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Ano

 3,  n°  4  |  2013,  vol.2      


[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  HISTÓRIA  &  LITERATURA]   ISSN  [2236-­‐4846]  
 
A ESCRITA HISTÓRIA: DISTINÇÕES ENTRE O TEXTO
LITERÁRIO E O TEXTO HISTORIOGRÁFICO

Janote Pires Marques ∗

João Carlos Rodrigues da Silva ∗∗

Introdução

Por vezes, encontramos argumentações ou registros de que a escrita da


História é um tipo de literatura. Entretanto, se podem existir pontos tangentes a essa
área do conhecimento, defendemos que ao escrever a História, o pesquisador não cria
um texto literário ou ficcional, mas, sim, elabora um texto com certas especificidades
próprias dos estudos históricos. Assim, a problemática que se coloca é: que distinções
podemos fazer entre um texto literário e um texto historiográfico?
Eis aqui o mote para esse artigo, que tem como objetivo discutir elementos
que caracterizam a escrita da História como um gênero textual específico.
Quanto aos procedimentos metodológicos, a elaboração deste trabalho exigiu
uma pesquisa de abordagem predominantemente qualitativa, baseada numa
bibliografia a respeito do tema discutido. Nesse caminho, discutimos o texto histórico
sob a ótica da teoria dos gêneros do discurso (BAKHTIN, 1997; KOCH, 2004), da
teoria literária (SAMUEL, 2011; AMORA, 2006) e de alguns pensadores das Teorias
da História (BLOCH, 2011; CERTEAU, 1999; RODRIGUES, 1978; MARTINHO
RODRIGUES, 2008, 2009).

Pensando a noção de gênero textual


Estudar os gêneros textuais não é novidade no Ocidente, uma vez que, há pelo
menos vinte e cinco séculos, o filósofo Platão já se debruçava sobre a análise de
determinados gêneros literários. Hoje, percebe-se uma retomada do mesmo tema, mas


Doutorando em Educação Brasileira e Mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará
(UFC).

Doutor em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB), professor do Colégio Militar de Fortaleza
(CMF).

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sob outras perspectivas teóricas, que aqui não serão abordadas. O termo gênero
sempre esteve relacionado aos gêneros literários cuja análise, como já destacamos,
inicia-se na Grécia Antiga com Platão, continua com Aristóteles, passando por
Horácio e Quintiliano, pela Idade Média, o Renascimento e a Modernidade até o
início do século XX, com os trabalhos de Bakhtin. Atualmente, a noção de gênero não
se relaciona somente ao campo da literatura, já que passou a ser empregado para
referir uma categoria distintiva de discurso de qualquer tipo, falado ou escrito, com ou
sem características literárias (MARCUSCHI, 2002).
De acordo com Bakhtin (1997), a utilização da língua efetua-se em forma de
enunciados orais, escritos, concretos e únicos, os quais emanam dos integrantes de
uma dada esfera de atividade humana, como por exemplo, de um profissional da
medicina, da história, da engenharia, do campo, etc. O enunciado reflete as condições
específicas e as finalidades de cada esfera, ou seja, de uma forma imediata, sensível e
ágil, refletem a menor mudança na vida social. Qualquer que seja o “enunciado
considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua
elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo por isso denominados
gêneros do discurso.” (BAKHTIN, 1997, p.279).
Bakhtin (1997) propõe a seguinte classificação para os gêneros do discurso: 1)
Gênero de discurso primário (simples) – “diálogo cotidiano” / ”os tipos do diálogo
oral”: “linguagem das reuniões sociais, dos círculos, linguagem familiar, cotidiana” e
“carta”; e 2) Gênero de discurso secundário (complexo) – “romance, o teatro, o
discurso científico, o discurso ideológico”. O texto de História enquadrar-se-ia, pois,
no segundo grupo, tendo em vista que busca constituir um discurso científico – “uma
ciência em marcha” nas palavras de Marc Bloch (2001) –, ou ao menos, busca
guardar certa relação de proximidade com a cientificidade e/ou com as denominadas
ciências humanas. Inspirados em Mikhail Bakhtin (1997), parece-nos coerente
defender que o texto histórico também apresenta um conteúdo temático, que
normalmente são as narrativas das ações humanas passadas; um estilo, que se
materializa, por exemplo, nas escolhas lexicais; e uma estrutura composicional, que
se manifesta via de regra em forma de prosa.
Um dos entendimentos possíveis sobre o discurso é que ele constitui um texto
(falado, escrito, imagético) produzido num contexto, ou seja, numa situação histórico-
social que implica não somente as instituições humanas, como também outros textos
que sejam produzidos em volta e com ele se relacionem. De certa forma, um contexto

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constitui uma espécie de moldura de um texto e envolve elementos tanto da realidade
do autor quanto do receptor. A análise destes elementos ajuda a determinar o sentido
do texto. A interpretação de um texto implica, portanto, um autor – sujeito com
determinada identidade social e histórica. E o discurso reflete certa visão de mundo,
valores, ideias, necessariamente vinculados à do(s) seu(s) autor(es) e à sociedade em
que vive(m).
Buscando melhor definir a terminologia dos termos texto e discurso que
aparecem nesse artigo, seguimos o proposto por Ingedore Koch.
Chamaremos de discurso toda atividade comunicativa de um
locutor, numa situação de comunicação determinada, englobando
não só o conjunto de enunciados por ele produzidos em tal situação
– ou os seus e os de seu interlocutor, no caso do diálogo – como
também o evento de sua enunciação. O texto será entendido como
uma unidade linguística concreta (perceptível pela visão ou
audição), que é tomada pelos usuários da língua (falante, escritos /
ouvinte, leitor), em uma situação de interação comunicativa
específica, como uma unidade de sentido e como preenchendo uma
função comunicativa reconhecível e reconhecida,
independentemente da sua extensão. (KOCH e TRAVAGLIA,
1997, p.8-9).

O texto historiográfico, pois, manifesta-se como linguagem que, por sua vez,
está inserida nas coordenadas do espaço-tempo, o que configura o contexto de
produção dos textos. No nosso caso, a escrita da História. Define-se contexto de
produção como o “conjunto dos parâmetros que podem exercer influência sobre a
forma como um texto é organizado.” (BRONCKART, 1999, p.93). Fica evidente que
muitos fatores podem influenciar, tais como as condições físicas, o estado emocional
do produtor, a filiação ideológica, etc., mas só devem ser levados em conta os fatores
que exercem influência necessária. Dividi-los-emos em dois grupos: o primeiro
referente ao mundo físico; o segundo, ao mundo social e ao subjetivo.
No primeiro grupo, enquadram-se: 1) o lugar de produção, espaço físico em
que o texto – histórico, no caso – é produzido; 2) o momento de produção, a extensão
de tempo durante o qual o texto é produzido; 3) o produtor, a(s) pessoa(s) ou
entidade(s) autor(es) do texto; 4) o interlocutor, a(s) pessoa(s) ou entidade(s) a quem
o texto se destina.

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No segundo grupo, enquadram-se os parâmetros relativos ao mundo social,
uma vez que todo texto se inscreve em uma interação comunicativa, que implica a
existência de pelo menos quatro parâmetros: 1) o lugar social diz respeito ao locus –
ou esfera de atividade – onde o texto é produzido: escola, família, imprensa, exército,
administração, história, interação formal, etc.; 2) a posição social do produtor diz
respeito ao papel social do produtor do texto: professor, historiador, superior
hierárquico, instituição pública, partido político, grupo etc.; 3) a posição social do
interlocutor diz respeito ao papel social do receptor do texto, que pode ser ou não o
mesmo do produtor; 4) o(s) objetivo(s) da interação diz(em) respeito ao querer-dizer
do texto, a que efeito o texto deve produzir no(s) interlocutor(es).
Na Teoria Literária, por sua vez, ao invés de “gêneros do discurso”, emprega-
se o termo “gênero literário”, utilizado para referir um conjunto de obras que
apresentam características semelhantes de forma e conteúdo, segundo critérios
explicitados por Aristóteles na obra Arte Retórica e Arte Poética. O termo
“tradicional” se refere especificamente à divisão dos gêneros literários conhecidos
como clássicos, os quais vêm desde a primeira tentativa de organizar a produção
literária levada a cabo por Aristóteles e sedimentada na Idade Média, durante a qual
se consolidaram as três categorias básicas até hoje em uso: o gênero literário épico,
constituído por longos poemas narrativos em que um acontecimento histórico
protagonizado por um herói é celebrado em estilo grandiloquente; o gênero literário
lírico, constituído por formas líricas (elegia, écloga, ode e soneto) nas quais uma voz
particular expressa seu mundo interior carregado de sentimentos, emoções, estado de
espírito; e o gênero literário dramático, constituído por textos elaborados para serem
representados, isto é, a voz narrativa pertence às personagens, que agem por diálogo
ou por monólogo (CULLER, 1999; SAMUEL, 2011).
Buscando compreender a configuração da escrita da História como gênero
textual, destacamos algumas perspectivas e aplicações do texto historiográfico nas
sociedades ocidentais. É o que se apresenta, brevemente, no tópico a seguir.

Pensando a escrita da História

As reflexões sobre a escrita da História e sobre os saberes que constituem os


estudos históricos se interligam e variam ao longo dos tempos. Um olhar sobre os
percursos dos estudos históricos no mundo ocidental ajuda-nos a perceber o esforço

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dos historiadores nos lides com os pressupostos teóricos no campo da história.
Segundo Jacques Le Goff (2003), os historiadores antigos basearam a história na
“verdade” e deixaram definições que permaneceram válidas durante séculos, como a
ideia de “história como mestra da vida” e “luz da verdade”.
O texto historiográfico tinha, pois, certa função pública e literária. Para o “pai
da história”, Heródoto (480 a 425 a.C), a História deveria lembrar grandes feitos, ser
um relato racional e agradável, sendo que o historiador deveria investigar o passado
por meio da visão e da audição. Heródoto viajava o mundo grego colhendo histórias
que depois relatava; nos primeiros tempos, de forma oral em praça pública; depois, de
forma escrita; Heródoto sempre ressaltava a importância do testemunho direto
(FUNARI e SILVA, 2008). O relato, incluindo o que Heródoto fazia, constituía-se
numa espécie de obra literária fundada na razão, nas opiniões contrastantes, na
contraposição dos pontos de vista. Destaque-se, ainda, que havia uma preocupação
com a narrativa e com os relatos orais em Heródoto, o que era de se esperar,
considerando que, para os antigos, a memória e a História estavam ligadas de forma
bastante importante. (BOURDÉ e MARTIN, 2004).
Se Heródoto não pode ser chamado rigorosamente de “pai da História”, pois
não foi o primeiro a deixar registrado algum tipo de discurso de gênero historiográfico
(os Mesopotâmios/Acadianos, muito tempo antes, já faziam isso institucionalmente),
por outro lado pode-se dizer que com Heródoto surge pela primeira vez a figura do
historiador, como um indivíduo pensante (nos moldes dos filósofos e poetas da época)
que fazia escolhas, fossem elas por um tipo de discurso ou por determinadas reflexões
sobre a História. (BOURDÉ e MARTIN, 2004).
Para Tucídides (460 a 400 a.C), outro autor grego clássico, a História escrita
deveria servir como uma referência perene e como uma busca da verdade. Tucídides
estava preocupado apenas com a História contemporânea (de sua época). Não falava
em praça pública e não queria saber a opinião das pessoas. Tucídides preocupava-se
com a precisão do conhecimento e suas descrições eram centradas no quotidiano e na
descrição acurada do efêmero, do dia-a-dia, sem olhar o grande quadro do contexto
histórico e das causas profundas. A busca da objetividade e da precisão ligava-se a

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uma visão judiciária da história, como se a pesquisa histórica fosse uma investigação
das provas de um tribunal em busca de uma verdade (essa ideia seria retomada no
século XX pela chamada História Científica). Tucídides será uma referência
importante na historiografia moderna. (BOURDÉ e MARTIN, 2004).
Podemos perceber aspectos de um discurso histórico em Tucídides no seguinte
trecho da História da Guerra do Peloponeso:
Pode acontecer que a ausência do fabuloso em minha narrativa pareça
menos agradável ao ouvido, mas quem quer que deseje ter uma idéia clara
tanto dos eventos ocorridos quanto daqueles que algum dia voltarão a
ocorrer em circunstâncias idênticas ou semelhantes em conseqüência de
seu conteúdo humano, julgará a minha história útil e isto me bastará. Na
verdade, ela foi feita para ser um patrimônio sempre útil, e não uma
composição a ser ouvida apenas no momento da competição por algum
prêmio. (TUCÍDIDES, 2001, Livro I, p.15-16).

Vale destacar que Tucídides foi além do método puramente narrativo de


Heródoto e passou a investigar como operava o suceder histórico. No livro História
da Guerra do Peloponeso, aparece a noção de reversibilidade dos fatos, ou seja, “a
história se repete e devemos aprender com o passado”. No trecho transcrito acima,
podemos perceber a preocupação de Tucídides com a verdade e com a utilidade da
História, inclusive no que se refere ao preparo para o futuro.
Uma mudança no discurso historiográfico teria ocorrido com o advento da
História cristã, no chamado período medieval. Segundo Jacques Le Goff (2003), o
Cristianismo foi visto como uma ruptura na mentalidade histórica da Antiguidade
Clássica. Ao dar à História três pontos fixos: a Criação (início absoluto da História); a
Encarnação (início da História Cristã e da História da Salvação); e o Juízo Final (fim
da História), o “cristianismo teria substituído as concepções antigas de um tempo
circular pela noção de um tempo linear e teria orientado a História, dando-lhe um
sentido.” (LE GOFF, 2003, p.64). Nesse contexto, é que afirmara Marc Bloch (2001,
p.42): “O cristianismo é uma religião de historiador”.
Já os historiadores renascentistas, segundo Jacques Le Goff (2003), teriam
dado contribuições importantes aos estudos históricos ao fazerem certa crítica aos
documentos com a ajuda da filologia, e ao começarem a laicizar os estudos históricos
e a eliminar-lhes os mitos e as lendas.
No século XIX, a história pretendeu se emancipar da filosofia e aderir à
ciência (REIS, 2006). Nesse sentido, a história científica seria produzida por um
historiador imparcial, que se neutralizaria enquanto sujeito para fazer aparecer o seu

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objeto e que se basearia apenas em enunciados válidos para todo o tempo e lugar. O
historiador deveria evitar hipóteses e julgamentos. Os fatos falariam por si.
Decorrente dos pressupostos dessa “história ciência”, intensificou-se a valorização
dos documentos oficiais como fontes e da história política como objeto de estudo,
posições que dariam margem a críticas ao longo do século XX. Por outro lado, os
estudos históricos atualizaram o método crítico aos documentos, difundindo este
método e seus resultados por meio do ensino e das publicações (LE GOFF, 2003).
Ainda nesse breve percurso dos estudos históricos, destaque-se a “Escola dos
Annales” que, no final da década de 1920, defendeu a substituição da tradicional
narrativa por uma história-problema; propôs a história de todas as atividades humanas
e não apenas história política; promoveu a ampliação da noção de documento e o
diálogo da história com outras áreas do conhecimento. Constituiu-se, assim, no que
Peter Burke (1997) denominou de “A Revolução Francesa da historiografia”.
Sem desmerecer a história-problema proposta pelos Annales e ampliada pela
História Social, consideramos plausível uma valorização da narrativa para a produção
historiográfica, pois o desprezo pela narrativa pode contribuir para supervalorizar as
explicações teoréticas, submetidas a certas “leis” ou paradigmas históricos.
(MARTINHO RODRIGUES, 2009).
Eis aqui o gancho para a nossa discussão sobre a escrita da História como uma
gênero textual não-ficcional e que constituiu uma narrativa composta basicamente por
três elementos: ambiente (físico, cultural, psicológico), personagens (que fazem
escolhas e tomam decisões) e enredo (articulando os significados dos fatos,
personagens e ambiente). Por outro lado, quanto à validade da narrativa (crônica) fica
o alerta de Rui Martinho Rodrigues (2009, p.431): “Não se confunda crônica com
lista telefônica”. Noutros termos, defendemos que a escrita da História é uma
narrativa, mas que deve seguir critérios teóricos e metodológicos ligados ao fazer
histórico e que, ao mesmo tempo, esses critérios sejam explicitados ao leitor da obra.
Somemos aqui três características de um texto historiográfico, segundo
Antoine Prost. 1) Um texto saturado: que contenha narrativa, argumentação, fatos,
justificativas do tema e do tempo (cronologia); 2) Um texto objetivado e digno de

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crédito: que evita juízo de valor; referencia outras pesquisas históricas; 3) Um texto
manuseado: desdobra-se na interrelação dos discursos do historiador e dos outros
pesquisadores (PROST, 2012).
Ainda considerando a escrita da História, são instigantes as considerações de
Michel de Certeau (2009) de que a “operação historiográfica” deve ser compreendida
como uma relação entre o lugar (socioeconômico, político, cultural) de onde o
historiador fala, a escrita (tentativa de representar a realidade vivida) e uma técnica,
que seria justamente o trabalho com as fontes. O segundo aspecto se refere aos
procedimentos metodológicos. Aproximamo-nos do que Paul Ricouer (2007)
denomina de fase documental, indo da declaração das testemunhas oculares à
constituição dos arquivos.
Faz-se necessário salientar, portanto, que, no trabalho com as fontes, há uma
técnica. “Em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar
em ‘documentos’ certos objetos distribuídos de outra maneira”. (CERTEAU, 2006,
p.81). Assim, “fazer história” é também uma prática. Das fontes guardadas nos
arquivos o pesquisador faz outra coisa: a História (aqui, com “H” maiúsculo). Nesse
percurso, o historiador é uma espécie de mediador entre os homens passados e os
homens presentes. Afirma José Honório Rodrigues que “um problema histórico é
sempre uma questão levantada pelo presente em relação ao passado” (RODRIGUES,
1978, p.28).
A História, pois, não é apenas dos mortos, mas, igualmente, dos vivos. A base
do fazer histórico interliga-se às fontes ou, nas palavras de Marc Bloch, aos
“testemunhos” do passado que, por sua vez, “não falam senão quando sabemos
interrogá-los.” (BLOCH, 2001, p.79). Entretanto, para cada tipo de fonte histórica o
historiador utiliza e explicita suas metodologias de pesquisa, bem como a organização
dos dados que, por sua vez vão embasar sua escrita. Fontes arqueológicas, impressas,
orais, audiovisuais, dentre outras, têm suas especificidades e o historiador faz
escolhas e utiliza certas técnicas e procedimentos ao abordar cada um desses tipos de
fontes.
A escrita da História passa, portanto, pelas fontes às quais se tem acesso ou se
escolhe ter acesso e às quais são múltiplas as possibilidades de tratamentos.
Entendemos, então, que não se pode perder de vista que “entre o pesquisador e os
fatos encontram-se as fontes históricas”. (MARTINHO RODRIGUES, 2008, p.437).
Admite-se, assim, a subjetividade na escrita da História, mas não o subjetivismo.

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O subjetivismo – considerado aqui como criação, como invenção criativa –
estaria presente se a História, enquanto texto, fosse ficcional, o qual pode desfrutar de
várias modalidades de liberdade. A primeira é
a liberdade de criação que o autor de ficção tem como traço
essencial de seu trabalho. A segunda, um desdobramento desta
primeira, é a liberdade que o ficcionista dispõe para utilizar
qualquer informação que achar pertinente para compor essa
memória, condição sine qua non para o extravasamento de sua
criatividade. A terceira, ainda decorrente das duas outras, nos
remete à liberdade do autor em recorrer a diferentes formas de
expressão para materializar o enredo ficcional veiculador dessa
memória: texto, poema, canto, imagens, liberdade, que lhe permite
atingir um público muito mais amplo do que outras narrativas. A
quarta é a liberdade que o público consumidor dessa narrativa
também desfruta na decodificação e incorporação do enredo
ficcional. (MARSON, 2004).

Essas liberdades das quais trata Marson, o historiador não as tem. Se as tivesse
e as utilizasse, não seria texto de história, seria texto ficcional. O que ele pode fazer é
valer-se de uma obra ficcional com o intuito de subsidiar seu trabalho de pesquisa.
Isso ocorreria, por exemplo, se um historiador se valesse de informações da Ilíada e
da Odisséia para ajudar a explicar ou compreender determinados fatos históricos da
época narrada.
Culler (1999) aborda a distinção entre o discurso ficcional e o não-ficcional,
destacando que o discurso não-ficcional geralmente está inserido num contexto que
diz ao leitor como considerá-lo, entendê-lo e lê-lo, como ocorre, por exemplo, em um
manual de instrução, uma notícia de jornal, uma carta de uma instituição de caridade.
O contexto da ficção, por sua vez, “explicitamente deixa aberta a questão do que trata
realmente a ficção. A referência ao mundo não é tanto uma propriedade das obras
literárias quanto uma função que lhes é conferida pela interpretação” (CULLER,
idem, p.38).
Ainda de acordo com Culler (Id. Ib.), a obra literária, exemplo paradigmático
de ficção, é um evento linguístico que projeta um mundo ficcional que inclui falante,
atores, acontecimentos e um público implícito (um público que toma forma através
das decisões da obra sobre o que deve ser explicado e o que se supõe que o público
saiba). As obras literárias, com exceção da literatura de testemunho, referem-se

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principalmente a indivíduos imaginários e não-históricos (Policarpo Quaresma,
Capitu, por exemplo), mas a ficcionalidade não se limita a personagens e
acontecimentos. Da nossa parte, acrescentamos que os textos históricos, em
contrapartida, se referem a indivíduos reais e históricos (Pedro Álvares Cabral, D.
Pedro II, por exemplo) sobre os quais o historiador pesquisa, com dada metodologia e
em dadas fontes, e escreve pretendendo uma interpretação, normalmente uma que
seja, a seu ver, livre de ambiguidades ou polissemias. A interpretação da obra
literária, ainda segundo Culler, depende da relação leitor-obra. Relação esta que é
aberta, no sentido de que o leitor decide, não sem influência de sua formação
sociocultural, qual é a sua própria interpretação. Citemos, então, o exemplo dado por
Culler (op. cit., p.39):
Interpretar Hamlet é, entre outras coisas, uma questão de decidir se
a peça deveria ser lida como uma discussão, digamos, dos
problemas de príncipes dinamarqueses, ou dos dilemas de homens
da Renascença que estão vivendo a experiência das mudanças na
concepção do eu, ou das relações entre os homens e suas mães em
geral, ou da questão de como as representações (inclusive as
literárias) afetam o problema da compreensão de nossa experiência.
O fato de haver referências à Dinamarca ao longo da peça não
significa que você necessariamente a lê como sendo sobre a
Dinamarca; essa é uma decisão interpretativa. Podemos relacionar
Hamlet ao mundo de diferentes maneiras, em diversos níveis
diferentes. A ficcionalidade da literatura separa a linguagem de
outros contextos nos quais ela poderia ser usada e deixa a relação da
obra com o mundo aberta à interpretação.

Interpretar um texto histórico, por seu turno, tende a ser uma atividade de
leitura exatamente o contrário do que ocorre com uma obra de ficção, na medida em
que se espera que o leitor associe as informações constantes no texto ao contexto real.
Em decorrência disso, a relação da obra de história com o mundo deixaria de ser
aberta a inúmeras interpretações.
Em suma, o texto, para ser considerado literário e ficcional, apresenta em si as
seguintes características: criação de um mundo ficcional, que apresenta
verossimilhança com o mundo real; relação não-imediatista, o que significa que não
há em que, nem como utilizá-lo de imediato; suspensão das convenções de
significados correntes, ou seja, há presença do fabuloso, ao contrário do se refere
Tucídides, há presença da linguagem figurada, conotativa; despreocupação com a
sistematização, típica dos textos científicos, que prezam por uma metodologia;
despreocupação com o saber, considerado aqui como o saber sistematizado;

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inexistência da utilidade prática, ou seja, um imediatismo, um objetivo específico.
(CULLER, 1999).
Como se vê, definitivamente o texto de história não se enquadra como
literário, muito menos como ficcional, uma vez que, conforme dito anteriormente, o
historiador – o produtor do texto – utiliza e explicita a metodologia de pesquisa
escolhida, bem como a organização dos dados embasadores de sua escrita. O
historiador, ainda, utiliza-se de diversas fontes (arqueológicas, impressas, orais,
audiovisuais, etc.) e de técnicas e procedimentos ao abordar cada uma das fontes.

Considerações finais
A partir da análise, é possível fazermos uma distinção entre a história como
gênero literário tradicional e a História como gênero textual.
A história como gênero literário tradicional é uma narrativa que busca
transmitir um conhecimento intuitivo e individual, cujas regras de expressão são
criadas pelo artista (AMORA, 2006). Cremos que os textos históricos que mais se
aproximam dessa categoria são, por exemplo, as primeiras manifestações “literárias”
no Brasil, conhecidas como literatura de viagem, que tinham o objetivo de informar
como eram os povos nativos, seus hábitos e seus costumes, e como era a nova terra
aos habitantes europeus. Isso criou um desafio interessante para os autores à época: de
que forma apresentar por intermédio do texto escrito um mundo completamente
diferente do europeu?
A solução encontrada pode ser contrastada no estilo dos textos – ou seja, nas
escolhas lexicais – nos quais predomina uma estrutura descritiva rica em adjetivações
e comparações, as quais beiram o caráter literário, tudo sob a visão de mundo peculiar
de um europeu do século XVI. Enquadrar-se-iam aqui, ainda a guisa de exemplo,
certas lendas, histórias infantis ou outras obras de ficção. Importa destacar que essas
obras devem ser entendidas como lugar onde há a “presença marcante e irrefreável do
imaginário” (SAMUEL, 2011, p.45). De certa forma, era o que às vezes acontecia
também nas descrições da nova terra elaboradas pelos viajantes.

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A História como gênero textual na perspectiva sociodiscursiva é uma narrativa
na qual o historiador seleciona informações registradas em fontes históricas e, a partir
desses dados, escreve sua versão sobre o passado. A escrita da História, nessa
perspectiva, é não-ficcional porque o historiador, tanto quanto um jornalista, não
pode, por exemplo, inventar ou criar livremente personagens e suas respectivas ações,
reações e comportamento em um dado ambiente durante o decorrer do tempo. Caso o
faça, incorrerá em fraude, o que lhe renderá no mínimo o descrédito perante os
colegas de profissão. Aliás, a título de ilustração, esse tipo tentador de fraude
aconteceu com a repórter Jane Cooke, do Washington Post, que apurou, redigiu e
publicou naquele conceituado diário uma história sensacional a respeito de um garoto
viciado em heroína. De tão boa, a reportagem rendeu-lhe o Prêmio Pulitzer de
Jornalismo. Desconfiaram da história, pressionaram-na, e ela admitiu que tudo era
ficção. Em consequência, perdeu o emprego e a credibilidade, e devolveu o prêmio.
O historiador, também o jornalista, pode sim tomar conhecimento das ações
dos personagens, analisá-las, interpretá-las e tentar apreender (mas não fantasiar) o
significado delas ao longo do tempo. Afinal, um historiador é um cidadão, um autor,
um sujeito, com determinada identidade social e histórica, e seu discurso, conforme
visto, reflete certa visão de mundo, valores, ideias, necessariamente vinculados à
do(s) seu(s) autor(es) e à sociedade em que vive(m). São nesses termos em que
ocorrem, ou deveriam ocorrer, as narrativas históricas produzidas pelos historiadores.
A História como gênero textual materializa-se, enfim, em um texto, no qual
sobressaem sequências narrativas e descritivas, sobre personagens e fatos reais,
elaborado por um pesquisador no presente. É indispensável também que sejam
estabelecidos objetivos de pesquisa, referenciais teóricos, explicitando-se sua
metodologia de pesquisa e as técnicas utilizadas no trato das fontes.

Referências Bibliográficas

AMORA, Antônio Soares. Introdução à teoria da literatura. 13. ed. São Paulo:
Cultrix, 2006.

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BAKHTIN, M.M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BARROS, José D’Assunção. Teoria da História. Princípios e conceitos
fundamentais.Vol. 1. 2. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2011.
______. Teoria da História. Os primeiros paradigmas: positivismo e historicismo.
Vol. 2. Rio de Janeiro: Vozes, 2011.
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