No capítulo “Morte ou transfiguração do leitor?”, da página 101 até a 123 do livro
“Os desafios da Escrita”, além de abordar a pergunta previamente exposta no título, Roger Chartier também divaga nas questões relacionadas às transformações da literatura como um todo. Dessa forma, desenvolvem-se teorias quanto às mudanças nos hábitos de leitura, juntamente de suas causas e consequências, a evolução da mídia física para a digital, em conjunto com as revoluções geradas por ela, a crise na circulação de informações e o futuro das bibliotecas. De forma geral, Chartier se apropria da noção de Roland Barthes para definir o “leitor”, na lógica barthesiana, o novo “proprietário” do entendimento das ideias e dos conceitos expostos na obra, papel anteriormente designado ao autor. Assim, o dito “nascimento” do leitor entraria em um possível conflito na nova era digital, uma vez que as modificações nos costumes literários da população envolvem, entre outras coisas, a diminuição da população leitora e do acesso às obras, principalmente as acadêmicas. Sendo assim, o francês exprime seus sentimentos pessimistas ao afirmar que “A essa constatação do nascimento do leitor sucederam os diagnósticos que lavraram seu atestado de óbito” (CHARTIER, 2002, p. 102). Outro ponto importante nessa discussão seria o avanço da “civilização da tela”, fator estabelecedor de uma crise na leitura como a conhecemos. “As telas do nosso século são, de fato, de um novo tipo. […] A antiga oposição entre, de um lado, o livro, a escrita, a leitura, e, de outro, a tela e a imagem é substituída por uma nova situação que propõe um novo suporte para a cultura escrita e uma nova forma para o livro” (CHARTIER, 2002, p. 105). Portanto, as inovações tecnológicas trazem consigo uma maneira moderna da organização dos próprios gêneros textuais, impondo a necessidade de uma revisão no modo em que o conteúdo se apresenta, dada à quantidade de informações disponíveis e ao fim da materialidade do livro. O “novo suporte” explicitado se configura por meio da questão da homogeneidade das telas, em detrimento à heterogeneidade do papel. Os diferentes formatos da mídia escrita, sejam eles o jornal, as cartas, os livros ou as revistas, perdem seus espaços e diferenças para a entrada dos textos digitais, em sua grande maioria, iguais em formatação. Sob essa ótica, Chartier demonstra-se à frente do seu tempo com certo receio quanto à “hierarquização dos discursos” e à transmissão de conhecimentos verdadeiros, um dos pontos muito discutidos atualmente com as redes sociais e a internet. “É assim criada uma continuidade que não mais distingue os diferentes gêneros ou repertórios textuais que se tornaram semelhantes em sua aparência e equivalentes em suas autoridades. [...] Não é pequeno seu efeito sobre a própria definição de "livro" tal como o compreendemos, [...] uma obra cujas coerência e completude resultam de uma intenção intelectual ou estética.” (CHARTIER, 2002, p. 109-110). Ainda, o professor não considera a “terceira revolução do livro” como a morte do leitor ou do próprio livro, principalmente por acreditar que os suportes tradicionais irão sobreviver aos mais recentes e desvaloriza o medo por uma transformação cultural. “ [...] o mais provável para as próximas décadas é a coexistência, que não será forçosamente pacífica, [...] Essa hipótese é certamente mais sensata do que as lamentações sobre a irremediável perda da cultura escrita ou os entusiasmos sem prudência que anunciavam a entrada imediata de uma nova era da comunicação.” (CHARTIER, 2002, p. 107). Isto posto, se reiteram os modernos modelos estruturais presentes no formato digital, o que implica em uma outra noção de livro, devido ao fato de, com as novas tecnologias, até mesmo o leitor conseguir modificar a organização de um texto. Em seguida, Chartier compara o papel da internet no século XXI com o papel das bibliotecas na antiguidade, especialmente em relação à função de propagar informação. No entanto, também destaca os riscos da massificação da informação sem o “controle” de certas figuras, tal qual os editores, responsáveis por escolher se um livro será publicado, ou se não. “Há aqui uma evolução previsível que definirá o "livro" e outros textos digitais por oposição à comunicação eletrônica livre e espontânea que autoriza qualquer pessoa a pôr em circulação na Web suas próprias reflexões ou criações. [...] Mas ela pode levar também, com a condição de ser controlada, à reconstituição, dentro da textualidade eletrônica, de uma ordem dos discursos que permita distingui-los segundo a modalidade de suas "publicações" espontâneas ou controladas, a identidade de seus gêneros e seus graus de autoridade.” (CHARTIER, 2002, p.110-111). Logo, ao passo em que acumulam conhecimento, as mídias digitais devem ser mediadas com precaução, a fim de manter o seguimento das ordens informacionais. Outrossim, o professor faz um exercício de propor novas atribuições e sentidos para as bibliotecas, que foram de extrema importância em tempos passados, embora venha perdendo espaço. Dessa forma, Chartier as atribui um papel de transmissão da cultura escrita para a posteridade e de conservação das obras já existentes. “Mais do que nunca, talvez, uma das tarefas essenciais das bibliotecas é coletar, proteger, recensear e tornar acessíveis os objetos escritos do passado. [...] A biblioteca do futuro deve, portanto, ser esse espaço em que serão mantidos o conhecimento e a convivência da cultura escrita nas formas que foram e são ainda hoje majoritariamente as suas.” (CHARTIER, 2002, p.120). No mesmo sentido, faz-se uma associação da internet com a famosa figura da biblioteca de Alexandria, ambos representando os grandes centros de produção de conhecimento de suas respectivas épocas. Por fim, Chartier responde de forma satisfatória e coerente a pergunta realizada no começo do capítulo ao negar a “morte do leitor” e propor justamente uma transformação do sistema como o conhecemos. “O novo suporte do escrito não significa o fim do livro ou a morte do leitor. O contrário, talvez. Porém, ele impõe uma redistribuição dos papéis na "economia da escrita", a concorrência (ou a complementaridade) entre diversos suportes dos discursos e uma nova relação, tanto física quanto intelectual e estética, com o mundo dos textos.” (CHARTIER, 2002, p.117). Assim sendo, mostra-se cada vez mais necessária uma reedição não só na forma como a escrita se organiza, como também na forma em que nos organizamos ao redor da escrita. Por isso, mesmo que as inovações tecnológicas não signifiquem o fim do livro e do leitor como conhecemos, é inegável que as transformações do futuro e a vinda da “nova biblioteca de Alexandria”, a internet, alterará para sempre nossa relação com a leitura.