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LITERATURA E HISTÓRIA

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Sumário
NOSSA HISTÓRIA ...................................................................................................... 2
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 3
CAPÍTULO I – LITERATURA E HISTÓRIA .............................................................. 4
CAPÍTULO II - HISTÓRIA E LITERATURA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ..... 14
REFERÊNCIAS: ........................................................................................................ 31

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NOSSA HISTÓRIA

A nossa história inicia com a realização do sonho de um grupo de


empresários, em atender à crescente demanda de alunos para cursos de
Graduação e Pós-Graduação. Com isso foi criado a nossa instituição, como
entidade oferecendo serviços educacionais em nível superior.

A instituição tem por objetivo formar diplomados nas diferentes áreas de


conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a
participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua
formação contínua. Além de promover a divulgação de conhecimentos culturais,
científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o
saber através do ensino, de publicação ou outras normas de comunicação.

A nossa missão é oferecer qualidade em conhecimento e cultura de forma


confiável e eficiente para que o aluno tenha oportunidade de construir uma base
profissional e ética. Dessa forma, conquistando o espaço de uma das instituições
modelo no país na oferta de cursos, primando sempre pela inovação tecnológica,
excelência no atendimento e valor do serviço oferecido.

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INTRODUÇÃO

Partindo do pressuposto de que a história como conhecimento é sempre uma


representação do passado e que toda fonte documental para produzir esse
conhecimento também o é, procuraremos apresentar aqui algumas reflexões
acerca das relações estabelecidas entre a história e a literatura e certas
ponderações teóricas e metodológicas sobre as possibilidades de emprego das
fontes literárias na pesquisa histórica.

Uma das vertentes da história cultural que tem recebido grande atenção no
momento atual é aquela que se debruça sobre os diversos tipos de textos para
pensar sua escrita, linguagem e leitura. Para Duby, a história cultural estuda,
dentro de um contexto social, os “mecanismos de produção dos objetos
culturais”, entendidos em sentido amplo e não apenas obras, literárias ou não,
reconhecidas ou obscuras, e autores canônicos. Ela enfoca os mecanismos de
produção dos objetos culturais, como suas intencionalidades, a dimensão
estética, a questão daintertextualidade ou do diálogo que um texto estabelece
com outro, dentre aspectos diversos, como seus mecanismos de recepção, a
qual pode ser pensada como uma forma de produção de sentidos. Isto, porque,
de acordo com Chartier (1990, p. 27), o termo “apropriação” é visto como “a
maneira de usar os produtos culturais” e de “reescritura”, que ocorre na diferença
e nas transformações sofridas pelos textos quando adaptados às necessidades
e expectativas do leitor.

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CAPÍTULO I – LITERATURA E HISTÓRIA

A relação entre literatura e história pode ser entendida de duas maneiras. A


primeira enfatiza o requisito de uma aproximação plenamente histórica dos
textos. Para semelhante perspectiva é necessário compreender que nossa
relação contemporânea com as obras e os gêneros não pode ser considerada
nem como invariante nem como universal. Devemos romper com a atitude
espontânea que supõe que todos os textos, todas as obras, todos os gêneros,
foram compostos, publicados, lidos e recebidos segundo os critérios que
caracterizam nossa própria relação com o escrito. Trata-se, portanto, de
identificar histórica e morfologicamente as diferentes modalidades da inscrição
e da transmissão dos discursos e, assim, de reconhecer a pluralidade das
operações e dos atores implicados tanto na produção e publicação de qualquer
texto, como nos efeitos produzidos pelas formas materiais dos discursos sobre
a construção de seu sentido. Trata-se também de considerar o sentido dos textos
como o resultado de uma negociação ou transações entre a invenção literária e
os discursos ou práticas do mundo social que buscam, ao mesmo tempo, os
materiais e matrizes da criação estética e as condições de sua possível
compreensão.

Mas há uma segunda maneira talvez mais inesperada de considerar a relação


entre literatura e história. Procede ao contrário, isto é, descobre em alguns textos
literários uma representação aguda e original dos próprios mecanismos que
regem a produção e transmissão do mistério estético. Semelhantes textos que
fazem da escritura, do livro e da leitura o objeto mesmo da ficção, obrigam os
historiadores a pensar de outra maneira as categorias mais fundamentais que
caracterizam a “instituição literária”.

Tanto na Antiguidade como na ordem moderna do discurso literário, três noções


constituem tal instituição. Em primeiro lugar, a identificação do texto com um
escrito fixado, estabilizado, manipulável graças à sua permanência. Por
conseguinte, a ideia de que a obra é produzida para um leitor, e um leitor que lê
em silêncio, para si mesmo e solitariamente, mesmo quando se encontrar em

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um espaço público. Por último, a caracterização da leitura como a atribuição do
texto a um autor e como uma decifração do sentido. Mas é preciso ter
distanciamento em relação a esses três supostos para compreender quais foram
as razões da produção, as modalidades das realizações e as formas das
apropriações das obras do passado. E também é preciso compreender em sua
própria historicidade e instabilidade. É ali onde se fixam as categorias
fundamentais que organizam a ordem do discurso literário moderno, tal como
Foucault o caracterizou em dois textos célebres, Qu’est-cequ’unauteur? e
L’ordredudiscours: o conceito de obra, com seus critérios de unidade, coerência
e persistência; a categoria de autor, que faz com que a obra seja atribuída a um
nome próprio; e, por último, o comentário, identificado com o trabalho de leitura
e interpretação que traz à luz a significação já presente de um texto.

Retomando essas três categorias, que definem o objeto mesmo das três
disciplinas fundamentais da “instituição literária” (a filologia, a história literária, a
hermenêutica), gostaria de mostrar como algumas obras literárias nos conduzem
a construí-las não como universais, mas em sua descontinuidade e mobilidade.
Um encontro inesperado entre Borges e Foucault permite reavaliar em primeiro
lugar o próprio conceito de “autor”.

Em uma conferência famosa, “Que é um autor?”, proferida diante da Société


Française de Philosophie em 1969, Foucault distinguia dois problemas,
frequentemente confundidos pelos historiadores: por um lado, a análise sócio-
histórica do autor como indivíduo social e as diversas questões que se vinculam
a essa perspectiva (por exemplo a condição econômica dos autores, suas
origens sociais, suas posições e trajetórias no mundo social ou no campo literário
etc.), e, por outro lado, a própria construção do que chama a “função-autor”, isto
é, “o modo pelo qual um texto designa explicitamente esta figura [a do autor] que
se situa fora dele e que o antecede”.

Considerando o autor como “uma função do discurso”, Foucault relembrou que


longe de ser universal, pertinente para todos os textos em todas as épocas, a
atribuição das obras a um nome próprio é discriminadora: “a função-autor é
característica do modo de existência, circulação e funcionamento de certos

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discursos no seio de uma sociedade” [sublinho eu]. Assim, situa a função-autor
à distância da evidência empírica segundo a qual todo texto foi escrito por
alguém. Por exemplo, uma carta privada, um documento legal, um anúncio
publicitário não têm “autores”. A função autor é o resultado de operações
específicas e complexas que referem a unidade e a coerência de uma obra, ou
de uma série de obras, à identidade do sujeito construído. Semelhante
dispositivo requer duas séries de seleções e exclusões. A primeira distingue no
âmbito dos múltiplos textos escritos por um indivíduo no curso de sua vida,
aqueles que são atribuíveis à “função-autor” e aqueles que não o são. A segunda
retém entre os inumeráveis fatos que constituem uma existência individual
aqueles que têm pertinência para caracterizar a posição de autor.

A função-autor implica, portanto, uma distância radical entre o indivíduo que


escreveu o texto e o sujeito ao qual o discurso está atribuído. É uma ficção
semelhante às ficções construídas pelo direito, que define e manipula sujeitos
jurídicos que não correspondem a indivíduos concretos e singulares, mas que
funcionam como categorias do discurso legal. Do mesmo modo, o autor como
função do discurso está fundamentalmente separado da realidade e experiência
fenomenológica do escritor como indivíduo singular. Por um lado, a função-autor
que garante a unidade e a coerência do discurso pode ser ocupada por diversos
indivíduos, colaboradores ou competidores. Ao contrário, a pluralidade das
posições do autor no mesmo texto pode ser referida a um só nome próprio.

O texto de Borges, “Borges e eu”, publicado em O fazedor em 1960,4 manifesta


com uma agudeza particular esta distância que isola o autor como identidade
construída do indivíduo como sujeito concreto, visto que descreve a captura, a
absorção ou a “vampirização” do ego subjetivo pelo nome do autor: “Ao outro, a
Borges, é a quem acontecem as coisas”.

À experiência íntima do eu se opõe a construção do autor por parte das


instituições: “Caminho por Buenos Aires e me demoro, talvez já mecanicamente,
para olhar o arco de um saguão e o pára-vento; de Borges tenho notícias pelo
correio e vejo seu nome num trio de professores ou num dicionário biográfico”.
Aos gostos secretos que definem o indivíduo em sua irredutível singularidade se

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opõe o exagero teatral das preferências exibidas pelo autor, figura pública e
ostentativa: “Agradam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século
XVIII, as etimologias, o sabor do café e a prosa de Stevenson; o outro
compartilha essas preferências, mas de um modo vaidoso que as converte em
atributos de um ator”. O “autor” como “ator”: ao mesmo tempo a comparação
remete à antiga etimologia latina, que deriva as duas palavras — ator e autor —
do mesmo verbo agere, “fazer”, e à modelagem, iniciada no século XVIII, do
escritor como personagem público.

Prossegue o texto: “Seria exagerado afirmar que nossa relação é hostil: eu vivo,
eu me deixo viver, para que Borges possa tramar sua literatura e essa literatura
me justifica. Não me custa nada confessar que alcançou algumas páginas
válidas, mas essas páginas não podem me salvar, talvez porque o bom já não é
de ninguém, nem sequer do outro, senão da linguagem ou da tradição. Quanto
ao mais, estou destinado a perder-me, definitivamente, e só algum instante de
mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vou cedendo-lhe tudo, ainda
que me conste seu perverso costume de falsear e engrandecer”.
Paradoxalmente, ironicamente, a dissociação entre o sujeito e o autor, entre o
eu e o nome próprio, torna-se um desejo de identificação como se o indivíduo
não pudesse, ou não quisesse escapar da forma de existência e sobrevivência
procurada, prometida pela função-autor.

“Hei de permanecer em Borges, não em mim (se é que sou alguém), porém me
reconheço menos em seus livros que em muitos outros ou que no laborioso
rasqueado de uma guitarra”. A resistência do eu íntimo e particular à imposição
de uma identidade construída pelos princípios e instituições que dirigem a ordem
do discurso (a definição de uma obra — “seus livros” —, sua atribuição a um
autor — Borges, o outro — etc.) não apaga uma dúvida mais existencial: “se é
que sou alguém”. Nesse sentido, não pensado por Foucault, a função-autor não
transforma, desloca ou distorce a personalidade singular do indivíduo escritor,
mas somente dá existência a uma ausência, a um vazio.

Como sugere outro texto dessa “miscelânea de vária lição” que é O fazedor,
“Everythingand nothing”,5 o eu do criador é talvez ninguém, ou nada. Assim

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começa essa peça dedicada a Shakespeare: “Ninguém houve nele; atrás de seu
rosto (que ainda através das más pinturas da época não se parece com nenhum
outro) e de suas palavras, que eram copiosas, fantásticas e agitadas, não havia
mais que um pouco de frio, um sonho não sonhado por ninguém.” A ausência do
eu se torna a própria razão, plenamente metafísica, da condição de ator/autor.
Ator em primeiro lugar: “Aos vinte e tantos anos foi a Londres. Instintivamente,
já se tinha adestrado no hábito de simular que era alguém, para que não se
descobrisse sua condição de ninguém; em Londres encontrou a profissão a que
estava predestinado, a de ator, que num cenário brinca de ser outro, perante
uma aglomeração de pessoas que brincam de tomá-lo por aquele outro”. Autor
depois: “Ninguém foi tantos homens quanto aquele homem, que à semelhança
do egípcio Proteu pôde esgotar todas as aparências do ser. Por vezes, deixou
em algum ângulo da obra uma confissão, certo de que não a decifrariam; Ricardo
afirma que em sua única pessoa faz o papel de muitos, e Yago diz com curiosas
palavras ‘não sou o que sou’. A identidade fundamental de existir, sonhar e
representar inspirou-lhe passagens famosas”. É nesse esforço desesperado e
fracassado para conquistar uma identidade singular e estável que reside a
grandeza quase divina do autor: “A história acrescenta que, antes ou depois de
morrer, soube-se diante de Deus e lhe disse: ‘Eu, que tantos homens fui em vão,
quero ser um e eu’. A voz de Deus lhe respondeu de um torvelinho: ‘Eu tampouco
sou; eu sonhei o mundo como tu sonhaste tua obra, meu Shakespeare, e entre
as formas de meu sonho estavas tu, que como eu és muitos e ninguém’”.

O mesmo Borges nos introduz com o conto “O espelho e a máscara”, publicado


n’O livro de areia em 1975, na trama de razões que atribuem a um “mesmo”
discurso sentidos diversos.6 Neste “conto” Borges conta a história de um rei e
um poeta. Depois de sua vitória sobre seu inimigo norueguês, o rei da Irlanda
pede ao poeta Ollan que escreva uma ode que celebrará seu triunfo e fixará sua
glória para sempre: “As proezas mais claras perdem sua fama se não são
cunhadas em palavras. Quero que cantes minha vitória e minha loa. Eu serei
Enéias; tu serás meu Virgílio”. Três vezes, cada vez com um ano de distância, o
poeta retorna diante do rei com um poema cujo objeto é idêntico: celebrar o rei
triunfante. Mas diferente. E cada vez são diferentes a escritura poética, a estética
que a governa, a forma da publicação do texto e a figura de seu destinatário.

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O poeta compôs sua primeira ode conformando-se às regras da arte e
mobilizando seu conhecimento das palavras, das imagens, das rimas, dos
exemplos, dos gêneros, da tradição. Declamou a ode “com lenta segurança, sem
uma olhada no manuscrito” ante o príncipe, a corte, o “Colégio dos Poetas” e a
multidão dos que “amontoados nas portas, não decifravam uma palavra”. Este
primeiro panegírico é um monumento: respeita as regras e as convenções, soma
toda a literatura irlandesa, é fixado pela escritura. Inscrito na ordem da
representação, relata as façanhas do soberano. Deve ser conservado e
difundido: o rei ordena que trinta escribas o transcrevam duas vezes cada um.

O poeta foi um bom artesão que reproduziu com fidelidade os ensinamentos dos
Antigos: “Atribuíste a cada vocábulo sua genuína acepção e cada nome
substantivo o epíteto que lhe deram os primeiros poetas. Não há em toda a loa
uma só imagem que os clássicos não tenham usado [...] Manejaste com destreza
a rima, a aliteração, a assonância, as quantidades, os artifícios da douta retórica,
a sábia alteração dos metros. Se se perdesse toda a literatura da Irlanda —
omenabsit — poderia ser reconstruída com tua ode clássica”. O trabalho do
poeta merece uma recompensa: um espelho de prata que é também o resultado
do trabalho de um artesão e que, como a ode de apologia, reflete o que já é
presente.

Contudo, o rei fica insatisfeito. Ainda que perfeito, o poema foi inerte, não
produziu nenhum efeito nas almas e nos corpos: “Tudo está bem e, no entanto,
nada aconteceu. O sangue não corre mais celeremente nos pulsos. As mãos
não têm buscado os arcos. Ninguém empalideceu. Ninguém proferiu um grito de
guerra, ninguém opôs o peito aos vikings”. Ollan tem então que compor outra
ode: “Dentro do término de um ano aplaudiremos outra loa, poeta”.

Um ano mais tarde, o poeta volta diante do rei. Sua nova ode é muito diferente
do poema anterior. Não respeita as regras, sejam gramaticais (“Um substantivo
singular podia reger um verbo plural. As preposições eram alheias às normas
comuns”), estéticas (“A aspereza alternava com a doçura”), ou retóricas (“As
metáforas eram arbitrárias ou assim o pareciam”). A obra não se ajusta às

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convenções da arte literária: ela não é mais imitação, mas invenção. O poeta,
desta vez, lê sua ode. Não a declama mais com a maestria que era a sua um
ano antes. Lê seu poema com inquietude, vacilação, incerteza: “leu-o com visível
insegurança, omitindo certas passagens, como se ele mesmo não as
entendesse totalmente ou não quisesse profaná-las”. A leitura está feita ante o
rei e o cenáculo dos homens de letras, mas o público desapareceu. O novo texto,
estranho, surpreendente, não se situa mais na ordem da representação, mas na
da ilusão. Não descreve as façanhas do rei. Mostra estas façanhas mesmas aos
ouvintes: “Não era uma descrição da batalha, era a batalha”. O poema faz surgir
o próprio evento, com sua força inaudita. A ekphrasis substituiu a representação

O segundo poema captura e cativa seus ouvintes: “Suspende, maravilha e


deslumbra”. Exerce um efeito sobre a sensibilidade que a primeira ode não
produzia de modo algum, em que pese sua perfeição formal. Para caracterizar
os efeitos da nova loa, Borges utiliza o vocabulário das obras do Século de Ouro
(“embelezar”, “maravilhar”, “encantar”), quando a ficção era pensada e descrita
como uma maravilha perigosa, capaz de anular a diferença entre o mundo do
texto e o mundo do leitor e, por conseguinte, de submeter o leitor às arriscadas
ilusões da imaginação. Dotada de semelhante poder, a segunda ode deve ser
conservada, mas não está destinada aos mais débeis. Só os doutos, pouco
numerosos, poderão lê-la e apreciá-la: “Um cofre de marfim será a custódia do
único exemplar”. O poeta recebe por sua obra que tem a força da ilusão
dramática, um objeto do teatro: uma máscara de ouro que indica o poder de sua
criação. Mas, ainda insatisfeito, o rei espera, todavia, um poema mais elevado

Quando voltou o poeta pela terceira vez, porque “é justo lembrar que nas fábulas
sobressai o número três”, seu poema já não estava escrito e “era uma só linha”.
O rei e o poeta estão sós. O poeta disse a ode uma primeira vez e depois “o
poeta e seu Rei a saborearam, como se fosse uma prece secreta ou uma
blasfêmia”. Tudo mudou. O poema pertence à ordem do sagrado prece ou
blasfêmia. O poeta não respeitou as regras, mas tampouco as transgrediu. Foi
tomado, como o poeta homérico, por uma inspiração que não era a sua: “Na
alba, acordei dizendo algumas palavras que de início não compreendi. Estas
palavras são o poema”. Assim tomado por uma palavra outra, o poeta se tornou

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outro: “Algo, que não era o tempo, tinha sulcado e transformado seus traços. Os
olhos pareciam mirar muito longe ou ter ficado cegos”.

Ollan pertence assim à família dos poetas cegos, caros a Borges. Em uma
conferência ditada em 1977, A cegueira, relembra que é no próprio momento em
que foi designado como diretor da Biblioteca Nacional de Buenos Aires, que
tomou consciência de sua cegueira.7 E o famoso Poema dos dons começa
assim: “Ninguém rebaixe a lágrimas / Esta declaração da maestria / De Deus
que com magnífica ironia / Me deu ao mesmo tempo os livros e a noite”.8
Bibliotecário e cego, Borges é duplamente herdeiro. Herdeiro dos bibliotecários
cegos que o precederam em seu cargo na Biblioteca Nacional: Paul Groussac e
José Marmól. Como no conto do poeta e do rei, também “aqui aparece o número
três, que fecha as coisas. Dois é uma mera coincidência; três, uma confirmação.
Uma confirmação de ordem ternária, uma confirmação divina ou teológica”. Cego
e bibliotecário, Borges é herdeiro também de todos os escritores inspirados em
sua noite: Homero, Milton, Joyce.

Murmurada, a terceira ode é um evento, não um monumento. Não foi escrita;


não será repetida. Constitui uma experiência única e não deve ser lida ou
copiada. Seu mistério conduz os que a dizem a uma contemplação proibida:
“Senti que havia cometido um pecado, talvez o que o Espírito não perdoa”, diz o
poeta. E o rei replica: “O que agora compartilhamos os dois. O de haver
conhecido a beleza, que é um dom vedado aos homens. Agora nos cabe expiá-
lo”. O terceiro presente do rei será um instrumento de morte: uma adaga com a
qual o poeta se suicida. A expiação do príncipe terá outra forma, própria ao
“grande teatro do mundo” onde os papéis são efêmeros e intercambiáveis: “Do
Rei, sabemos que é um mendigo que percorre os caminhos da Irlanda, que foi
seu reino, e que nunca repetiu o poema”.

A contrapelo da invenção da “literatura” que supõe a fixação escrita, a


reprodução do texto, a citação e o comentário, a fábula de Borges conduz do
monumento ao evento, da inscrição à “performance”, da repetição ao efêmero.
Indica com uma rara agudeza as diversas oposições que organizam a cultura
escrita e que se referem à norma estética (imitação, invenção e inspiração), aos

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modos de transmissão dos textos (recitar, ler em voz alta, dizer para si mesmo),
à identidade do destinatário (o público, os letrados, o príncipe, ou o próprio
autor), e às relações entre as palavras e as coisas (inscritas na ordem da
representação, da ilusão ou do mistério). O “conto” do espelho e da máscara, do
poeta e do rei, indica assim como devemos nos aproximar das diversas formas
que regem a produção, a circulação e a apropriação dos textos, considerando
como essenciais suas variações segundo os tempos e os lugares. Uma leitura
como esta, certamente, não esgota de modo algum a força poética do texto de
Borges, mas talvez seja fiel ao que escreveu num prólogo a Macbeth:
“Arthappens (A arte acontece), declarou Whistler, mas a consciência de que
nunca acabaremos de decifrar o mistério estético não se opõe ao exame dos
fatos que o fizeram possível”

A leitura é um destes fatos. Quando a literatura a tematiza, ultrapassa sempre


as questões clássicas dos historiadores, e leva-os a construir de outro modo o
próprio objeto de sua indagação. O texto que o indica é também um outro conto
de cego, um conto no qual se fala da Noruega, um conto em que sobressai
também o número três. Em sua “novela” publicada em 1922 e intitulada “Mundo
de papel”,10 Pirandello narra a existência livresca do “professor” Balicci, que
tinha sua biblioteca como único universo e que tinha se tornado cego de tanto
ler: “La vita, non l’avvevavissuta: potevadiredi non aver visto bene mainulla: a
tavola, a letto, per via, sui sedili dei giardinipubblici, sempre e da per tutto, non
avevafattoaltro que leggere, leggere, leggere. Cieco ora per larealtà viva che non
avevamaiveduto; ciecoanche per quellarappresentataneilibriche non
potevapiùleggere” [A vida, não a tinha vivido: podia dizer que jamais tinha visto
nada: na mesa, na cama, na rua, sobre os bancos dos jardins públicos, sempre
e em todas as partes, não tinha feito mais que ler, ler, ler. E agora, cego, frente
à realidade viva que jamais tinha visto; cego também frente àquela que estava
representada nos livros que já não podia ler”]. Estes livros doravante ilegíveis
constituíam uma verdadeira enciclopédia propondo o inventário do mundo:
“Erano per lamaggior parte libridiviaggi, d’usi e costumi dei variipopoli, libre
discienzenaturali e d’amena letteratura, libridistoria e di filosofia” [Tratava-se em
geral de livros de viagem, de usos e costumes de povos variados, de livros de
ciências naturais e de literatura de diversão, de obras de história e de filosofia”].

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Para voltar a encontrar as vozes de seus livros, Ballici contrata uma leitora que
deverá lê-los em voz alta. Desgraçadamente, a delegação de leitura converte-se
para Balicci em um sofrimento mais forte ainda que o silêncio imposto pela
cegueira. De fato, as leituras da senhorita Pagliocchini irritam enormemente o
professor. Escutando-a compreende que “ognivoce, che non fosse la sua,
gliavrebbefattoparereunaltroil suo mondo” [“qualquer outra voz que a sua lhe faz
seu mundo parecer completamente diferente”].

Pede, então, à sua leitora, que não leia mais em voz alta, mas que leia em seu
lugar, por si mesma e em silêncio. Explica: “questo è il mio mondo; mi conforta
ilsapereche non è deserto, chequalcunoci vive dentro” [“tudo isto é meu mundo,
para mim é um alívio saber que não está deserto, que alguém vive nele”]. Uma
segunda vez, o pedido só produz desagrado. A leitora viajou e conhece o mundo.
A propósito de uma descrição da Noruega, exclamou: “Ioci sono stata, sa? E
lesodireche non ècom’èdettoqua!” [“Eu fui, sabe? E posso dizer-lhe que não é
como se conta aqui”]. Então, “Il Balicci si levo in piedi, tutto vibrante d’ira e
convulso: -Ioleproibiscodidireche non ècom’èdettolà! — legrido, levando
labraccia. — M’importa un corno che lei c’èstata! E com’èdettolà, e basta!
Dev’essere cosi, e basta!” [“Balicci se levantou, vibrando de cólera,
convulsionado: — Proíbo-a de dizer que não é como se diz aqui! — gritou,
levantando os braços. Em nada me importa que você tenha estado! É como aqui
se diz, e ponto! Assim deve ser, e basta!”].

Para Balicci como para dom Quixote o real não é, e não pode ser senão o que
dizem os livros. Para eles, a representação do mundo se fez mais real que o
próprio mundo, a biblioteca mais universal que o universo. Em sua noite que não
atravessa mais nenhuma voz, nem sequer a sua, a lembrança silenciosa das
palavras impressas é o último e único consolo do leitor. É em sua memória que
os livros ficam impressos, eventos perdidos transformados em monumentos
mentais.

O que está em jogo no discurso da literatura sobre a literatura não é somente a


historicização das categorias que consideramos espontaneamente como

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universais, mas também a introdução de uma inquietação essencial no que se
refere à relação do leitor com o texto e, finalmente, à própria identidade deste
leitor.

Voltemos pela última vez a Borges — a Borges e Cervantes. No ensaio “As


magias parciais do Quixote”,11 Borges sublinham “o jogo de estranhas
ambiguidades” desenvolvido no romance. Reconhece assim três “magias” no
texto cervantino. Em primeiro lugar, contrapõe um mundo imaginário poético
dentro de um mundo real prosaico, o dos “caminhos poeirentos e das estalagens
sórdidas de Castela”. Por outro lado, Cervantes estabelece uma confusão
permanente entre “o mundo do leitor e o mundo do texto”, introduzindo a história
(supostamente fictícia) do romance e de sua publicação dentro do próprio
romance. Finalmente, o jogo culmina na Segunda Parte, publicada em 1615, já
que seus protagonistas tinham lido a Primeira e também a continuação apócrifa
de Avellaneda vinda à luz no ano precedente. Os heróis do Quixote são também
leitores do Quixote tal como os protagonistas de Hamlet são espectadores de
uma tragédia, The MurderofGonzago, que representa mais ou menos a própria
história de Hamlet.

Semelhante dispositivo de ficcionalização ou “miseenabîme” convida a refletir


sobre as categorias que governam, em um dado tempo e lugar, as normas
estéticas, as formas de publicação e as expectativas dos públicos. Mas ao
mesmo tempo manifesta o poder irredutível da obra literária, desconcertante e
desestabilizador. Escreve Borges: “Por quê nos inquieta que Dom Quixote seja
leitor do Quixote e Hamlet espectador de Hamlet? Creio ter encontrado a causa:
tais inversões sugerem que se os personagens de uma ficção podem ser leitores
ou espectadores, nós, seus leitores ou espectadores, podemos ser fictícios”.

CAPÍTULO II - HISTÓRIA E LITERATURA:


ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

14
Partindo do pressuposto de que a história como conhecimento é sempre uma
representação do passado e que toda fonte documental para produzir esse
conhecimento também o é, procuraremos apresentar aqui algumas reflexões
acerca das relações estabelecidas entre a história e a literatura e certas
ponderações teóricas e metodológicas sobre as possibilidades de emprego das
fontes literárias na pesquisa histórica.

Uma das vertentes da história cultural que tem recebido grande atenção no
momento atual é aquela que se debruça sobre os diversos tipos de textos para
pensar sua escrita, linguagem e leitura. Para Duby, a história cultural estuda,
dentro de um contexto social, os “mecanismos de produção dos objetos
culturais”, entendidos em sentido amplo e não apenas obras, literárias ou não,
reconhecidas ou obscuras, e autores canônicos. Ela enfoca os mecanismos de
produção dos objetos culturais, como suas intencionalidades, a dimensão
estética, a questão da intertextualidade ou do diálogo que um texto estabelece
com outro, dentre aspectos diversos, como seus mecanismos de recepção, a
qual pode ser pensada como uma forma de produção de sentidos. Isto, porque,
de acordo com Chartier (1990, p. 27), o termo “apropriação” é visto como “a
maneira de usar os produtos culturais” e de “reescritura”, que ocorre na diferença
e nas transformações sofridas pelos textos quando adaptados às necessidades
e expectativas do leitor.

Pensando que as narrativas, sejam históricas ou literárias, ou outras, constroem


uma representação acerca da realidade, procura-se compreender a produção e
a recepção dos textos, entendendo que a escrita, a linguagem e a leitura são
indivisíveis e estão contidas no texto, que é uma instância intermediária entre o
produtor e o receptor, articuladora da comunicação e da veiculação das
representações. Desta forma, há uma tríade a considerar na elaboração do
conhecimento histórico, composta pela escrita, o texto e a leitura. No que se
refere à instância da escrita ou da produção do texto, o historiador volta-se para
saber sobre quem fala, de onde fala e que linguagem usa. Já ao enfocar o texto
em si, o que se fala e como se fala são questões indispensáveis. No trato da
recepção, visa abordar a leitura de um determinado receptor/leitor ou de um
grupo de receptores/leitores, tratando das expectativas de quem recebe o texto,

15
de sua contemplação, ou seu enfrentamento ou resistência a ele (PESAVENTO,
2004, p. 69-70).

No entanto, independente do plano no qual se foca e do tipo de textos, as


considerações de Le Goff (1990, p. 545), sobre o documento como monumento,
“produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de força que a
detinham”, expressam a necessidade de realização de uma reflexão, por parte
do historiador, sobre as condições históricas dessa produção, abarcando a figura
do produtor, o lugar social de onde se produz, como se produz, as intenções do
produtor, as relações de poder que cercam e atravessam a produção e o produto.
Se todo documento é monumento, cabe ao historiador desvelar como foi
construído, a linguagem utilizada, a finalidade da edificação e as suas
intencionalidades.

Para Chartier (1990, p. 62-3), todo documento, seja ele literário ou de qualquer
outro tipo, é representação do real que se apreende e não se pode desligar de
sua realidade de texto construído pautado em regras próprias de produção
inerentes a cada gênero de escrita, de testemunho que cria “um real” na própria
“historicidade de sua produção e na intencionalidade da sua escrita”. Desta
forma, todo tipo de texto possui uma linguagem específica, na qual foi produzido,
própria de um segmento particular de produção, e esta ocorre considerando
dadas regras peculiares ao meio intelectual de onde emerge, ao veículo em que
será veiculada e ao público a que se destina.

Assim, contextualizar o texto com o qual se trabalha é indispensável para


elucidar o lugar em que foi produzido, seu estilo, sua linguagem, a história do
autor, a sociedade que envolve e penetra o escritor e seu texto. A época, a
sociedade, o ambiente social e cultural, as instituições, os campos sociais, as
redes que estabelece com outros textos, as regras de uma determinada prática
discursiva ou literária, as características do gênero de escrita que se inscreve no
texto, são questões que permeiam o texto escrito e constrangem o autor de um
texto, deixando nele suas marcas (BARROS, 2004, p. 137-8)

16
De tal maneira, as noções de leitura, linguagem, representação, prática,
apropriação, intertextualidade, dialogismo, dentre outras, são importantes para
esse campo do conhecimento histórico, que, segundo Chartier, “tem por principal
objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma
determinada realidade cultural é construída, pensada, dada a ler”. As
representações do mundo social, como práticas intelectuais, dentre elas, as
ficcionais, como as literárias, são sempre marcadas por múltiplos, complexos e
diferenciados interesses sociais, sobretudo, aqueles dos grupos sociais que as
forjam. Daí, ser necessário relacionar os discursos proferidos com a posição
social de quem os produz e de quem os utiliza, visto que as percepções do social
não são neutras; produzem e revelam estratégias e práticas que tendem a impor
uma autoridade, uma hierarquia, um projeto, uma escolha (CHARTIER, 1990, p.
16-7, 28).

Para Bourdieu (1992, p. 183-202), autor que abriu o caminho para pensar as
“práticas” na história e o consumo dos bens simbólicos, a noção de campo
intelectual nos ajuda a elucidar a configuração e a historicidade da produção e
da recepção da obra de um autor, suas ideias e formas estéticas postas em
circulação e inseridas no interior de um sistema de relações socioculturais
edificadas publicamente. Essa noção remete ao lugar de onde fala e em que se
insere o autor, literato ou não, assim como outros escritores que o cercam; lugar
circunscrito e estruturado ao redor das posições que esses produtores culturais
ocupam na sociedade e no meio intelectual, no qual estabelecem relações entre
si e com outros campos que constituem a vida social; lugar marcado pelos jogos
de poder e vinculado com o campo político.

Portanto, o campo intelectual e cultural se apresenta como diversamente


segmentado, delimitado por posições, hierarquias e disputas por lugares,
prestígio e reconhecimento no interior de um grupo de agentes, bem como em
relação a outros grupos, mediante a consideração de regras e instâncias
legitimadoras específicas, socialmente construídas. Deste modo, esse conceito
pressupõe a procura de conhecer as convenções estabelecidas pelos agentes e
produtores intelectuais, as linguagens empregadas, as localizações e as
diferentes posições por eles ocupadas e defendidas, hegemônicas ou não, tal

17
como ainda as estratégias e jogos de cada segmento, as polêmicas e os rituais
que criaram e implementaram num processo dinâmico de interdependências
(BOURDIEU, 1992, p. 183-202).

Tais questões dizem respeito a aspectos elementares de nosso aparato básico


de instrumentais de trabalho de investigação histórica. Assim, devemos ficar
atentos aos mecanismos de funcionamento da comunicação, do pensamento,
das variadas práticas socioculturais, das visões de mundo e das memórias. Os
tipos de textos, a língua que falamos e na qual escrevemos, a linguagem
praticada socialmente, que organizam a compreensão das experiências sociais,
e a linguagem particular de uma produção, seja literária ou de outros objetos
simbólicos, os quais representam tais experiências e formas de compreensão e
interpretação dos seus significados e sentidos, requerem ser problematizados.

Essas dimensões são mediadoras das experiências e práticas sociais e


possuem historicidade, não sendo fixas e estáveis, nem isoladas de outros
campos sociais, afinal, “nenhuma ilha é uma ilha”, conforme Ginzburg (2004), ao
abordar as trocas literárias entre as ilhas britânicas e o continente europeu, que
foram marcantes na formação da literatura inglesa e na identidade de seu povo,
visto que esta mantém relações, contatos e vínculos com outras línguas,
linguagens, literaturas e culturas inseridos num regime de empréstimos diversos.
A esta questão, dos diálogos e dos cruzamentos que os textos e autores
estabelecem implicitamente com outros, que possibilitam ler em um os outros, a
qual Ginzburg mostra-se atento e é tão característico da literatura, Kristeva
(1988) denomina de intertextualidade.

No universo amplo dos bens culturais, a expressão literária pode ser tomada
como uma forma de representação social e histórica, sendo testemunha
excepcional de uma época, pois um produto sociocultural, um fato estético e
histórico, que representa as experiências humanas, os hábitos, as atitudes, os
sentimentos, as criações, os pensamentos, as práticas, as inquietações, as
expectativas, as esperanças, os sonhos e as questões diversas que
movimentam e circulam em cada sociedade e tempo histórico.

18
A literatura registra e expressa aspectos múltiplos do complexo, diversificado e
conflituoso campo social no qual se insere e sobre o qual se refere. Ela é
constituída a partir do mundo social e cultural e, também, constituinte deste; é
testemunha efetuada pelo filtro de um olhar, de uma percepção e leitura da
realidade, sendo inscrição, instrumento e proposição de caminhos, de projetos,
de valores, de regras, de atitudes, de formas de sentir... Enquanto tal é registro
e leitura, interpretação, do que existe e proposição do que pode existir, e aponta
a historicidade das experiências de invenção e construção de uma sociedade
com todo seu aparato mental e simbólico.

Sendo a literatura uma forma de ler, interpretar, dizer e representar o mundo e o


tempo, possuindo regras próprias de produção e guardando modos peculiares
de aproximação com o real, de criar um mundo possível por meio da narrativa,
ela dialoga com a realidade a que refere de modos múltipos, como a confirmar o
que existe ou propor algo novo, a negar o real ou reafirmá-lo, a ultrapassar o que
há ou mantê-lo. Ela é uma reflexão sobre o que existe e projeção do que poderá
vir a existir; registra e interpreta o presente, reconstrói o passado e inventa o
futuro por meio de uma narrativa pautada no critério de ser verossímil, da estética
clássica, ou nas notações da realidade para produzir uma ilusão de real. Como
tal é uma prova, um registro, uma leitura das dimensões da experiência social e
da invenção desse social, sendo fonte histórica das práticas sociais, de modo
geral, e das práticas e fazeres literários em si mesmos, de forma particular.

Chartier considera que a distinção entre história e ficção, hoje em dia, tem se
mostrado vacilante. Diferenciação que parece clara e resolvida, se aceitarmos
que a primeira pretende realizar uma representação adequada do real que foi e
não é mais, e a segunda, em todas as suas formas, “é um discurso que ‘informa’
do real, mas não pretende abonar-se nele”. No entanto essa distinção tem sido
ofuscada pela “evidenciação da força das representações do passado propostas
pela literatura”, como do teatro dos séculos XVI e XVII, e do romance do século
XIX, que se apoderaram do passado, deslocando para a ficção literária o registro
de fatos e personagens históricos e colocando situações que foram reais ou
apresentadas como tais. Além disso, a literatura se apropria não só do passado,
como também de documentos e das técnicas da disciplina histórica, como o

19
dispositivo de criar o “efeito de realidade”, abordado por Barthes, como uma
modalidade da “ilusão referencial”, com a multiplicação de notações concretas
destinadas a carregar a ficção de um peso de realidade (CHARTIER, 2009, p.
24-5, 27-8).

Portanto, é indispensável refletir sobre as características específicas das


diversas formas de ficção, das relações particulares que o texto literário, o autor
e a escola, a que se filiam, estabelecem com a realidade e definem a
representação que dela edificam. As formas como autor, escola e gênero de
texto literário concebem a produção artística devem ser buscada em seus
caracteres próprios. O discurso literário manifesto em texto, expresso em prosa
ou verso, envolve modalidades de narrativa com características próprias,
inclusive, na sua forma de lidar, captar e tratar as questões propostas por uma
sociedade e por um tempo, como o conto, a crônica, a novela, o romance, a
tragédia, a comédia ou o poema.

Essas narrativas, por sua vez, apresentam-se sob forma de vários gêneros,
como o lírico, o épico e o drama, que são ainda marcados por correntes
estéticas, que determinam tanto as relações da literatura com a realidade,
quanto ao seu estatuto e função, como as escolas literárias. Nesse campo, não
podemos perder de vista ainda os modos por meio dos quais o discurso literário
se manifesta, como os tropos: a metáfora, a metonímia, a sinédoque e a ironia.
Até mesmo no campo específico da narrativa historiográfica, podemos nos
deparar com tais figuras da retórica e da poesia clássica como formas estruturais
constituintes dos discursos em geral, como nos mostra a abordagem de White
(1995).

Conforme Chartier (2002), ao tratar de um projeto de história literária, o qual


oferece possibilidades para pensarmos como um historiador pode abordar a
análise de textos literários na perspectiva da história sociocultural à maneira dos
Annales, o objeto da história literária e da crítica textual “é o processo pelo qual
leitores, espectadores ou ouvintes dão sentido aos textos dos quais se
apropriam.”

20
Uma história da literatura é, pois, uma história das
diferentes modalidades da apropriação dos textos.
Ela deve considerar que o ‘mundo do texto’, usando
os termos de Ricoeur, é um mundo de objetos e de
perfomances cujos dispositivos e regras permitem e
restringem a produção do sentido. Deve considerar
paralelamente que ‘o mundo do leitor’ é sempre
aquele da ‘comunidade de interpretação’ (segundo a
expressão de Stanley Fish) à qual ele pertence e que
é definida por um mesmo conjunto de competências,
de normas, de usos e de interesses. O porquê da
necessidade de uma dupla atenção: à materialidade
dos textos, à corporalidade dos leitores (CHARTIER,
2002, p. 255, 257).

Essa definição de um projeto de história literária absorve um campo intelectual


mais vasto, aquele dos estudos culturais, levando em conta que, em cada
configuração social, certos discursos são designados pela distância dos
discursos e práticas comuns e são produzidos e difundidos em espaços sociais
específicos, que têm lugares e objetivos próprios e suas hierarquias. Assim, cabe
à investigação histórica realizar uma historicização da especificidade da
literatura, reconhecer as fronteiras diversas, conforme as épocas e lugares, entre
o que é literatura e o que não é; atentar à variação dos critérios definidores da
“literalidade” em diferentes períodos; desvelar os dispositivos que constituem os
repertórios das obras canônicas; os traços deixados nas próprias obras pela
“economia da escritura” na qual foram produzidas (as diversas restrições
exercidas sobre elas), ou as categorias que construíram a “instituição literária”,
como as noções de autor, de obra, de livro, de escritura, de copyright etc.
(CHARTIER, 2002, p. 258).

Para Pesavento (2004, p. 83), o historiador deve tomar a literatura a partir do


tempo de sua escrita, do autor e da época em que foi produzida, tanto se o texto
falar de sua época, de uma passada ou futura. Bosi (1992, p. 176) também
chama nossa atenção para nos atermos à busca da compreensão mais do tempo

21
em que a obra foi forjada do que aquele que por vez se refere. Candido (1985)
aponta que a abordagem do texto literário deve articular tanto o intrínseco da
obra, logo, seu conteúdo, que engloba suas temáticas, tramas e dimensões
formais, estéticas, quanto o extrínseco, referindo-se ao contexto social e
temporal em que foi escrita. No contexto do tempo e do lugar, no emaranhado
das relações históricas, sociais e culturais, no qual o texto literário foi elaborado,
ele revela sua estética, seu estilo, sua linguagem, sua escola ou movimento,
seus significados, os quais são criações coletivas e possuem sentidos, aceitação
ou rejeição, nesse ambiente e tempo.

Logo, utilizar a literatura como documento a para produção do conhecimento


histórico requer também pensar sua estética, o cânone literário pertinente a esse
tipo de escrita e que foi considerado para sua avaliação, pois o valor e a
importância de um texto literário não são absolutos, podendo o historiador
recorrer tanto aos escritores apreciados e reconhecidos como grandes pelo
grupo de agentes intelectuais, quanto àqueles considerados como menores e
medíocres. Reconhecer as regras e as convenções estabelecidas pelos agentes
e produtores intelectuais, as quais são elementares no processo de
reconhecimento do produtor e do produto, dando-lhes prestígio ou não dentro
campo intelectual e da cultura, explicita o estatuto do texto e ilumina sobre as
aproximações e os distanciamentos que estes possuem em relação à realidade
a que se referem e representam (PESAVENTO, 2004, p. 84; BOURDIEU, 1992,
p. 183-202).

Chartier (2002) pondera que a historicização da especificidade da literatura tem


por corolário a interrogação sobre as relações que as obras mantêm com o
mundo social, afastando-se da tentação, que foi grande entre os historiadores,
de reduzir os textos a um mero estatuto documental. Portanto, deve-se trabalhar
sobre as variações entre as representações literárias e as realidades sociais que
elas representam, deslocando-as sobre o registro da ficção e da fábula.

Variações entre a significação e a


interpretação corretas, tais como a fixam a
escritura, o comentário ou a censura, e as

22
apropriações plurais que, sempre inventam,
deslocam, subvertem. Variações, enfim, entre
as diversas formas de inscrição, de
transmissão e de recepção das obras
(CHARTIER, 2002, p. 258-9).

Defendendo a construção de um novo espaço intelectual que obrigue a inscrever


as obras nos sistemas de restrições que limitam, mas que também tornam
possíveis sua produção e sua compreensão, Chartier argumenta:

Produzidas em uma ordem específica, as


obras escapam dela e ganham existência
sendo investidas pelas significações que lhe
atribuem, por vezes na longa duração, seus
diferentes públicos. Articular a diferença que
funda (diversamente) a especificidade da
literatura e as dependências (múltiplas) que a
inscrevem no mundo social: esta é, a meu ver,
a melhor formulação do necessário encontro
entre a história da literatura e a história cultural
(CHARTIER, 2002, p. 259)

A abordagem, contudo, deve buscar compreender como a recepção particular e


inventiva de um leitor singular, de um ouvinte ou espectador, encerra se numa
série de determinações complexas e relacionadas – os efeitos de sentido
visados pelos próprios dispositivos da escritura; os usos e apropriações impostos
pelas formas de representação do texto; as competências, as categorias e as
convenções que comandam a relação de cada comunidade com os diferentes
discursos. Analisar em conjunto essas diferentes determinações e reintroduzir
no questionamento a historicidade é voltar-se para a dimensão necessariamente
“literária” de sua escritura (CHARTIER, 2002, p. 259).

O historiador, ao lidar com esse tipo de documento específico, precisa estar


atento a essas dimensões da representação construída, observando como o

23
literato alia as regras de escritas, as restrições, os critérios e as convenções, o
estético e o criativo à elaboração de suas reflexões sobre a realidade que o cerca
e aquela que representa. O conteúdo, como temas e questões abordadas e
ainda como forma, requer ser problematizado e relacionado à dimensão
temporal, buscando perceber o texto como campo de tensões e contradições
(SANTOS, 2007, p. 96, 105).

Portanto, recorrer à literatura para a produção do conhecimento histórico


pressupõe uma reflexão sobre ela, problematizá-la e historicizá-la. Para
Chalhoub e Pereira (1998, p.7),

a proposta é historicizar a obra literária – seja


ela conto, crônica, poesia ou romance -, inseri-
la no movimento da sociedade, investigar as
suas redes de interlocução social, destrinchar
não a sua suposta autonomia em relação à
sociedade, mas sim a forma como constrói ou
representa a sua relação com a realidade
social – algo que faz mesmo ao negar fazê-lo.

Se todo documento, seja ele literário ou de fonte oficial, é uma construção que
se pauta num sistema de regras próprias de escrita, peculiares a cada gênero
de texto e específicas ao lugar socioprofissional de onde seu autor o produz, e é
a partir daí que se cria um real em conformidade com a historicidade dessa
produção e à intencionalidade dessa escrita, tanto o literato quanto a literatura,
a linguagem e a sociedade, estão aprisionados nas teias da cultura e do tempo,
ocorrendo entre tais instâncias influências recíprocas diversas.

As representações do mundo social, de uma realidade, tanto objetiva quanto


subjetiva, de um tempo e lugar, resultam do entrecruzamento de aspectos
individuais e coletivos. O literato não cria nada a partir do nada. Não se faz
literatura sem contato com a sociedade, a cultura e a história. De acordo com
Candido (1985, p. 24), a criatividade, a imaginação e a originalidade, partem das
condições reais do tempo e do lugar, as quais, ressaltamos, podem ser concretas

24
ou não, da existência social e de suas experiências. Para Davi (2007, p. 12), o
literato insere-se na realidade sociocultural do tempo em que vive, do qual faz
parte, com ela dialogando ao produzir sua representação, por meio de sua
vivência, de seus interesses e projetos, mas não é simples refletor dos
acontecimentos sociais; ele os transforma e combina, cria e devolve o produzido
à sociedade.

A literatura, como testemunho histórico, é fruto de um processo social e


apresenta propriedades específicas que precisam ser interrogadas e analisadas,
como qualquer outro documento. Resta ao historiador descobrir, ponderar e
detalhar sobre as condições de sua produção, as intenções do autor, a forma
como ele realiza sua representação e a relação que esta estabelece com o real,
as interpretações ou leituras que suscita sua intervenção como autor, as
características específicas da obra e do escritor, da escola em que este concebe
seu texto e em que estilo, inserindo-os num processo histórico determinado, em
um tempo e lugar, pois “são acontecimentos datados, historicamente
condicionados, valem pelo que expressam aos contemporâneos” (CHALHOUB;
PEREIRA, 1998, p. 9).

Ginzburg, ao tratar da forma como a pesquisa histórica moderna se formou, seus


procedimentos em relação aos modelos clássicos e as sugestões recolhidas de
outros gêneros de produção e textos, dentre eles, os de ficção, na busca de se
afirmar como modo de conhecer a realidade, mostra como a narração histórica
estabelece relações com a literatura imaginativa, a grande prosa de ficção,
inserindo-as num regime de empréstimos e desafios entre si. Para ele, entre os
testemunhos, narrativos ou não, e a realidade testemunhada, existe uma relação
que deve ser repetidamente analisada pelo historiador e, entre as narrativas
ficcionais e as históricas, há uma “contenda pela representação da realidade”,
“um conflito feito de desafios, empréstimos recíprocos, hibridismos”, o qual deve
ser examinado (GINZBURG, 2007, p. 8, 9).

Partindo das reflexões metodológicas de Bloch sobre os testemunhos


voluntários e daquilo que neles interessava aos historiadores atuais, não os
dados concretos, mas a mentalidade de quem os escreveu, a inteligência, na

25
busca de fazer valer os testemunhos involuntários e o núcleo involuntário e, mais
profundo, dos voluntários, Ginzburg contrapõe-se ao ataque realizado ao caráter
referencial dos textos. Defende que “escavando os meandros dos textos, contra
as intenções de quem os produziu, podemos fazer emergir vozes incontroladas”.
Assim, nos romances medievais, podemos detectar usos e costumes, isolando,
na ficção, fragmentos de verdade (GINZBURG, 2007, p. 10-2).

Com essa estratégia de leitura, não muito diferente da esboçada por Bloch,
Auerbach analisou trechos de Voltaire e Stendhal, não como documentos
históricos e na perspectiva de seus autores e suas intenções, mas como textos
entranhados de história, dos quais utilizou os rastros deixados mais ou menos
involuntariamente. “A ficção, alimentada pela história, torna-se matéria de
reflexão histórica, ou ficcional, e assim por diante.” Ler os testemunhos históricos
contra as intenções de quem os produziu, assim como os textos literários que
pretendem se constituir numa realidade autônoma, significa supor que todo texto
possui elementos incontrolados, algo de opaco comparável às percepções que
o olhar registra sem entender (GINZBURG, 2007, p. 12).

Dessa forma, devemos centrar atenção no funcionamento da linguagem literária,


na pluralidade e na instabilidade do texto, na busca de recuperar os diferentes
significados e as multiplicidades de sentidos, pois não há um sentido fixo,
congelado, estabelecido da obra. Mas é fundamental evitar o caminho da crítica
e da história literária tradicional, que buscava o sentido do texto em si e se
distanciava da prática sócio histórica. A ideia de um texto não fechado, da
instabilidade de sentido, da pluralidade interna da linguagem, aponta que há
textos abertos a reapropriações múltiplas, que permitem construções diversas
de sentido. Esta questão não pode ser remetida unicamente aos aspectos
fundamentais como as instituições, centros de ensino, livrarias, editoras, nem
aos seus mecanismos de escolha e seleção, determinantes do ato de ignorar ou
rejeitar um texto, próprios da construção do cânon em sua dimensão sócio
histórica. Deve-se analisar por que se estudam uns autores e outros não; por
que há autores que são frequentemente encenados e outros abandonados; por
que, nas estratégias dos editores de publicação, alguns textos são conservados
e outros descartados. No entanto há uma dimensão que resiste a semelhante

26
estudo que é algo próprio do funcionamento linguístico das obras, que permite
ou que cancela as reapropriações em longa duração. O entrecruzamento dos
enfoques sócio históricos e das proposições estéticas ou formalistas é uma
maneira também de evitar

um sociologismo redutor do processo de


construção do cânon, pois essa visão remete
à estrutura interna das obras e ao
funcionamento da linguagem, e não
unicamente ao dispositivos externos como a
escola, a crítica literária, o mercado do livro,
etc., que operaram para estabelecer esta
seleção canônica (CHARTIER, 2001, p. 105-
6).

Uma leitura entrecruzada pelos aspectos sócio históricos e estéticos e a


contrapelo, como Benjamim sugeriu, contra as intenções de quem produziu os
textos (GINZBURG, 2007, p. 11), requer uma reflexão detida sobre as
intencionalidades neles depositadas por seus autores. Só sabendo das
intenções do autor podemos ler sua obra em sentido inverso ao que ele desejou.
A literatura, como um registro social, uma reflexão e leitura sobre a cultura e suas
questões, uma agente que institui um imaginário e uma memória, um produto de
criação que envolve memórias e a elas recorre como matéria ficcional, é
permeada de intencionalidades. Ela detém um valor temporal, histórico, o qual
se pode desvelar por meio um processo de historicização, ou seja, de sua
inserção no tempo e na sociedade em que foi produzida, clareando a relação de
trocas recíprocas, de contatos e interações entre essas dimensões, suas
aproximações e seus distanciamentos internos e externos.

A literatura, como índice e instrumento das “relações de força” (GINZBURG,


2002) presentes numa sociedade, da maneira como seu autor se relaciona com
elas e nelas se insere, como prática intelectual, constrói certa história da cultura
e do social, institui uma memória em prejuízo de outras, podendo ser

27
considerada como um dos “lugares de memória” de uma coletividade, pois,
conforme Nora (1993, p. 9), a memória “se enraíza no concreto, no gesto, na
imagem, no objeto”. Recorrer a esse tipo de documento possibilita-nos acessar
um imaginário social, pensado tanto como qualquer coisa imaginada quanto
como um conjunto de imagens variadas acerca da existência em sociedade,
colhendo informações, muitas vezes, não encontradas em outras fontes ou
perdidas por tantas, como aquelas referentes às formas de agir e comportar, de
pensar e sonhar, de sentir e relacionar etc. próprias de um tempo, de um lugar e
de um grupo social.

Meio a esse complexo caleidoscópio de imagens e representações, cabe-nos


reunir e aproximar informações, às vezes, dispersas, fragmentadas e afastadas,
interpondo-as e transpondo-as ao buscar inteirar-se de um mundo que foi e não
é mais e as suas circunstancialidades, na procura de assimilar, digerir e
interpretar os sinais que se dão a ler, com o objetivo de reconstruir uma
paisagem cultural e atingir os significados tecidos e inscritos na cultura, tal como
Geertz (1989) a define, como código público socialmente estabelecido.

No entanto lidar com as manifestações literárias, que sempre apresentam traços


heterogêneos, caracteres múltiplos e contraditórios, exige um exame minucioso
de cada autor e dos pormenores que particularizam cada obra. Assim, as
proposições gerais devem dar lugar a estudos específicos, pois as reflexões
teóricas, os estudos generalizantes não podem escapar do status de hipóteses
a serem testadas e da necessidade de examinar os casos particulares.
Investigação para perceber as especificidades e rever leituras consagradas e
consolidadas, que formam camadas sedimentares de cultura sobre um tema,
autor e obra, não raro, marcadas por lacunas, distorções, subversões e
reducionismos.

O historiador da cultura, conforme Paris (1988, p. 85), ao trabalhar com a


documentação literária, depara-se com a questão de que quase nunca é o
primeiro leitor do documento, tendo de abordá-lo em diálogo com uma escala,
um sistema de referências, uma história literária, que já classificou, hierarquizou
as escritas, as obras e os autores. História que, geralmente, realizou tais

28
operações deixando lacunas, dilacerando os significados, deslocando e
subvertendo as significações, cabendo a um novo olhar sobre estes criar novas
imagens e inverter outras (GINZBURG, 2002, p. 115).

O distanciamento e o estranhamento, como formas de desvelar feições


estranhas e opacas na leitura e tratamento de uma documentação já familiar,
possibilitam retificar ideias, imagens e significados atribuídos, vistos como
equívocos, afastando interpretações, por vezes, consideradas impróprias.
Atentar às lacunas a serem decifradas e recorrer à postura de estranhamento
como um procedimento cognitivo requer tentar apresentar as coisas como se
vistas pela primeira vez e como meio e expediente para revelar feições
distorcidas ou ocultas na leitura de uma documentação conhecida, abrindo
caminhos para retificar interpretações e sentidos avaliados como impróprios,
mesmo supondo os elementos incontrolados da obra e sua instabilidade, por
distarem daquilo que a fonte apresenta e oferece (GINZBURG, 2001, p. 22, 32,
34, 41).

Se a literatura, como outros monumentos e arquivos humanos, guarda as


questões de um tempo e as marcas de um povo e de um lugar, lidar com tais
fontes requer a construção de instrumentos afinados capazes de lançar luz
àquilo que traz em seu bojo. Se muitos de seus leitores realizaram leituras
apressadas, estreitas e indevidas, às vezes, por não se deterem devidamente
às fontes e aos seus delineamentos, deturpando traços, realçando uns e
apagando outros com toques imperfeitos e produzindo corruptelas, torna-se
necessário restaurar suas feições. Nessa busca de refazer o percurso
interpretativo, cabe espoar as diversas camadas de sedimentos e raspar as
crostas de análises que lhe embotam a cor original ou desfiguram o desenho
primitivo, fazendo aparecer os traços encobertos e as possíveis
descontinuidades advindas das linhas que foram apagadas em muitas leituras
anteriores, mas que podem ser recompostas, suprimindo lacunas e
restabelecendo, em grande parte, os traços propostos pelo autor, ainda que para
lê-los contra suas intenções. Portanto, a literatura, seja ela expressa nos gêneros
crônica, conto ou romance, apresenta-se como uma configuração poética do

29
real, que também agrega o imaginado, impondo-se como uma categoria de fonte
especial para a história cultural de uma sociedade.

30
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abordagens. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.

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31
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