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Resumo Abstract
Este ensaio tem por propósito refletir sobre This essay aims to reflect about the meetin-
a trajetória dos encontros entre pesquisadores gs between Franco-Brazilian researchers arou-
franco-brasileiros em torno da leitura do gesto. nd movement and gesture analysis. We descri-
Descrevemos brevemente os eventos realiza- be the events organized by different Brazilian
dos em diferentes universidades brasileiras, universities, under the name of Colloquiums
sob o nome de Colóquios de Artes do Movi- of Movement Arts, between 2015 and 2017.
mento, realizados entre 2015 e 2017. Esboçan- Outlining cartographies, we highlight the par-
do cartografias, destacamos os participantes ticipants and themes involved in the events.
e temas envolvidos nos eventos. Propomos, a We propose, based on listening to the impres-
partir de da escuta das impressões que esses sions that these encounters have caused us,
encontros nos causaram, uma reflexão sobre to reflect on some conceptions that guide the
algumas concepções que norteiam a leitura reading and analysis of the gesture, compared
e análise do gesto, cotejadas à nossa própria to our own practice as researchers and con-
prática como pesquisadoras e confrontadas fronted with the concepts of hybridization and
aos conceitos de hibridação e antropofagia. anthropophagy.
Palavras-chave Keywords
Dança. Análise do Movimento. Leitura do Ges- Dance. Movement Analysis. Gesture Studies.
to. Pesquisa em Artes Cênicas. Research in PerformingArts.
cena n. 22
Há no Brasil e América Latina, saberes tais – são oferecidas como fusão e osmose (Can-
como a capoeira que escapam a uma análi- clini, 2015)15.
se de retórica europeia, fortemente legitimada Evidenciaram-se, nesse último encontro em
no Brasil, sobretudo no ambiente acadêmico Salvador, as dificuldades de, em tão pouco
das artes. No entanto, o guarda-chuva das tempo, fundir reflexão, teoria e prática e pro-
práticas culturais, resultado de processos de duzir algumas assertivas ou sínteses, mesmo
hibridação14, apresenta saberes de uma gno- que provisórias. Surgiu então, a vontade de
sis e episteme diversas de uma lógica de fun- organizar uma publicação que difundisse as
do eurocêntrica. Segundo Martins (2003), são ideias do grupo e que, ao mesmo tempo, por
performances do corpo que revelam o que os meio de chamada pública, permitisse dar a co-
textos escondem. No nosso caso: um grupo nhecer outras abordagens de pesquisadores
de pesquisadores, em sua maioria brasileiros, brasileiros sobre o tema. Assim, propusemos
brancos, com formação em dança clássica, o dossiê Leituras do gesto em artes cênicas,
moderna e contemporânea, tentando circuns- para alavancar as seguintes questões: Como
crever a prática da capoeira sob o ponto de os sistemas de análise do gesto e do movi-
vista predominante estético da dança. Nesse mento abrem-se à diversidade dos modos de
sentido, acreditamos que práticas tais como encenação do corpo na cena contemporânea?
a capoeira escapam, burlam e se contrapõem Como as ferramentas propostas por esses
às grades de análise reconhecidas no âmbito sistemas dialogam e contribuem com propo-
da dança contemporânea, tanto no espectro sições pedagógicas emancipatórias? Como
de análise do movimento labaniana ou funcio- esses sistemas situam-se em relação aos con-
nal ou godardiana. Reconhecer essa falésia é textos pós-coloniais, permeados pelo intenso
algo profícuo, que pode demonstraro quanto- fluxo migratório, pela aceleração das trocas de
as práticas corporais de matriz afro-brasileira informação em escala mundial, pela mobilida-
e provavelmente outras, como os repertórios de cultural, pela desterritorialização e relações
indígenas, resistem e destoam do projeto mo- assimétricas de poder?
dernista. Tal projetoemerge do mundo ociden-
tal e cultiva uma autoestima etnocêntrica, a
qual acaba por abarcar o contexto universitário O gesto na encruzilhada
latino-americano e nós, especialistas em dan- dos conceitos
ça. No entanto, em “um mundo fluidamente
interconectado”, confrontação e diálogo são Nos últimos anos, em uma perspectiva de
necessários, afim de contrastar como que nas pós-graduação, sobretudo no âmbito do Pro-
interculturalidades migratórias, econômicas e grama de Pós-Graduação em Artes Cênicas
midiáticas – ou nos processos de globalização da UFRGS, as pesquisas que abordam o gesto
propõem investigações a partir de uma pers-
14 As noções de hibridação ou processos de hibridação de pectiva reflexiva impulsionada pela análise do
que tratam os estudos do pesquisador argentino Nestor Gar-
cia Canclini (2015), está embasada em uma complexa refle-
xão para pensar os países da América Latina em uma pers-
pectiva intercultural nas relações que configuram fenômenos 15 Essas assertivas são de ordem pessoal das autoras, con-
da atualidade entre as tradições culturais com a modernida- siderando que muitas das experiências do último encontro em
de. Salvador ainda estão sendo por nós digeridas e assimiladas.
fazer artístico, imbricado ou não a práticas pe- verino18, Carlota Albuquerque19, Cecy Franck20.
dagógicas16. Para entender o gesto na dança, vemos na
Temos procurado abordaro estudo do gesto perspectiva filosófica da estado-unidense Su-
por meio de diferentes autores, temporalidades sanne Langer (1980)21 um marco primeiro e re-
e hierarquias conceituais. Buscamos cotejar ferencial, seja pela atualidade de sua escrita,
as produções de pesquisadores universitários datada de 1953, seja pela a busca em determi-
e de pesquisadores artistas. , tais como Des- nar a especificidade da dança na força de sua
se modo, situamosa produção acadêmica de gestualidade, ou ainda pela possibilidade de
autores que buscam refletir sobre o gesto em contraste com autores contemporâneos.
perspectivashistórico-cultural, filosóficaou es- Quanto à especificidade da dança, a autora
tética como Annie Suquet (2008, 2012), Ciane sustenta que a dança é uma arte independen-
Fernandes (2002, 2014), José Gil (2004), Hu- te da música, repudiando a “quase-identida-
bert Godard (1995), Laurance Louppe (1997), de” na relação entre dança e música. Também
Susanne Langer (1980), Sylvie Fortin (1996, a vê comoindependente de “quadros em mo-
2008) face a perspectivas práticas e a narrati- vimentos”, desenho animado, ou estátuas de
vas de artistas como Eva Schul17, Eduardo Se- movimento, o que vincularia a especificidade
do gesto na dança à pintura. Repudia também
a dança enquanto como uma arte dramática
23 Langer (1980), no capítulo Poderes Virtuais, cita Laban em 25 O artigo seminal de Hubert Godard, Le geste et sapercep-
pelo menos duas passagens, através do livro de Laban Die tion, foi publicado em francês em 1995 e publicado em portu-
Weltdes Tänzers: Fünf Gedankenreigen, publicado em 1922 guês no Brasil em 2003, em tradução de Silvia Soter (Godard,
na Alemanha. 2003).
Batista27 e Raimundo Bispo dos Santos28 – ou africanas, indígenas e de outros povos não eu-
Mestre King - respeitando o desejo de revelar ropeus, práticas de hibridação e mestiçagem
nossa cultura híbrida por meio da dança. tão caras às artes latino-americanas, avanços
O legado da estética negra no Brasil, como tecnológicos, culturas massivas e midiáticas
é o caso de Mercedes Batista e de Mestre O reconhecimento da verticalidade de pen-
King, dentre outros artistas, nos permite re- samentos ocidentais seminais para os estudos
pensar aspectos do gesto brasileiro para além em dança, relacionados a saberes advindos
das noções de autenticidade e de identidade, das danças, dos rituais edas práticas perfor-
afastando-nos de qualquer noção de pureza máticas de matriz africana ou indígena,ou mes-
cultural. Trata-se de reconhecer como as nar- mo da dança contemporânea brasileira resta
rativas recentes do gesto brasileiro, que sea- como uma difícil encruzilhada a ser atraves-
firmamcomo arte a partir da segunda metade sada (Martins, 2003). Dialogar com todo esse
do século XX, podem ser revisitadas pelo olhar espectro de demandas frente à combustãode
contemporâneo, impregnado por recentes questões emergentes provenientes das práti-
epistemologias e tecnologias. Estamos cons- cas artísticas pós-modernas, requer escolhas,
cientes de que habitamos um país periférico e embates e reconciliações.
de que vivemos entre uma modernidade pre- Como compreender, captar, analisar e per-
cária, sinuosa e inacabada e uma pós-moder- formar o gesto frente a questões espistemoló-
nidade que acentua as relações assimétricas gicas, interdisciplinares e interculturais? Esse
de poder. Por isso, interessa-nos problemati- desafio merece ser desenrolado feito o fio de
zar o gesto entrecruzando abordagens teórico- Aridne, labirintos que cada pesquisador pode
-metodológicas europeias, estado-unidenses ou deve percorrer à sua maneira. O encontro
e brasileiras, saberes oriundos das tradições de um grupo em sua maioria brasileiros com
a pesquisadora Christine Roquet, permite-nos
27 Nascida em 1930, no estado do Rio de Janeiro, mudou-se uma troca profícua de pensamentos e vivên-
para a capital ainda pequena. Fez formação em balé na Es- cias interculturais entre o exercício crítico do
cola de Bailado do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e tor-
nou-se a primeira bailarina negra do Teatro Municipal do Rio pensamento francês não somente de pensar a
de Janeiro. Integra o Teatro Experimental do Negro. Após as
apresentações no Rio de Janeiro da Companhia de Dança de
dança, mas o corpo, frente a nós pesquisado-
Katherine Durham, em 1951, Mercedes Baptista obtém uma res latino-americanose nossa adaptabilidade
bolsa de estudos e vai para Nova York estudar com a coreó-
grafa. Duham mesclou os princípios da dança moderna esta- camaleônica de dialogar e buscar a solidifica-
do-unidense aos das danças afro-caribenhas. Um ano depois, ção da pesquisa do gesto num espaço nacio-
no seu retorno, reúne um grupo de artistas negros e inicia o
trabalho que viria a gerar o Balé Folclórico Mercedes Baptista nal, latino, cosmopolita e internacional. Parece
e gestando o que seria denominado posteriormente de Dança
Afro. Segundo Monteiro (2011), a dança afro de Baptista con- importante no contraste com a vasta cultura
figurou-se “como uma prática e um repertório em ruptura com francófona que Christine Roquet nos propor-
o balé clássico e completamente identificado com os novos
parâmetros da dança moderna, tendo como referência a tradi- ciona e representa, reconhecer e descortinar
ção africana tal qual se configurava no Brasil” (p. 10).
nosso próprio e recente legado daqueles que
28 Nascido em 1943, em Santa Inês/Bahia, com formação ini- como Mercedes Batista, Angel e Klauss Vian-
cial em capoeira, foi o primeiro homem e negro a se formar
no Curso de Graduação em Dança da Universidade Fede- na, Cecy Franck e Eva Schul, entre outros,
ral da Bahia. Coreógrafo e professor, seu trabalho de dança
afro-brasileira foi se delineando na fusão entre danças dos
buscaram e buscam através de uma prática e
terreiros de candomblé com técnicas de dança moderna e tor- reflexão somática/cinestésica do gesto acom-
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Recebido: 01/07/2017
Aprovado: 07/07/2017