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KENNETH N. WALTZ TEORIA DAS RELACOES INTERNACIONAIS TRADUGLO REVISKO CIENTIFICA gradiva m2 TEORIA DAS RELASOES INTERNACIONAIS firmas competirem, se alguns oligopolistas se envolverem em combi- nagdes de pregos, ou se 0 govemo controlar os pregos. Competicio perfeita, conluio completo, controlo absoluto: estas causas diferentes produzem resultados idénticos. Da uniformidade das resultantes no podemos inferir que os atributos e as interacgdes das partes de um sistema permaneceram constantes. A estrutura pode determinar as re- sultantes fora de mudangas ao rivel das unidades e & parte do desa- parecimento de algumas delas ¢ a emergéncia de outras. «Causas» diferentes podem produzir os mesmos efeitos; as mesmas «causas» podem ter consequéncias diferentes. A nio ser que saibamos como um dominio esté organizado, € praticamente impossivel explicar as causas a partir dos efeitos. O efeito de uma organizagdo pode predominar sobre os atributos € as interacgdes dos elementos dentro dela. Um sistema que ¢ indepen- dente de condigdes iniciais diz-se que demonstra finalidade igual. Se © faz, «o sistema é entdo a sua melhor explicacdo, ¢ o estudo da sua organizago presente, a metodologia apropriada» (Watzlawick, et al., 1967, p. 129; cf. p. 32). Se a estrutura influencia sem determinar, entdo devemos perguntar como e até que ponto a estrutura de um dominio explica as resultantes, e como e até que ponto as unidades explicam as resultantes, A estrutura tem de ser estudada no seu pré- prio direito, assim como as unidades. Afirmar estar a seguir uma abor- dagem sistémica ou estar a construir uma teoria sistémica requer que ‘mostremos como os niveis sistémicos e unitérios podem ser distinta- ‘mente definidos. O fracasso de marcar e preservar a distingao entre estrutura, por um lado, ¢ unidades e processos, por outro, torna impos- sivel desenredar causas de diferentes tipos e distinguir entre causas € efeitos. Confundir a distingdo entre os diferentes niveis de um sistema tem, acredito, sido o maior impedimento para o desenvolvimento de teorias das relages internacionais. O préximo capitulo mostra como definir estruturas politicas de uma forma que torna possivel a constru- co de uma teoria sistémica. 5 Estruturas politicas Consagrimos nos capitulos 2, 3 e 4, que as resultantes politico- -internacionais nfio podem ser explicadas de forma reducionista. Des- cobrimos no capitulo 3 que mesmo abordagens reconhecidamente sistémicas misturam e confundem causas de nivel sistémico com cau- sas a0 nivel das unidades components. Reflectindo sobre as teorias que seguem 0 modelo sistémico geral, conclufmos imediatamente que as relagdes internacionais no se encaixam de forma adequada no ‘modelo para tornd-lo itil e que as relagdes internacionais s6 podem ser entendidas através de algum tipo de teoria sistémica. Para ser um sucesso, uma tal teoria tem de mostrar como as relagdes internacio- nais podem ser vistas como um dominio distinto do econémico, social € outros dominios intemacionais que possamos imaginar. Para apartar 60s sistemas politico-internacionais de outros sistemas intemnacionais, ¢ para distinguir forgas de nivel sistémico de forgas ao nivel das unida- des, requer mostrar como as estruturas politicas so geradas e como afectam as unidades do sistema, e vice-versa. Como podemos ver as relagdes intemacionais como um sistema distinto? O que intervém entre as unidades de interacco ¢ as resultantes que os seus actos € interacgdes produzem? Para responder a estas questdes, este capitulo, i TEORIA DAS RELAGOES INTERNACIONAIS examina primeiro o conceito de estratura social e, depois, define estru- tura como um conceito apropriado para a politica nacional e interna- cional. I Um sistema é composto por uma estrutura e por unidades em interacgdo. A estrutura € a componente alargada do sistema que torna possivel pensar o sistema como um todo. O problema, que nio foi resolvido pelos teéricos sistémicos considerados no capftulo 3, & ar- ranjar uma definigao de estrutura, livre dos atributos e das interacgdes das unidades. As definigdes de esrutura devem deixar de lado, ou pelo menos abstrair-se das caractersticas, das unidades, do seu com- portamento, ¢ das suas interacgdes. Por que motivo tém estes assun- tos, obviamente importantes, de set omitidos? Eles tém de ser omiti- dos de forma a que possamos distinguir entre variéveis ao nivel das unidades ¢ varidveis ao nivel do sistema. O problema € desenvolver conceitos teoricamente titeis para substituirem as nogGes sistémicas vagas ¢ mutaveis que so normalmente empregues — nogdes tais como ambiente, situagdo, contexto, meio. Estrutura ¢ um conceito util se der significados claros e fixos aos tais termos vagos e mutaveis Sabemos 0 que temos de omitir de qualquer definigao de estrutura se a definigao é para ser til teoricamente. Abstrair-se dos atributos das unidades significa deixar de lado questdes sobre os tipos de lide- res politicos, instituigdes econdmicas e sociais, e compromissos ideo- légicos, que os estados possam ter. Abstrair-se das relagdes significa deixar de lado questdes sobre as interacgdes culturais, econémicas, politicas, e militares dos estados. Dizer o que é para ser deixado de lado niio indica 0 que deve ser aceite. No entanto, 0 ponto negativo € importante porque a instrugdo para omitir atributos & muitas vezes, violada e a instrucdo para omitir interacgdes passa, a maior parte das, ‘vezes, inobservada. Mas se os atributos e as interacgdes s40 omitidos, © que resta? A questo € respondida a0 considerarmos o significado duplo do termo «relagéo». Como S. F. Nadel aponta, a linguagem comum obscurece uma distingdo que € importante em teoria. «Rela- io» € usada para significar simulteneamente a interacgo das unida- des ¢ as posigdes que elas ocupam uma face & outra (1957, pp. 8-11). ESTRUTURAS POLITICAS us Ora, definir uma estrutura requer ignorar como as unidades se rela- cionam entre si (como elas interagem) e concentrar a atengao na sua posigio umas em relagao as outras (como est4o organizadas ou Posicionadas). As interacedes, como tenho insistido, acontecem ao nivel das unidades. Como as unidades se colocam umas em relacdo as outras, a forma como sio organizadas ou posicionadas, no ¢ uma propriedade das unidades. A disposigdo das unidades ¢ uma proprie- dade do sistema. ‘Ao deixarmos de lado a personalidade dos actores, 0 seu compor- tamento, © as suas interacedes, chegamos a um quadro puramente posicional da sociedade. Daqui emergem trés proposigies. Primeiro, as estruturas podem durat enquanto a personalidade, 0 comporta- ‘mento, ¢ as interacgées variam largamente. A estrutura é fundamen- talmente distinta das acgdes ¢ das interacgdes. Segundo, uma defini- io de estrutura aplica-se a dominios de substncia bastante diferente desde que a disposi¢ao das partes integrantes seja similar (cf. Nadel, pp. 104-109). Tercéiro, porque isto & assim, as teorias desenvolvidas para um dado dominio podem, com algumas modificagdes, ser aplica- das também a outros dominios. ‘Uma estrutura ¢ definida pela disposigdo das suas partes. Apenas as mudangas de disposiedo so mudangas estrutureis. Um sistema € com- posto de uma estrutura e das partes que interagem, Quer a estrutura quer as partes so conceitos relacionados, mas nao idénticos a agentes © agéncias. A estrutura nfo é uma coisa que vemos. O antropélogo Meyer Fortes diferenciou isto bem. «Quando descrevemos estruturay, disse, «estamos no dominio da gramética e da sintaxe, no da fala. Nés discernimos estrutura na ‘realidade concreta’ dos eventos sociais apenas pela virtude de termos primeiro estabelecido estrutura por abstracgio da ‘realidade concreta’y (Fortes, 1949, p. 56). Uma vez que a estrutura & uma abstracg0, nao pode ser definida enumerando caracteristicas materiais do sistema. Deve, em vez disso, ser definida pela disposi¢ao das partes do sistema e pelo principio dessa dispo- sicio. Esta € uma forma incomum de ver os sistemas politicos, apesar das nocdes estruturais serem suficientemente familiares para antropélo- gos, economistas ¢ até cientistas politicos que lidam, néo com os sistemas politicos em geral, mas com algumas das suas partes, tais como partidos politicos e burocracias. Ao definir estruturas, os antro- pélogos no questionam os habitos e os valores dos Chefes e dos u6 TEORIA DAS RELAGOES INTERNACIONAIS Indios; os economistas no questionam a organizacao e a eficiéncia das firmas em particular ¢ as trocas entre elas; e os cientistas politicos no questionam as personalidades e os interesses dos individuos que ocupam varios cargos. Deixam de lado as qualidades, 0s motivos ¢ as interacgbes dos actores, nao porque esses assuntos nao sejam interes- santes ou importantes, mas porque querem saber como as qualidades, os motivos ¢ as interacgdes das unidades tribais so afectados pela estrutura tribal, como as decisdes das firmas séo influenciadas pelo seu mercado ¢ como 0 comportamento das pessoas ¢ moldado pelos cargos que ocupam. I O coneeito de estrutura baseia-se no facto das unidades justapostas © combinadas de forma diferente produzirem diferentes resultantes. Primeiro, quero mostrar como a estrutura politica interna pode ser definida. Num livro sobre teoria das relagdes internacionais, a estru- tura politica intema teri de ser examinada de forma a estabelecer a isting entre expectativas sobre o comportamento e suas resultantes nos dominios interno e extemo. Ademais, considera a estrutura poli- ica interna agora, tommard mais facil desenvolver a opaca estrutura politico-internacional mais tarde. A estrutura define a disposi¢#o, ou o ordenamento, das partes de um sistema. A estruture no é uma colecgo de instituigdes politicas mas, em vez disso, a forma como esto dispostas. Como ¢ definida essa disposi¢ao? A constituigdo de um estado descreve algumas partes da organizago, mas as estruturas politicas como so desenvolvidas no sio idénticas as constituigdes formais. Ao definirmos estruturas, a primeira questao a ser respondida ¢ esta: qual é o prinefpio pelo qual as partes so dispostas? A politica interna é ordenada hierarquicamente. As unidades — ins- $s © agéncias — posicionam-se umas face As outras, em rela- ges de superioridade e subordinagdo. O prinefpio ordenador de um sistema dé o primeiro, e basico, pedago de informacdo sobre a maneira como as partes de um dominio esto relacionadas entre si Numa estrutura politica, a hierarquia dos cargos nao é, de forma alguma, completamente articulada, nem sio afastadas todas as ambiguidades ESTRUTURAS POLITICAS ur sobre relagdes de superioridade © subordinagdo. Nao obstante, os acto- res politicos sio formalmente diferenciados de acordo com o grau da sua autoridade, e as suas fungdes distintas sfo especificadas. Por «espe- Cificadas» néo quero dizer que a constituigdo descreve completamente os deveres que as diferentes agéncias desempenham, mas apenas que © acordo mais alargado prevalece nas tarefas que varias partes de um governo devem fazer € na medida do poder por elas legitimamente exercido. Assim 0 Congreso fornece a forca militar; 0 presidente comanda-a, O Congresso legisla; 0 poder executivo faz. cumprir as leis; as agéncias administram as leis; os juizes interpretam-nas. Esta especificagio de papéis ¢ esta diferenciagdo de fungdes encontra-se em qualquer estado, na razio do seu estidio de desenvolvimento. A especificagio de fungdes de partes formalmente diferenciadas di- -nos o segundo pedaco da informagao estrutural. Esta segunda parte da definicdo adiciona algum contetido A estrutura, mas apenas o sufi- ciente para indicar com mais preciséo a posigéo que as unidades ‘ocupam umas em relacdo as outras. Os papéis e as fungdes do primeiro- -ministro britanico ¢ do Parlamento briténico, por exemplo, diferem dos do presidente americano e do Congresso. Como brevemente mos- trarei, quando os cargos so justapostos e as fungdes stio combinadas de diferentes formas derivam diferentes comportamentos e resultados. posicionamento das unidades umas em relagdo as outras ndo é completamente definido por um principio sistémico ordenador e pela diferenciago formal das suas partes. A posi¢Go das unidades também muda com mudangas nas suas capacidades relativas. No desempenho das suas fungSes, as agéncias podem ganhar ou perder capacidades. A relaco do primeiro-ministro com o Parlamento e do presidente com © Congresso depende das suas capacidades relativas e varia com elas. A terceira parte da definicdo de estrutura reconhece que mesmo quando fungdes especificas permanecem imutaveis, as unidades acabam por posicionar-se diferentemente umas em rela¢do as outras através das mudangas na capacidade relativa de cada uma. Uma estrutura politica interna ¢ assim definida, primeiro, de acordo com 0 principio pelo qual é ordenada; segundo, pela especificacdo das fungSes de unidades formalmente diferenciadas; e, terceiro, pela distribuigdo das capacidades dessas unidades. Estrutura é uma nogio altamente abstracta, mas a definigao de estrutura nfo se abstrai de tudo. Fazé-lo seria pér tudo de lado ¢ nao incluir nada. A definicéo ‘ripartida de estrutura inclui apenas o que é requerido para mostrar us TEORIA DAS RELACOES INTERNACIONAIS como as unidades de um sistema so posicionadas ou organizadas. Tudo o resto & omitido. A preocupagio pela tradi¢&o e a cultura, a anéilise do cardcter e personalidade dos actores politicos, a ponderaao dos processos politicos conflituosos ¢ acomodaticios, a descri¢ao da feitura e execugdo da politica — todos estes assuntos sto deixados de lado. A sua omissiio no implica a sua falta de importéncia. So omitidos porque queremos descobrir os efeitos esperados da estrutura no processo e do processo na estrutura, Isso pode ser feito apenas se a estrutura © © processo forem distintamente definidos. As estruturas politicas moldam os processos politicos, como pode ser visto ao compararmos diferentes sistemas de governo. Na Gr: Bretanha e na América os poderes legislativo e executivo sio diferen- temente justapostos organizados. Na Inglaterra estéo fundidos; na América esto separados e, de muitas formas, colocados um em opo- sigdo ao outro. As diferengas na distribuigao do poder e da autoridade entre agéncias formais e informais afectam o poder dos chefes do governo e ajudam a que se responsabilizem pelas diferencas persisten- tes na sua actuago. J4 mostrei algures como as diferengas estruturais, explicam os contrastes nos modelos do comportamento politico brit nico americano. Repetindo alguns pontos de forma suméria tomnaré as declaragdes definidoras precedentes politicamente concretas. Toma- rei apenas a lideranea politica como exemplo ¢ concentrar-me-ei mais na Grd-Bretanha do que na América de forma a poder ir até ao minimo pormenor (1967 a; principalmente os capitulos 3 € 11) Os primeiros-ministros tém sido descritos, pelo menos desde o final do século xxx, como ganhando cada vez mais poder ao ponto de no nos devermos referir mais a governo parlamentar ou mesmo ministe- rial. Agora o primeiro-ministro manda sozinho, ou, pelo menos, € 0 que dizem. Temos entfio de perguntar-nos por que motivo estes cada vez mais fortes primeiros-ministros reagem tio lentamente aos acon- tecimentos, fazem as mesmas coisas ineficazes vezes sem conta, e, em geral, so fracos a governar. As respostas ndo se encontram nas dife- rentes personalidades dos primeiros-ministros, porque os padres a que me refiro juntam-nos todos desde 1860, isto é na época em que a disciplina dos partidos comegou a surgit como uma caracteristica forte da governagio britaniea. Os poderes formais dos primeiros-mi- nistros parecem ser amplos, e, no entanto, 0 seu comportamento & mais constrangido do que o dos presidentes americanos. Os constran- gimentos encontram-se na estrutura do governo britanico, especial- ESTRUTURAS POLITICAS. 19 mente na relagio do lider com o partido. Dois pontos stio da maxima importincia: a forma como os lideres sto recrutados ¢ 0 efeito de terem de lidar com o seu partido téo cautelosamente. Em ambos os paises, directa ou indirectamente, a escolha efectiva de um chefe de governo discute-se entre os lideres dos dois principais partidos. Como é que vém a ser 0s dois a escolher? Um membro do Parlamento tomna-se lider do seu partido ou primeiro-ministro através de um longo servigo no Parlamento, provando a sua capacidade em sucessivos degraus da escada ministerial, e mostrando as qualidades que a Camara dos Comuns considera importantes. Os membros dos dois principais partidos parlamentares determinam quem ascenderd a0 cargo mais elevado. Escolhem a pessoa que ird liderar 0 partido quando no esté no poder e que se tornara primeiro-ministro quando triunfa, © membro do Parlamento candidato a primeiro-ministro tem de convencer os seus primeiros constituintes, os membros do seu partido que tém assento na Camara dos Comuns, que sera competente, @, de acordo com as linhas do partido, seguro e fiavel no cargo. Pro- curario alguém que tenha mostrado ao longo dos anos que desagra- dard a poucos dos seus companheiros membros do Parlamento. Nao sendo definidos limites temporais a0 exercicio do cargo de primeiro- -ministro, os membros do Parlamento estardo, também, relutantes em apoiar uma pessoa jovem, cujo sucesso da sua candidatura pode blo- quear 0 caminho ao mais alto cargo durante décadas. Como na maioria dos paises com instituigdes politicas firmadas, os briténicos socializam os seus govemantes. O sistema pelo qual os britinicos socializam os seus governantes tem mais probabilidades do que o sistema americano de produzir chefes de governo ndo sé mais velhos mas também seguros ¢ fidveis. Desde a Segunda Lei de Reforma de 1867, a Gri-Bretanha teve 20 primeiros-ministras. A sua média de idade no cargo é de 62 anos. A sua média de servigo no Parlamento antes de se tornarem primeiros-ministros é de 28 anos, tempo durante © qual fizeram a sua aprendizagem em varios altos postos do Cabinet. Em Inglaterra a tinica forma de atingir o cargo mais elevado é subindo a escada ministerial”. Desde a Guerra Civil, a América teve 22 Pre- sidentes. A sua média de idade no cargo é de 56 anos. Como 0 Con- ‘A excepeao, que no desvrtua a repr, & Ramsay MacDonald que, ausente da alianga no tempo de guerre cujo paido munca esteve no pode, nunca ocupou uma posiglo ministerial * Todos os cleus slo até Julho de 1978, 20 ‘TEORIA DAS RELAGOES INTERNACIONAIS gresso nao é uma via directa para a nomeagdo executiva, € irrelevante comparar o servigo no Congresso com parlamentar. No entanto, € seguro ¢ significativo dizer-se que a presidéncia se baseia numa vasta experiéncia, ocasionalmente — como com Grant e Eisenhower — no necessariamente politica. © modo de recrutamento britinico cria uma condigio que scrve como uma restrigdo enorme ao poder executivo. O primeiro-ministro, na medida em que tem muitos poderes, é provavel que tenha uma certa idade e experiéncia, uma sabedoria, se preferirmos, que o leva a exercer o poder com uma forga e vigor improvaveis. Se € verdade que a Inglaterra sempre se safa, aqui esta parte da explicagao, uma parte maior do que o muitas vezes citado cardcter nacional para o qual © compromisso ideolégico ¢ a politica programatica sio supostamente estranhos. ‘As limitagdes que acabam por recair nos primeitos-ministros no mesmo proceso pelo qual sao seleccionados s4o to importantes como subtis, esquivas e, geralmente, ignoradas. Estas qualidades também caracterizam as limitagdes que derivam da relagdo do primeiro-minis- tro com o seu partido € o Parlamento, onde a sua forga, muitas vezes, se julga ser enorme. A solugdo nos dois paises pode ser vista assim: © presidente pode liderar mas tem dificuldades em conseguir que 0 seu partido o siga; o primeiro-ministro tem os seguidores mas na condigio de no se afastar des linhas do seu partido, 0 que toma dificil a lideranga. A condigtio necesséria para um primeiro-ministro € lidar com 0 partido de forma a evitar 0 desafio dos muitos ou a rebelizio dos poucos, se esses poucos so importantes, em vez, de espalhar penalizagdes depois da rebelidio ter ocorrido. Muitas vezes, 0 primeiro-ministro preocupa-se menos com o facto de que alguns membros 0 possam desafiar do que com o facto do seu apoio real © efectivo diminuir nos anos entre as eleigdes gerais, como aconteceu com Churchill e Macmillan nos seus tiltimos mandatos, ¢ ainda mais obviamente com Eden ¢ Heath. E errado ver o partido parlamentar como um travao para 0 governo apenas quando o partido € dividido © 0 primeiro-ministro enfrenta uma facc4o indisciplinada, porque um partido nunca é monolitico. Um partido bem getido parecera ser quase passivamente obediente, mas as qualidades de organizagio sio dificeis de dominar. O primeiro-ministro efectivo ou lider do partido move-se de forma a evitar discordancias, e, se possivel, antecipando-se a elas. Concessdes so feitas; assuntes sto adiados e, as vezes, esquecidos ESTRUTURAS POLITICAS aa completamente. Se pensarmos nos dois partidos como exércitos disci plinados marchando obedientemente aos comandos dos seus lideres, no apenas ignoramos muita Histéria importante como nos esquece- mos do infinito cuidado e céleulo que é necessério para fazer os grupos agirem concertadamente, sejam eles exércitos, equipas de fute- bol, ou partidos politicos. O primeiro-ministro pode contar com o seu partido para o apoiar, mas apenas dentro dos limites que so estabe~ lecidos em parte pelo colectivo dos membros do partido. O primeiro- -mninistro pode apenas pedir 0 que o seu partido Ihe iré dar. Nao pode dizer: «Os sindicatos tém de ser disciplinados.» Nao pode dizer: «As relagdes entre os trabalhadores e as direcgdes das empresas tém de ser remodeladas.» Nao pode dizer: «A indiistria tem de ser racionali- zada.» Nao pode fazer tais afirmagGes, mesmo que acredite nelas. Ele 86 pode dar um comando arrojado se estiver certo que o seu partido © apoiaré sem a perda de uma grande facc3o. Mas quando um pri- meiro-ministro esti certo disso, qualquer comando dado deixa de ser arrojado, Pode-se ser um primeiro-ministro arrojado correndo o risco de ser um mau Ifder partidario. «Um partido tem de ser dirigido, & aquele que melhor o dirigir, seré provavelmente o seu melhor lider. A tarefa subordinada de legislar e de governar pode muito bem cair nas mios de praticantes menos astutos*'.» Tais eram as reflexdes é Anthony Trollope sobre a carreira de Sir Timothy Beeswax, um Iider partidario de capacidades quase magicas (1880, m, p. 169; cf. 1, p. 216). Os papéis de lider do pais e de lider de um partido facilmente entram em conflito. Na auséncia de controlos ¢ balancas formais do tipo americano, o partido pode agit. Porque o partido no poder actua mediante a palavra do seu lider, 0 lider tem de ser cauteloso com as palavras que escolhe proferir. problema da lideranga junto com o factor da aprendizagem con- segue descrever a textura da politica briténica. O primeiro-ministro deve preservar a unidade do seu partido, porque nao Ihe & posstvel manter a sua lideranga construindo uma série de maiorias cuja com- posi¢&o varia de assunto para assunto. Os primeiros-ministros devem “Fim alguns aspectos um séeulo traz poueas mudangas. Apesar dos muitos comentirios severos feitos sobre Callaghan por Crossman, Wilson, e outros, Crossman pensava que ele era ‘co politico mais realizado no Partido Trabalhistan; aparentemente por causa desta distngEo, Callaghan contou com a gjuda de Wilson em sucedé-to como primeiro-ministro (1977, 1, pp. 627-628 et passim). m ‘TEORIA DAS RELAGOES INTERN: NALS ser e devem sofrer para se manterem aceitiveis para os seus partidos parlamentares. Pelo sistema politico dentro do qual opera, o primeiro- -ministro € impelido a procurar 0 apoio do conjunto do seu partido, & custa de uma reducao considerdvel da sua liberdade de acco. Ele & impelido a evoluir cautelosamente, para deixar as situagdes desen- volverem-se até a necessidade de decisio enfraquecer a inclinagao para lutar sobre qual a deciso a tomar, As caracteristicas de lideranga so construidas dentro do sistema. O tipico primeiro-ministro é um lider nacional fraco mas um excelente dirigente partidério — caracte- risticas que deve ter de forma a ganhar o cargo e reté-lo. Em contraste, consideremos os presidentes, Porque a sua ocupagao do cargo nao depende de assegurar o apoio maioritério no Congresso, porque podem ver derrotadas as politicas mas continuar no cargo, & porque a obstrugiio & uma parte comum e aceitavel no sistema, s4o encorajados a pedir 0 que no momento rode muito bem nao thes ser concedido. Espera-se que os presidentes eduquem e informem, expli- quem que a legislagao que 0 Congreso se recusa a passar & exacta- mente 0 que o interesse do pais precisa; podem, de facto, pedir mais, do que aquilo que querem, na esperange que a meta vantagem que, muitas vezes, aleangam iré corresponder minimamente a0 objectivo que privadamente definiram. O fosso en're promessa ¢ desempenho, entre pedido presidencial e assentimento do Congresso ¢ assim, muitas vezes, ilusério. Os primeiros-ministros conseguem tudo 0 que pede, €, no entanto, a legislagao social e econsmica principal na Gra-Bre- tanha leva muito tempo a maturar. Os presidentes pedem o que nao conseguem, e, no entanto, o andamento da reforma no ¢ mais lento, a flexibilidade e a resposta do governo americano néo so menores, do que na Gra-Bretanha AS aparéncias so muitas vezes enganosas, Pensa-se que os primel- r0s-ministros sto lideres fortes porque, em publico, s40 ineticazmente contrariados. No entanto, a fusio dos poderes tenta 0 orimetro-mints- ‘tro a por a sua preocupacdo pela unidade do partido acima da sua preocupagio pelo interesse piblico ¢ culpar o partido aes olhos do eleitor faz com que o goveno seja insensivel as necessidades da nagio. «Um homem piblico é responsiveb», como uma personagem de um dos romances de Disraeli uma vez disse, «e um homem responsavel 6 um escravo» (1880, p. 156). Ser claramente responsavel € ser alta mente visivel. Na América, 2 acgdo do Congresso deprecia, de certa forma, a atengo que o presidente recebe; na Gra-Bretanha, 0 piblico ESTRUTURAS POLITICAS. ns fixa o seu olhar com uma intensidade total no primeiro-ministro. Jus- tamente ou no, ele é louvado ou culpado pela boa ou ma saiide da politica. A responsabilidade & concentrada em vez de difusa. O lider que é responsdvel tem de assumir 0 seu poder; o Snus para as politicas mal sucedidas recai inteiramente nele. Os americanos, acostumados a ser governados por presidentes for- tes, naturalmente pensam apenas em termos de limites que si institu- cionalmente impostos e esquecem-se dos constrangimentos estruturais do governo britinico. De facto, nos dois paises, o termo «lideranga» tem significados politicos diferentes: nos Estados Unidos, significa que homens fortes ocupam a presidéncia; na Gra-Bretanha, que a vontade do primeiro-ministro se torna lei. Dizer que a vontade do lider torna-se lei nao deve ser tomado como significando que o sistema € de lideranca forte no sentido americano; em vez disso, tudo depende da identidade do lider e das forgas que moldam as suas decisdes. sistema britinico faz por assegurar que o lider seja moderado ¢ se comporte dentro de certos limites. Isto no se vé s6 ao observarmos 08 processos politicos. Temos primeiro de relacionar a estrutura poli- tica ao proceso, considerar as formas como os cargos politicos ¢ as instituigdes sdo justapostos € organizados. O poder concentra-se nas mios do primeiro-ministro mas, no entanto, & muito controlado, se bem que informalmente, contra 0 set uso impetuoso: o sistema de aprendizagem pelo qual os parlamentares sobem na carreira; as restri- gies subtis que o partido exerce sobre o primeiro-ministro; 0 hibito, encorajado institucionalmente, de caminhar devagar e de adiar as mudangas politicas até a sua necessidade ser largamente aceite. ‘A robustez dos padrdes ao longo dos anos é impressionante. Pen- sem nos primeiros-ministros que a Gra-Bretanha conheceu desde a viragem do século, Foram: Balfour, Campbell-Bannerman, Asquith, Lloyd George, Bonar Law, Baldwin, MacDonald, Chamberlain, Churchill, Attlee, Eden, Macmillan, Home, Wilson, Heath, e Callaghan. Dois nao se enquadraram no modelo— Lloyd George e Winston Churchill. Ambos estiveram muito tempo na Camara dos Comuns, Ambos subiram degrau a degrau a escada do poder. Fizeram a sua aprendizagem, mas fazé-lo no os suavizou. Em tempos normais cada um deles parecia, no minimo, de pouca confianga, e talvez claramente petigoso, us frucgdes dos seus partidos suficiememente grandes para Ihes negarem o mais alto cargo. Um grande nimero de membros secundarios do Parlamento pensavam que eles eram incapazes de 4 ‘TEORIA DAS RELACOES INTERNACIONAIS equilibrar os interesses © as convicgdes dos varios grupos dentro do partido, de calcular quem, cujos servigos e apoio merecia posigdes ministeriais mais altas ou mais baixas, e de mostrar um respeito ca- valheiresco pelas opinides dos outros mesmo quando as consideravam infundadas. Alguns comentérios sobre Winston Churchill mostrario 0 que quero dizer, Membro do Parlamento desde 1900 e possuidor de mais postos ministeriais do que qualquer outro politico na histéria britdnica, ele era extremamente qualificado para o cargo mais elevado. Mas foi um dissidente durante a maior parte da sua vida politica. Conservador no inicio da sua carreira politica, tornou-se liberal em 1906 € s6 voltou a ser conservador na década de 20, Na década de 30, ele tinha desavengas com 0 seu partido no que se referia a assuntos importantes da politica do estado, primeiro nas questdes rela- tivas a india e depois nas europeias. Nada menos do que uma crise suficientemente grande para transformar as desconfiangas do seu par- tido em virtudes nacionais poderia elevé-lo ao cargo mais alto. Em virtude da sua gravidade excepcional, os acontecimentos requeriam a sua nomeagdo para 0 cargo de primeiro-ministro. Acidentes acontecem, mas so precisas grandes crises para os produzir. Ir buscar alguém de fora das linhas normais de sucess4o nao é feito com facilidade. A estrutura politica produz uma similaridade no proceso e na actuagdo desde que a estrutura dure, Similaridade nao ¢ uniformidade. A estrutura opera como uma causa, mas nao é a tinica causa em jogo. Como podemos saber se os efeitos observados sio causados pela estrutura da politica nacional e no por um elenco varidvel de perso- nagens politicas, por variagdes de circunstincias nao politicas, e, por uma quantidade de outros factores? Como podemos separar causas estruturais de outras causas? Fazémo-lo alargando 0 método compa- rativo que eu acabo de usar. Vejam, por exemplo, 0 comportamento politico briténico onde a estrutura difere. Contrastem 0 comporta- mento do movimento sindical com o do Partido Trabalhista parlamen- tar. No movimento sindical, onde poder é controlado e equilibrado, a pritica da politica, especialmente quando o partido esté fora do poder, é notavelmente similar com a conduta politica que prevalece na ‘América. Perante 0 conflito e dissensio aberta, 0s Ifderes do partido sdo estimulados para liderar, explorar o terreno e tentar chegar a com- promissos, fixar uma linha politica, exortar ¢ persuadir, ameagar bajular, informar e educar, tudo com a esperanga de que as diferentes partes do partido —o Comité Executive Nacional, os sindicatos e 0 ESTRUTURAS POLITICAS Bs eleitorado, assim como os membros do Parlamento — possam ser leva- das a seguir o lider. Dextro de um pafs podemos identificar os efeitos da estrutura notanco diferencas de comportamento em partes diferentemente estruturadas do sistema politico, De um pais para 0 outro, podemos identificar os efeitos da estrutura notando as similaridades de compor- tamento em sistemas politicos de estrutura similar. Assim, a descrigao de Chihiro Hosoya do comportamento dos primeiros-ministros no sis- tema parlamentar japonés do pis-guerra, encaixa perfeitamente nos primei:os-ministros briténicos (1974, pp. 366-369). Apesar das dife- rengas culturais ¢ outras, estruturas similares produzem efeitos simi- lares. TL Defini estruturas politicas interas, primeiro pelo principio pelo qual sio organizadas ou ordenadas, segundo pela diferenciagio das unidades e a especificagdio das suas fungéies, e terceira pela distribui- gio das capacidades em varias unidades. Vejamos como estas trés condigées da definigao se aplicam as relagGes internacionsis. 1. Principios ordenadores As questées estruturais so questdes sobre a organizagao das partes de um sistema. As partes dos sistemas politicos internos tém relagdes de superioridade © subordinagio. Alguns devem comandar; outros devem obedecer. Os sistemas intemos sio centralizados ¢ hierarqui- cos. As partes dos sistemas politico-internacionais tém relagdes de cooperagio. Formalmente, cada um é igual aos outros. Nenhum deve comandar; nenhum deve obedecer. Os sistemas intemacionais sfio descentralizados andrquicos. Os principios ordenadores das duas estruturas sto claramente diferentes, de facto, so 0 contrario uns dos outros. As estruturas politicas intemas tém instituigdes governamen- tais ¢ os cargos como as suas contrapartidas concretas. A politica internacional, em contraste, tem sido chamada «politica na auséncia de governo» (Fox, 1959, p. 35). As organizagées intemacionais real- 26 ‘TEORIA DAS RELACOES INTERNACIONAIS ‘mente existem, e em nimero crescente. No entanto, agentes suprana- cionais capazes de agir efectivamente, ou adquirem alguns dos atribu- tos e das capacidades dos estados, como fez 0 pontificado medieval na era de Inocéncio III, ou em pouco tempo revelam a sua incapacidade de agir de forma significativa excepto com 0 apoio, ou, pelo menos, com a aquiescéncia, dos principais estados envolvidos nesses assun- tos. Quaisquer que sejam os clementos de autoridade que possam emergir internacionalmente, dificilmente poderio ser separados da verdadeira capacidade que propicia o aparecimento desses elementos. A autoridade rapidamente se reduz a uma expresso de capacidade. ‘Na auséncia de agentes com autoridade sistémica global, relagdes formais de superioridade e subordinagio nfo se desenvolvem. A primeira nogao de uma definicao estrutural afirma o principio pelo qual o sistema ¢ ordenado. A estrutura é um conceito organizacio- nal. No entanto, a caracteristica proeminente das relagdes internacio- nais parece ser a falta de ordem e de organizagao. Como podemos pensar nas relagdes intemacionais como sendo alguma espécie de ordem? A anarquia das relagdes internacionais ¢ muitas vezes, refe- rida, Se a estrutura ¢ um conceito organizacional, os termos «estrutu- ra» e «anarquia» parecem estar em contradigdo. Se a politica intena~ cional ¢ «politica na auséncia de governo», estamos na presenga de qué? Ao procuranmos a estrutura internacional, somos postos frente a frente com o invisivel, uma posigo pouco confortével para se estar. problema é este: como imaginar uma ordem sem um ordenador © efeitos organizacionais onde a organizagao formal esta em falta. Por que isto so questies dificeis, devo respondé-las através da analogia com a teoria microeconémica. O raciocnio por analogia ajuda quando podemos mover-nos de um dominio onde a teoria é bem desenvolvida para outro onde nao é. O raciocinio por analogia é permissivo quando dominios diferentes so estruturalmente similares A teoria econémica classica, desenvolvida por Adam Smith e os seus seguidores, € microteoria. Os cientistas politicos tendem a pensar que a microteoria € uma teoria sobre assuntos de pequena escala, um uso que nio esté de acordo com o seu significado estabelecido termo «micro» em teoria econdmica indica a forma como a teoria € construfda em vez da natureza das matérias a que se reporta. A teo- ria microeconémica descreve como uma ordem ¢ espontaneamente formada a partir de actos egoistas € interaccdes de unidades indivi- duais — neste caso, pessoas e firmas. A teoria chega entio aos dois ESTRUTURAS POLITICAS ar conceitos certrais das unidades econémicas ¢ do mercado. Unidades econémicas ¢ mercados econémicas so conceitos, nao realidades desoritas ou entidades concretas. Isto tem de ser enfatizado, uma vez gue desde 0 principio do século xvu até ao presente, desde 0 socié- logo Auguste Comte ao psicélogo George Katona, a teoria econémica tem sido criticada porque as suas assungSes néo corespondem 4 Fealidade (Martineau, 1853, u, pp. 51-53; Katona, 1953). De forma inrealista, 08 tedricos econémicos imaginam uma economia que opera isolada da sociedade e da politica. De forma irrealista, os economistas assumem que 0 mundo econdémico € todo do mundo. De forma inrealista, 05 economistas pensam a unidade actuante, 0 famoso «ho- ‘mem econémico», como um simples maximizador dos lucros. Sepa- ram um aspecto do homem ¢ deixam de lado outras dimensdes formi- dveis da vida humana, Como qualquer economista moderadamente sensivel sabe, 0 chomem econémico» nao existe. Qualquer pessoa que pergunte aos homens de negécios como € que eles tomam as suas devisdes descobriré que a assuncdo que os homens so maximizadores econdmicos distorce grosseiramente os seus caracteres. A assuncao que os homens se comportam como homens econémicos, que é co- nhecida por ser falsa como uma afirmagdo descritiva, acaba por ser ‘itil na constrago da teoria Os mereados sio 0 segundo maior conceito inventado pelos tedri- cos da microeconomia. Duas questées gerais devem ser feitas sobre os mercados: como sio formados? Como funcionam? A resposta a pri- meira questo ¢ esta: 0 mercado de uma economia descentralizada é originariamente individualista, gerado espontaneamente e involuntario. O mercado nasce das actividades das unidades independentes — pe soas ¢ firmas — cujos objectivos e esforcos esto direccionados, niio para a criagio de uma ordem, mas antes para o preenchimento dos seus proprios interesses interiormente definidos por quaisquer meios que possam reunit. A unidade individual age por si mesma. Da cola- boracio de unidades idénticas emerge uma estrutura que afecta e constrange todas. Uma vez formado, um mercado toma-se uma forca em si mesmo, uma forca que as unidades constitutivas actuando sozi- thas ou em pequeno nimero nfo podem controlar. Em vez disso, num maior ou menor grau segundo a vatia¢ao das condicées de mercado, 6s criadores tamam-se as criaturas do mercado que a sua actividade fez nascer. O maior feito de Adam Smith foi mostrar como acgdes egofstas, levadas pela avareza, podem produzir resultados sociais bons ne TEORIA DAS RELACOES INTERNACIONAIS se, pelo menos, as condigées politicas ¢ econémicas permitirem a livre-concorréncia. Se uma economia de laissez-faire & harmoniosa, é- -0 porque as intengdes dos actores ndo correspondem as resultantes ‘que as suas acces produzem. O que intervém entre os actores e 05 ‘objectos da sua acco de forma a frustrar os seus propésitos? Para explicar os resultados inesperadamente favoraveis dos actos egoistas, ‘© conceito de um mercado é trazido para a ribalta, Cada unidade procura 0 seu proprio bem; o resultado de varias unidades a fazé-lo ‘simultaneamente transcende os motivos e os objectivos das unidades independentes. Cada uma preferiria trabalhar menos e cobrar mais pelo seu produto. No conjunto, todas tém de trabalhar muito ¢ cobrar menos pelos seus produtos. Cada firma procura aumentar 0 seu lucro; © resultado de muitas firmas a fazerem-no baixa a taxa de lucro. Cada homem procura o seu préprio objectivo, e, ao fazé-lo, produz um resultado que no fazia parte das suas intengdes. Longe da ambigao egofsta dos seus membros, 0 bem maior da sociedade ¢ produzido. © mercado é uma causa interposta entre os actores econdmicos 08 resultados que produzem, Isso condiciona os seus célculos, os seus comportamentos € as suas interacgdes. Nao é um agente no sentido de A set 0 agente que produz o resultado X. De preferéncia é uma causa estrutural. Um mercado constrange as unidades que 0 compdem de tomarem certas atitudes e dispée-nas a tomarem outras atitudes. © mercado, criado por unidades econémicas que interagem autono- mamente, selecciona comportamentos de acordo com as suas conse- quéncias (cf. capitulo 4, parte m). O mercado recompensa alguns com altos lucros € leva outros faléncia. Uma vez que um mercado nao é uma instituigo ou um agente em nenhum sentido concreto ou palpével, tais declaragdes s6 se tornam impressionantes se puderem ser fiavelmente inferidas de uma teoria como parte de um conjunto de expectativas mais elaboradas. E podem ser. A teoria microeconémica explica como uma economia opera € por que motivo certos efeitos devem ser esperados. Isto gera numerosas declaragdes «se... entio...» que podem ser confirmadas com maior ou menor facilidade. Consi- derem, por exemplo, as seguintes proposigdes simples mas impor- tantes. Se a procura de uma mercadoria sobe, entio o prego também subir. Se o prego sobe, entio os lucros também subirdo, Se os Iucros sobem, entio 0 capital serd atraido € a producdo iré aumentar. Se a produgdo aumenta, entio o prego ir descer ao nivel de devolver lucres aos produtores da mercadoria a taxa prevalecente. Esta sequén- ESTRUTURAS POLITICAS Le cia de declaragdes podia ser alargada e refinada, mas fazé-lo nao serviria 0 meu propésito. Quero assinalar que apesar das expectativas referidas serem agora um lugar-comum, nao poderiam ter sido alcangadas por economistas a trabalhar numa era pré-teorética. Todas as afirmagdes sto feitas, obrigatoriamente, a um nivel apropriado de generalidade. Requerem uma estipulagdo tipo «tudo o resto perma- nece constante». Aplicam-se, como acontece com as afirmagoes inferi- das de qualquer teoria, apenas até ao ponto em que as condigdes con- templadas pela teoria séo obtidas. Sao idealizagdes, pelo que nunca sio completamente conseguidas na pritica. Muitas coisas — costumes sociais, intervengdes politicas — irdo de facto interferir com os resul- tados teoricamente previstos. Apesar de as interferéncias terem de ser tomadas em consideragdo, é, no entanto, extraordinariamente titil saber © que esperar no geral. Os sistemas politicos intemnacionais, como os mercados econémicos, so formados pela cooperacao de unidades egoistas. As estruturas internacionais so definidas em termos das unidades politicas prima- rias de uma dada era, sejam elas cidades-estado, impérios, ou nacdes. As estruturas emergem da coexisténcia dos estados. Nenhum estado tenciona participar na formagio de uma estrutura pela qual, ele © outros, serio constrangidos. Os sistemas politicos internacionais, como 08 mercados econémicos, so originariamente individualistas, gerados espontaneamente ¢ involuntarios. Em ambos os sistemas, as estruturas sto formadas pela cooperacio das suas unidades. Se essas unidades vivem, prosperam, ou morrem, depende dos seus proprios esforcos. Ambos os sistemas sdo formados € mantidos num principio de auto- -ajuda que se aplica as unidades. Dizer que os dois dominios so estruturalmente similares no é proclamar a sua identidade. Economi- camente, o principio de auto-ajuda aplica-se dentro de limites delinea- dos pelo governo. As economias de mercado esto organizadas de forma a canalizar as energias construtivamente. Podemos pensar em padrdes de comida e medicamentos, leis anti¢rust, regulamentos de seguranga e cambio, leis contra liquidar um competidor, e regras proi- bindo publicidade enganosa. As relagdes interacionais sio mais um dominio em que vale quase tudo. As relagées internacionais so estru- turalmente similares a uma economia de mercado desde que seja permitido ao prineipio de auto-ajuda operar no mercado. ‘Numa microteoria, quer seja de relagbes internacionais ou de eco- nomia, a motivago dos actores é assumida em vez de realisticamente 130 ‘TEORIA DAS RELACOES INTERNACIONAIS descrita, Eu assumo que os estados procuram assegurar a sua sobre- vivéncia. A assuncio & uma simplificagio radical feita em nome da construgo de uma teoria. A questio a colocar pela assungio, como sempre, no ¢ se é verdadeira, mas se é a mais sensivel e util que podemos fazer. Se é uma assuncao util, isso depende da teoria baseada na assungo poder ser delineada, uma teoria a partr da qual conse- quéncias importantes, de outra forma menos dbvias, podem ser infe- ridas. Se € uma assungao aceitavel pode ser directamente discutido. Além do motivo da sobrevivéncia, os objectivos dos estados podem ser muito variados; podem ir desde a ambicdo de conquistar o mundo ‘a0 mero desejo de serem deixados em paz. A sobrev-véncia é um pré- -requisito para alcangar qualquer objectivo que os estados possam ter, excluindo a promogao do seu proprio desaparecimento como entida- des politicas. O motivo da sobrevivéncia é visto coma a base de acco num mundo onde a seguranga dos estados nio é garantida e no como uma deseric&o realista do impulso que esta por detras de qualquer acto do estado. A premissa toma em consideragio o facto de nenhum estado actuar sempre exclusivamente para assegurar a sua sobrevivéncia. Toma em consideragio 0 facto de que alguns estados possam persistente- ‘mente procurar objectivos que valorizam mais do que a propria sobre- vivéneia; podem, por exemplo, preferir a fusdo com outros estados & sua propria sobrevivéncia, Toma em consideragao o facto de que na busca da sua seguranca nenhum estado acta com conhecimento & sabedoria perfeitos — se, de facto, pudéssemos saber 0 que esses ter- ‘mos significam exactamente. Alguns sistemas exigem condigdes muito altas para o seu funcionamento, O tréfico nao fluird se a maioria das pessoas, mas ndo todas, conduzir do lado certo da estrada, Se neces fio, fortes medidas tém de ser tomadas para assegurar que todas as pessoas o facam. Outros sistemas tm condicdes médias. Os elevado- es nos arranha-céus tém de ser planeados para que possam suportar a carga dos passageiros se a maioria das pessoas usar elevadores expressos para as viagens mais longas e elevadores normais para as, mais curtas. Mas se algumas pessoas escolherem os elevadores nor- mais para as viagens mais longas porque a velocidade dos expresso Ihes d4 tonturas. o sistema nao sucumbiré. Para manté-lo, a maioria das pessoas, mas nao todas, tem de azir como € esperado, Alguns sistemas, entre eles economias de mercado e relagdes internacionais, fazem ainda menores exigéncias. Os sistemas de tré‘ico so desenha- dos com base no conhecimento de que as condigdes do sistema serdo ESTRUTURAS POLITICAS Br impostas. Os elevadores sio planeados com capacidade extra para tomar em consideragao as excentricidades humanas. Os sistemas econémico e de relagdes internacionais competitivos funcionam de outra forma. Fora das interacgdes das suas partes eles desenvolvem estruturas que recompensam ou punem comportamentos que se con- formam mais ou menos com o que é requerido a quem queira ser bem sucedido no sistema. Relembrem a minha descrigao dos constrangi- mentos do sistema parlamentar britinico. Por que motivo um possivel primeiro-ministro nao deveré enveredar por um caminho arrojado, sé seu? Por que motivo nfo se comporta de forma marcadamente dife- ente da dos tépicos lideres politicos briténicos? Claro que todos po- dem fazé-lo, ¢ alguns que aspiram a tomar-se primeiros-ministros fazem-no. Mas raramente conseguem alcancar 0 topo. Excepto em crises graves, o sistema escolhe outros para 0 cargo mais alto. Pode- ‘mos comportar-nos como quisermos. No entanto, os padrdes de com- portamento emergem ¢ eles derivam dos constrangimentos estruturais, do sistema. s actores podem perceber a estrutura que os constrange e enten- der como ela serve para recompensar alguns tipos de comportamento © penalizar outros. Mas ainda assim, podem nfo o ver ou, vendo-o, podem por qualquer uma de muitas razdes nfo conseguir conformar as suas acedes com os padrdes que s%io mais frequentemente recom- pensados © menos frequentemente punidos, Dizer que «a estrutura selecciona» significa simplesmente que aqueles que se ajustam as préticas mais aceites ¢ mais bem sucedidas sobem mais frequente- mente ao topo € stio os que mais provavelmente ai se manterao. jogo que temos de ganhar é definido pela estrutura que determina © tivo de ioxador que mais provavelmente prosperard. ‘Onde a selecedo de acordo com o comportamento core, nenhum modelo forcado de comportamento ¢ requerido para que o sistema opere, apesar de qualquer um dos sistemas funcionar melhor se alguns modelos forem forcados ou aceites. Intemnacionalmente, o ambiente da acco dos estados, ow a estrutura do seu sistema, é definido pelo facto de que alguns estados preferem a sobrevivéncia a quaisquer outros fins que possam ser obtidos a curto prazo e agem com relativa eficiéncia para alcangar aquele fim. Os estados podem alterar 0 seu comportamento devido a estrutura ‘ue eles formam através da interaccdo com outros estados. Mas de que forma e poraué? Para responder a estas questées temos de completar a definicdo de estrutura intemacional. 132 ‘TEORIA DAS RELAGOES INTERNACIONAIS 2. O cardcter das unidades segundo termo na definigo de estrutura politica intema especi- fica as fungSes desempenhadas por unidades diferenciadas. A hierar- quia impde relagdes de superioridade e de subordinagao entre as par- tes de um sistema, e isso implica a sua diferenciagdo. Ao definir estrutura politica interna, 0 segundo termo, tal como o primeiro ¢ 0 terceiro, € necessério porque cada termo aponta para uma fonte pos- sivel de variagio estrutural. Os estados que so as unidades dos sis- ‘temas politico-internacionais nao s4o formalmente diferenciados pelas fungées que desempenham. A anarquia impée relagdes de coordena- ‘sao entre as unidades de um sistema, ¢ isso implica a sua semelhanga, O segundo termo nio é necessério para definir a estrutura politico- internacional, porque enquanto a anarquia durar, os estados permane- cem unidades semelhantes. As estruturas internacionais variam apenas através de uma mudanca do principio organizador ou, na falta disso, através de variagées nas capacidades das unidades. No entanto, devo discutir estas unidades semethantes aqui, porque ¢ através das suas interacgdes que as estruturas politico-intenacionais sio geradas. Surgem duas questdes: por que motivo os estados devem ser toma- dos como as unidades do sistema? Dada uma vasta variedade de es tados, como podemos chamar-lhes «unidades semelhantes»? Questio- nar a escolha dos estados como as unidades primérias dos sistemas politico-internacionais tornou-se popular nas décadas de 60 e 70 assim como o foi na viragem do século, Uma vez que entendamos 0 que esta logicamente envolvido, a questo é facilmente resolvida. Aqueles que questionam a visio centrada no estado fazem-no por duas raz6es prin- cipais. Primeiro, os estados nao so os tinicos actores de importancia na cena intemacional. Segundo, os estados esto a declinar em impor- tancia, € outros actores esto a ganhé-la, ou, pelo menos, 6 0 que se diz. Nenfuma das razdes € convincente, como mostra a discussio seguinte. (Os estados nélo stio ¢ nunca foram os tinicos actores internacionais. Mas, de qualquer forma, as estruturas so definidas no por todos os aotores que florescem dentro delas mas pelos mais importantes. Ao definirmos a estrutura de um sistema escolhemos um ou alguns dos muitos objectos que compdem o sistema e definimos a sua estrutura mediante esses objectos. Para os sistemas politico-intemacionais, como para qualquer sistema, temos de, primeiro, decidir que unidades tomar ESTRUTURAS POLITICAS 133 como sendo as partes do sistema. Aqui a analogia econémica ajudard novamente. A estrutura de um mercado é definida pelo nimero de firmas em competicdo. Se muitas firmas praticamente iguais compe- tem, uma condigao de concorréncia perfeita ¢ aproximada. Se algu- mas firmas dominam o mercado, a competi¢io diz-se ser oligopolista mesmo que muitas firmas mais pequenas possam também estar em campo. Mas é-nos dito que definigdes deste tipo nfo podem ser apli- cadas as relagdes intemnacionais devido a interpenetragao dos estados, devido a sua incapacidade de controlar o ambiente da sua acco, ¢ porque corporagdes multinacionais emergentes e outros actores que nao so estados sto dificeis de regulamentar © podem rivalizar em influéncia com alguns estados. A importancia dos actores nfo-esta- duais © a extenstio das actividades transnacionais so ébvias. A con- clusio de que 0 conceito, em relagSes internacionais, de estado cen- tralizado € tornado obsoleto por eles nio tem fundamento. E irénico que 08 economistas ¢ 0s cientistas politicos virados para a economia tenham pensado assim. A ironia est no facto de que todas as razdes dadas para inutilizar 0 conceito de estado centralizado podem ser reafirmadas mais fortemente e aplicadas as firmas. As firmas que competem com numerosas outras ndo tém esperanga de controlar 0 seu mercado, e as firmas oligopolistas lutam constantemente com um sucesso imperfeito para fazé-lo, As firmas interpenetram, fundem-se, € compram-se umas as outras a um ritmo agradavel. Além disso, as firmas so constantemente ameagadas ¢ regulamentadas por, digamos, actores que ndo so firmas. Alguns governos encorajam a concentra- do; outros trabalham para a prevenir. A estrutura de mercado de partes de uma economia pode mover-se de uma larga para uma estreita competigdo ou pode mover-se na direegdo oposta, mas qualquer que seja a extensao e a frequéncia da mudanea, as estruturas de mercado, geradas pela interaccao das firmas, sio definidas em fungao delas. Assim como os economistas definem os mercados em termos de firmas, também eu defino estruturas politico-internacionais em termos de estados. Se Charles P. Kindleberger estivesse certo ao dizer que «o estado-nagdo esta to acabado como uma unidade econémica» (1969, p. 207), entio a estrutura das relagdes intemacionais teria de ser redefinida. Isso seria necessirio porque as capacidades econémicas no podem ser separadas das outras capacidades dos estados. A dis- tingdo frequentemente delineada entre assuntos de alta e baixa politica € inadequada, Os estados usam meios econémicos para fins militares Be ‘TEORIA DAS RELACDES INTERNACIONAIS ¢ politicos; ¢ meios militares e politicos para aleangar interesses -econémicos. Uma versio corrigida da declarago de Kindleberger pode ser: ‘alguns estados podem quase desaparecer como entidades econsmicas, © outros no. Isso néo poe nenhum problema a teoria das relagdes ‘internacionais uma vez que, de qualquer foun, a politica intemavio- nal ¢ principalmente sobre desigualdades. Enquanto os estados mais importantes forem os actores mais importantes, a estrutura das rela- goes intemnacionais é definida em fungao deles. Claro que esta decla- ‘ago tedrica, confirma-se na pritica. Os estados definem o cenirio no qual eles, com actores que nao so estados, representam os seus dra- mas ou continuam com os seus assuntos mais mondtonos. Apesar de eles poderem escolher interferir pouco nos assuntos dos actores que niio so estados por longos periodos de tempo, os estados, no entanto, estabelecem as condigdes da relagdo, quer permitindo passivamente que regras informais se desenvolvam ou intervindo activamente para mudar as regras que j4 ndo os servem. Na hora do aperto, os estados ‘refazem as regras segundo as quais os outros actores operam. De facto, podemos ser surpreendidos pela capacidade de estados fracos impedirem a operagdo de corporagdes internacionais fortes e pela atene%o que as tiltimas prestam aos desejos dos primeiros. E importante considerar a natureza dos movimentos transnacionais. a extensio da sua penetraco, ¢ as condi¢des que tornam mais facil ou mais dificil aos estados controlé-los (ver capitulo 7). Mas o estudo adequado destes assuntos, como outros, requer encontrar ou desenvol- ‘ver uma abordagem adequada ao estudo das relagdes intemacionais. Dois pontos devem ser sublinhados sobre os mais recentes estudos transnacionais. Primeiro, os estudiosos dos fendmenos transnacionais nao desenvolveram nenhuma teoria distinta do seu assunto ou das relagdes internacionais em geral. Debrucaram-se sobre teorias jé exis- tentes, econémicas ou politicas. Segundo, que eles nao tenhan desen- volvido nenhuma teoria distinta faz sentido, porque uma teoria que ‘nega 0 papel central dos estados s6 serd necessaria se os actores ndo- ~estaduais se desenvolverem ao ponto de rivalizarem ou ultrapassarem as grandes poténcias, ¢ ndo apenas alguns dos estados menores. No mostram nenhum sinal de o vir a fazer. O estudo dos movimentos transnacionais lida com questdes factuais importantes, que as teorias podem ajudar-nos a enfrentar. Mas a ajuda no serd ganha se se pensar que os actores nio-estaduais questionam ESTRUTURAS POLITICAS Bs a visio do mundo centrada no estado. Dizer que os maiores estados ‘mantém a sua importincia no € o mesmo que dizer que outros actores de alguma importincia nfo existem. A frase «centrada no estado» sugere alguma coisa sobre a estrutura do sistema. Os movimentos transnacionais esto entre os processos que operam dentro dela. Que a visdo centrada no estado seja taulas vezes questionada s6 reflecte a dificuldade que os cientistas politicos tém em manter a distingdio entre estruturas e processos clara € constantemente em mente. Os estados so as unidades cujas interaccdes formam a estrutura dos sistemas das relagSes intermacionais. Iréo manter-se assim durante ‘muito tempo. A taxa de mortalidade dos estados ¢ notavelmente baixa Poucos estados morrem; ao contrario de muitas firmas. Quem € mais provivel que esteja cé daqui a 100 anos—os Estados Unidos, a Unido Soviética, a Franga, o Egipto, a Tailandia eo Uganda? Ou Ford, a IBM, a Shell, a Unilever € a Massey-Ferguson? Eu apostaria nos estados, talvez mesmo no Uganda. Mas 0 que significa referirmo- -nos a 150 estados tHo dispares no mundo de hoje, que certamente formam uma colecgao heterogénea, como sendo «unidades seme- Ihantes»? Muitos estudiosos das relacGes internacionais esto inco- modados com a descri¢do, Chamar aos estados «unidades semelhan- tes» é dizer que cada estado é parecido com todos os outros estados enquanto unidades politicas auténomas. E outra forma de dizer que os estados so soberanos, Mas a soberania é também um conceito confiso. Muitos acreditam, como disse 0 antropélogo M. G. Smith, que «num sistema de estados soberanos nenhum estado € soberanon* O erro esta em identificar soberania dos estados com a sua capacidade de fazerem aquilo que desejam. Dizer que os estados so soberanos no é dizer que eles podem fazer o que quiserem, que eles so livres da influéncia dos outros, que eles so capazes de conseguir aquilo que querem, Os estados soberanos podem ser muito pressionados por todos & sua volta, impelidos a agir de formas que prefeririam evitar, ¢ inc pazes de fazer quase tudo como gostariam. A soberania dos estados nunca implicou 0 seu isolamento dos efeitos das accdes de outros estados. Ser soberano e ser dependente nao sao condigdes contradité- rias. Os estados soberanos sé muito raramente levaram vidas livres © = Sind dovissabur wvelhor: Trlueido em Wcros ue ele proprio usow te eicszmente dizer que os estados slo soberanos & dizer que eles sio segmentos de uma sociedade plural 111966, p. 122; ef, 1956) 136 TEORIA DAS RELAGOES INTERNACIONAIS. faceis. O que ¢ entio a soberania? Dizer que um estado é soberano significa que ele decide por si mesmo como iré enfrentar os seus problemas intemos e extemos, incluindo se quer ou no procurar a assisténcia de outros © ao fazé-lo limitar a sua liberdade chegando a compromissos com eles. Os estados desenvolvem as suas préprias estratégias, cartografam os seus préprios caminhos, tomam as suas proprias decisdes sobre como responder a qualquer necessidade gue tenham ou quaisquer desejos que desenvolvam. Nao é mais contraditério dizer que os estados soberanos so sempre constrangidos ¢, muitas vezes, muito constrangidos do que dizer que individuos livres, muitas vezes, tomam decisdes sob a imensa presso dos acon- tecimentos. Cada estado, como qualquer outro estado, é uma entidade politica soberana. E, no entanto, as diferencas entre os estados, desde a Costa Rica a Unido Soviética, da Gambia aos Estados Unidos, so imensas. s estados so semelhantes e so também diferentes. Assim como as corporagdes, as magds, as universidades e as pessoas. Quando coloca- ‘mos dois ou mais objectos na mesma categoria, estamos a dizer que eles so parecidos ndo em todos os aspectos, mas em alguns. Nao ha, no mundo, dois objectos idénticos, no entanto podem, muitas vezes, ser comparados e combinados utilmente, «Nao podes somar magas € laranjas» € um velho ditado que parece ser especialmente popular centre vendedores que niio querem que se compare as suas mercadorias com outras. Mas todos sabemos que 0 truque de somarmos objectos dissemelhantes & expressar 0 resultado em termos da categoria onde se integram, Trés mags mais quatro laranjas € igual a sete pecas de fruta. A tinica questo interessante é se a categoria que classifica objectos de acordo com as suas qualidades comuns é til. Podemos adicionar uma grande quantidade de objectos muito variados e dizer que temos oito milhdes de coisas, mas raramente precisamos de 0 fazer. Os estados variam muito em tamanho, riqueza, poder e forma. E, no entanto, as variagdes nestes e noutros aspectos s4o variagdes entre unidades semethantes. De que forma é que sdo unidades seme- Ihantes? Como podem ser colocados numa sé categoria? Os estados sio parecidos nas tarefas que enfrentam, apesar de no 0 serem nas suas capacidades para as desempenharem. As diferengas sto de capa- cidade, no de fungéo. Os estados desempenham ou tentam desempe- har tarefas, a maioria das quais sio comuns a todos eles; os fins a que aspiram sZo similares. Cada estado duplica as actividades de outros ESTRUTURAS POLITICAS a7 estados pelo menos até um certo ponto. Cada estado tem as suas agéncias para fazerem, executarem, e interpretarem as leis € os regu- lamentos, para aumentarem os seus rendimentos ¢ para se defende- rem. Cada estado fornece dos seus préprios recursos e pelos seus préprios meios a maior parte da alimentagdo, das roupas, das casas, dos transportes, ¢ comodidades consumidas ¢ usadas pelos seus cida- dios. Todos os estados, excepto os mais exiguos, fazem muito mais negécio no seu territério do que no estrangeiro. Temos de ficar im- pressionados com a similaridade funcional dos estados e, agora mais, do que nunca, com as linhas similares que o seu desenvolvimento segue. Do estado rico ao estado pobre, do velho ao novo, quase todos eles dao mais atengdo aos assuntos da regulamentago econémica, da educagdo, satide, e alojamento, da cultura e das artes, ¢ assim quase infinitamente. © aumento das actividades dos estados é uma tendéncia internacional forte e marcadamente uniforme. As fungdes dos estados so similares e as distingdes entre eles surgem principalmente das suas capacidades variadas. A politica nacional consiste em unidades diferenciadas desempenhando fungdes especificas. As relagdes inter- nacionais consistem em unidades semelhantes duplicando as activi- dades umas das outras. 3. A distribuigéo das capacidades As partes de um sistema hierarquico esto relacionadas umas com as outras de formas que séo determinadas pela sua diferenciaco fun- cional e pela amplitude das suas capacidades. As unidades de um sistema anarquico so funcionalmente indiferenciadas, As unidades de tal ordem so entdo distinguidas primariamente pelas suas maiores ou menores capacidades para desempenhar tarefas similares. Isto declara formalmente 0 que os estudiosos das relagdes intemacionais ja hé muito notaram. As grandes poténcias de uma era foram sempre demarcadas das outras indistintamente por tebricos € estadistas. Os estudiosos dos sistemas politicos fazem distingdes tais como entre sistemas parlamentares e presidencialistas; os sistemas politicos dife- rem na forma. Os estudiosos das relagdes intemnacionais fazem distin- Ses entre sistemas politico-intemacionais apenas de acordo com 0 mimero das suas grandes poténcias. A estrutura de um sistema muda com as mudangas na distribuigdo de capacidades entre as vérias uni- 138 ‘TEORIA DAS RELAGOES INTERNACIONAIS dades do sistema, E mudangas na estrutura alteram as expectativas sobre a maneira como as unidades do sistema se iréo comportar ¢ sobre as resultantes que as suas interacgSes iro produzir. Internamente, as partes diferenciadas de um sistema podem desempenhar tarefas similares. Sabemos pela observacao do governo americano que o poder executivo algumas vezes legisla e 0 poder legislativo algumas vezes executa, Internacionalmente, unidades semelhantes algumas vezes desempenham tarefas diferentes. Por que motivo 0 fazem, ¢ como é que a probabilidade de o fazerem varia com as suas capacidades so assuntos tratados longamente nos tiltimos trés capitulos. Entretanto, devem ser considerados dois problemas. © primeiro problema é este: a capacidade diz-nos alguma coisa sobre as unidades. Definir a estrutura parcialmente em termos da dis- tribuig&o das capacidades parece violar a minha instrugao para manter os atributos das unidades fora das definigdes estruturais, Como eu sssinalei anteriormente, estrutura é um conceito muito, mas néo total- mente, abstracto. O maximo de abstracco permite um minimo de contetido, e esse minimo & 0 que é preciso para permitit-nos dizer como as unidades se posicionam umas em relago 4s outras. Os esta- Gos so colocados diferentemente segundo o seu poder. E, no entanto, podemos perguntar-nos por que motivo apenas a capacidade é in- cluida na terceira parte da definig&o, e nfo caracteristicas como ideo- logia, forma de governo, paz, belicosidade, ou qualquer outra. A res- posta é esta: 0 poder é estimado pela comparago das capacidades de ‘um certo mimero de unidades. Embora as capacidades sejam atributos cas unidades, a distribuigdo das capacidades entre as varias unidades mio 0 6. A distribuigto das capacidades nfo é um atributo de uma uni- dade circunscrita, mas um conceito de sistema alargado. De novo, 0 paralelo com a teoria de mercado é exacto, Firmas ¢ estados sio uni- dades semethantes. Através de todas as suas variagSes de forma, as firmas partilham certas qualidades: so unidades egoistas que, dentro de limites impostos pelo governo, decidem por si proprias como ‘enfrentar 0 seu ambiente © como trabalhar para alcancar os seus fins. A variagio de estrutura é introduzida, ndo através das diferengas no ‘eardcter © fungio das unidades, mas apenas através das distingdes ‘entre elas de acordo com as suas capacidades. segundo problema é este: apesar das relagées definidas em ter- ‘mos de interacgdes terem de ser excluidas das definigdes estruturais, ‘as relagdes definidas em termos de agrupamentos de estados parecem ESTRUTURAS POLITICAS. 139 dizer-nos alguma coisa sobre a forma como os estados so colocados no sistema. Por que motivo no se especifica como os estados esto uns em relago aos outros considerando as aliangas que formam? Fazé-lo nao seria comparavel a definir as estruturas politicas nacionais em parte em termos da maneira como os presidentes e os primeiros- -ministros esto relacionados com outros agentes politicos? Nao. Tanto interna como intemacionalmente, as definigdes estruturais lidam com a relacdo de agentes e agéncias em termos da organizacao de espagos e nfo em termos dos acordos e conflitos que podem ocorrer dentro delas ou 0s agrupamentos que podem formar de vez em quando. As partes de um governo podem estar juntas ou separar-se, podem opor- se umas s outras ou cooperar em maior ou menor grau. Estas so as relagdes que se formam e dissolvem dentro de um sistema em vez de serem alteragGes estruturais que marcam uma mudanga de um sistema para outro, Isto € tomado claro por um exemplo paralelo ao caso das aliangas. Distinguir sistemas de partidos politicos de acordo com o seu mimero comum. Um sistema multipartidério muda se, digamos, oito partidos se tornam dois, mas nao se dois agrupamentos dos oito se formam meramente para a ocasiao da disputa de uma eleicgo. Pela mesma légica, um sistema de relacdes internacionais no qual trés ou mais grandes poténcias se dividiram em duas aliancas permanece um sistema multipolar — estruturalmente distinto de um sistema bipolar, um sistema no qual nenhuma terceira poténcia & capaz de desafiar as duas principais. Ao definir estrutura de mercado, a informagio sobre a qualidade particular das firmas no ¢ para aqui chamada, nem a informagio sobre as suas interacgdes, a ndo ser no ponto em que a fusio formal de firmas reduz. significativamente 0 seu mimero. Na definigo de estrutura de mercado, as firmas nao sdo identificadas a suas interacgdes nao so descritas. Tomar as qualidades das firmas a natureza das suas interacedes como partes da estrutura do mercado seria dizer que o facto de um sector de uma economia ser oligopolista ou no, depende da maneira como as firmas so organizadas intema- mente e da maneira como elas lidam umas com as outras, em vez de depender simplesmente da forma como muitas firmas importantes coexistem. A estrutura de mercado é definida contando as firmas; 2 estrutura das relagdes internacionais, contando os estados. Na conta- gem, as distingdes so feitas apenas de acordo com as capacidades. ‘Ao definir estruturas das relagdes internacionais pegamos nos es- tados, quaisquer que sejam as tradigdes, habitos, objectivos, desejos, 140 TEORIA DAS RELACOES INTERNACIONAIS ¢ formas de governo que possam ter. Nao perguntimos se os estados sio revolucionarios ou legitimos, autoritérios ou democriticos, ideo- logicos ou pragmaticos. Abstraimo-nos de todos os atributos dos es- tados excepto das suas capacidades. Nem ao pensarmos na estrutura perguntamos seja 0 que for sobre as relagdes dos estados — os seus sentimentos de amizade ¢ hostilidade, as suas trocas diplomiticas, as aliangas que formam, ¢ a extensio dos contactos ¢ trocas entre eles. Perguntamos que expectativas emergem meramente segundo 0 tipo de ordem que prevalece entre eles ¢ para a distribuicdo de capacidades dentro dessa ordem. Abstraimo-nos de quaisquer qualidades particula- res dos estados ¢ de todas as suas relagdes coneretas. O que emerge um quadro posicional, uma descrigio geral da ordem internacional definida em termos do posicionamento das unidades ¢ nfo em termos das suas qualidades. IV Jé defini os dois elementos essenciais de uma teoria sistémica das relagdes internacionais — a estrutura do sistema e as suas unidades em interacgo. Ao fazé-lo afastei-me das abordagens comuns. Como vimos, alguns eruditos que tentaram elaborar abordagens sistémicas das relagées internacionais conceberam um sistema como sendo o produto das suas partes em interac¢o, mas nao consideraram se qual- quer coisa ao nivel sistémico afecta essas partes. Outros tedricos sisté micos, como estudiosos das relages internacionais em geral, mencio- nam, &s vezes, que os efeitos do ambiente internacional devem ser tidos em consideracio; mas passam por cima da questo da forma como isso deve ser feito ¢ rapidamente voltam a sua atengo para 0 nivel das unidades em interacgdo. A maioria dos estudiosos, quer afirmem ou nao seguir uma abordagem sistémica, pensam as relagdes intemacionais da forma que a fig. 5.1 sugere. N, . , so estados que geram internamente os seus efeitos externox \Y,, , siio estados actuando extemamente ¢ interagindo uns com os outros. Nenhuma forca ou factor sistémico aparece na figura. Porque os efeitos sistémicos sio evidentes, as relagdes intemacio- nais devem ser vistas como na fig. 5.2. O cfrculo representa a estru- tura de um sistema politico-intemacional. Como as setas indicam, ESTRUTURAS POLITICAS mat —— 4 | —> & | N——> % Figura 5.1 tanto afecta as interacgies dos estados como os seus atributos". Apesar da estrutura como um conceito organizacional ser opaca, 0 seu signifi- cado pode ser explicado de forma simples. Enquanto os estados retém @ sua autonomia, cada um tem uma relagdo determindvel com os outros. Formam uma espécie de ordem. Podemos usar o termo worga- nizago» para cobrir esta condigio pré-institucional se pensarmos numa organizagio como um simples constrangimento, & maneira de W. Ross Ashby (1956, p. 131). Porque os estados se constrangem e limitam 1uns aos outros, as relagdes internacionais podem ser vistas em termos organizacionais rudimentares. Estrutura é 0 conceito que torna poss: vel dizer quais so 0s efeitos organizacionais esperados ¢ como as estruturas e as unidades interagem e se afectam umas as outras. _— Figura 5.2 “© Nada de essencial ¢ omitido da fig. 5.2, mas algumas complicagBes sio omitidas. Um uadro completo incuiria, por exempl, aliangas possivelmente formadas do Indo dizcito, 1a ‘TEORIA DAS RELAGOES INTERNACIONAIS Pensar a estrutura como a defini resolve o problema de separarmos mudangas ao nivel das unidades de mudangas 20 nivel do sistema. Se ‘estamos preocupados com os diferentes efeitos esperados de sistemas diferentes, temos de ser capazes de distinguir mudangas de sistemas de mudangas dentro deles, uma coisa que os supostos tedricos sistémi- cos descobriram set excessivamente dificil de fazer. Uma defini¢ao de ‘estrutura em trés partes permite-nos distinguir esses tipos de mudangas: Primeiro, as estruturas sto definidas de acordo com o principio pelo qual um sistema é ordenado. Os sistemas so transformados se um prineipio ordenador substituir outro. Passar de um dominio anérquico para um hierérquico é passar de am sistema para outro. * Segundo, as estruturas so definidas pela especificagdo das fungdes de unidades diferenciadas. Os sistemas hierdrquicos mudam se as fungdes forem diferentemente definidas e distribuidas. Para os sis- temas anarquicos, 0 critério da mudanga sistémica derivado da segunda parte da definig2o desaparece uma vez que o sistema & composto por unidades semethantes. ‘© Teiceiro, as estruturas sto definidas pela distribuigdo das capacida- des pelas varias unidades. Mudancas nesta distribuicdo so mudan- gas de sistema quer o sistema seja anarquico ou hierérquico. 6 Ordens anarquicas e balancas de poder Restam duas tarefas: primeiro, examinar as caracteristicas da anar- quia e as expectativas acerca dos resultados associados com os domi- nios andrquicos; segundo, examinar as formas como as expectativas variam a medida que a estrutura de um sistema andrquico muda através de mudangas na distribuicdo das capacidades entre nagdes. A segunda tarefa, levada a cabo nos capitulos 7, 8, € 9, requer que se comparem diferentes sistemas interacionais. A primeira, que vou agoza tratar, & melhor conseguida fazendo algumas comparagdes entre comporta- mento e resultados nos dominios anarquico e hierérquico. 1. Violéncia interna e externa Diz-se muitas vezes, que 0 estado entre estados conduz os seus assuntos envolto na sombra da violéncia. Porque alguns estados po- dem em qualquer altura usar a forga, todos os estados tém de estar “a TEORIA DAS RELACOES INTERNACIONAIS preparados para o fazet — ou entéo vivet 4 mercé dos seus vizinhos snilitarmente mais vigorosos. Entre estados, o estado da natureza é um estado de guerra. Isto é dito nfo no sentido de que a guerra ocorre ‘constantemente, mas no sentido de que, com cada estado a decidir por si mesmo usar ou ndo a forga, a guerra pode rebentar a qualquer altura. Quer seja na familia, na comunidade, ou no mundo em geral, © contacto sem, pelo menos, conflito ocasional & inconcebivel; e a esperanca de que na auséncia de um agente para gerir ou manipular as partes em conflito, 0 uso da forga sera sempre evitado, ndo pode ser encarado de forma realista. Entre homens como entre estados, a anarquia, ou a auséncia de governo, est4 associada & ocorréncia de violencia, se que a ameaca de violéncia € 0 uso recorrente da forca dis- tinguem os assuntos internacionais dos nacionais. Mas na historia do mundo, certamente que a maioria dos governantes teve de ter em mente que os seus sibditos podiam usar a forga para Thes resistir ou para os depor. Se a auséncia de governo esté associada & ameaga de violencia, entio também esté a sua existéncia. Uma lista aleatoria de tragédias nacionais ilustra muito bem este ponto. As guerras mais destrutivas dos 100 anos apés a derrote de Napoledo travaram-se nao entre estados mas dentro deles. As estimativas do mimero de mortos na rebelido de Taiping na China, que comecou em 1851 ¢ durou 13 anos, atingem os 20 milhdes. Na Guerra Civil Americana cerca de 600 mil pessoas perderam a vida. Na histéria mais recente, a colectivizagio forgada e as purgas de Estaline eliminaram cinco milhdes de russos, e Hitler exterminou seis milhdes de judeus. Em alguns pafses da América Latina, golpes de estado e rebelides tém sido caracteristicas normais da vida nacional, Entre 1948 ¢ 1957 por exemplo, 200 mil colombianos foram mortos em conflitos civis. Em meados dos anos 70, a maioria dos habitantes do Uganda de Idi Amin devem ter sentido as suas vidas tomarem-se terriveis, brutalizadas ¢ curtas, como no estado de natureza de Thomas Hobbes. Se tais casos constituem aber- rages, so desconfortavelmente comuns. Facilmente perdemos de vista © facto de que as lutas para alcangar ¢ manter 0 poder, para estabe- lecer a ordem e para conseguir uma forma de justiga dentro dos esta- dos podem ser mais sangrentas do que as guerras entre cles. Se a anarquia é identificada com 0 caos, a destrui¢do e a morte, entio a distingao entre anarquia e governo nao nos diz muito. Qual seré mais precdria: a vida de um estado entre estados, ou de um ORDENS ANARQUICAS E BALANGAS DE PODER 5 governo em relagdo aos seus sibditos? A resposta varia com o tempo € © lugar. Entre alguns estados em algumas alturas, a ocorréncia real ou esperada de violencia € baixa. Dentro de alguns estados em algu- mas alturas, a ocorréncia real ou esperada de violéncia é alta. O uso da forga, ou 0 medo constante do seu uso nao constituem base sufi- ciente para distinguir assuntos intemnacionais de internos. Se 0 uso possivel e real da forca marcam as ordens internacionais ¢ internas, entio nfo pode ser delineada nenhuma distingao duradoura entre os dois dominios em termos do uso ou no da forga. Nenhuma ordem humana é & prova de violéncia Para descobrirmos diferengas qualitativas entre os assuntos internos ¢ extemos temos de procurar um critério que nao seja a ocorréncia da violencia. A distingéo entre os dominios da politica nacional e inter- nacional nao se encontra no uso ou nfo uso da forga, mas nas suas diferentes estruturas. Mas se o perigo de ser violentamente atacado é maior, digamos, ao dar-se uma volta a noite pela baixa de Detroit do que ao fazer-se um piquenique na fronteira franco-alema, que di renga pritica faz a diferenga de estrutura? Nacional como internacio- nalmente, 0 contacto geta conflito e, as vezes, resulta em violencia. A diferenca entre politica nacional e internacional reside no no uso da forga, mas nos diferentes modos de organizag3o para fazer alguma coisa em relagio a esse uso. Um governo, que governe segundo algum padrao de legitimidade, arroga-se 0 direito de usar a fora — isto é, de aplicar uma variedade de sancdes para controlar 0 uso da forga pelos seus stibditos. Se alguns usam a forga privada, outros podem apelar a0 governo. Um governo no tem 0 monopélio do uso da forca, como é deveras evidente. No entanto, um governo efectivo tem um monopélio no uso legitimo da forea, ¢ legitimo aqui significa que os agentes piiblicos estiio organizados para evitar ¢ para conter 0 uso privado da forga. Os cidadios no precisam de se preparar para se defender. As agéncias piblicas fazem-no. Um sistema politico interno nao é um sistema de auto-ajuda. O sistema intemacional & 2. Interdependércia e integragiio O significado politico de interdependéncia varia dependendo se um dominio é organizado, com relagdes de autoridade especificas e esta- belecidas, ou se permanece formalmente desorganizado. Desde que Las ‘TEORIA DAS RELAGOES INTERNACIONAIS um dominio seja formalmente organizado, as suas unidades sao livres para se especializarem, para perseguirem os seus préprios interesses sem se preocuparem em desenvolver os meios de manutenedo da sua identidade e preservacdo da sua seguranga perante os outros. So livres para se especializarem porque no tém razdo para temer a cres- cente interdependéncia que vem com a especializaco. Se aqueles que se especializam mais, beneficiam mais, entio competir pela especia- lizagio prossegue. Os bens sio manufacturados, 0 grio & produzido, a lei ¢ a ordem séo mantidas, 0 comércio é realizado, e os servigos financeiros sio proporcionados por pessoas que se especializam mais minuciosamente. Em termos econémicos simples, 0 sapateiro depende do alfaiate para ter calgas 0 alfaiate depende do sapateiro para ter sapatos, € um estaria mal arranjado sem o servigo do outro. Em ter- mos politices simples, 0 Kansas depende de Washington para ter proteceo e regulamentagdo © Washington depende do Kansas para ter came € trigo Ao dizermos que em tais situagdes a interdependéncia & -apertada, ndo precisamos de afirmar que uma parte ndo aprenderia a viver sem a outta. Precisamos apenas de dizer que 0 custo de quebrar a relagio de interdependéncia seria alto. As pessoas € as instituiges dependem -muito umas das outras devido as diferentes tarefas que desempenham e aos diferentes bens que produzem e trocam. As partes de uma sociedade fundem-se pelas suas diferengas (cf. Durkheim, 1893, p. 212). ‘As diferencas entre as estruturas nacionais e internacionais reflee- ‘tem-se na forma como as unidades de cada sistema definem os seus fins e desenvolvem os meios para alcangé-los. Num ambiente andr- -quico, as unidades semelhantes cooperam. Em meios hierarquizados, unidades diferentes interagem. Num ambiente anérquico, as unidades sio funcionelmente similares e tendem a manter-se assim. As unida- des semelhentes trabalham para manter uma certa independéncia € podem até lutar pela autarcia, Num meio hierarquizado, as unidades sto diferenciadas, ¢ tendem a aumentar a extensio da sua especiali- zago. As unidades diferenciadas tornam-se estreitamente interdepen- dentes, mais estreitamente ainda A medida que a sua especializagio prossegue. Devido a diferenca de estrutura, a interdependéncia dentro © a interdependéncia entre as nagdes sd dois conceitos distintos. De forma a seguir 0 conselho dos Iégicos para manter um tinico signifi- cado para um dado termo no nosso discurso, usarei «integracdo» para descrever a condic&o dentro das nagdes e «interdependénciay para descrever a condigao entre clas. ORDENS ANARQUICAS E BALANGAS DE PODER Mr Apesar dos estados serem unidades funcionalmente semelhantes, cles diferem muito nas suas capacidades. Dessas diferencas qualquer coisa como uma divisdo do trabalho se desenvolve (ver capitulo 9). No entanto, a divisio do trabalho entre as nagdes é irrelevante em comparagio com a altamente articulada divisio do trabalho dentro delas. A integragio aproxima as partes de uma nagio. A interdepen- déncia entre as nagdes deixa-as vagamente ligadas. Apesar de se falar frequentemente da integrago das nacdes, isso raramente acontece. As nagdes podiam enriquecer-se mutuamente ao dividirem mais no s6 0 trabalho envolvido na producdo de bens mas também algumas das outras tarefas que desempenham, tais como a conducdo politica ¢ a defesa militar. Por que motivo a sua integracao ndo acontece? A estru- tura das relages internacionais limita a cooperacdo dos estados em duas formas ‘Num sistema de auto-ajuda cada uma das unidades gasta uma por- do do seu esforco, no a perseguir 0 seu préprio bem, mas a arranjar os meios de se proteger dos outros. A especializagio num sistema de divisio do trabalho funciona com vantagem para todos, apesar de nao ser equitativa. A desigualdade na distribuicao esperada do produto acrescido opera fortemente contra a extensio da diviso do trabalho a nivel intemacional. Quando confrontados com a possibilidade de cooperarem para ganho miituo, os estados que se sentem inseguros devem querer saber como o ganho sera dividido, So impelidos a. perguntar nao «remos ambos ganhar?», mas «Quem ganhara mais?» Se um ganho esperado € para ser dividido, digamos, na razao de dois para um, um estado pode usar o seu ganho desproporcional para implementar uma politica virada para prejudicar ou destruir 0 outro, Mesmo a perspectiva de grandes ganhos absolutos para ambas as partes no invalida a sua cooperagao desde que cada um tema a forma como © outro ird usar as suas crescentes capacidades. Notem que os impe- dimentos & colaboragiio podem nao residir no cardcter ¢ na intencAo imediata de qualquer uma das partes. Em vez disso, a condi¢ao de inseguranga —no minimo, a incerteza de um em selagdo s futuras intengdes e acgSes do outro — trabatha contra a sua cooperacao. Em qualquer sistema de auto-ajuda, as unidades preocupam-se com a sua sobrevivéncia, ¢ a preocupacao condiciona 0 seu comporta- ‘mento. Os mercados oligopolistas limitam a cooperaciio de firmas, da mesma forma que as estruturas politico-internacionais limitam a coo- peragio dos estados. Dentro das regtas impostas pelos governos, 0 a ‘TEORIA DAS RELAGOES INTERNACIONAIS facto de as firmas sobreviverem e prosperarem depende dos seus pré- prios esforgos. As firmas no precisam de se proteger fisicamente con- tra os assaltos das outras firmas. Sao livres para se concentrarem nos seus interesses econémicos. No entanto, como entidades econdmicas, vivem num mundo de auto-ajuda. Todos querem aumentar os lucros. Se correm riscos indevidos no esforco para o fazerem, devem esperar Por softer as consequéncias. Como diz William Fellner, € «impossivel maximizar ganhos conjuntos sem o tratamento conivente de todas as variveis relevantes». E isto s6 pode ser conseguido pelo «completo desarmamento das firmas umas em relagdo as outras», Mas as firmas io se podem simplesmente desarmar mesmo para aumentar os seus lucros. Esta afirmacdo qualifica, em vez de contradizer, a premissa de que as firmas tm como objective principal lucros méximos. Para maximizar os lucros amanha assim como hoje, as firmas tém primeito de sobreviver. Jogar todos os recursos implica, mais uma vez como Feliner diz, amenosprezar as futuras possibilidades de todas as firmas Participantes» (1949, p. 35). Mas 0 futuro nfo pode ser menospre- zado. A forca relativa das firmas muda ao longo dos tenpos de formas que ndo podem ser previstas. As firmas so impelidas a chegar a um compromisso entre maximizar os seus lucros e minim:zar o perigo da sua propria morte. Cada uma de duas firmas pode estar melhor se uma delas aceitar uma compensago da outra para se retirar de alguma parte do mercado. Mas uma firma que aceite mercados menores em troca de maiores Iucros tera graves inconvenientes se, por exemplo, rehentar uma guerra de precos como parte de uma Juta renovada pelos mercados, Se possivel, devemos resistir a aceitar mercados mais pequenos em troca de maiores luctos (pp. 132, 217-218). «Nao é, insiste Fellner, «aconsethivel desarmarmos em relacio 20s nossos rivais» (p. 199). Por que no? Porque «existe sempre a potencialidade de um conflito renovado» (p. 177). O raciocinio de Felner € muito parecido com 0 raciocinio que levou Lenine a acreditar que os paises capitalistas munca seriam capazes de cooperar para 0 seu enriqueci- mento mituo numa vasta iniciativa imperialista. Como as nagdes, as firmas oligopolistas devem estar mais preocupadas com a forga rela- tiva do que com a vantagem absoluta. Um estado preocupa-se sempre com uma divisio de ganhos possi veis que pode favorecer outros mais do que a si mesmo. Essa é a primeira forma pela qual a estrutura das relagdes interracionais limita cooperagio dos estados. Um estado também se preocupa para que ‘ORDENS ANARQUICAS E BALANGAS DE PODER 19 no se tome dependente de outros através de esforgos cooperatives e trocas de bens e servicos. Essa éa segunda forma pela qual a estrutura das relagdes intemacionais limita a cooperagao dos estados. Quanto ‘mais um estado se especializa, mais confia nos outros para Ihe forne- cerem os materiais ¢ os bens que nfo esta a produzir. Quanto maior a quantidade de importagdes e exportagdes de um estado, mais ele depende dos outros. O bem estar mundial seria maior se uma cada vez ‘mais elaborada divisio do trabalho fosse desenvolvida, mas os estados iriam assim colocar-se em situacdes de cada vez mais estreita interde- pendéncia. Alguns estados poderiam nao resistir a isso. Para estados pequenos ¢ mal apetrechados os custos de fazé-lo sio demasiado al- tos. Mas os estados que podem resistir a tornar-se cada vez mais enredados com outros, normalmente fazem-no de uma ou de duas formas. Os estados que so muito dependentes, ou estreitamente inter- dependentes, preocupam-se em assegurar aquilo de que dependem. ‘Uma maior interdependéncia dos estados significa que os estados em questio, experimentam, ou esto sujeitos, 4 vulnerabilidade esperada associada 4 maior interdependéncia. Como outras organizagies, os estados procuram controlar aquilo de que dependem ou diminuir a amplitude da sua dependéncia. Esta ideia simples explica um bom bocado do comportamento dos estados: os seus impulsos imperialistas para alargar o escopo do seu controlo ¢ as suas lutas pela autonomia para uma maior auto-suficiéncia ‘As estruturas encorajam certos comportamentos € penalizam os que no respondem ao encorajamento, Nacionalmente, muitos lamen- tam 0 desenvolvimento extremo da divisio do trabalho, um desenvol- -vimento que resulta da atribuigo de tarefas cada vez mais especificas aos individuos. E, no entanto, a especializag3o prossegue, e a sua extensio é uma medida do desenvolvimento das sociedades. Num ambiente formalmente organizado estimula-se 4 capacidade de cada unidade em especializar-se de forma a aumentar o seu valor em rela- do as outras num sistema de divisio de trabalho. O imperativo in- temo 6 «especializar»! Internacionalmente, muitos lamentam os recur- sos que 0s estados gastam, improdutivamente, para a sua propria defesa € as oportunidades que perdem de realgar o bem-estar dos seus povos através da cooperagiio com os outros estados. E, no entanto, as atitu- des dos estados mudam pouco. Num ambiente desorganizado o in: tivo de cada unidade ¢ pér-se numa posi¢ao de ser capaz de tomar conta de si mesma, uma vez que no pode contar com mais ninguém 150 TEORIA DAS RELAGOES INTERNACIONAIS para fazé-lo. O imperativo internacional é «toma conta de ti mesmon! Alguns lideres de nagdes podem entender que o bem-estar de todas elas poderia aumentar através da sua participagio numa completa divisio do trabalho. Mas agir de acordo com a ideia seria agir de acordo com um imperativo intemo, um imperative que nao funciona internacionalmente. O que podemos querer fazer na auséncia de cons- trangimentos estruturais ¢ diferente daquilo que somos encorajados a fazer na sua presenga. Os estados ndo se colocam voluntariamente em situagdes de mais dependéncia. Num sistema de auto-ajuda, as consi- deragdes de seguranca subordinam os ganhos econémicos ao interesse politico. © que cada estado faz, por si mesmo é muito parecido com 0 que 0s outros fazem. Sao-Ihes negadas as vantagens que uma completa divisdo do trabalho, tanto politica como econdmica, iria fornecer, Além disso, as despesas com a defesa sdo improdutivas para todos e ine taveis para muitos. Em vez de mais bem-estar, a sua recompensa esta na manutenc%o da sua autonomia. Os estados competem, mas ndo para contribuirem com os seus esforgos individuais para a producdo conjunta de bens para o seu beneficio mituo, Aqui esta uma segunda grande diferenca entre o sistema politico-intermacional e o sistema econdmico, que é discutida na parte 1, seceo 4, do préximo capitulo, 3. Estruturas e estratégias Que as motivagdes ¢ as resultantes possam muito bem estar apar- tadas deveria ser agora ficil de ver. As estruturas fazem com que as acces tenham consequéncias que nfo se tencionava que tivessem. Claro que a maioria dos actores se aperceber4 disso, e, pelo menos, alguns deles serio capazes de pereeber porqué. Podem desenvolver um senso bastante bom de como as estruturas produzem os seus efei- tos. Nao sero entdo capazes de alcancar os seus objectivos originais a0 ajustarem apropriadamente as suas estratégias? Infelizmente, mui- tas vezes nao podem. Para mostrar por que motivo isto é assim darei apenas alguns exemplos; uma vez que se entenda a questio, o leitor pensaré facilmente noutros. Se a escassez de uma mercadoria é esperada, colectivamente, todos estaro melhor se comprarem menos dessa mercadoria de forma a moderar 0s aumentos de pregos ¢ a distribuir a pouca mercadoria ORDENS ANARQUICAS F BALANCAS DE PODER 11 existente equitativamente, Mas porque alguns estardo melhor se arme- zenarem rapidamente mantimentos extra, todos tém um forte incentivo para o fazer. Se esperarmos que os outros corram ao banco, 0 nosso caminho prudente é correr mais depressa de que eles, mesmo sabendo que se poucos correrem, o banco manter-se-A solvente, ¢ se muitos correrem, iré falir. Em tais casos, a busca do interesse proprio produz resultados colectivos que ninguém quer, contudo os individuos ao comportarem-se diferentemente iro prejudicat-se sem alterarem as resultantes. Estes dois exemplos muito usados estabelecem 0 ponto principal. Nao posso seguir sensatamente alguns cursos de acco a no ser que tu também os sigas, € tu e eu nao podemos sensatamente segui-los a nao ser que estejamos muito seguros de que muitos outres também 0 fario. Aprofundemos mais 0 problema ao considerarmas mais dois exemplos com algum pormenor, Uma de muitas pessoas pode escolher conduzir o seu carro em vez de andar de comboio. Os carros oferecem flexibilidade horéria © na escolha dos destinos; contudo, as vezes, com mau tempo, por exem- plo, 0 servigo de caminhos de ferro & uma escolha mais conveniente. ‘Uma de muitas pessoas pode comprar em supermercados em vez. de © fazer na mercearia da esquina. Os stocks dos supermercados so maiores e os pregos mais baixos; contudo, as vezes, a mercearia da esquina, oferecendo crédito € entregas a0 domicilio, ¢ a escolha mais conveniente, O resultado de 2 maioria das pessoas, normalmente, conduzir carro préprio e comprar em supermercados ¢ reduzir 0 ser- vigo de passageiros ¢ baixar 0 numero de mercearias da esquina. Estes resultados podem no ser 0 que a maioria quer. Podem estar dispostes a pagar para impedir que esses servigos desaparegam. E, no entanto, os individuos no podem fazer nada para afectar as resultantes. © aumento da clientela iria fazé-lo, mas nfo o aumento da clientela feito por mim e alguns outros que eu poderia persuadir a seguir 0 meu exemplo, Podemos muito bem notar que 0 nosso comportamento produz resultantes no desejadas, mas também vernos que instincias como estas so exemplos do que Alfred E. Kahn descreve como «grandes» mudancas que so trazidas ao de cima pela acumulagao de «peque- nas» decisdes. Em tais situagdes as pessoas sto vitimas da «tirania das pequenas decisdes», uma frase que sugere que «se 100 consumidores escolherem a opcdo x, € isto fizer com que o mercado produza & decisio X (sendo X igual a 100 x), nfo é necessariamente verdade que 132 TEORIA DAS RELAGOES INTERNACIONAIS aqueles mesmos consumidores teriam votado nesse resultado se essa decistio central tivesse sido colocada a sua considerago explicita» (Kahn, 1966, p. 523). Se 0 mercado ndo apresenta a questéo central ‘para decisio, entio os individuos esto condenados a tomar decisdes que so sensatas dentro dos seus estreitos contextos, mesmo que eles saibam sompre que ao tomarcm cssas decisdes estio a dar origem a um resultado que a maioria deles nfo quer. Ou isso, ou eles arranjam maneira de ultrapassar alguns dos efeitos do mercado mudando a sua estrutura—por exemplo, trazendo as unidades consumidoras para préximo do nivel das unidades que esto a provocar as decisdes dos produtores. Isto mostra habilmente o ponto: desde que deixemos a estrutura intocada ndo é possivel que as mudangas nas intengdes e nas acgdes dos actores particulares produzam resultados desejéveis ou evitem resultados indesejaveis. As estrutures podem ser mudadas, como {i foi dito, mudando a distribuigio das capacidades entre as unidades. {As estruturas também podem ser mudadas impondo requisitos onde anteriormente as pessoas tinham de decidir por si mesmas. Se alguns comerciantes vendem ao domingo, outros poderio ter de o fazer de forma a manter a competitividade mesme que a maioria prefira uma semana de seis dias. A maioria s6 é capaz de fazer 0 que quer se a todos for requerido que mantenham horas compardveis. Os tinicos remédios para efeitos estruturais fortes sio mudangas estruturais. Os constrangimentos estruturais nfo podem ser afastados, apesar de muitos nao entenderem isto. Em todas as épocas € lugares, as unidades dos sistemas de auto-ajuda — neces, corporagdes, ou qual- quer outro sistema — é dito que o maior bem, a par com o seu pré- prio, requer que elas ajam pelo bem ¢o sistema e nfo pela sua vantagem estreitamente definida. Na década de 50, a medida que 0 medo da destruigao mundial por uma guerra nuclear crescia, alguns conclufram que a alternativa A destruicio do mundo era o desar- mamento mundial. Na década de 70, com o crescimento répido da populacio, pobreza, ¢ polui¢do, alguns conchuiram, como afirmou um cientista politico, que «os estados devem ir de encontro 4s necessi- dades do ecossistema politico nas suas dimensdes globais ou arriscar- -se & aniquilacdo» (Sterling, 1974, p. 336). O interesse internacional deve ser servido; ¢ se isso significa alguma coisa, significa que os ‘interesses nacionais Ihe esto subordinados. Os problemas encontram- -se ao nivel global. As solugSes para os problemas continuam a depen- der da politica nacional. Quais so as condigdes que tornariam as ‘ORDENS ANARQUICAS E BALANCAS DE PODER 133 nagdes mais ou menos dispostas a obedecer aos constrangimentos que Ihes sdo to frequentemente impostos? Como podem resolver a tensio centre perseguir os seus préprios interesses e agir pelo bem do sistema? ‘Nunca ninguém mostrou como isso pode ser feito, apesar de muitos torcerem as mios ¢ implorarem por um comportamento racional. © problema central, no entanto, é que © comportamento racional, dados os constrangimentos estruturais, no leva aos resultados deseja- dos. Com cada pais impelido a tomar conta de si mesmo, ninguém pode tomar conta do sistema. Um forte sentido de risco e aniquilagio pode levar a uma clara definigo dos fins que tém de ser alcangados. A sua realizagao nao é, assim, tornada possivel. A possibilidade de acgdo efectiva depende da habilidade de fomnecer os meios necessérios. Depende ainda mais da existéncia de condigdes que permitam que as nagdes e outras organi- zagdes sigam politicas e estratégias apropriadas. Problemas que aba- lam 0 mundo pedem solugdes globais, mas no existe nenhuma agén- cia global para as fornecer. As necessidades nao criam possibilidades. Desejar que as causas finais sejam eficientes nao as toma eficientes. Grandes tarefas podem ser realizadas apenas por agentes de grande capacidade. E por isso que os estados, ¢, em especial, os grandes estados, sto chamados para fazer 0 que é necessirio para a sobrevi- véncia do mundo. Mas os estados tém de fazer 0 que quer que con- siderem necessério para a sua propria preservagio, uma vez que nio podem confiar em ninguém para fazer isso por eles. Por que motivo © conselho para colocar o interesse intemacional acima do nacional é itrelevante, pode ser explicado, precisamente, em termos da distingtio entre micro e macroteorias. Entre os economistas a distingiio é bem entendida. Entre os cientistas politicos, no ¢, Como expliquei, a teoria microeconémica € uma teoria do mercado construida a partir de assunges sobre 0 comportamento dos individuos. A teoria mostra como as accées ¢ interacgdes das unidades formam e afectam 0 mer- cado e como, em troca, o mercado as afecta. Uma macroteoria é uma teoria sobre a economia nacional construida a partir da oferta, rendi- ™ Posto de outra forma, o8 estado enfrentam o eilema do prisioneiroy. Se cada uma das cduas partes seguir o seu prio interese, ambas acaburio pior do que se cada uma agisse de {orm a atingie os inteesses conjunos. Para um exame mais pormenorizado da ligica de tis situapies, ver Sayder e Diesing, 1977; para aplicagSes intemacionais curas e sugestvas, ver Jervis, Janeiro 1978, ‘TEORIA DAS RELACOES INTERNACIONAIS ‘mento, e procura como grandes agregados de sistemas. A teoria mos- tra como estes € outros agregados esto interligados e indica como as mudangas num ou em alguns deles afectam os outros e o desempenho da economia. Em economia, quet micro quer macroteorias lidam com grandes dominios. A diferenga entre elas encontra-se nilo no tamanho dos objectos de estudo, mas na forma como os objectos de estudo so abordados ¢ a teoria para os explicar é construida. Uma macroteoria de relagdes internacionais iria mostrar como o sistema internacional é mudado por grandes agregados de sistemas. Podemos imaginar 0 que podem ser alguns deles — valor do PNB mundial, valor de importa~ Ges © exportagdes mundiais, niimero de mortos na guerra, valor dos gastos globais com a defesa, ¢ migragdes, por exemplo, A teoria seria qualquer coisa como uma teoria macroeconémica ao estilo de John Maynard Keynes, apesar de ser dificil ver como os agregados interna- cionais fariam grande sentido © como mudangas mum ou em alguns deles produziriam mudangas nos outros. Nao estou a dizer que uma tal teoria nfo pode ser construida, mas apenas que nao estou a ver como fazé-lo de alguma forma que possa ser util. De qualquer forma, 0 ponto decisivo é que a uma macroteoria de relagdes internacionais iriam faltar as implicagdes priticas da teoria macroeconémica. Os governos nacionais podem manipular grandes variéveis econémicas de sistemas. Nao existe internacionalmente nenhuma agéncia com capacidades compardveis. Quem iria agir de acordo com as possibili- dades de ajustamento que uma macroteoria de relagdes internacionais poderia revelar? Mesmo que uma tal teoria estivesse disponivel, esta~ riamos na mesma presos &s nagGes como os tinicos agentes capazes de agir para resolver os problemas globais. Teriamos na mesma de rever- ter para uma abordagem micropolitica de forma a examinar as condi- Ses que fazem a acco benigna ¢ efectiva dos estados, separada ou colectivamente, mais ou menos, provavel. Alguns esperaram que as mudangas na consciéncie e nos propési- tos. na organizacdo e na ideologia, dos estados mudaia a qualidade da vida internacional. Ao longo dos séculos os estados taudaram de muitas formas, mas a qualidade da vida internacional manteve-se, ‘mais ou menos, na mesma. Os estados podem procurar fins racionais © meritérios, mas no conseguem descobrir como alcangé-los. O pro- blema nao esté na sua estupidez ou md vontade, apesar de no que- rermos afirmar que tenham falta desses atributos. A grandeza da difi- culdade nao é entendida até que entendamos que inteligéncia e boa ORDENS ANARQUICAS E BALANCAS DE PODER Iss vontade por si no descobrem os programas adequados. No inicio deste século, Winston Churchill observou que a corrida naval anglo- -germanica prometia desastre e que a Gra-Bretanha nao tinha outra, escolha realista sendo entrar nessa corrida. Os estados que enfrentam. problemas globais sio como consumidores individuais encurralados pela «tirania das pequenas decisdes». Os estados, tal como os consu- midores, s6 podem sair da armaditha se mudarem a estrutura do sew campo de actividade. A mensagem merece ser repetida: o tinico rem dio para um efeito estrutural forte é uma mudanga estrutural 4, As virtudes da anarguia Para alcangar os seus objectivos © manter a sua seguranga, as uni- dades numa condigdo de anarquia — sejam elas pessoas, corporagdes, estados, ou qualquer outra coisa— devem confiar nos meios que podem gerar e nos acordos que podem fazer para elas proprias. Auto- ajuda é, necessariamente, o princfpio de acgao numa ordem andrquica. Uma situagao de auto-ajuda é uma situagio de alto risco— isco de faléncia, no dominio econdmico, ¢ de guerra, num mundo de estados livres. Também é uma situay3o na qual os custos organizacionais sio baixos. Dentro de uma economia ou dentro de uma ordem interna~ cional, os riscos podem ser evitados ou minorados passando-se de ‘uma situagGo de acg#o coordenada para uma situacdo de superioridade ¢ subordinagio, isto é, erigindo agéncias com autoridade efectiva estendendo um sistema de regras. O governo emerge onde as préprias fungdes de regulamentagao e administragdo se tornam tarefas distintas e especializadas. Os custos da manutengo de uma ordem hierarquica sfo frequentemente ignorados pelos que deploram a sua auséncia. As organizagdes tém, pelo menos, dois objectivos: realizar algo e manter- -se como organizacao. Muites das suas actividades esto direccionadas para 0 segundo propésito. Os lideres das organizagées, e, predominan- temente, os lideres politicos, ndo so mestres nos assuntos com que as suas organizacGes lidam, Tornaram-se lideres no por serem peritos numa ou noutra coisa mas por exceléncia nas artes organizacionais manter 0 controlo sobre os membros de um grupo, conseguir deles esforcos previsiveis e satisfatérios, manter um grupo coeso. Ao tomar decisdes politicas, a primeira e mais importante preocupacdo nao ¢ alcancar os objectivas que os membros de uma organizagio possam 156 ‘TEORIA DAS RELACOES INTERNACIONAIS ter mas assegurar a continuidade ¢ a satide da propria organizagao (cf. Diesing, 1962, pp. 198-204; Downs, 1967, pp. 262-270), A par com as vantagens das ordens hierérquicas vém os custos. Além disso, em ordens hierérquicas, os meios de controlo tornam-se ‘num objecto de luta. Assuntos substantivos entrelacam-se com esfor- gos para influenciar ou controlar os controladores. A ordenacdo hie~ rarquica de politicas é mais um dos ja imimeros objectos de luta, e 0 objecto acrescentado esti numa nova ordem de magnitude. Se 08 riscos de guerra sao insuportavelmente altos, poderéo ser reduzidos se se organizar a administragio dos assuntos das nagbes? No minimo, administrar requer que se controle as forgas militares que estdio 4 disposigfio dos estados. Dentro das nacdes, as organizagdes tém de se esforgar por sobreviver. Como organizagdes, as nagdes, a0 trabalharem para sobreviverem, algumas vezes, tém de usar a forca contra elementos ¢ éreas dissidentes. Como sistemas hierérquicos, os governos, nacional ou globalmente, so perturbados pela dissidéncia de partes importantes. Numa sociedade de estados com pouca coerén- cia, as tentativas de um governo mundial seriam fundadas na incapa- cidade de uma autoridade central emergente, de mobilizar os recursos necessarios para criar e manter a unido do sistema regulando ¢ admi- nistrando as suas partes. A perspectiva de um governo mundial seria um convite para a preparacdo da guerra civil mundial. Isto recorda-me as reminiscéncias de Milovan Djilas da Segunda Guerra Mundial. De acordo com ele, ele e muitos soldados russos nas suas discusses, em tempo de guerra, chegaram a acreditar que as lutas humanas iriam adqui- rir a sua maxima amargura se todos os homens fossem sujeitos ao mesmo sistema social, «por que o sistema iria ser insuportavel, e varias seitas iriam tomar para si a destruigo negligente da raga humana pelo bem da sua maior “felicidade’» (1962, p. 50). Os estados no podem confiar poderes administrativos a uma agéncia central a ndo ser que essa agéncia sejn capaz de proteger os seus estados clientes. Quanto mais poderosos forem os clientes e quanto mais o poder de cada um deles aparecer como uma ameaga aos outros, maior tem de ser 0 poder alojado no centro. Quanto maior 0 poder do centro, mais forte 0 incentivo para os estados se envolverem numa Tuta pelo seu controlo. Os estados, como as pessoas, so inseguros em proporgio a exten- sto da sua liberdade. Se a liberdade é desejada, a inseguranga tem de ver aceite, As organizagdes que estabelecem relagbes de autoridade € controlo podem aumentar a seguranca a medida que diminuem a liber- ‘ORDENS ANARQUICAS E BALANGAS DE PODER ist dade. Se a forga no corresponder ao direito, seja entre pessoas ou estados, entdo alguma instituigio ou agéncia interveio para tird-los do estado de natureza. Quanto mais influente for a agéncia, mais forte se toma o desejo de a controlar. Em contraste, as unidades numa ordem anarquica actuam pelo seu proprio bem e ndo pelo bem da preserva- eo de uma organizagdo ¢ do favorecimento da sua sorte dentro dela. A forga é usada para o interesse préprio de cada um. Na auséneia de organizacdo, as pessoas ou os estados so livres para deixarem os outros em paz. Mesmo quando no o fazem, so mais capazes, na auséneia da politica da organizacio, de se concentrarem na politica do problema e projectarem um acordo minimo que permitira a sua exis- téncia independente em vez de um acordo maximo para manterem a unio. Se essa vontade imperar, ento lutas sangrentas sobre o direito podem mais facilmente ser evitadas. Nacionalmente, a fora de um governo é exercida em nome do direito ¢ da justiga. Internacionalmente, a forga de um estado é em- pregue para o bem da sua propria protecgo e vantagem. Os rebeldes desafiam 0 direito do govemno a autoridade; questionam a legitimidade do seu poder. As guerras entre 0s estados no podem resolver questies de autoridade e direito; podem apenas determinar a distribuicao dos ganhos e das perdas entre os contendores e resolver por algum tempo a questi de quem é 0 mais forte. Nacionalmente, as relagdes de autotidade sao estabelecidas. Intemacionalmente, s6 resultam as rela- ges de forga. Nacionalmente, a fora privada usada contra um gover- no ameaga o sistema politico. A forga usada por um estado — um organismo pablico — é, da perspectiva internacional, 0 uso privado da forga; mas nao existe nenhum governo para derrubar e neahum apa- rato governmental para capturar. Desprovido de qualquer possibili- dade em direcedo a hegemonia mundial, o uso privado da forga nao ameaca o sistema das relagdes internacionais, apenas alguns dos seus membros. A guerra opde uns estados outros numa luta entre entida- des similarmente constituidas. O poder do forte pode impedir 0 fraco de conseguir as suas teclamagGes, néo porque o fraco reconheca uma espécie de legitimidade de governo da parte do forte, mas simples- ‘mente porque ndo é sensato envolver-se com ele. Inversamente, 0 fraco pode gozar uma considerivel liberdade de ac¢ao se the forem retiradas as suas capacidades pelo forte de forma a que o ferte nao se importe com as suas acgSes ou se preocupe com aumentos insignifi cantes das suas capacidades.

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