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Química e Sociedade

Saberes Populares e Ensino de Ciências:


Possibilidades para um Trabalho Interdisciplinar

Maria Stela da Costa Gondim e Gerson de Souza Mól


Neste trabalho, apresentamos uma proposta de ensino de ciências que possa servir de orientação a profes-
sores, principalmente os de Química, na realização de práticas pedagógicas que busquem a inter-relação entre
os saberes populares e os saberes formais ensinados na escola. Trabalhamos com uma abordagem temática,
que possibilita a interdisciplinaridade e a contextualização. A proposta de ensino foi desenvolvida como um
material paradidático que inter-relaciona os saberes populares inerentes na cultura popular da tecelagem mineira,
no tear de quatro pedais, e saberes científicos a serem ensinados na escola.

saber popular, tecelagem manual, material paradidático

Recebido em 15/09/08, aceito em 21/10/08

E
m nossa sociedade, ainda é ração dos currículos e da postura quais o conhecimento do mundo natu-
muito comum a visão que dá crítica em relação à ciência ocidental ral de outras culturas é construído” (p.
a ciência um status hegemôni- moderna. 65, tradução e grifo nossos).
co e superior de saber. Essa visão Pomeroy (1994) Nessa perspecti-
cientificista é também reproduzida apresenta algumas va, desenvolvemos
Desenvolvemos uma
na escola. Diante dessa realidade, estratégias para a uma proposta de
proposta de ensino que
muitas considerações sobre o ensino educação científica: ensino que possa
possa servir de orientação
e a aprendizagem de ciências têm explorar as inter-re- servir de orienta-
a professores na realização
sido feitas. Um dos debates sobre lações entre ciência, ção a professores,
de práticas pedagógicas
essa questão refere-se ao significado tecnologia e socieda- principalmente os
que busquem a inter-
de ensinar ciências para a vida de de dentro do contexto de Química, na re-
relação entre os saberes
estudantes que habitam um mundo de vida dos estudan- alização de práticas
populares e os saberes
de enorme diversidade cultural (Po- tes; utilizar recursos pedagógicas que
formais ensinados na
meroy, 1994). locais e problemas busquem a inter-
escola.
A partir da década de 1990, os locais para as proble- relação entre os
educadores e pesquisadores passa- matizações; utilizar saberes populares
ram a questionar essa superioridade textos que abordem narrativas de e os saberes formais ensinados na
epistemológica do saber científico e descobertas científicas para des- escola. Em nosso caso, escolhemos
considerar as relações entre cultura e mistificar a idéia de ciência pronta como cultura popular a tecelagem
educação científica. A cultura popular e acabada; “desenvolver currículos mineira no tear de quatro pedais. A
e o conhecimento cultural passaram de ciências em torno de conteúdos proposta de ensino foi desenvolvida
a ser considerados na orientação científicos que expliquem práticas e como um material paradidático que
dos currículos de ciências. Essas técnicas populares” (p. 62, tradução e inter-relaciona os saberes populares
modificações podem advir, segundo grifo nossos); desenvolver atividades de artesãs da região do Triângulo
os pesquisadores, da perspectiva científicas que não violem as crenças Mineiro sobre a tecelagem manual em
construtivista como tendência na dos estudantes; “explorar as crenças, quatro pedais, a partir de suas falas e
educação científica, da substituição os métodos, os critérios de validade de outros conhecimentos que podem
da perspectiva tecnicista na elabo- e sistemas de racionalidade sobre os ser abordados nessa relação.
Esse material deve dar suporte
A seção “Química e sociedade” apresenta artigos que focalizam diferentes inter-relações entre Ciência e sociedade, às atividades pedagógicas, trazen-
procurando analisar o potencial e as limitações da Ciência na tentativa de compreender e solucionar problemas sociais. do para sala de aula conteúdos

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que abordem experiências de vida, roupas, colchas, cobertores, mantas dão; cardar (escovar as fibras para
interesses e necessidades dos es- e outros artefatos, é tradicionalmente facilitar a fiação) a lã e/ou o algodão;
tudantes, propiciando a reflexão e realizada por mulheres e transmitida fiar (transformar a matéria-prima já
favorecendo a interação e o diálogo de geração em geração. As mulheres tratada em fios com espessuras de-
dinâmico. Ou seja, a partir da in- tecelãs, normalmente, moravam na sejadas); fazer a meada; tingir os fios;
terdisciplinaridade efetiva entre os zona rural ou na periferia das cidades. fazer o novelo; urdir (paralelizar os fios
vários campos do saber, estudan- Essa técnica, vista aqui como um e formar o rolo de urdume) o fiado
tes e professores podem tornar-se saber popular, iniciou-se no Brasil, (algodão) e/ou a lã; e por fim tecer
conscientes e conhecedores das segundo Maureau (1986), com a che- no tear de quatro pedais, realizando
inter-relações entre ciência, cultura, gada dos europeus, destacando-se as tramas de acordo com o produto
tecnologia, ambiente e sociedade, os provenientes do norte de Portugal. desejado.
favorecendo o desenvolvimento de Estes já tinham tradição em tecela- Há milhares de séculos, a tecela-
uma visão holística do mundo. gem doméstica e a difundiram nas gem é uma atividade realizada pelo
regiões de Minas ser humano a fim de lhe proporcionar,
Saber popular e Gerais – sul e Triân- por meio da utilização de mantas
tecelagem manual A proposta de ensino foi gulo Mineiro –, Goiás e vestimentas, proteção contra as
Desde o século desenvolvida como um e norte de São Pau- intempéries ambientais (clima, chu-
XIX, a ciência passou material paradidático que lo. No entanto, a ati- va, espinhos etc.). Aos poucos, o
a exercer um papel inter-relaciona os saberes vidade de tecelagem vestir-se também passou a significar
preponderante em populares de artesãs da manual já era aqui uma forma de expressão. Iniciada no
nossa sociedade, a região do Triângulo Mineiro realizada mesmo an- Oriente Médio, tal atividade fazia uso
ponto de menospre- sobre a tecelagem manual tes da chegada dos de várias fibras têxteis naturais como
zarmos outros sabe- em quatro pedais. portugueses. o algodão, a lã, o linho e a seda, e de
res (senso comum, Até meados do corantes naturais para o tingimento
teologia, filosofia etc.) e considerá-la século passado, a tecelagem fazia das fibras ou do tecido. Os corantes
4 o único saber realmente passível de parte dos muitos afazeres domésticos naturais utilizados eram provenientes
compreensão e de credibilidade. En- destinados às mulheres. No entanto, de plantas como a anileira (Indigofera
tretanto, compreendemos que o ser ao se diminuir a distância entre o cam- tinctoria, da qual se obtém o anil ou
humano constitui-se a partir de uma po e a cidade, conseqüência da indus- índigo) e o pau-brasil (Caesalpinia
diversidade de saberes e, dentre eles, trialização de nosso país, do êxodo echinata, da qual se obtém um ver-
os saberes populares, tão presentes rural e do crescimento da área urbana, melho intenso), e de animais, como
na cultura de nosso país e desconsi- entre outros fatores (Lima e Ferreira, a cochonilha (Dactylopius coccus) e
derado em nossas escolas. 1999), os tecidos feitos no tear para os caracóis Purpura lapillus e Murex
A cultura popular, de acordo com a confecção de roupas e as colchas brandasis, ambos responsáveis pela
Xidieh (apud Ayala e Ayala, 1987), foram, aos poucos, sendo substituí- obtenção da cor púrpura (Ferreira,
pode ser definida como aquela “[...] dos por tecidos, roupas e cobertores 1998). Muitas vezes, o processo de
criada pelo povo e apoiada numa industrializados. Conseqüentemente, tingimento envolvia procedimentos
concepção do mundo toda específica a procura pelas tecelãs diminuiu e complexos, trabalhosos e dotados de
e na tradição, mas em permanente muitas delas pararam de tecer, além crenças inexplicáveis para a ciência.
reelaboração mediante a redução de se desfazerem Não se possuía um
ao seu contexto das contribuições de seus teares e das conhecimento quími-
A partir da
da cultura erudita, porém, mantendo rodas de fiar. co sobre os procedi-
interdisciplinaridade efetiva
a sua identidade” (p. 41). Dentre as Para a realização mentos adotados.
entre os vários campos
manifestações da cultura popular, da tecelagem pro- O desenvolvimen-
do saber, estudantes
temos os chás medicinais, os arte- priamente dita, são to da ciência trouxe
e professores podem
sanatos, as mandingas, as cantigas necessárias várias modificações para
tornar-se conscientes e
de ninar e a culinária. Todas estas se etapas anteriores. a atividade da tece-
conhecedores das inter-
constituem como saberes populares. No Triângulo Minei- lagem. Inicialmente
relações entre ciência,
Eles não exigem espaço e tempo ro, era comum as manual, ela passou
cultura, tecnologia,
formalizados; são transmitidos de mulheres realizarem por um processo de
ambiente e sociedade,
geração em geração por meio de todas essas etapas. industrialização, le-
favorecendo o
linguagem falada, de gestos e atitu- Em outros casos, vando a uma produ-
desenvolvimento de uma
des; e são também transformados à pessoas diferentes ção em massa e a
visão holística do mundo.
medida que, como parte integrante dedicavam-se a ati- uma padronização
de culturas populares, sofrem influ- vidades específicas. dos produtos, em
ências externas e internas. Tais etapas compreendem: tosquiar contrapartida à produção artesanal
A tecelagem com tear de quatro o carneiro, para a retirada de lã, ou que, embora mais lenta e cara (com-
pedais, com fins de fabricação de colher, descaroçar e limpar o algo- parativamente ao produto industrial),

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oferecia produtos com características caso, estão subordinados ao tema. aquelas da comunidade. Entretanto,
próprias, personalizados. Teares e Como referencial teórico para uma ao reconhecer aquilo que lhe é apre-
cardadeiras manuais foram substi- abordagem temática, buscamos Paulo sentado, o indivíduo consegue melhor
tuídos por máquinas Freire (2000) e o seu se identificar e atuar sobre o meio, em
industriais. Fibras e conceito de tema ge- um processo de conscientização.
corantes passaram A escolha da tecelagem rador, aliado a uma
a ser produzidos manual foi favorecida educação como A pesquisa com as artesãs
sinteticamente. A in- pela existência de alguns prática da liberda- A escolha da tecelagem manual
dústria de corantes centros dedicados à de. Gerador porque foi favorecida pela existência de
sintéticos cresceu sua preservação e por “qualquer que seja alguns centros dedicados à sua
tanto que, atualmen- percebermos várias a natureza de sua preservação e por percebermos, ao
te, pouco uso é feito possibilidades para a compreensão, como realizarmos um contato inicial em um
de corantes naturais realização da proposta de a ação por eles pro- desses centros de tecelagem, várias
na indústria têxtil. trabalho interdisciplinar. vocada, contêm em possibilidades para a realização da
O processo de si a possibilidade de proposta de trabalho interdisciplinar.
tingimento é um dos mais importantes desdobrar-se em outros tantos temas O foco de nosso trabalho foi o
na indústria têxtil e também na tecela- que, por sua vez, provocam novas conhecimento do processo de tece-
gem manual. A classificação utilizada tarefas que devem ser cumpridas” (p. lagem manual, considerando todas
para os corantes na indústria têxtil é 93). Nessa perspectiva, o professor suas etapas. Como tal conhecimento
a estrutura molecular da substância passa a ser parte integrante da trans- advém de uma cultura popular, foi im-
química ou o método utilizado no tin- posição didática e não mero executor, perativo inserir-nos no meio em que as
gimento. De acordo com a estrutura selecionando os seus conteúdos cien- participantes desta se encontravam.
molecular da substância, podemos ter tíficos a partir de uma realidade apre- Dessa forma, foi-nos possível com-
azo-corantes, antraquinona e outros. sentada pela comunidade da escola e preender como se dava o processo de
Quando tratamos do método utilizado problematizada. tecelagem em anos
no tingimento, devemos considerar Um tema gerador mais remotos e como 5
primeiro como ocorre a fixação dos oferece condições Compreendemos que é atualmente, quais
corantes às fibras. Ela geralmente para uma aborda- o ser humano constitui- as características das
acontece em meio aquoso e pode gem contextualiza- se a partir de uma pessoas envolvidas,
dar-se por meio de quatro tipos de da e interdisciplinar. diversidade de saberes quais as circunstân-
interação: ligação iônica, ligação de Cada professor, em e, dentre eles, os saberes cias, as relações que
hidrogênio, interação de van der Wa- sua especialidade, populares, tão presentes eram estabelecidas
als e interações ou forças covalentes. busca levantar que na cultura de nosso país e pelas artesãs e tam-
Muitas vezes, assim como utilizado problemáticas po- desconsiderado em nossas bém as modificações
nos procedimentos para os corantes dem ser abordadas escolas. ocorridas com o pas-
naturais, é necessária a adição de a partir do tema es- sar do tempo.
mordentes para a melhor fixação do colhido. Para a realização de nossa pes-
corante ou ainda a acidificação ou a É nesse sentido que defendemos quisa, fizemos uso dos métodos da
alcalinização do meio. a necessidade do saber popular a ser abordagem antropológica, como a
estudado ser inerente à comunidade. observação participante e a coleta de
Abordagem temática Ou seja, na região do Nordeste, temos depoimentos na forma de entrevistas
A tecelagem ma- uma forte presen- não estruturadas gravadas em áudio-
nual no Triângulo Mi- ça de outro tipo de cassete. Além desse instrumento,
neiro, uma das mani- A valorização cultural artesanato (rendas também fizemos uso de câmera
festações culturais da na escola pode auxiliar de bilro e de filé) e fotográfica digital para o registro
região, foi escolhida a inter-relação entre as de festas juninas e, de imagens (artesãs, instrumentos
por nós como tema a pessoas, favorecendo no Espírito Santo, e materiais utilizados e etapas do
ser trabalhado no En- o desenvolvimento temos a produção processo).
sino Médio por meio de sentimentos de de panelas de barro, A pesquisa foi realizada com nove
de uma abordagem solidariedade e respeito por exemplo. Essas artesãs em visitas que ocorreram em
temática. Tal aborda- ao próximo, conferindo manifestações estão dois momentos: outubro de 2006
gem, segundo Deli- novos significados próximas daquelas e janeiro de 2007. Seis das tecelãs
zoicov e cols. (2002), aos conhecimentos já comunidades e de- trabalham em núcleos de artesanato
é aquela em que a adquiridos. veriam ser estudadas que visam, dentre outros objetivos, a
organização curricular lá. Ainda buscando preservação de tal tradição. Um dos
baseia-se em temas que direcionam Freire (2000), reiteramos sua afir- núcleos de artesanato, o Centro de
os conteúdos de ensino das discipli- mação sobre possibilidades de se Fiação e Tecelagem, localiza-se na
nas. Os conceitos científicos, nesse estudar outras realidades que não cidade de Uberlândia e o outro, o

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Núcleo de Artesanato da Fundação o seu modo de falar para melhor De acordo com a fala das artesãs,
Cultural Calmon Barreto, na cidade caracterizar o contexto a partir do buscamos questões que pudessem
de Araxá. As outras três artesãs re- qual foi produzido o material e surgir a partir do assunto abordado.
sidem nos municípios de Perdizes e “respeitar e preservar as diferen- Ou seja, a partir das problematiza-
de Itapagipe. tes manifestações de linguagem ções iniciais, geramos necessidades
Alguns procedimentos de tingimen- por diferentes grupos sociais, em de estudos mais aprofundados de
to descritos pelas artesãs foram testa- suas esferas de socialização” outros saberes. A partir daí, suge-
dos por nós. Escolhemos para teste os (Brasil, 2002, p. 130); rimos saberes científicos ou outros
tingimentos feitos com: anil – citado e - as etapas envolvidas na tecelagem, saberes ou temas que pudessem ser
muito utilizado por elas, teve seu uso apresentadas na seqüência em abordados a partir dessas questões.
descrito em detalhes; quaresminha – que são realizadas. Nos casos de Essa seção foi denominada “Tecendo
extrato vegetal para o tingimento de lã; etapa que envolvem maiores deta- outros saberes”, e esses entrelaça-
ferrugem – único pigmento inorgânico lhes, estas são tratadas separada- mentos realizados permitiram abordar
citado; sangra d’água – feito a partir da mente. Dessa forma, a tecelagem uma variedade de conceitos (científi-
casca de tal árvore; e alguns corantes é apresentada em partes com os cos ou não) e temas.
comerciais. seguintes nomes: “Tosquiando o Após a seção “Tecendo saberes”,
Após a pesquisa com as artesãs, carneiro”, “É hora de colher o al- sugerimos, como exemplo, alguns
as entrevistas foram transcritas e de- godão!”, “Retirando a semente do conteúdos químicos com vistas
mos início à construção do material algodão”, “Deixar o algodão limpi- a auxiliar professores de Química
paradidático, buscando inter-relacio- nho”, “Pentear as fibras”, “Fazer o que, muitas vezes, trabalham com
nar saberes populares, aprendidos fio”, “Fazer a meada e o novelo”, abordagens conceituais e não com
por nós com as artesãs, e saberes “Agora, o tingimento”, “Para tirar a abordagens temáticas. Em seguida,
científicos. Tal material, além da possi- sujeira”, “Tingir de ferrugem ‘pra sugerimos algumas atividades. Nesse
bilidade de uso direto, pretende servir ficar bonito’”, “‘Dicuada’? O que é momento, a nossa intenção era suge-
de orientação e modelo a outros pro- isto?”, “O tingimento com o anil é rir atividades interdisciplinares, além
6 fessores para realização de trabalhos ‘enguiçado’”, “Mais sobre o anil... de salientarmos algumas estratégias
semelhantes em suas escolas. crenças, crendices”, “Tingir a lã de ensino propostas na perspectiva
com quaresminha”, “Usando as de Ciência, Tecnologia e Sociedade
O material paradidático proposto cascas das árvores”, “Outras plan- – CTS (Santos e Schnetzler, 1997) ou
A articulação entre os diferentes tas, novas cores, outros métodos”, de experimentação.
saberes era uma meta prevista desde “Para segurar a tinta”, “A tinta co- As Figuras de 1 e 2 são dois
o início do trabalho. Assim, o material mercial”, “A quantidade para usar”, exemplos de seqüência do material
paradidático a ser produzido deveria “Urdir”, “Colocar no tear”, “O paradidático produzido, apresen-
apresentar quais os outros saberes repasso”, “Os tipos de repasso”, tando todas as seções referidas
poderiam ser trabalhados a partir de “Tecer”, “Hoje é mais quente?”, anteriormente. Tais exemplos foram
tal cultura, além de saberes referentes “Uma profissão: artesã”. escolhidos por apresentarem a abor-
à própria cultura. Em cada parte, realizamos uma dagem concernente ao tingimento, de
O material paradidático proposto pequena introdução sobre o assunto relação mais direta com a Química.
contém: a ser tratado, situando o contexto Na Figura 1 apresentamos a parte
- uma breve apresentação desti- em que aquela atividade é realizada, introdutória da abordagem feita em
nada ao professor; fazendo algumas explicações em relação ao tingimento. Nessa abor-
- uma introdução, na qual descre- termos científicos ou esclarecimentos dagem, são relatados os métodos
vemos sucintamente a tradição e, ainda, comparações mais superfi- de tingimento utilizados pelas artesãs
cultural da tecelagem manual rea- ciais entre a atividade bem como as suas
lizada a quatro pedais, situando-a realizada de forma crenças. Buscamos
na cultura popular e descrevendo artesanal ou de for- A articulação entre a escola inter-relacionar os
suas manifestações; ma industrial. Essas e as pessoas envolvidas conhecimentos ad-
- uma apresentação das artesãs, introduções abrem com a cultura popular vindos da Biologia,
feita “por elas mesmas”. A iden- caminhos para as geradora dos outros Geografia, Física,
tificação de cada uma delas falas das artesãs, re- saberes poderá dar-se Arte e Química.
foi feita a partir de seus nomes produzidas parcial ou em diferentes momentos Na Figura 2 apre-
reais e de suas fotografias. Elas integralmente. Em vá- num movimento de ir e vir sentamos outra parte
são detentoras desse saber rios casos, não foram constante. referente à aborda-
popular, valorizadas e reconhe- utilizadas as falas de gem do tingimento,
cidas como parte integrante e todas as artesãs, e sim selecionadas dedicada ao estudo da decoada, um
essencial de uma cultura, com aquelas que mais enfatizavam e/ou mordente utilizado pelas artesãs.
as suas normalidades e particu- esclareciam melhor o assunto em Dessa forma, compreendemos
laridades. Também preservamos questão. que os conceitos a serem abordados

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Figura 1: Seqüência “Agora, o tingimento” – parte do material paradidático.

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Figura 2: Seqüência “‘Dicuada’: o que é isto?” – parte do material paradidático.

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e as atividades a serem realizadas intensidade de outrora, podem pro- constante. Esse exercício constante
na escola serão geradas durante os porcionar a abordagem de diferentes permite, dentre várias possibilidades,
encontros da escola com os deten- conhecimentos escolares, possibili- uma forma de negociação de signifi-
tores do saber popular, permitindo o tando o resgate de conhecimentos cados e de apropriação de conceitos
surgimento de outras questões. populares e favorecendo o reconhe- científicos, pois as inter-relações entre
cimento de nossa história, como bem os saberes científicos e os saberes
Considerações finais argumenta Chassot (2000). populares nem sempre se apresenta-
Embora as pesquisas educacio- Ressaltamos a necessidade de rão tão claras. Além disso, podem ser
nais voltadas para o multiculturalismo que propostas de ensino seme- gerados novos conteúdos a serem
na educação científica ainda estejam lhantes a essa sejam desenvolvi- trabalhados em disciplinas distintas,
em fase preliminar, das no interior da de forma dinâmica e motivadora.
acreditamos que elas cultura popular em
podem levar a uma Embora as pesquisas seu contexto próprio.
educacionais voltadas Maria Stela da Costa Gondim (stelagondim@yahoo.
nova visão sobre o Assim, a articulação com.br), licenciada em Química e bacharel em En-
ensino de ciências. para o multiculturalismo na entre a escola e as genharia Química pela UFU, mestre em Engenharia
A valorização cultural educação científica ainda pessoas envolvidas Química pela UFMG e mestre em Ensino de Ciências
na escola pode au- estejam em fase preliminar, com a cultura popu- (área de concentração: Química) pela UnB, é profes-
sora de Ensino Médio na Secretaria de Educação do
xiliar a inter-relação acreditamos que elas lar geradora dos ou- Distrito Federal. Gerson de Souza Mól (gmol@unb.br),
entre as pessoas, podem levar a uma nova tros saberes poderá bacharel e licenciado em Química pela UFV, mestre
favorecendo o de- visão sobre o ensino de dar-se em diferentes em Química Analítica pela UFMG, doutor em Ensino
ciências. de Química pela UnB, é docente no IQ-UnB e do-
senvolvimento de momentos num mo- cente/orientador no Programa de Pós-Graduação
sentimentos de so- vimento de ir e vir em Ensino de Ciências – UnB.
lidariedade e respeito ao próximo,
conferindo novos significados aos Referências tica de inventário tecnológico. Revista do
conhecimentos já adquiridos. Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
AYALA, M.; AYALA, M.I.N. Cultura popu-
Em um país como o Brasil, com lar no Brasil: perspectiva de análise. São Rio de Janeiro, n. 21, p. 56-63, 1986. 9
uma diversidade cultural tão grande Paulo: Ática, 1987. POMEROY, D. Science education and
e, conseqüentemente, uma varieda- BRASIL. Secretaria de Educação Média cultural diversity: mapping the field.
e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Studies in Science Education, n. 24, p.
de de interpretações sobre o mundo
Nacionais: Ensino Médio. Ministério 49-73, 1994.
natural, não é prudente excluir os
da Educação, Secretaria de Educação SANTOS, W. L. P. dos; SCHNETZLER,
saberes populares da escola. Desse
Média e Tecnológica. Brasília: MEC/ R. P. Educação em química: compromisso
modo, se os diferentes saberes que
SEMTEC, 2002. com a cidadania. Ijuí: Unijuí, 1997.
fazem parte da constituição de cada CHASSOT, A.I. Saberes populares
indivíduo forem mais bem compreen- fazendo-se saberes escolares. Relato de Para saber mais
didos e a escola propiciar formas de pesquisa, 2000. GONDIM, M.S.C. A inter-relação entre
mediação entre esses saberes, a ca- DELIZOICOV, D.; ANGOTTI, J.A.; PER- saberes científicos e saberes populares
pacidade de diálogo entre educador e NAMBUCO, M.M. Ensino de ciências: na escola: uma proposta interdisciplinar
educando se tornará mais suscetível, fundamentos e métodos. São Paulo: baseada em saberes das artesãs do Tri-
possibilitando melhores negociação Cortez, 2002.
ângulo Mineiro. 2007. 232 p. Dissertação
de significados. FERREIRA, E.L. Corantes naturais da
(Mestrado em Ensino de Ciências – área
flora brasileira. Guia prático de tingimento
Ao propormos a inter-relação entre de concentração: Química)- Programa de
com plantas. Curitiba: Optagraf, 1998.
os saberes populares e os saberes for- FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 28. Pós-Graduação em Ensino de Ciências,
mais na escola, compreendemos que ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. Universidade de Brasília, Brasília, 2007.
várias dessas manifestações da cul- LIMA, R.G.; FERREIRA, C.M. O museu Disponível em: <http://www.unb.br/
tura popular estão sendo esquecidas de folclore e as artes populares. Revista ppgec/dissertacoes/trabalhos/disserta-
ou são, muitas vezes, consideradas do Patrimônio Histórico e Artístico Nacio- cao_mariastela.pdf>.
obsoletas e antiquadas. Entretanto, nal, n. 28, p. 101-119, 1999. GUARATINI, C.C.I.; ZANONI, M.V. Co-
mesmo aquelas expressões populares MAUREAU, X. Tecelagem manual no rantes têxteis. Química Nova, v. 23, n. 1,
que não são praticadas na mesma Triângulo Mineiro: uma política sistemá- p. 71-78, jan./fev. 2000.

Abstract: Folk knowledges and science education: possibilities for an interdisciplinary work. In this work, we introduce a science education proposal that can be used as orientation to teachers,
especially to the chemistry ones, on the realization of pedagogical practices which aim the relation between the folk knowledge and the technical knowledge taught at school. We work on a thematic
approach, which enables the interdisciplinary nature and the contextualization. The education proposal was developed as a supplement educational material that relates the folk knowledge inherent
in the popular culture of region and science knowledge taught at school.
Keywords: folk knowledge, manual weaving, paradicdatic material.

Errata
A versão original do Artigo O vídeo educativo: Aspectos da organização do ensino, publicado no número 24 (novembro,
2006), nas páginas 8-11, foi substituída na website da SBQ devido a correções julgadas imprescindíveis pela editoria. Eventuais
novas impressões da Revista também trarão essa nova versão.

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