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Contardo Calligaris: "A falta de interesse

pelo mundo e pelos outros é o que pode


nos acontecer de pior"
"É preciso sentir plenamente as dores: das perdas, do luto, do fracasso. Eu acho um
tremendo desastre esse ideal de felicidade que tenta nos poupar de tudo o que é ruim." -
Contardo Calligaris
Reflexões sobre a felicidade são sempre pertinentes, pois dizem respeito à vida de todos
nós. No Fronteiras do Pensamento, nomes como Gilles Lipovetsky, Pascal Bruckner e
Paul Bloom trouxeram seus ensinamentos sobre a questão, em conferências e vídeos que
veremos ao longo do texto.
Desta vez, Contardo Calligaris, psicanalista italiano, traz as lições da psicanálise para esta
reflexão. O italiano fala sobre a importância de tirarmos o foco constante na felicidade e
passarmos a buscar o viver integralmente - o que inclui cruzar as experiências e os
sentimentos negativos.
Caligaris defende a necessidade de se construir uma vida interessante, pela qual tenhamos
apreço, e não projetar nossa busca por motivação e significado naquilo que não possuímos:
"não por acaso, o grande espantalho do nosso século é a depressão. A falta de interesse pelo
mundo e pelos outros é o que pode nos acontecer de pior", explica o psicanalista. 
O que é felicidade hoje?
Contardo Calligaris: Não gosto muito da palavra felicidade, para dizer a verdade. Acho
que é, inclusive, uma ilusão mercadológica. O que a gente pode estudar são as condições do
bem-estar. A sensação de competência no exercício do trabalho, já se sabe, é a maior fonte
de bem-estar, mais que a remuneração. Nós temos um ideal de felicidade um pouco
ridículo.
Um exemplo é a fala do churrasco. Você pega um táxi domingo ao meio-dia para ir ao
escritório e o taxista diz: "Ah, estamos aqui trabalhando, mas legal seria estar num
churrasco tomando cerveja". Talvez você ou o taxista sofram de úlcera, e não haveria
prazer em tomar cerveja. Nem em comer picanha.

Mesmo que não vissem problema, pode ser que detestassem as pessoas lá e não se
divertissem. Em geral, somos péssimos em matéria de prazer. Por exemplo, estamos sempre
lamentando que nossos filhos seriam uma geração hedonista, dedicada a prazeres
imediatos, quando, de fato, vivemos numa civilização muito pouco hedonista. Por isso, nos
queixamos de excessos e nos permitimos prazeres medíocres ou muito discretos.  

Mas continuamos acreditando que ser feliz é ter esses prazeres que não nos
permitimos. E agora?
Contardo Calligaris: Ligamos felicidade à satisfação de desejos, o que é totalmente
antinômico com o próprio funcionamento da nossa cultura, fundada na insatisfação.
Nenhum objeto pode nos satisfazer plenamente.(11)
O fato de que você pode desejar muito um homem, uma mulher, um carro, um relógio, uma
joia ou uma viagem não tem relevância. No dia em que você tiver aquele homem, aquela
mulher, aquele carro, aquele relógio, aquela joia ou aquela viagem, se dará conta de que
está na hora de desejar outra coisa.
Esse mecanismo sustenta ao mesmo tempo um sistema econômico, o capitalismo moderno,
e o nosso desejo, que não se esgota nunca. Então, costumo dizer que não quero ser feliz..
Quero é ter uma vida interessante.  

Mas isso inclui os pequenos prazeres?


Contardo Calligaris: Inclui pequenos prazeres, mas também grandes dores. Ter uma vida
interessante significa viver plenamente. Isso pressupõe poder se desesperar quando se fica
sem alguma coisa que é muito importante para você.
É preciso sentir plenamente as dores: das perdas, do luto, do fracasso. Eu acho um
tremendo desastre esse ideal de felicidade que tenta nos poupar de tudo o que é ruim.  

O que adianta garantir uma vida longa se não for para vivê-la de verdade? É isso que
temos de nos perguntar?
Contardo Calligaris: Quem descreveu isso bem foi (o escritor italiano) Dino Buzatti, no
romance O Deserto dos Tártaros. Conta a história de um militar que passa a vida inteira em
um posto avançado diante do deserto na expectativa de defender o país contra a invasão dos
tártaros, que nunca chegam.

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Ningún objeto nos puede satisfacer dado a que buscamos volver al primer momento de satisfacción que ya
está perdido, que se vuelve el modelo de los posteriores desesos que jamás se satisfacen del todo ya que no
se vuelve a esta primer fuente de satisfacción.
Mas, tem um lado simpático na ideologia do preparo. É que está subentendida a ideia de
que um dia a pessoa viverá uma grande aventura. Mas o que acontece, em geral, é que a
preparação é a única coisa a que a gente se autoriza.  
Então, pelo menos há um desejo de viver uma aventura?
Contardo Calligaris: Mas os sonhos estão pequenos. A noção de felicidade hoje é um
emprego seguro, um futuro tranquilo, saúde e, como diz a música dos aniversários, muitos
anos de vida.
Acho estranho quando vejo alguém de 18 anos que, ao fazer a escolha profissional, leva em
conta o mercado de trabalho, as oportunidades, o dinheiro... Isso nem passaria pela cabeça
de um jovem dos anos 1960.  

A julgar pela quantidade de fotos colocadas nas redes sociais de pessoas sorridentes,
elas têm aproveitado a vida e se sentem felizes. Ou, como você aborda em uma
crônica, hoje mais importante do que ser é parecer feliz?
Contardo Calligaris: O perfil é a sua apresentação para o mundo, o que implica um certo
trabalho de falsificação da sua imagem e até autoimagem. Nas redes sociais, a felicidade dá
status.
Mas, esse fenômeno é anterior ao Facebook. Se você olhar as fotografias de família do final
do século 19, início do 20, todo mundo colocava a melhor roupa e posava seriíssimo.
Ninguém estava lá para mostrar que era feliz. Ao contrário, era um momento solene. É a
partir da câmera fotográfica portátil que aparecem as fotos das férias felizes, com todo
mundo sempre sorridente.  

E a gente olha para elas e pensa: "Eu era feliz e não sabia".
Contardo Calligaris: Não gosto dessa frase, porque contém uma cota de lamentação. E
acho que a gente nunca deveria lamentar nada, em particular as próprias decisões.
Acredito que, no fundo, a gente quase sempre toma a única decisão que poderia tomar
naquelas circunstâncias. Então, não vale a pena lamentar o passado. Mas é verdade que
existe isso.  

As escolhas ao longo da vida geram insegurança e medo. Em relação a isso, você diz
que há dois tipos de pessoa: os "maximizadores", que querem ter certeza antes de que
aquela é a opção certa, e a turma do "suficientemente bom". O segundo grupo sofre
menos?
Contardo Calligaris: Tem uma coisa interessante no "maximizador": é como se ele
acreditasse que existe o objeto mais adequado de todos, aquele que é perfeito. Mas é claro
que não existe.  

A busca da perfeição não gera frustração, pois sempre haverá algo que a gente
perdeu?
Contardo Calligaris: Freud dizia que o único objeto verdadeiramente insubstituível para a
gente é o perdido. E não é que foi perdido porque caiu do bolso. Ele fala daquilo que nunca
tivemos.
Então, faz sentido que nossa relação com o desejo seja esta: imaginamos existir algo que
nunca tivemos, mas que teria nos satisfeito totalmente. Só não sabemos o que é.  

Como nos livrar desse sentimento?


Contardo Calligaris: Temos de tornar cada uma de nossas escolhas interessante. Isso só é
possível quando temos simpatia pela vida e pelos outros - o que parece básico, mas não é
no mundo de hoje.
Não por acaso, o grande espantalho do nosso século é a depressão. A falta de interesse pelo
mundo e pelos outros é o que pode nos acontecer de pior. 

Complica ainda mais o fato de, como você já abordou, enfrentarmos um dilema
eterno: desejamos a estabilidade e também a aventura. Então, entramos em uma
relação ou um emprego, mas sofremos porque nos sentimos presos e achamos que
estamos deixando de viver grandes aventuras. Isso tem solução?
Contardo Calligaris: Não sei se tem solução. A gente vive mesmo eternamente nesse
conflito. Agora, como cada um o administra é outra história.
Pode-se optar por uma espécie de inércia constante, que será sempre acompanhada da
sensação de que você está realmente desperdiçando seu tempo e sua vida, porque toda a
aventura está acontecendo lá fora e, a cada instante, você está perdendo os cavalos
encilhados que passam e não passarão nunca mais. Viver dessa maneira não é uma das
opções. Mas você pode também, em vez disso, permitir se perder.  

Permitir se perder no sentido de transformar a vida em uma eterna aventura?


Contardo Calligaris: Mas também nesse caso você terá coisas a lamentar. Eu,
pessoalmente, fui mais por esse caminho. Mas o preço foi muito alto.
Por exemplo, eu não estive presente na morte de nenhum dos meus entes próximos, porque
morava em outro país e sempre chegava atrasado, no avião do dia seguinte. Hoje, por sorte,
meu filho - que é grande, tem 30 anos - vive perto de mim. Por acaso, ele decidiu vir para o
Brasil. Mas não o vi crescer realmente.  

Para ser feliz, enfim, o segredo é não buscar a felicidade?


Contardo Calligaris: Isso eu acho uma excelente ideia. A felicidade, em si, é realmente
uma preocupação desnecessária. Se meu filho dissesse "quero ser feliz", eu me preocuparia
seriamente.  
Preferia que dissesse o quê?
Contardo Calligaris: Só gostaria que ele me dissesse: “Estou a fim de…" A partir disso,
qualquer coisa é válida. O que angustia é ver falta de desejo nas pessoas, em particular nos
jovens. Agora, se ele está a fim de algo, mesmo que isso pareça muito distante do campo do
possível dentro da vida que leva, eu acho ótimo.

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