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O PRIMEIRO INTERROGATORIO JUDICIAL DO ARGUIDO DETIDO O art. 141.° do Cédigo de Processo Penal apés a Reforma de 2007 FApio Loureiro “A estrutura acusatéria do proceso penal determina: a) que o inguérito tenha uma natureza teleologicamente vin- culada como complexo de actos com exclusiva funcao endoprocessual de determinar a decisdéo de mérito do Ministério Piblico sobre a acedo penal e bj a autonomia funcional rectproca entre 0 érgdo que dirige a fase de inguérito e 0 drgdo com competéncia deciséria em sede de restrigdo de direitos, liberdades ¢ garantias”. Paulo Dé Mesquita, 2003 Introdugao; 1. Ambito de Aplicagao do art. 141.°; TI. Determinacao do JIC Competente; IIT. Prazo para Apresentagao do Arguido e Duragao do Inter- rogatério; IV. Estrutura e Contetido do Interrogatorio; V. Aplicacéo de Medida de Coacgio ou Garantia Patrimonial Inserida no Interrogat6rio: Conclusiio. TRODUCAO O actual Cédigo de Processo Penal (CPP) — Lei 48/2007 — regula no art. 141.° as matérias relativas ao primeiro interrogatério judicial do ar- guido detido, Analisar 0 regime ai contido afigura-se relevante. uma vez que a matéria assume um papel de peso na defesa de principios com dignidade 70, Prova Criminal ¢ Direito de Defesa constitucional durante a pritica de diversos actos subsequentes a uma detengao. De facto, a Constituigdo da Reptiblica Portuguesa (CRP) esta- belece, no seu art. 27.°, 0 principio de que todos tém direito a sua liber dade e seguranga, ressalvando taxativamente algumas situagdes de priva- ¢ao das mesmas. Tendo em conta os valores em causa, outra nao poderia ser a opgio do legislador constitucional, de onde se retira que a andlise, feita por um juiz, das circunsténcias que envolvem determinada detengio é essencial no sentido de se apurar a legalidade da mesma, cumprindo- -se, assim, 0 disposto na CRP. O Direito Processual Penal nao pode deixar de se nortear de acordo com princfpios constitucionais como o referido, mais ainda em situagdes de detengdo que constituem, no ambito de um processo penal, uma das maiores coarctagées dos valores que © principio em causa defende. Por estas mesmas razées é ébvia a relevincia de uma andlise as questdes que 0 art. 141.° levanta, desde saber concretamente as situagdes 4s quais 0 artigo se aplica, até 4 andlise dos actos praticados ao longo do procedimento que 0 mesmo descreve. I. AMBITO DE APLICAGAO DO ARTIGO 141.” O primeiro passo a dar, ainda antes de se discutirem outras questdes referentes ao art. 141.° prende-se com a delimitagdo das situagées as quais 0 mesmo deve ser aplicado. Um bom ponto de partida pode ser a parte inicial do n.° 1 — «arguido detido que nio deva ser de imediato julgado». Desta expresso podem retirar-se dois aspectos importantes: o pri- meiro, jd referido, é o facto de este artigo se aplicar a situagdes de detengao de um arguido; 0 segundo, 0 facto de podermos estabelecer desde ja uma delimitagao negativa relativamente as situagdes de processo sumiario. Quanto 2 expresso «detido» usada no artigo, esta nao diz respeito a privagées de liberdade resultantes de sentengas condenatérias nem da aplicagao de uma medida de coacgdo. Quanto a estas situagdes, uma vez que resultam de actos processuais com intervengao judicial, a sua lega- lidade nao necesita da averiguagao a que o art. 141.° obriga. O artigo aplica-se, isso sim, as situagdes de detengdo como esta & descrita pelos arts. 254.° a 257.° do CPP. Tal como indicado no art. 254.°, n.° 1, als. a) € b) esta detengdo tem como resultado a presenga do detido perante juiz O Primeiro Interrogatério Judicial do Arguic de instrugao criminal (JIC) para primeiro interrogatério judicial, para aplicagdo/execucao de medida de coacco ou a sua apresentacio a auto- ridade judicidria em acto processual! 1. Modalidades de Detengao 1.1. A primeira modalidade ~ art, 255.° diz respeito a situagdes de flagrante delito, ou seja, situagdes em que qualquer autoridade judicidria ou Outra pessoa que se encontre na situagao descrita na al. b) do n.° 1 procedam & detengo no momento da pratica do crime (art. 256°, n.? 1, primeira parte), no momento imediatamente subsequente A prdatica do crime (art. 256.°, n° 1, segunda parte) ou em circunstincias que preen- cham a presuncdo de flagrante delito constante do art. 256°, n.° 2 (a per- segui¢do do agente por pessoa que tenha presenciado a pratica do crime ‘ou a presenga de objectos ou sinais que claramente indiquem que o agente acabou de cometer o crime). 1.2. A segunda modalidade ~ art, 257.° — diz respeito as situagées em que a detencao € efectuada fora de flagrante delito. Neste tipo de situagGes a detengio sé pode ser feita depois de emitido mandado de detengao pelo juiz, pelo Ministério Péblico (em casos em que seja admis- sivel a prisio preventiva) ou por autoridade de policia criminal [nos casos previstos no art. 257.°, n° 2, als. a), b) e c)], mandado esse que, a partir da reforma de 2007, se justifica apenas quando haja fundadas ra- 2es para cret que 0 arguido nao se apresentaria espontaneamente perante autoridade judicidria em prazo que Ihe fosse indicado. 2. O Caso Particular do Processo Sumario O art. 254.°, n.° 1, al. a) refere duas situagdes (para além de uma terceira 4 qual sera feita referéncia mais tarde) — 0 caso de processo sumario e o primeiro interrogatério judicial — como alternativas, pelo "Sem esquecer que s6 excluimos deste Ambito as situagdes de proceso sumério Porque essa situagio se impée, nos termos do art. 141.°, n.° 1, ao nosso estudo, uma vez que, concluindo 0 MP pelo preenchimento dos pressupostos do julgamento na forma suméiria, tomna-se desnecessaria a prévia apresentagio ao JIC. Ressalvados, evidentemente, os casos urgentes em que a deteng meio diferente € 36 depois confirmada por mandado do juiz. (art. 258.", n.° 2). 0 € ordenada por Prova Criminal ¢ Direito de Defesa que, a juntar 4 propria previsiéo do art. 141.°, n.° 1, se torna evidente que © interrogat6rio referido no art. 141.° no se aplica em casos de processo sumério, Outra situagiio nao faria sentido. O arguido detido em flagrante delito apresentado a0 MP é julgado, caso se encontrem preenchidos os restantes pressupostos, na forma sumdaria. Nestes casos ndo se justificaria a apresentagao a um JIC para avaliar a legalidade da sua detencdo num prazo maximo que corresponde, nos termos do art. 254.°, ao prazo mé- ximo para manutengao da detengdo até julgamento em processo sumério. Nada se ganharia, na pratica, fazendo intervir um JIC em acto preliminar dentro de um prazo em que haveré necessariamente um julgamento. Assim, hd uma ponderagao a fazer pelo MP que recebe um arguido detido em flagrante delito. Se estiverem preenchidos os respectivos pres- supostos, leva 0 arguido a julgamento em processo sumério, Se nao esti- verem preenchidos os pressupostos do processo sumério 0 MP tem duas opgies: ou liberta o arguido e prossegue a investigacéo com este em liberdade, ou entende que ha necessidade de aplicacéio de medida coac- ¢ao ou garantia patrimonial e, af, apresenta 0 arguido ao JIC para ser ouvido nos termos do art. 141.°, n.° 4 (por remissao do art. 194.°, n.° 3). Em suma, estando preenchidos os pressupostos da forma suméria do processo, 0 arguido detido em flagrante delito apresentado ao MP é levado de imediato a julgamento, exceptuando os casos em que, nos termos do art. 382.°, n.° 3, 0 arguido € libertado por se concluir que a audiéncia de julgamento nao poderd ter lugar no prazo de 48 horas — caso em que. havendo necessidade de aplicago de medida de coagdo ou ga- rantia patrimonial, © arguido & apresentado ao JIC para ser ouvido nos termos do art. 141°, n.° 4, 3. Detengées Fora de Flagrante Delito Tratada a questao da detengdo em flagrante delito, interessa agora abordar os casos em que, como jé referimos, 0 arguido € detido na exe- cugao de um mandado — emitido nas condigdes anteriormente descritas justificado pela existéncia de fundadas razdes para se considerar que nao se apresentaria espontaneamente a autoridade judicidria competente em prazo que Ihe fosse fixado. caso suporta ainda uma outra excepedo: se 0 MP concluir que mesmo a audigao para aplicagao de medida de coaegdo nao poder ser feita no prazo de 48 horas ido € logo libertad nos termos do art. 385.°, n.° 2. © ary OQ Primeiro Interrogatério Judicial do Arguido Detido B Este tipo de detengies pode ter dois objectivos essenciais: assegurar a presenga do arguido perante a autoridade judicidria em acto processual ou aplicagdo/execugo de medida de coaccAo ou garantia patrimonial Analisemos com mais minticia as diferentes situagdes de aplicaca art. 141.°, 3.1. No caso de detengdo fora de flagrante delito para aplicagao de medida de coaccao a questao € agora pacifica. A discussdio da doutrina e a heterogeneidade de jurisprudéncia relativamente aos casos de deten- gio em execugio de mandado judicial respondeu 0 Procurador-Geral da Republica através da circular 12/90, tornando o interrogatério obrigatério mesmo nestes casos. A argumentagao baseou-se essencialmente nos prin- cipios constantes dos arts. 28.°, n.° 1 e 32.°, n° 1 da CRP — imposicao de interrogatério em casos de detengdo e garantias de defesa. O art. 28°, n2 1 surge aqui, também conjugado com o art. 32.°, n° 1, como afloramento do direito de defesa do arguido. O mandado de detencio, ainda que emitido pelo juiz, nao consubstancia um juizo de responsabilidade rela- tivamente a um agente e pode ter qualquer uma das finalidades constantes do art. 254.°, n.° 1, als. a) e b). A conveniéncia da detengao tem de ser avaliada tendo em conta diversos factores, entre os quais pesa extraordi- nariamente a defesa exercida pelo arguido relativamente aos factos que Ihe so imputados, exercicio esse que justifica a necessidade de se pro- ceder ao interrogatério, 3.2. Ainda relativamente a detencio fora de flagrante delito, outra questo poderia ser levantada no caso de aplicagao/execugao de medida de coacgio ou detengdo de arguido anteriormente detido ou privado da liberdade por medida de coaccao e posteriormente libertado, no Ambito do mesmo processo, mas com base em factos novos — a questdo de saber se © interrogat6rio efectuado no Ambito da primeira detengao valeria para esse processo e para a nova detengdo. Porém, recorrendo a ratio do art. 141.° facilmente se compreende que, havendo factos novos que justifiquem nova detencao ou aplicacéo de nova medida de coac- go ou garantia patrimonial, ha necessidade de se ouvir novamenie © arguido, sendo esta audicdo efectuada no ambito de um «primeiro interrogatério judicial» sobre 0 novo conjunto de factos imputados, Para que este possa tomar conhecimento dessa imputagdo (bem como. dos elementos do processo que indiciam esses novos factos) © exercer oO seu direito de defesa. 4 Prova Criminal e Direito de Defesa 3.3. Este tipo de detengdo e a sua articulagdo com 0 interrogatério mencionado no art. 141.° parecem, até pela rario do preceito, adequados a fase de inguérito. Atentando-se na estrutura acusatéria: a investigagio & levada a cabo pelo titular desta fase processual - 0 MP ~ que, dentro da lgica da investigagiio em curso pode, confrontado com certos elemen- tos de facto, entender ser necessiiria a aplicagio de uma medida de coac- cio ou garantia patrimonial a determinado arguido; consubstanciando essa circunstancia uma limitagdo das liberdades e garantias do arguido justifica-se a intervengio do poder judicial — defensor desses valores na fase de inquérito — que decide, depois de ouvido 0 arguido. 3.4. Questo diferente se suscita quando a situagéo de detencdo acontece para que seja executada a medida de prisio preventiva decretada no despacho de prontincia de arguido contumaz (art. 300°, n.° 3 CPP). Existe, neste Ambito, jurisprudéncia que considera que, havendo prontin- cia, deixa de existir uma situagio de detenco de arguido sem culpa formada, pelo que deixa de se justificar a necessidade de interrogatério judicial’, Porém, esta afirmagdo esté dependente de uma determinada concepgo acerca da natureza do despacho de promiincia. Se, por um lado, o despacho de prontincia significa a confirmagao, por parte do JIC, da viabilidade da acusagio do MP, baseada na consisténcia dos indicios apresentados na acusagdo, por outro lado o JIC pode ser confrontado, na instrugdo, com a necessidade de tomar decisdes no plano material. Nas palavras de Frederico da Costa Pinto «Pode acontecer que o JIC conheca quest6es materiais absolutamente decisivas. Se, por exemplo, o arguido invoca que no tinha dolo porque estava em erro (art. 16.°, n.° 1 do Cédigo Penal — CP) e 0 facto nao € punivel a titulo de negligéncia (art. 13.° CP) © juiz tera que se pronunciar sobre esta questo pois é a viabilidade da pretenséo acusatéria que esté em causa»’. Contudo, mesmo que essa decisdo se baseie em prova indicidria, nao significa uma decisio de fundo com as mesmas caracteristicas que tem uma outra tomada em audiéncia de julgamento. Mesmo essa avaliacao, por vezes material, a que 0 JIC se vé obrigado em sede de instrugio se funcionaliza em relagdo a uma decisio final. Esta primeira avaliaco, mais do que a responsabilidade do agente, diz respeito, fundamentalmente, & pretensio acusatéria do MP. S6 a de- * Acérdi do STI de 1/10/1992. § Cf. Freverico pa Costa Pinto, Direito Processual Penal (Curso Semestral), Lishoa, Associagao Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1998, p. 160. O Primeiro Interrogatorio Judicial do Arguido Detido 75 ciso final de julgamento é que, regra geral, significa uma avaliagao judi- cial da responsabilidade do arguido. E isso que estd em causa e nao, ainda que abordadas questdes materiais na instrugi do, uma antecipagdo de uma decisio que, dentro da estrutura acusatéria, cabe ao juiz de julgamento. Nestes termos, ndo se concluindo pela caracterizagio do despacho de prontincia como um meio de formagio da culpa do agente, sendo este despacho emitido em caso de contumacia do arguido, a detengao do mesmo para execucio de prisdo preventiva decretada nesse mesmo des- pacho tem de ser seguida de interrogatério nos termos do art. 141° para que o direito de defesa do arguido possa ser exercido. 3.5. Para concluir, a mesma situagao se aplica no caso de detengao para executar a medida de prisdo preventiva quando esta tenha sido decre- tada no despacho de recebimento da acusacdio (despacho em que o juiz procede ao saneamento do processo nos termos do art. 31 1.°, n.° 2) mesmo que nao se trate de arguido contumaz. Facilmente se compreende que podem existir situagdes em que todo o inquérito corre com o arguido em liberdade, sem que este seja interrogado. Assim sendo, recebida a acusa- Ao pelo juiz e decretada a prisio preventiva do arguido nesse despacho, 4 detengdo deste para execugio da medida tem de seguir-se 0 seu inter- rogatorio nos termos do art. 141.°, IL. DETERMINACAO DO JIC COMPETENTE 4, Competéncia do JIC No plano do Cédigo de Processo Penal, o JIC competente para deter- minado proceso afere-se segundo as regras de competéncia do tribunal, de acordo com 0 art. 288.°, n.° 2 do CPP. Nesses termos, quanto & competén- cia territorial, rege o art. 19.° do CPP. Partindo desta regulagao conclui-se que o JIC competente para determinado processo & 0 JIC competente na drea: em que tiver operado a consumagao; o do lugar onde o agente tiver operado em caso de crime de cujo tipo faga parte a morte de uma pessoa: © do lugar onde se tiver praticado o tiltimo acto ou cessado a consumagao em caso de crime continuado; ou o do lugar onde se tiver praticado 0 tiltimo acto de execugao caso o crime nao se tenha consumado*: © Além das situacdes particulares referidas nos arts. 20. a 23.9 do CPP. A este conjunto de regras acrescenta 0 CPP, no art. 142.°, n° 1, uma ponderagao a ser feita pela entidade que deve apresentar o detido ao JIC para interrogatério. Se houver fundado receio de que o detido nao possa ser apresentado — ou pelo menos ndo 0 possa ser com seguranca — ao JIC competente no prazo maximo para o interrogat6rio, este pode ser reali- zado pelo JIC competente no lugar onde tenha sido efectuada a detenciio 5. Principio do Juiz Natural A CRP estabelece, no art. 32.°, n.° 9, o denominado principio do juiz natural, segundo o qual nenhuma causa pode ser subtraida a tribunal competente nos termos de lei anterior. Pretende assim evitar-se a criagdo de tribunais ad hoc. No entanto, e embora seja esta a fungdo essencial do principio, a exacta configuracao que Ihe é atribuida nao € indiferente para a viabilidade de outras situagdes. Nomeadamente, no ambito da compe- téncia do JIC para o interrogatério, hé quem defenda que, em determina- dos casos, pode haver manipulagdo por parte do MP do referido principio Constitucional’, Aprofundando, afirma o referido autor que, quando de- tido em periodo de férias, 0 arguido pode acabar por ser interrogado pelo juiz de turno, situagao que pode variar em fungao da escolha do MP relativamente ao momento da detengao. Ora, para se responder com clareza & questo so fundamentais duas anilises: uma primeira que consiste em saber se a regra do juiz natural também se aplica ao JIC; uma segunda, caso se conclua peia aplicagéo da primeira, sobre a possibilidade da violagdo, em concreto, deste prin- cipio, nas situagdes citadas. 5.1, Quanto A primeira afirmam Jorge Miranda e Rui Medeiros que © principio evita a designagao arbitraria de juiz ou tribunal «para decidir um caso submetido a jufzo»*. J4 Gomes Canotilho e Vital Moreira afir- mam que «Juiz legal nao € apenas o juiz da sentenca em primeira instan- cia, mas todos os juizes chamados a participar numa decisao. A exigéncia constitucional vale claramente para os juizes de instrugio e para os tri- Cf. José Barreikos, «O Arguido Detido © o seu Interrogatério», in Liber Disciplorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra, Coimbra Editora, 2001, p. 1280. * Cir. Jone Miranpa/Rut Mepeinos, Constituiciio da Repiblica Portuguesa Ano- sada (Tomo 1, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 362. O Primeiro Interrogatério Judicial do Arguido Detido 1 bunais colectivos»®, Se da segunda interpretagdo se retira claramente a aplicagao do principio ao juiz de instruedo, da primeira essa conclusao sé resulta indirectamente por via de um outro argumento ja antes salien- tado", que é 0 seguinte: se assumimos que, em alguns casos, 0 JIC se vé forgado a decidir, no despacho de prontincia, questoes materiais, mesmo a afirmagiio de que o principio se aplica apenas a juizes chamados a decidir sobre questées submetidas a juizo permite inferir que, por este mesmo motivo, © prinefpio tem de, forgosamente, aplicar-se também ao JIC. 5.2. Uma vez que concluimos pela resposta afirmativa & primeira questio, afigura-se indispensdvel abordar a segunda. Ora, tendo por base os argumentos apresentados anteriormente, a aplicagao do principio do juiz natural ao JIC prende-se, fundamentalmente, com a eventual neces- sidade de este decidir questées materiais. Porém, a situacio referida pelo Autor citado (José ANTONIO BarreiRos) diz respeito ao interrogatorio judi- cial, do qual nao resulta a decisio de questées materiais como acontece, por vezes, com 0 despacho que pée termo a instrugao. A juntar a este argumento existe um outro, ainda mais Gbvio, ao qual o préprio autor faz referéncia na sua critica. E que mesmo o juiz de turno no caso de deten- go em periodo de férias é determinado com respeito pelo principio Constitucional. Sendo a escolha do momento da detengao tao legitima por parte do MP — desde que com os fundamentos exigidos pelo art. 2572, n° 1 — como aquela que resulta, por exemplo, da ponderagao mencionada no art. 142.°, n.° 1, somos forgados a concluir que © principio do juiz natural nao resulta violado nos casos em que dessa ponderagio resulte a decisio de que 0 momento mais pertinente para se efectuar a detencao esta incluido no periodo de férias. III. PRAZO PARA APRESENTACAO DO ARGUIDO E DURACAO, DO INTERROGATORIO O prazo de 48 horas indicado nos arts. 28°, n.° 1 da CRP e 141°, n 1 do CPP evidencia, também, questées quanto & sua correcta interpre- taco. A doutrina e a jurisprudéncia, confrontadas com a necessidade de ° Cf. Jos: Gomes CanonitnofVitat, Moreiks, Constituigdo da Repiblica Portugue- sa Anotada, 3. Edigao Revista, Coimbra, Coimbra Editora, 1993, p. 207. ® Capitulo 1, ponto 3.3. 78 Prova Criminal ¢ Direito de Defesa harmonizar estes dois preceitos legais, apresentam solugdes diferentes quanto 4 questo de saber se 0 prazo neles indicado diz respeito ao periodo de tempo que medeia entre a detengao e a apresentagao do arguido ao JIC, se, por outro lado, deve ser contado até ao efectivo inicio do interrogatério judicial do arguido, ou se deve entender-se que € a conclu- so do interrogat6rio em causa ~ e, por conseguinte, a avaliag%o judicial nele realizada pelo JIC relativamente A conveniéncia e legalidade da detengo — que tem de acontecer dentro do prazo estabelecido. 6. Perspectiva Constitucional no Direito Portugués A interpretagao do Tribunal Constitucional (TC), expressa nos acér- daos 565/2003 e 135/2005, & a de que a imposigao do prazo se prende com a necessidade de limitar 0 perfodo de detencio administrativa consubstanciado na detengdio ainda nao validada por entidade judicial. Na argumentagao constante do acérdao 565/2003 «(...) certo é que a entrega do cidadao detido aos servigos judiciais significa a cessacio de uma situaco legal de poder administrative sobre a pessoa privada de liber- dade, mostrando-se, por isso, cumprida a garantia que a norma constitu- cional pretende consagrar». Daqui se pode inferir que, de acordo com a interpretacdo do TC, a constitucionalidade do interrogatério ndo esté em causa desde que o detido seja entregue ao JIC dentro do prazo de 48 horas, cessando assim a situagao de detencio administrativa. 7. Interpretacao do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos A orientagao seguida pelo TEDH relativamente a este prazo trans- pareceu no acérdao «Zervudacki v. Franga» de 27 de Julho de 2006. Na argumentagio do TEDH, a detengao de um arguido que exceda as 48 horas ~ mesmo que parte desse tempo decorra entre a entrega do arguido a0 JIC e 0 efectivo inicio do interrogatério ~ viola o art. 5.°, § 1.°, c) da Convengio Europeia dos Direitos Humanos. Independentemente da erf- ica que possa ser feita (nomeadamente o facto de ser usado na argumen- um artigo menos limitativo que o do préprio CPP uma vez que este timo impde um prazo concreto que o primeiro nao impée), 0 acérdio espelha uma orientagio jurisprudencial concernente a um artigo de uma Conyengao que vigora no direito interno portugués nos termos do art. 8.° n Le 2 da CRP. O Primeiro Interrogatério Judicial do Arguido Detido 0 Acolhendo-se esta orientagdo, o art. 28.°, n.° | da CRP, bem como o art. 141.°, n.° | do CPP devem ser conjugados com a mesma, no sentido de se entender que © prazo de 48 horas em causa deve ser limite para efectivo inicio do interrogat6rio. Sempre se poderia defender que, se 0 que est em causa nao € um prazo limite para a detengdo administrativa, ento a raziio que deve justificar a exigéncia de um prazo para a manu- tengdo da detengdo tem de ser outra. Eventualmente correcto, mas nao desprovido de sentido num nivel mais empirico, seria entender-se que esse & 0 prazo para a validacdo da detengdo, findo 0 qual, nao estando validada, esta teria de cessar. No entanto, a regulagao que emana do art. 141.°, n.° 5 poe em causa esta interpretacéio por uma razo simples: sendo que o interrogat6rio judicial nao tem, ele prdprio, um tempo limite de duragdo e tendo também em conta que © préprio serve como momento privilegiado de exereicio do direito de defesa no Ambito de uma detengao, estaria entregue ao critério do arguido detido © tempo usado no exercicio desse direito. Ou seja, em tiltima andlise, condicionar-se-ia 4 vontade do arguido, em parte, a dura- ao de um momento processual, bem como a legalidade da sua detencao. Face ao exposto, da conjugacio dos arts, 28.°, n° 1 da CRP e 141°, n° 1 do CPP com 0 art. 5.°. n.° 1, al. c) da CEDH, re sultariam, a partida, dois entendimentos possiveis — ou 0 prazo da detengdo deve terminar com 0 inicio do interrogatério ou, entéo, com o fim do mesmo (acompa- nhado pela decisiio de validagao ou nao da detengao) -, um dos quais (0 Uiltimo) tem de ser contrariado em defesa da teleologia dos préprios preceitos 8. Consequéncias da Iegalidade da Detencaio Sempre que 0 prazo de apresentaciio do arguido nao seja respeitado, encontrar-nos-emos perante uma situagéo de detengio ilegal, a qual per- mite que o arguido requeira ao juiz da area onde se encontra a providen- cia de habeas corpus em virtude de detencao ilegal. Ambas as situagdes resultam directamente do art. 220.°, n.° 1, al. a) do CPP. A questéo mais importante a discutir é a de saber qual a influéncia da ilegalidade desta detengdo no interrogatério e na sua obrigatoriedade. Um dos primeiros efeitos que decorrem directamente dessa ilegali- dade € a responsabilidade civil do Estado que legitima um pedido de indemnizagao nos termos do art. °,n.° 1, al. a). Associada também a ilegalidade da detengao est a responsabilidade penal de quem deveria 80 Prova Criminal ¢ Direito de Defesa proceder & apresentacio do arguido ao JIC pelo crime de abuso de poder previsto no art. 382.° do CP. Porém, uma tiltima opedo tem de ser tomada: aquela que se prende com a obrigatoriedade do interrogatorio. E, quanto a esta, a jurisprudén- cia das Relagées afirmou, em mais que um acérdao, a ideia de que o interrogat6rio “nao perde a sua obrigatoriedade de realizag4o pelo facto de terem passado mais de 48 horas sobre a captura”!! e de que o mesmo tem de ser feito no mais curto prazo possivel. De facto, atendendo & teleologia do interrogatério que o evidencia como momento privilegiado de exercicio do direito de defesa do arguido detido na fase de inquérito, estranho seria se a violagdo desse mesmo direito através da intempestividade da sua entrega ao JIC acarretasse a consequéncia, mais prejudicial ainda, de fazer precludir a sua obrigatoriedade. Os interesses envolvidos ficam assegurados pelo conjunto de solu- des que o CPP apresenta: os danos sofridos pelo arguido no ambito da detencao ilegal so ressarcidos pelo pedido indemnizatério ao abrigo do art. 225.° do CPP; a diligéncia exigida a quem exerce poderes de auto- ridade é protegida pela incriminagao constante do art. 382.° do CP; a obrigatoriedade de apresentagao do arguido detido ao JIC mantém-se, com a necessidade da sua verificacéio no mais curto prazo possivel ~ decorrente da providéncia de habeas corpus do art. 220.° do CPP — fican- do ressalvado, assim, 0 direito de defesa do grande lesado pela situago de detengao ilegal — 0 arguido. IV. ESTRUTURA E CONTEUDO DO INTERROGATORIO Agora que j analisimos as situagdes em que este interrogatério é obrigatorio, 0 prazo no qual o mesmo deve ser efectivado e o JIC com- petente para dar seguimento ao mesmo, importa tratar com alguma minticia de todos os momentos que o compdem, pois € nesta fase, no préprio decurso do interrogatério, que podem verificar-se as maiores restrigdes ao exercicio dos direitos do arguido que se pretendem salvaguardar. Seguiremos a divisdo, que nos parece acertada, do interrogatério em sete momentos, adoptada em alguma doutrina'?. ido do Tribunal da Relagao de Lishoa de 13 de Novembro de 1990. ° Cir. PauLo Pivro DE ALBUQUERQUE, Comentirio do Codigo de Proceso Penal 4 luz da Constituigdo Portuguesa & da Convencdo Europeia dos Direitos do Homem, © Primeiro Interrogatirio Judicial do Arguido Detido 81 9. O primeiro momento do interrogat6rio prende-se com a identifi cagéo do arguido. De todo 0 conjunto de perguntas que sao feitas pelo JIC, as que dizem respeito a este momento sao as tinicas as quais 0 arguido € obrigado a responder ~ sob pena de incorrer em responsabili- dade penal (art. 359.°, n.° 2 do CP). Esta obrigagao é uma decorréncia dos arts. 61.°, n.° 3, al. b) 141.°, n.° 3 do CPP e dela deve ser informado 0 arguido, bem como das consequéncias da sua violacio. Nenhum problema de maior se colocaria, ndo fosse 0 facto de se exigir a resposta acerca dos antecedentes criminais, razao pela qual ja foi suscitada a inconstitucionalidade de ambos os artigos, relacionada com a violagio da presungio de inocéncia prevista no art. 32°, n° 2 da CRP. O TC adoptou, no Ac. 372/98, uma interpretagio que parece mere- cer acolhimento acerca desta eventual inconstitucionalidade. Nas pala- vras do acérdao: «(...) nlo pode aqui afirmar-se a violacio da presunga0 de inocéncia do arguido: nao se trata agora de utilizar as declaracdes deste como meio que pode influenciar a prova...mas tio somente de recolher elementos indispensdveis sobre a situacao criminal do arguido, uma vez que 0 processo nao esté ainda em condigdes de ter adquirido tais elementos. (...) Com efeito, apés o primeiro interrogatério judicial do arguido, se 0 proceso tiver de continuar, o juiz tem de tomar uma deci so sobre as medidas de coacgio que deverd impor ao arguido e, para tomar tal decistio, é fundamental saber quais sfo os seus antecedentes criminais, uma vez que 0 conhecimento destes nao pode deixar de relevar para a escolha da adequada medida de coaceao processuall.» Embora a argumentacao do TC pareca, neste caso, basear-se funda- mentalmente numa das possibilidades de detengao do arguido ~ a deten- ca em flagrante delito que néo dé lugar a julgamento em processo sumério ~ espelhada pela referéncia & necessidade de se aplicar medida de coaccdo se 0 processo dever continuar, a ideia que Ihe esta subjacente nao €, de todo, desprovida de sentido. Se nos focarmos na ratio do interrogatério e nas consequéncias que dele derivam — a validagao de uma situagao de detengdo e a eventual aplicacio de uma medida de coacgio — é evidente que a resposta a ques- tOes que se prendem com os antecedentes criminais nao produz efeito 2.* Edigiio Actualizada, Lisboa, Universidade Catolica Editora, 2008 pp. 389 ¢ 390; Joror Barrista Goncatves, «A Revisio do Cédigo de Proceso Penal: Breves Notulas Sobre 0 1." Interrogatério Judicial do Arguido Detido ¢ 0 Procedimento de Aplicacao de Medidas de Coaccao», in Revista do CEJ n° 9, 2° Semestre 2008, p. 104, 82 _Prova Criminal ¢ Direito de Defesa algum numa decisdo judicial relativa & responsabilidade do agente, pelo menos directamente. Numa fase em que, para concluir pela necessidade de aplicagao de medida de coacgio, € necessério que se verifique também um dos pressupostos do art. 204.° CPP, facultar ao JIC a possibilidade de conhecer os antecedentes criminais do arguido, sendo que estes indiscu- tivelmente permitem avaliar os pressupostos em causa, afigura-se funda- mental e circunscrito a esse tinico propésito. O passado criminal do detido em nenhum outro aspecto colide com uma avaliagao actual da sua res- ponsabilidade, pelo que tem de concluir-se, como fez 0 TC, pela constitucionalidade dos arts. 61.°, n.° 3, al. b) e 141°, n.° 3 do CPP. 10. O segundo momento = art. 141.°, n.° 4, al. a) — inclui-se no dever do JIC de informar 0 arguido, mais particularmente em relacio aos seus direitos constantes do art. 61.°, n.° | do CPP. O unico problema relevante relacionado com este momento diz res- peito as consequéncias que derivam do incumprimento desse dever por parte do JIC. Sendo omitida ou prestada de forma incompleta essa infor- maco, as provas que eventualmente sejam recolhidas no ambito do depoimento do arguido sao consideradas provas proibidas nos termos do art. 126.°, n.° 3, ndo podendo ser utilizadas"’. Justifica-se esta proibigao de prova em virtude de se considerar uma intromissao ilegitima na pri- vacidade do arguido a recolha do depoimento com auséncia ou incom- pletude de informacio. Quanto a questao de saber se a reafirmagao pelo arguido das suas declara num momento posterior e depois de cumprido o dever de informacao, constitui sanagao da nulidade anterior, a resposta afirmativa pouco acrescenta a solucao do problema, uma vez que, nesse caso, mais do que provas proibidas cuja nulidade é sanada, sempre teremos novas provas, mas desta feita nao proibidas e produzindo os efeitos normais. 11. Também no Ambito do dever de informagio do JIC, prevé o art. 141°, n° 4, al. b) a comunicagio ao arguido dos motivos da detencao. Quanto a detengao em flagrante delito essas razes fazem, em principio, parte do auto de detengao e basta que este seja lido ao arguido nesta fase do interrogat6rio. Diferente sera a situagdo de execugiio de um mandado de detengdo. Neste caso, os factos que motivam a detengao so, mais do © Cfi. Pauto Prvro pe ALBuiQuERQue, Comentdrio do Cédigo de Proceso Penal (..). cit, p. 389. O Primeiro Interrogatério Judicial do Arguido Detido 83 que as circunstdncias que se verificam no momento da mesma, aqueles que motivaram a emissao do proprio mandado. E quanto a estes 0 CPP estabelece uma exigéncia que pode extrair-se, em conjunto, dos arts. 257.°, n° 1, parte final e 258.°, n.° 1, al. c). Uma vez que a exigéncia no primeiro artigo é a de que haja fundadas razes para crer que 0 arguido nao se apresentaria espontaneamente 4 autoridade judicidria e que o se- gundo artigo surge na imediata sequéncia do primeiro, torna-se claro que a exigéncia da al. c) do art. 258.°, n.° 1 é a de que seja feita a fundamen- taco das raz6es que motivam 0 mandado, entre elas a ponderagao acerca da previsibilidade de apresentag%o espontanea do arguido. 12. Diferentes dos factos que motivaram a detengdo sao os concre- tamente imputados ao arguido. Como vimos, os fundamentos da detencaio de um arguido nado se prendem directamente com os factos imputados, até pelo simples facto de, em grande parte das situagdes, 0 inquérito correr contra determinado arguido, investigando-se a ocorréncia dos fac- tos que Ihe so imputados, sem que este alguma vez seja detido. O dever de informagio pelo JIC abrange, assim, 0 conjunto de factos imputados ao arguido e todas as circunstancias de tempo, lugar e modo da sua verificagio que sejam jé conhecidas no momento do interrogatério [art. 141°, n° 4, al. c)], dever esse cuja violacdo constitui irregularidade pro- cessual nos termos do art. 123.° do CPP. Este momento é referido pela doutrina' como aquele em que mais sentido faz a conferéncia entre o arguido e o seu defensor, & qual, no entanto, ¢ tal como reconhece o proprio autor, o arguido tem direito em qualquer momento do interroga- torio. Retira o Autor esta conclusao, por maioria de razao, do art. 143.°, n° 4, Se, nos termos deste artigo e mesmo em casos de criminalidade com grau elevado de gravidade, 0 arguido nao pode ser impedido de conferenciar com o seu defensor antes do interrogatério, néo 0 podera ser, em nenhum caso, durante 0 interrogatério, sendo este, como ja sabe- mos, um dos momento em que se verifica a maior susceptibilidade de violagiio dos direitos concedidos ao arguido. 13. A tiltima das informagdes a que o JIC est vinculado esta pre- vista no art. 141.°,n.° 4, al. d). Para que se respeite na plenitude o direito de defesa do arguido é essencial que este saiba, nao s6 os factos contra * Cfr, Pauto Pesto be ALauovERoUe, Comentirio do Cédigo de Processo Penal (...). cit, p. 390. Prova Criminal e Direito de Defesa os quais deve defender-se, mas também os elementos existentes no pro- cesso que indiciem esses mesmos factos. Por outro lado, nao podemos esquecer-nos de que ainda nos encontramos, na maior parte das veze temporalmente dentro da fase de inquérito, pelo que esté em curso uma investigagao conduzida na totalidade pelo MP. Se, em defesa de impera- tivos constitucionais, hé que informar 0 arguido dos elementos em ques- t20, do outro lado deste conflito de interesses esta a investigagao que nao pode nem deve ser posta em causa pelo JIC. E, pois, dos diversos mo- mentos do interrogatorio, aquele que mais questdes suscita. Da estrutura do art. 141.°, n.° 4 do CPP retira-se directamente uma conclusio: sendo que o dever de informacio af instituido incumbe ao JIC, € este que deve fazer a ponderacio referida na alinea d) acerca dos elementos que podem ou nao ser revelados. Desta decisiio podem recorrer © MP ou 0 arguido, embora com fundamentos diferentes: 0 MP recorrera caso a revelacdo dos elementos escolhidos pelo JIC ponha em causa a investigagio; j4 0 arguido recorrerd apenas nos casos em que haja ele- mentos que nao Ihe tenham sido revelados mas tenham sido usados para fundamentar 0 despacho de aplicaciio de medida de coaccao ou garantia patrimonial, pois € nesse caso que se verifica o prejuizo decorrente da utilizagdo de elementos nao revelados Vejamos, agora, quais os critérios que norteiam a ponderacio por parte do JIC. Uma vez que este interrogatério tem, como jd concluimos, uma fungao essencialmente garantistica e visa permitir ao arguido o seu direito de defesa, mesmo os elementos do processo que indiciam os factos im- putados tém de ser revelados, apenas respeitando limites baseados em interesses que claramente se superiorizem Aqueles que motivam a propria existéncia deste momento processual. Neste sentido, o CPP criou no art. 141°, n2 4, al. d) — bem como o fez no art. 194.°, n° 4, al. b) — um Conjunto taxativo de critérios susceptiveis de serem usados pelo JIC para justificar a opcdo de nao relevar determinado elemento do processo ao arguido. Porém, esses critérios ndo sdo rigorosamente os mesmos nos dois artigos. No caso do primeiro, 0 JIC pode nao revelar elementos se essa revelagao puser em causa a investigagao, dificultar a descoberta da ver- dade ou criar perigo para a vida, integridade fisica ou psiquica ou a liber- dade de participantes processuais ou vitimas do crime (nestas se incluindo também, mas nao exclusivamente, os ofendidos). De acordo com o segundo artigo, o JIC inclui no despacho de apli- cagéo de medida de coac¢%o ou garantia patrimonial os elementos do O Primeiro Interrogatério Judicial do Arguido Detido 85 Processo que nao ponham gravemente em causa a investigag’o, nao impossibilitem a descoberta da verdade ou nao criem perigo para a vida, integridade fisica ou psiquica ou a liberdade de participantes processuais ou vitimas do crime. Sendo que estes dois momentos — a simples reve- lagao ao arguido de elementos do processo e a referéncia feita a estes no despacho de aplicagéio de medida de coacgao ou garantia patrimonial — podem fazer (¢ muito frequentemente) parte do interrogatério, estas apa- rentemente subtis diferengas podem acabar por resultar numa incongru- éncia, 4 primeira vista, incompreensivel © TC analisou a situag%o", e retirou conclusdes importantes. Concluiu essencialmente que a possibilidade de nao serem revelados ao arguido, no primeiro momento, elementos do processo sem que essa opcao respeite os limites mais apertados do art. 194.°, n° 4°, al. b) — porem gravemente em causa a investigagio ou impossibilitarem a desco- berta da verdade — tem de redundar na inconstitucionalidade do art. 141 ° n 4, al. d) assim aplicado. Com efeito, a concretizagao da justificag: usada para que certos elementos nio sejam revelados ao arguido, nao é suficiente se tiver apenas em conta a possibilidade de se colocar em causa a investigacao. No entendimento seguido pelo TC, violar-se-ia 0 art. 28.°, n° | da CRP se se recorresse a um critério mais vago do que aquele que € prescrito no art, 194., n 4, al. b). J4 quanto & parte final que € igual em ambos os artigos conclui Paulo Pinto de Albuquerque" que a expresso «criar perigo para a vida, integridade fisica ou psiquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vitimas do crime> isenta de proteccio algumas situagdes que a justificariam, nomeadamente respeitantes a crimes patrimoniais ou contra a autodeterminagao sexual e viola, assim, os arts. 25.°, n.° 1, 26.°, n° 1 e 62.°, n.° 1 da CRP nos suas vertentes «integridade moral», «livre desen- volvimento da personalidade» e «direito a propriedade privada». De facto, no se justificaria, por exemplo, que no caso de crime de abuso sexual de criangas (art. 171.° do CP), fossem revelados ao arguido elementos do processo que pusessem em causa a autodeterminagao sexual das vitimas, sendo esse o proprio bem juridico protegido pela inctiminagio do art. 171.° do CP, embora fosse esse o resultado da aplicacao restrita do art. 141.°, n.° 4, al. d) do CPP. Acolhemos, neste caso, 0 entendimento Acérdiio TC 416/205 © Acérdiio TC 607/2003, "© Cfi. Pavto Pivto pe ALsuioueKaue, Comentdirio do Codigo de Processo Penal (...), cit. p. 394. 86 Prova Criminal e Direito de Defesa do referido Autor que nos parece justificado e coerente & luz dos inte- resses em causa, assumindo uma opedo final quanto ao art. 141.°, n.° 1, al. d) do CPP, que deve ser lido nestes termos: «...elementos do proceso que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunic puser gravemente em causa a investigacio, nao impossibilitar a descober- ta da verdade nem criar perigo para a vida, a integridade fisica ou psi- quica ou a liberdade, autodeterminagao sexual ou patriménio dos parti- cipantes processuais ou das vitimas do crime». 14, Depois de informado o arguido nos termos do art. 141.°, n.° 4 do CPP, é altura de assegurar 0 contraditério e o direito de defesa, pelo que Ihe é dada a oportunidade de se pronunciar sobre aquilo que entender relevante. Quanto a estas declaragdes a liberdade € total, na medida em que este preserva na plenitude © seu direito ao siléncio [art. 61.°, n.° 1, al. d) do CPP]. Assim sendo, a escolha sobre a prestacéo ou nio de declaracées pertence tinica e exclusivamente ao arguido e, bem assim, entendendo presta-las este é totalmente livre de seleccionar, de entre os factos que Ihe sdo imputados e os elementos do processo que os indiciam, aqueles sobre os quais deve pronunciar-se. 15. O diltimo dos momentos no que ao interrogatério diz respeito é a intervengao do MP e do defensor. Ainda que, tecnicamente, esta audi- gao s6 acontega, por norma, depois de findo o interrogatério — tal como dispde o art. 141.°, n° 6 ~ a mesma é prevista pelo artigo pelo que deve considerar-se inclufda no momento processual denominado «primeiro interrogat6rio judicial do arguido detido». Embora a presenca do MP e do defensor seja exigida pelo art. 141°, n.° 2 e a sua auséncia gere nulidade insandvel do acto decorrente do art. 119, als. b) e c) do CPP, a sua participagdo no interrogatério é, regra geral, muito limitada, no podendo estes interferir no mesmo (excepto para arguigao de nulidades) a nao ser, tal como referimos, no final do acto, momento em que podem dirigir ao JIC pedidos de esclarecimento que entendam que devem ser feitos ao arguido. Sobre este requerimento e sobre a relevancia das perguntas suscitadas decide o JIC por despacho irrecorrivel. Concluida a exposicao acerca dos momentos que compéem o interroga- t6rio importa, para finalizar, referir uma tltima caracteristica deste proce- dimento que se relaciona directamente com a sua ratio: tal como afirma O Primeiro Interrogatorio Judicial do Arguido Detido 87 Paulo Pinto de Albuquerque'’, quando o interrogatério aconteca na fase de inquérito (ressalva nossa), em nome da estrutura acusatéria do processo, o JIC nao pode, ainda que dentro de um momento processual cuja direccao assume em nome das garantias e das liberdades fundamentais do arguido, praticar actos que, dentro da fase processual em que este momento se insere, sio da competéncia do titular da mesma, neste caso 0 MP. Respeitando-se este principio, o JIC nao pode, neste caso, ordenar diligéncias de prova e deve decidir apenas com base nos elementos de prova ja constantes dos autos, tanto sobre a validade da detengdo, como sobre a eventual aplicacio de medida de coaccao ou garantia patrimonial. TIA V. APLICACAO DE MEDIDA DE COACCAO OU DE GARA PATRIMONIAL INSERIDA NO INTERROGATORIO Tal como referimos atrds, situacdes hé em que, ou porque o arguido foi detido em flagrante delito mas sem preencher os requisitos para jul- gamento em processo sumario, ou porque, no ambito da investigagdo por parte do MP, se constatou a existéncia de circunstancias de facto que fundamentam a aplicagao de medida de coaccao ou garantia patrimonial, © requerimento de aplicagao das mesmas é feito pelo MP logo no primei- ro interrogatério judicial e ai deve ser decidido Porém, como também ja concluimos, os factos que fundamentam determinada detengo podem nao coincidir com aqueles que sio exigidos para se aplicar uma medida de coacgiio. Nos termos do art. 204.° do CPP, € necesséria a existéneia de pericula libertatis, ou seja, € necessario que a liberdade do arguido crie perigo de fuga, de perturbacao do proceso, perigo para a prova, perigo de continuacaio da actividade criminosa ou de perturbagao da ordem e tranquilidade ptiblicas. Ora, se atentarmos nos elementos que devem constar da fundamentacao do despacho de aplica- ¢ao da medida, de acordo com 0 art. 194.°, n.° 4, al. d) do CPP, o JIC deve referir os factos que preenchem aqueles pressupostos. Por outro lado, é evidente que, para que o contraditério seja assegurado, tal como refere 0 art. 194°, n° 3 do CPP, o arguido tem de ser ouvido previamente e, acrescentamos nés, sobre todos os factos que podem justificar a aplicagao da medida. ” Chr, Pato Prvto DE ALBUQUERQUE, Comentario do Cédigo de Processo Penal (...), cit, p. 394, Prova Criminal e Direito de Defesa Contudo, importa saber em que momento do interrogatério essa audic&o deve ser realizada, havendo duas opgdes possiveis: ou se tran mitem ao arguido também estes factos no momento em que lhe sao transmitidos os factos que lhe sio imputados, ou se procede a uma sepa- ragdo entre os dois actos, optando-se por tratar autonomamente o incidente de aplicagio da medida apenas apés o fim do interrogatério. Ja sabemos que, nos termos dos arts. 122.° e 123.° do CPP, as irregularidades ou nulidades processuais em causa, quando arguidas, in- validam 0 acto em causa, bem como os actos que Ihes sejam subsequen- tes e deles dependam, pelo que, somos forcados a concluir, uma medida de coaccao aplicada no Ambito de um interrogatério invélido (cuja invalidade nao fosse sanada pelo juiz) no poderia subsistir. Assim sendo, optamos pela segunda possibilidade: € preferivel que se conclua todo o procedimento referente ao interrogatério do arguido naquilo que diz res- peito a sua detengao, com todas as limitagGes referentes a participagao do MP e do defensor que ja atras indicémos'*, para que, posteriormente, se entre numa discuss sobre a medida de coacgao ou garantia patrimonial em que, com respeito pelo contraditério, seja dada a palavra também ao defensor e ao MP. CONCLUSAO Na reforma de 2007 0 art. 141.° sobre o interrogatério judicial do arguido detido sofreu algumas alteragdes relevantes que pretendemos explanar e discutir. Com efeito, sempre que um arguido é detido — em flagrante delito ou fora dele ~ e niio preencha as condigées necessérias para ser julgado na forma suméria de processo, 0 acto que levou A sua detencao tem de ser avaliado pela entidade que funciona, no processo, como garante das suas liberdades ~ 0 JIC -, independentemente do objectivo da propria detenciio e resulte ele ou no de mandado de um juiz. O JIC deve ser, nos termos da lei, 0 competente para o processo em causa, apenas podendo esta regra ser contornada, em nome do interesse do préprio detido, para que a avaliagio da sua detencao seja realizada num periodo de tempo mais curto do que aquele que se poderia prever para avaliagio pelo JIC competente. Contudo, em nenhum caso pode o pitulo TV, ponto 15. © Primeiro Interrogatorio Judicial do Arguido Detido 89 prazo de 48 horas ser excedido no perfodo de tempo que medeia entre a detengdo e o inicio do interrogatério, sendo que, caso se veri que esta situagdo, 0 CPP e o CP proporcionam meios de salvaguardar os diversos interesses violados nos termos em que descrevemos. Iniciado o interrogatério, ha agora que respeitar uma determinada sequéncia de actos a praticar pelo JIC que, neste momento processual, estd vinculado a um dever de comunicagao para com o arguido. Os factos que o CPP indica sio-Ihe comunicados para que, posteriormente, sobre eles possa, se entender que o deve fazer, pronunciar-se. Com ou sem esclarecimentos requeridos pelo MP ou pelo defensor do arguido, o JIC decide sobre a validade da detengio e, sendo caso disso, entra-se entio na discussio relativa 4 aplicagéo de determinada medida de coacgao ou garantia patrimonial requeridas pelo MP (se nos encontrarmos na fase de inquérito) ou determinada oficiosamente pelo JIC (embora com respeito obrigat6rio pelo contradit6rio, noutra fase processual). Nao ¢, evidentemente, um regime isento de criticas. No entanto, assim esperamos, todas as interpretagdes seguidas neste comentario per- mitem conciliar da melhor forma as solugdes adoptadas na lei 48/2007 & harmonizé-las, por um lado, com aquelas que sao as traves mestras do Direito Processual Penal segundo a economia do CPP vigente e, por outro lado, com todos os imperativos constitucionais a que este ramo do direito esta vinculado, fundamentalmente no que & restricdo de direitos, liberdades e garantias do arguido diz respeito.

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