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Sociedade, cultura, matemática e seu ensino

Ubiratan D’Ambrósio
Universidade Estadual de Campinas

Resumo

Uma dos efeitos da sociedade globalizada é uma forte tendência


para eliminar diferenças, promovendo uma cultura planetária.
Particularmente afetados são os sistemas educacionais, que pas-
sam por forte pressão dos estudos e avaliações internacionais,
inevitavelmente comparativas e, lamentavelmente, competitivas.
Como resultado, nota-se a paulatina eliminação de componentes
culturais na definição dos sistemas educacionais. Fica evidente a
formação de novos imaginários sociais, desprovidos de referentes
históricos, geográficos e temporais, caracterizados por uma forte
presença da cultura da imagem. Os critérios classificatórios esta-
belecem um referencial inidôneo, que tem como conseqüência
definir práticas e mesmo sistemas educacionais.
Por outro lado, ativam-se mecanismos, muitas vezes inconscientes, de
resistência, que buscam preservar e recuperar os traços identificadores
de uma cultura, tais como as tradições, a culinária, os idiomas, mani-
festações artísticas em geral, e, desse modo, contribuir para a diver-
sidade cultural, fator essencial para estimular a criatividade. Neste
artigo examinam-se as bases socioculturais da matemática e de seu
ensino e também as conseqüências da globalização e seus reflexos na
educação multicultural. Discutem-se o conceito de cultura e as ques-
tões ligadas à dinâmica cultural, propondo-se uma teoria de conhe-
cimento transdisciplinar e transcultural. Sobre essa base, o Programa
Etnomatemática é apresentado.
É também feita uma crítica ao currículo atualmente praticado, que
é, em sua concepção e detalhamento, obsoleto, desinteressante e
pouco útil. Um outro conceito de currículo, baseado nos instru-
mentos comunicativos (literacia), analíticos (materacia) e materiais
(tecnoracia), é proposto.

Palavras-chave

Etnomatemática — Multiculturalismo — Globalização — Currículo.

Correspondência:
Ubiratan D’Ambrósio
Rua Peixoto Gomide, 1772 ap. 83
01409-002 – São Paulo – SP
e-mail: ubi@usp.br

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 1, p. 99-120, jan./abr. 2005 99


Society, culture, mathematics and its teaching

Ubiratan D’Ambrósio
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Abstract

One of the effects of the globalized world is a strong tendency to


eliminate differences, promoting a planetary culture. Education
systems are particularly affected, undergoing strong pressure
from international studies and evaluations, inevitably
comparative, and sadly competitive. As a result, one observes the
gradual elimination of cultural components in the definition of
education systems. The constitution of new social imaginaries
becomes clear; imaginaries empty of historical, geographical and
temporal referents, characterized by a strong presence of the
culture of the image. The criteria of classification establish an
inappropriate reference that has as its consequence the definition
of practices and even of education systems.
On the other hand, resistance mechanisms, often unconscious, are
activated seeking to safeguard and recover the identifying features
of a culture, such as its traditions, cuisine, languages, artistic
manifestations in general, and, in doing so, to contribute to cultural
diversity, an essential factor to encourage creativity. In this article, the
sociocultural basis of mathematics and of its teaching are examined,
and also the consequences of globalization and its effects on
multicultural education. The concept of culture is discussed, as well
as issues related to culture dynamics, resulting in the proposition of
a theory of transdisciplinar and transcultural knowledge. Upon such
basis the Ethnomathematics Program is presented.
A critique is also made of the curriculum presently used, which is
in its conception and detailing, obsolete, uninteresting and of
little use. A different concept of curriculum is proposed, based on
the communicative (literacy), analytical (matheracy), and material
(technoracy) instruments.

Keywords

Ethnomathematics — Multiculturalism — Globalization — Curriculum.

Contact:
Ubiratan D’Ambrósio
Rua Peixoto Gomide, 1772 ap. 83
01409-002 – São Paulo – SP
e-mail: ubi@usp.br

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Preliminares tar o passo” com os parâmetros internacionais
e ao mesmo tempo satisfazer as demandas de
A sociedade está passando por grandes contextos culturais que buscam identidade, re-
transformações, com profundos reflexos na edu- conhecimento e recuperação. Os resultados
cação. Hoje falamos em educação bilíngüe, em têm sido, o que é de se esperar, mal interpre-
medicinas alternativas, no diálogo interreligioso. tados e têm causado reação e um reforço de
Inúmeras outras formas de multiculturalismo são medidas punitivas para que se “acerte o pas-
notadas nos sistemas educacionais e na sociedade so”. O multiculturalismo na educação tem sido
em geral. Isso parece contraditório quando se vê a grande vítima dessa reação. Neste trabalho
que o mundo passa por um intenso processo de focalizarei essa situação.
mundialização, que afeta os aspectos econômicos
e financeiros, e se manifesta fortemente nas no- Uma proposta multicultural
vas tecnologias da informação e comunicação,
que socializam e difundem novos paradigmas, Um resultado esperado dos sistemas
sistemas de pensamento, valores e modelos de educacionais é a aquisição e produção de co-
comportamento. O termo mundialização está as- nhecimento. Isto se dá fundamentalmente a
sociado, portanto, à construção coletiva e alter- partir da maneira como um indivíduo percebe a
nativa de uma nova ordem social mundial,1 cujas realidade nas suas várias manifestações: uma
transformações nos sistemas de transporte, de realidade individual, nas dimensões sensorial,
comunicação, de informatização, de produção e intuitiva, emocional, racional; uma realidade
de emprego, resultam numa aceleração desse social, que é o reconhecimento da essencialidade
processo e, conseqüentemente, dão origem à do outro; uma realidade planetária, o que mos-
globalização. tra sua dependência do patrimônio natural e
Na sociedade globalizada há uma for- cultural e sua responsabilidade na sua preserva-
te tendência para eliminar diferenças, promo- ção; uma realidade cósmica, levando-o a trans-
vendo uma cultura planetária. Os sistemas edu- cender espaço e tempo e a própria existência,
cacionais são particularmente afetados, pois são buscando explicações e historicidade.
pressionados pelos estudos e pelas avaliações As práticas ad hoc para lidar com situa-
internacionais, inevitavelmente comparativas e, ções problemáticas surgidas da realidade são o
lamentavelmente, competitivas. Como resultado, resultado da ação de conhecer. Isto é, o conhe-
nota-se a paulatina eliminação de componen- cimento é deflagrado a partir da realidade. Co-
tes culturais na definição dos sistemas educa- nhecer é saber e fazer.
cionais. Fica evidente a formação de novos A geração e acúmulo de conhecimento
imaginários sociais, desprovidos de referentes em uma cultura obedece a uma forma de coe-
históricos, geográficos e temporais, caracteriza- rência. No Harmonia mundi (1618), Johannes
dos por uma forte presença da cultura da ima- Kepler sugere uma comunalidade de ações na
gem. Os critérios classificatórios estabelecem qual se manifesta o Zeitgeist, que viria a ser
um referencial inidôneo, que tem como conse- fundamental na proposta historiográfica de
qüência definir práticas e mesmo sistemas edu- Hegel (1770-1831). Essa comunalidade de ações
car os traços identificadores de uma cultura, caracteriza uma cultura.
tais como as tradições, a culinária, os idiomas, Uma cultura é identificada pelos seus
manifestações artísticas em geral, e, desse sistemas de explicações, filosofias, teorias, e
modo, contribuir para a diversidade cultural, ações e pelos comportamentos cotidianos. Tudo
fator essencial para estimular a criatividade.
Os sistemas educacionais têm reagido 1. Nesse aspecto é interessante uma visita ao site www.unesco.org/most
a essa situação contraditória de ter que “acer- e ver o projeto MOST (Management of social transformations) da Unesco.

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isso se apóia em processos de comunicação, de A idéia do Programa Etnomatemática
representações, de classificação, de compara- surgiu da análise de práticas matemáticas em
ção, de quantificação, de contagem, de medi- diversos ambientes culturais e foi ampliada para
ção, de inferências. Esses processos se dão de analisar diversas formas de conhecimento, não
maneiras diferentes nas diversas culturas e se apenas as teorias e práticas matemáticas. E é um
transformam ao longo do tempo. Eles sempre estudo da evolução cultural da humanidade no
revelam as influências do meio e se organizam seu sentido amplo, a partir da dinâmica cultural
com uma lógica interna, se codificam e se for- que se nota nas manifestações matemáticas.
malizam. Assim nasce o conhecimento. O ponto de partida é o exame da histó-
Procuramos entender o conhecimento e ria das ciências, das artes, das religiões em vá-
o comportamento humanos nas várias regiões rias culturas. Adotamos um enfoque externalista,
do planeta ao longo da evolução da humanida- o que significa procurar as relações entre o
de, naturalmente reconhecendo que o conhe- desenvolvimento das disciplinas científicas ou
cimento se dá de maneira diferente em cultu- das escolas artísticas ou das doutrinas religiosas
ras diferentes e em épocas diferentes. e o contexto sociocultural em que tal desenvol-
Em meados da década de 1970 come- vimento se deu. O programa vai além desse
ça a tomar corpo um programa educacional de- externalismo, pois aborda também as relações
nominado Programa Etnomatemática. Embora íntimas entre cognição e cultura.
este nome sugira ênfase na matemática, ele é O Programa Etnomatemática se apre-
um estudo da evolução cultural da humanida- senta como um programa de pesquisa sobre
de no seu sentido amplo, a partir da dinâmica história e filosofia da matemática, com impor-
cultural que se nota nas manifestações matemá- tantes reflexos na educação, conforme expli-
ticas. Mas que não se confunda com a matemá- citado em D’Ambrosio (1992).
tica no sentido acadêmico, estruturada como Neste momento é importante esclarecer
uma disciplina. Sem dúvida, essa matemática é que entendo matemática como uma estratégia
importante, mas, de acordo com o eminente desenvolvida pela espécie humana ao longo de
matemático Roger Penrose, ela representa uma sua história para explicar, para entender, para
área muito pequena da atividade consciente manejar e conviver com a realidade sensível,
que é praticada por uma pequena minoria de perceptível, e com o seu imaginário, natural-
seres conscientes para uma fração muito limi- mente dentro de um contexto natural e cultu-
tada de sua vida consciente. O mesmo pode-se ral. Isso se dá também com as técnicas, as ar-
dizer sobre a ciência acadêmica em geral. tes, as religiões e as ciências em geral. Trata-se
Em essência, o Programa Etnomate- essencialmente da construção de corpos de
mática é uma proposta de teoria do conheci- conhecimento em total simbiose, dentro de um
mento, cujo nome foi escolhido por razões que mesmo contexto temporal e espacial, que ob-
serão explicadas mais adiante. Na verdade, viamente tem variado de acordo com a geogra-
poderia igualmente ser denominado Programa fia e a história dos indivíduos e dos vários
Etnociência. Recorrendo à etimologia, ciência grupos culturais a que eles pertencem — famí-
vem do latim scio, que significa saber, conhe- lias, tribos, sociedades, civilizações. A finalida-
cer, e matemática vem do grego mátema, que de maior desses corpos de conhecimento tem
significa ensinamento, e podemos, portanto, sido a vontade, que é efetivamente uma neces-
concluir que os Programas Etnomatemática e sidade, desses grupos culturais de sobreviver no
Etnociência se complementam. Na verdade, na seu ambiente e de transcender, espacial e tem-
acepção que proponho, eles se confundem. poralmente, esse ambiente.
Isso é discutido amplamente em D’Ambrosio Vejo a educação como uma estratégia
(1990 e 2001). de estímulo ao desenvolvimento individual e

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coletivo gerada por esses mesmos grupos cul- possibilidade de se chegar ao conhecimento
turais, com a finalidade de se manterem como total e final e, portanto, permanentemente
grupo e de avançarem na satisfação das neces- buscando novas explicações e novo conheci-
sidades de sobrevivência e de transcendência. mento e, conseqüentemente, modificando com-
Conseqüentemente, Matemática e Edu- portamentos. Ela substitui a arrogância men-
cação são estratégias contextualizadas e inter- cionada acima, pela humildade da busca inces-
dependentes. Procuro entender a evolução de sante, cujas conseqüências são respeito, solida-
ambas e analisar as tendências como as vejo no riedade e cooperação. Portanto, deve se apoiar,
estado atual da civilização. E daí fazer algumas necessariamente, na recuperação das várias di-
propostas. Essa é a essência deste trabalho, mensões do ser humano.
dentro das limitações próprias. As disciplinas dão origem a métodos
Ao reconhecer que o momento social específicos para conhecer objetos de estudo bem
está na origem do conhecimento, o programa, definidos. Os métodos e os resultados assim
que é de natureza holística, procura compatibilizar obtidos, que se referem a questionamentos cla-
cognição, história e sociologia do conhecimento ramente identificados, constituem um corpo
e epistemologia social, num enfoque multicultural. nomeado de conhecimento.
Desde os primeiros tempos de identifi-
Sobre a questão do cação de corpos de conhecimento como disci-
conhecimento e a noção de plinas, variantes dessa organização têm sido
cultura propostas. A multidisciplinaridade procura reu-
nir resultados obtidos mediante o enfoque dis-
O enfoque holístico à história do conhe- ciplinar, como se pratica nos programas de um
cimento consiste essencialmente de uma análi- curso escolar. A interdisciplinaridade, muito
se crítica da geração e produção de conheci- procurada e praticada hoje em dia, sobretudo
mento, da sua organização intelectual e social, nas escolas, transfere métodos de algumas dis-
e da sua difusão. No enfoque disciplinar, essas ciplinas para outras, identificando assim novos
análises se fazem desvinculadas, subordinadas a objetos de estudo.
áreas de conhecimento muitas vezes estanques: Ambas as extensões do conceito de
ciências da cognição, epistemologia, ciências e disciplina já haviam sido antecipadas em 1699
artes, história, política, educação, comunicações. por De Fontenelle, então secretário da Acadêmia
Considerando que a percepção de fatos de Ciências de Paris, ao dizer:
é influenciada pelo conhecimento, ao se falar
em história do conhecimento estamos falando Até agora a Academia considera a natureza
da própria história do homem e do seu habitat só por parcelas... Talvez chegará o momento
no sentido amplo, isto é, da Terra e mesmo do em que todos esses membros dispersos (as
Cosmos. A ciência moderna, ao propor “teorias disciplinas) se unirão em um corpo regular;
finais”, isto é, explicações que se pretendem e se são como se deseja, juntar-se-ão por si
definitivas sobre a origem e a evolução das mesmas de certa forma. (1699, p. XIX)
coisas naturais, esbarra numa postura de arro-
gância, que tem como conseqüência inevitável Assim, a transdisciplinaridade vai além
comportamentos incontestáveis. Como questio- das limitações impostas pelos métodos e obje-
nar o comportamento de quem está convencido tos de estudos das disciplinas e das interdis-
de saber? ciplinas. O processo psico-emocional de gera-
Ao contrário desta postura, a transdis- ção de conhecimentos, que é a essência da
ciplinaridade é um enfoque holístico ao conhe- criatividade, pode ser considerado em si um
cimento, baseado no reconhecimento da im- programa de pesquisa, é categorizado através

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de questionamentos: como passar de práticas novos campos de estudo. Surgiram a neurofi-
ad hoc a modos de lidar com situações e pro- siologia, a físico-química, a mecânica quântica.
blemas novos e a métodos?; como passar de Inevitavelmente, essas áreas interdisciplinares fo-
métodos a teorias?; como proceder da teoria à ram criando métodos próprios e definindo obje-
invenção?. Essas são as questões básicas que tos próprios de estudo. Assim, tornaram-se disci-
servem de suporte para a pesquisa inerente ao plinas em si e surgiram então os especialistas em
Programa Etnomatemática. áreas interdisciplinares. As interdisciplinas rapida-
Explicitando, essas perguntas envolvem mente revelaram limitações semelhantes àquelas
processos de: geração e produção de conheci- das disciplinas tradicionais.
mento; organização intelectual; organização É oportuno, aqui, falarmos de cultura.
social; difusão; que são normalmente tratados Há muitos escritos e teorias fortemente ideoló-
de forma isolada, como disciplinas específicas, gicas sobre o que é cultura. Consideramos
tais como ciências da cognição (geração de cultura como o conjunto de mitos, valores,
conhecimento), epistemologia (organização in- normas de comportamento e estilos de conhe-
telectual do conhecimento), história, política e cimento compartilhados por indivíduos viven-
educação (organização social, institucionalização do num determinado tempo e espaço.
e difusão do conhecimento). Ao longo da história, as percepções de
O método chamado moderno para se tempo e de espaço foram se transformando. A
conhecer algo, explicar um fato e um fenômeno, comunicação entre gerações e o encontro de
baseia-se no estudo de disciplinas específicas, o grupos com culturas diferentes criam uma di-
que inclui métodos específicos e objetos de es- nâmica cultural e não podemos pensar numa
tudo próprios. Esse método pode ser traçado cultura estática, congelada em tempo e espaço.
desde Descartes, e se caracteriza pelo reducio- Essa dinâmica é lenta e o que percebemos na
nismo. Mas logo esse método se mostrou insufi- exposição mútua de culturas é ou uma subor-
ciente, e já no século XVII surgiram tentativas de dinação cultural, e algumas vezes até mesmo
se reunir conhecimentos e resultados de várias destruição de uma das culturas em confronto,
disciplinas para o ataque a um problema. O indi- ou a convivência multicultural. Uma interessan-
víduo deve procurar conhecer mais coisas para te discussão sobre dinâmica cultural encontra-
conhecer melhor. As escolas praticam essa multi- se em Bateson (1972). Naturalmente, a convi-
disciplinaridade, que hoje está presente em pra- vência multicultural representa um progresso
ticamente todos os programas escolares. no comportamento das sociedades, muitas ve-
Metaforicamente, as disciplinas funcio- zes conseguido após violentos conflitos. Ago-
nam como os canais de televisão ou os progra- ra, não sem problemas, o multiculturalismo
mas de processamento em computadores. É ganha espaço na educação. A dinâmica cultu-
necessário sair de um canal ou fechar um ral intensifica-se, graças às novas tecnologias
aplicativo para poder abrir outro. Isso é a de informação e de comunicação, e podemos
multidisciplinaridade. Mas uma grande inova- pensar na possibilidade de uma cultura plane-
ção é poder trabalhar com vários canais ou tária, união não disjunta de várias culturas lo-
aplicativos simultaneamente, criando novas calizadas em tempo e espaço.
possibilidades de criação e utilização de recur- Enquanto os instrumentos de observa-
sos. A interdisciplinaridade corresponde a isso. ção (aparelhos — artefatos ) e de análise (con-
Não só justapõe resultados, mas mescla méto- ceitos e teorias — mentefatos) eram mais limi-
dos e, conseqüentemente, identifica novos tados, o enfoque interdisciplinar se mostrava
objetos de estudo. satisfatório. Mas com a sofisticação dos novos
A interdisciplinaridade teve um bom de- instrumentos de observação e de análise, que
senvolvimento no século passado e deu origem a se intensificou em meados do século XX, vê-se

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que o enfoque interdisciplinar se tornou insu- áreas de competência. Aos psicólogos compe-
ficiente. Há uma contradição evidente entre a te se preocuparem com “a”, aos filósofos com
ânsia por uma cultura planetária, de conheci- “b”, aos pedagogos com “c” e “d”, e aos ma-
mento mais amplo e profundo, e o necessário temáticos com “e”. Como se fosse possível se-
ideal de respeito, solidariedade e cooperação parar essas áreas.
entre todos os indivíduos e todas as nações, e Propomos uma abordagem holística da
a preservação de culturas tradicionais. Essa é a educação, em particular da Educação Matemá-
maior dificuldade que temos para lidar com a tica. Falar em uma abordagem holística sempre
mundialização, e não creio que as práticas causa alguns arrepios no leitor ou no ouvinte.
interdisciplinares sejam adequadas para superar Assim como falar em transdisciplinaridade, em
essa dificuldade. etnomatemática, em enfoque sistêmico, em
Não negamos que o conhecimento dis- globalização e em multiculturalismo. Salvo
ciplinar, conseqüentemente o multidisciplinar e nuances, todas essas denominações refletem o
o interdisciplinar, sejam úteis e importantes, e mesmo e amplo esforço de contextualizar nos-
continuarão a ser ampliados e cultivados, mas sas ações, como indivíduos e como sociedade,
somente poderão conduzir a uma visão plena na concretização dos ideais de paz e de uma
da realidade se forem subordinados ao conhe- humanidade feliz. Reconheço que essa é minha
cimento transdisciplinar. E, como se mostra em utopia. E como educador procuro orientar mi-
D’Ambrosio (1999), a educação está caminhan- nhas ações nessa direção. Como ser educador
do, rapidamente, em direção a uma educação sem uma utopia?
transdisciplinar. Quando se fala em uma Educação para
A conseqüência mais notada para essa a Paz, a maioria vem com o questionamento:
tendência será discutida no curso deste traba- “Mas o que tem isso a ver com a Educação
lho, retomando e detalhando aspectos da rela- Matemática?”. E eu respondo “Tem tudo a ver”.
ção entre sociedade, cultura, matemática e seu Poderia sintetizar meu posicionamento
ensino. dizendo que só se justifica insistirmos em edu-
cação para todos se for possível conseguir, atra-
Sobre educação, paz e vés dela, melhor qualidade de vida e maior dig-
educação matemática nidade da humanidade como um todo. A digni-
dade de cada indivíduo se manifesta no encon-
A educação em geral depende de va- tro de cada indivíduo com outros. Portanto,
riáveis que se aglomeram em direções muito atingir o estado de paz interior é uma prio-
amplas: a) o aluno que está no processo edu- ridade. Mas isso é difícil, sobretudo devido aos
cativo, como um indivíduo procurando realizar inúmeros problemas que enfrentamos no dia-a-
suas aspirações e responder às suas inquieta- dia, particularmente no relacionamento com o
ções; b) sua inserção na sociedade e as expec- outro. Não deveríamos deixar de fazer um es-
tativas da sociedade com relação a ele; c) as forço para perceber se o outro também estará
estratégias dessa sociedade para realizar essas tendo dificuldades em atingir o estado de paz
expectativas; d) os agentes e os instrumentos interior. Muitas vezes vemos que o outro está
para executar essas estratégias; e) o conteúdo tendo problemas que resultam de dificuldades
que é parte dessa estratégia. materiais, como falta de segurança, falta de
Lamentavelmente, na organização dos emprego, falta de salário, muitas vezes até
nossos cursos de formação de professores, e mesmo falta de casa e de comida. A solidarie-
igualmente na pós-graduação, tem havido ên- dade com o próximo é a primeira manifestação
fase reducionista para lidar com essas variáveis. de nos sentirmos parte de uma sociedade. A
E cria-se a figura do especialista, com suas Paz Social será um estado em que essas situa-

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ções não ocorrerão. E sem dúvida alguém sol- mental matemático, que é o trinômio de 2° grau,
taria a clássica pergunta: “Mas o que tem a é o que dá a certos indivíduos — artilheiros pro-
Matemática a ver com isso?”. Não me cabe fissionais, que foram, provavelmente, os melhores
outra resposta senão a de sugerir que se pen- alunos de matemática da sua turma — a capaci-
se e entenda um pouco da história da humani- dade de dispararem uma bomba mortífera de um
dade para perceber que tem “tudo a ver”. canhão para atingir uma população de seres
Também poucos entendem como a paz humanos, de carne e osso, de emoções e dese-
ambiental pode ter relações com a matemática, jos, e matá-los, destruir suas casas e templos,
que é sempre pensada como aplicada ao de- destruindo árvores e animais que estejam por
senvolvimento e ao progresso. Lembro que a perto, poluindo lagoas ou rios próximos. E ao vol-
ciência moderna, que repousa em grande par- tar da missão, receber com tranqüilidade elogios
te na matemática, nos fornece instrumentos e condecorações. A mensagem implícita acaba
notáveis para um bom relacionamento com a sendo: aprenda bem o trinômio do 2° grau e
natureza, mas também poderosos instrumentos você terá a oportunidade de fazer tudo isso, pois
de destruição dessa mesma natureza. somente quem for bem em Matemática terá su-
As dimensões múltiplas da paz, isto é, ficiente base teórica para apontar canhões sobre
paz interior, paz social, paz ambiental e paz mi- populações.
litar, que devem ser os objetivos primeiros de Claro, meus opositores dirão, como já
qualquer sistema educacional, é a única justifica- disseram: “Mas isso é um discurso demagógi-
tiva de qualquer esforço para o avanço científi- co. Essa destruição horrível só se fará quando
co e tecnológico, e deveria ser o substrato de necessário. E é importante que nossos jovens
todo discurso político. A Matemática tem gran- estejam preparados para o necessário”. E outros
de responsabilidade nos esforços para se atin- dirão: “É necessário conhecer bem os instru-
gir o ideal de uma educação para a paz, em mentais do inimigo para poder derrotá-los”.
todas as suas dimensões. Milhões foram nessa conversa durante toda a
Esse deve ser o sonho do ser humano. história da humanidade e em particular duran-
Essa é a essência de ser humano. É o ser hu- te a Guerra Fria, com perdas materiais e morais
mano (substantivo) procurando ser humano para ambas as partes em conflito. Notemos que
(verbo). Repito o que disseram dois eminentes os interessados nesse estado de coisas dizem
matemáticos, Albert Einstein e Bertrand Russell, ser isso necessário porque o alvo da nossa
no Manifesto Pugwash de 1955: “Esqueçam-se bomba destruidora é um indivíduo que não
de tudo e lembrem-se da humanidade”. Procu- professa o nosso credo religioso, que não é do
ro, nas minhas propostas de Educação Mate- nosso partido político, que não segue nosso
mática, seguir os ensinamentos desses dois modelo econômico de propriedade e produção,
grandes mestres, dos quais aprendi muito de que não tem nossa cor de pele ou nossa lín-
matemática, mas, sobretudo de humanidade. gua, enfim, o alvo de nossa bomba destruido-
Minha proposta é fazer uma Educação para a ra é um indivíduo que é diferente.
Paz e, em particular, uma Educação Matemáti- O trinômio de 2°grau serviu como exem-
ca para a Paz. plo para argumentar. A importância tão feia que
Muitos continuaram intrigados: “Mas destacamos de uma coisa tão linda como o
como relacionar trinômio de 2º grau com Paz?”. trinômio do 2° grau é interessante ser comenta-
É provável que esses mesmos indivíduos tenham da. Não se propõe eliminar o trinômio de 2° grau
o hábito de ensinar trinômio de 2° grau dando dos programas, mas sim que se utilize algum
como exemplo a trajetória de um projétil de ca- tempo para mostrar, criticamente, as coisas feias
nhão. Mas estou quase certo que não dizem, que se faz com ele mas também destacar as coisas
nem sequer sugerem, que aquele belíssimo instru- lindas que se pode fazer com ele.

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Há efetivamente uma moralidade asso- dro geral no qual procuro desenvolver minhas
ciada ao conhecimento e, em particular, ao propostas específicas para a Educação Matemá-
conhecimento matemático. Por que insistirmos tica. Minhas idéias muitas vezes parecem um
em educação e Educação Matemática e no tanto vagas, imprecisas e exploratórias. Isto re-
próprio fazer matemático se não percebermos flete o que se poderia chamar o estado da arte
como nossa prática pode ajudar a construir na teoria do conhecimento. Sabemos muito
uma humanidade ancorada em respeito, solida- pouco sobre como pensamos. As contribuições
riedade e cooperação? recentes da cibernética e da inteligência artificial
A paz total depende essencialmente de e, mais recentemente, de neurologistas, tornam,
cada indivíduo se conhecer e se integrar na sua pelo menos obsoleto, o que normalmente se
sociedade, na humanidade, na natureza e no estuda nas disciplinas de psicologia, de apren-
cosmos. Ao longo da existência de cada um de dizagem e correlatas. Daí a apresentação bem
nós pode-se aprender matemática, mas não se geral e o tom, algumas vezes impreciso e vago,
pode perder o conhecimento de si próprio e desta parte, na qual proponho um modelo que
criar barreiras entre indivíduos e os outros, en- pretende enquadrar praticamente todos os
tre indivíduos e a sociedade, e gerar hábitos de enfoques modernos ao conhecimento. A mate-
desconfiança do outro, de descrença na socie- mática é uma área crítica nesses estudos, como
dade, de desrespeito e de ignorância pela huma- se aprende de Butterworth (1999).
nidade que é uma só, pela natureza que é co- Ao longo da história se reconhecem
mum a todos e pelo universo como um todo. esforços de indivíduos e de todas as sociedades
Como um Educador Matemático, vejo- para encontrar explicações, formas de lidar e
me um educador que tem a matemática como conviver com a realidade natural e sociocultural.
sua área de competência e como seu instrumen- Isto deu origem aos modos de comunicação e às
to de ação, mas não como um matemático que línguas, às religiões e às artes, assim como às
utiliza a educação para a divulgação de suas ha- ciências e às matemáticas, enfim a tudo o que
bilidades e competências, fazendo proselitismo da chamamos conhecimento. Indivíduos, e isso se
sua disciplina. Minha ciência e meu conhecimento passa com a espécie como um todo, se destacam
estão subordinados ao meu humanismo. Como entre seus pares e atingem seu potencial de
Educador Matemático procuro utilizar aquilo que criatividade porque conhecem. Todo conheci-
aprendi como matemático para realizar minha mento é resultado de um longo processo cumu-
missão de educador. Divulgar essa mensagem é o lativo, no qual se identificam estágios, natural-
meu propósito como formador de formadores. mente não dicotômicos entre si, quando se dá a
Em termos muito claros e diretos: o geração, a organização intelectual, a organiza-
aluno é mais importante que programas e con- ção social e a difusão do conhecimento. Esses
teúdos. A educação é a estratégia mais impor- estágios são, normalmente, o objeto de estudo
tante para levar o indivíduo a estar em paz das teorias de cognição, das epistemologias, da
consigo mesmo e com o seu entorno social, história e sociologia, e da educação e política. O
cultural e natural e a se localizar numa realida- processo como um todo é extremamente dinâ-
de cósmica. Se não lograrmos isso, será uma mico e jamais finalizado, e está obviamente
educação fracassada. sujeito a condições muito específicas de estímu-
lo e de subordinação ao contexto natural, cul-
Retomando a questão do tural e social. Assim é o ciclo de aquisição indi-
conhecimento vidual e social de conhecimento.
Minhas reflexões sobre educação
A geração, organização intelectual e multicultural levaram-me a ver o ato de criação
social e a difusão do conhecimento dão o qua- como o elemento mais importante em todo esse

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processo, como uma manifestação do presen- transcender devem ser, necessariamente, de na-
te na transição entre passado e futuro. Isto é, tureza transdisciplinar e holística. Nessa visão, o
a aquisição e elaboração do conhecimento se presente, que se apresenta como a interface entre
dá no presente, como resultado de todo um passado e futuro, está associado à ação e à
passado, individual e cultural, com vistas às prática. O presente é uma questão filosófica da
estratégias de ação no presente e projetando- mesma natureza que o irracional, que dominou
se no futuro, desde o futuro imediato até o de a filosofia desde a Antigüidade grega. No sécu-
mais longo prazo, modificando assim a realida- lo XIX, quando Richard Dedekind colocou em
de e incorporando a ela novos fatos, isto é, termos precisos o conceito de irracional, deu-se
“artefatos” e “mentefatos”. Esse comportamen- significado ao instante.
to é intrínseco ao ser humano, e resultam de O foco de nosso estudo é o homem,
impulsos naturais para sobreviver e transcender. como indivíduo integrado, imerso, numa realida-
Embora se possa reconhecer aí um processo de de natural e social, o que significa em perma-
construção de conhecimento, minha proposta é nente interação com seu meio ambiente, natu-
mais ampla que o construtivismo, que se tor- ral e sociocultural. O presente é quando se ma-
nou efetivamente uma proposta pedagógica, e nifesta a (inter)ação do indivíduo com seu meio
que privilegia o racional. O enfoque holístico ambiente, natural e sociocultural, que chamo
que proponho incorpora ao racional o senso- comportamento. O comportamento, que também
rial, o intuitivo e o emocional, através da von- pode ser chamado prática, fazer, ou ação, está
tade individual de sobreviver e de transcender. identificado com o presente, e provoca a busca
Sobrevivência e transcendência constituem de explicações organizadas, isto é, de teori-
a essência de ser humano (verbo). O ser humano zação, como resultado de uma reflexão sobre o
(substantivo), como todas as espécies vivas, pro- fazer. A teorização e elaboração de um sistema
cura apenas sua sobrevivência. A vontade de trans- de explicações é o que geralmente chamamos
cender é o traço mais distintivo da nossa espécie. saber ou simplesmente conhecimento. Na verda-
Não se sabe de onde provém a vontade de, conhecimento é o substrato do comporta-
de sobreviver como indivíduo e como espécie, mento. Vida é ação, e comportamento e conhe-
mas sem dúvida está incorporada ao mecanismo cimento são a essência de se estar vivo.
genético a partir da origem da vida. Simples- Esta idéia de ciclo de vida tomou corpo
mente constata-se que essa força é a essência nos anos 1970 e já comparece em D’Ambrosio
de todas as espécies vivas. Nenhuma espécie, e (1986). O ciclo vida é: “(...) a REALIDADE infor-
portanto nenhum indivíduo, se orienta para a ma o INDIVÍDUO, que processa a informação e
sua extinção. Cada momento é um exercício de define estratégias de AÇÃO que insere novos fa-
sobrevivência do indivíduo e da espécie. tos na REALIDADE, que informa o INDIVÍDUO,
Igualmente, não sabemos como a espé- que processa (...)”, e assim continua, enquanto o
cie humana adquire a vontade de transcender, que indivíduo estiver vivo.
também parece estar embutida no nosso código Esse é o ciclo permanente e em evolu-
genético. Essa tem sido a questão filosófica maior ção que permite a todo ser humano interagir
em toda a história da humanidade e em todas com seu meio ambiente, isto é, com a realida-
culturas. Na forma de alma, de vontade, de livre de considerada na sua totalidade como um
arbítrio, o pulsão de transcender o momento de complexo de fatos naturais e artificiais. Essa ação
sobrevivência é reconhecido em várias manifesta- se dá mediante o processamento de informações
ções do ser humano e todas as culturas tem uma captadas da realidade por um processador que
proposta para explica-lo. constitui um verdadeiro complexo cibernético,
As reflexões sobre o presente como re- com uma multiplicidade de sensores não
alização de nossa vontade de sobreviver e de dicotômicos, por alguns identificados como ins-

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tinto, memória, reflexos, emoções, fantasia, intui- guinte, é no comportamento, na prática, no
ção, e outros elementos que ainda mal podemos fazer que se avalia, redefine e reconstrói o
imaginar. Como observa Oliver Sacks, referindo- conhecimento. A consciência é o impulsionador
se em especial à percepção visual, mas que se da ação do homem em direção ao saber/fazen-
aplica a todos os sentidos, do e fazer/sabendo, isto é, à sobrevivência e à
transcendência. O processo de aquisição do
Atingimos a constância perceptiva — a cor- conhecimento é, portanto, essa relação dialética
relação de todas as diferentes aparências, saber/fazer, impulsionado pela consciência, que
as modificações dos objetos — muito cedo, se realiza em várias dimensões.
nos primeiros meses de vida. Trata-se de Das várias dimensões na aquisição do
uma enorme tarefa de aprendizado, mas conhecimento destacamos quatro, que são as
que é alcançada tão suavemente, tão in- mais reconhecidas e interpretadas nas teorias do
conscientemente que sua imensa complexi- conhecimento, isto é, a sensorial, a intuitiva, a
dade mal é percebida (embora seja uma emocional e a racional. Numa concessão a clas-
conquista a que nem mesmo os maiores sificações disciplinares, diríamos que o conheci-
supercomputadores conseguem começar a mento religioso é favorecido pelas dimensões
fazer face). (1995, p. 141) intuitiva e emocional, enquanto o conhecimen-
to científico é favorecido pelo racional, e o
Ir além da sobrevivência emocional prevalece nas artes. Naturalmente,
essas dimensões não podem ser dicotomizadas
O processamento da informação (input) nem hierarquizadas, mas são complementares.
tem como resultado (output) estratégias para ação. Desse modo, não há interrupção, não há dicotomia,
Há evidência que essas ações são produtos inte- entre o saber e o fazer, não há priorização entre
ligentes. Em outros termos, o homem executa um e outro, nem há prevalência nas várias dimen-
seu ciclo vital não apenas pela motivação animal sões do processo. Tudo se complementa num
de sobrevivência, mas subordina a sobrevivência todo, que é o comportamento, e que tem como
a objetivos maiores, através da consciência do resultado o conhecimento. Consequentemente, as
fazer/saber, isto é, faz porque está sabendo e dicotomias corpo/mente, matéria/espírito, manu-
sabe por estar fazendo. Este argumento é seme- al/intelectual e outras tantas que se impregnaram
lhante ao de Paulo Freire quando este diz que “o no mundo moderno, são meramente artificiais.
ser humano é o único (ser vivo) que tem cons- Ninguém expressa tão bem essa complemen-
ciência da sua inconclusão” (1997, p. 8). Isto é, taridade como o eminente matemático norue-
transcende a pulsão de sobreviver. As ações para guês Sophus Lie, citado por Arid Stubhaug:
transcendência, que sempre acompanham as
ações para sobrevivência, têm seu efeito na rea- (...) sem fantasia ninguém pode se tornar um
lidade, criando novas interpretações e utilizações matemático, e o que me deu um lugar entre
da realidade natural e artificial, modificando-a os matemáticos dos nossos dias, apesar de
pela introdução de novos fatos, artefatos e minha falta de conhecimento e forma, foi a
mentefatos. Prefiro a nomenclatura artefato/ audácia de meu pensamento. (2002, p. 409)
mentefato a concreto/abstrato, pois vejo nesta
última uma incoerência, pelo fato de repousarem Do individual ao coletivo
no modo de captar esses fatos, enquanto aos
falarmos em artefato/mentefato estamos pondo O presente, como interface entre passa-
ênfase na geração dos fatos. do e futuro, se manifesta pela ação. O presen-
O conhecimento é o gerador do saber, te está assim identificado com comportamento,
que vai ser decisivo para a ação. Por conse- tem a mesma dinâmica do comportamento, isto

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é, se alimenta do passado, é resultado da his- ram as experiências vividas por um indivíduo no
tória do indivíduo e da coletividade, de conhe- passado. Portanto, todas se incorporam à realida-
cimentos anteriores, individuais e coletivos, de e informam esse indivíduo da mesma manei-
condicionados pela projeção do indivíduo no ra que os demais fatos da realidade.
futuro. Tudo a partir de informação propor-
cionada pela realidade, portanto pelo presente.
Na realidade estão armazenados todos os fatos
passados, que informam o indivíduo.
As informações são processadas pelo
indivíduo e resultam em estratégias de ação que
vão dar origem a novos fatos (artefatos ou
mentefatos) que são incorporados à realidade,
obviamente modificando-a, armazenando-se na
coleção de fatos e eventos que a constituem. A
realidade está, portanto, em incessante modifi-
cação. O passado se projeta assim, pela inter-
mediação de indivíduos, no futuro. Mais uma
vez, a dicotomia passado e futuro se vê como
artificialidade, pois o instante que vem do pas-
sado e se projeta no futuro adquire assim o O indivíduo não é só. Há bilhões de
que seria uma transdimensionalidade que pode- outros indivíduos da mesma espécie Homo
ríamos pensar como uma dobra (um pli , no sapiens sapiens com o mesmo ciclo vital, e
sentido das catástrofes de René Thom). Esse bilhões de indivíduos de outras espécies, rea-
repensar a dimensionalidade do instante dá à lizando um ciclo vital, com especificidades
vida, incluindo os “instantes” do nascimento e próprias a cada espécie, mas basicamente o
da morte, um caráter de continuidade, de fusão mesmo que o mostrado na figura acima. O pro-
do passado e do futuro em cada instante. Daí cesso de gerar conhecimento como ação é
reconhecermos que não pode haver um pre- enriquecido pelo intercâmbio com outros
sente congelado, como não há uma ação está- imersos no mesmo processo, através do que
tica, como não há comportamento sem uma chamamos comunicação. A descoberta do ou-
retroalimentação instantânea (avaliação) que tro e de outros, presentes ou distantes, contem-
resulta de seu efeito. Assim podemos ver com- porâneos ou do passado, é essencial para o
portamento como o elo entre a realidade, que fenômeno vida.
informa, e a ação, que a modifica. Todos estão, incessantemente, contri-
A ação gera conhecimento, isto é, a ca- buindo com uma parcela para modificar a re-
pacidade de explicar, de lidar, de manejar, de alidade. Todo indivíduo está inserido numa re-
entender a realidade, gera o mátema. Essa capa- alidade cósmica, como um elo entre toda uma
cidade se transmite e se acumula horizontalmen- história, desde o início dos tempos e das coi-
te, no convívio com outros, contemporâneos, sas, isto é, um big-bang ou equivalente, até o
através de comunicações; e verticalmente, de momento, o agora e aqui. Todas as experiên-
cada indivíduo para si mesmo (memória) e de cias do passado, reconhecidas e identificadas
cada geração para as próximas gerações (memória ou não, constituem a realidade na sua totalida-
histórica). Note-se que o que chamamos memó- de e determinam o comportamento de cada
ria é da mesma natureza que os mecanismos de indivíduo. Sua ação resulta do processamento
informação associados aos sentidos, à informação de informações recuperadas. Essas incluem as
genética e aos mecanismos emocionais, e recupe- experiências de cada indivíduo e aquelas vivi-

110 Ubiratan D’AMBRóSIO. Sociedade, cultura, matemática e seu ensino.


das por outros, na sua totalidade. A recupera- que identificamos com o conviver. Isso foi
ção dessas experiências (memória individual, muito bem ilustrado por Anthony Burgess no
memória cultural, memória genética) constitu- seu clássico Laranja mecânica (1962), que em
em um dos desafios da psicanálise, da história 1971 deu origem a uma película de grande
e de inúmeras outras ciências. Constituem, in- repercussão dirigida por Stanley Kubrick. Re-
clusive, o fundamento de certos modos de centemente, uma reforma penitenciária foi
comportamento (valores) e de conhecimento apresentada ao Parlamento da Grã-Bretanha,
(particularmente, artes e religiões). muito semelhante ao quadro ficcional de
Numa dualidade temporal, esses mes- Anthony Burgess.
mos aspectos de comportamento se manifestam Essas noções facilmente se generalizam
nas estratégias de ação que resultarão em no- para o grupo, para a comunidade e para um
vos fatos — artefatos e mentefatos — que se povo, através da comunicação social e de um
darão no futuro, e que, uma vez executados, pacto social, que, insisto, leva em conta a ca-
serão incorporados à realidade. As estratégias pacidade de cada indivíduo e não elimina a
de ação são motivadas pela projeção do indi- vontade própria de cada indivíduo, isto é, seu
víduo no futuro (suas vontades, suas ambições, livre arbítrio. O conhecimento gerado pela
suas motivações, e tantos outros fatores), tan- interação comum, resultante da comunicação
to no futuro imediato quanto no futuro longín- social, será um complexo de códigos e de sím-
quo. Esse é o sentido da transcendência, a que bolos que são organizados, intelectual e so-
me referi acima. cialmente, constituindo aquilo que se chama
Embora os mecanismos de captar infor- cultura. Cultura é o substrato dos conhecimen-
mação e de processá-la, definindo estratégias tos, dos saberes/fazeres, e do comportamento
de ação, sejam absolutamente individuais e se resultante, compartilhados por um grupo, co-
mantenham como tal, eles são enriquecidos munidade ou povo. Cultura é o que vai permi-
pelo intercâmbio e pela comunicação, que é, tir a vida em sociedade.
efetivamente, um pacto (contrato) entre indiví- Quando sociedades e, portanto, siste-
duos. O estabelecimento desse pacto é um fe- mas culturais, se encontram e se expõem
nômeno essencial para a vida. Na espécie hu- mutualmente, elas estão sujeitas a uma dinâmi-
mana, esse pacto permite definir estratégias ca de interação que produz um comportamento
para ação comum. Isso não pressupõe a elimi- intercultural que se manifesta em grupos de
nação da capacidade de ação própria de cada indivíduos, em comunidades, em tribos e nas
indivíduo, inerente à sua vontade (livre arbítrio), sociedades como um todo. A interculturalidade
mas pode inibir certas ações, isto é, a ação vem se intensificando ao longo da história da
comum que resulta da comunicação pode ser humanidade.
interpretada como uma in-ação resultante do
pacto. Assim, através da comunicação podem se O programa etnomatemática
originar ações desejáveis a ambos e também
podem se inibir ações, isto é, gerar in-ações, A exposição acima sintetiza a funda-
não desejáveis para uma ou para ambas as mentação teórica que serve de base a um pro-
partes. Insisto no fato que esses mecanismos de grama de pesquisa sobre geração, organização
inibição não transformam os mecanismos, pró- intelectual, organização social e difusão do
prios a cada indivíduo, de captar e de proces- conhecimento. Na linguagem acadêmica, po-
sar informações. Cada indivíduo tem esses der-se-ia dizer um programa interdisciplinar
mecanismos e é isso que mantém a individua- abarcando o que constitui o domínio das cha-
lidade e a identidade de cada ser, embora equi- madas ciências da cognição, da epistemologia,
librem ações e in-ações, que tornam possível o da história, da sociologia e da difusão.

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Metodologicamente, esse programa re- gião, música, técnicas, ciências foram desenvol-
conhece que na sua aventura, enquanto espé- vidas com a finalidade de explicar, de conhe-
cie planetária, o homem (espécie Homo sapiens cer, de aprender, de saber/fazer e de predizer
sapiens), bem como as demais espécies que a (artes divinatórias) o futuro. Todas aparecem,
precederam, os vários hominídeos reconhecidos num primeiro estágio da história da humanida-
desde há 5 milhões de anos antes do presen- de e da vida de cada um de nós, indistinguíveis
te, têm seu comportamento alimentado pela como formas de conhecimento.
aquisição de conhecimento, de fazer(es) e de Estamos vivendo um período em que os
saber(es) que lhes permitiram sobreviver e meios de captar informação e o processamento
transcender, através de maneiras, de modos, de da informação de cada indivíduo encontram nas
técnicas, de artes (techné ou “ticas”) de expli- comunicações e na informática instrumentos
car, de conhecer, de entender, de lidar com, de auxiliares de alcance inimaginável em outros
conviver com ( mátema) a realidade natural e tempos. A interação entre indivíduos também
sociocultural ( etno) na qual ele, homem, está encontra, na teleinformática, um grande poten-
inserido. Ao utilizar, num verdadeiro abuso cial, ainda difícil de se aquilatar, de gerar ações
etimológico, as raízes “tica”, “matema” e comuns. Nota-se, em alguns casos, o predomí-
“etno”, dei origem à minha conceituação de nio de uma forma sobre outra, algumas vezes a
Etnomatemática. substituição de uma forma por outra e mesmo a
Naturalmente, em todas as culturas e supressão e a eliminação total de alguma forma,
em todos os tempos, conhecimento, que é mas na maioria dos casos o resultado é a gera-
gerado pela necessidade de uma resposta a ção de novas formas culturais, identificadas com
problemas e situações distintas, está subordina- a modernidade. Ainda, dominadas pelas tensões
do a um contexto natural, social e cultural. emocionais, as relações entre indivíduos de uma
Indivíduos e povos têm, ao longo de mesma cultura (intraculturais) e sobretudo as
suas existências e ao longo da história, criado relações entre indivíduos de culturas distintas
e desenvolvido instrumentos de reflexão, de (interculturais) representam o potencial criativo
observação, instrumentos teóricos e, associados da espécie. Assim como a biodiversidade repre-
a esses, técnicas, habilidades (artes, técnicas, senta o caminho para o surgimento de novas
techné, ticas) para explicar, entender, conhecer, espécies, na diversidade cultural reside o poten-
aprender, para saber e fazer como resposta a cial criativo da humanidade.
necessidades de sobrevivência e de transcen- Tem havido o reconhecimento da im-
dência (matema), em ambientes naturais, so- portância das relações interculturais. Mas la-
ciais e culturais (etno) os mais diversos. Daí mentavelmente ainda há relutância no reconhe-
chamarmos o exposto acima de Programa Etno- cimento das relações intraculturais na educa-
matemática. O nome sugere o corpus de conhe- ção. Ainda se insiste em colocar crianças em
cimento reconhecido academicamente como séries de acordo com idade, em oferecer o
Matemática. mesmo currículo numa mesma série, chegando
Em todas as culturas encontramos ao absurdo de se proporem currículos nacio-
manifestações relacionadas e mesmo identifi- nais. E ainda o absurdo maior de se avaliarem
cadas com o que hoje se chama matemática grupos de indivíduos com testes padronizados.
(processos de organização, classificação, con- Trata-se, efetivamente, de uma tentativa de
tagem, medição, inferência), geralmente mescla- pasteurizar as novas gerações!
das ou dificilmente distinguíveis de outras for- A pluralidade dos meios de comunica-
mas, hoje identificadas como arte, religião, ção de massa, facilitada pelos transportes, levou
música, técnicas, ciências. Em todos os tempos as relações interculturais a dimensões verdadei-
e em todas as culturas, matemática, artes, reli- ramente planetárias.

112 Ubiratan D’AMBRóSIO. Sociedade, cultura, matemática e seu ensino.


Inicia-se, assim, uma nova era, que abre por Descartes, Newton e outros.
enormes possibilidades de comportamento e de Surgindo aproximadamente ao mesmo
conhecimento planetários, com resultados sem tempo que as grandes navegações, a conquis-
precedentes para o entendimento e harmonia de ta e a colonização, a ciência moderna se impôs
toda a humanidade. Devemos dizer não à homo- como uma forma de conhecimento racional,
geneização biológica ou cultural da espécie, mas originado das culturas mediterrâneas e substrato
sim à convivência harmoniosa dos diferentes, da eficiente e fascinante tecnologia moderna.
através de uma ética de respeito mútuo, de Definiu-se, a partir das nações centrais, concei-
solidariedade e de cooperação. tuações estruturadas e a dicotômicas do saber
Naturalmente, sempre existiram e ago- (conhecimento) e do fazer (habilidades).
ra serão notadas com maior evidência, manei- É importante lembrar que praticamen-
ras diferentes de explicações, de entendimentos, te todos os países adotaram a Declaração de
de lidar e de conviver com a realidade, graças Nova Délhi (16 de dezembro de 1993), que é
aos novos meios de comunicação e de trans- explícita ao reconhecer que a educação é o
porte, que criam a necessidade de um compor- instrumento preeminente da promoção dos
tamento que transcenda mesmo as novas for- valores humanos universais, da qualidade dos
mas culturais. recursos humanos e do respeito pela diversida-
Eventualmente, o tão desejado livre de cultural, e que os conteúdos e métodos de
arbítrio, próprio do ser humano (verbo), pode- educação precisam ser desenvolvidos para ser-
rá se manifestar num modelo de transculturali- vir às necessidades básicas de aprendizagem
dade que permitirá a cada ser humano atingir dos indivíduos e das sociedades, proporcionan-
a sua plenitude. Um modelo adequado para se do-lhes o poder de enfrentar seus problemas
facilitar esse novo estágio na evolução da nos- mais urgentes — combate à pobreza, aumento
sa espécie é a chamada Educação Multicul- da produtividade, melhora das condições de
tural, que vem se impondo nos sistemas edu- vida e proteção ao meio ambiente — e permi-
cacionais de todo o mundo. tindo que assumam seu papel por direito na
Sabemos que no momento há mais de construção de sociedades democráticas e no
duzentos Estados e aproximadamente 6 mil na- enriquecimento de sua herança cultural.
ções indígenas no mundo, com uma população Nada poderia ser mais explícito nesta
totalizando entre 10% e 15% da população declaração que o apelo à subordinação dos con-
total do mundo. Embora não seja o meu obje- teúdos programáticos à diversidade cultural.
tivo discutir Educação Indígena, os aportes de Igualmente, o reconhecimento de uma variedade
especialistas na área têm sido muito importan- de estilos de aprendizagem está implícito no
tes para se entender como a educação pode ser apelo ao desenvolvimento de novas metodologias.
um instrumento de reforço aos mecanismos de Essencialmente, essas considerações
exclusão social. determinam uma enorme flexibilidade tanto na
O conceito de conhecimento e as prá- seleção de conteúdos quanto na metodologia.
ticas associadas a ele de uma cultura são
determinantes para a identidade nacional e, Etnomatemática e matemática
portanto, o encontro com outras culturas pode
levar ao questionamento da própria identidade A abordagem a distintas formas de co-
de uma nação. Talvez o mais importante a se nhecer é a essência do Programa Etnoma-
destacar seja a percepção de uma dicotomia temática. Na verdade, diferentemente do que
entre saber e fazer, que prevalece no chamado sugere o nome, Etnomatemática não é apenas
mundo “civilizado” e que é própria dos o estudo de “matemáticas das diversas etnias”.
paradigmas da ciência moderna, como criada Criei essa palavra para significar que há várias

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maneiras, técnicas, habilidades (ticas) de expli- dor. Esperar-se-ia que, igualmente, as formas de
car, de entender, de lidar e de conviver com explicar, conhecer, lidar, conviver com a reali-
(matema) distintos contextos naturais e dade sociocultural e natural, obviamente distin-
socioeconômicos da realidade (etnos). tas de região para região, e que são as razões
A disciplina denominada matemática é, de ser da matemática, das ciências e da
na verdade, uma Etnomatemática que se origi- tecnologia, também passassem por esse proces-
nou e se desenvolveu na Europa mediterrânea, so de “aclimatação”, resultado de uma dinâmica
tendo recebido algumas contribuições das civi- cultural. No entanto, isso não se deu, e não se
lizações indiana e islâmica, e que chegou à dá, e esses ramos do conhecimento adquiriram
forma atual nos séculos XVI e XVII, sendo, a um caráter de absoluto universal. Não admitem
partir de então, levada e imposta a todo o variações ou qualquer tipo de relativismo. Isso
mundo. Hoje, essa matemática adquire um ca- se incorporou até no dito popular “tão certo
ráter de universalidade, sobretudo devido ao quanto dois mais dois são quatro”. Não se dis-
predomínio da ciência e tecnologia modernas, cute o fato, mas sua contextualização na for-
que foram desenvolvidas a partir do século XVII ma de uma construção simbólica que é anco-
na Europa. rada em todo um passado cultural.
Essa universalização é um exemplo do A matemática tem sido conceituada
processo de globalização que estamos testemu- como a ciência dos números e das formas, das
nhando em todas as atividades e áreas de co- relações e das medidas, das inferências, e as
nhecimento. Falava-se muito das multinacionais. suas características apontam para precisão, ri-
Hoje as multinacionais são empresas globais, gor, exatidão. Os grandes heróis da matemáti-
cuja nação ou grupo nacional dominante não é ca, isto é, aqueles indivíduos historicamente
possível identificar. apontados como responsáveis pelo avanço e
Essa idéia de globalização já começa a consolidação dessa ciência, são identificados na
se revelar no início do cristianismo e do Antigüidade grega e posteriormente, na Idade
islamismo. Diferentemente do judaísmo, do qual Moderna, nos países centrais da Europa, sobre-
essas religiões se originaram, bem como de tudo Inglaterra, França, Itália, Alemanha. Os
inúmeras outras crenças nas quais há um povo nomes mais lembrados são Tales, Pitágoras,
eleito, o cristianismo e o islamismo são, essen- Euclides, Descartes, Galileu, Newton, Leibniz,
cialmente, religiões de conversão de toda hu- Hilbert, Einstein, Hawkings. São idéias e homens
manidade à mesma fé, de todo o planeta subor- originários do Norte do Mediterrâneo.
dinado à mesma Igreja. Isso fica evidente no Portanto, falar dessa matemática em
processo de expansão do Império Romano ambientes culturais diversificados, sobretudo
cristianizado e do Islã. em se tratando de indígenas ou afro-america-
O processo de globalização da fé cris- nos ou outros não-europeus, de trabalhadores
tã aproxima-se do seu ideal com as grandes oprimidos e de classes marginalizadas, além de
navegações. O catecismo, elemento fundamental trazer a lembrança do conquistador, do
da conversão, é levado a todo o mundo. Assim escravista, enfim do dominador, também se
como o cristianismo é um produto do Império refere a uma forma de conhecimento que foi
Romano levado a um caráter de universalidade construído pelo dominador, e da qual ele se
com o colonialismo, também o são a matemá- serviu e se serve para exercer seu domínio.
tica, a ciência e a tecnologia. Muitos dizem que isso também se pas-
No processo de expansão, o cristianis- sa com calças “jeans”, que agora começam a
mo foi se modificando, absorvendo elementos substituir todas as vestes tradicionais, ou com a
da cultura subordinada e produzindo variantes “Coca-Cola”, que está por desbancar o Guaraná,
notáveis do cristianismo original do coloniza- com o rap, que está se popularizando tanto

114 Ubiratan D’AMBRóSIO. Sociedade, cultura, matemática e seu ensino.


quanto o samba. Mas nenhum deles tem, como mas culturais na história da humanidade. A
a matemática, a conotação de infalibilidade, de contextualização é essencial para qualquer pro-
rigor, de precisão e de ser um instrumento essen- grama de educação de populações nativas e
cial e poderoso no mundo moderno. Isso a torna marginais, mas não menos necessária para as
uma presença exclusiva de outras formas de populações dos setores dominantes, se quiser-
pensamento. Na verdade, ser racional é identifi- mos atingir uma sociedade com eqüidade e
cado com dominar a matemática. A matemática justiça social.
se apresenta como a linguagem de um deus Contextualizar a matemática é essencial
mais sábio, mais milagroso e mais poderoso que para todos. Afinal, como deixar de relacionar os
as divindades das outras tradições culturais. Elementos de Euclides com o panorama cultu-
Se isso pudesse ser identificado apenas ral da Grécia antiga? Ou a aquisição da nume-
como parte de um processo perverso de ração indo-arábica com o florescimento do
aculturação, através do qual se elimina a mercantilismo europeu nos séculos XIV e XV? E
criatividade essencial ao ser humano (verbo), eu não se pode entender Newton descontex-
diria que essa escolarização é uma farsa. Mas é tualizado. Lembro o trabalho fundamental de
pior, pois na farsa, uma vez terminado o espe- Boris Hessen (1995). Sem dúvida, será possível
táculo, tudo volta ao que era. Enquanto na repetir alguns teoremas, memorizar tabuadas e
educação, o real é substituído por uma situação mecanizar a efetuação de operações, e mesmo
que é idealizada para satisfazer os objetivos do efetuar algumas derivadas e integrais, que não
dominador. Nada volta ao real ao terminar a têm relação alguma com qualquer coisa nas ci-
experiência educacional. O aluno tem suas raízes dades, nos campos ou nas florestas. Alguns
culturais, parte de sua identidade, eliminadas no dirão que vale como a manifestação mais no-
processo. Essa eliminação produz o excluído. bre do pensamento e da inteligência humana.
Isto é evidenciado, de maneira trágica, Continuamos a insistir com a falsa
na Educação Indígena. O índio passa pelo pro- assunção que inteligência e racionalidade são
cesso educacional e não é mais índio... mas sinônimos de matemática. Acredita-se que esse
tampouco branco. É provável que a elevada constructo do pensamento mediterrâneo, levado
ocorrência de suicídios em algumas populações à sua forma mais pura, é a essência do ser
indígenas esteja associada a isso. racional. E, assim, justifica-se o fato que indi-
Uma pergunta natural pode ocorrer víduos, racionais porque dominam a matemáti-
depois dessas observações: seria então melhor ca, tenham tratado, e continuem tratando, a
não ensinar matemática aos nativos e aos mar- natureza como celeiro inesgotável para seus
ginalizados? desejos e ambições.
Essa pergunta se aplica a todas as ca- Naturalmente, há um importante com-
tegorias de saber/fazer próprios da cultura do ponente político nessas reflexões. Apesar de
dominador, com relação a todos os povos que muitos dizerem que isso é jargão ultrapassado
mostram uma identidade cultural. Poder-se-ia de esquerda, é claro que continuam a existir as
reformular a questão: seria melhor desestimular classes dominantes e dominadas, tanto nos pa-
ou mesmo impedir que as classes populares íses centrais quanto nos periféricos.
vistam “jeans” ou tomem “Coca-Cola” ou pra- Faz sentido, portanto, falarmos de uma
tiquem o rap? Naturalmente são questões fal- “matemática dominante”, que é um instrumento
sas e falso e demagógico seria responder com desenvolvido nos países centrais e, muitas ve-
um simples sim ou com um não. Essas ques- zes, utilizado como instrumento de dominação.
tões só podem ser formuladas e respondidas Essa matemática e os que a dominam se apre-
dentro de um contexto histórico, procurando sentam com postura de superioridade, com o
entender a e(in?)volução irreversível dos siste- poder de deslocar, e mesmo eliminar, a “mate-

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mática do dia-a-dia”. O mesmo se dá com ou- de-se que o sistema binário dos xavantes foi
tras formas culturais, particularmente com a substituído, como num passe de mágica, por
linguagem, conforme é muito bem discutido um sistema “mais eficiente”, de base 10. Mais
em Bernstein (1971). E são muito conhecidas eficiente por quê? Por que se relaciona com o
as situações ligadas ao comportamento, à me- contexto xavante? Não, mas porque se rela-
dicina, à arte e à religião. Todas essas manifes- ciona com a numeração do dominador. O que
tações são referidas como cultura popular. se passa com a língua nativa não é diferente.
Naturalmente, embora seja viva e praticada, a Mas, sem qualquer dúvida, há um cri-
cultura popular é, muitas vezes, ignorada, me- tério de eficiência que se aplica nas relações
nosprezada, rejeitada, reprimida e certamente interculturais. Sem aprender a “aritmética do
diminuída. Isto tem como efeito desencorajar, e branco”, o nativo será enganado nas suas tran-
mesmo eliminar, o povo como produtor e con- sações comerciais com o branco. Isto é drama-
sumidor de cultura e mesmo como entidade ticamente ilustrado no clássico de Céline. Assim
cultural. como sem dominar a língua do colonizador, o
Isso não é menos verdade com a ma- nativo dificilmente terá acesso à sociedade
temática. Em particular, na geometria e na arit- dominante. Mas isso se passa com todas as
mética se notam violentas contradições. Por culturas. Eu mesmo devo dominar inglês para
exemplo, a geometria do povo, dos balões e participar do mundo acadêmico internacional.
dos papagaios, é colorida. A geometria teórica, Mas jamais alguém disse, ou mesmo insinuou,
desde sua origem grega, eliminou a cor. Mui- que seria bom que eu esquecesse o português,
tos leitores estarão, a essa altura, confusos. e que eu deveria ter acanhamento e até vergo-
Estarão dizendo: mas o que isso tem a ver com nha de falar essa língua. Mas faz-se isso com
Matemática? Papagaios e balões? Cores? povos, em especial com os indígenas, seja na
Têm tudo a ver, pois são justamente linguagem, seja nos sistemas de conhecimento
essas as primeiras e mais notáveis experiências em geral, e particularmente na matemática. Sua
geométricas. A reaproximação da arte e da língua é rotulada inútil, sua religião se torna
geometria não pode ser alcançada sem o me- “crendice”, sua arte e seus rituais são “folclo-
diador cor. Na aritmética, o atributo do núme- re”, sua ciência e medicina são “superstições”
ro na quantificação é essencial. Duas laranjas e e sua matemática é “imprecisa” e “ineficiente”,
dois cavalos são “dois” distintos. Chegar ao quando não “inexistente”.
“dois” sem qualificativo, abstrato, assim como Ora, isso se passa da mesmíssima ma-
à geometria sem cores, talvez sejam o ponto neira com as classes populares. Mas exatamen-
crucial na passagem para uma matemática teó- te isso se dá com uma criança, com um adoles-
rica. O cuidado com essa passagem e com tra- cente e mesmo com um adulto, ao se aproxi-
balhar adequadamente esse momento talvez mar de uma escola. Se os índios praticam sui-
sintetizem tudo que há de importante nos pro- cídio, o que nas suas relações intraculturais não
gramas de Matemática Elementar. O resto do é impedido, a forma de suicídio praticada nas
que constitui os programas é um conjunto de outras camadas da população é uma atitude de
técnicas que, pouco a pouco, vão se tornando descrença, de alienamento, tão bem mostrado
desinteressantes e desnecessárias, praticadas no filme Kids .
mais eficientemente por máquinas eletrônicas. Não se questiona a conveniência e mes-
Não se podem definir critérios de supe- mo a necessidade de ensinar aos dominados,
rioridade entre manifestações culturais. Devida- sejam esses índios e brancos, pobres e ricos,
mente contextualizada, nenhum forma pode-se crianças e adultos a língua, a matemática, a
dizer superior a outra. Isto é bem ilustrado por medicina, as leis, do dominador. Chegamos a
Ferreira (2002, p. 25-36). Por exemplo, apren- uma estrutura de sociedade e a conceitos per-

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versos de cultura, de nação e de soberania, que assim que se faz pesquisa matemática — e na
impõem essa necessidade. O que se questiona é verdade pesquisa em qualquer outro campo do
a agressão à dignidade e à identidade cultural conhecimento. O acesso a um maior número de
daqueles subordinados a essa estrutura. instrumentos e de técnicas intelectuais dão,
A responsabilidade maior dos teóricos da quando devidamente contextualizados, muito
educação é alertar para os danos irreversíveis que maior capacidade de enfrentar situações e de
se podem causar a uma cultura, a um povo e a resolver problemas novos, de modelar adequa-
um indivíduo se o processo for conduzido levia- damente uma situação real para, com esses
namente, muitas vezes até com boa intenção, e instrumentos, chegar a uma possível solução ou
fazer propostas para minimizar esses danos. curso de ação.
Muitos educadores não se dão conta disso. As Isto é aprendizagem por excelência,
conseqüências da ingenuidade e da perversida- isto é, a capacidade de explicar, de apreender
de podem ser, essencialmente, as mesmas. e compreender, de enfrentar, criticamente, situ-
Ainda me referindo à educação indíge- ações novas. Aprender não é o mero domínio
na, os conflitos conceituais que resultam da de técnicas, habilidades e nem a memorização
introdução da “matemática do branco” na edu- de algumas explicações e teorias.
cação indígena, que se manifestam sobretudo A educação formal é baseada na mera
na formulação e resolução de problemas aritmé- transmissão de explicações e teorias (ensino
ticos simples, são muito bem ilustrados no teórico e aulas expositivas), no adestramento
contexto cultural dos xavantes, dos suyás, dos em técnicas e habilidades (ensino prático com
kayabis e dos jurunas (Ferreira, 2002). Exem- exercícios repetitivos). Do ponto de vista dos
plos variados como transporte em barcos, ma- avanços mais recentes de nosso entendimento
nejo de contas bancárias e outros mostram que dos processos cognitivos, ambas são totalmente
os indígenas dominam o que é essencial para equivocadas. Não se podem avaliar habilidades
suas práticas e para as elaboradas argumenta- cognitivas fora do contexto cultural. Obviamen-
ções com o branco sobre aquilo que lhes inte- te, a capacidade cognitiva é própria de cada
ressa, normalmente focalizado em transporte, indivíduo. Há estilos cognitivos que devem ser
comércio e uso da terra. Assim, a matemática se reconhecidos entre culturas distintas, no con-
contextualiza como mais um recurso para so- texto intercultural e, também, na mesma cultu-
lucionar problemas novos que, tendo se origi- ra, num contexto intracultural.
nado da outra cultura, chegam exigindo os Naturalmente, cada indivíduo organiza
instrumentos intelectuais dessa nova cultura. A seu processo intelectual ao longo de sua histó-
etnomatematica do indígena serve, é eficiente ria de vida, captando e processando informa-
e adequada para muitas coisas — de fato mui- ções, como foi discutido acima. A metacognição
to importantes — e não há por que substituí-la. nos oferece um bom instrumental teórico para
A etnomatemática do branco serve para outras entender esse processo. O risco das práticas
coisas, igualmente muito importantes, e não há educativas mais comuns é que ao tentar
como ignorá-la. Pretender que uma seja mais compatibilizar as organizações intelectuais de
eficiente, mais rigorosa, enfim, melhor que a indivíduos para, dessa forma, criar um esquema
outra é, se removida do contexto, uma questão socialmente aceitável, a autenticidade e a indi-
falsa e falsificadora. vidualidade de cada um dos participantes des-
O domínio de duas etnomatemáticas, e se processo estejam ameaçadas. A fragilidade
possivelmente de outras, obviamente oferece desse estruturalismo pedagógico, ancorado no
maiores possibilidades de explicações, de en- que chamamos de mitos da educação atual, é
tendimentos, de manejo de situações novas, de evidente se atentarmos para a queda vertigino-
resolução de problemas. Mas é exatamente sa dos resultados de educação ancorada nesses

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mitos, e isso em todo o mundo. O grande desafio desse currículo era a consolidação do Império
que se encontra na educação é, justamente, Romano. Com a expansão do cristianismo na
sermos capazes de interpretar as capacidades e Idade Média, criaram-se outras necessidades
a própria ação cognitiva não da forma linear, educacionais, que se refletem no que seria um
estável e contínua que caracteriza as práticas 2 o grau, de estudos superiores, organizados
educacionais mais correntes. como o quadrivium (aritmética, música, geome-
A alternativa é reconhecer que o indi- tria, astronomia). Em ambos os casos, é eviden-
víduo é um todo integral e integrado, e que te que a organização curricular encontra sua
suas práticas cognitivas e organizativas não são razão de ser no momento sociocultural e eco-
desvinculadas do contexto histórico no qual o nômico de cada época.
processo se dá, contexto esse em permanente Os grandes avanços nos estilos de ex-
evolução. Isto é evidente na dinâmica que pre- plicação dos fatos naturais e na economia, que
valece na educação para todos e na educação caracterizaram o pensamento europeu a partir
multicultural. do século XVI, criaram a demanda de novas
A adoção de uma nova postura educa- metas para a educação. A principal meta era
cional é, na verdade, a busca de um novo criar uma escola acessível a todos e responden-
paradigma de educação que substitua o já do a uma nova ordem social e econômica. Já
desgastado ensino-aprendizagem, que é baseado em 1656, Comenius disse:
numa relação obsoleta de causa-efeito. Procura-
se uma educação que estimule o desenvolvimento Se, portanto, queremos Igrejas e Estados
de criatividade desinibida, conduzindo a novas bem ordenados e florescentes e boas admi-
formas de relações interculturais. Essas relações nistrações, primeiro que tudo ordenemos as
caracterizam a educação de massa e proporcio- escolas e façamo-las florescer, a fim de que
nam o espaço adequado para preservar a diver- sejam verdadeiras e vivas oficinas de ho-
sidade e eliminar a desigualdade, dando origem mens e viveiros eclesiásticos, políticos e
a uma nova organização da sociedade. econômicos. (1996, p. 71)

Uma proposta de currículo: Pode-se dizer que essa é a origem da


literacia, materacia e Didática Moderna.
tecnoracia As grandes transformações políticas e
econômicas que resultaram das revoluções
Utilizo uma definição muito abrangente americana e francesa causaram profundas mu-
de currículo: a estratégia da ação educativa. Ao danças nos sistemas educacionais. Como em
longo da história, o currículo reflete uma con- outros tempos, os interesses dos impérios fo-
cepção de educação e de sua importância na ram determinantes. Particularmente notáveis são
sociedade, o que é muito diferente da impor- as mudanças na França de Napoleão e na Ale-
tância acadêmica de cada disciplina. Estamos manha de Bismarck. Mas, sem dúvida, o modelo
falando de sistemas educacionais como um que se impôs foi aquele adotada pelos Estados
todo e de currículo como estratégia de educa- Unidos para fazer face a uma situação nova,
ção (D’Ambrosio, 1983). que é a fixação de uma população de imigran-
Os romanos nos legaram um modelo tes nos territórios conquistados dos indígenas
institucional que até hoje prevalece, em parti- durante a grande expansão para o Oeste. O
cular na educação. O que corresponderia a um modelo americano visa uma escola igual para
1o grau, a educação fundamental, era organiza- todos e o currículo básico ficou conhecido
do no mundo romano como o trivium (gramá- como os “ três erres (threee R’s): Reading,
tica, retórica e dialética), e o grande motivador wRiting and aRithmetics”. Essa maneira de se

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referir ao currículo logo se impôs a todo o ção escrita e falada, o que inclui leitura, escri-
mundo como ler, escrever e contar. tura, cálculo, diálogo, ecálogo, mídia, internet
Embora adequado para o período de na vida cotidiana (instrumentos comunicati-
transição de uma tecnologia incipiente para vos); materacia é a capacidade de interpretar e
uma tecnologia muito avançada, que é a grande analisar sinais e códigos, de propor e utilizar
característica dos séculos XIX e XX, ler, escre- modelos e simulações na vida cotidiana, de ela-
ver e contar são obviamente insuficientes para borar abstrações sobre representações do real
a cidadania plena no século entrante. Propor- (instrumentos intelectuais); tecnoracia é a ca-
cionar aos jovens uma visão crítica dos instru- pacidade de usar e combinar instrumentos, sim-
mentos comunicativos, intelectuais e materiais ples ou complexos, inclusive o próprio corpo,
que eles deverão dominar para que possam avaliando suas possibilidades e suas limitações
viver na civilização que se descortina, vai muito e a sua adequação a necessidades e situações
além do ler, escrever e contar. Na verdade, tor- diversas (instrumentos materiais).
nam ler, escrever e contar, na concepção tradi- Poucos discordam do fato de a alfabe-
cional, algo obsoleto. tização e a contagem serem insuficientes para
Proponho um currículo baseado em o cidadão de uma sociedade moderna. Neces-
literacia, materacia e tecnoracia, que é uma res- sárias, até certo ponto, mas insuficientes. Ao
posta educacional à responsabilidade de propor- introduzir os conceitos de literacia, materacia e
cionar aos jovens os instrumentos necessários tecnoracia e propor uma nova conceituação de
para sua sobrevivência e transcendência nos currículo, acredito estar respondendo às neces-
anos futuros, e ao mesmo tempo tornar reais as sidades de uma civilização em mudança.
expectativas de se eliminarem iniqüidades e vio-
lações da dignidade humana, como primeiro
passo para a justiça social (D’Ambrosio, 1999).
As palavras literacia, materacia e
tecnoracia são pouco utilizadas. Acho adequa-
do propor algumas definições, que ampliam o
modo como esses neologismos vêm sendo uti- 2.Em português, usa-se literacia. Em inglês, literacy é freqüente, mas
matheracy parece ter sido usado anteriormente pelo ilustre educador
lizados, tanto em português quanto em inglês:2 matemático japonês Tadasu Kawaguchi, num sentido mais restrito do que
literacia é a capacidade de processar informa- eu proponho. E nunca vi technoracy, embora se use technological literacy.

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Recebido em 20.01.05
Aprovado em 03.03.05

Ubiratan D’Ambrósio é professor emérito da UNICAMP, professor do Programa de Pós-graduação em Educação Matemática
e História da Ciência na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor credenciado pela Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo e professor voluntário no Programa de Pós-graduação em Educação Matemática, IGCE/UNESP,
Rio Claro.

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