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João Pedro Guelhardi Costa Ferreira

“Nas sombras do amanhã”: a construção testamentária de Johan Huizinga

Mestrado na linha pretendida: Ideias, Saberes e Escritas da (e na) História

1. Introdução
A obra “Nas sombras do amanhã - um diagnóstico da enfermidade espiritual de nosso
tempo” foi produzida no ano de 1935 pelo historiador holandês Johan Huizinga. Tal obra nasce
como fruto de uma conferência realizada em Bruxelas, e circustancia a formação da sociedade
de seu tempo. Desse modo, Huizinga propõe uma reflexão sobre os contornos que o século XX
definiu sobre a Europa e de que maneira essa experiência proporcionou novas relações entre
indivíduos e temporalidades, incluindo por parte do próprio historiador. Diferente de suas
demais obras, “Nas sombras do amanhã” foge ao campo da historiografia, vez que propõe uma
análise de diversos elementos que constituem a formação da sociedade de seu próprio tempo.
Se apresenta como uma necessidade em nosso projeto compreendermos como essa
experiência se difunde na relação sujeitos e temporalidades, de modo a investigar qual a leitura
que Johan Huizinga faz dessa experiência, e, consequentemente como ele constrói sua própria
dimensão temporal. Sendo assim, propomos analisar como “Nas sombras do amanhã” se
estabelece como a interpretação temporal íntima de Huizinga.
Ao pensarmos o século em que vive o historiador, observamos a ascendência de eventos
que delimitam um campo de experiências transformadoras, as quais acarretam um sentimento
de crise nos sujeitos que deles experimentaram. O advento das duas Grandes Guerras, o
crescimento do desenvolvimento tecnológico contribuem para a construção de novas
interpretações temporais, vez que passam a definir uma lógica nova entre sujeitos e
temporalidades.
As obras literárias se dispõem como documentos de análises aos historiadores, uma vez
que podem trazer consigo a possibilidade de investigações de representações, incluindo
representações das temporalidades. Ou seja, podemos refletir de que modo Johan Huizinga
interpreta seu próprio tempo, e, de que maneira o historiador holândes concebe a dinâmica entre
passado, presente e futuro. Desse modo, é possível identificarmos como dentro de um regime
de temporalidade são produzidas diversas linhas temporais, as quais são representações
essencialmente íntimas dos indivíduos.
A partir dos pontos expostos tentaremos entender melhor como se elabora a relação
entre História e Literatura, de modo a refletir como o campo literário nos possibilita pensar a
temporalidade. Com base nisso se encaminha nossa análise de como “Nas sombras do amanhã”
se caracteriza como uma análise de Huizinga acerca da dinâmica temporal constituída ao longo
do século XX, e de que maneira essa análise se reflete na construção temporal íntima do autor
ao propor sua obra, intitulada o seu testamento.

2. Justificativa
2.1 História e Literatura
Existem questões incontornáveis ao se tratar de História e Literatura, uma vez que são
bastante fluidas as fronteiras que as separam e as unem. Esse questionamento ficou muito
implícito no século XIX, quando a História visava alcançar seu patamar enquanto ciência. Tal
perspectiva estabeleceu análises de documentos essencialmente oficiais, e, decretou uma
produção historiográfica estritamente “científica”que demonstrasse o passado como ele
realmente havia ocorrido.
Os historiadores de ofício já possuíam seus materiais e produtos para se ocupar. Como
aponta Peter Burke:
[...] Historiadores profissionais, na era de Ranke e seus discípulos se restringiram a
narrativas de grandes eventos e aos feitos de grandes homens. Por sua vez, os
romancistas históricos clássicos não interferiram em interpretações correntes da
história, e menos ainda em grandes eventos; ao contrário aceitaram-nos como
verdadeiros. Romancistas tinham licença para inventar personagens menores,
ilustrando os efeitos de grandes mudanças históricas num nível local ou pessoal
(BURKE, 1997, p.112)

A citação de Burke deixa claro a existência de uma significativa divisão do trabalho


entre historiadores de ofício e romancista históricos. Nota-se como o trabalho historiográfico
se encontrava essencialmente vinculado à criação de narrativas para a forja das nações, o que
explicita a construção de produções vinculadas aos grandes eventos e feitos de grandes
indivíduos. A busca por delimitar-se enquanto um campo da ciência, aos moldes do positivismo,
acaba por gestar esse tipo de abordagem.
Com o advento da expansão das fontes e uma reformulação das abordagens tributárias
da nova história e da história social, durante o século XX, a literatura passa a ganhar
legitimidade no campo historiográfico. Percebe-se que o texto literário passa a ser visto como
uma representação real que se apreende (CHARTIER, 1990), logo não se pode desvinculá-lo
de sua realidade, da sua historicidade de produção e de sua intencionalidade de escrita.
A expressão literária pode ser tomada como uma forma de representação social e
histórica, uma vez que se delimita como um produto sociocultural e também como uma
testemunha de uma determinada época (BORGES, 2010). Ao longo desse tipo de fonte pode-
se notar a construção de experiências humanas, de práticas e expectativas, elementos os quais
movimentam e circulam em uma determinada sociedade. Desse modo pode-se considerar que:
No universo amplo dos bens culturais, a expressão literária pode ser tomada como
uma forma de representação social e histórica, sendo testemunho excepcional de uma
época, pois um produto sociocultural, uma fato estético e histórico, que representa as
experiências humanas, os hábitos, as atitudes, os sentimentos, as criações, os
pensamentos, as práticas, as inquietações, as expectativas, as esperanças, os sonhos
[...] (BORGES, 2010,p.98)

Observa-se que a o campo literário pode ser lida como uma representação social e
histórica de diversos elementos que contribuem com a formação social. É primordial se ater ao
que Borges vai dizer sobre a capacidade que a literatura vai possuir em representar experiências
e expectativas, discussão primordial para o empreendimento desta pesquisa. Sendo assim,
percebe-se que o campo literário não é somente revelador do contexto de época, mas, permite
recuperar as diferentes leituras que os autores concebem a respeito da temporalidade.
O texto literário permite a ocorrência de formas múltiplas de significações e
representações sobre as dinâmicas temporais. Em seu interior os autores desfrutam do direito
de confluir as temporalidades a seu gosto, de modo que podem “[...] dizer do passado no
presente e projetar futuros” (CAMILOTTI; NAXARA, 2009, p.40). Ou seja, nota-se que
inserido no texto se encontra uma consciência que explora, organiza, e vive uma experiênciação
do tempo.
As necessidades em construir e expor uma formulação própria sobre o tempo, vão
ganhando bastante espaço durante o século XX. Os grandes eventos que acabam reformulando
a experiência humana instigam aos autores a produzirem reflexões que abrangessem ao próprio
tempo. Desse modo, os indivíduos promovem movimentos que não utilizam do passado para
explicar seu presente, mas que permitam a coexistência das duas temporalidades numa
perspectiva dialética (LIMA, 1995).
Percebe-se que ao longo desse século diversos gênero literários se apropriam desse tipo
de movimento, que abarca a discussão sobre as temporalidade. Dentre esses gêneros, cabe-se
destaque ao ensaio. Embora seja detentor de certo rigor, o gênero ensaístico adota uma postura
auto reflexiva, mantendo-se em constante atualização. Ou seja, o ensaio permite expor o
pensamento de uma forma aberta, sem ligar-se de maneira doutrinal ou dogmática a uma teoria
(PAVIANI, 2009). Dessa forma, esse gênero permite uma confluência de temáticas íntimas ao
autor, conservando ao mesmo tempo uma determinada reflexão. Assim, ele permitiu a
determinados autores convergir as questões temporais com outras temáticas, de modo que
ambas estabelecessem uma relação sincrônica.
Sendo assim, a obra “Nas sombras do amanhã” se delimita como uma fonte interessante
na produção de uma historiografia que busca compreender construções temporais. Nela podem-
se ser observados elementos que aludem a uma representação temporal específica do historiador
holândês, de modo que pode-se delimitar a forma como Johan Huizinga concebe a dinâmica
entre passado, presente e futuro em seu próprio século. Desse modo é possível traçar o teor
testamentário da obra, compreendendo de que modo Huizinga conflui a concepção de tempo
instituída no século XX com a sua própria.
Buscando pensar como nosso tema se articula com a linha de pesquisa “Ideias, Saberes
e Escritas da (e na) História”, observamos que nossa fonte permite instaurar um debate entre
literatura e temporalidade. Desse modo, podemos observar as possibilidades e desafios que o
campo literário têm a fornecer à historiografia que se concentra no entendimento do tempo e
das representações temporais.

2.2 Passado, Presente e Futuro: a dinâmica temporal constituída ao longo do século XX


Ao se refletir sobre o longo século XX, percebe-se que esse período se configurou como
um momento de reformulação das experiências humanas. Os grandes eventos trágicos (as duas
Grandes Guerras), o avanço da tecnologia, a grande crise do sistema capitalista, tornam-se
vetores de transformação na relação que os indivíduos instituíram com as temporalidades.
Como afirma Eric Hobsbawm, “Para os que cresceram antes de 1914, o contraste foi tão
impressionante que muitos - inclusive a geração dos pais deste historiador, ou pelo menos de
seus membros centro - europeus - se recusaram a ver qualquer continuidade com o passado”
(HOBSBAWM, 1995, p.25). A fala do historiador norteia a relação que se constrói entre a
sociedade europeia e as temporalidades durante o século XX. Percebe-se como as
especificidades desse período delimitam um campo temporal, no qual o presente que se
desenvolve não consegue ser abarcado pelas experiências oriundas do passado.
Dessa forma, as gerações que assistem às transformações desse período não conseguem
estabelecer um sentido de orientação mediado pelo passado, e, acabam tendo suas vidas
privadas e públicas moduladas. Percebe-se que a sociedade que emerge dessa experiência
possui uma enorme carência de orientação, uma vez que o presente era totalmente inovador.
Contudo, é importante observar que embora não consiga estabelecer uma relação com
o presente, o passado não é excluído da interpretação temporal dos sujeitos. Observa-se que a
retomada das tradições se dá de forma reformulada, visando sua apropriação para legitimar
determinados discursos e grupos. Esse tipo de retomada das tradições foi muito proposta pelos
regimes totalitários, os quais
[...] cada um a seu modo, fizeram o possível para se livrarem de programas que
especificassem um conteúdo concreto herdado de estágios anteriores e não totalitários
da sua evolução. Por mais radical que seja, todo objetivo político que não inclua o
domínio mundial, todo programa político definido que trate de assuntos específicos
em vez de referir-se a “questões ideológicas que serão importantes durante séculos” é
um entrave para o totalitarismo. (ARENDT, 1989, p.37)

Dessa maneira, os regimes totalitários faziam usos das tradições, do próprio passado,
para legitimar sua própria existência. Por meio da criação de um passado excludente, que apaga
a existência de instituições e programas de ordem não totalitário, tais regimes promoviam um
fortalecimento da lealdade dos indivíduos. Esse sentimento de “não pertencimento” e
desvínculo com todas as formas de laços (incluindo os laços com o tempo), gestava nos sujeitos
uma orientação de vínculo e lugar no mundo, quando se enquadravam dentro de um
determinado movimento ou partido.
Para Hannah Arendt, os próprios regimes totalitários são frutos de uma experiência
presente que o passado não consegue orientar. Segundo ela, esses governos evoluíram de
sistemas unipartidários, e, quando se tornavam realmente totalitários operavam por um modo
de valores radicalmente diferente de todos os outros. Qualquer categoria tradicional utilitária
vinculadas à moral, lógica, ou bom senso, não era capaz de fornecer julgamentos ou uma
previsão do curso de ação desses governos (ARENDT, 1989).
A experiência dos regimes totalitários representou um afastamento entre o novo e o
velho, fazendo com que o presente se torne inovador para seus viventes. Esse afastamento entre
as duas temporalidades não se deu somente no campo político, mas, também foi corroborado
pelo avanço da própria técnica. A constante evolução do campo tecnológico, desperta um
sentimento de aceleração, o qual é ditado pelo ritmo constante e instantâneo das máquinas.
O que distinguiu particularmente o século XX, em comparação com qualquer outro
período precedente, foi uma tendência contínua e acelerada de mudança tecnológica,
com efeitos multiplicativos e revolucionários sobre praticamente todos os campos da
experiência humana e em todos os âmbitos da vida no planeta. (SEVCENKO, 2001,
p.23)

É preciso dimensionar que tais efeitos multiplicativos e revolucionários se estenderam


até mesmo para o campo temporal. Com o advento da aceleração, o existir humano é
condicionado a esquecer “velhos hábitos” 1, os quais cedem terreno para aceleração. Sevcenko,
apresenta que dentre esses hábitos extintos, encontra-se a responsabilidade com o futuro.
Segundo o autor, com a ascensão da técnica qualquer preocupação que se tinha com o porvir é
substituída por uma forte valorização do presente. As bases desse tipo de interpretação temporal
estaria fundada em uma concepção ética que se apega ao presente e a situações isoladas
(SEVCENKO, 2001).
Dentro da obra de Sevcenko é importante observar como o presente se comporta.
Segundo o autor essa categoria sobrepõe ao futuro, de modo a tomar seu lugar dentro das
representações temporais. Desse modo, os indivíduos são condicionados a viver em um “eterno
agora”, uma espécie de instante único que ao se tornar futuro, já se reconfigurava em presente
(SEVCENKO, 2001). O passado por sua vez, tornava-se desinteressante, já que não conseguia
mais prever os contornos que a aceleração forneceria à sociedade.
Portanto, percebe-se como as categorias de passado, presente e futuro se tornam fluidas
ao longo do século XX. As transformações que ocorrem ao longo desse século promovem
diversas leituras sobre o tempo, refletindo assim a relação que o sujeitos concebem essas
categorias. Ao investigar “Nas sombras do amanhã” podemos conceber o modo como Johan

1 Na obra “A corrida para o século XXI: no loop da montanha - russa”, Sevcenko compreende o termo “velhos hábitos” como experiências
vinculadas à tradição dos sujeitos. Com o advento da aceleração essas experiências são precedidas por novas, as quais estão ligadas com a
aceleração dos meios tecnológicos.
Huizinga constrói uma interpretação íntima dessas três categorias, e, de que maneira essa leitura
o impele a instituir um teor testamentário dentro da obra.

2.3 “Nas sombras do amanhã” e a leitura das temporalidades


Para conceber a leitura que Huizinga faz acerca sobre as categorias passado, presente, e
futuro é necessário partir da epígrafe de São Bernardo de Claraval. “Tem este mundo suas
noites, e não poucas” reverbera a visão que o historiador tem de seu próprio período, enquanto
um momento de obscurantismo e decadência dos valores fundamentais para fundação da
sociedade. Ao definir o século XX como uma das muitas noites do mundo, o historiador também
delimita como é complicado estabelecer uma orientação dos caminhos que a serem trilhados.
Para ele, “[...] estamos todos de acordo quanto a um ponto: não há como voltar atrás,
apenas seguir adiante.” (HUIZINGA, 2017, p.29). As transformações que envolvem ao
presente, torna inviável um retorno ao passado, promovendo assim um encerramento do diálogo
entre essas duas temporalidades. O campo que se abre como alternativa às constantes mudanças
no presente, seria “seguir adiante”, ou seja o futuro. Percebe-se que Huizinga, traz à tona essa
necessidade de diálogo com o futuro, o qual se consolida também como um momento incerto.
Não podemos nem queremos senão mirar adiante e seguir rumo ao desconhecido. O
olhar da humanidade pensante, por tanto tempo voltado continuamente para a
perfeição do passado, mudo de direção após Bacon e Descartes. A humanidade
procura seu caminho há três séculos (HUIZINGA, 2017, p.39)

No trecho se nota como essa leitura do historiador sobre o modo como a humanidade
passa a encarar o futuro; como o ideal a ser alcançado embora seja essencialmente
desconhecido. Também é possível contemplar a relação que é erigida com o passado, o qual
deixa de ser o ideal a ser seguido. É enfático predizer que Huizinga deixa claro sua percepção
sobre a mudança na experiência temporal, fato o qual é histórico e já perdura há três séculos.
Desse modo, parte da crise que se abate sobre a Europa de Huizinga estaria aliada à essa
abolição das capacidades mentais de se recorrer ao passado. Como o historiador holândes
afirma “[...] quase tudo o que fora um dia sagrado e inabalável começa a tremer” (HUIZINGA,
2017, p.19). As tradições que forjavam os pilares em que a sociedade europeia se erigiu, ruíam
perante o advento do presente e de suas transformações, os valores que proporcionavam direitos
fundamentais começam a entrar em decadência.
Contudo, é importante apontar que Huizinga é conduzido por seu ofício de historiador.
Dentro da obra é possível perceber apontamentos que remetem ao vínculo com o passado. Como
é dito por ele, “[...] embora não haja como voltar atrás, o passado ainda guarda lições, serve-
nos de guia” (HUIZINGA, 2017, p.31). Sendo assim, o retorno ao passado ainda é válido para
se orientar dentro do tempo presente, por isso o uso do termo “serve-nos” de guia.
Constata-se que o estado de crise do século XX ocasionou uma carência humana de
orientação, a qual desorganiza o agir e o sofrer dos indivíduos no transcorrer do tempo. A partir
dessa carência se constitui uma retomada do passado, por meio da ciência histórica, tornando
legível uma resposta a uma determinada questão (RÜSEN, 2001). Para o historiador holândes
as respostas para a condição de crise seriam fornecidas pela história e sua capacidade de
investigar ao passado em busca de soluções.
Por meio desse movimento de análise da situação de crise e entendimento do desenrolar
das temporalidades, aliado à sua formação enquanto historiador, Huizinga propõe sua própria
representação da relação temporal entre essas três categorias. De acordo com sua construção
temporal, não é possível prever os rumos pelos quais o futuro irá se desenrolar, um prognóstico
das sequelas que estavam por vir, seria arrojado demais (HUIZINGA, 2017). O que o
historiador lança como perspectiva são condicionamentos de algumas possibilidades e que
propiciam uma reflexão embora imprevisível, o futuro não se delimita como um momento
opaco.
Dessa forma, a obra de Johan Huizinga instiga a investigação da experiência temporal
que se delimitou ao longo do século XX, de modo a observar os diversos sentidos mesmo de
tempo que estão incluídos em um “mesmo” tempo (RANCIÈRE, 2011). Sendo assim, amplia-
se o debate como diversas linhas temporais se estabelecem em um determinado período,
conferindo assim uma gama de subjetividades temporais. Logo, pensar as categorias de
passado, presente e futuro dentro da obra, é apreender os motivos pelos quais Huizinga forja
seu testamento.

3.Objetivos
3.1 Objetivo Geral
3.1.1 Compreender como o caráter testamentário de Nas sombras do amanhã se constitui como
uma releitura de Johan Huizinga acerca das dinâmicas temporais que se forjam durante o século
XX
3.2 Objetivos específicos
3.2.1 Compreender as nuances presentes em Nas sombras do amanhã e de que maneira elas
constituem uma trajetória intelectual de Johan Huizinga
3.2.2 Analisar o conceito de tragédia construído dentro da obra Nas sombras do amanhã e em
que medida ela se interliga à uma nova percepção temporal
3.2.3 Entender de que modo a ressignificação dessa nova experiência temporal delimita a
concepção de um teor testamentário dentro da obra.
4. Hipótese
4.1 A obra “Nas sombras do amanhã” circustancia uma mudança na dinâmica temporal
estabelecida ao longo do regime de historicidade moderno, a qual consiste no abandono de uma
visão de futuro vinculado ao progresso e passa para uma perspectiva de incerteza e receio do
porvir. A partir dessa investigação, o historiador holândes promove uma releitura dessa
construção temporal, e mediado por seu ofício enquanto historiador, constrói e apresenta sua
própria relação temporal, a qual está intimamente ligada a uma perspectiva de futuro redentor.
Sendo por meio dessa visão de um futuro de redenção, que Huizinga atribui à obra o seu teor
testamentário.

5. Pressupostos Teórico - Metodológicos


A obra “Nas sombras do amanhã” delimita um campo de debate vinculado à formação
de uma experiência temporal forjada durante o século XX. Tal experiência é mediada por
grandes transformações que se desencadeiam no âmbito social, político e cultural, e que por sua
vez se prolonga até o campo das experiências e expectativas do indivíduos. Logo, para tecer a
representação de tempo que é construída ao longo do livro é necessário compreender o regime
de historicidade, no qual a produção está inserida.
Os regimes de historicidade possibilitam uma investigação da experiência temporal,
uma vez que não marcam o tempo de forma neutra, mas, proporciona o enquadramento
acadêmico da experiência. Por meio deste conceito seria possível ao historiador promover um
questionamento sobre as relações dos sujeitos com o tempo, de modo a apreender todos os
tempos, mas, principalmente momentos de crise do tempo (HARTOG, 2015). É importante
abordar que esse conceito não busca categorizar os tempos

A atenção, é preciso repetir, incide inicialmente e, sobretudo, sobre as categorias que


organizam essas experiências e permitem revelá-las, mais precisamente ainda, sobre
as formas ou os modos de articulação dessas categorias ou formas universais, que são
o passado, o presente e o futuro. (HARTOG, 2015, p.38)

Ou seja, o regime de historicidade permite observar o modo como se articulam as


categorias de passado, presente e futuro, e como elas acabam por fomentar um determinado tipo
de experiência temporal. Dessa forma é possível tocar em uma das condições de possibilidade
de se produzir história. a partir das relações respectivas do presente, passado e do futuro. Logo,
Hartog observa a constituição de determinadas estruturas temporais que definem formas de
experiência do tempo que habitam ou constituem determinados indivíduos.
Desse modo é necessário abordar a obra de Huizinga, tendo em vista o regime de
historicidade em que ela se forma, o qual Hartog irá definir como “regime moderno”. A partir
de 1789, com o advento da Revolução Francesa, percebe-se um ponto de fenda na ordem do
tempo. Essa fenda consistirá na passagem do antigo regime da historia magistra2, para a entrada
do regime moderno. Enquanto o primeiro tomava a ideia de um futuro que repetia ao passado
ou não o excedia, o segundo já tomava o futuro como elemento de ruptura e detentor do sentido
de orientação.

Se há ainda uma lição da história, ela vem do futuro e não mais do passado. Ela está
em um futuro que se deve fazer surgir como ruptura com o passado, pelo menos como
algo diferente dele, enquanto a historia magistra repousava na ideia de que o futuro,
se não repetia exatamente o passado, pelo menos não o excedia nunca. (HARTOG,
2015, p.138)

A história dentro do regime moderno passou a ser um ultimato do futuro para o presente.
Instaura-se uma necessidade por se obter previsões e não mais lições da história, o historiador
já não produz mais exemplaridade, ele parte em busca do único. Desse modo, o passado torna-
se um lugar que não se repete, e, consequentemente, ultrapassado. Assim, a experiência
temporal que se desenvolve no interior desse regime, acaba tendo o futuro como eixo central, e
como objeto único da história.
Contudo, é importante mensurar determinadas “[...] significações que tomam o tempo
de frente para trás, que fazer circular sentido de uma maneira que escapa a toda
contemporaneidade, a toda identidade do tempo com “ele mesmo”” (RANCIÈRE, 2011, p.49).
Isto significa, que dentro de um regime de historicidade os indivíduos produzem interpretações
próprias, que embora vinculadas a essa experiência temporal, difundem elementos muito
subjetivos desses sujeitos.
Tal subjetividade é produzida a partir da tensão existente entre o espaço de experiência
e o horizonte de expectativa desses sujeitos. Segundo Reinhart Koselleck (2006) , esses dois
conceitos propiciam o entrecruzamento entre passado e futuro, uma vez que ambos dirigem
ações concretas no agir. O espaço de experiência estaria vinculado ao passado, de modo que
abarcasse tanto as formas racionais quanto as formas inconscientes do comportamento; já o
horizonte de expectativas se liga ao futuro (KOSELLECK, 2006). Entretanto, apesar de se
relacionarem, não são conceitos simétricos, logo, eles não coordenam os percursos e contornos
que passado e futuro desenvolvem.

2 HARTOG, Regimes de historicidade - presentismo e experiências do tempo, p.102 - 108


Passado e futuro jamais chegam a coincidir, assim como uma expectativa jamais pode
ser deduzida totalmente da experiência. Uma experiência, uma vez feita, está completa
na medida em que suas causas são passadas, ao passo que a experiência futura,
antecipada como expectativa, se decompõe em uma infinidade de momentos
temporais (KOSELLECK, 2006, p.310)

Logo, não é possível prever uma simetria entre ambos os conceitos e entre passado e
futuro. Espaço de experiência e horizonte de expectativas tornam-se elementos inconstantes ao
longo do tempo, uma vez que podem ter fim ou serem alterados ao longo dos momentos
temporais. No entanto, para se edificar o espaço de experiência e o horizonte de expectativa é
necessário, tecer a vivência do sujeito que os estabelece.
Para poder tecer a forma como o historiador formula seu tempo dentro da obra, também
nos é exigido situar “Nas sombras do amanhã” dentro de um debate referente à análise do
discurso. Ou seja, é necessário formular uma investigação das formas de produções de signo,
símbolos e significações no campo da linguagem. Dessa forma, é fundamental se pensar o
discurso instituído na obra enquanto fruto de uma construção social, na medida em que reflete
uma visão de mundo de seus autores.
Dessa forma, não é possível se pensar um discurso enquanto uma sequência linguística
fechada em si mesma, é enfático pensa-lo enquanto produto de um estado determinado por
certas condições de produção (PÊCHEUX, 1995). Partindo dessa abordagem pode-se reparar
que o sujeito não é um indivíduo autônomo, mas, que pertence a um determinado coletivo.
Sendo assim, esse indivíduo se apodera de maneira consciente ou inconsciente de um discurso
coletivo e de seu sentido.

[...] o sujeito não é um “indivíduo autônomo” que fala por si, mas um sujeito que
pertence ao coletivo e, deste modo, consciente ou inconscientemente, apodera-se do
discurso coletivo e de seu sentido. Esta relação de pertença a um coletivo ou a uma
ideologia que este professa é condição necessária para que o indivíduo torne-se sujeito
do seu discurso ao, livremente, subemeter-se às condições de produção impostas pela
ordem superior estabelecida, embora tenha ilusão de autonomia. (FARIA, 2015, p.59)

É necessário pensar que o discurso proposto em um texto não exprime neutralidade, e


que mesmo que almeje alcançar essa neutralidade, o proponente é influenciado pelo discurso
do corpo social. Percebe-se que o indivíduo se torna sujeito do seu discurso no momento em
que ele aceita as condições determinativas de uma ordem superior. À vista disso, a produção se
abstém da sua suposta neutralidade, a qual é fruto de uma falsa perspectiva de autonomia. Posto
isto, é perceptível que o discurso construído ao longo de uma determinada obra, se encontra
vinculado a determinadas formações sociais e ideologias.
Logo, a formação discursiva é uma unidade dividida. Embora, seja passível de
descrição, siga determinadas regras, ela não é una. Trata-se de uma produção heterogênea, que
é constituída para ser assim. Assim, “no interior de uma mesma formação discursiva coabitam
vozes dissonantes, que se cruzam, entrecruzam, dialogam, opõem-se, aproximam-se,
divergem[...]” (FARIA, 2015, p.60). Desse modo, a relevância de um ato de fala se dá por meio
de sua própria enunciação, na medida em que mobiliza elementos que determinam diversas
relações entre os estatutos de falas dos indivíduos.
Dessa maneira, é possível se pensar o indivíduo como uma função que pode
desempenhar diferentes tipos de práticas, as quais dependem das variadas posições em que se
situa. Esse sujeito decentralizadao, cindido e alocado em seu vazio. Entretanto, ele é expandido
pelo entrecruzamento de diversos discursos, os possibilitam a prática de ocupar diferentes
posições em um mesmo texto. Por meio da linguagem o indivíduo adquire a capacidade de
autoria, a qual insere uma forma de singularidade que se vincula à ressignificação de diversos
outros discursos (CARREIRA, 2001)
A partir dos debates desses referenciais teóricos é possível estabelecer uma análise da
produção do testamento de Huizinga, e de que maneira essa obra se remete à leitura que o
historiador faz sobre a dinâmica temporal definida ao longo do século XX. Ao entender a
relação que o historiador produz com o regime de historicidade moderno que rege as
experiências temporais do seu tempo, é possível dimensionar os contornos que seu campo de
experiência e horizonte de expectativa tomam e de que maneira eles convergem e divergem do
passado e do futuro. Desse modo, se tece a leitura íntima do historiador holandês, a qual reflete
diretamente na produção de seu testamento.

6 - Tipologia da Fonte
A fonte selecionada para a investigação de nosso problema é “Nas sombras do amanhã
- um diagnóstico da enfermidade espiritual de nosso tempo”, obra produzida por Johan
Huizinga no ano de 1935, como fruto de palestras realizadas pelo historiador em Bruxelas.
Trata-se de uma produção ensaística, que apresenta análises do historiador sobre diversos
aspectos que contribuem para a formação da sociedade europeia do século XX.
“Nas sombras do amanhã” possuiu um curto período de contato com o público
brasileiro, sendo que sua primeira edição no Brasil ocorreu no ano de 1946, publicada pela
editora Saraiva na coleção Studium. Nesse seu primeiro período de circulação utilizou-se da
tradução portuguesa, a qual fora promovida pelo professor Manuel Vieira. Já a segunda
republicação da obra de Huizinga só ocorreria no ano de 2017, pela editora Caminhos por meio
da coleção Horizontes, que optou por uma tradução própria conduzida pelo editor Sérgio
Marinho.
7. Cronograma
1: Primeiro semestre: Elaboração do primeiro capítulo; Leituras a respeito da relação entre o
gênero ensaio e a construção de uma autobiografia; Analisar elementos que presentes na obra
que nos permitem pensar traços autobiográficos dentro de “Nas sombras do amanhã”, Situar o
local de Huizinga diante da intelectualidade do século XX
2: Segundo Semestre: Elaboração do segundo capítulo; Leituras acerca da teoria do trágico;
Refletir sobre a forma como Huizinga concebe o trágico e em que sentido ele contribui na
formação da sociedade do século XX.
3: Terceiro Semestre: Elaboração do terceiro capítulo; Analisar a obra de Huizinga pensando
como a mesma promove uma reflexão acerca das experiências temporais do século XX,
Investigar o teor testamentário da obra e de que maneira ele se encontra relacionado com a
análise que o historiador holândes promove sobre a construção do tempo
4: Quarto semestre: Apresentação das conclusões, revisão e apresentação da dissertação

Fonte: HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: um diagnóstico da enfermidade. Tradução


e notas Sérgio Marinho. Goiânia: Caminhos, 2017.

8. Bibliografia
ALMEIDA, Gisele Iecker de. Futuro e história: análise da temporalidade atual. História da
Historiografia. Ouro Preto, n.15, 2014. p. 51 - 69.

ARENDT, Hannah. Ideologia e Terror: uma nova forma de governo. In:____. As origens do
totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 405-421.

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