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Sonia Lopes Victor

Rogério Drago
Edson Pantaleão
Orgs.

Educação Especial no Cenário


Educacional Brasileiro
Copyright @ dos autores

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida, transmitida
ou arquivada desde que levados em conta os direitos dos autores

Sonia Lopes Victor; Rogério Drago; Edson Pantaleão [Orgs.]

Educação especial no cenário educacional brasileiro. São Carlos; Pedro & João
Editores, 2013. 234p.

ISBN 978-85-7993-135-2

1. Educação Especial. 2. Educação brasileira. 3. Formação de professores. 4. Sujeitos e


políticas da educação. 5. Autores. I. Título.
CDD-370

Capa: ~arcos Antonio Bessa-Oliveira


Editores; Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito

Conselho Científico da Pedro & João Editores:


Augusto Ponzio (BarilItália); João Wanderley Geraldi
(Unicamp/Brasil); Nair F. Gurgel do Amaral (UNIR/Brasil); Maria
Isabel de Moura (UFSCarIBrasil); Maria da Piedade Resende da
Costa (UFSCarIBrasil); Rogério Drago (UFESIBrasil).

Pedro & João Editores


www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 - São Carlos - SP
2013
Eixo 5 - Práticas Curriculares e a Educação Inclusiva

1- EDUCAÇÃO ESPECIAL E CURRÍCULO:


DISPARANDO POSSIBILIDADES A PARTIR DA
REFLEXÃO CRÍTICA DO COTIDIANO ESCOLAR

Alexandro Braga Vieira I

Introdução

Vários autores, como Goodson (1995), Apple (2006), Silva (2006) e


Sacristán (20P7) entendem que definir o currículo não é uma tarefa fáciL
Tal apropriação tem levado a lutas constantes que envolvem os
próprios objetivos da educação. Ao pesquisar a etimologia da palavra
currículo, podemos constatar que ela deriva da palavra latina scurrere e J

apresenta vários significados como: ato de correr, atalho ou pista de


corrida.
Daí O entendimento do curriculo escolar como um caminho, um
curso ou uma listagem de conteúdos que devem ser seguidos
(GOODSON, 1995) estando à ideia intimamente vinculada à lógica da
sequencialidade e da prescrição. No entanto, salientam esses autores que
o trabalho com o conhecimento elaborado é o fundamento dos
currículos escolares, portanto os sistemas de ensino necessitam criar
condiçôes para que os alunos promovam essa apropriação.
Por muito tempo, o trabalho educativo escolar pautou-se na
perspectiva tradicional de currículo. Nessa lógica, o currículo precisa
ser essencialmente nutrido por três questões: o que ensinar, como
ensinar e corno avaliar. A Educação, assim, é subjetivada como um
processo de moldagem e o currículo precisa ser organizado dentro de
uma abordagem hegemônica. !.

I Doutor em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo, Pedagogo na Rede


Estadual de Ensino do Estado do Espírito Santo e Professor de Língua Porruguesa
pela Secretaria Municipal de Educação de Vitória - ES.

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Para tanto, é necessário definir objetivos, conteúdos a serem como sinônimo de processos de desigualdade cognitiva. Em síntese, a
ensinados e metodologias capazes de garantir a eficiência na adequação é assumida corno a possibilidade de subtração de
aprendizagem dos alunos que são modelados a partir de um padrão de conhecimentos e experiências mediante práticas pedagógicas unificadas
aprendiz. Essa perspectiva promove a exclusão de alunos com deficiência e pouco criativas. Como o currÍCulo é finalizado em conhecimentos
e com transtornos globais do desenvolvimento dos cotidianos escolares, considerados legítimos, é preciso pensar que os eleitos farão essa
pois os subjetivava como não propensos à aprendizagem. apropriação e os inaptos ao conhecimento conviverão com as
O currículo, nesse movimento, é subjetiva do como UI11 trajeto adaptações ou as flexibilizações curriculares.
permeado por urna sequência, terminalidade, completude, É justamente a capacidade crítica gue tem o humano de refletir
integralidade. O que deve ser ensinado aos alunos é retirado da seleção sobre as relações que estabelece no contexto social e as produções
do estoque cultural mais amplo da sociedade. Supõe, portanto, haver culturais nele inseridas que favoreceu a problematização dos
um consenso do conhecimento ensinado, coincidência entre a natureza pressupostos difundidos pela perspectiva tradicional de currículo. ,
do conhecimento e da cultura mais geral e a natureza do conhecin1ento A crítica estabelecida pelos movimentos sociais acerca da f

e da cultura especificamente escolar. Adlnite-se, também, uma diferença "


insatisfação sobre os processos de' seleção cultural e econômica
apenas de graduação e de quantidade, urna relação passiva entre quem presentes no currículo tradicionat as desigualdades de acesso ao
"conhece" e aquilo que é conhecido e uma concepção de cultura e de conhecimento e as metodologias tradicionais deram sustentação para o
conhecimento como estáticos e inérticos (SILVA, 2006). fortalecimentddas teorias críticas. A partir desse contexto, questões que
Nesse movimento, o currículo precisa dar conta de responder a sustentavam a teoria tradicional cedem lugar a problematizações que
quatro questões principais: que objetivos educacionais deve a escola versam sobre as ideologias e as relações de poder presentes nas
procurar atingir? Que experiências educacionais podem ser oferecidas propostas curriculares.
que tenham probabilidade de alcançar esses propósitos? Corno Nesse movimento, três questões passam a ser problematizadas
organizar eficientemente essas experiências educacionais? Como quando se discorre sobre a importância da perspectiva crítica: o
podemos ter certeza de que esses objetivos estão sendo alcançados? reconhecimento das ideologias, das relações de poder e da cultura na
(SILVA,2005).
composição dos currículos escolares. 'Para Silva (2005, p. 32), "[ ...] A
Em pleno século XXI, ainda sofremos sérios rebatirnentos desta ideologia atua de forma discriminatória: ela inclina as pessoas das
perspectiva curricular, pois temos dificuldade de reconhecer que as classes subordinadas à submissão e à obediência, enquanto as pessoas
diferenças entre as pessoas é o que move a produção do conhecimento, das classes dominantes aprendem a comandar e a controlar". O poder
que a escola precisa objetivar o trabalho com o currículo por meio de "[ ...] se manifesta por meio de linhas divisórías que separam diferentes
um olhar reflexivo-crítico1'-que há uma pluralidade de experiências que grupos sociais em termos de classe, etnia, g"ênero, etc. Essas divisões
precisam incorporar as propostas curriculares, porque a tarefa principal constituem tanto a origem quanto o resultado de relações de poder"
do conhecimento é satisfazer as necessidades humanas. (MOREIRA; SILVA, 2008, p. 29).
Das teorias tradicion~is, ficou-nos como legado a ideia de que o Já a cultura, conforme descrevem Moreira e Silva (2008, p. 26),
currículo está pronto. Nele não há questões a serem problernatizadas.
Para a escolarização de alunos com deficiência e com transtornos [...] não é vista como um conjmüo inerte e estático de valores e
conhecimentos a serem transmitidos de forma não-problemática a uma nova
globais do desenvolvimento, é preciso adequá-lo ou adaptá-lo. Nesse
geração, nem ela existe de forma .unitária e homogênea. Em vez disso, o
contexto, a adequação e a adaptação assumem um caráter de currículo e a educação estão profundamente envolvidos em uma política
empobrecimento. e esvaziamento dos conteúdos a comporem os cultural, o que significa que são tanto campos de produção at'Íva da cultura
currÍCulos escolares, já que as diferenças dos alunos são subjetivadas quanto campos contestados.

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Dessa forma, na composição e no trabalho corrt os currículos São propagados questionamentos sobre a existência de uma cultura
escolares, surgem os questionamentos: "[ ...] por que alguns aspectos da unitária e a possibilidade de se defender o multiculturalismo. Esses
cultura social são ensinados como se representassem o todo so,:ial?". movimentos dão subsídios para que as abordagens pós-críticas tragam
Quais as consequências da legitimação desses aspectos para o conjunto outros direcionamentos para as reflexões curriculares. A teoria pós-
da sociedade? O currículo, nesse contexto, passa a ser entendido como crítica amplia algumas discussões da teoria critica, porque, além de
''[...] uma conversa complicada de cada indivíduo com o mundo e sinalizar que os currículos são permeados de relações de poder e de
consigo mesmo" (LOPES; MACEDO, 2011, p. 35). controle, passa a afirmar que por meio dele nos tornamos o que somos.
Com a teoria critica! passamos a entender que a experiência
educacional dos alunos é parte da situação biográfica que esses sujeitos
° currículo é uma questão de saber, identidade e poder.
Para Silva (2009), com as teorias pós-críticas, novos direcionamentos
levavam para os cotidianos escolares, devendo o currículo proporcionar são adotados para os currículos escolares. As narrativas neles contidas
o entendimento da natureza dessa relação, pois é por meio dela, e não corporificam noções particulares sobre conhecimento! formas de
apenas dela, que o individuo se move biograficamente de forma organização da sociedade e os diferentes grupos sociais. Percebe-se que
multidimensional. as noções de conhecimento presentes nas propostas curriculares estão
Com o desenvolvimento da teoria crítica! púdemos problematizar o em descompasso com as modificações sociais, com as profundas
conhecimento corporificado corno currículo educacional, analisando-o mudanças da natureza e a extensão do conhecimento. A "cultura
de forma integrada à constituição histórica da sociedade, não podendo popular" pod~ser evidenciada como necessária e as novas teo1ologias e
alegar qualquer inocência a respeito da seleção de conhecimentos a a informação ganham espaço nas programações curriculares.
serem ensinados aos alunos, nem mesmos encarar o currículo de modo Como a ideia de uma cultura geral colocada em xeque, "[ ...] a
ingênuo e não problemático. cultura perde o sentido de repertório partilhado para ser encarada como
Com a perspectiva critica, o humano é subjetivado como um sujeito processo de significação" (LOPES; MACEDO, 2011, p. 186). Na
criativo e capaz de ser crítico de si, dos outros e de suas produções. composição dos currículos escolares, debates precisam ser travados
Nesse movimento, percebe-se que os conhecimentos selecionados para para a garantia da igualdade social e da pluralidade cultural,
a incorporação nos currículos escolares não são neuh"os, mas permeados necessitando o currículo, ao mesmo tempo! de dar conta do respeito à
pelas demandas geradas pela sociedade capitalista. diferença e do compromisso da escola na promoção da igualdade social.
Esse processo faz emergir a necessidade de lançarmos um oL~ar A Educação só poderá ser reconhecida como direito de todos na
crítico e emancipatório sobre o trabalho com o conhecünento no medida em que se reconhecem e se valorizam as culturas particulares.
cotidiano escolar, problematizando o desigual acesso a ele, as forças que
se incidem sobre a seleção do que é ensinado e as lutas finnadas para
° curriculo passa a ser visto como um veículo que produz significados
e constf6t sentidos, portanto é uma prática cultural (SILVA, 2009).
que as divisões sociais sejam mantidas por meio do trabalho educativo Com todo esse movimento, vamos percebendo que o conhecimento
escolar. está em constante constituição e fruição. Ele precisa estar conectado à
Com. o avanço do conhecimento no contexto social, várias vida social que pulsa dentro e fora das escolas. A assunção da diferença
modificações são produzidas na relação que o hllluano estabelece na necessita ser vista como constituinte do humano! pois abre cami:nhos
sociedade. Com a "virada linguÍstica" (SILVA, 1996).. passamos a para pensarmos a existência de uma pluralidade de conhecimentos,
.,
reconhecer que a linguagem produz subjetividades e que a cultura é . culturas , formas de vida e leitura da realidade a serem trabalhadas nos
composta de práticas discursivas. Com esse movimento, tiramos do currículos escolares. \,
centro das atenções o sujeito soberano, autônimo, racionaL unitário, Com as teorias pós-críticas novas possibilidades de inclusão das
para se falar em um sujeito com múltiplas identidades. necessidades de aprendizagem de alunos com deficiência, com

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transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades se tornanl o processo de coleta de dados no cotidiano da escola
mais possíveis. É preciso refletirque os conhecimentos que compõem os
~rrÍculos escolares não são neutros. O acesso ao conhecimento pode A pesquisa foi desenvolvida em uma escola de Ensino Fundamental
produzir formas diferenciadas de existência, bem como ampliar ou da Rede Pública Municipal de Vila Velha - ES, envolvendo professores,
minimizar as possibilidades de participação das pessoas na vida social. pedagogos, o dirigente escolar e alunos com deficiência e com
Precisamos criar caminhos metodológicos para que os transtornos globais do desenvolvimento. Esses sujeitos estavam
conhecimentos comuns estejam acessíveis a esses alunos e que as inseridos em turmas do 1º ao 6º ano, já que era a fase escolar oferecida
especificidades de aprendizagens desses sujeitos não sejarn pela escola.
invisibilizadas. Nas palavras de Morin (2005), é preciso promover a Buscou fundamentação nos pressupostos da pesquisa-ação
religação desses saberes para que estudantes com trajetórias colaborativo-crítica que assume que as ações coletivas podeln apontar
diferenciadas de aprendizagens tenham iguais oportunidades de mudanças para as situações que desafiam os processos de ensino,
participação nos processos de produção de conhecimentos. configurando-se em oportunidades formativas para os sujeitos
Com as teorias pós-críticas, temos a possibilidade de refletir que,se envolvidos.
o currículo tem a capacidade de produzir identidades e subjetividades, O estudo teve como objetivo central entender como a reflexão
precisamos pensar em alternativas para que os conhecimentos crítica dos discursos produzidos pela escola sobre o envolvimento de
explorados no cotidiano escolar estejam acessíveis aos alunos com alunos com deticiência e com transtornos globais do desenvolvimento
indicativos à Educação Especial, pois, se o não acesso ao conhecimento no currículo escolar podem disparar processos de formação
produziu a ideia de que esses sujeitos são incapazes de aprender, o continuada capazes de contribuir com a instituição de ações
acesso ao conhecimento pode fazer emergir a potência desse grupo de pedagógicas favorecedoras da aprendizagem desses sujeitos no
estudantes.
cotidiano escolar.
Se, com as teorias pós-críticas, as pessoas são subjetivadas como a processo de pesquisa se efetivou de julho de 2010 a julho de 2011
singulares e atravessadas pelas relações estabelecidas no contexto a partir de três momentos correlacionados: a) escuta dos dizeres
social, o currículo não pode ser subjetivado como finalizado, mas C01110 docentes sobre as possibilidades de envolver alunos com deficiência e
um instrumento que se constitui na interação com o aluno, com o com transtornos globais do desenvolvimento no currículo escolar; b) a
próprio desenvolvimento do conhecimento, com o fazer docente e com utilização das questões observadas e dos discursos como oportunidades
os diferentes espaços que podem ser adotados para potenciaJizar a de formação continuada; c) o acompanhamento das ações da escola
aprendizagem do estudante.
para envolvimento desses alunos no currículo escolar a partir da ,análise
Com as teorias pós-críticas, podemos refletir que as leituras e as reflexivo-críticadesencadeada nos momentos de formação.
expectativas que produzimos das pessoas influenciam a maneira como Os espaços de formação continuada se deram de maneira
o conhecimento é explorado na escola. Esse movimento revela que o diferenciadas. Nos momentos de planejamento e de formação, mas
currÍCulo escolar pode arrtpJiara participação das pessoas nas também nos diálogos travados nos espaços de entrada..recreio e saída
atividades sociais, bem como sua exclusãó, por isso precisa ser dos alunos. A escola se reunia quinzenalmente, às quartas-feiras para
assumido como um campo de lutas e contestações. Se o curr1culo discussões coletivas. Além dos três momentos, realizamos entrevistas
produz subjetividades, buscamos contribuições nas teorias pós-críticas semiestruturadas com os sujeitos envolvidos na investigação, sendo
para que os alunos com indicativos à Educação Especial sejam lidos, todo o processo de pesquisa registrado no diário de campo do
como diria Meiri.eu (2005),educáveis.
pesquisador.

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Os resultados produzidos pelo estudo A segunda questâo versava sobre a leitura que a escola produzia
sobre o estudante com deficiência. Quando maior era o
Na análise da proposta curricular da escola, observamos que havia comprometimento da escola, dele se distanciada a possibilidade de
um conjunto de conhecimentos a serem explorados com os alunos, de envolvê-lo no currículo escolar. Caso a escola julgasse a condição do
acordo com as séries em que eshldavam e os campos de atuação dos aluno menos complexa, esse envolvimento era mais possível.
professores. Assim, a questão era pensar em con10 articular os
No quinto ano tem uma aluna que é menos comprometida. Ali é possível
conhecimentos específicos que os alunos demandavam constituir e os
desenvolver um trabalho (LAURA - PROFESSORA).
conteúdos explorados com a coletividade da turma.
Para esse processo, refletimos a importáncia da articulação dos Não vejo possibilid<.ldes de envolver o Adriano nas aulas. Ele não para. Fica
trabalhos da Educação Especial, dos pedagogos e dos professores desatento. Não sei o que passa na cabeça dele (HELEN - PROFESSORA).
regentes de classe. Para uma ação mais sistematizada, esses
profissionais compreenderam a importância de desencadear algumas Os pressupostos da normalidade/anormalidade produzida uma
ações. leitura minimizada do aluno e da aprendizagem que ele produzia na
A primeira foi organizar a oferta do atendimento educacional escola. Essa situação era evidenciada pela expressão "só", pois sempre
especializado no contrahuno de matrícula dos alunos. A segunda, que os docentes sinalizavam algo sobre os alunos, percebíamos o
garantir o apoio necessário aos alunos e professores na sala de aula acompanhamento desta expressão.
comum e a terceira de promover diálogos entre o atendiIl1ento
Com o Valentim só alfabetização. É só isso que ele consegue (THALITA -
educacional especializado e a sala de aula comum.
PROFESSORA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL).
Com relação à constituição de espaços de formação continuada,
aproveitamos a análise produzida sobre a proposta curricular para o Adriano precisa do Braille, então, até agora ele só aprendeu alguns
articular a ideia de que a tarefa da escola é garantir que os alunos pontos, a se locomover melhqr na escola, a se alimentar e se comunicar
melhor, mas só isso (NÁDIA ~ PROFESSORA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL).
tenham o direito de aprender. Assim, fizemos a opção de articular as
ações dos professores e pedagogos da escola.
Outra situação que atravessava a relação entre o aluno com
Com â articulação dos professores regentes e de Educação Especial,
deficiência e COTIl transtornos globais do desenvolvimento era a falta de
os diálogos eram mais possíveis. Esse processo permitiu que os
conhecimento dos professores sobre a sexualidade humana relacionada
professores sinalizassem algumas dúvidas, ideias e questões sobre a
às questões da Educação Especial. Muitas vezes, em nome da
aprendizagem dos alunos. Inicialmente, acreditavam que os laudos
"sexualidade aflorada" que a escola dizia ter os alunos, o currículo se
médicos podiam ser utilizados COrrià'-41ID recurso que promovia o
enchia de "vazios", pois não havia mediações ~ conhecimentos a serem
avanço automático do~ alunos no transcorrer do Ensino Fundamental.
enslnados aos estudantes.
Ele tem laudo. Tem a lei que garante o avanço automático (SIMONE _
PROFESSORA). Hoje Roberto está naqlleles dias. Ele disse que me viu com o meu esposo.
Quando perguntei o que a gente estava fazendo, ele respondeu: 'Beijando na
Se essa criança tivesse laudo, seria mais fácil. Seria igual ao irmão dele. boca'. Estou com medo dele, porque fica toda hora olhando para gente e
Pudemos .avançá-Io, por que tinha laudo. Ai a lei ampara (CRISTINA _ daquele jeito. A coisa está difícil. Não pode ver uma revista que tem mulher
qll€ fica vidrado. Hoje já tomei umas duas dele. Não deixo que ele fique
PROFESSORA).
vendo essas mulheres na revista, porque a coisa fica pior ainda (THALITA-
PROFESSORA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL).

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A reflexão desses elementos fundalnentava os momentos de
à espera do efetivo respeito e atendimento às suas especiais necessidades e
formação continuada na escola. Sobre a questão do laudo médico, os lutando por isso; a diferença, em muitos casos, ainda é concebida como
professores podiam dialogar com as teorizações de Vasques (2011). A deficiência, a despeito dos avanços inegáveis já concretizados; há conquistas
autora ao problematizar a utilização do diagnóstico no campo da no campo da linguagem, sem que necessariamente conheçam tradução na
Educação Especial, diz que as condições dos alunos (deficiências, prática social ou, nas palavras de Amaral (1994, p. 55), 'talvez seja,
realmente, mais fácil falar sobre do que olhar para' (BlANCHEITI;
transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/ CORREIA, 2011, p. 45-46).
superdotação) são construções sociais, portanto permeadas de
ideologias e relações de poder.
Por último, quanto à questão da sexualidade da pessoa com
Esquecemo-nos de que lidamos com humanos, ou seja, sujeitos deficiência, as reflexões desencadeadas nos momentos de formação
únicos e atravessados por uma história singular e social de existência. continuada aproximavam os docentes dos estudos de Maia e Camossa
Portanto, a questão é pensar o diagnóstico como um instrumento que (2002)que afirmam que a sexualidade da pessoa com deficiência mental
nos ajuda a construir redes de apoios à aprendizagem dos alunos e não é atravessada por dois mitos: o primeiro é que ela é assexuada; o
um recurso que justifica a não aprendizagem.
segundo é que é hipersexuada. Tais mitos desconsideram que as
Com relação à leitura produzida pela escola sobre o aluno com necessidades, desejos e capacidades sexuais dos deficientes mentais são
deficiência, muitas vezes, atravessada pelos pressupostos da
iguais aos das demais pessoas, embora no trato social essa manifestação
normalidade/anormalidade, os docentes também puderam recorrer às possa ser, simbolicamente, registrada como diferente.
teorizações de Bianchetti e Correia (2011) quando apontam que váí:ios As autoras evidenciam que a sociedade atual criou a ideia de que a
avanços foram obtidos no campo da Educação Especial, podendo ser pessoa com deficiência mental é uma criança, angelical e desprovida de
destacados o avanço da tecnologia, do conhecimento e da comunicação. sexo. Em contrapartida, quando a entende como um indivíduo
Para esses autores, ''(...] podemos perceber o quanto já foi feito e o hipersexualizado, relaciona-o com uma aberração, um desvio, ou seja,
potencial que se vislumbra de superar as 'naturais/acidentais uma pessoa dotada de uma sexualidade exagerada, agressiva e
deficiências' quando a capacidade criativa de homens e mulheres é animalesca.
colocada em a'ção".
Reforçam-se, assim, atitudes em relação ao deficiente mental que
Mesmo assim, reconhecem que vivemos um tempo paradoxat pois, levam ao isolamento, à segregação e à ignorância sobre os aspectos de
se temos .esses avanços, a construção social acerca da normalidade/
sua sexualidade. Em decorrência dessas concepções errôneas, a
anormalidade ainda cria impedimentos para que pessoas com
orientação sexual é negligenciada com relação a essa população. No
comprometimentos fisicos, intelectuais ou sensoriais tenham ampliadas caso da escola, parece absurda a ideia de tratá-la como um componente
suas possibilidades de participação na vida escolar e social. curricular.
Dessa forma, há de se visitar os olhares, as atitudes e os
Os espaços de formação continuada apontavam para algumas
pensamentos humanos, pois a leitura que fazemos dos "outros", ou
questões. Primeiro que o conhecimento corporificado no currículo
seja, daqueles. que não nos espelham, pode se configurar em empecilhos
precisa estar extensivo a todos os alunos, tomadas as problematizações
para que a diferença transite no contexto social sem ser vista como
necessárias sobre as ideologias e as relações de poder. nele existentes.
anormalidade.
Segundo, que o trabalho com o currículo em interface com a Educação
Especial demandava dos professores uma vigilância no olhar e na
[...] o não enquadramento num padrão previamente estabelecido ainda
causa muito sofrimento àquel~s que não se encaixam na considerada leitura produzida sobre a pessoa com deficiência. A maneira como os
normalidade; os portadores de necessidades educativas especiais ainda estão professores subjetivam os alunos influencia a participação desses
sujeitos nos processos de ensino e aprendizagem. Terceiro, que para a
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. ." participação na produção dos conhecimentos cientificamente
constihlição de práticas pedagógicas comprometidas com os
elaborados! de certa formal são envolvidos com as comunidades
pressupostos da inclusão escolar é preciso que a escola defina a sua
científicas que se debruçam a pesquisar e a divulgar o avanço do
ação educativa, a articulação de seus diferentes profissionais e aposte na
próprio conhecimento humano.
educabilidade dos alunos. Para tantol é preciso articular os conhecimentos específicos que os
A partir da reflexão crítica do trabalho docente mediante o desafio
alunos demandam acessar com os comuns que compõem os currículos
de envolvimento dos alunos com deficiência e com transtornos globais
escolares. Esse trabalho demanda a articulação das ações dos
do desenvolvimento no currículo escolar, os professores envolvidos na
profissionais da escola, a reflexão critica do trabalho docente e das
pesquisa puderam elaborar atividades diferenciadas para os alunos a
aprendizagens dos alunos e a sistematização de práticas pedagógicas
partir dos conteúdos programáticos explorados com a coletividade da
comprometidas com os pressupostos da inclusão escolar.
turma, organização de cadernos e projetos pedagógicos, garantindo a
parceria entre pedagogos, professores regentes e de Educação EspeciaL
Nas reflexões sobre a relação entre o currículo e ?s pressupostos da
inclusão escolar os professores puderam encontrar apoio nas Referências
teorizações de Apple (2008), quando afirma ser possivel garantir a todos
os estudantes acesso a um currículo COlTIUlTI, ou seja, uma proposta de APPLE, MICHAEL W. Ideologia e currículo. 3. ed. Tradução de Vinicius
ensino que toma a exigência do conhecimento corno um elemento Figueira. Porto'Alegre: Artmed, 2006.
consubstancial, demandando engajamento político dos professores e a
BIANCHETTI, Lucídio; CORREA, José Alberto. In/exclusão no trabalho e na ,
assunção de que o ensino precisa ser mais ativo e atrativo para atender
educação: aspectos mitológicos, históricos e conceituais. Campinas: Papirus, 2011.
às diferentes necessidades que os alunos trazem para o cotidiano
escolar. GOODSON Ivor F. Currículo: teoria e história. 5. ed. Tradução de Attílio
I

Bnrneta. Petrópolis, RJ:Vozes, 1995.


Considerações finais
LOPES, Alice Casimira; MACEDO, Elizabeth. Teorias de currículo. São Paulo:
Para o envolvimento dos alunos com deficiência e com transtornos Cortez, 2011.
globais do desenvolvimento no currículo escolar é prudente constituir
um olhar de aposta nesses sujeitos, bem como nas aprendizagens que MAIA, Ana Claudia Bortolozzi; CAMOSSA, Denise do AmaraL Relatos de
realizam, nos conhecimentos que constroem e nas necessidades que jovens mentais sobre a sexualidade através de diferentes estratégias. Revista
Paidéia, São Paulo, v. 12,n. 24, p. 205-214,2002.
trazem.para os cotidianos escolares.
É também preciso refletir que a diferença é parte constitutiva do
MEIRIEU, Philippe. O cotidiano da escola e da sala de aula: o fazer e o
humano e que a aprendizagem e a produção do conhecimento se efetiva
compreender. Porto Alegre: Artmed. 2005.
quando reconhecemos a potência dos olltro~1 as possibilidades de troct1
entre as pessoas e a constituição de estratégias para que os estudantes se MOREIRA, Antônio Flávio Barbosa; SILVA, Tomaz Tadeu da. Sociologia e
sintam desafiados e incentivados a se envolverem COln as redes de teoria crítica do currículo: uma introdução. In: MOREIRA, Antônio Flávio
conhecimento que se estabelecem nos cotidianos escolares. Barbosa; SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Currículo, cultura e soóedade. 10. ed.
_ Para tant?1 é preciso assumir que o trabalho com o conhecimento São Paulo: Cortez, 2008.p. 7-37.
elaborado é a base de sustentação do curriculo. Segundo Young (2011),
os alunos buscam a escola para aprender aquilo que não saben1. Com a
]83
1 R2
.
• .!l
~,

MORlN. Edgar. O método 5: a humanidade da humanidade. Porto Alegre:


Sulina, 2005.

SACRISTÁN, José Gimeno. A educação que ainda é possível: ensaios sobre uma
cultura para a educação. Porto Alegre: Arhned. 2007.

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conhecimento; o argumento radical em defesa de um rurrículo centrado em
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