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INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE GOIÁS –


CAMPUS GOIÂNIA
DEPARTAMENTO DE ÁREAS ACADÊMICAS I 
COORDENAÇÃO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA 
CURSO SUPERIOR DE LICENCIATURA PLENA EM HISTÓRIA

OS CIRURGIÕES NAS MINAS DAS GERAIS NO SÉCULO XVIII: SABERES,


PRÁTICAS E HIERARQUIA SOCIAL.

Acadêmico: Adriano Santos da Costa Alves


Orientador: Prof. Dr. Paulo Miguel Moreira da Fonseca

Goiânia, 2019
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ADRIANO SANTOS DA COSTA ALVES

OS CIRURGIÕES NAS MINAS DAS GERAIS NO SÉCULO XVIII: SABERES,


PRÁTICAS E HIERARQUIA SOCIAL

Trabalho de conclusão de curso apresentado como


parte das atividades para a obtenção do título de
licenciado do curso de Licenciatura Plena em História
do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia de Goiás – Campus Goiânia.
 
Orientador: Prof. Dr. Paulo Miguel Moreira da Fonseca

Goiânia, 2019
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ADRIANO SANTOS DA COSTA ALVES

OS CIRURGIÕES NAS MINAS DAS GERAIS NO SÉCULO XVIII: SABERES,


PRÁTICAS E HIERARQUIA SOCIAL

Monografia apresentada em ____/____/____ para a obtenção do título de Licenciado em

História.

 
 
 
Banca examinadora:
 
 
______________________________________
Orientador: Prof. Dr. Paulo Miguel Moreira da Fonseca (IFG)

______________________________________
Prof. Dr. Philippe Delfino Sartin (IFG)

______________________________________
Prof. Ms. José de Oliveira Júnior (IFG)
4

AGRADECIMENTOS

Agradeço a toda minha família, que tem me apoiado desde a decisão de adentrar este curso,

por terem me ajudado durante todos os anos da minha formação dentro deste curso e ofertado

auxílio para as adversidades enfrentadas neste período da minha vida.

Ao professor doutor Paulo Miguel Moreira da Fonseca, pela contribuição para minha

formação como professor pesquisador, apoiando e me guiando pelas minhas pesquisas

desenvolvidas ao longo dos últimos anos, pela paciência que demonstrou durante a leitura e

correção desta e de outras pesquisas e pelo seu incentivo e compartilhamento de saberes e por

fim pela disposição a apoiar e orientar esta pesquisa.

Aos professores Ms. José de Oliveira Júnior e Dr. Philippe Delfino Sartín por terem

contribuído positivamente como exemplos de educadores que apoiaram o desenvolvimento

desta pesquisa e auxiliado no trajeto pelos dois últimos estágios, pelo conhecimento por eles

compartilhado e por terem aceitado o convite para compor a banca para a defesa desta Tese de

Conclusão de Curso.

Aos meus amigos Washington Sousa Brasil e João Pedro Guelhardi por ao longo destes

últimos anos terem se disposto a me auxiliar nas minhas dificuldades no decorrer da escrita

desta pesquisa e também nas dificuldades que surgiram em outras disciplinas nestes últimos

anos e pela paciência de me ouvirem falando sobre o tema deste trabalho com frequência e me

proporem ideias e soluções.


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RESUMO

A base dessa pesquisa se encontra na importância que os cirurgiões obtiveram


através de suas atuações nas Minas das Gerais, aproveitando a flexibilidade que a colônia
proporcionava pela ausência de físicos bacharéis em uma quantidade significativa no território
em questão e a presença e permissão de diversos práticos da “Arte de curar”. Estes fatores
fizeram com que os cirurgiões que vieram à colônia em uma tentativa de se ascender
socialmente pudessem atuar em outros espaços além apenas da sua área de formação
(cirurgia), portanto serviram em posições como “médicos” e droguistas dependendo da
necessidade da situação, além de outras profissões que não estavam ligadas diretamente com a
área da saúde como o comércio. Devido à versatilidade destes profissionais muitos acabaram
acumulando a riqueza e o reconhecimento social que almejavam durante suas trajetórias pela
colônia. Sendo assim, a proposta deste trabalho é a analisar o papel que estes profissionais
tiveram na região no período proposto para compreender como a realidade das Minas Gerais
do século XVIII afetou e transformou suas profissões, além de compreender o impacto destes
profissionais para a sociedade da época em que viveram e atuaram através de uma análise da
obra escrita por um destes cirurgiões do século XVIII, conhecida como Erário Mineral.

Palavras-chaves: Cirurgiões, “Arte de curar”, medicinas, categoria social.


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Sumário
Introdução...........................................................................................................7

1 - A sociedade mineira na América portuguesa.............................................8

1.1 Formação histórica, política e social dos povoamentos mineiros .........................11

1.2 Composição social mineira do século XVIII......................................................15

2 - Saberes e espaços de atuação dos cirurgiões nas Minas Coloniais.........21

2.1 Erário Mineral e Luís Gomes Ferreira..............................................................21

2.2 Os saberes dos cirurgiões coloniais...................................................................25

2.3 As práticas e atuações dos Cirurgiões................................................................31

3 - Hierarquias Sociais no império português.........................................35

3.1 A hierarquia social na América Portuguesa........................................................36

3.2 Cirurgiões na hierarquia social da América portuguesa .......................................40

Considerações Finais.........................................................................................46

Referências Bibliográficas.................................................................................48
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Introdução

Nikellen Witter (2005) afirma que o ponto de partida para uma pesquisa sobre os
práticos responsáveis pela “Arte de curar” deve ser a análise do lugar social e das formas de
ação e práticas destes no império português, pois essas questões seriam de suma importância
para compreendermos os mecanismos de funcionamento dessa sociedade. Sendo assim, para a
compreensão dos cirurgiões nas Minas do Ouro se faz necessário ampliar o entendimento
sobre a sociedade mineira do século XVIII, ao mesmo tempo em que as especificidades desta
região e de seu povo foram responsáveis por moldar a esfera de atuação e as condições sociais
dos cirurgiões deste período.
Com a definição dos cirurgiões como os protagonistas desta análise, se seguirá a
proposta metodológica de Witter (2005) de evitar um olhar hierarquizante sobre esta categoria
social em relação aos práticos e médicos presentes na América portuguesa e uma
compreensão que não existe um único conhecimento medicinal válido, compreendendo o
valor dos saberes executados e desenvolvidos pelos cirurgiões na colônia e por fim a
compreensão de que estes indivíduos adaptaram suas práticas as condições especificas que as
regiões da minas possuíam, principalmente através da aquisição de novos conhecimentos
obtidos pelos colonos através dos nativos e da experiência.
Igualmente se faz necessário para a análise dos cirurgiões o entendimento de que os
saberes e práticas destes serão essenciais para compreender a atuação destes indivíduos na
colônia. Desta forma, o conhecimento obtido por estes através da sua formação na metrópole
e de seus conhecimentos obtidos na colônia são um aspecto importante para esta pesquisa.
Portanto, um cuidado imprescindível será a análise destes saberes e práticas como
conhecimentos válidos que demonstram que a ciência portuguesa tanto na formação destes
como as práticas obtidas nas colônias não seguiram um percurso linear e progressivo.
Neste contexto é cara a esta análise da obra A ciência e a filosofia dos modernos de
Paolo Rossi (1992), que apresenta um debate mais aprofundado sobre a relação dos cosmos
com as ciências que eram estimadas pelas ciências modernas em Portugal e nos seus
territórios, principalmente pela Medicina. Porém, a estagnação portuguesa no
desenvolvimento da ciência e o isolamento imposto aos avanços científicos de outros reinos
levaram a uma valorização aprofundada nos saberes desenvolvido no passado como uma
forma de reformar as práticas e conhecimentos que se tinham. Este aspecto, como apontado
na bibliografia deste trabalho, permaneceu durante todo período moderno, em consonância
com o texto Imagens do corpo e saber médico em Portugal no século XVI de Lígia Bellini,
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(2006) que aponta uma compreensão dos saberes medicinais em Portugal no começo da Idade
Moderna.
Para a análise sobre os cirurgiões dentro do recorte temático estabelecido foi eleito
como fonte a obra intitulada Erário Mineral de 1735 do cirurgião Luís Gomes Ferreira que
atuou na colônia entre as décadas de 1710 à 1730, que é um manual sobre enfermidades e
suas curas que é constituído através dos relatos e observações do autor sobre o meio em que
vivia e atuava. O uso dessa fonte é necessário para interpretar o contexto social da região de
Minas Gerais nesse período histórico, o papel dos cirurgiões, compreender os saberes e
práticas destes indivíduos (assim como suas motivações para trabalharem nesta parte da
colônia), entender as distinções que levam os médicos, cirurgiões, droguistas, entre outros e a
adaptação de suas práticas medicinais e farmacêuticas.
Embora as ações e trajetória de Luís Gomes sejam em grande parte individuais, é
possível encontrar elementos que não foram exclusivos a sua jornada e que demonstra que
esta obra e seu autor podem servir como um paradigma para a categoria social da qual Luís
Gomes Ferreira fazia parte. Com este fim a pesquisa de Márcia Moisés Ribeiro (2005) sobre o
cirurgião José Antônio Mendes e sua obra (1997) sobre a arte médica no Brasil colonial do
século XVIII serão essenciais para traçar os paralelos entre os cirurgiões coloniais.
Tendo como base estes princípios teóricos sobre a atuação dos cirurgiões na região de
Minas Gerais no século XVIII, que torna evidente a necessidade se propor uma análise que
possibilite o aprofundamento em como estes indivíduos agiram e reagiram em relação as
especificidades e necessidades da região mineira com base nos seus limites teóricos e
práticos. Com este objetivo será realizado contextualização do espaço territorial e social de
Minas Gerais durante este período no primeiro capítulo
O segundo capítulo será pautado na análise da fonte histórica para a compreensão de
quais saberes e práticas os cirurgiões realizaram e desenvolveram ao longo de sua estadia na
colônia. Estes aspectos serviram como justificativa perante a sociedade para a obtenção da
credibilidade dos colonos e para os eruditos na área da medicina serviram como um
argumento de que seu oficio era válido e que poderiam adentrar nos debates médicos e
desenvolverem novos conhecimentos embora não possuíssem os estudos maiores em
Medicina.
Por fim, o terceiro capítulo será dedicado à compreensão da hierarquia social
portuguesa de modo a compreender qual era o lugar do cirurgião dentro desta organização
social no reino e posteriormente na colônia, além de explanar qual foi o espaço hierárquico
ocupado pelos indivíduos com os quais os cirurgiões se relacionaram através de seu oficio.
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Este aspecto é imprescindível para compreender como cirurgiões como Luís Gomes Ferreira
obtiveram tanto reconhecimento na região de Minas Gerais e como isto foi fundamental para
que este se ascendesse socialmente, acumulasse riquezas e constituindo redes de sociabilidade
com indivíduos importantes dentro da sociedade mineira. Para tal fim, será utilizada a fonte
histórica para a realização da análise dos elementos relacionados à hierarquia destes
indivíduos.
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1- A sociedade mineira na América Portuguesa

Durante o século XVIII a América Portuguesa apresentou um descomunal fluxo


populacional em direção ao interior do território, Tal movimentação constitui-se por colonos e
reinóis que visavam povoar e explorar a região onde haviam sido descoberto ouro em meados
da última década do século XVII.
Estes indivíduos seguindo uma rota ao longo do rio São Francisco rumaram para
praticar a mineração em busca do enriquecimento pessoal e criou os primeiros povoamentos
portugueses na região que passaria a ser conhecida como Minas do Ouro ou Minas das Gerais.
Conforme a exploração de mineradora se desenvolveu na região, aglutinaram-se pessoas que
visavam enriquecer por meio da mineração, em conjunto a estes foi surgindo paralelamente
povoados que eram voltados a venda de seus serviços para os mineradores que necessitavam
de diversos produtos para exercer sua atividade e para sua subsistência.
Ao longo do século XVIII, entre intervalos de tempo relativamente curtos foi-se
moldando a sociedade mineira, Dentro deste ritmo de constantes mudanças, as Minas da
Gerais foi se desenvolvendo de uma forma singular em comparação a outras regiões da
colônia, de tal forma que as práticas nesta província de certos ofícios tiveram de se adaptar as
especificidades e dificuldades que o território fornecia, associado a este aspecto também
houve uma adaptação por parte da lógica administrativa desta região para gerir este território.

As Minas Gerais setecentista é espaço histórico que ajusta à regulação de uma


sociedade de Antigo Regime, onde uma ordem social “natural” hierarquiza as
pessoas, de acordo com a qualidade de seu nascimento, a quantidade de seu cabedal,
o trabalho que caleja (ou não) suas mãos. Ela é parte distinta da Metrópole, embora
portuguesa em essência, integrada a um império transcontinental que a coloca em
contanto com o mundo, a despeito de sua interioridade de sertão. Mas se há
integração a esse mundo metropolitano e europeu, há, por outro lado, um espectro de
distinções que fazem da história desse espaço do interior americano um fértil campo
de contradições e diferenças. (MENESES, 2007,p .378.)
Em vista disso a região mineira durante o século XVIII vai ser marcada por esta
característica de um esforço a aplicação das normas sociais e administrativas metropolitanas,
porém como será observado ao longo desta pesquisa às especificidades que surgem neste
contexto histórico acabaram por flexibilizar estas normas e permitir um desenvolvimento
singular de características únicas de aspectos da sociedade, o que por fim apresentou-se como
uma oportunidade para indivíduos de extratos sociais elevados ou baixos de uma ascensão
econômica e em alguns casos uma ascensão social.
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É justamente devido a estas especificidades que se faz necessário apresentar o


contexto histórico e explicar quando possível os desdobramentos da formação social, política
ou econômica no qual está inserido o objeto de pesquisa. A partir desta premissa será
trabalhado, portanto, a formação dos povoamentos, locais por excelência onde os cirurgiões
exerceram seu ofício.

1.1 – Formação histórica, política e social dos povoamentos mineiros.

Como citado anteriormente, a formação dos primeiros povoamentos decorreu dos


acampamentos realizados pelos pioneiros na busca pelas pedras preciosas ao longo da rota
que seguia o rio São Francisco (DIAS, 2002, p.45), Alguns dos povoados que foram
construídos ao longo deste caminho foram criados em alguns casos a partir de
empreendimentos privados, o que levou a grandes concentrações de terras e a liderança de
povoados a pertencerem a poucas pessoas e a seus descendentes (DIAS, 2002, p.47).
Os criadores destes povoados ao longo do século XVIII responsáveis por guiar certos
elementos econômicos e populacionais do território, mas não seriam os responsáveis
administrativos da região nas primeiras décadas deste período. A administração do território
era responsabilidade do corpo administrativo das câmaras municipais e ficavam sob o
controle de homens “leais” selecionados pela Coroa portuguesa e eram preferencialmente
membros letrados e pertencentes a alguma organização militar reconhecida pela metrópole.
Esta escolha se pautava na visão do rei de que estes territórios novos precisavam de
indivíduos capazes de estabelecer a ordem e de garantir o pagamento do direito ao quinto do
ouro coletado na colônia através das ordens régias.
A ordem administrativa a nível regional das Minas das Gerais era, portanto dividida
principalmente, em primeira instância pelas Câmaras municipais, responsáveis pelo poder
executivo, legislativo e judiciário das vilas, em conjunto a estes com o objetivo do controle da
ordem e aplicação da lei havia os sargentos-mores e os capitães-mores indicados pelas
Câmaras e posto em exercício pelo Governador da Capitania. Havia também o cargo de
ouvidor que era responsável pelo judiciário em segunda instância, havia sido criado em
específico para a região da Minas Gerais o cargo de superintendente das terras e aguas
minerais que seria responsável por evitar os conflitos por terras que eram comum a esta época
e por fim havia o cargo de Governador que na hierarquia regional era o cargo mais elevado e
responsável pela capitania como um todo (ROMEIRO, 2013, p.17-20)
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Em relação aos fundadores e os grandes proprietários de terra em decorrência de suas


atividades serem detentores dos maiores pedaços de terra na região da mineração e como
consequência de seus status sociais os levar a possuir uma quantidade significativa de cativos
e também por possuírem já riquezas à priori,, possuíam portanto a força de trabalho e as
condições para praticarem a mineração amplamente, o que acarretou que estes se destacarem
neste processo e acumulação de ainda mais ainda mais riquezas.
Porém houve neste mesmo período a criação de outro tipo de povoado não ligado
diretamente à mineração, mas com o objetivo de adquirirem lucro abastecendo os outros
povoamentos, pois os povoados dedicados a mineração sofriam com certas adversidades:

De inicio, os recém-chegados foram ameaçados por aguda falta de gêneros


alimentícios e por muitos conflitos, acirrados pelo repentino conglomerado de
adventícios, assim como pela destruição imprevidente dos recursos de caça e de
pesca. Não seria por certo uma crise de fome tão desesperado quanto as ocorridas
entre 1698 e 1705, descritas por Antonil, mas ainda assim bastante incômoda para
causar, em 1709, uma verdadeira paralisação dos negócios nas Gerais, no rio das
Velhas e na Comarca do Rio das Mortes. estes povoados se dedicaram
principalmente na criação de gado para atender as necessidades alimentícias básicas
dos colonos.(DIAS, 2002, p. 46).

Então nota-se neste contexto histórico que o comércio alimentício na região das Minas
alcançou lucros elevados, pela escassez de recursos alimentícios no território e a elevação
exorbitante no preço destes artigos (ROMEIRO, 2013). Isto ocasionou que as diretrizes dos
povoados responsáveis pela produção de alimentos para a subsistência de outras vilas
dedicassem principalmente na criação de gado, por outro lado, uma consequência desta
escassez de recursos alimentícios acessíveis às populações sem condições financeiras para
obter estes produtos, levou a um aumento na população que não se alimentava
adequadamente, o que viria a contribuir para o aumento na mortalidade e na dificuldade no
tratamento de certas enfermidades(FERREIRA, 2002, p.279). O problema alimentar das
Minas se agravou com a constante migração e imigração de colonos e reinóis portugueses que
se deslocaram para esta região em busca de enriquecimento.
Este fluxo de entrada de indivíduos no território sem planejamento levou a exaustão
dos poucos recursos que os povoados possuíam. Contribuindo a este problema houve a
questão de que muitos colonos acabaram enfermos e morreram pelo caminho do Rio são
Fransisco vários dos que foram acometidos pelas enfermidades acabaram dependendo da
solidariedade de outros colonos e sujeitos aos poucos práticos da arte curar presentes na
região (DIAS, 2002, p.45).
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Constituía-se também como elemento da formação dos povoados, os conflitos e


consequentemente uma campanha de extermínio contra os indígenas, isto decorria do ponto
de vista dos portugueses porque seria a única forma de adentrar os territórios pertencentes a
estes povos e também a única forma de evitar represálias, entretanto certos sobreviventes
foram utilizados em um primeiro momento também como uma mão de obra barata para se
trabalhar nos garimpos ou para servir como guias capazes de ensinar certos elementos que
facilitavam a vivência no interior da colônia (DIAS, 2002 p.47), entre estes se encontrava a
identificação de raízes, plantas e outros produtos de origem vegetal e às vezes de origem
animal que poderiam ser usados no tratamento de enfermidades e feridas.
Uma característica que marcou o processo de formação administrativa das Minas no
século XVIII foi as constantes disputas políticas e por territórios em todas as esferas da
sociedade. De forma mais marcante se encontrava os debates em torno da administração dos
territórios destinados a mineração. Em decorrência da importância que havia em conseguir a
permissão para o garimpo em terrenos mais suscetíveis a descoberta e mineração do ouro.
A administração colonial visava interferir o mínimo necessário nestas disputas,
visando regular somente os aspectos essenciais para que a região continuasse funcionando em
favor da metrópole. Isto é destacado devido à administração das Minas seguir um modelo
singular causado pelas especificidades tanto da América portuguesa como pelo contexto
histórico de Portugal. Por tanto de acordo com Fernando Borges Moraes:

A presença do Estado era mínima, mesmo porque à Coroa interessava uma


economia de gastos com a máquina administrativa. No entanto quando se
ampliavam as possibilidades de maior lucro e rentabilidade, o movimento se diria no
sentir de maior centralização político-administrativa, o que resultava, na maioria das
vezes, na restrição dos direitos e privilégios concedidos (MORAES, 2007, p.61).

Um evento que reflete esta afirmação se encontra no século XVII que é a própria
intervenção do rei de Portugal que nomeia em um primeiro momento capitania do Rio de
Janeiro como responsável pela administração das Minas e pelo recolhimento do quinto do
ouro e fiscalização de um novo caminho que ligaria a região a capitania do Rio de Janeiro e
assegurar o desuso do “velho” caminho do Rio São Fransisco. a fim de evitar a evasão
daqueles que visavam se “esquivar” da tributação. Entretanto esta escolha foi feita em
detrimento das capitanias de Bahia e Pernambuco que estavam sob a administração direta do
governador-geral, de acordo com Renger é possível através desta situação notar as seguintes
condições:
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A disputa entre o governador Artur de Sá e Menezes e o governador-geral do Brasil,


d. João de Lencastre, em torno da jurisdição sobre a região das Minas, ilustra bem a
fluidez da hierarquia entre cargos da administração colonial, em principio de níveis
diferenciados... Deixa entrever também a preocupação dos administradores coloniais
com honrarias e vantagens pecuniárias que poderiam resultar de suas atuações.
(RENGER, 2007, p.134).

A fluidez e a busca pelas honrarias e vantagens pecuniárias não ficariam reservadas


aos grandes cargos administrativos, mas perpassavam todas as esferas administrativas e se
encontravam fortemente presentes na região das Minas. Porém para aqueles fora da esfera
política à disputa por privilégios, riquezas e favores acabaram resultando ou eram resultados
de conflitos violentos, que eram agravados pela falta de recursos de vários povoamentos.
É notado através das fontes históricas deste período, e do próprio Erário mineral
(1735) que virá a ser utilizado nos capítulos posteriores, que esta disputa em busca de favores
e a flexibilidade que existe nas hierarquias sociais na colônia desencadeou em uma categoria
que viria ser denominada por alguns historiadores como os “homens bons” que constituíam
justamente dos colonos que embora não detivessem raízes nobres buscavam se aproximar
desta camada se enriquecendo através do exercício de atividades letradas, principalmente
através da administração do Estado (MESGRAVIS, 1983). Estes homens acabaram sendo
fundamentais para a organização política e social dentro dos povoados e centrais para a
construção e consolidação das redes de sociabilidade entre outros elementos presentes nesta
região da colônia como, por exemplo, os cirurgiões ao qual veremos ao decorrer desta análise.
Com o advento da década de 1710 havia sido estabelecido na região três grandes
comarcas: o Rio das Velhas, o Rio dos Mortos e Ouro preto (ROMEIRO, 2013, p.18), todas
estas acabaram sendo centrais no andamento da mineração e também de servirem como uma
forma de reunir as diversas freguesias criadas, com o objetivo de ajudar o abastecimento e
outras trocas comerciais além de garantir a segurança dos povoados que constantemente
entravam em conflitos contra os povos indígenas da região .O começo do século XVIII
também foi marcado por uma disputa entre colonos e reinóis principalmente por estes últimos
se destacarem com a presença em cargos públicos e responsáveis pela tributação do ouro e
fiscalização.
Esta violência e ódio aos reinóis complicaram os ofícios destes portugueses,
principalmente por que o exercício do oficio dos mesmos acabava implicando em
desvantagens para certos mineradores em detrimentos de outros. Isto chegou a ocasionar
episódios onde funcionários régios acabaram sendo mortos ou exilados.
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Este descontentamento entre reinóis e colonos se desenrolou e se tornou o confronto


armado conhecido como “Guerra dos emboabas”, que tornou um empecilho para os
portugueses que almejavam migrar para as minas coloniais. Entretanto este conflito não se
tornou tão generalizado ao ponto de que existiram reinóis e colonos que possuíam relações
independentes deste conflito armado como, por exemplo, o cirurgião Luís Gomes Ferreira
(DIAS, 2002, p.50) que continuou a entender neste período, colonos, emboabas e reinóis sem
discriminação e sem tomar um lado nesta “guerra”.
Fazia-se parte das responsabilidades régias com esta região a manutenção dos
caminhos para o sertão mineiro e o apoio na construção de igrejas e capelas já que para os
portugueses a vida religiosa possuía uma significativa importância e fazia parte da vida e da
esfera pública. De tal forma que era se pedido muitas vezes a funcionários régios de posição
elevadas ou ao próprio rei subsidio para a construção ou manutenção destes templos. Estas
responsabilidades públicas eram vantajosas para ambos os lados, já que os colonos garantiam
uma forma de se locomover “seguramente” para o interior da colônia e também encontravam
um apoio para o exercício de sua crença religiosa e por outro lado a Coroa portuguesa
conseguia através das estradas reais garantirem a transportação do ouro pertencente a Coroa
até a capitania do Rio de Janeiro onde seriam então transportados para Portugal.
Já a criação dos das igrejas e capelas era uma forma de controle de apaziguar os
ânimos dos colonos neste sertão já que como havia se citado anteriormente, os conflitos
violentos entre colonos nesta região era significativo. Então a vida religiosa seria uma forma
de propiciar uma tentativa de unificar os colonos em prol do objetivo almejado tanto para
América portuguesa como para a Metrópole, que era a busca e extração do ouro.
A mineração neste contexto guia a vida dos indivíduos de tal maneira que é notável
nas fontes e nas bibliografias a respeito deste tema o fluxo de pessoas entre um povoamento e
uma região ao qual se descobrira riquezas minerais. Isto fazia com que povoamentos já
formados fossem esvaziados de forma desorganizada e desplanejada o que acabava
desvalorizando economicamente o povoado ao qual se estava deixando para trás, onde os
imóveis acabavam sendo vendidas por valores inexpressivos. Isto justifica a concentração de
povoados que surge no século XVIII ao sul da região das Minas quando se finaliza a
construção “do novo caminho” que ligava a região ao rio de Janeiro (DIAS, 2002, p.42).
Estes aspectos históricos, políticos e sociais foram em parte resultado da composição
social que foi se aglutinando na região e posteriormente acabaram por moldar cada vez mais
esta composição, de modo que se tornou inviável falar de uma categoria de indivíduos
presentes neste território sem fazer um exercício de olhar a composição social como um todo.
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1.2 Composição social mineira do século XVIII

A sociedade mineira desde sua fundação com os primeiros povoados foi sofrendo
alterações importantes que impactaram sua composição ao longo do século XVIII, a razão
para isto não pode ser dissociada do processo de mineração que foi o foco primordial da
população neste contexto histórico.
Como estabelecido anteriormente as primeiras frentes de povoamentos foram
formadas pelos colonos e imigrantes portugueses que se puseram a explorar o sertão, porém
esta camada não se encontrava separada, para o sucesso destas expedições foram se utilizados
o serviços de indígenas “mansos” carijós, embora nem todos pertencentes ao tronco étnico
dos carijós, eram denominados assim pela ignorância e desleixo dos colonos com as etnias
destes povos (DIAS, 2002 p.53).
O uso destes indígenas foi primordial principalmente para o auxilio das práticas
medicinais e também criação de remédios, que acabou contribuindo para a manutenção dos
colonos que constantemente eram afetados pelas enfermidades devidos as condições
insalubres de suas expedições e dos primeiros povoamentos. Porém a importância dos
indígenas assim como sua presença no meio da sociedade mineira foi se esvaindo conforme
os povoamentos iam se consolidando na região.
Entre os conhecimentos obtidos através deste “convívio” com indígenas foi o
aprendizado de raízes com propriedades medicinais, que poderiam ser utilizadas no
tratamento de enfermidades e na fabricação de remédios para o comércio com a metrópole,
também havia o conhecimento obtido através de ordens religiosas que haviam estado em
contato com estas populações nativas e que também divulgaram o conhecimento obtido neste
convívio para os colonos.
Neste contexto histórico surge uma nova categoria de indivíduos nessa região que
seria responsável por impulsionar a mineração, que foram os escravos de origens africanas ou
afrodescendentes. O início do século XVIII, esses foram deslocados da Capitania da Bahia e
Pernambuco pelo “caminho velho” que seguia o rio São Francisco. Sob o serviço de grandes
proprietários de terras e minas estes indivíduos massificaram a extração dos minérios de tal
forma que começou a ser prejudicial para economia europeia além de dificultar a tributação e
fiscalização desta grande quantidade de ouro e pedras preciosas movimentadas pela colônia.
Na realidade a aquisição de novos escravos era uma prática comum aos grandes
proprietários de terra, já que devido às condições insalubres das minas, estes morriam e
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necessitavam ser repostos frequentemente. Por outro lado, o comércio da venda dos escravos
era visivelmente forte e dificilmente se encerraria pela constante necessidade desta força de
trabalho. Portanto as Minas das Gerais se mostrou uma oportunidade fértil para o comércio de
escravos que ao longo do XVIII passara a utilizar de escravos trazidos através do “novo
caminho” que partida da capitania do Rio de Janeiro.
Este comércio vai ocasionar em uma desigualdade intensa do ponto de vista da
composição social, com uma presença massiva de escravos em detrimento de uma pequena
parcela de colonos e reinóis. Como apresentado por Maria Odila Leite da Silva Dias (2002).

Em 1711, Antonil estimou a população das Gerais em cerca de 30 mil homens


brancos, cifra que passaria em 1736 a cerca de 80 mil. Os brancos, entretanto,
figuravam como uma minoria na vasta e cresce população trazida pelo tráfico de
escravos e que em 1736 já era estimada em torno de 160 mil (DIAS,2002,p. 49).

Esta composição social mineira impactaria profundamente a economia da região já


que este número expressivo de escravos resultava em cada vez mais resultados na extração do
ouro e consequentemente o enriquecimento de seus proprietários. Então neste contexto
histórico-espacial, possuir escravos acaba sendo fundamental para o sucesso da mineração
empreendida pelos colonos. Apesar disso como será observada posteriormente com a análise
do Erário Mineral, a manutenção dos escravos também significava neste contexto uma parte
importante da administração dos proprietários de Minas já que o tratamento da saúde dos
escravos se constituiu como uma alternativa a simples aquisição de novos escravos, além de
ser em muitos casos viável por as vezes possuir um custo inferior ao preço de compra de um,
fazendo com que os proprietários destes, gastassem parte de sua riqueza em remédios e
cirurgiões, portanto estes senhores de escravos se tornaram os principais consumidores dos
serviços ofertados pelos cirurgiões e curandeiros.
No que se refere às mulheres escravizadas neste contexto histórico-espacial, pode-se
notar que suas funções geralmente estavam ligadas a manutenção do lar de seus proprietários.
Em alguns casos, viria a se tornar comum América portuguesa as relações sexuais
estabelecidos pelos colonos com escravas e alforriadas e na constituição de famílias com
estas. Posteriormente, essa prática viria a se tornar uma situação que atrairia a atenção da
igreja Católica devido à condição de concubinato ser proibido em todo território sob a
autoridade da coroa portuguesa.
Sobre a população branca, composta pelos reinóis e colonos, é necessário
compreender que estes possuíam divisões internas herdadas do reino de Portugal, importantes
de ser esclarecidas pela sua relevância econômica e social para a região. Para compreender
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esta hierarquia é necessário entender que o principal fator que separava os indivíduos era o
tipo de oficio que ele exercia na sociedade, possuindo os ofícios mecânicos associados à plebe
e os exercícios intelectuais associados a uma nobreza política, devido à ausência de
significativas nobrezas de sangue no território, os ofícios intelectuais foram atribuídos aos
“homens bons” que faziam parte deste modelo de nobreza difundido na colônia, uma vez que
possuíam uma formação mínima de letramento e a renda para exerceram cargos pública o que
garantia sua distinção dos demais profissionais na colônia.
Considerando que a América portuguesa estava ligada ao modelo social português que
seguia a lógica do Antigo Regime, é compreensível que estes “homens bons” procurassem
distinguir visivelmente dos ademais colonos através de suas vestimentas, posses entre outros
atos públicos que destacasse sua distinção.

Esse caráter público do cerimonial, principalmente do juramento, denota a


preocupação com o ritual de compromisso com o bem comum, típico das sociedades
do Antigo Regime, onde ser algo ou ter algo não era suficiente para o indivíduo se
identificar ou demonstrar sua capacidade de inserção na sociedade. Era necessário,
além disso, a demonstração pública em ato que ritualizasse o ser ou o ter.
(MENESES,2007, p.384).

Por outro lado havia os trabalhadores mecânicos responsáveis pelos serviços e comércios que
não poderiam ser realizados nem pelos escravos, nem pelos “nobres da terra”, tais como
“tocar gado”, comércio, barbearia e etc. Estes indivíduos tinham suas práticas regulamentas
pelas câmaras municipais que visavam monitorar e garantir que estes indivíduos garantissem
o abastecimento de seus produtos ou serviços para os povoados e evitar cobrar preços
exacerbados que os tornassem inacessíveis para os colonos (ROMEIRO, 2013. p.22). Da
mesma forma era responsabilidade da Câmara Municipal garantir a competência destes
profissionais mecânicos através de testes de proficiências e além de toda uma ritualística
pública para afirmar o lugar deste individuo no meio social. Logo abaixo na hierarquia social
se encontravam aqueles colonos que não possuíam uma atividade fixa ou uma atividade que
fosse bem vista ou importante socialmente.
E Além destas camadas, se encontram os indivíduos que possuíam uma flexibilidade
nesta estrutura hierárquica, tais indivíduos acabaram, portanto sem um local fixo ou modo de
atuação na colônia. Uma categoria bem definida desta camada presente na região das Minas
foram os cirurgiões, isto é causado pelo exercício da cirurgia ser um oficio que embora seja
mecânico possui uma importância tão fundamental para a sociedade de modo que já existia
19

certa flexibilidade hierárquica com os cirurgiões na própria Metrópole no final do século


XVII (RIBEIRO, 2005. P.66)
Na Colônia com a ausência de médicos bacharéis em boa parte dos territórios
contribuiu para a elevação do status social dos cirurgiões perante a sociedade, principalmente
no século XVIII na região das Minas (WITTER, 2005, p.14). As condições naturais do
território além de uma fauna e flora pouco conhecida pelos colonos associado a criação de
povoamentos desprovidos de uma quantidade significativa de abastecimento alimentar, as
condições insalubres do garimpo e o clima região contribuíram para um crescimento no
número de enfermos tão alarmantes que o cirurgião Luís Gomes Ferreira em sua obra Erário
Mineral(1735) relata diversas vezes em suas passagens que havia constantemente óbitos
decorrentes de enfermidades diversas entre os colonos e ainda maior seria o número de
fatalidades entre os escravos da região.
Como a sociedade colonial que se encontrava desesperada por acesso a alguma forma
de conhecimento médico, o emprego de boticários, cirurgiões, curandeiros e parteiras era
essencial para os cuidados da saúde dos colonos. Por esta razão, para a sociedade, o que mais
importava não eram as hierarquias presentes entre as medicinas já que estas só impactavam o
campo teórico da ciência médica e cirúrgica. A única preocupação social em relação aos
curandeiros e aos cirurgiões era se seriam os capazes de tratar dos enfermos e feridos.
Partindo deste aspecto que se difundiu entre os cirurgiões a importância de tornar
público e de executar de forma artística o seu ofício de forma a ganhar uma credibilidade
perante a população. É possível notar, com efeito, este aspecto através de tratados escritos por
cirurgiões no século XVIII que tiveram exercendo seu oficio na América portuguesa, o
reconhecimento de seu oficio nas colônias se demonstraram que sua prática havia sido aceita
por aquela sociedade e garantiu a eles um reconhecimento social por parte das autoridades
administrativas coloniais (RIBEIRO, 2005, p.69).
Não apenas este detalhe é importante para compreender esta categoria social, como
também para perceber que estes cirurgiões que se constituíram como trabalhadores mecânicos
também passariam a adquirir um prestígio que os aproximava as camadas mais altas da
hierarquia social da colônia. Tal aspecto se torna possível principalmente como consequência
o grande problema para os grandes proprietários de terras e de escravos que era justamente a
manutenção da saúde destes, evitando assim a perda de mão de obra que consequentemente
acarretava na perpetuação dos lucros obtidos por estes “homens bons” e também por
atenderem a necessidade por parte da administração do território de indivíduos capazes de
atender as necessidades médicas por parte da população de forma mais generalizada.
20

A ligação entre os cirurgiões e estes indivíduos se estreitou de tal forma, que como
observado no tratado XII do Erário Mineral, o autor define estes indivíduos como seus
“amigos” e constantemente estes forneciam favores para este cirurgião, por exemplo,
hospedagem quando de passagem. Além de admitir que parte do conhecimento descrito neste
capítulo fosse dedicada a estes, justificando que perdiam muito de sua economia com
remédios e tratamentos para seus escravos.
Neste contexto vemos as redes de sociabilidade entre um trabalhador mecânico e um
trabalhador enobrecido envolvendo uma propriedade (o escravo) cuja relação acaba por
beneficiar ambos os lados permitindo o enriquecimento e um prestígio social a ambos os
indivíduos. É assim justificável outro aspecto que concede aos cirurgiões uma flexibilidade na
hierarquia social da colônia, garantindo sua ascensão econômica nas Minas do Ouro, de tal
forma que passam a comprar e possuir artigos dificilmente obtidos por aqueles com uma
baixa renda econômica (DIAS, 2002, p.52).
Por fim, o que resta a se falar sobre esta categoria tão fluida referente a este tópico é
que seu próprio ofício na região das Minas exigia que estivessem em constante movimento
pelos povoados mineiros, já que o número de pacientes era significativo e a presença de
enfermos estava sempre garantida. Isto permitia aos cirurgiões construindo laços fortes com
diversas figuras importantes na região mineira de tal forma que nota-se nas ações de Luís
Gomes Ferreira uma preferência ao “caminho velho do Rio São Fransisco” justamente pelos
laços que ali construiu ao longo dos anos (DIAS, 2002, p.47).
Portanto nota-se como está intrínseco nas relações sociais da sociedade mineira as
especificidades desta região, e como citado anteriormente, para compreendermos os
cirurgiões nas minas coloniais temos que compreender, o contexto do espaço ao qual atuaram
e as relações que possuíam com quem tratavam e que tipos de práticas tiveram, apenas através
da interpretação do contexto histórico-espacial da sociedade mineira que podemos analisar e
responder estas questões e chegar uma compreensão aprofundada sobre esta categoria de
indivíduos.
21

2. Saberes e espaços de atuação dos cirurgiões nas Minas Coloniais

O posicionamento político religioso português de preservar uma perspectiva científica


medieval de matriz aristotélica afetou o desenvolvimento das ciências em relação a outros
reinos europeus e serviu como um dos sustentáculos para o modelo social hierárquico
corporativo moderno. A América portuguesa arcou com as consequências desse descompasso
científico e seus habitantes tiveram que utilizar todos os recursos e diletantes disponíveis para
ajudar a manter a população saudável. Essa permissividade observada na América representou
para os trabalhadores “mecânicos” da arte de curar uma oportunidade de ascensão econômica
e social, a economia mineradora aprofundou ainda mais essa condição. Alguns destes
diletantes acabaram alcançando seus objetivos pela importância que obtiveram e retornaram
ao reino. A divulgação dos seus conhecimentos e a tentativa de participar dos debates teóricos
justificando a validade de seus conhecimentos acabou por afetar e moldar a difusão do
conhecimento médico em Portugal a partir do século XIX e consequentemente no Brasil no
decorrer do mesmo século. Isto demonstra como a medicina popular serviu para auxiliar no
desenvolvimento para a própria medicina acadêmica.

É neste contexto que os cirurgiões de formação, ao adentrarem o território colonial


da América portuguesa se depararam com um cenário que exigia mais do que haviam
aprendido na Metrópole, sendo assim grande parte do conhecimento teórico e prático que
obtiverem em sua formação se encontravam inutilizáveis neste contexto, principalmente nas
regiões das Minas onde os índices de insalubridade eram elevados. Por isso a experiência e o
desenvolvimento de novos saberes era indispensável para os cuidados com os enfermos na
colônia e em decorrência deste processo as práticas dos cirurgiões vão sendo moldadas a
partir destes novos saberes, da sua requisição pelos colonos e pelas necessidades da colônia.
Assim, estes profissionais da saúde em específico vão utilizar especificidades da região de
Minas Gerais, da sua flora e habitantes, para desenvolver novas formas de tratamentos,
remédios novos ou outros que serviam para substituir algum já existente. Apresentaremos ao
longo do capítulo o desenvolvimento dos saberes e práticas dos cirurgiões para notar que suas
ações na colônia o levaram a se tornarem bem sucedidos onde muitos destes indivíduos
alcançaram a riqueza e prestigio em decorrência de sua atuação.
22

2.1 Erário Mineral e Luís Gomes Ferreira

Como citado no capítulo anterior, a fonte histórica selecionada para a realização deste
trabalho foi o Erário Mineral, uma obra publicada pela primeira vez em Lisboa no ano de
1735 sob autoria de Luís Gomes Ferreira, um cirurgião que havia atuado na colônia entre as
décadas de 1710 à 1730 na região de Minas Gerais e Salvador. Tal livro se tratava de um
compilado de tratados escritos pelo autor relacionados a enfermidades básicas desta região da
colônia e as curas que julgava mais eficiente para o tratamento destas (FURTADO,2002, p.6).
A obra foi dividida em 12 tratados que possuíam como temáticas enfermidades ou
remédios ao qual o autor julgou ser indispensável para seu público-alvo, por sua vez os
tratados eram compostos de diversos capítulos ao qual o autor procurou se desdobrar sobre as
especificidades do tema abordado. A versão desta obra utilizada aqui é o fac-símile
organizado por Júnia Ferreira Furtado e publicado em 2002, contendo textos introdutórios que
permitem uma melhor compreensão sobre a escrita de Luís Gomes Ferreira, como também o
próprio Erário Mineral.
A obra é escrita a partir das experiências do autor nos seus anos na colônia, então de
forma generalizada os tratados são escritos seguindo uma estrutura onde o autor apresenta a
enfermidade ao qual pretende se dedicar, indicando neste momento os sintomas mais comuns
desta doença e em seguida apresenta o tratamento para se curar a doença e por fim para dar
certo senso de legitimidade ao qual escreveu até aquele momento o autor apresenta um caso
onde seu tratamento obteve êxito ou às vezes casos aonde algum paciente veio a falecer por
não seguir seu tratamento.
Por outro lado, os tratados dedicados aos remédios seguem uma estrutura própria
onde o autor apresenta o remédio em si, sua composição e às vezes esclarecendo certas
especificidades de algum componente ou apresentando variações de um mesmo remédio ou
ingrediente e por fim para quais enfermidades o uso de tais remédios era indicado, embora
possa ser indagada a veracidade de certas histórias e façanhas presente durante a obra é
possível notar que muitos dos elementos abordados pelo autor condizem com aspectos já
aceitos na historiografia da temática.
Em sua obra é possível notar que Luís Gomes Ferreira arrola uma quantidade
significativa de informações sobre não apenas suas práticas e seu ofício como também
descrevem elementos fundamentais da sociedade mineira colonial, por exemplo, a
apresentação às condições das minas, alimentação dos cativos (e dos colonos), entre outros
23

aspectos da rotina do indivíduo que poderia ocasionar no desenvolvimento de uma


enfermidade.
É importante compreender que para esta pesquisa, o valor da obra de Luís Gomes
Ferreira ocorre principalmente por ser um cirurgião formado na metrópole, (WISSENBACH,
2002, p.108), portanto detentor de um saber em relação ao funcionamento do corpo humano
mais sistematizado do que outros praticantes da “arte de curar” (práticas ligadas ao tratamento
de enfermidades e feridas independentemente de serem reconhecidas ou não como uma forma
de medicina). Outro detalhe interessante é a compreensão de que o Erário Mineral não é uma
obra isolada em seu tempo já que no século XVII e principalmente no XVIII no império
português ocorreu a publicação de diversos tratados referentes às enfermidades e suas curas
direcionados aos letrados que não possuíam condições de contar com o auxílio médico ou
cirúrgico principalmente na América portuguesa (WISSENBACH, 2002, p.114).
Para tentar dar credibilidade a sua obra frente às autoridades e leigos do assunto e
comercializar seus conhecimentos adquiridos na colônia, cirurgiões como Luís Gomes
Ferreira dedicaram partes de suas obras para defender a validade do conhecimento
apresentado tentando buscar aceitação pela população, como observado no Erário Mineral
logo no Tratado I. A recepção da obra de forma diferente na metrópole e na colônia
demonstra que havia certo desinteresse em Portugal por discussões em torno da medicina
tropical, em razão do Erário Mineral abordar enfermidades comuns à colônia e também
devido à teoria e metodologia utilizada por Luís Gomes como defendido por Furtado:

Tratava-se de conselhos práticos, pertinentes a uma medicina caseira, baseada ainda


na doutrina galênica que vinha sendo questionada pela ciência médica, que
procurava se estruturar em bases cada vez mais racionais. É importante ressaltar que,
apesar de ainda compartilhar de uma visão da medicina baseada na teoria dos
humores, Luís Gomes Ferreira insurgia-se contra o uso indiscriminado das sangrias,
seu principal método terapêutico (EM, v.1, p.279). Outra questão a se destacar foi a
ênfase na experiência prática observável como fio condutor do saber. (FURTADO,
2002, p. 26).

É necessário compreender que o Luís Gomes Ferreira não era contra a p´ratica contra a
sangria enquanto método valido para a realização de tratamentos, apenas que era necessário
tomar cuidado sobre quando e como tal prática deveria ser realizada, pois via que a má
alimentação tanto dos colonos quanto dos cativos fazia com que não fossem capazes de
suportar constantes sangramentos. Portanto a consequência desta e outras práticas já
consolidadas sem o devido cuidado poderia agravar a condição dos pacientes, então aqui neste
trecho já é apresentado uma característica que os cirurgiões tiveram de adotar para seu
24

exercício na colônia, que era a capacidade de adaptação de suas práticas já que o clima e os
indivíduos que eram distintos do que se tinha em Portugal.
É possível notar semelhanças entre o Erário Mineral com as outras obras publicadas
neste mesmo período dentro desta temática. (WISSENBACH, 2002, p.115) Sendo assim é
possível notar semelhanças entre os cirurgiões que atuaram na América portuguesa na
primeira metade do século XVIII por disporem de uma formação com conhecimentos teóricos
e práticos sistematizados e uniformizados através do Hospital Real de Todos os Santos e
também por apresentarem trajetórias similares em suas atuações no território brasileiro.
Portanto é possível utilizar Luís Gomes Ferreira, seus conhecimentos e trajetória como um
paradigma para compreender a atuação não apenas dele, mas também de outros cirurgiões na
região das minas coloniais.
Com o objetivo de circunstanciar o objeto da pesquisa escolhemos os tratados I, V e
XII para ser analisados de forma aprofundada neste capítulo. A seleção destes trechos da obra
se deu através da percepção de que estes tratados possuíam aspectos chaves que serão
abordados nesta parte da pesquisa. Um dos elementos seria uma compreensão das teorias
acadêmicas que guiaram o ofício do cirurgião em sua estadia na colônia e que também
permitiram a defesa de sua obra perante os médicos de formação. Tal aspecto se encontra de
forma abrangente no tratado I onde aborda a enfermidade conhecida como “pontadas”, mas
também faz uma introdução a sua obra de forma generalizada onde é possível captar
indicações que colaborem para uma interpretação dos saberes teóricos que o cirurgião
possuía. O tratado V foi selecionado por apresentar ao longo de seus capítulos a descrição de
um remédio “milagroso” descoberto pelo autor e cujo mesmo fabricava e vendia,
demonstrando algo que embora já esteja amplamente disseminado ainda se faz importante
ressaltar ao analisar tal temática que é o fato de os cirurgiões na colônia realizarem funções
que se encontravam fora de sua formação como a criação e venda de remédios como também
funções normalmente realizadas pelos médicos bacharéis.
Outro aspecto em destaque neste mesmo capítulo se encontra na justificativa do autor
em sua proposta do remédio onde fica clara a presença de certas concepções comumente
encontradas no reino de Portugal desde o século XVI. Por fim, a relevância do tratado XII se
encontra no fato de apresentar um aspecto importante que é a obtenção de saberes tanto de
práticas médicas, cirúrgicas ou “farmacêuticas” através de outros indivíduos com experiência
na colônia e também por apresentar a “visão” do autor sobre a importância de sua obra, além
da justificativa que levou a fazê-la.
25

2.2 Os Saberes dos cirurgiões coloniais

Os saberes medicinais na colônia decorriam principalmente da metrópole, mas como


havia uma ausência de médicos bacharéis no Brasil, principalmente em regiões sem a
presença de uma elite econômica capaz de pagar os serviços destes médicos. A partir desta
situação a colônia se tornou um ambiente próspero para os cirurgiões desde o século XVI,
porém como América portuguesa é herdeira do modelo de sociedade portuguesa ainda havia
certa hierarquização e fissura entre a medicina e cirurgia no Brasil.
Houve em Portugal durante todo o período moderno um aspecto tradicional que
dividia e hierarquizava trabalhos mecânicos e trabalhos nobres, cujo fundamento que
determinava quais ofícios pertenceria a qual categoria desta dicotomia classificou o exercício
dos cirurgiões como um trabalho mecânico por trabalharem manualmente nos cuidados com
os pacientes, além de ser um trabalho considerado “sujo” pela exposição ao sangue e outros
fluídos corporais.
Por outro lado os físicos por terem sua forma de trabalho relacionado à prescrição de
remédios, diagnósticos e ser primário na manutenção da saúde da população pôde ser
categorizado como uma forma de trabalho intelectual e nobre. Esta divisão fez com que
houvesse uma distância entre os saberes medicinais dos físicos bacharéis e as práticas médicas
dos cirurgiões, como defendido por João Rui Pita:

Este estado de coisas era bem explícito em Portugal. Esta hierarquização das
profissões sanitárias estava bem patente na sociedade portuguesa no decurso do
século XVIII. No cume da pirâmide a medicina e os médicos e num patamar abaixo
a cirurgia os cirurgiões, a arte farmacêutica e os boticários. Abaixo destes ainda se
encontravam outros profissionais, igualmente de forte componente mecânica como,
por exemplo, os sangradores e os barbeiros. (PITA, 2000, p.130).

Porém, como citado anteriormente à ausência de médicos levou a um abrandamento da fissura


entre cirurgia e medicina, já que os poucos cirurgiões na colônia acabaram assumindo funções
pertencentes aos médicos e boticários em prol da população que necessitava de tais
atendimentos, mas não possuíam muitos profissionais a quem recorrer. Portanto, a sociedade
colonial e dentro deste espectro a sociedade mineira começou a valorizar os práticos que
conseguissem ser capazes de curar a população independente de sua posição na hierarquia
social ou de sua formação acadêmica. Este cenário não era atrativo em um primeiro momento
para os cirurgiões portugueses.
26

É necessário enfatizar que no século XVIII, devido às descobertas auríferas na região


de Minas Gerais houve um deslocamento de curandeiros e boticários e cirurgiões de outras
regiões do império português para as regiões das minas. Não obstante, isto também ocasionou
a certa quantidade de cirurgiões que obtiveram sua formação no Hospital Real de Todos os
Santos em Lisboa a imigrarem para a colônia em busca de uma ascensão econômica e social
através do comércio do ouro como mas perceberam que era mais lucrativo o exercício de seu
oficio de formação destacado por Ribeiro:

Além das oportunidades de ascensão econômica - lembrando que vários indivíduos


que atuaram nestes ramos tornaram-se ricos comerciantes, donos de fazendas, de
lavras e de imensos plantéis de escravos- eram muitas as chances de elevação do
status social, o que em Portugal seria muito mais difícil devido à maior presença
numérica desses profissionais bem como em função da intensidade dos conflitos que
havia entre eles e os médicos. (RIBEIRO, 2005, p.67).

Devido às restrições religiosas e da coroa, as ciências em Portugal, em grande medida, ainda


correspondiam aos conhecimentos medievais de séculos anteriores, o que se constituiu como
um empecilho no desenvolvimento dos conhecimentos já existentes. Este aspecto acabou se
tornando um impedimento para que a Medicina e a Cirurgia obtivessem novos métodos de
tratamento e novos remédios, como efeito estas áreas do conhecimento se voltaram e
sacralizaram os conhecimentos desenvolvidos pelos principais médicos e cirurgiões durante a
Antiguidade, a Idade Média e os primeiros séculos da Modernidade. Como apresentado por
Lígia Bellini:

Uma dificuldade com que o estudioso se depara, ao analisar tratados médicos


portugueses sob esta perspectiva, está associada ao fato de que muitos dos artefatos
linguísticos neles utilizados provêm de outros textos, especialmente textos médicos
antigos. Isto implica que, para entender o significado destes artefatos, é necessário
considerar tanto a fonte original quanto o texto português em que se encontram. A
tendência a “sacralizar” a linguagem, característica da tradição de exegese e
comentário, dominante entre os pensadores estudados, tem como consequência que
certas imagens não parecem particularmente significativas em relação ao imaginário
social e cultural no contexto português do século XVI. Cautela especial é requerida
na análise deste tipo de representação e, muitas vezes, a proveniência parece ser a
única questão a ser adequadamente proposta. De qualquer forma, representações
desta natureza constituem evidência de preeminência da tradição de comentário e da
atitude a ela relacionada, de valorização do conhecimento antigo, entre os autores
portugueses do período. (BELLINI,2005, p. 29-30).

Associado a questão apresentada nesta citação se encontra a necessidade de dar


ênfase a formação dos cirurgiões, pois a uniformidade nos conhecimentos obtidos por estes na
metrópole ocasionou que enfrentassem problemas similares na colônia no tratamento dos
27

colonos, pois a colônia se constituía como uma novidade em diversos aspectos, inclusive na
diversidade de novas enfermidades ao qual não se possuía conhecimento ou tratamento viável.

Mesmo saindo de hospitais de Lisboa, cirurgiões que vinham para a América como
foi o caso de José Antonio Mendes acabavam se rendendo aos métodos curativos
locais já que grande parte das vezes não havia outra alternativa. Além da dificuldade
de obtenção de medicamentos da Europa havia ainda problemas advindos de seu
transporte no interior da própria colônia e ainda os impedimentos resultantes do alto
preço pelos quais normalmente eram vendidos. Perante a tais circunstâncias,
conhecimentos da medicina tradicional da Europa foram forçosamente mesclados às
experiências advindas de africanos e indígenas. Assim, diferentemente da postura
dos raros doutores de Coimbra que se dispuseram a atravessar o atlântico para
exercer seus ofícios nas terras tropicais, cirurgiões, barbeiros e sangradores,
alargaram seu receituário baseando-se no aprendizado que tinham no dia a dia com
as populações locais. (RIBEIRO,2005, p.70).

Estas adversidades enfrentadas pelos cirurgiões os fizeram ter que adotar novos
métodos de tratamento, remédios e elaborar esboços das causas destas enfermidades novas ou
do porque certas enfermidades já conhecidas se tornaram tão graves na colônia. Graças a esta
adaptabilidade que obtiveram em face destes fatores, levou os cirurgiões a privilegiarem com
maior ênfase a experiência como reguladora da teoria e do desenvolvimento do conhecimento.
Isto é perceptível no Tratado I do Erário Mineral onde o autor justifica a legitimidade de seu
trabalho como observado em um trecho de sua obra onde apresenta que:

Neste lugar se oferecem duas coisas dignas de reparo e a importância da prática da


Medicina e Cirurgia: a primeira é considerar quão errados vão aqueles que são
contumazes e atados aos conselhos e regras dos antigos, que, nem à razão natural,
nem ao que estão vendo com os seus olhos, querem dar crédito, o que é muito
abominável, pois seria melhor examinar as causas do que os seus olhos veem que
negar teimosamente a fé do que se experimenta, porque (como dizem graves
autores0 a razão e a experiência sempre foram mais poderosas que a autoridade
humana... (FERREIRA 2002, p.233).

Embora se dedicassem a defesa da empiria como legitimadora de suas práticas,


continuaram pautando-se no seu conhecimento de formação para o exercício de sua formação,
é através desta ação que nota-se a permanência de teorias que ainda persistiam em Portugal
tais como a teoria humoral hipocrática. Este aspecto não ocorre apenas para os cirurgiões, mas
também para os médicos bacharéis, isto ocorria porque no mundo lusitano ainda havia a forte
crença de que a medicina estava atrelada a um mundo “mágico”, portanto as práticas
deveriam respeitar a correlação entre os cosmos e o corpo (RIBEIRO,1997, P.69).
Para os praticantes da “arte de curar” é a partir desta correlação que justifica o uso de
elementos da natureza que também faria parte da ligação com o cosmos para curar os
enfermos, de acordo com Rossi:
28

Não tendo considerado suficientemente a realidade física, acreditaram que tudo o


que toca os homens provinha de causas celestes e que poderiam ser previstos os
eventos futuros. Acabaram por atribuir aos astros às próprias culpas e as próprias
penas e, contra toda razão, conceberam que algumas estrelas eram boas e outras más
(ROSSI, 1992, p. 43).

Esta herança medieval ainda era forte na península ibérica, e na Modernidade


continuou a ser perpetuado até meados do século XIX, Na América portuguesa, o
“misticismo” era mais elaborado tanto pelos curandeiros como pelos cirurgiões, devido a falta
de remédios e tratamentos para as enfermidades, existe vários trechos no Erário Mineral,
onde é comum o autor recitar uso de elementos mágicos para o tratamento de doenças, já que
o tratamento das doenças era feito através da observação dos sintomas e portanto as causas
das enfermidades eram sempre deduzidas.
Este detalhe levou a América portuguesa a florescer uma peculiaridade em decorrência
da ausência de médicos bacharéis para atender a população assim como também a ausência de
remédios já conhecidos pelos portugueses na colônia devido a muitos destes se perderem nas
embarcações durante o percurso entre Portugal e Brasil. A partir de deste ponto se tornou
comum no Brasil colonial também a associação entre elementos da religião cristã com as
causas das enfermidades durante a colônia então alguns praticantes das “artes” de curar
também na colônia foram utilizados em consequência da reminiscência desta concepção
antiga elementos que ligavam o mundo dos vivos e dos mortos (RIBEIRO, 1997,76).
Estas formas de pensar e agir não eram vistas no contexto colonial como ultrapassadas,
já que a extrema necessidade de medicamentos e tratamentos levou a sobrevalorizar qualquer
justificação e método que fizesse algum sentido a partir dos conhecimentos prévios que já se
encontravam disseminado no senso comum.
Para suprir a falta de medicamentos foi se utilizado o conhecimento de indígenas,
através do contato direto ou através dos jesuítas:

Os medicamentos que supriam as boticas vinham do Reino, mas a pouca frequência


de chegada dos navios, as eventuais perdas por deterioração nas embarcações e nos
portos e os altos preços obrigaram-nos, ao longo do tempo, a se voltarem para os
recursos naturais oferecidos pela nova terra, ajudados pelos conhecimentos dos
indígenas na decifração desta natureza estranha. (CALAINHO, 2004, p.66).

No século XVI ao XVIII a Flore brasileira foi constantemente explorada para a


descoberta de medicamentos capazes de combater as enfermidades dos colonos, com o passar
do tempo à criação e comercialização destes medicamentos começaram a ser demandadas no
29

ultramar levando a criação de um comércio lucrativo. Em decorrência deste lucro muitos


cirurgiões como Luís Gomes Ferreira, atuaram na fabricação e na venda de remédios feitos
com ingredientes naturais da colônia e cujas receitas foram repassados por boticários ou
ordens religiosas. Isto é importante, pois reforça o caráter destes profissionais de buscar o
enriquecimento, além de também reforçar a diferenças que os cirurgiões tinham dos físicos, já
que o comércio era visto como um trabalho mecânico e por esta razão não seria exercido por
um bacharel em medicina já que para estes, assumir tal tipo de trabalho seria o mesmo que
descender na hierarquia social. Havia também a questão de o comércio de remédios era
constantemente criticado pelos altos preços estipulados pelos seus fabricantes. Por isso,
durante este período várias reclamações foram direcionadas a Coroa, que em resposta tentava
impedir que os boticários, cirurgiões e outros praticantes que fabricavam e comercializavam
remédios elevassem os preços pautando-se nas suas próprias ambições.
Isto é representado no tratado V do Erário mineral onde o autor apresenta “as
virtudes” do Óleo de Ouro, um remédio composto por agua, sal e ouro e que nas palavras do
autor:

Assim como o ouro é o soberano sobre todos os metais, assim também o seu óleo é o
mais soberano remédio que até o dia de hoje se tem descoberto para curar muitas
enfermidades grandes, para as quais os modernos não têm achado remédio de mais
relevante virtude que este, com o qual se têm livrado muitos da sepultura, o que não
seria fácil, antes muito de dificultoso, curando-se com remédios galênicos, como se
poderá ver em todo este tratado. (FURTADO, 2002, p.489).

A soberania do ouro sobre outros metais é um resquício da alquimia que considerava


o ouro e sua obtenção como um dos fins desta “arte”, outro objetivo era a criação de um
remédio que fosse capaz de curar qualquer enfermidade, aspecto que durante seu Tratado V o
autor aparenta reforçar com seu remédio. Este tipo de discurso era comum em tratados deste
século XVIII já que como citado anteriormente o objetivo de muitos dos cirurgiões que
estiveram na colônia era o enriquecimento e ganho de prestígio, porém a apresentação deste
remédio traz elementos criveis neste período histórico já que de acordo com Bellini (2005) o
uso de comparações entre elementos da sociedade e uso de hierarquias na medicina eram
aceitos no ambiente acadêmico, por isto voltando ao tratado I é visto o uso de remédios com
ingredientes naturais da colônia como o chá de fedegoso verdadeiro.
É importante salientar que a razão por trás dos sucessos dos cirurgiões no Brasil
durante o século XVIII devia-se a sua capacidade de se adaptar e a partir da prática criar
novos tratamentos, isto foi ressaltado no começo da obra por Luís Gomes Ferreira, pois
30

devido à concepção arcaica sobre a origem das patologias fez com que a sangria se tornasse o
principal tratamento a ser utilizado para solucionar as enfermidades na região das Minas
chegando ao ponto de ocorrer uma banalização de tal prática (SANTOS, 2005).
Contudo, Luís Gomes Ferreira no Tratado I ressalta que o sangramento na colônia
era diferente devido ao clima e a dieta da população serem diferentes do reino então se
pautando na sua experiência fez o esforço de colocar em cada tratado ao longo da obra
quando e como deveriam ocorrer as sangrias para cada tipo de enfermidade de acordo com a
realidade do paciente a fim de se evitar o falecimento do mesmo. Esta realização da
especificidade colonial que levou a muitos a considerar o Erário Mineral como a obra que
inaugura a medicina tropical, além de justificar a demanda pela obra pelos colonos.
Algo bastante notável durante a obra do Erário Mineral é a quantidade de referências
que o autor faz a outros cirurgiões como demonstrado no tratado XII:

Achando-me, pois, na Cidade da Bahia, vindo de volta para a este reino, e tendo
notícia que João Cardoso de Miranda, cirurgião curioso e sem ofensa dos mais dos
da primeira estimação, tinha inventado um remédio de grande eficácia e infalível
virtude para escorbutos, ou mal de Luana. (1935, Apud Ferreira, 2002, p.689).

Este tipo de prática reforça que grande parte dos saberes desenvolvidos em torno da
medicina dentro do território colonial foram difundidos pelos cirurgiões através de suas
relações, pois como destacado por Luís Gomes Ferreira logo após este trecho, que a receita de
tal remédio foi enviado ao mesmo através de uma carta escrita por João Cardo de Miranda
que se encontrava em outra Capitania. Estas relações se deram em níveis pessoais mas
também em níveis impessoais, pois neste mesmo caso utilizado como exemplo fica implícito
que ambos cirurgiões não se conhecerem pessoalmente. Também ocorreu que muitos dos
manuais de medicina escritos neste período histórico foram feitos sob autorias de cirurgiões
(RIBEIRO, 2005,p 67), e associado com a recepção do Erário Mineral é possível notar que os
praticantes da “arte de curar” sejam cirurgiões ou curandeiros letrados, consumiam estas obras
para poder expandir suas opções de tratamento, pois o sucesso de seu oficio dependia desta
adaptação e isto se atrelava ao enriquecimento que um cirurgião ou curandeiro poderiam obter
se demonstrasse ser capaz de executar seu oficio com “maestria” como acontece com o Erario
Mineral:

Nos trinta anos que se seguiram, por concessão régia, Luís Gomes Ferreira teve
direito sobre todos os volumes impressos ou vendidos no Reino e em além-mar.
Esperava alcançar com seu livro fama e riqueza, e parece que conseguiu algum
sucesso de vendas em Minas Gerais nos anos que se seguiram. O capitão Manuel
31

Ribeiro dos Santos, caixa e administrador dos Contratos dos Dízimos na capitania de
Minas Gerais, nos triênios de 1741 a 1750, era também revendedor de livros.
Periodicamente encomendava a seu correspondente em Lisboa, Jerônimo Roiz
Airão, exemplares do Erário Mineral.59 Também nos poucos registros de livros
existentes nos inventários da região de Sabará, ele foi o único livro presente em
vários deles. (FURTADO, 2002, p. 26)

2.3 As práticas e atuações dos Cirurgiões


Embora tenha-se ressaltado no tópico anterior as diferenças vigentes no campo teórico
entre os médicos e cirurgiões, é importante compreender que na prática havia pouca distinção
entre os saberes e práticos dos mesmos, principalmente na colônia. Já que mesmo a medicina
acadêmica portuguesa partilhava de crenças metafísicas para justificar certas doenças e
tratamentos, o que ocorria por outro lado era uma tentativa da medicina enquanto ciência de
se afastar e demonstrar erudição e superioridade frente as práticas dos diletantes, pois essas
eram muitas vezes rotuladas como ultrapassadas. Isto é importante porque a medicina culta e
a popular possuíam como base o saber indiciário, pautado na observação dos enfermos, dos
sintomas dos mesmos e de qual seriam as causas para a doença do mesmo, como se encontra
nos ensinamentos de Hipócrates (RIBEIRO, 1997, p.86). Com estes fatos esclarecidos é
possível compreender as especificidades dos cirurgiões enquanto sua prática na colônia. Pois
é necessário ressaltar que embora o saber e as práticas estejam ligados em uma relação de
dependência é necessário compreender as singularidades de cada parte pois é através da
prática que se nota qual era a função do cirurgião na sociedade colonial mineira e inclusive
qual era seu lugar na sociedade colonial.
Em razão da quantidade significativa de colonos e a necessidade de atendimentos por
parte dos enfermos, fazendo com que as leis que restringiam essas “liberalidades” entre as
ocupações na colônia fossem ineficazes e as fiscalizações encontrassem dificuldades em ser
exercidas. Essas restrições eram desconsideradas não só pela população das camadas mais
baixas, mas também por indivíduos que possuíam certo prestígio social, principalmente nas
regiões das minas. Este último aspecto ocorreu em decorrência da importância que estes
“artesãos” das artes de cura tiveram perante os senhores de escravos, em razão do ambiente
das minas serem insalubres os cativos e colonos sucumbirem a enfermidades, o que resultava
no falecimento destes indivíduos. Então a atuação dos cirurgiões neste modelo de sociedade
era vital para que a mesma fosse capaz de continuar a exploração do ouro ou de comércios
para as vilas exploratórias. Este era um caso tão sério que as Câmaras Municipais da região
possuíam o direito de contratar físicos e cirurgiões para cuidar da saúde do povo, porém
devido ao baixo salário destes contratos fez com que poucos aceitassem tal serviço, o que
32

obrigava em épocas de epidemia o aumento deste salário para que o atendimento chegasse a
todos (FURTADO, 2002, p.5). Isto fazia com que inclusive fossem improváveis que se fosse
negado os serviços de práticos mesmo que a houvesse um apelo de físicos a autoridades
políticas que formulassem leis para proibir a atuação destes, mas que acabara sendo barrada
pela necessidade que se tinha do serviço de curandeiros, cirurgiões, parteiras e boticários
durante todo século XVIII (RIBEIRO, 1997, p. 41).
Muitos cirurgiões na região das minas preferiram oferecer seus favores àqueles com
condições de pagar por seus tratamentos e remédios e os quais eles pudessem estabelecer
vínculos de trocas de favores, tal circunstância é evidente no Erário Mineral. Era necessário
para o êxito de seu oficio de que seus tratamentos fossem “inovadores” e “artísticos” já que
cirurgiões disputavam um mesmo mercado e constantemente estavam em disputa com
curandeiros e os poucos médicos bacharéis que existiam na região (FURTADO, 2002, p.7).
Estas disputas normalmente eram vencidas pelos cirurgiões que conseguiam adequar a teoria
médica necessária para justificar suas práticas como também possuíam a experiência para se
adequarem e tratarem das doenças ao qual normalmente se acometiam os mineiros do século
XVIII.
Em razão de sua formação na metrópole que concedia aos cirurgiões uma educação
mais complexa do que geralmente seus pares mecânicos possuíam, levando a estes a
assumiram postos na colônia e ofícios que normalmente seriam ocupadas por outras
profissões (WISSENBACH, 2002, p.122). Portanto a cirurgia como uma prática mecânica
permitia aos cirurgiões coloniais durante o século XVIII se aproximar de outros ofícios
mecânicos como a fabricação de remédios e o comércio, já que não perderiam prestígio na
execução destes serviços e tão pouco estas práticas alterariam sua posição na hierarquia
social.
Nesse sentido, nem todos os cirurgiões na colônia praticaram seu ofício de formação.
Tudo isto contribui para uma escassez de cirurgiões dispostos a cuidar dos enfermos nas
Minas, pois embora ao longo deste trabalho tenha sido explicada a ausência significativa de
físicos bacharéis no território colonial é necessário explanar que isto também vale em menor
grau para a presença dos cirurgiões, pois mesmo que tenham vindo a América portuguesa em
um contingente relativamente grande ainda se encontravam insuficientes para atender a
população de forma mais generalizada.
O espaço de atuação dos cirurgiões na Colônia se encontrou em constante disputa com
os praticantes de cura como os curandeiros, enquanto sofriam embates teóricos com os físicos
bacharéis que estavam na colônia, alegando que os cirurgiões estavam desenvolvendo práticas
33

que não possuíam um embasamento “científico” e que seriam prejudiciais para os colonos.
Isto tudo culmina em uma prática defensiva dos saberes por parte dos cirurgiões que tinham
constantemente que atestar suas capacidades e habilidades para ganhar clientes e conquistar o
mercado ao mesmo tempo em que se defendia para não perder o prestigio perante estes
indivíduos. Este aspecto fica mais claro ao longo da produção de manuais de cura através do
século XVII e do XVIII, portanto o Erário Mineral se encaixa neste contexto, ao ponto de que
o autor descreve:

E para que não digam que não sou oráculo para escrever novo modo de curar as
doenças, sem me conformar com os antigos mestres, respondo o seguinte.
Hipócrates, aquele grande oráculo da Medicina Científica, certifica, e com muita
razão, que a arte médica é Tão vasta e dilatada que não tem termo em que caiba nem
baliza que a compreenda; porquanto, ainda que ele nos deixou os seus aforismos e
regras universais por onde nos governamos, contudo, a experiência nos mostra que
não há no mundo coisa alguma tão certa, nem tão infalível que não tenha suas
exceções e deixe de faltar algumas vezes. (FERREIRA,2002, p.230).

Porém, ao longo de suas estadias na América portuguesa os cirurgiões também


defenderam suas práticas como uma forma de ajudar seus irmãos na fé católica e servos do
Rei, como uma forma de demonstrarem sua importância para sociedade e também como uma
forma de dar uma razão moral para os seus exercícios nas práticas de curar. Como podemos
observar em:

Muito meu senhor. O serviço de Deus e o bem comum é o único motivo que
puramente me move para tomar a confiança de molestar a vossa mercê em lhe
comunicar um remédio específico que, com muito trabalho e diligência, foi Deus
servido alcançasse para opugnar a qualidade e infecção escorbútica, ou mal de
Luanda... (FERREIRA, 2002, p.690).

Nota-se que o papel e a ação dos cirurgiões na colônia eram fundamentais para o andamento
da sociedade, por isso o século XVI ao XVIII vai presenciar uma tolerância visível por parte
da administração colonial e da metrópole em permitir que estes indivíduos atuassem na
colônia na forma como tenho retratado até este ponto.
É necessário ressaltar que os principais pacientes dos cirurgiões nas minas coloniais
foram os africanos escravizados que se encontravam nos ambientes mais insalubres desta
região sob um regime precário e um ritmo de trabalho que desgastava a saúde destes de forma
34

acelerada, é nestes indivíduos que de acordo com Wissenbach (2002, p.136) serviriam a
medicina experimental dos cirurgiões e também é a partir deles que muitas enfermidades
foram observadas para a formulação de teorias a cerca da origem de certas doenças e a forma
como seria possível curá-los, em decorrência da extensa descrição desta categoria no livro
Erário Mineral é possível notar a relação destes com os cirurgiões e também o cotidiano dos
cativos. Aqui se ressalta também que as práticas dos cirurgiões em um primeiro momento
com os cativos tomavam-se certos cuidados pela concepção de que os equilíbrios humorais
dos negros eram diferentes dos brancos.
Um último ponto a ser apresentado sobre este tópico é o fato de muitos
cirurgiões não limitarem sua esfera de ação em um único local fixo, percorrendo diversas
vilas e aldeias na América portuguesa em busca de clientes, ingredientes para a criação de
remédios e propriamente os remédios já concluídos. A causa para este movimento constante
devia ao exercício da medicina, cirurgia e boticário desta época não contavam com o
transporte dos enfermos, já que tal atividade era impossível para este período histórico.
Portanto eram necessários estes indivíduos se locomoveram até os colonos adoecidos.
A junção dos saberes dos cirurgiões e suas práticas no território Colonial
contribuíram para um aumento do prestígio associado a este ofício e permitiu que os
cirurgiões acumulassem uma quantidade significativa de riquezas que demonstra sua
importância perante a sociedade colonial como um todo, isto associado com a flexibilidade
que a colônia permitia na hierarquização da sociedade permitiu aos cirurgiões uma
mobilidade interessante ao qual irá ser debatido no próximo capítulo.
35

3. Hierarquias Sociais no império português

Para se compreender a posição e função dos indivíduos na sociedade portuguesa da


metrópole portuguesa e do ultramar é necessário entender como funcionava a hierarquização
social durante o Antigo Regime. Sobre este aspecto é possível notar primeiramente que a
divisão da sociedade é uma herança cultural e social da Idade Média que permaneceu durante
a Idade Moderna no império português e que foi moldada ao longo deste período para se
adaptar a realidade do império que passava por uma expansão territorial e na tentativa de
manter a ordem em suas colônias. Essa forma de divisão da sociedade era pautada em alguns
princípios que fazia parte da mentalidade portuguesa, “pensava-se a sociedade como um
corpo articulado, naturalmente ordenado e hierarquizado por vontade divina.” (MATTOS,
2001 p. 144) Portanto a naturalização desta ordem era o que motivava a população a “aceitar”
seu lugar na hierarquia e quando procuravam ascender a camadas superiores faziam de acordo
com o que era visto como igualmente natural.
Para respaldar esse modelo, associou-se aos troncos dinásticos e às gerações das
famílias as condições que determinavam a posição de um indivíduo, de forma que era quase
impossível se livrar do estigma que era possuir uma “mancha de sangue” sendo a mais
recorrente delas a crença religiosa dos antepassados. De acordo com Hebe Mattos:

O estatuto da pureza de sangue, apesar de sua base religiosa, construía, sem


dúvida, uma estigmatização baseada na ascendência, de caráter protorracial,
que, entretanto, não era usada para justificar a escravidão, mas antes para
garantir os privilégios e a honra da nobreza, formada por cristãos velhos, no
mundo dos homens livres. (MATTOS, 2001, p. 149)

Associado a “mancha de sangue” se encontra o “defeito mecânico” que era o


desempenho de ofícios manuais, que normalmente estavam ligados ao povo (onde se incluía o
oficio de cirurgião). Também eram consideradas menores as atividades de comércio
consideradas usurárias. (MESGRAVIS, 1983, p.801) Restavam aos nobres e aos que
desejavam alcançar tal status o exercício de ofícios administrativos e letrados, normalmente
associados a administração do reino e das colônias, na esfera jurídica ou política. Neste
sentido os mais favorecidos por este sistema eram os nobres que já possuíam uma
antecedência reconhecida no modelo social, a condição financeira e a formação para exercer
os ofícios “dignos” de tal classe, portanto usufruíram de honras e privilégios, porém no
ultramar a raridade destes impactaram profundamente, o que ocasionou a outra classe de
indivíduos que viriam a ocupar uma posição similar na hierarquia social.
36

No que tange a hierarquia social de forma mais abrangente é necessário ressaltar uma
característica importante neste sistema; era a necessidade da confirmação social sobre o lugar
ocupado pelos próprios indivíduos. Agir e possuir as condições necessárias para se tornar um
nobre não transformava um colono em nobre, porém, se houvesse um reconhecimento
exterior desta posição, isso seria possível, principalmente se fosse daquele que se encontrava
acima de todos na hierarquia social, o rei. Também é justamente esta figura a responsável por
outra característica do sistema, permitir uma “limpeza de sangue”, que possibilitava uma
ascensão social dos indivíduos. Assim, tornou-se comum e ao mesmo tempo necessário neste
modelo de sociedade em que os indivíduos buscavam credibilidade e apoio perante as pessoas
das demais camadas hierárquicas, mascarando suas origens, justificando que poderiam ser
considerados livres de certas “manchas de sangue” e demonstrado um estilo de vida que
correspondesse à camada hierárquica ao qual se pertencia.

3.1 A hierarquia social na América Portuguesa

Havia na colônia condições que possibilitavam uma flexibilidade na hierarquia social


portuguesa e uma mobilidade social, embora tal prática não fosse reconhecido ou desejada
pela sociedade metropolitana da época pelo fato de que a organização social não apenas era
“natural”, mas também divina, portanto era necessário que todos aceitassem o seu lugar nesta
divisão social e fizessem o melhor de si para contribuir para o andamento da sociedade
(HESPANHA, 2006, p.123).
Todavia isto não altera o fato de que a mobilidade existia, que só foi permitida em
partes porque havia oportunidades presentes dentro da organização da sociedade que eram
consideradas naturais e em consequência disto eram aceitas, tais oportunidades poderiam
partir de coisas como o “tempo” que possibilitava uma família a limpar seu sangue ao longo
das gerações mas devido a natureza e a complicação deste aspecto o que ocorreu em maior
principalmente nos territórios ultramarinos foi a dissimulação da ascendência dos indivíduos
que visavam alcançar cargos e privilégios que demandavam um status equivalente ou próximo
ao dos nobres. Além do tempo, se pode citar que outras formas de se ascender eram
justamente por meio das obras e da graça.
Ambos os aspectos são consequências direta da virtude, que na época era principal
demanda aos indivíduos que possuíam um bom status dentro de uma sociedade, portanto era
necessário demonstrar sua virtude, torna-la visível para todos desta forma o meio mais
adequado para tal era a partir de ações, então era recorrente aos nobres realizar obras para as
37

pessoas e pela sociedade que contribuíssem para o reino de forma direta ou indireta.
Acompanhado as ações encontrava-se a realização da graça que era um aspecto fundamental,
pois fazia parte da sociedade de forma quase jurídica a mentalidade da necessidade de “dar” e
a obrigação de “receber” favores como uma forma de se destacar no reino, reforçar seu status
e contribuir para o “bom” andamento da sociedade. Também através da graça era possível
ganhar recompensar, se livrar de “manchas de sangue” e conquistar títulos e uma nova
classificação na hierarquia portuguesa, principalmente nas mãos do principal concessor da
graça no império português que era o rei. Neste contexto surge uma nobreza política:

...nobreza que se adquire: a) pela ciência (doutores, licenciados, mestres de


artes, bacharéis); b) pela milícia “armada” (cavaleiros de ordens militares,
oficiais militares (condestável, almirantes, capitães-mores, capitães de
fortalezas, cavaleiro de companhias de cavalos, capitães e alferes de
ordenanças); c) pela “milícia inerme”; d) pelo exercício de certos ofícios:
Governos de armas das províncias, presidentes dos tribunais de justiça da
corte, conselheiros régios; chanceler-mor, juízes das chancelarias e
audiências; corregedores; provedores; juízes régios; juízes ordinários,
vereadores... (HESPANHA, 2006, p.136)

Esta nobreza não possuía o mesmo status que a nobreza de sangue, a existência deste
grupo social ocorreu devido às necessidades que a vida em sociedade demandava em um
império que durante a idade moderna se expandia e necessitava de formas de incentivar os
indivíduos capacitados a participarem da administração, organização e defesa das colônias.
Esta camada da sociedade poderia usufruir de alguns privilégios que até então só eram
permitidos aos nobres, entre os indivíduos que ascenderam a este grupo social, os que
ganharam destaque ao longo deste capítulo serão os principais da terra e os cirurgiões,
principalmente pela relação desenvolvida entre estas categorias na América portuguesa e
pelos privilégios e conquistas que ambas as camadas usufruíram até o século XVIII como
consequência do status de nobreza política. Portanto, nas diversas regiões da colônia, a
necessidade de organização política levou os indivíduos responsáveis por tal esfera a se
destacarem na hierarquia social, sendo conhecidos por diversas nomenclaturas, talvez a mais
conhecida delas fosse “principais da terra”, que eram compostos por homens livres que
viviam a “lei da nobreza” visando a seguir o estilo de vida similar aos dos nobres da
metrópole:

Esse estilo de vida nobre pressupunha luxo e conforto, com casas bem
aparelhadas e assobradadas de preferência; roupas de tecidos caros com
ornatos prateados ou dourados, cavalos ajaezados, carruagens ou cadeirinhas
38

de aparato, em suma, um consumo conspícuo que era um das obrigações


sociais da nobreza. Havia uma oposição bem definida aos valores burgueses
em ascensão em outras sociedades europeias contemporâneas que
enfatizavam a economia, o trabalho, a austeridade e a simplicidade.
(MESGRAVIS, 1983, p.801).

Esta categoria social complexa necessitava ainda seguir as “regras” impostas às


camadas hierárquicas mais altas, portanto necessitavam se aproximar dos nobres, ainda sim
podiam desfrutar de um estilo de vida destes indivíduos que se constituíam como um
privilégio a poucos, sendo assim faziam parte de uma exceção permitida apenas nas colônias,
tendo em vista que certas características da nobreza não podiam ser copiadas por outras
camadas da sociedade, um exemplo disse era a própria vestimenta dos nobres cujos detalhes
eram autorizados somente a aqueles detentores de tal título. Outro detalhe é que a conquista
deste título não quebrava a organização social, pois o que se fazia na verdade era apenas a
concessão do título para indivíduos que na verdade já possuíam as características de tal
camada:
A graça não representa, então, uma irrupção absolutamente arbitrária da
vontade no domínio dos equilíbrios sociais. Ao revés, a graça realiza
também, à sua maneira, a ordem. A mobilidade social que desencadeia é
apenas aparente, no fundo, a nova posição atribuída ao agraciado já lhe era
devida, ainda que não juridicamente. (HESPANHA, 2006, p. 141)

Portanto a “nobreza colonial” ocupou um lugar não apenas por sua obra e pela graça
do rei, mas também porque cumpriam os requisitos necessários para se aproximarem da
nobreza e também já agiam como membros desta camada. Os “principais das terras”
acabaram aproveitando destes privilégios e ainda possuíam uma vantagem em relação a estes
que era a tolerância a certas atividades que geralmente seria inaceitável a um membro da
nobreza, como por exemplo, o enriquecimento através do comércio, já que este era um dos
principais meios para se acumular riqueza, sendo que esta era uma característica que
influenciava a elevação de alguém a esta camada da sociedade, (MESGRAVIS, 1983, p. 805)
outra opção para acumulação de riqueza era se tornar um senhor de engenho, mas como
apontado por diversos historiadores normalmente a aquisição de engenhos se dava através da
riqueza acumulada com o comércio. Porém era intolerável para um “principal da terra”
continuar a atuar como comerciante após a sua elevação a esta camada, portanto após
conseguir elementos necessários para se tornar um destes “homens bons” era necessário
buscar cargos na administração colonial, sendo as câmaras municipais os locais para atuarem
dentro da região. (MESGRAVIS, 1983, p. 801) Entendemos também ser necessário
compreender quem eram os responsáveis pela definição dos membros de tais categorias, a
39

resposta para esta pergunta ainda de acordo com Mesgravis (1983) era a reunião dos
“principais da terra” algumas vezes ao ano para um processo de seleção de candidatos
promissores a esta posição social e também avaliavam quem merecia ser excluído desta
categoria através da realização de práticas que serviriam para manchar o sangue e a honra de
um nobre, o que era um apropriação do modelo adotado pela nobreza de sangue.
Explicar a categoria dos “principais da terra” e da nobreza política é importante para
compreender o objeto central desse trabalho que são os cirurgiões das minas coloniais, pois
como será explanado ao longo deste capítulo, houve uma relação entre os nobres da colônia e
os cirurgiões que ajudou a reforçar o espaço hierárquico que seria ocupado pelos cirurgiões
além de definir os rumos do ofício dos mesmos durante o século XVIII. Tal fato ocorre
porque estes nobres, como responsáveis em maioria pela administração do território colonial,
acabaram enfrentando um enorme desafio na questão da saúde das vilas e cidades coloniais,
principalmente na região de Minas Gerais, onde alta taxa de mortalidade se constituía como
um problema social que atrapalhava a principal fonte de enriquecimento não apenas da
colônia e da metrópole, mas também por aqueles que fossem bem sucedidos na exploração do
ouro. Como medida para solucionar este problema, principalmente para os colonos sem as
condições de se transportarem em busca de tratamento ou pagar um tratamento adequado de
um raro físico bacharel e em pior caso, sem as condições de acesso a nenhuma das duas
opções acima, foi se oferecido pelas câmaras municipais uma compensação em dinheiro para
os cirurgiões:

A remuneração oferecida pelas câmaras municipais aos cirurgiões do


partido, isto é, aqueles que, contratados pelo poder público, dispunham-se a
tratar dos pobres, presidiários e outros necessitados, não era nada atrativa. O
trabalho árduo, a falta de recursos e os lugares longínquos que a profissão
obrigava a percorrer nem sempre foram reconhecidos pelas autoridades.
(RIBEIRO, 1997, p. 33)

Portanto, os cirurgiões decidiram focar o exercício de seus ofícios a nobreza política e


outros colonos que possuíssem as condições econômicas de financiar o tratamento e outros
serviços prestados como a fabricação e venda de remédios, entretanto como consequência
desta empreitada, deveriam percorrer diversas vilas pela região das minas e pelos caminhos as
outras capitanias, já que os clientes ao qual almejavam eram escassos nesta região. Como em
grande parte a intenção era a acumulação de riquezas então não apenas focariam no exercício
de seu oficio de formação, mas também contariam com o exercício de comércio, sendo o mais
comum a venda e manipulação de remédios, mas também contaria com outras atividades
40

como a empreitada pessoal na exploração do ouro. Dessa forma, a colônia se tornou um


atrativo para os cirurgiões que almejavam a ascensão econômica. (RIBEIRO, 2005, p. 67)
Portanto, entre as categorias dos serviços é notável como durante os séculos XVI ao XVIII
vão ser um terreno fértil para a prática da cirurgia no território colonial, justamente porque
havia uma alta demanda pelas suas funções e como será observado no próximo tópico os
cirurgiões enfrentariam adversidades em suas empreitadas, porém é nítido que alguns destes
acabaram alcançado o sucesso financeiro almejado, além de desfrutar de um reconhecimento
social maior na colônia e certo reconhecimento levemente elevado na metrópole.

3.2 Cirurgiões na hierarquia social da América portuguesa

É necessário para compreender a posição social desta categoria na colônia reconsiderar


o espaço ao qual pertenciam dentro da sociedade metropolitana portuguesa, já que assim
como os médicos bacharéis, os cirurgiões gozavam de uma formação institucional
reconhecida e eram de vital importância no atendimento aos doentes em Portugal, tendo em
vista que complementavam aos médicos neste quesito e eram responsáveis pelo serviço
manual e prático da área do conhecimento médico. Entretanto, como já foi citado ao longo
deste trabalho, em Portugal o conhecimento teórico era considerado superior ao conhecimento
prático e em consequência desta mentalidade houve também a divisão dos trabalhos nobres e
mecânicos, sendo a cirurgia encaixada nesta segunda categoria. Todavia, mesmo entre os
trabalhos mecânicos a Cirurgia enquanto ofício possuía um alto status por si só, o que fazia
com que os trabalhadores desta área alcançassem um status próximo ao alcançado um status
intermediário nesta divisão. (RIBEIRO, 2005, p.65)
Este lugar intermediário seria reforçado ainda mais na atuação destes na colônia,
como resultado de um aspecto citado anteriormente que era a escassez dos físicos bacharéis
na colônia, o que limitou em grande parte a oposição que ambos os ofícios possuíam, mas
mesmo com esta baixa presença ainda ocorria uma concorrência pela credibilidade de físicos
e cirurgiões que procuraram delimitar os espaços de atuação da cirurgia na sociedade colonial.
A disputa por uma clientela e pelos ofícios não era uma especificidade apenas das minas
coloniais, mas também a diversas outras regiões no século XVIII:

Na capitania de Goiás, em 1746, dois médicos diplomados pediram ao


ouvidor-geral a punição de cirurgiões e leigos que exercessem seus ofícios.
A pena que atribuíam a quem desobedecesse o veto era a exorbitante quantia
41

de duzentas oitavas de ouro. Irritado com o excesso de autoridade do ouvir e


ciente da iminente necessidade dos cirurgiões e empíricos, dom Luís de
Mascarenhas, o governador, ordenara que os “(...) cirurgiões, e curiosos, que
há nas Minas dos Goiás continuem a curar daqui em diante na mesma forma
que os faziam até o tempo da proibição, sem que lhe obste a pena de 200
oitavas imposta pelo Dr. Ouvidor Geral de Goyas (...)” (RIBEIRO 1997, p.
41).

Nota-se que ambos os lados deste conflito recorriam às autoridades que podiam para
justificar suas ações e seus direitos no que se referia aos seus ofícios, com o sucesso obtido
pelos cirurgiões, em decorrência da sua adaptação e da sua formação, esses acabavam por
ganhar credibilidade e com isso justificaram seu direito na atuação em atividades da área dos
médicos e dos boticários. Como observado também no Erário Mineral, o autor apresenta sua
opinião de que não havia necessariamente diferenças qualitativas entre cirurgiões entre
médicos e cirurgiões em suas práticas, de forma que podiam ser igualmente bem sucedidos ou
não no tratamento de um mesmo paciente, como neste caso de um cativo que sofria de graves
tosses:

(...) O manda para a Vila do Ouro Preto e que nela se estivera curando
com um médico e um cirurgião, e que, ao depois de largo tempo e
larga despesa, enfadados coma tosse, o deixaram e lhe disseram a o
mandasse para a dita fazenda, que talvez com outros ares por ficar
distante e outras águas, se achasse melhor. (FERREIRA, 2002, p. 275)

Neste mesmo contexto surgiram indivíduos como Luís Gomes Ferreira que conseguia reforçar
através de suas atividades sucedidas, ou através dos autoelogios que os garantiam um lugar
destaque entre os médicos e cirurgiões, deste aspecto que surge a necessidade em obras como
o Erário Mineral de relatar casos e pacientes bem sucedidos pela ação do autor e/ou casos
mal sucedidos por não ter sido atendido pelo mesmo:

Indo-se buscar terceira receita, respondeu o boticário se lhe tinha


acabado o espermacete; sem dúvida ficaria o doente de todo são se
continuasse o que não fez por se não achar o dito espermacete em
todas as boticas da Vila do Carmo e da Vila do Ouro Preto; e é de se
advertir que estas receitas se foram buscar interpoladas, metendo-se
algum tempo em meio, por ser longe da dita fazenda ás duas vilas; e
suposto o doente ficou com alguma tosse, passados, alguns tempos,
me disse seu senhor, ficara são, com admiração de quem o conheceu
com tão terrível tosse. (FERREIRA, 2002, p. 276)
42

Esta credibilidade foi importante para que os cirurgiões alcançassem certos privilégios
como foi o caso deste mesmo cirurgião que conseguiu a permissão do senhor de um escravo
que havia morrido em seus cuidados para que pudesse com o apoio de outro cirurgião realizar
um exame equivalente à autopsia de modo que pudesse compreender as causas da morte de
seu paciente e com isso ampliar sua compreensão sobre como melhorar sua prática ao atender
pacientes com o mesmo sintoma. (FERREIRA, 2002, p. 267) Ao mesmo tempo conseguiam
através de suas conquistas e “vitórias” a atenção de sua clientela, os senhores de escravos que
amealhavam boa parte de seus pacientes em potenciais, os escravos. A morte excessiva destes
causava para seus senhores prejuízos, de modo que se viam sempre em necessidade de
cirurgiões já que o tratamento dos cativos era uma alternativa a aquisição de novos escravos.
Esta interpretação é visível não apenas no Erário Mineral ao longo das diversas citações de
tratamentos de escravos, mas também em outros tratados de curas e relatos de cirurgiões
como, por exemplo, o de José Antônio Mendes. (RIBEIRO, 2005, p. 70) Porém é necessário
ressaltar que não apenas eram medicados estes indivíduos, mas também os próprios senhores
e membros da nobreza política. Principalmente de militares devido aos conflitos armados
existentes no mundo colonial.

Nestas Minas do Sabará, tendo o capitão Matias Barbosa da Silva


umas razões com o brigadeiro João Lobo de Macedo, remeteram o
caso ás mãos repentinamente, de que resultou ficarem ambos feridos,
porque cada um tinha a sua faca com que fazia o que podia. Ficou o
brigadeiro com uma facada junto ao embigo, não penetrante, e o
capitão com outro no bucho do braço esquerdo, que lhe chegou ao
osso; este, como ficou com os nervos, músculos e tendões ofendidos,
mal podia bulir com o braço. Fui chamado para o curar (...)
(FERREIRA, 2002, p. 513)

Os cirurgiões, portanto também atenderam com certa frequência não apenas o tratamento de
enfermidades, mas de feridas causadas nestes conflitos armados entre colonos, como no caso
citado acima, onde Luís Gomes Ferreira atuou com o tratamento das feridas dos envolvidos.
Estes pequenos serviços também auxiliaram na ascensão econômica dos cirurgiões
necessários para que elevassem suas posses e também acabaram fazendo com que
conseguissem o reconhecimento e gratidão de figuras importantes que devido ao modelo de
sociedade não se esqueciam de retribuir favores. Como visto ainda neste caso:
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(...) depois de passado pouco tempo, se mudou para a Vila do Ouro Preto, e
mudando-me eu também do Sabará para a Vila do Ribeirão do Carmo, lhe
falei na dita vila e o achei são, sem moléstia alguma, de que me deu o
agradecimento. (FERREIRA, 2002, p. 513)

Neste trecho onde percebe-se que os cirurgiões (como Luís Gomes Ferreira) acabavam
formando uma relação com seus pacientes, de tal forma que este relacionamento se
desenvolvia em uma troca de favores, visto que a cura proporcionada pela a prestação de
serviços de um cirurgião poderia ser vista como um favor. Neste sentido a credibilidade dos
cirurgiões com a população era tamanha que estes não se importavam com certas
aproximações “mágicas” que suas práticas às vezes abordavam pois o pouco acesso ao
conhecimento que possuíam era em parte pertencente a Metrópole onde a aproximação entre
corpo e cosmos ainda era uma teoria válida, então não foi apenas a ausência de médicos que
elevou a posição social dos cirurgiões mas sim a aceitação de suas práticas por parte desta
elite colonial.
Todos estes aspectos contribuíram de forma a estreitar os laços entre cirurgiões e esta
nobreza política de modo que os senhores de escravos acabaram hospedando diversas vezes o
cirurgião Luís Gomes Ferreira em sua estadia na colônia (DIAS, 2002, p.45). Por sua vez os
cirurgiões acabaram vendo seus clientes como próximos, de um ponto de vista amigável, mas
que provavelmente não passava de uma relação interdependente entre ambos os lados como
destacado no Erário Mineral:

(...) assim no pouco tempo em que determinei dar ao prelo o que chegasse a
escrever, como por cuidar com brevidade aos habitadores das Minas do Ouro, onde
alguns amigos ficaram esperando com ânsia os fracos rasgos da minha pena, porque,
principalmente na cura das pontadas pleuríticas, de que perdem escravos sem
número (...) (FERREIRA, 2002, p. 689)

Ao mesmo tempo havia uma proximidade relativa entre cirurgiões e a nobreza política, tendo
em vista que de acordo com a hierarquia social portuguesa, o conhecimento formal torna um
individuo mais “nobre”. Não à toa a educação formal era objeto de desejo dos nobres no reino
português e por aqueles que desejavam ascender socialmente. Portanto, como citado
anteriormente, a ciência era uma forma de se constituir como membro da nobreza política.
O enriquecimento decorrente da prática medicinal é outro fator que aproxima os
cirurgiões da nobreza da terra, pois pode-se notar ao longo da trajetória de Luís Gomes
Ferreira que o mesmo ao longo de sua estadia das Minas conseguiu vários bens, como
residências, mas também bens relativamente caros tanto de se obter como se manter como
escravos aos quais inclusive realizava tratamentos:
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No mesmo ano de 1730, se queixou um escravo meu de umas dores de ombros e


costas; manei-lhe fazer uma fomentação do mesmo óleo que fica dito no volume 1,
página 265, feito de arruda e alecrim (...) (FERREIRA, 2002, p.273)

Esta noção é importante pois, na América portuguesa ter escravos era uma condição
imprescindível para a ascensão social, visto que se demandava que um individuo pertencente
a um extrato social deveria possuir bens equivalentes ao mesmo. Dias (2002) aponta que o
Luís Gomes Ferreira ainda chegou a possuir “artigos de luxo” como por exemplo, cavalos
para se locomover pela região das minas. Este fato é muito interessante de ser analisado aqui
porque o preço exorbitante que era cobrado para se obter e manter um cavalo fazia que a
aquisição de um fosse uma prática exclusiva de pessoas importantes e detentoras de um bom
patrimônio dentro da colônia. Graças a flexibilidade hierárquica da colônia portanto os
cirurgiões acabaram gozando de um prestígio convencido antes somente aos médicos e com
isto acabaram fazendo parte do círculo pertencente aos nobres da colônia
Entretanto pelo triplo exercício mecânico que muitos tiveram de fabricar, vender
remédios e o oficio da cirurgia e a dificuldade que os mesmos teriam se parassem de exercer
esta atividade fizeram com que os mesmos continuassem ao longo do período colonial em um
“entre-lugar” entre os nobres e os mecânicos, o que não foi necessariamente ruim para estes,
tendo em vista que este espaço acabou fazendo com que os mesmos alcançassem um status e
privilégios que poucos obtiveram na colônia e também uma sutil elevação também em sua
concepção hierárquica na metrópole.
Desse modo, cirurgiões como Luís Gomes Ferreira e outros conseguiram retornar a
colônia com sua fortuna obtida em sua estadia no território e publicaram seus conhecimentos
desenvolvidos que foram aceitos sem muita resistência na colônia e foram aceitos com muita
resistência na metrópole, mas como observado pelas licenças do Santo Ofício para a obra
Erário Mineral, nota-se que a obra era vista com bons olhos por muitos como necessária para
os letrados leigos nos assuntos da saúde.
Portanto, a colônia tornou-se para os cirurgiões um espaço onde conseguiram uma
importância e um reconhecimento na hierarquia social superior ao que se tinha na metrópole
até meados do século XVIII e também permitiu a ascensão econômica que os permitiram
gozar de um status e privilégio que os aproximaram da nobreza política tanto pela sua relação
de interdependência quanto pela aproximação de status que havia entre estes indivíduos.
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Considerações finais

Como afirmado por Witter (2005) o campo historiográfico relacionado as temáticas da


história da cura no Brasil colonial se encontra como um campo amplo e abrangente a novas
ideias que se desprendam dos equívocos teóricos e metodológicos que ocuparam os estudos
desta área ao longo do século XX. Portanto, o esforço realizado nesta pesquisa visou
reconhecer a importância da relação dos cirurgiões e a sociedade, pois como alcançado
através da análise e da reflexão da mesma, é possível conceber que os cirurgiões surgem
como um elemento exterior a sociedade mineira ao final do século XVII, mas se tornaram ao
longo do século XVIII intrínseco a este modelo de sociedade e a acima disto tiverem seu
espaço moldado e definido através de sua prática na colônia.
Associado a este fato, foi observado que a América portuguesa apresentou aos reinóis
um campo de oportunidades, principalmente daqueles que ocupavam posições hierárquicas
baixas devido a “manchas de sangue” ou “defeitos mecânicos” como os cirurgiões, este
aspecto foi reforçado com a descoberta do ouro, que elevou a imigração de pessoas com
algum grau de formação, permitindo uma melhora na qualidade da execução de muitos
ofícios, entre estes os relacionados ao campo da saúde. Afinal, a condição insalubre dos
territórios no interior da colônia se tornou o campo por excelência dos cirurgiões pelas
possibilidades que o comércio de remédios e dos tratamentos permitiam, além do fato de que
os cativos se tornaram pacientes que permitiam a realização de uma ponte entre os cirurgiões
e os senhores de escravos.
Este contato por sua vez consolidou uma larga fração do espaço de atuação dos
cirurgiões, pois o modelo socioeconômico desta época demandava que estes cuidassem dos
mineradores por ser um campo fértil em possíveis pacientes, este cuidado acabou se tornando
uma das categorias responsáveis pela manutenção da sociedade mineira se tornando
fundamentais do ponto de vista social e ampliando seu enriquecimento. Isto se tornou visível
através do uso do Erário Mineral, cujo autor esteve sempre reforçando o valor da experiência
para os cirurgiões e para os colonos, além de possibilitar o desenvolvimento da teoria, já que
havia uma necessidade de que os conhecimentos médicos fossem ampliados para acomodar a
compreensão de novas enfermidades e a descoberta de novos tratamentos, pois defende uma
estagnação da medicina portuguesa. Mas não ocorre neste momento uma cisão entre cirurgia e
medicina, como foi notado neste trabalho, os cirurgiões não vão abandonar as concepções do
corpo consolidadas ao longo do período medieval europeu. O que ocorreu na colônia no
campo dos saberes e práticas dos cirurgiões não foi um abandono ao conhecimento
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institucional ou uma deturpação do mesmo, o que houve foi uma adaptação necessária de
novos conhecimentos e tratamentos para que fosse suprido o déficit de conhecimento sobre as
doenças tropicais. Neste sentido, o sucesso dos cirurgiões na colônia foi pautado na sua
capacidade de adaptar suas práticas ao ambiente e sociedade específicos da região das minas.
O Erário Mineral ainda permitiu uma análise através dos detalhes escassos na obra
uma compreensão através de um detalhamento do próprio autor sobre os indivíduos com que
trabalhou ou com quem teve, além de detalhes sobre suas posses que permitiu uma
compreensão que a importância dos cirurgiões obtidos na colônia os rendeu igualmente uma
oportunidade acumular riquezas junto ao exercício de atividades ao qual não possuíam
formação como a elaboração e comércio de remédios.
A análise da fonte ainda permitiu uma visão sobre a atuação dos cirurgiões que
voltaram da colônia para metrópole após o enriquecimento causado por sua atuação na
colônia, onde se viram limitados pela rigidez que ainda havia na hierarquização e divisão dos
ofícios e conhecimentos na metrópole, o que os limitaram alguns como Luís Gomes Ferreira a
visarem a escrever tratados de cura, que se encontrava em popularidade em Portugal desde os
fins do século XVII, tais obras foram dedicados a principalmente a colônia. Sobre a recepção
na América portuguesa do Erário Mineral é possível notar que os mesmos foram
fundamentais na universalização de certos conhecimentos e práticas entre os práticos letrados.
Estes resultados foram fundamentais para compreender aquilo que havia sido proposto
para esta pesquisa que era a compreensão do lugar do cirurgião na sociedade da região de
Minas gerais do século XVIII, com o intuito de entender como foram impactados pelas
especificidades coloniais e como impactaram a sociedade através de sua atuação, pois se torna
inviável compreender uma categoria de indivíduos sempre compreender a relação destes com
o todo a sua volta. Por fim ressalta-se que como esta pesquisa se encontra em um campo que
ainda se encontra em expansão não se visou neste trabalho de forma alguma concluir ou
esgotar esta temática, apenas alcançar uma compreensão sobre as mesmas a partir do uso do
Erário Mineral.
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Fonte:

Erário Mineral Luís Gomes Ferreira; org. FURTADO, Júnia Ferreira. Belo Horizonte:
Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais; Rio de Janeiro: Fundação
Oswaldo Cruz, 2002. Disponível em: <http://books.scielo.org/id/ypf34/pdf/ferreira-
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