. De acordo com Rosa e a etnomatemática e a modelagem matemática.
Orey (2010a), essa abordagem metodológica A figura 1 apresenta a etnomodelagem como a
é denominada etnomodelagem, pois pode ser intersecção entre esses três campos de pesquisa.

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Figura 1 – A etnomodelagem como a intersecção entre três etnomodelagem tende a conectar a matemática
campos de pesquisa acadêmica (ético) a esse contexto. Tal perspec-
tiva evidencia que a matemática é um empre-
endimento cultural enraizado na tradição, pois
cada grupo cultural desenvolveu um sistema de
técnicas para entender e lidar matematicamente
Modelagem matemática
com a realidade por meio de medição, quan-
Respeito
Valor tificação, comparação, classificação, inferência
e modelagem. Essas técnicas podem ser consi-
Validação Etnomatemática
deradas como as ferramentas básicas que são
utilizadas pela etnomodelagem para a tradução
Diálogo
entre as abordagens êmica e ética.
Contudo, Eglash et al. (2006) argumen-
Antropologia cultural tam que devemos ser cautelosos, pois muitas
vezes os desenhos indígenas são simplesmente
Etnomodelagem
analisados a partir de uma visão ocidental (éti-
ca); por exemplo, a aplicação das classificações
simétricas da cristalografia nos padrões têxteis
Assim, na etnomatemática, o êmico é existentes nos tecidos indígenas. Os autores
constituído por sistemas lógico-empíricos con- também afirmam que, em alguns casos, a tra-
siderados como apropriados para os membros dução de uma prática matemática local para a
dos grupos culturais. Na modelagem, o ético é linguagem matemática simbólica é direta e sim-
constituído pelas ferramentas que são utilizadas ples; por exemplo, a modelagem dos sistemas
para a obtenção de dados sobre as práticas ma- de contagem e dos calendários.
temáticas locais que foram observadas. Eglash Por outro lado, existem casos em que
et al. (2006) afirmam que “a antropologia cul- os procedimentos utilizados nas práticas ma-
tural sempre dependeu dos atos de ‘tradução’ temáticas locais são incorporados emicamente;
entre as perspectivas êmica e ética” (p. 347). por exemplo, a iteração utilizada no trabalho
Assim, o interrelacionamento entre essas três artesanal com miçangas em algumas regiões
áreas de pesquisa desencadeia o processo de de- africanas e os caminhos eulerianos emprega-
senvolvimento da etnomodelagem. No entanto, dos nos desenhos de areia Sona em Angola e
tal processo somente será positivo quando os Moçambique (EGLASH et al., 2006). Nesse sen-
sistemas de conhecimento dos grupos culturais tido, entendemos que o ato de tradução utiliza-
não são idealizados pelo olhar de pesquisado- do nessas práticas matemáticas origina-se no
res, investigadores e educadores e, também, conhecimento êmico e não no ético.
quando os alunos não são emprisionados em Assim, é impossível aprisionar os con-
modos antiquados e maneiras dominantes de ceitos matemáticos em registros de designação
pensar matematicamente. única da realidade, pois existem sistemas dis-
Quando um sistema etnomatemático tintos que utilizam representações múltiplas
é utilizado ativamente no presente como um de tal realidade (CRAIG, 1998). Dessa manei-
sistema baseado em uma teoria que pode so- ra, a matemática não foi concebida como uma
lucionar problemas retirados da realidade, esse linguagem universal, porque seus princípios,
processo pode ser descrito como etnomodela- conceitos e fundamentos foram desenvolvi-
gem (ROSA; OREY, 2010b). Nesse contexto, a dos de maneiras diferenciadas pelos membros
etnomatemática enfatiza os conhecimentos ad- de grupos culturais distintos (ROSA, 2010).
quiridos nas comunidades (êmico), enquanto a Concordamos com Rosa e Orey (2006), que

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argumentam que os procedimentos utilizados outsiders (ético) sobre o que realmente importa
nas práticas matemáticas são desenvolvidos de para os insiders (êmico).
acordo com o registo das singularidades inter-
pretativas sobre as possibilidades de uma cons- Os construtos êmico e ético da
trução simbólica do conhecimento matemático, etnomodelagem
que é necessário para a resolução de situações-
-problema enfrentadas no cotidiano dos dife- Na perspectiva da etnomodelagem, os
rentes grupos culturais. construtos êmicos são as descrições e as análi-
ses expressas em termos de esquemas conceitu-
Etnomodelos ais que são significativos e que foram apropria-
dos pelos membros do grupo cultural em estudo
Geralmente, um modelo pode ser con- (LETT, 1996). Assim, um construto êmico está
siderado como a representação de uma ideia, de acordo com as percepções e com os enten-
um conceito, um objeto ou um fenômeno dimentos considerados apropriados pela cultura
(BASSANEZI, 2002). Etnomodelos podem ser dos observadores internos (insiders). A valida-
entendidos como artefatos culturais, que são ção do conhecimento êmico está relacionada
instrumentos pedagógicos utilizados para faci- com o consenso da população local, que deve
litar o entendimento e a compreensão de siste- concordar que esses construtos sejam coinci-
mas retirados da realidade de grupos culturais dentes com a percepção comum e que retratam
distintos (ROSA; OREY, 2009). Nesse sentido, as características da cultura do grupo (LETT,
os etnomodelos são representações externas 1996). Em outras palavras, a abordagem êmica
precisas e consistentes com o conhecimento investiga os fenômenos matemáticos, suas es-
científico, que é socialmente construído e com- truturas e interrelações por meio da compreen-
partilhado pelos membros de grupos culturais são do desenvolvimento do conhecimento sobre
específicos. De acordo com essa perspectiva, o as práticas matemáticas adquiridas pelos mem-
objetivo primordial para a elaboração de etno- bros de determinado grupo cultural. De acor-
modelos é a tradução dos procedimentos envol- do com Viertler (2002), os dados êmicos, que
vidos nas práticas matemáticas presentes nos representam as concepções dos pesquisados,
sistemas retirados da realidade, que são siste- podem ser obtidos por meio de técnicas como
mas simbólicos organizados pela lógica interna a entrevista, a observação participante e a his-
dos membros desses grupos culturais. tória de vida. Lett (1996) afirma que o conheci-
No entanto, Eglash et al. (2006) e Rosa e mento êmico das práticas matemáticas pode ser
Orey (2010b) argumentam que os modelos que obtido a partir da elucidação ou da observação,
são construídos sem terem um significado para pois é possível que os observadores externos
a realidade a ser modelada devem ser vistos com possam inferir sobre as percepções matemáticas
desconfiança. Então, existe a necessidade de que utilizadas nessas práticas.
os pesquisadores, investigadores e educadores Por outro lado, Lett (1996) argumenta
não sejam iludidos por sua própria ideologia, que os construtos éticos são considerados como
para que possam perceber os distintos pontos de descrições e análises das práticas matemáticas
vista sobre o conhecimento das práticas matemá- expressas em termos de esquemas conceitu-
ticas do sistema que está sendo modelado. É de ais e categorias consideradas significativas e
suma importância, portanto, evitarmos a alusão apropriadas para a comunidade de observado-
ao êmico para impormos o nosso modelo ético a res científicos, pesquisadores e investigadores.
determinada prática matemática. Dessa maneira, Um construto ético é preciso, lógico, abran-
é importante que os pesquisadores, investigado- gente, replicável, falseável e independente dos
res e educadores sejam capazes de informar aos pesquisadores e observadores. A validação do

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conhecimento ético é obtida por meio da aná- dagem êmica estuda as práticas matemáticas
lise lógica e empírica. Para Viertler (2002), os desenvolvidas internamente e localmente sig-
dados éticos, que evidenciam os conceitos e nificativas. Argumentamos também que os et-
as teorias dos pesquisadores e investigado- nomodelos êmicos estão baseados em caracte-
res, são frequentemente obtidos por meio de rísticas que são importantes para os sistemas
questionários. De acordo com Lett (1996), o retirados da realidade dos indivíduos perten-
conhecimento também ético pode ser obtido centes a grupos culturais distintos. Por outro
por lucidação e observação, pois é possível lado, existem etnomodelos éticos, elaborados
que os membros de determinado grupo cultu- de acordo com a visão dos observadores ex-
ral possuam um conhecimento cientificamen- ternos aos sistemas retirados da realidade dos
te válido. Nesse sentido, D’ Ambrosio (1990) indivíduos cujas práticas matemáticas estão
afirma que os investigadores têm de reconhe- sendo modeladas.
cer que as populações locais desenvolvem um Os etnomodelos éticos representam a
conhecimento científico utilizado nas práticas maneira como os modeladores imaginam que
matemáticas que é validado em suas próprias os sistemas retirados dessa realidade funcio-
práticas socioculturais. nam, enquanto os etnomodelos êmicos repre-
sentam como os indivíduos que vivem nesses
O dilema êmico-ético em grupos culturais percebem a utilização desses
etnomodelagem sistemas na própria realidade. É importante sa-
lientar que a abordagem ética desempenha um
As abordagens êmica e ética foram in- papel importante na pesquisa em etnomodela-
troduzidas pela primeira vez pelo linguista Pike gem, mas a abordagem êmica também deve ser
(1954), que se inspirou em uma analogia entre considerada em tal processo. Nessa perspectiva,
duas abordagens linguísticas: o foco da análise é ético se as práticas mate-
máticas podem ser comparadas entre os grupos
1) Fonêmica: sistema de organização dos culturais com a utilização de procedimentos e
sons utilizados em determinado idioma e definições comuns. Por outro lado, o foco da
que são localmente significativos. O estudo análise é êmico se as práticas matemáticas fo-
da abordagem fonêmica implica o exame do rem desenvolvidas exclusivamente pelos mem-
som utilizado em uma linguagem particular. bros de determinado grupo cultural, pois as-
sim estarão enraizadas nas diversas maneiras
2) Fonética: aspectos gerais de todos os sons em que podem ser realizadas em um ambiente
possíveis produzidos em determinada lin- cultural específico. Então, a lógica do dilema
guagem. A abordagem fonética visa às ge- êmico-ético está fundamentada no argumento
neralizações a partir dos estudos fonêmicos de que a compreensão da complexidade dos
de uma língua específica, tentando elaborar fenômenos matemáticos somente pode ser ve-
uma ciência universal que engloba os sons rificada no contexto do grupo cultural no qual
produzidos em todas as línguas. esses fenômenos ocorrem.

Tais conceitos alcançaram a academia A abordagem dialética da


antropológica, tornando-se elementos funda- etnomodelagem
mentais para a análise cultural dos dados cole-
tados em pesquisas e investigações. Atualmente, o debate entre o êmico e o
Diante desse contexto, elaboramos uma ético é uma das temáticas mais intrigantes da
analogia com relação à etnomodelagem, sobre pesquisa em etnomodelagem, pois é importante
a qual é possível afirmarmos que sua abor- lidarmos com questões como:

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1) Existem padrões matemáticos que são observados em determinado ambiente com os
identificáveis e/ou similares em diferentes padrões desenvolvidos em outros ambientes
grupos culturais? culturais. Isso significa que o objetivo princi-
2) É melhor haver uma concentração nos pa- pal de uma abordagem êmica é uma orientação
drões matemáticos que são decorrentes dos descritiva e ideográfica dos fenômenos mate-
grupos culturais sob investigação? máticos, pois coloca ênfase na singularidade de
cada prática matemática desenvolvida nesses
Enquanto as abordagens êmica e ética grupos. Assim, se os pesquisadores pretendem
são muitas vezes consideradas em uma dicoto- destacar os significados dessas generalizações
mia conflitante, Berry (1999) enfatiza que Pike de maneira êmica, então existe a necessidade de
(1954) originalmente as concebeu como pontos se referirem precisamente a eventos matemáti-
de vista complementares. De acordo com esse cos mais específicos. Em contraste, uma análise
raciocínio, em vez de representar um dilema, a comparativa é ética quando, no exame de prá-
utilização de ambas as abordagens aprofunda ticas matemáticas culturais e distintas, existe a
a nossa compreensão sobre questões importan- utilização de métodos padronizados de pesquisa
tes na pesquisa científica e na investigação em (LETT, 1996). Nesse sentido, a abordagem éti-
etnomodelagem. Berry (1990) sugere que, para ca procura identificar as relações e explicações
lidar com tal dilema, é necessário partir de uma causais que são válidas em diferentes contextos
combinação entre as abordagens êmica e ética, culturais. Assim, se os pesquisadores e investi-
e não simplesmente utilizar a dimensão êmica gadores desejam elaborar afirmações sobre os
ou ética do conhecimento das práticas mate- aspectos universais ou éticos do conhecimento
máticas presentes nos grupos culturais. Porém, matemático, essas declarações devem ser redi-
a combinação de ambas as abordagens requer gidas de maneira abstrata.
que, primeiramente, os pesquisadores e inves- Por outro lado, Pike (1954) afirma que
tigadores percebam o conhecimento êmico dos a abordagem ética pode ser uma maneira de
grupos culturais em estudo. De acordo com chegarmos à abordagem êmica das práticas
Berry (1990), isso permite que esses profissio- matemáticas desenvolvidas nos grupos cultu-
nais abandonem os próprios preconceitos, tor- rais. Dessa forma, a abordagem ética pode ser
nando-se familiares às diferenças culturais que útil para que possamos penetrar, descobrir e
são relevantes para cada grupo cultural. elucidar os sistemas êmicos que foram desen-
Na pesquisa em etnomodelagem, a volvidos nesses grupos. Então, uma vez que os
análise êmica concentra-se em uma única conceitos tradicionais das abordagens êmica e
cultura, empregando métodos prescritivos ética são importantes para que possamos enten-
e qualitativos para o estudo de uma prática der e compreender as influências culturais nos
matemática que seja de interesse ético. modelos matemáticos, propomos uma aborda-
Assim, o foco dessa ação está no estudo do gem diferenciada para a pesquisa em etnoma-
contexto interno do grupo cultural, no qual os temática e modelagem por meio da etnomode-
pesquisadores e investigadores desenvolvem os lagem. Martin e Nakayama (2007) denominam
critérios de pesquisa em relação às características essa abordagem de dialética. De acordo com
internas e à lógica do sistema de conhecimento Alvarez-Pereyre e Arom (1993), originalmente
desenvolvido pelo grupo. Nessa perspectiva, o Pike (1954) trabalhou com uma relação dialéti-
significado é adquirido em relação ao contexto ca na qual se podiam evidenciar as interdepen-
e, portanto, não é facilmente transferível para dências, os entrecruzamentos e as complemen-
outras contextualizações culturais. taridades entre essas duas abordagens, pois,
Por exemplo, os pesquisadores não têm a nesse caso, o êmico é parte do ético e o ético é
intenção de comparar os padrões matemáticos parte do êmico.

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Nessa abordagem, as reivindicações éti- Conforme afirma esse autor, para que os
cas das práticas matemáticas desenvolvidas em indígenas da nação Sioux possam suportar a
qualquer grupo cultural não têm prioridade dura realidade da vida nas planícies, existe a
sobre suas reivindicações êmicas. De acordo necessidade de utilizarem uma fundação tripé
com esse ponto de vista, Eglash et al. (2006) para a construção da cabana Tipi, pois ela ofe-
afirmam que é necessário dependermos dos rece mais resistência para a base do que uma
“atos de ‘tradução’ entre as abordagens êmica e fundação quadripé. Laubin e Laubin (1989)
ética” (p.347). Em outras palavras, a especifici- afirmam que a maioria dos moradores da ca-
dade cultural pode ser mais bem compreendida bana Tipi puderam perceber que a fundação tri-
se embasada na comunalidade e na universa- pé é a melhor opção na defesa contra os fortes
lidade de teorias e métodos, pois, para alcan- ventos que são predominantes nas pradarias
çarmos um caráter científico, os procedimen- abertas da América do Norte. De acordo com
tos utilizados nas práticas matemáticas devem esses autores, há evidências históricas de que
ser verificados ou refutados de acordo com a fundação tripé é a mais comumente utilizada
métodos independentes da subjetividade dos em áreas que possuem menos obstáculos natu-
pesquisadores e investigadores. Então, é im- rais e, assim, mais propensas às ações do vento.
portante analisarmos as percepções que foram Além disso, para que a cabana Tipi tenha uma
adquiridas por meio de métodos subjetivos e melhor estabilidade, é necessário que a funda-
culturalmente contextualizados. Na abordagem ção tripé tenha o formato aproximado de um
dialética, existe a possibilidade de que os pes- triângulo equilátero.
quisadores possam ser tanto observadores in- Nesse contexto, um etnomodelo ético
ternos (insiders), quanto observadores externos pode explicar o motivo pelo qual uma funda-
(outsiders) em determinado contexto cultural. ção tripé é mais flexível e resistente do que
uma fundação quadripé. Assim, consideremos
O etnomodelo dialético da três pontos não colineares denominados A, B
cabana Tipi dos indígenas Sioux e C. Existe um número infinito de planos que
passam pelos pontos A e B e que contêm a
Orey (2000) afirma que a “geometria reta AB. Porém, apenas um desses planos tam-
[plana e] espacial é inerente no formato da bém passa pelo ponto C. Portanto, podemos
Tipi1, que era utilizada para simbolizar o uni- afirmar que três pontos colineares determinam
verso em que viviam os povos das planícies” um plano e que um plano também pode ser
(p.241). A figura 2 mostra as cabanas Tipi. determinado por uma reta e um ponto locali-
zado fora dessa reta. A figura 3 representa a
Figura 2 – Aquarela em papel da cabana Tipi dos indígenas situação descrita.
Sioux, pintada por Karl Bodmer em 1833 em sua viagem nos
Estados Unidos (1832-1834)
Figura 3 – Determinação de um plano

Geometricamente, esse fato pode ser ex-


1 - De acordo com Orey (2000), a palavra tipi, na língua Sioux, refere-se
a uma tenda cônica utilizada pelos povos indígenas das pradarias abertas plicado com a utilização do postulado do plano,
da América da Norte. que estabelece que dados três pontos quaisquer,

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não colineares, existe um único plano no qual É possível conectarmos cada vértice do
esses mesmos três pontos estão localizados. triângulo ABC ao ponto médio de cada um de
Com relação à construção da cabana seus lados opostos para obtermos os segmentos
Tipi, essa informação pode ser verificada ma- de reta AM, BN e CP. Esses segmentos de reta
tematicamente. A figura 4 mostra a construção formam as três medianas do triângulo ABC, que
da cabana Tipi. são os segmentos de reta que conectam o ponto
médio de cada lado do triângulo ao seu vértice
Figura 4 – Construção da cabana Tipi oposto. A figura 7 mostra as três medianas do
tirângulo ABC.

Figura 7 – Três medianas do triângulo ABC


M
C B
N P
A

As medianas encontram-se em um
ponto denominado centróide (OREY, 2000).
Arquimedes demonstrou que as medianas de
um triângulo localizam-se em seu ponto de
equilíbrio ou centro de gravidade denomina-
do baricentro do triângulo. A figura 8 mostra
a centróide ou o baricentro do triângulo ABC.

Figura 8 – Centróide ou baricentro do triângulo ABC

M
A base da cabana Tipi é formada pela
C B
fundação tripé determinada pelo triângulo ABC.
N P
A figura 5 mostra a base tripé da cabana Tipi.
A
Figura 5 – Base tripé determinada pelo triângulo ABC
É importante enfatizar que os indígenas
C B Sioux utilizam esse local, centróide, para atear
o fogo para aquecer o interior da cabana e para
A cozinhar. No local, eles também constroem um
altar sagrado para queimar incenso durante o
Os pontos médios dos lados do triângulo período de preces. Nesse sentido, Orey (2000)
ABC são os pontos M, N e P. A figura 6 mostra argumenta que o “centro da Tipi detém um po-
os pontos médios dos lados do triângulo ABC. der definitivo e santificado” (p. 246). Então, os
indígenas Sioux também determinam o centro
Figura 6 – Pontos médios dos lados do triângulo ABC da base da cabana Tipi devido à sua santidade,
e não apenas por uma questão de necessidade
M
ou estética.
C B
Por outro lado, um etnomodelo êmico
N P pode explicar essa situação-problema. Através
A da história, os povos nômades das pradarias

874 Milton ROSA; Daniel Clark OREY. O campo de pesquisa em etnomodelagem: as abordagens êmica, ética e...
têm observado que a fundação tripé da cabana das moradias. Nesse sentido, D’Ambrosio (1993)
Tipi parece estar perfeitamente adaptada ao am- afirma que as práticas matemáticas são social-
biente hostil em que vivem os indígenas Sioux mente aprendidas e historicamente transmiti-
(OREY, 2000). Dessa maneira, se entendermos das, de geração em geração, entre os membros
a distinção entre a utilização da base tripé ou dos grupos culturais.
quadripé na fundação dessa cabana, podemos Nesse exemplo, na abordagem dialéti-
perceber que esses indígenas têm uma compre- ca, a observação êmica procura compreender
ensão de conceitos básicos da geometria, como a prática matemática para a construção da ca-
características do triângulo e propriedades geo- bana Tipi a partir da perspectiva da dinâmica
métricas, o que evidencia o desenvolvimento do cultural interna e das relações do povo Sioux
conhecimento matemático êmico2. Então, pode- com o meio ambiente no qual estão inseridos.
mos inferir que os indígenas Sioux utilizam a Por outro lado, a abordagem ética proporciona
base tripé em vez de uma base quadripé para a um contraste cross-cultural, que emprega pers-
Tipi devido ao fato de esse tipo de base fornecer pectivas comparativas com a utilização de con-
uma estabilidade maior para sua fundação. ceitos matemáticos acadêmicos. Tal abordagem
Diante dessa perspectiva, provavelmen- tem como objetivo traduzir os procedimentos
te, uma base quadripé terá apenas três de suas utilizados nessa prática matemática para o en-
pernas apoiadas, enquanto a quarta perna pode tendimento daqueles que possuem backgrounds
deslocar-se um pouco acima do solo. Quando culturais diferentes, a fim de que possam com-
essa estrutura é inclinada para o lado da per- preender e explicar a prática a partir do ponto
na que não toca o solo, as outras pernas da de vista dos observadores externos, isto é, dos
fundação também podem levantar-se e, assim, outsiders. Em nosso ponto de vista, a aborda-
desestabilizar a cabana Tipi. Então, a funda- gem êmica pode auxiliar no esclarecimento das
ção quadripé tende a balançar ou a mover-se intrínsecas distinções dos procedimentos cultu-
enquanto os indígenas Sioux estão tentando rais, enquanto a abordagem ética procura mos-
proteger-se das duras condições metereológicas trar a objetividade das observações externas
e dos ventos fortes das planícies. Esse aspec- sobre esses procedimentos.
to torna a fundação quadripé imprópria para Então, a abordagem ética refere-se às ca-
a estabilização dessa cabana. Em tal contexto, racterísticas da matemática acadêmica indepen-
a base tripé da cabana Tipi tem a vantagem de dentemente da cultura estudada, ao passo que
fornecer uma estrutura estável de moradia para a abordagem êmica pode ser considerada como
que os indígenas Sioux possam viver com tran- uma tentativa de descobrir e descrever um sis-
quilidade em ambientes hostis. tema do conhecimento êmico de determinada
Os procedimentos implícitos (conheci- cultura em seus próprios termos, identifican-
mento êmico) utilizados nessa prática mate- do as unidades e as classes estruturais em que
mática foram transmitidos para os membros tal cultura está inserida. Em última instância,
do povo Sioux, através das gerações, pelas é importante que uma descrição êmica identi-
mulheres desse grupo cultural, que são as res- fique os caracteres éticos que são localmente
ponsáveis pela construção e pela manutenção significantes, pois quanto mais soubermos so-
2-  A expressão conhecimento matemático êmico utilizada nesse texto
bre o conhecimento ético de determinado grupo
não significa que estamos denominando o saber-fazer dos indígenas Sioux cultural, mais fácil será sua análise êmica. Em
de acordo com a perspectiva dos pesquisadores que não estão imersos outras palavras, é necessário que a descrição
no contexto sociocultural desse grupo. Em nosso ponto de vista, esses
indígenas utilizam técnicas e procedimentos êmicos que evidenciam práticas êmica, que é localmente significante, identifi-
matemáticas compartilhadas e aceitas pelo próprio grupo cultural. No que as características éticas da academia, pois o
entanto, com a visão ética que possuímos, podemos argumentar que essas
técnicas e procedimentos podem ser explicados na perspectiva do outsiders conhecimento ético pode ser considerado como
com relação ao conhecimento acadêmico denominado matemática. uma interpretação do conhecimento êmico de

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determinada cultura, e não como uma interpre- ideológica para a aprendizagem que utiliza
tação da própria cultura. os diversos elementos culturais e linguísticos
Concordamos com o ponto de vista de dos membros de grupos culturais distintos na
Pike (1996) de acordo com o qual ambas as ação pedagógica para o ensino da matemática
abordagens são essenciais para uma melhor (ROSA; OREY, 2010a). Nesse tipo de currícu-
compreensão dos comportamentos humanos, lo matemático, é essencial entender que uma
principalmente daqueles relacionados com o construção ética é um conceito matemático te-
desenvolvimento do conhecimento matemáti- órico empregado na academia e supostamente
co, pois a abordagem dialética relaciona-se com aplicado a todos os grupos culturais. Por outro
a estabilidade das relações existentes entre as lado, a construção êmica é aquela que somen-
abordagens êmica e ética. te é aplicada aos membros de grupos culturais
específicos. Tal fato pode sinalizar a existência
A abordagem dialética do de uma preocupação com o preconceito cultu-
currículo matemático a partir da ral, passível de se materializar se os pesquisa-
perspectiva da etnomodelagem dores assumirem que uma construção êmica é,
na realidade, ética (EGLASH et al., 2006). Nesse
A conjunção do conhecimento matemá- sentido, uma prática matemática acadêmica é
tico dos membros de grupos culturais com o equivocadamente imposta aos membros desses
sistema ocidental do conhecimento matemáti- grupos culturais.
co pode resultar em uma abordagem dialética Um currículo matemático escolar basea-
para a educação matemática. Em um currículo do na perspectiva da etnomatemática combina
fundado na perspectiva da etnomodelagem, a os elementos-chave do conhecimento local com
análise êmica de um fenômeno matemático é os da academia em uma abordagem dialética,
baseada nos elementos estruturais internos do permitindo que os alunos gerenciem a produção
conhecimento de determinado grupo cultural, do conhecimento e dos sistemas de informações
enquanto a análise ética é baseada em certos extraídas da própria realidade, e apliquem cria-
conceitos gerais que são externos ao conheci- tivamente esse conhecimento em outras situa-
mento desenvolvido pelos membros desse gru- ções. Existe a necessidade de optarmos por uma
po cultural (LOVELACE, 1984). A perspectiva abordagem integradora do currículo, que além
êmica fornece concepções e percepções internas de considerar a abordagem êmica, reconhece
sobre as práticas matemáticas, ao passo que a que também é preciso considerar os dados éti-
perspectiva ética providencia um enquadramen- cos, desde que nos comprometamos com a bus-
to teórico para determinar os efeitos da cultura ca de uma compreensão holística e abrangen-
sobre o desenvolvimento dessas práticas. Em tal te sobre as informações culturais (MARQUES,
perspectiva, a aquisição do conhecimento ma- 2001). Consideramos que seja necessário conci-
temático pode estar baseada nas aplicações de liar a ênfase cognitivista com a adaptacionista,
um currículo matemático, o qual pode ser ava- por elas serem capazes de combinar em uma
liado a partir de várias metodologias de ensino única perspectiva os aspectos essenciais da pes-
desenvolvidas em grupos culturais distintos. quisa em etnomodelagem a fim de estabelecer a
Uma abordagem dialética no currículo conexão entre o corpus e a práxis.
escolar inclui o reconhecimento de outras epis- Em nosso ponto de vista, a etnomode-
temologias e da natureza holística e integrada lagem pode ser compreendida como parte da
do conhecimento matemático dos membros dos educação matemática crítica, pois é um pro-
diversos grupos culturais encontrados em mui- cesso de aprendizagem no qual os professores
tas escolas. Um currículo baseado na perspec- favorecem uma análise crítica das múltiplas
tiva da etnomodelagem providencia uma base fontes de conhecimento em diversos estilos de

876 Milton ROSA; Daniel Clark OREY. O campo de pesquisa em etnomodelagem: as abordagens êmica, ética e...
aprendizagem. Em tal abordagem, o conheci- comparação entre os grupos culturais, exigindo
mento adquirido é centrado, localizado, orien- unidades-padrão e categorias, que são os com-
tado e fundamentado no perfil cultural dos ponentes essenciais da etnologia. Oferecemos
alunos, pois visa equipá-los para serem cida- também a abordagem dialética para a pesqui-
dãos produtivos local e globalmente. De acordo sa em etnomodelagem, que utiliza os conhe-
com Rosa e Orey (2010b), a etnomodelagem é a cimentos êmico e ético por meio do processo
abordagem pedagógica necessária para atingir- dialógico. Assim, ao conduzirmos uma pesquisa
mos esse objetivo. fundamentada por ambas as abordagens, ga-
nhamos uma compreensão mais completa so-
Considerações finais bre o conhecimento das práticas matemáticas
desenvolvidas pelos membros dos grupos cul-
Atualmente, diversos sistemas de tradi- turais. Nesse sentido, o conhecimento êmico é
ções e conhecimento matemático de distintos uma valiosa fonte de inspiração para a elabora-
grupos estão em risco de extinção devido à rá- ção de hipóteses éticas.
pida mudança nos ambientes naturais e cultu- Diante desse contexto dialético, o currí-
rais, bem como em virtude do ritmo acelerado culo matemático baseado na perspectiva da et-
das mudanças econômicas, sociais, ambientais nomodelagem fornece uma filosofia subjacente
e políticas que estão ocorrendo em escala glo- para a geração de conhecimento com e entre
bal. Assim, muitas práticas matemáticas locais os subsistemas da educação em matemática, a
podem desaparecer por causa da substituição fim de garantir a integração equilibrada do do-
do conhecimento êmico pelo ético, da invasão mínio afetivo dos objetivos educacionais, que
e da imposição de tecnologias estrangeiras a são essenciais para o reconhecimento e para a
partir dos conceitos de desenvolvimento globa- utilização do conhecimento êmico dos alunos.
lizado que prometem ganhos a curto prazo, ou Então, é importante reinterpretarmos o mundo,
da proposição de soluções para problemas en- replanejarmos as situações experimentais, sen-
frentados por determinado grupo cultural sem tirmos empaticamente os indivíduos de culturas
considerar seu conhecimento êmico para resol- diversas para melhor compreendermos os dife-
ver tais situações. rentes pontos de vista e produzirmos descrições
Neste artigo, oferecemos um conceito internas do conhecimento matemático. Em sín-
alternativo de pesquisa, que é a aquisição dos tese, nosso objetivo é absorver o ponto de vista
conhecimentos êmico e ético para a imple- dos insiders para que possamos entender sua
mentação da etnomodelagem. O conhecimento visão de mundo.
êmico é essencial para uma compreensão in- Finalmente, definimos etnomodelagem
tuitiva e empática das práticas matemáticas de como o estudo dos fenômenos matemáticos que
determinado grupo cultural, sendo importante ocorrem em determinado grupo cultural por meio
para a condução de pesquisas etnográficas, en- da modelagem, pois as práticas matemáticas são
quanto o conhecimento ético é essencial para a construções sociais e culturalmente enraizadas.

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Enviado em: 24.01.2012

Aprovado em: 02.07.2012

Milton Rosa é professor adjunto A do Centro de Educação Aberta e a Distância (CEAD) da Universidade Federal de Ouro
Preto (UFOP).

Daniel Clark Orey é professor adjunto A do Centro de Educação Aberta e a Distância (CEAD) da Universidade Federal de Ouro
Preto (UFOP). E-mail: oreydc@cead.ufop.br

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