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F OTO G R A F I A E N A RC I S I S M O
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Margarida Medeiros

FOTOGRAFIA
E NARCISISMO
O AUTO-RETRATO CONTEMPORÂNEO

A S S Í R I O & A LV I M
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© ASSÍRIO & ALVIM


RUA DE SÃO NICOL AU, 119-4. º, 1 1 0 0 -5 4 8 LISB OA
E MARGARIDA MEDEIROS (2000)

EDIÇÃO 599, NOVE MB RO 2 0 0 0


ISBN 927-37-0606-7
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ÍNDICE

Nota prévia ........................................................................................ 9


Agradecimentos .................................................................................. 11
Introdução ......................................................................................... 13

I. Arte, representação e mimesis do Eu:


O retrato enquanto «Nó antropológico» .................................... 33
I. Pintura e Fotografia ............................................................. 41
II. O Retrato Pintado e o Retrato Fotográfico ......................... 45

II. Identidade e Imagens do corpo ................................................ 57


I. Referências Mitológicas ....................................................... 61
I.I. O Corpo Não-Reconhecido: Narciso ..................... 61
I.II. O Corpo Mutante: a Métis grega .......................... 66
II. Referências Filosóficas ......................................................... 71
II.I. Os Olhos .............................................................. 71
II.II. O Rosto e o Corpo. Teorias Fisiognomónicas ...... 73

III. O Corpo Psicanalítico e a Formação do Eu ........................... 79


I. O conceito de narcisismo: Freud ......................................... 81
II. O «Ego-Pele» de Didier Anzieu e os Dados Etológicos ....... 85
III. A «Cultura do Narcisismo»: Lasch e Kohut ....................... 93

IV. Fotografia e Auto-Representação ............................................ 99


I. O «Duplo-Espelho» na Arte: o Duplo-Sombra ou
Espelho e o Fantasma da Morte ................................... 101

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II. O Eu e a sua Fragmentação ................................................ 107


III. Fotografia e Performance ................................................... 113

V. Cindy Sherman: Identidade e


Deformação da Imagem do Corpo ................................................. 119
I. Uma Fantasia de Infância: «Untitled Film
Stills» (1977-80) .......................................................... 121
II. Um Mundo de Mulheres..................................................... 125
III. A Panela Mágica e a Máquina Fotográfica ......................... 137
IV. Mimesis e Metamorfose: «History Portraits» ...................... 141

Conclusão .......................................................................................... 147


Anexos ............................................................................................... 155
Entrevista com Cindy Sherman .............................................. 155
Entrevista com Duane Michals ............................................... 161
Entrevista com Florence Chevalier ........................................... 167
Bibliografia ....................................................................................... 171

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NOTA PRÉVIA

Este livro teve como ponto de partida a minha tese de Mestrado,


feita no Departamento de Ciências da Comunicação da Univer-
sidade Nova de Lisboa, sob a orientação do Professor Doutor João
Mário Grilo.
Por essa razão, este livro tem certas características que resultam
do primitivo enquadramento académico da maior parte do texto.
Embora tenha optado por traduzir as citações que se inserem no texto
principal, com o intuito de facilitar a leitura, as citações em rodapé
permanecem de acordo com o original consultado.
Alguns aspectos posteriormente explorados, e mais concretamente
as entrevistas que se incluem no final do livro, foram possíveis com o
apoio do Serviço de Belas-Artes da Fundação Calouste Gulbenkian e
do Centro Português de Fotografia.

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AGRADECIMENTOS

Quando se faz um livro, nunca se pode estar só, a não ser nos
momentos de escrevê-lo. Quero aqui agradecer aos que de uma ou de
outra forma me ajudaram.
Primeiro que tudo, agradeço ao Professor Doutor João Mário
Grilo, que orientou a minhe tese de Mestrado, dando-me estímulo e
proporcionando-me um interlocutor imprescindível, tão rigoroso
quanto crítico, mas sobretudo um espírito livre.
Depois, ao meu amigo José Gabriel Pereira Bastos, que muito
me ajudou, discutindo comigo as minhas ideias, e devolvendo-me a
sua visão muito especial das coisas.
A todos os outros deixo aqui também o meu sincero agradeci-
mento e sobretudo à Ruth Rosengarten, que teve paciência para tudo
ler e comentar, com o rigor que lhe é habitual.

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Para o António e o Simão


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I N T RO D U Ç Ã O

Eu não sou eu nem sou o outro,


Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
Mário de Sá-Carneiro, «Indícios de Oiro»

Desde sempre me fascinou a relação que nós, seres humanos,


mantemos com a nossa imagem. Não pode ser alheio a esse fascí-
nio o facto de ter nascido num tempo em que a fotografia, como
prática social e «arte média» (Bourdieu), era já um dado adquirido
há mais de um século.
Nos últimos quarenta anos, uma boa percentagem de artis-
tas, pintores, fotógrafos, ou de artistas que passaram da pintura
para a fotografia, tende a centrar o seu trabalho criativo em estra-
tégias auto-representativas. Entre eles figura, em primeiro plano,
o pintor inglês Francis Bacon, cuja obra pouco se afastou da
representação de si. Gilbert and George, usando meios mais
mediáticos, como a fotografia e o cartaz, desenvolveram também
uma boa parte da sua obra a partir das suas respectivas figuras.
São célebres os auto-retratos de Andy Wharol e Mapplethorpe, para
citar referências mais pontuais a esse nível. Mas mais recentemen-
te, nomes como Cindy Sherman, Jo Spence, Nan Goldin, Jean le
Gac encontram na auto-representação pela fotografia e pelo vídeo
o único universo adequado às suas estratégias artísticas.
Esta movimentação auto-referencial do discurso artístico não
é específica das artes plásticas nem da fotografia. Como refere
Cristopher Lasch (Lasch 1978), um movimento paralelo surgiu
na literatura, com a eclosão do diário e da escrita jornalística;
igualmente na dança e no teatro a figura do Eu se afirma: o coreó-
grafo é simultaneamente dançarino e figurinista, e muitas vezes

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dança sozinho no palco; o monólogo teatral ou a peça para um


único actor, criada por este, são também fenómenos cada vez
mais recorrentes1.
Os mais preocupados em encontrar classificações para estes
comportamentos falam de «cultura do individualismo» (Lipo-
vetsky), de «tiranias da intimidade» (Sennett); no entanto, estas
designações apenas descrevem factos, mas não nos permitem
compreendê-los. Para compreender é necessário interrogar os fac-
tos descritos, integrá-los num contexto, procurar a necessidade
do seu acontecer bem como as motivações a que correspondem,
e, sobretudo, procurar uma visão globalizante, com os riscos que
isso implica de definição de perspectiva e de modelo.
A dominância crescente da auto-representação na arte con-
temporânea só pode ser respondida fazendo apelo a áreas do
conhecimento habitualmente exteriores à história da arte, pois é
necessário enquadrar essa questão numa reflexão mais geral sobre
o papel da representação do corpo na afirmação da identidade.
Este caminho levou-me a interrogar a mitologia grega, mas
também a filosofia. Um outro elo tornava-se necessário: o que
nos diz a psicologia, nomeadamente a psicanálise, cujos conceitos
centrais são o de pulsão e de ego, sobre a percepção do corpo?
Um dos aspectos que me parecem essenciais no estudo da
auto-representação é compreender a relação entre a interrogação do
sujeito sobre si mesmo e o investimento em representações do
corpo. Pareceu-me assim importante explorar aspectos psicológicos
das obras, pois considero que uma obra é sempre muito mais do
que uma ilustração intelectualizada de algo que é reflectido teorica-
mente, e não pode ser reduzida a um trabalho racional. A obra de
Cindy Sherman pareceu-me um caso particularmente interessante
1 Em Portugal, Jorge Molder, Gaetan, Ana Isabel Miranda Rodrigues, Daniel Blaufuks,

Júlia Ventura, Helena Almeida, são exemplos de estratégias auto-representativas na arte; Vera
Mantero e Francisco Camacho na dança, Filipe Crawford e Lúcia Sigalho no teatro.

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desse ponto de vista. A obsessão com a corporalidade e a sua postu-


ra, associadas ao facto de que o teatro em torno deste tema tem
como actor único o próprio encenador, estão de tal forma ligadas
com imagens de destrutividade que tornam esta obra paradigmáti-
ca da interrogação pós-moderna sobre os limites do Eu, e transcen-
dem os aspectos ideológicos que têm sido os mais analisados.
De modo algum me parece que a arte possa ser entendida
como um produto patológico. Se assim fosse, a compreensão da
acção humana teria de seguir o mesmo rumo – um rumo absur-
do. Mais interessante é compreender o acto criativo fora das ideo-
logias racionalizantes que o cercam e na proximidade com as
emoções próprias ao ser humano, que o desenvolve. Sabemos
desde Freud que o acto não segue necessariamente as ordens da
vontade consciente, e que esta é apenas uma ínfima parte da
extrema riqueza do psiquismo humano. Quando Rimbaud escre-
veu «Je est un Autre», não estava certamente a ilustrar Freud.
Falava por si mesmo da percepção interna de uma cisão irreversí-
vel de que acabara de se aperceber, e a cuja dor, desde aí, a arte do
século xx não tem deixado de se referir.
A arte, como mais nenhuma forma de discurso, leva sempre
adiante no equacionamento das questões fundamentais. E longe
de ser essa ilustração das ideias de uma época, ela está antes do
lado da anunciação dos seus sentimentos mais urgentes. A arte é
epifânica; move-se fora dos territórios logóicos e racionalizantes,
fora da conceptualização. Por essa razão me parece claro o ponto
de vista de Peter Fuller (Fuller 1980: 26-27) quando diz que
«uma parte importante daquilo que torna uma obra de arte dura-
doura tem a ver com a natureza da sua relação com elementos da
experiência que nunca mudam, ou mais ainda, com mudanças
muito lentas e, ao fim e ao cabo, consideradas constantes».
Quer isto dizer que estamos sempre a falar do mesmo? Sim e
não. Sim, porque essa componente eterna e universal da obra só

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o é porque se refere a emoções também elas ontogeneticamente


eternas e universais. Não, porque cada obra remete para uma sa-
liência particular de certos aspectos emocionais, sociais e políti-
cos, mais relevantes na cultura que habita, no tempo em que se
move. Por essa razão, a tão discutida oposição entre forma e con-
teúdo parece hoje obsoleta.
O facto de me ter socorrido fundamentalmente da teoria psi-
canalítica e de certos dados antropológicos, talvez mais do que da
semiótica da imagem, reside na natureza do objecto: não me pare-
ce poder abordar a temática da auto-representação sem a remeter,
em última análise, para a análise da dimensão especular enquanto
estruturadora do indivíduo, e, por conseguinte, sem considerar
qualquer exercício lúdico ou simbólico sobre a auto-imagem
como remetendo para essa questão fundamental à natureza huma-
na: quem sou Eu?
Mas mais do que concluir um caminho, interessou-me abri-
-lo, para que dessa abertura possam resultar críticas e investigações
futuras, sobretudo em Portugal.

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Herbert Bayer, Auto-Retrato, 1932


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(1988)
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(1988)
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(1988)
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Cindy Sherman, Untitled, #153, 1985


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Cindy Sherman, Untitled, #137, 1984


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Cindy Sherman, Untitled, #179, 1987


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Cindy Sherman, Untitled, #116, 1982


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Jo Spence
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Jo Spence
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Jo Spence
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Nan Goldin, Nan after being battered, 1984


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Nan Goldin, Nan and Brian in bed, New York City, 1983
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Cindy Sherman, Untitled, #205, 1989


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Cindy Sherman, Untitled, #156, 1995


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Cindy Sherman, Untitled, #189, 1989


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A R T E , R E P R E S E N TA Ç Ã O E
M I M E S I S D O E U : O R E T R AT O E N Q U A N T O
« N Ó A N T RO P O L Ó G I C O »
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O retrato é, desde as origens da arte, uma das suas mais


importantes determinações. Desde as grutas de Altamira e
Lascaux, às representações sociais e narrativas da pintura egípcia,
ao desenho sumério, à escultura e gravura gregas, a representação
do outro ou de si mesmo parece estar ligada à condição da arte.
Esta representação começa por ser determinada pela consciência
da morte (Morin 1973), pela noção de brecha ou de falha sentida
pelo ser humano, a partir do momento em que se percepciona a
si próprio como um ser finito, que pode desaparecer um dia.
Ao mesmo tempo, a morte é contemporânea da interrogação
sobre o nascimento e o sentido da vida, criando um percurso his-
tórico à volta do mistério da criação e da desaparição. Ou criando
a própria ideia de mistério, como forma de repor uma certa
ordem perdida. Assim poderá ter nascido o mito, a magia e a
arte, como formas possíveis de reajustamento de um ser atingido
pela desagregação interior, e cujo principal recurso técnico é a cria-
tividade – a sua capacidade de criar respostas, pensamento, ima-
gens, mitos, túmulos, orações: «É a ordem humana que se desen-
volve sob o signo da desordem.»2
Se considerarmos ainda hoje a ideia de Freud, de que a civili-
zação é o resultado de uma constante luta das pulsões de vida
contra as pulsões de morte, teremos de aceitar que a principal
tarefa do homem, desde o momento em que surge a consciência
de si, é a de permanentemente produzir objectos com os quais

2 Morin 1973: 25.

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possa esquecer a sua condição de mortal3. São compreensíveis,


neste contexto, as palavras do pintor Francis Bacon, quando
interrogado acerca da inspiração para os seus quadros: «na verda-
de eu não tento dizer alguma coisa, eu tento fazer alguma coisa»4.
É este fazer de objectos, que vemos surgir na história desde as
grutas de Altamira, que revela mais profundamente o sentido das
principais interrogações do ser humano sobre si próprio e que
move a arte.
A representação do Outro ou de si surge pois como manifes-
tação de uma presença no mundo, como ponto de vista sobre
esse mundo, mas também como forma de potencialmente o
recriar ou restaurar. Representar é sempre revolucionar. É sempre
uma forma de protesto contra o desvanecimento do Ser no
tempo. Num conhecido texto, André Bazin salienta que a função
primordial da estatuária religiosa era a de «salvar o ser pela apa-
rência»5. A crença na imagem radica assim numa necessidade
mágica, que identifica objecto com o seu modelo e procura repor
a integridade do Ser contra a ameaça da sua dissolução.
Didi-Huberman estabelece uma relação particular entre o
retrato e a morte: «A questão do retrato começa talvez no dia em
que, perante o nosso olhar aterrorizado, um rosto próximo de
nós cai no chão para não mais se levantar (…) A questão do
retrato começa talvez no dia em que o rosto diante de mim

3 Esta condição da criatividade deve ser vista apenas como uma condição, incontornável,

da existência humana, tal como salientava já Edgar Morin (Morin 1973), e não como negativi-
dade existencial: «… tudo nos indica que o Homo Sapiens é atingido pela morte como por uma
catástrofe irremediável, que vai trazer consigo uma ansiedade específica, a angústia ou horror da
morte, que a presença da morte passa a ser um problema (…) que trabalha a sua vida. Tudo nos
indica igualmente que esse homem não só recusa essa morte, mas que a rejeita, transpõe e resol-
ve no mito e na magia»: Morin 1973: 27.
4 Sylvester 1975: 198. Porventura será essa a razão pela qual Francis Bacon recusa propósi-

tos ideológicos para a sua pintura: «I want to do very, very specific objects, though made out of
something which is completely irrational from the point of view of being an illustration.»:
Sylvester 1975: 197.
5 Bazin 1945: 14.

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começa a não estar mais diante de mim porque a terra começou a


devorá-lo.» Por essa razão, este autor considera o retrato um «nó
antropológico»6, conceito que nos surge essencial numa aborda-
gem integrativa.
Na história da arte, o retrato propriamente dito, tomado no
sentido da representação figurativa, mais ou menos realista, mais
ou menos abstracta, do outro ou de si mesmo, ocupa um lugar
específico. É sustentado por convenções ideológicas historica-
mente determinadas e serve objectivos também determinados7.
A sua história, história de um movimento entre a introspecção e
a extrospecção, é marcada por uma certa ideia de mimesis,
enquanto esta pode ser vista como o processo impulsivo de imi-
tar, não a realidade, mas uma sua representação.
Esta pulsão mimética foi desde a Antiguidade objecto de refle-
xão filosófica.
Em Platão, nomeadamente no capítulo x da República, a
mimesis, condição da arte, é vista como astúcia que se opõe à
razão (noesis), e através da qual o sujeito se pode deixar envolver
emotivamente8. Platão considera a arte da mimesis, indissociável

6 «Commençons donc par ne pas interroger le portrait en tant que “genre” – je veux dire

en tant qu’espèce traditionelle, éminente, du genre “Beaux-Arts”. Le portrait fait question pour
nous d’abord par qu’il se manifeste comme un noeud anthropologique (sublinhado nosso). La
définition courante du portrait en tant que représentation ressemblante d’une personne existante
— cette définition ne nous est d’auncun secours, dans la simple mesure où les pratiques concrè-
tes généralement désignées sous le terme de “portraits” tissent chacune d’incroyables tresses con-
tradictoires de représentations et de présences, de ressemblances et de dissemblances, d’êtres et
d’existences, sans compter le tyrannique petit labyrinthe que forme à lui seul le mot de “person-
ne”»: Didi-Huberman 1991: 6.
7 Objectivos que variam de acordo com a conjuntura histórica, isto é, ideológica, política

e económica.
8 Platão: «A arte de imitar está bem longe da verdade»: 598c; «o criador de fantasmas, o

imitador, segundo dissemos, nada entende da realidade, mas só da aparência»: 601c; «… o imi-
tador não tem conhecimentos que valham nada sobre aquilo que imita, mas (…) a imitação é
uma brincadeira sem seriedade»: 602b. A oposição que o filósofo estabelece entre cópia e simula-
cro reside no facto de que a cópia procede de um modelo ou arquétipo, permitindo pois o acesso
a este; o simulacro, sendo uma cópia da cópia é falsidade pura, é pura ilusão: a partir deste é
impossível o acesso à Ideia ou à Verdade, já que diante da imagem de uma mesa, por exemplo,
estamos apenas diante de uma imitação de uma cópia do modelo – abstracto – de mesa.

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da pintura, como um processo enganador e perigoso para a alma,


dando-lhe a designação de simulacro – «cópia da cópia».
Na Retórica e na Poética de Aristóteles surge outra tentativa
de teorização filosófica deste processo. Para Aristóteles, a mimesis
é um processo natural da arte, pelo qual pretendemos imitar
acções: ou por excesso – idealizando, caso da tragédia; ou por
defeito – ridicularizando, caso da comédia9. O prazer de imitar
viria da necessidade de encontrar exemplos, ou de salientar certos
aspectos da realidade. Numa análise do conceito de mimesis em
Aristóteles, Derrida (Derrida 1971) considera que o «mimema»
não é a própria coisa (porque é uma representação) nem comple-
tamente outra (porque se referencia a ela ostensivamente)10. Se
seguirmos Derrida através desta sugestiva e paradoxal definição,
encontramos uma componente utópica na imitação, ao mesmo
tempo que uma necessidade incontornável de referenciação ao
real. Imitar é pois referir, mas também compor e transformar.
O retrato possui um estatuto mimético particular, já que
usando uma legenda, ou outro tipo de identificação, define clara-
mente a pessoa a que se refere. O retrato pintado foi durante
séculos a forma mais perfeita de desenvolver a relação mimética
dos sujeitos consigo próprios e com os outros. Ao encomendar
um quadro, e ao requerer verosimilhança, o retratado pressupõe
ser de alguma forma favorecido, sugerindo uma relação de sujei-
ção entre o pintor e ele próprio. São conhecidos os casos em que
essa idealização parece posta em causa, levando à rejeição do
retrato por parte do retratado: quando Inocêncio X diz a Velás-

9 «Imiter est naturel aux hommes et se manifeste dès leur enfance (l’homme diffère des

autres animaux en ce qu’il est très apte à l’imitation et c’est au moyen de celle-ci qu’il acquiert
ser premières connaissances) et, en second lieu, tous les hommes prennent plaisir aux imita-
tions»: Aristóteles: 1448 b 20.
10 Daí que «la mimesis ne procure le plaisir qu’à la condition de donner en acte ce que

néamoins ne se donne pas en acte, seulement dans son double très ressemblant, son mimème»:
Derrida 1971: 26.

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quez que o seu retrato é «troppo vero», é porque algo naquela


imagem escapa à idealização pretendida.
A definição paradoxal de Derrida (e de Aristóteles) parece
encontrar aqui o seu sentido: a virtude e o pecado da mimesis
estão nesse intervalo entre não ser a própria coisa nem completa-
mente outra. E é neste intervalo que se dão os desentendimentos,
porque é nele que se instala a subjectividade e a (re)criação.
Este aspecto, mais estritamente psicológico, da relação entre
arte e mimesis, é salientado por Bazin. Se a evolução da arte e da
civilização libertaram as artes plásticas da sua componente mági-
ca, permitindo a diferenciação entre imagem e modelo, nem por
isso a arte deixa de ser uma forma de salvar este último de uma
«segunda morte espiritual», uma vez que se trata, a partir do
Renascimento, da «criação de um universo ideal à imagem do
real e dotado de um destino temporal autónomo». Portanto, a
história das artes plásticas «não é somente a da sua estética, mas
em primeiro lugar a da sua psicologia», isto é, a da semelhança ou
do realismo (Bazin 1945: 14). Esta relação estreita entre a arte e
uma certa psicologia da semelhança, que é em si mesma «inestéti-
ca», determina a relação do homem com a representação a partir
das convenções realistas proporcionadas pela perspectiva e mais
tarde pela fotografia: «A necessidade de ilusão não deixou desde o
século xvi de trabalhar a pintura interiormente. Necessidade
totalmente mental, inestética em si mesma, cuja origem só se
pode ir buscar à mentalidade mágica, mas que desorganizou pro-
fundamente o equilíbrio das artes plásticas.» (Bazin 1945: 15.)

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I
PINTURA E FOTOGRAFIA

Tem-se colocado muito, desde o aparecimento da fotografia,


a questão da sua relação com a pintura, bem como da diferença
dos seus conteúdos. Tanto quanto a história nos permite apurar,
alguns dos artistas contemporâneos da fotografia foram desta
grandes entusiastas – caso de Degas, Delacroix, Ingres, Fantin-
-Latour –, enquanto outros foram ferozes detractores ou caricatu-
ristas – caso de Courbet e Baudelaire, por exemplo. A perturba-
ção sentida pelos pintores face à similitude permitida pelos pro-
cessos fotográficos está largamente documentada, tendo sido
objecto de acesa polémica desde os anos 40 e 50 do século passa-
do. Curiosamente, a luta pelo reconhecimento da fotografia
como arte é contemporânea da luta dos pintores realistas (como
Courbet) pela aceitação da sua pintura. A obra de Aaron Scharf,
Art and Photography (1968), dá-nos conta dessa conturbada rela-
ção, como também a obra de Gisèle Freund, Photographie et
Société (1974).
Concretamente Aaron Scharf desilude-nos quanto a uma
certa atitude mítica relativa à pintura, na sua relação com a foto-
grafia. Em lugar de demonstrar a forma como a fotografia veio
roubar lugar à pintura «cópia da natureza», impulsionando esta
em novas direcções, o autor estabelece neste livro a forma como a
fotografia e a pintura, desde o primeiro dia do aparecimento
daquela, se influenciaram uma à outra e obedeceram às mesmas
convenções.
Isto permite-nos ultrapassar falsas ideias sobre a descontinui-
dade estilística e composicional entre o retrato na pintura e na
fotografia. Scharf mostra, comparando dois retratos de Charles

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Baudelaire, um de Nadar («Retrato de Charles Baudelaire», 1859)


e outro de Manet («Retrato de Charles Baudelaire», 1865), como a
pose é sensivelmente a mesma, o olhar idêntico, apenas os traços
do esboço (trata-se de um esboço a carvão) diferenciam mais clara-
mente o desenho da fotografia. O autor conclui, por diversas pro-
vas obtidas no estudo biográfico de Manet, que este terá mesmo
usado a fotografia de Nadar como modelo para o seu desenho.
Não é caso único, quer nos pintores desta época quer parti-
cularmente em Manet. A investigação sobre a circulação, em
França, de imagens da execução do Imperador Maximiliano no
México, confirma-nos este uso, por parte dos pintores, de foto-
grafias como modelo do seu trabalho (Scharf 1968: 28). Este
recurso implica não apenas uma alteração na relação do pintor
com os seus modelos, que passam a poder estar ausentes, e a evi-
tar as longas horas e dias de pose; implica a integração na pintura
de um certo dispositivo «instantâneo», isto é, uma certa forma de
composição que remete para a noção de instantâneo fotográfico.
A noção de instante é um dos paradoxos estruturantes da
fotografia: esta, ao paralisar o instante, permite a visão analítica
(atomizada) da duração, e portanto a consciência do tempo como
sucessão de instantes. Um caso comentado na época é o quadro
«Autour du Piano» (1884) de Fantin-Latour. Um grupo de oito
homens encontra-se à volta do piano; um toca, olhando de lado,
outros conversam, outros são «apanhados» em pensamentos soli-
tários. E assim foi comentado este quadro no «Journal Amusant»,
em 1885: «A audiência está reunida à volta do piano. Cena ínti-
ma: Poderosa interpretação da natureza. Mas com um defeito:
todos eles surgem fixados naquela pose provocada pelo “esperem
um segundo” comandado pelos fotógrafos.»11 Ingres é mesmo

11 Cit. por Scharf 1968: 28. Sobre as relações de contágio entre fotografia e pintura, ver

também Van Deren Coke 1972.

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caricaturizado por Nadar, na exposição do «Salon» de 1857, cor-


rendo atrás de uma máquina fotográfica. Um bom exemplo do
olhar fotográfico na pintura é «Ludovic Lepic et ses filles dans la
Place de la Concorde» (1870), de Edgar Degas, ou «Le Tub», do
mesmo Degas, sobretudo se confrontado com a fotografia
«Marthe au tub» (1908), de Pierre Bonnard.
O que nos mostra a análise de Scharf, é que as convenções da
representação são idênticas, e obedecem ao mesmo dispositivo
mimético em termos composicionais e estilísticos. Talvez por isso
seja mais prudente, em vez de falarmos de olhar fotográfico, que
parece não ser específico da fotografia, falarmos de prática foto-
gráfica e de cultura fotográfica.

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II
O RETRATO PINTADO E O RETRATO FOTOGRÁFICO

Se o retrato pintado foi durante muitos séculos o principal


recurso de referência especular, a fotografia, a partir do primeiro
daguerreótipo (datado de 1839), vem acentuar o espanto e o delí-
rio provocados pela imitação. No entanto, o que parece ser mais
perturbador para a sociedade artística do século xix não é tanto o
carácter imitativo da fotografia (que já tinha existido, e voltaria a
existir, na pintura), mas o seu carácter imediato e mecânico.
A especificação do retrato fotográfico não pode, como vimos,
ser feita a partir das convenções composicionais e estilísticas. A con-
taminação dos dois processos levou à importação, para a fotografia,
dos códigos estilísticos da pintura: o pictorialismo é disso um exce-
lente exemplo no plano dos processos. A obra de Nadar revela a
forma como o retrato fotográfico se procura assemelhar em tudo –
até na lentidão com que ainda é feito – a uma obra de pintura, mas
principalmente no plano do aprofundamento da relação com o
modelo: tem muito pouco da ideia de instantâneo, implicando
uma relação personalizada entre o fotógrafo e o seu modelo.
(Talvez por essa razão, Nadar é comummente designado, na histó-
ria da fotografia, como o precursor do retrato psicológico.)
Cabe aqui analisar, pois, se existe e onde uma ruptura entre o
retrato pintado e o retrato fotográfico.
Tomemos como exemplo uma pintura do século xv «Os
Arnolfini» (1434), de Van Eyck (National Gallery, Londres).
Trata-se do retrato de um casal, sendo a primeira vez que surge
representado o casamento morganático. O casal apresenta-se, ves-
tido de acordo com as convenções da época, numa pose solene
própria a quem cumpre um destino. Sabemos quem são os retra-

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tados (identificados pelo título), sabe-se quem o encomendou e o


destino que levou até chegar à National Gallery, onde hoje está
exposto. É hoje para nós uma obra de referência por várias razões:
para além da já enunciada, o quadro dos «Arnolfini» possui uma
inscrição do próprio pintor à volta do espelho («Jan Van Eyck
esteve aqui»), pintada no plano mais afastado do quadro. Com
esta inscrição, o pintor faz-nos tomar consciência da relação inter-
-subjectiva que preside à representação, e de imediato somos trans-
portados para todo o processo pictural que levou à sua produção.
Certas convenções são transmitidas através dos vários momen-
tos do quadro e dos seus símbolos. O tipo de pose é um dos seus
traços marcantes: o casal apresenta-se numa posição em que
ambos, marido e mulher, constituem dois lados de um triângulo
cuja base é o espectador/pintor. Estão retratados de corpo inteiro,
mas a sua imagem enche a quase totalidade do quadro. Trata-se da
«apresentação social» do casal, que através da pintura/retrato quer
consagrar publicamente o contrato12.
Mas o que é específico deste retrato prende-se menos com a
pose ou a frontalidade do plano, ou os pressupostos ideológicos,
do que com o carácter artesanal que lhe confere o facto de ser um
retrato pintado. Parece-nos poder distinguir dois aspectos interre-
lacionados: 1) a temporalidade; 2) a densidade.
A pintura confere ao retrato uma temporalidade muito mais
dilatada. A textura da tela e das tintas suscitam o toque e desa-
fiam o espectador pelo facto de recriarem mimeticamente, através
do simples gesto da mão fornecida de tinta, algo que se «parece
com a realidade» – ou que a revela na sua profundidade, como o
«troppo vero» de Inocêncio X. A pintura repete o acto de criação,
mas o que lhe é específico é o processo que está temporalmente

12 Para uma análise aprofundada deste quadro, sobre o qual existe uma extensa bibliogra-

fia, Cf. Seidel 1989; Harbison 1990; Panofsky 1971; Schabacker 1972; Bedaux 1981.

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determinado por uma duração mais lenta: é com um gesto após o


outro que se constrói uma pintura. Por essa razão, o desenho, que
em termos processuais precede a pintura13, tem uma componente
mágica mais forte, porque remete para os automatismos mais
básicos, para o impulso primordial da mão: para a relação directa
entre o ponto, o traço e a formação da imagem.
A essa dimensão temporal junta-se o outro aspecto, a densidade,
que me parece constituir um traço distintivo da pintura. A matéria
da pintura, as tintas, os pincéis, permitem um trabalho de mimesis
(por vezes extremamente fiel, como no caso do hiperrealismo),
mas, vista ao vivo e de perto, a sua textura é relativamente espessa e
introduz a percepção do suporte. Introduz a marca artesanal, com
as suas pequenas irregularidades, permitindo ao espectador aperce-
ber-ser do facto de estar na presença de um quadro; o que implica
uma distância perceptiva, pelo facto de o conteúdo da imagem
transportar a mediatez da sua composição. Por isso, relativamente
ao retrato pintado se coloca a questão da sua fidelidade, dado que
ele parte sempre de um «esquema»14. O que significa que a realiza-
ção do retrato pintado pressupõe uma certa exigência de verosimi-
lhança, quer com o retratado quer com a obra do pintor.
Essa é uma questão que não se coloca ao retrato fotográfico.
Pode considerar-se que o retrato foi colhido num «mau» momen-
to, incaracterístico do retratado. Mas todos sabemos que ele
«esteve assim», como dizia Barthes 1980 em A Câmara Clara15.
A fotografia é um índice no sentido peirciano – embora isso não
esgote a sua configuração semiótica –, ao passo que o retrato pin-
tado tem sempre o estatuto de ícone, uma vez que indica de
13 Em certos géneros de pintura, como na action painting, o acto de pintar é directo, mas

aí a componente figurativa não ocupa o primeiro plano das preocupações do pintor.


14 Esta ideia de esquema, referida por Robert Brilliant, «define the general categories into

which all humanity falls, at least as “humanity” is conceived of any given time»: Brilliant 1991: 38.
15 «… ao contemplar uma foto, incluo fatalmente no meu olhar o pensamento desse ins-

tante, por muito breve que tenha sido, em que uma coisa real ficou imóvel diante do olho»:
Barthes 1980: 111.

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forma imediata o processo criador da sublimação, implicando


desde logo mediatez, simbolização, ideologia16. Luc Lang subli-
nha: «… o retrato em pintura concretiza o milagre da semelhança
ao passo que em fotografia ele suscita a surpresa da dissemelhan-
ça. (…) a fotografia dá sempre a sensação de embelezar ou des-
feiar, a imagem captada não pertence à duração perceptiva da
nossa aparência, ela é apenas um vestígio demasiado fugaz desta»
(Lang 1991: 116).
A característica de densidade que atribuímos à pintura rareia
na imagem fotográfica: quer pela lisura da sua superfície, muito
pouco texturada; quer pelo facto de, ao resultar de uma técnica
que implica um automatismo, a imagem perder o rastro artesa-
nal; quer ainda por possuir a marca de «realidade»; a fotografia
não remete de imediato para o trabalho interior de quem a pro-
duziu. O dispositivo da sua realização esconde-se por detrás da
evidência de real que a fotografia sugere, tornando a fotografia
num objecto opaco (de densidade invisível), porque demasiado
transparente.
Refira-se ainda que o carácter instantâneo – mais ou menos
instantâneo, consoante a técnica – de uma fotografia fá-la tornar-
-se objecto de uma atitude paradoxal: se ela nos permite ver mais
coisas, e acentuar a «paixão do olhar» (Frade), por outro lado ela
não nos exige uma atenção demorada, que é, no fim de contas,

16 A definição da imagem fotográfica como índice está largamente desenvolvida nas obras

de Phillippe Dubois (Dubois 1982: 21-47) e de Jean-Marie Schaeffer (Schaeffer 1987: 11). No
caso do primeiro, no entanto, o autor estabelece uma periodização histórica da teoria da fotogra-
fia, ao longo da qual aquela sofreria uma evolução: se inicialmente a fotografia era – para Dubois
– praticada com o estatuto de ícone, progressivamente ela passa a ter – com o advento do
modernismo – o estatuto de símbolo e só com o pós-modernismo ela teria adquirido o estatuto
de índice. Mas, e tal como salientou já Pedro Miguel Frade (Frade 1992: 62), esta periodização
responde de forma muito deficiente à história da reflexão em torno da fotografia: desde os seus
inícios que a fotografia é avaliada a partir desse estatuto de vestígio da realidade. Talbot afirmava
mesmo, a propósito da fotografia, que «a luz é o lápis da natureza» («the pencil of nature»), valo-
rizando explicitamente essa relação física directa entre a natureza empírica e a formação da ima-
gem: «… the plates of this work have been obtained by the mere action of Light upon sensitive
paper.(…) They are impressed by Nature’s hand»: Talbot 1844: não paginado.

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proporcional ao tempo da sua realização: uma fotografia realiza-se


depressa, e vê-se depressa: é uma arte veloz. Esse aspecto tem con-
sequências no que diz respeito ao retrato: este passa, com a Kodak,
a ser possível de realizar em série e acessível a qualquer um.
Por outro lado, a dessacralização da imagem que a fotografia
transporta, vem aguçar os aspectos quer psicológicos e introspec-
tivos quer sociais, da imagem de si, que emergem no século xix.
Estes dois aspectos, profundamente relacionados, são referidos,
respectivamente, e entre outros, por André Bazin (1945) e Pedro
Miguel Frade (Frade 1992), e Gisèle Freund (Freund 1974).
Um dos aspectos salientados por Pedro Miguel Frade, como
estando relacionado com o «espanto» provocado pela fotografia é
o da obsessão com o detalhe. O desenvolvimento da matemática,
da óptica e da física vem trazer o «infinitamente pequeno», e a
possibilidade de analisar sequências da acção humana a partir de
imagens fixas é um facto bastante revolucionário. Sabemos hoje
como Charcot, um dos fundadores da hipnose como método de
compreensão das doenças mentais, nomeadamente da histeria, se
serviu da fotografia para a análise (por reconstrução) de um ata-
que histérico17. Mas as cronofotografias, produzidas por Edward
Muybridge, Etienne Jules Marey, Thomas Eakins, no último
quartel do século xix são também uma referência incontornável
das novas práticas de observação que surgem associadas à foto-
grafia.
No entender de Frade, «… ver uma fotografia correspondia
então ao encontro, mais do que ao reencontro, com uma totali-
dade desconhecida enquanto tal, de cujo conteúdo ninguém
podia, no detalhe, estar inteiramente certo: nesse sentido, mais
do que um retorno do visto, ou um regresso ao visto, a fotografia

17 Para uma análise aprofundada da relação entre o olhar nosográfico e a fotografia, no

quadro da actividade clínica de Charcot, Cf. Didi-Huberman 1982.

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era então experimentada como a apresentação, sobrecarregada de


detalhes, do que no visível permanecera não visto» (Frade 1992:
103). Simultaneamente, o retrato fotográfico partilha com toda a
espécie de fotografia esta vertigem da observação, do olhar, a
dominância da sensorialidade visual. Instaura-se assim uma espé-
cie de avidez da representação, que é, ao mesmo tempo, um reco-
nhecimento da insuficiência do ver, um «sentimento angustiado
daquele que não vê o suficiente e que o sabe e que, porque o
sabe, é presa de um apetite quase irracional de querer ver mais, e
mais ainda do que pode…» (Frade 1992: 101).
O retrato fotográfico vem confrontar o sujeito com o horror
e o fascínio de uma imagem especular fixa, da qual ele não pode
fugir. Mas esse facto abre-lhe o acesso a todas as especulações
sobre o seu Eu, fornecendo-lhe um espelho «manuseável». Esta
especulação surge ao mesmo tempo que certos conceitos oriun-
dos da psicanálise referentes à construção psíquica da identidade:
a noção de Eu, proposta por Freud, remete em última análise
para uma instância de acção, nem sempre consciente, e a partir
do qual o sujeito se posiciona ideologicamente, isto é, fictivamen-
te/idealmente. É este «eu» que o retrato paradoxalmente fornece e
põe em causa; a imagem parada é sempre perturbante: ela nega o
movimento, a mobilidade e plasticidade do eu, a possibilidade do
arrependimento e do remorso, ela nega sobretudo a afirmação da
vida, porque nos transforma em coisas. Esse corte temporal ape-
nas nos surge no retrato fotográfico, pela sua natureza instantâ-
nea e capturante18.
18 Este aspecto «mortífero» é para Barthes a questão central: «O Fotógrafo tem de lutar

imenso para que a fotografia não seja a Morte. Mas eu, já objecto, não luto. (…) assim que me
descubro no produto desta operação, aquilo que vejo é que me tornei Todo-Imagem, ou seja, a
Morte em pessoa. Os outros – desapropriam-me de mim próprio, fazem ferozmente de mim um
objecto, têm-me à sua mercê, à sua disposição, arrumado num ficheiro, preparado para todos os
truques subtis.»: Barthes 1980: 31.
Para uma análise aprofundada do dispositivo de captura na fotografia, cf: Oliveira 1984;
Sontag 1973; Tisseron 1996.

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A fixidez da imagem «real», contemporânea da psicologia e


da psicanálise, da análise do eu, das nosografias psicológicas, dos
estudos de expressão do rosto é também por essa mesma razão
fascinante: «Graças à própria irreversibilidade do tempo que ela
nega sem conseguir contrariar, a fotografia pode assumir, assim, o
carácter espantoso de um artefacto que se obstina em fazer-nos
ver ainda hoje os aspectos passados do que se desvaneceu sem que
tivéssemos podido vê-lo.» (Frade 1992: 98.) Este aspecto do deta-
lhe, da observação do pormenor, do não-visto, que salienta Frade,
parece-nos extremamente significativo para a relação entre o retrato
fotográfico e a especulação introspectiva.
Por outro lado, André Bazin, ao salientar a componente psi-
cológica inscrita no dispositivo de semelhança das artes, refere-a
como um dos factores que trabalham o interior do dispositivo
fotográfico e contribuem para o seu sucesso. A ideia de crença na
realidade do objecto a partir de uma fotografia, transforma esta
última em algo de «objectivo», ao mesmo tempo que sugere a
possibilidade de uma representação que prescinde da acção humana,
que pode mesmo ser realizada na sua ausência por uma máquina:
«Todas as artes são fundadas na presença do homem, só na foto-
grafia usufruímos da sua ausência.» (Bazin 1945: 17.) Bazin com-
para mesmo a fotografia à moldagem das máscaras (e com o
sudário), já que aquela implica uma ideia de «cunhagem» do
objecto por meio da luz. A génese automática da imagem foto-
gráfica revolucionou, diz Bazin, a psicologia da imagem: «Sejam
quais forem as objecções do nosso espírito crítico vemo-nos obri-
gados a acreditar na existência do objecto representado, efectiva-
mente re-presentado, isto é, tornado presente no espaço e no
tempo. (…) O mais fiel desenho pode dar-nos mais informações
sobre o modelo, mas não possuirá nunca, a despeito do nosso
espírito crítico, o poder irracional da fotografia que domina a
nossa convicção.» (Bazin 1945: 19.)

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Esta reflexão é hoje aprofundada por Serge Tisseron (1996)


que privilegia, não o aspecto «mortífero» do retrato – contrarian-
do abertamente Barthes e um certo bom senso teórico que se
gerou a partir de A Câmara Clara –, mas o aspecto de «agarrar o
tempo vivo». Daí que Tisseron, e muito acertadamente, associe à
fotografia um certo sentimento depressivo, de perda do objecto,
que tende a ser escamoteado pelo excesso de produção de imagens.
Para Gisèle Freund, o retrato «imediato» é um excelente
suporte para a afirmação social. Se esta componente é comum ao
retrato pintado – como vimos em Os Arnolfini de Van Eyck –, o
retrato fotográfico permite agora uma «indesmentível» veracida-
de, para além do facto de permitir o acesso massificado à sua
aquisição.
Freund desenvolve toda a sua análise da aquisição dos valores
retratísticos que culminarão na fotografia a partir da necessidade
de afirmação social e cultural de uma classe em plena ascensão, a
burguesia. Neste sentido, considera, concretamente no reinado
de Luís XVI em França, que a procura do retrato por parte da
burguesia é condicionada por uma identificação aos «valores de
pose» do retrato da classe dominante, a nobreza. Nesta época, é
ainda o retrato a óleo que serve de suporte a essa necessidade.
À medida que o poder político da burguesia se afirma, o gosto
desta clientela sofre transformações: «O tipo ideal já não é o prin-
cipesco: no seu lugar surge o rosto burguês.» (Freund 1974: 5.)
É por volta de 1750 que se desenha, por surtos sucessivos, a
subida das camadas médias no interior do aparelho social. A necessi-
dade de ostentação dessas camadas cresce progressivamente, e o
recurso ao retrato é uma manifestação característica desse proce-
dimento, «que está na razão directa do esforço para se afirmar e
tomar consciência de si mesma» (Freund 1974: 11). O retrato
«democratiza-se», isto é, torna-se um elo vulgarizado de afirma-
ção, de reforço de uma auto-imagem, correlativo do desejo de

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afirmação social, mas, também, de reivindicação de poder de um


grupo que até aqui não tem lugar nos centros decisórios do poder
económico e político.
O primeiro processo disponível é a pintura, que possui já
uma tradição marcada pela necessidade de eternização das classes
no poder ou a ele ascendentes (caso dos Arnolfini, ou de Inocên-
cio X). Surge por esta época o retrato miniatura, sob a forma de
tampas de caixinhas, pendentes, medalhões. É o retrato portátil,
muito em voga nos meios aristocráticos e que constituíam uma
espécie de veículo de charme da personalidade. Esta é uma das pri-
meiras formas de retrato apropriado pela burguesia, que aí
encontrou «meio de exprimir o seu culto do indivíduo» (Freund
1974: 12).
No início da segunda metade do século xix, o aparecimento
dos processos fotográficos vem tirar o lugar a este género de arte-
sanato. Por um custo dez vezes menor, o fotógrafo podia fornecer
retratos, correspondentes, quer económica quer esteticamente,
aos gostos e meios da burguesia19.
A mecanização própria à fotografia é, no seu dispositivo,
precedida pela técnica da fisionotracia (técnica de desenhar
silhuetas), já que esta introduz a independência entre modelo e
cópia, permitindo uma rápida reprodutibilidade do esquema.
Para Gisèle Freund, a fisionotracia é o precursor imediato da
fotografia, numa linha de evolução cujos produtos comerciais
mais recentes são o photomaton e a polaroid. Embora não seja o
seu precursor técnico, é, para a autora, o precursor ideológico
(Freund 1974: 14).

19 De certo modo, podemos já aqui entrever a relação entre as modificações sociais e eco-

nómicas dos últimos duzentos anos e a expansão das técnicas de reprodutibilidade e massificação
da imagem, que estão associadas a um valor de acessibilidade generalizada. Uma forma de elitiza-
ção ao contrário, na medida em que se trata, através dela, de reivindicar uma diferença que se
afirma contra a diferença aristocrática, até aí dominante.

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Inicialmente adoptada pela classe social ainda dominante, a


fotografia foi pouco a pouco descendo às camadas mais baixas da
média e pequena burguesia (lojistas, merceeiros, relojoeiros, cha-
peleiros), à medida que crescia a importância destas. A fotografia
constituiu assim um modo de representação conforme às condi-
ções económicas e ideológicas destas camadas sociais que nela
encontram um modo de auto-representação novo.
A relação entre o culto burguês do «charme da personalida-
de» e o sucesso do retato fotográfico, referida por Freund, é espe-
cificamente focada num artigo mais recente de Roger Cardinal.
Aí, o autor defende que «o retrato fotográfico foi encorajado pelo
lugar ocupado, na ideologia contemporânea, pela celebridade ou
o carisma individual» (Cardinal 1992: 6). Mas o que é mais inte-
ressante neste artigo, é a relação nele estabelecida entre a moda
do portrait en charge, profundamente desenvolvida por Nadar nos
diversos jornais para os quais desenhava as suas caricaturas, e a
chegada, no mesmo Nadar, ao retrato fotográfico20.
A passagem por estas referências teóricas permite-nos com-
preender melhor como o retrato pintado e o retrato fotográfico
surgem de uma história comum, ligada à afirmação social e à
necessidade de representação de si. A sua história diferencia-se por
razões essencialmente técnicas, bem como por via das modifica-
ções epistémicas – a entrada na era da «análise psicológica», a
investigação física e química – e ideológicas – o início de uma cul-
tura do indivíduo – que a acompanham. Se o retrato fotográfico
favoreceu a visibilidade social da burguesia do século xix, isso ape-
nas vem acentuar o carácter projectivo do retrato, e a forma como
a fotografia se veio adequar a estratégias de afirmação da intimida-

20 Cf. Cardinal 1992: «Given this sort of cultural expectation, I want to suggest that the

quotient of seriousness which adhered to the practice of the portrait-charge formed the suppor-
tive context wherein, as technology advanced, the photographic portrait would discover its ration-
ale and its characteristic idiom»: p. 7.

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de – ou do seu teatro – na cultura ocidental. Estes dois níveis do


retrato, o psicológico e o social, devem ser pensados numa relação
dialéctica: existe no processo de corrida ao retrato fotográfico,
uma dimensão de auto-encenação, articulada com toda uma série
de motivações que visam a diferenciação, e, simultaneamente, a
identificação num universo comum que é o da afirmação do indi-
víduo, independentemente de uma tradição ou de uma origem.
O que nos parece então poder diferenciar o retrato pintado
do retrato fotográfico não são nem a sua motivação geral (a repre-
sentação de si/do outro) nem os seus códigos simbólicos; é antes
a forma como a fotografia, pelo seu carácter imediato e pseudo-
-transparente vem acentuar a vertigem do espelho, não sendo mais
do que o reflexo da vertigem da introspecção e da auto-observa-
ção do indivíduo. O retrato fotográfico, «pseudo-real», pseudo-
-especular, mas ainda assim real e especular, vai permitir ao sujei-
tos jogar um novo jogo: o da inclusão mágica, de si mesmo, no
olhar do Outro.
Finalmente não me parece defensável uma ideia de ruptura
entre o retrato fotográfico e o retrato pintado. Será mais interes-
sante defender uma «aceleração» dos processos de questionamento
do indivíduo e da angústia de morte subsequente, como factores
que privilegiam o sucesso e determinam a diferença do retrato
fotográfico. A velocidade de construção mecânica e a «colagem à
realidade» dão ao retrato fotográfico a possibilidade de se tornar
num instrumento imediato de acção não exigindo todo o trabalho
de construção artesanal a que a pintura obriga. Neste sentido,
poderíamos estabelecer um paralelo entre as duas técnicas de
retrato e dois modelos de pensamento: enquanto o retrato pinta-
do implica uma transformação do mundo pelo pensamento (a maté-
ria pela ideia), o retrato fotográfico apenas exige, aparentemente,
uma acção imediata do sujeito sobre esse mundo, no sentido da sua
completa assimilação.

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II

IDENTIDADE E IMAGENS DO CORPO


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Se o retrato fotográfico sofre, como tudo indica, uma acele-


ração da sua produção que o faz tomar um lugar de destaque na
produção imagética a partir de século xix, isso deve-se certa-
mente, como em parte já foi referido, a uma conjuntura que
começa a privilegiar a noção de subjectividade e de indivíduo, em
tensão com a emergência da sociedade de massas. É preciso não
esquecer que a forma de representação de si ou do outro implica
sempre um determinado posicionamento face às questões da
identidade, e essa aceleração do retrato, proporcionada pela foto-
grafia, denuncia uma aceleração da interrogação sobre si próprio.
Será interessante, por essa razão, perder-me um pouco em torno
do papel que a imagem do corpo tem desempenhado ao longo da
história, em várias modalidades de discurso, para podermos fun-
damentar a relação possível entre identidade, imagem do corpo e
sua (auto)representação.
A mitologia grega é talvez o conjunto de textos mais elucida-
tivo sobre a relação do ser humano com o corpo, e da forma
como o corpo é o lugar privilegiado de investimentos emocio-
nais. Tudo se passa à roda e através do corpo. As guerras, os sacri-
fícios, as traições, os prazeres, os castigos, os laços e os entrelaços,
comportam sempre uma componente manifestamente física. As
relações entre as pessoas são mediadas por representações / ima-
gens corporais, que tomam um significado explícito em momen-
tos de maior intensidade emocional: o rosto, os membros do
corpo, os cabelos, o ventre, o ouvido, as costas, cada uma destas
partes do corpo humano é investida de um valor simbólico e
constitui-se como objecto transicional das relações entre os inter-

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venientes da acção. A relação com o mundo é assim uma metáfo-


ra da relação com um outro particular, com um corpo individual
e concreto.
No entanto, a referência ao corpo é também incontornável
na filosofia, por duas vias, uma positiva e outra negativa: ou por-
que representa, através das suas partes, um suporte fortíssimo de
metáforas que permitem a conceptualização dos grandes proble-
mas da filosofia, nomeadamente: a Teoria do Conhecimento e a
Ontologia; ou pelo facto de uma larga tradição do trabalho filo-
sófico consistir na demarcação do espírito relativamente ao corpo,
no sentido da «independência» do primeiro, como é o caso do
racionalismo.

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I
REFERÊNCIAS MITOLÓGICAS

1.1. O Corpo não-reconhecido: Narciso

Ovídio, em Metamorfoses, conta a história trágica de um belo


rapaz: Narciso, filho de Juno. Consultando um oráculo, Juno
teria ficado a saber que o seu filho só viveria muito tempo se «não
pudesse conhecer-se». Quando chegou a jovem, a corte de rapari-
gas apaixonadas era infinita. A sua incapacidade de envolvimento
ou investimento em qualquer delas era porém absolutamente
nula. Desde logo se desenhou a tragédia de Narciso: muito belo
mas incapaz de olhar qualquer rapaz ou rapariga.
Quis um dia que em plena caça ao veado no meio da flores-
ta, a jovem Eco o descobrisse. Imediatamente apaixonada por ele,
em vão se lhe lançou ao pescoço, em vão repetiu cada uma das
últimas palavras que Narciso proferia. «Desaparece! Hei-de mor-
rer antes de olhar para ti!», foi a única resposta que Eco obteve,
sendo assim condenada ao choro e à morte, até ficar reduzida
apenas à sua voz. Muitos e muitas mais ainda rejeitou, mas de
uma ninfa humilhada recebeu o vaticínio: «Que ele ame – e
nunca alcance o seu amor!» Com esta condenação vai revelar-se
todo o sentido do oráculo: é no momento em que Narciso vê a
sua imagem espelhada nas águas que se apaixona perdidamente,
acabando por sucumbir na perseguição ilusória do seu «duplo».
Quando vêm para o enterrar, nem os ossos estão lá: no seu lugar
está uma flor de corola dourada. Desde logo, e pegando numa
breve nota de E. J. Kenney à tradução inglesa que utilizo, é visível
aqui uma oposição entre duas formas de conhecimento: enquan-
to o mais célebre oráculo, o de Delfos, recomenda a Sócrates,

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como máxima sabedoria, o «conhece-te a ti mesmo», este reco-


menda o inverso. Porquê? Porque não se referem ao mesmo géne-
ro de conhecimento. Enquanto em Delfos se trata de um conhe-
cimento interior, centrado na anamnese e na reflexão, apelando à
auto-crítica e à humildade, a proibição de se conhecer recomen-
dada à mãe de Narciso refere-se à imagem do corpo, enquanto
lugar de investimento da vaidade do sujeito.
Vemos aqui, desde logo, uma oposição entre o universo da
filosofia grega e o universo da mitologia. Enquanto no primeiro
conhecimento se trata da razão, da noesis, no segundo tratar-se-á
de um ardil vicioso, centrado no corpo: a vaidade, o amor exclu-
sivo a si próprio.
No Dicionário de Símbolos (Chevalier e Gheerbrant 1982), o
termo Narciso é referido como originado da palavra narké, de onde
por sua vez deriva o termo narcose. Narciso enquanto nome de
flor, simboliza o entorpecimento e a morte21; nasce na Primavera
em zonas húmidas, por isso está também ligado à simbologia das
águas e dos ritmos sazonais e à fecundidade, o que lhe confere
um estatuto ambivalente22. No «Cântico do Cânticos», da Bíblia,
caracteriza, tal como o lírio, a Primavera e o amor: «Eu sou o nar-
ciso de Saron, o lírio dos vales (Ela) / Sim, como o lírio dos vales
entre os espinhos / é, entre as jovens, a minha amada. (Ele)». Por
outro lado, na mitologia grega, ofereciam-se grinaldas às Fúrias
para as entorpecer.
O que podemos desde já observar é a relação entre a história
21 É de notar que, no plano inconsciente, de acordo com Freud, a morte e o sono são

equivalentes simbólicos.
22 Sobre a simbologia da imagem reflectida nas águas, a obra de Bachelard, L’eau et les

rêves, essai sur l’imagination de la matière, refere um aspecto interessante: a oposição entre o refle-
xo aquático e o reflexo no espelho. Para Bachelard, a imagem reflectida nas águas possui uma
dimensão muito mais especulativa, pelo facto de a superfície não ser rígida. Para este autor, «le
reflet un peu vague, un peu pâli, suggère une idéalisation»: Bachelard 1942: 33; o espelho das
águas permitiria uma imaginação aberta. Por essa razão considera que a imagem de Narciso nas
águas lhe revela simultanemante a sua realidade e a sua idealidade: Bachelard 1942: 32-34.

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grega construída em torno desta flor e a ideia de morte, mas tam-


bém de retorno, que o seu simbolismo implica. Narciso é um
jovem centrado em si próprio; não pode amar ninguém porque
está preso a um ideal incompatível com a vida expresso na recusa
do amor concreto dos outros e no seu desprezo. Narciso só pode
amar-se a si próprio, e é isso que lhe proclama a sentença da
mulher rejeitada («Que ele ame e não possa ter o seu amor!»),
mostrando como a recusa do amor real o condena à solidão. No
entanto, a imagem que de si próprio vê é trazida pela água do
lago junto ao qual se debruça para matar a sede. Ao matar a sede
com a própria imagem reflectida, o mito grego enuncia quer o
desejo de retorno uterino quer o desejo de fusão no Uno, e a
forma como estes coincidem com a morte.
No mito de Dédalo e Ícaro, este último também morre nas
águas por querer ultrapassar o pai – Dédalo23 –, isto é, simbolica-
mente ocupar o seu lugar – junto da mãe. Esse desejo, que é tam-
bém um desejo de retorno à unidade originária, conduz à morte.
Em ambos os casos o sujeito fica fechado sobre si próprio, prisio-
neiro do Ideal.
O tema do duplo que se instaura através de uma imagem
especular e que se torna objecto de investimento libidinal absolu-
to surge também no célebre Retrato de Dorian Gray de Oscar
Wilde. Também aí, um jovem fica apaixonado pelo quadro que
de si faz o pintor e quer ficar preso àquela imagem de si – não
quer envelhecer, isto é, não quer viver uma história concreta, pre-
ferindo manter-se num relacionamento distante e descomprome-
tido com todos à sua volta, numa postura de «dandy».
O outro aspecto, da relação com o duplo, incluído no mito
de Narciso, relaciona-o com o espelho enquanto símbolo. Se aten-
tarmos no oráculo que recomenda a Narciso que «ele nunca se
23 Dédalo representa a cultura, a metalurgia: ele é o primeiro engenheiro e o arquitecto do

Labirinto de Creta, é o protótipo simbólico da figura do Pai.

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conheça», o espelho surge aqui como fonte de enganos, no sentido


da «aparência» platónica, da «prisão dos sentidos», como responsá-
vel pela fixação à única imagem à qual o ser não pode fixar-se: a
imagem de si. Mas o principal aspecto trágico desta história é a
acumulação entre as duas profecias: se a primeira o interdita de «se
ver ao espelho», a segunda obriga-o («que ele ame e não possua o
seu amor»). Narciso conhece-se sem se reconhecer, imaginando a
alteridade do outro a partir do reflexo de si próprio. Mas também
só o ama porque esse Outro é a imagem de si próprio (o Mesmo).
Narciso parece preso de ordens contraditórias, que são o indício
do paradoxo «narcísico»: aquele que não ama ninguém está con-
denado a amar-se apenas a si próprio, e por essa razão, a não
poder possuir (como alteridade) o objecto do seu amor.
No entanto, há ainda um outro plano da ligação entre este
mito e o espelho: o espelho, que em diversas culturas significa
revelação, conhecimento, iluminação, aqui é o elo que compele o
sujeito para a morte, revelando a associação entre auto-contem-
plação narcísica e retorno fusional ao Uno, e à destruição da sua
identidade.
O espelho é o instrumento dos inseguros quanto à sua beleza:
a madrasta da Branca de Neve diariamente pergunta: «Espelho
meu, existe no mundo alguém mais belo do que eu?», sendo a
paz assegurada diariamente pela resposta afirmativa. Isto significa
que a diminuição da angústia narcísica está dependente da fabri-
cação de um duplo exterior, fixo (a imagem), ao qual o sujeito se
pode objectivamente referir, mas sob a condição de não o admitir
como sendo o Mesmo: a rainha fala com o espelho como se fosse
um outro.
Narciso está (pelo menos em algumas versões) inconsciente de
que aquela é a sua imagem, e não podemos escamotear esse facto.
O que acaba por não ser contraditório com a interpretação que até
agora fizemos: é próprio do narcisismo o não-reconhecimento das

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fronteiras entre o eu e os outros, como veremos adiante. Pode-


ríamos dizer, parafraseando Detienne & Vernant (1974), que essa é
a manha do jovem Narciso, embora, como geralmente acontece
nas trapalhadas gregas, ela possa ser vencida por uma outra mais
forte – neste caso as profecias, que são as vozes dos deuses.
No mito de Narciso, a questão da representação corporal é
central para o seu fim trágico: ele é apanhado pela própria ima-
gem no sentido fotográfico – a imagem de si reflectida nas águas,
o «reflexo puro»: a fotografia originária. E é porque o herói da his-
tória não se reconhece a si próprio que também não pode relacio-
nar-se com os outros24. Jean-Marie Schaeffer (1987: 49) distingue,
relativamente à fotografia, entre o efeito de índice e de index:
enquanto o primeiro seria o resultado de um vestígio físico e natu-
ral, o efeito físico-químico da luz, o segundo seria o resultado de
codificações simbólicas que nos permitem reconhecer a fotografia
como uma imagem de algo real, com valor icónico. Neste sentido,
poderemos dizer que Narciso tomou a imagem apenas como índi-
ce, não conseguindo descortinar o seu carácter mimético.
Este aspecto é extremamente importante porque, para Aristó-
teles, a mimesis é um veículo de conhecimento, e o prazer do conhe-
cimento implica-a necessariamente; a mimesis não é macaquice
animal: ela está ligada à possibilidade de sentido e de verdade do
discurso: «não é o original que dá prazer, mas nós fazemos uma
dedução (sylogismus): isto é aquilo, e daí resulta que aprendemos
algo»25. Só o homem «imita», sendo a mimesis a condição da ver-
dade (aletheia), do desvelamento da natureza. Neste sentido,
logos, mimesis e aletheia são uma única e mesma possibilidade.
Por outro lado, se seguirmos a leitura de Derrida, a mimesis, que
se manifesta através da metáfora, marca o momento do caminho

24 Este mito tem enormes ressonâncias, como analisaremos adiante, no ressurgir do tema

do duplo na literatura romântica do século xix.


25 In Derrida 1971: 26.

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(tour) e do desvio (détour) durante o qual o sentido pode parecer


aventurar-se sozinho, desligado da própria coisa que no entanto
visa, abrindo para a errância do semântico (Derrida). Ora é aqui
que Narciso não se perde: ele não ousa entrar no jogo simbólico
da representação, porque não é capaz de reconhecer a imagem de
si enquanto metáfora, não é capaz de dizer: «este sou eu». Por isso
está condenado à prisão do desconhecimento, e incapaz de qual-
quer mobilidade.

1 . i i . O c o r p o m u ta n t e : a MÈTIS grega

Toda a mitologia grega se move no interior de um género de


inteligência prática, centrada na astúcia e na manha, e por isso
mesmo acompanhando sempre uma certa acção concreta: a mètis.
Mas o objectivo com que aqui nos referimos à mitologia é o
de compreender como o problema da imagem do corpo e da
representação estão interligados com as relações intersubjectivas e
as fronteiras por elas exigidas. O que nos parece central na mito-
logia grega, vista sob este ângulo, é a condição vital de metamor-
fose que os seus heróis enunciam, visível na facilidade com que se
transformam noutra coisa (em animais, por exemplo, ou em seres
invisíveis), e que parte do princípio de que a realidade é movedi-
ça e escorregadia. A sua arte é a arte da constante mobilidade, da
transformação, aspecto analisado por Detienne & Vernant (1974).
A arte de viver é comandada pela capacidade de ser mais diverso
e múltiplo que o devir da realidade. A mètis é a tecnhé pantoie, ou
seja, a arte da diversidade, do disfarce e da mudança, consoante
as necessidades e os obstáculos ocorrentes; dirige-se a realidades
fluidas, «que não param de se modificar e que reúnem nelas, em
cada momento, aspectos contrários, forças opostas» (Détienne &
Vernant 1974: 28); para apanhar o Kairos (o momento propício),

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a mètis tem de ser mais rápida do que ele. Só o mesmo age sobre o
mesmo: «A vitória sobre uma realidade ondulante, cujas contínuas
metamorfoses tornam quase inapreensível, não pode ser obtida
senão por um acréscimo de mobilidade, uma potência ainda
maior de transformação.» (Detienne & Vernant 1974: 28.)
O homem que se serve da mètis está em conivência com o
real, e é assim que assegura a eficácia da sua acção, procurando a
saída (pòros) escondida, provocando ilusão (apathé) no adversário.
Ora é precisamente todo este agir múltiplo, em várias direc-
ções, que vemos desenhar-se nos mitos gregos numa relação per-
manente com as representações corporais. Perseu, incumbido de
uma tarefa impossível – trazer a cabeça de uma das Górgones26 –,
vai conseguir realizar a sua tarefa com a ajuda de dois deuses:
Atena e Hermes. No entanto, os seus «padrinhos» de viagem não
vão resolver por ele o problema: a ajuda que dão a Perseu consiste
em fazer-lhe compreender os pontos fracos dos adversários do
caminho, e as voltas que terá de dar para os vencer. A Górgona
que tem de matar é Medusa, cuja cabeça está coberta de serpentes
em lugar de cabelo, e cujo olhar tem o poder de petrificar quem
o enfrente. O primeiro grande obstáculo está nas três irmãs do
reino Cinzento, que são o ponto intermédio do caminho. Só elas
lhe poderão ensinar por onde há-de ir, coisa que não farão de
livre vontade (in Hamilton 1942: 48-50). Mas elas têm uma
característica: têm o mesmo olho para três, que vão emprestando
umas às outras. A astúcia de Perseu está em conseguir agarrar o
olho no momento da troca, e usar a sua posse para conseguir a
informação. Perseu tem de estar atento ao momento exacto (o
kairos) para poder agarrar-lhe, o que consegue, podendo prosse-
guir o seu caminho. Hermes dá-lhe a sua espada alada, e Atena o

26 As Górgones são mulheres-montros com cabeça de serpente, mas só a Medusa pode ser
morta.

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capacete que o tornará invisível. Mas a sua maior arma é o es-


cudo de Atena, de superfície polida, que permitirá o jogo de
retorsão com Medusa. A esperteza de Perseu será a de virar a ima-
gem terrificadora contra ela própria, de modo a paralisá-la. Mas
também isso tem o seu momento certo, já que Perseu tem de
arrancar-lhe a cabeça no momento exacto em que, paralisada, não
tenha ainda petrificado.
A análise deste mito feita por Freud (Freud 1931) salienta
muito particularmente a questão da «visão», do horror provocado
por Medusa: a cabeça com serpentes funciona como manifesta-
ção da identidade fálica, e o facto de ser petrificado, ao contrário
de ser um desastre, é a realização invertida do desejo de continuar
a sentir erecção, através da rigidez. Medusa simboliza então, para
Freud, a enunciação do horror da castração (que no inconsciente
significa a morte).
Qual é então a tarefa de Perseu, ao cortar-lhe a cabeça? Freud
salienta que «a multiplicação dos símbolos fálicos significa geral-
mente a castração» (Freud 1931: 2698). Sendo assim, a decapita-
ção de Medusa pode ter o sentido de exorcizar a ameaça de cas-
tração, pela exibição da espada (phallus): no citado artigo, Freud
refere que a exibição do sexo tem uma função apotropaica, isto é,
pacificadora. O que significa pensar, na sequência do que disse-
mos inicialmente, que a relação de Perseu com um outro homem
e consigo próprio é mediada pela possibilidade de se representar
como não castrado, como capaz de «usar a lança» e o escudo de
uma forma manhosa. Nesse sentido, talvez seja possível interpre-
tar a missão de Perseu como uma missão de superação da angús-
tia de castração, já que o herói, sem olhar o inimigo nos olhos,
pode vê-lo de cima e combatê-lo.
Por outro lado, surge ainda aqui uma estreita relação com as
metáforas recorrentes da mitologia grega no que diz respeito à
inteligência ardilosa: o objectivo desta é sempre «imobilizar o

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outro», enlaçá-lo (como o polvo) ou mesmo enlaçar-se para se


proteger: Ulisses pede que o atem com muitos laços para poder
resistir ao enganador mas irresistível canto das Sereias; na viagem
dos Argonautas, Orfeu enlaça os ouvidos dos companheiros com
uma música mais forte do que a das Sereias, para os desviar do
perigo; Hermes manda Hefesto atar com tranças Afrodite e Arès
no leito do amor; o labirinto de Creta é como um nó atado, difí-
cil de desatar a não ser por uma astúcia (o fio de Ariana) ou uma
técnica (as asas de Dédalo); os sofistas «enlaçam» os ouvintes com
os seus discursos ondulantes (poikiloi lógoi), utilizando palavras
com «enormes dobras» (periplokai) (Detienne & Vernant 1974:
48). Em todos os casos temos uma constante tensão entre o tecer
(plékein) e torcer (stréphein), sobressaindo a ideia de dominar o
adversário pela sua «imobilização». É o que Medusa faz às pes-
soas: paralisa-as com o seu olhar entrelaçador, que está em relação
com a metáfora das serpentes-cabelo; a serpente é também um
símbolo da morte, porque é rastejante, está ligada à terra. Mas
Perseu faz o mesmo a Medusa: paralisa-a com o seu próprio tru-
que, obrigando-a a olhar para a própria imagem, «enlaçando-se»
a si mesma. A história de Perseu tem um final feliz, já que o
móbil (a representação de si como não-castrado) é atingido com a
missão.
Como nas histórias da raposa, que finge de morta para atacar
a sua presa, ou que elogia o corvo para que este deixe cair o quei-
jo, o herói grego pode assumir-se como invisível, ou dotado de
múltiplos braços, como o polvo, que é a melhor imagem da mètis:
uma inteligência em tentáculos.
Que podemos concluir, da actividade dos heróis gregos,
sobre a importância das representações corporais para a identida-
de? Que, no seu essencial, a representação identitária, formulada
através de imagens do corpo, está centrada no agir relacional, isto
é, na ideia de que o ser se afirma através das relações com um

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outro. Essas relações são principalmente de sedução e dominação.


Como pudemos ver, nos mitos referidos, trata-se sempre de uma
conquista, quer esta seja no sentido de capturar um adversário,
quer seja no sentido de o encantar e possuir.

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II
REFERÊNCIAS FILOSÓFICAS

ii.1. Os olhos

Os olhos são um objecto de forte investimento por parte da


especulação sobre a alma, na análise da relação intersubjectiva;
quer como referência do controlo possível do outro sobre a nossa
subjectividade quer como objecto de idealização de uma comuni-
cação não-verbal, agonística. No primeiro caso, encontramos o
exemplo de Jean-Paul Sartre, que em vários momentos da sua
obra desenvolve ideias quase paranóides relativamente ao olhar/
/visão. No final de «Huis Clos», um dos personagens, Garcin,
diz: «O bronze… (Ele afaga-o.) Bom, eis o momento. O bronze
está aí, contemplo-o e sinto-me no inferno. Afirmo-vos que tudo
estava previsto. Eles previram que eu me poria diante desta cha-
miné, apoiando a minha mão sobre o bronze, com todos estes
olhares sobre mim. Todos estes olhares que me comem… (Ele
volta-se bruscamente.) Hah! Não sois senão dois? Julgava-vos
mais numerosos. (Ri-se.) Bom, é isto o inferno. Nunca teria acre-
ditado… (…) Não é preciso fogo: o inferno, são os Outros.»27 O
olhar tem aqui potencialidades persecutórias: o outro é meu ini-
migo porque me olha, possuindo essa perseguição intersubjectiva
traços de fantasias canibais («Todos estes olhares que me
comem…»).
Na cultura popular, «os olhos são o espelho da alma», no
sentido da possibilidade de ler a sinceridade para além das pala-
vras. Em Aristóteles os olhos são uma espécie de meio de troca

27 Sartre 1947: 92.

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com o outro: «vemos e somos vistos ao mesmo tempo», diz em


Fisiognomia28. O que queremos salientar aqui é que os olhos são
um núcleo de investimentos contraditórios, que varia consoante
o contexto filosófico global de análise das relações intersubjecti-
vas. De um modo geral, considerados quer positiva quer negati-
vamente, os olhos «são um símbolo do Self» (Synnott 1993: 222).
Na tradição filosófica, a visão foi também o suporte da refle-
xão sobre o conhecimento. Em Platão, os olhos em si mesmos não
significam nada de bom ou mau. O que importa é a direcção que
toma o olhar29: se se vira para o mundo dos sentidos, e permanece
preso à cópia, ou, pior ainda, ao simulacro (eikones); ou se, através
de uma «ortopedia do olhar»30, uma educação adequada (virada
para a abstracção), ele chega a captar a luz (noesis) e a conhecer os
«modelos» (noemata) das coisas: em Platão, conhecer está associa-
do à contemplação enquanto iluminação. O órgão da visão (oráô),
é pois um equivalente metafórico da faculdade da razão (nous).
Toda a teoria do conhecimento está centrada na visão: o con-
ceito de gnose, que significa acção de conhecer pela visão, está asso-
ciado, particularmente na tradição racionalista, ao conhecimento

28 Cit. por Synnott 1993: 222.


29 Cf. Pereira 1976: 313 (nota). São inúmeras as passagens da República nas quais Platão se
refere explicitamente à associação entre a visão e o processo de conhecimento. O próprio interlo-
cutor de Platão, a quem o mesmo pretende ensinar a sua teoria, é chamado Glauco – o cego. A
passagem que se segue é uma das mais claras nesse campo: «– Sabes que os olhos – prossegui eu
– quando se voltam para objectos cujas cores já não são mantidas pela luz do dia, mas pelos cla-
rões nocturnos, vêem mal e parecem quase cegos, como se não tivessem uma visão clara. (…)
Mas, quando se voltam para os que são iluminados pelo Sol, acho que vêem nitidamente e
torna-se evidente que esses mesmos olhos têm uma visão clara.
– Sem dúvida.
– Portanto, relativamente à alma, reflecte assim: quando ela se fixa num objecto ilumina-
do pela verdade e pelo Ser, compreende-o, conhece-o e parece inteligente; porém, quando se fixa
num objecto ao qual se misturam as trevas, o que nasce e morre, só sabe ter opiniões, vê mal,
alterando o seu parecer de alto a baixo, e parece não ter inteligência.» Platão(a): 508 d 508 e.
30 A educação da alma é uma espécie de ortopedia, no sentido em que ao filósofo cabe

reconduzir, ou desviar o olhar na direcção do «bom caminho»: «A educação seria, por conseguin-
te, a arte desse desejo, a maneira mais fácil e mais eficaz de fazer dar a volta a esse órgão, não de
o fazer obter a visão, pois já a tem, mas, uma vez que ele não está na posição correcta e não olha
para onde deve, dar-lhe os meios para isso.» Platão(a): 518d.

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verdadeiro; mas também na tradição mística, enquanto o conhe-


cimento é «revelação interior» ou uma forma de «ver para den-
tro», coincidente com uma ideia de comunicação não-verbal.
A filosofia racionalista, iniciada em Parménides e desenvolvida
numa primeira forma sistemática com Platão, parte da oposição
entre as sombras e a luz para uma divisão do ser em corpo e alma:
o corpo é sempre aquilo que está em processo de corrupção, que
não permite ver, enquanto a alma está, como vimos em Platão,
potencialmente em processo de reeducação em direcção à gnosis.
Assim, o olhar é o instrumento sobre o qual se projecta o traba-
lho da alma, o que institui uma relação paradoxal da filosofia
racionalista com o corpo: ao mesmo tempo que os sentidos são
desprezados (no plano racional), eles são o ponto sobre o qual
aquela miticamente se apoia, para falar da oposição obsessiva
entre corpo e alma, e permitir a negação do corpo. O que permi-
te estabelecer uma ligação entre a primazia dada ao olhar como
metáfora na teoria do conhecimento e a ideia de controlo sobre o
mundo externo, que decorre da própria necessidade de organiza-
ção cognitiva desse mundo.
A associação entre a visão da beleza e do bem, a da fealdade e
do mal é também um tópico clássico de Platão, nomeadamente
no Banquete, associação que implica a valorização/superação do
sentido da visão: contemplação da beleza física é o ponto de par-
tida para a apreensão da beleza espiritual (Platão(b): 86).

i i . i i . O r o s t o e o c o r p o . Te o r i a s f i s i o g n o m ó n i c a s

«O que é um rosto? O rosto, enquanto único, físico, maleável


e público, é o primeiro símbolo do Eu. É único, porque não há
dois rostos iguais, e é no rosto que nós reconhecemos o outro, e
nos identificamos a nós próprios», diz-nos Anthony Synnott em

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The Body Social. Symbolism, Self and Society (1993: 73). A análise
de Synnott vai no sentido de mostrar a importância dada aos cui-
dados com o rosto ao longo da história, mas sobretudo no sentido
de mostrar como o rosto é o alvo principal do conceito de «beleza».
De acordo com a leitura que faz dos textos filosóficos clássicos, a
beleza do Outro e do seu rosto são um tema recorrente de reflexão.
A beleza é vista como uma espécie de «passaporte» do rosto para a
atribuição de qualidades morais, que se depreende quer da análise
de inquéritos sociológicos quer da análise dos textos clássicos.
Mas o que mais faz do rosto um elemento de especulação
sobre a interioridade, e, sobretudo, da necessidade de «ordenar»
subjectividades, é o facto de este ser uma espécie de frontispício
da alma, já que está junto da cabeça, contendo dominantemente
quatro dos principais órgãos dos sentidos: a visão, o ouvido, o
olfacto, o gosto. Por essa razão, o rosto surge como uma espécie
de intermediário entre o exterior e o interior (Synnott 1993;
Courtine & Haroche 1988), pretexto para todas as interrogações
sobre a subjectividade.
Onde a reflexão teórica sobre o rosto é mais explícita, inspi-
rada inicialmente em ligações à astrologia e à alquimia, e mais
tarde às ciências naturais, é nos tratados de fisiognomonia que
acompanham a história da modernidade desde o século xvi.
Apesar de a fisiognomonia ser uma preocupação que remonta
pelo menos a Aristóteles, é a partir do século xvi que ela é objec-
to de grandes desenvolvimentos. Os primeiros tratados são sobre-
tudo a expressão de uma grande preocupação em decifrar a
«alma» através do corpo. Por essa razão, o rosto, primeiro alvo do
olhar, se afirma como o centro de todas as pesquisas. O rosto
ganha o sentido de um mapa da alma, objecto de codificações
pormenorizadas de vária ordem. Essas codificações, que vão sur-
gindo, ao longo dos séculos xvi e xvii, sofrem as influências dos
paradigmas filosóficos, ideológicos e científicos da sua época.

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Assim, se os tratados fisiognomónicos do século xvi são essencial-


mente influenciados pela magia e astrologia, o século xvii vê sur-
gir modelos mais racionalistas31, preocupados em «domesticar» a
expressão pela submissão a um sem-número de categorias.
De acordo com a obra que aqui sigo, o século xviii é, na sua
primeira metade, o deserto em matéria de teorias fisiognomónicas.
A grande razão parece estar no cientismo crescente que invade a
mentalidade deste século, e cujo paradigma anti-metafísico por
excelência se encontra na «Encyclopédie» de D’Alembert. A antiga
fisiognomonia já não é admissível nesta história natural do homem
constituída no decurso do século xviii, por se supor ser lançado
um outro olhar sobre o rosto – o olhar de Lineu, ao dispor a natu-
reza humana no quadro das espécies, e o de Buffon ao inscrevê-la
na cadeia contínua dos organismos vivos. Pouco a pouco surge a
via da antropologia, a de «uma «ciência do homem» que estabele-
ce a relação do homem físico e do homem moral».
No entanto, apesar desta negação do estatuto científico da
fisiognomonia, ela ressurge sobre novas bases no final desse século,
com Johann Gaspar Lavater e Le Brun. O sucesso popular do pri-
meiro é considerável, provocando reacções contraditórias no meio
intelectual. Segundo Courtine & Haroche, «as Fisiognomische
Fragmente de 1755 são rapidamente traduzidas e difundidas nas
principais línguas europeias e muitas vezes reeditadas, especial-
mente sob a forma simplificada de um Lavater portátil (…)»
(Courtine & Haroche 1988: 93). Surgida no seio de uma raciona-
lidade científica crescente, a fisiognomonia do século xviii
(Lavater, Pernty, Clairier, Robert) vem situar-se numa espécie de
intervalo entre essa racionalidade e a necessidade de explorar o
irracionalismo. A ideia é procurar inscrever a nova fisiognomonia

31 É o caso da «Art de connaître les hommes» (1660), de Martin Cureau de la Chambre;

de «Métaposcopie» (1658), de Jean Cardan, de Giovanni Batista della Porta, «Della Fisionomia
dell'Huomo» (1623). Cf. Courtine & Haroche 1988.

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numa linguagem mais «naturalista». Por esse motivo, esta fisiog-


nomonia apresenta, segundo Courtine & Haroche, uma tensão
particular: «inscrevem-se no aumento da racionalidade científica e
constituem ao mesmo tempo um refúgio do irracionalismo; sujei-
tos à ordem da razão, vão glorificar a vida do sentimento; dedi-
cam-se à observação do rosto orgânico e exaltam o rosto expressi-
vo» (Courtine & Haroche 1988: 95).
A ideia de Lavater é estudar as proporções da ossatura para
daí poder tirar inferências psicológicas, tentando ainda um esfor-
ço para unir o homem-corpo ao homem espírito, ou melhor, o
homem-ser vivo animal ao homem «psicológico».
Este acento na ossatura é em grande parte derivado do alar-
gamento dos estudos de anatomia, no século xviii, relativamente
à osteologia do crânio. É uma ideia de «esqueleto psíquico» que
vemos surgir aqui: a ossatura surge como ponto de apoio para
uma nova abordagem da expressividade, contemporânea de uma
maior preocupação com o indivíduo, com o fundamento último
da sua integridade. O binómio vivo/morto começa a sobressair,
atravessando o romantismo do século xix e instaurando-se, insi-
diosamente, como espantalho da modernidade.
A partir daqui, a preocupação com a expressividade do rosto
encontra-se com a preocupação com os limites finitos do corpo e
do sujeito, com a percepção de que o homem não é senão um ser
vivo animado por uma consciência, cuja identidade não resistirá
à degradação da matéria que o suporta. Toda a questão da desin-
tegração do Eu, e, por conseguinte, da ferida narcísica provocada
pela morte começa a ser manifesta na obsessão com a oposição
entre a rigidez fixa da ossatura e a incerteza de uma identidade
que se percepciona restringida à matéria32. Não será por acaso
32 Incerteza e inconsistência que encontramos bem explícita no poema modernista de

Mário de Sá-Carneiro: «Esta inconstância de mim próprio em vibração/ É que me há-de trans-
por às zonas intermédias,/ E seguirei entre cristais de inquietação,/ A retinir, a ondular…(…)»:
Sá-Carneiro 1916: 196.

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que uma boa parte da arte romântica figurará o esqueleto como


duplo ameaçador do sujeito: o esqueleto, a ossatura, é o único
resíduo sólido do Eu, a única coisa sustentável do ser a partir do
momento em que deixa de respirar, mas, ao mesmo tempo, o
sinal mais evidente de que isso já aconteceu…
O século xix acentua este olhar perscrutante sobre o rosto.
Olhar analítico e obsessivo, que centra as investigações sobre a
expressão na análise fisiológica e biológica, aprofunda a percepção
do detalhe. Uma das obras que marcam esse género de aproxima-
ção ao indivíduo é o ensaio de Charles Darwin, The Expression of
emotions in Man and Animals (1872): é a época de afirmação/
/confirmação das «ciências humanas».
A eclosão do saber científico sobre o homem é contemporâ-
nea da ideia filosófica de «massa», no sentido da imagem social do
proletariado que Marx teorizou. A «indistinção» do eu no seio da
massa33 vai simultaneamente criar a obsessão com a distinção, a
personalidade, a afirmação individual. Reforçando a análise de
Gisèle Freund, Courtine & Haroche referem o acentuar da «divi-
são dos corpos e dos rostos na constituição de um físico popular e
de um físico burguês», que será tema na literatura naturalista, e na
fotografia. A ideia de condição social é agora manifesta, e instaura
uma tensão com a afirmação da individualidade.
A condição do anonimato é acompanhada da passagem dos
estudos fisiognomónicos para uma «antropologia», com a sua ver-
tente criminal na teoria de Lombroso: «os retratos já não têm
nome, mas número; a identidade de um indivíduo é garantida
pela identidade com um tipo» (Courtine & Haroche 1988: 223).
A aparência de um rosto remete para a sua identidade como para
a sua identificação. Igualmente, Charcot, na Salpêtrière, analisa o

33 Indistinção que vinha sendo preparada desde a Revolução Francesa, com a noção de

igualdade e liberdade individual, associada à crescente afirmação da noção, abstracta, de cidadania.

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«ataque histérico» através de sequências fotografadas, com a pre-


tensão de chegar a um «esquema».
O rosto assume assim, na mentalidade moderna, o valor de
um lugar permanente de interrogações sobre a identidade, muito
mais do que, como nos séculos anteriores, constituir um pólo de
reflexão sobre invariantes do ser humano ou sobre formas de con-
trolo do mundo. A partir do século xix, o rosto é o lugar do esgar
e da convulsão histérica, sintomas do confronto do sujeito com
as fronteiras da sua identidade34. É o lugar da relação incrédula e
esquizóide com o espelho.

Este trajecto serviu-nos para verificar a existência de um dis-


curso especulativo que tende a projectar sobre o corpo as dicoto-
mias da alma: bom/mau, verdadeiro/falso, sublime/abjecto. Que
igualmente tende a mediar pelas representações do corpo a inter-
rogação sobre a identidade específica (do «Ser») e psicológica do
ser humano. Verifica-se pois uma tentativa de descentramento do
Eu relativamente às imagens do corpo, quer como suporte meta-
fórico do pensamento, quer como pólo de referência intersubjec-
tiva, quer ainda como lugar de projecção de conflitos identitários.
A emergência dos discursos sobre o corpo, enquanto lugar
concentrado da reflexão sobre a identidade cultural e psíquica no
século xx, são dessa movimentação um testemunho incontorná-
vel. O que podemos concluir para já, é que a imagem do corpo é
uma referência fundamental no discurso do homem sobre si pró-
prio; e que, à medida que encontramos modificações históricas e
culturais nesse discurso, essa imagem do corpo é reconfigurada e
posta ao serviço das novas formas de relacionamento com a da
identidade.

34 Não será por acaso que o maior holocausto do século vinte tem por fundamento a ques-

tão da identidade cultural a partir de uma identidade física: a do corpo ariano contra a do corpo
judeu: a ameaça da confusão e da alteridade é o suporte escondido do discurso afirmativo ariano.

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III

O CORPO PSICANALÍTICO E
A FORMAÇÃO DO EU
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I
O CONCEITO DE NARCISISMO: FREUD

Para Freud, desde a «Introdução ao Narcisismo», publicado


pela primeira vez em 1914, ainda antes da formulação da segunda
tópica, o conceito de narcisismo pressupõe uma distinção: entre
«líbido do Eu» e líbido objectal, que surge no prolongamento da
diferenciação entre «instintos do eu» e «instintos sexuais». Esta
distinção toma por modelo dois exemplos: a fome e o amor.
A existência de um narcisismo secundário35 depende de uma
retracção da líbido sexual que foge dos objectos exteriores e se
refugia na ilusão da omnipotência autárcica. O Eu é libidinal-
mente investido, quer através da idealização – investimento num
ideal, mas de forma não sublimada, quer através da megalomania
– engrandecimento do Eu face aos objectos possíveis.
Para Freud, «as tendências instintivas libidinosas sucumbem
a uma repressão patogénica quando entram em conflito com as
representações éticas e culturais do indivíduo» (Freud 1914: 2028);
esta repressão implica a formação de um «eu ideal», relativamente
ao qual o indivíduo constantemente se compara. Enquanto na
lactência o narcisismo investe num eu verdadeiro, considerado
como o centro absoluto de tudo, agora o «amor ególatra» consa-
gra-se a este Eu ideal, desligando-se dos objectos «reais» e atingin-
do formas de «corte» com a realidade, como no caso da paranóia.
A auto-estima tem uma estreita relação com a líbido narcisista:

35 Freud estabelece uma diferença entre o narcisismo primário absoluto e o narcisismo secun-

dário: o primeiro teria o seu protótipo na vida intra-uterina, e é um narcisismo não-objectal,


situando-se numa fase da evolução psicogenética em que existe ainda uma indiferenciação entre
o Ego e o Id. Os aspectos que analisamos aqui referem-se ao narcisismo secundário, contempo-
râneo da formação do Ego e resultante de um investimento da líbido no próprio Ego mas através
de identificações aos objectos.

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tudo o que uma pessoa possui ou consegue, cada «resíduo da pri-


mitiva omnipotência confirmado pela experiência» ajuda a incre-
mentar a auto-estima.
O que nos interessa mais aqui é a ideia de que a evolução do
Eu consiste num afastamento do narcisismo primário e numa
«intensa tendência a conquistá-lo de novo» (Freud 1914: 2032),
afastamento que se concretiza no deslocamento da líbido sobre
esse «Eu ideal», imposto do exterior, e sobre objectos do mundo
externo.
Freud estabelece três fontes para a auto-estima: o resíduo do
narcisismo infantil; a omnipotência confirmada pela experiência
de cumprimento do ideal; a satisfação da líbido objectal.
Na relação entre investimento corporal e representação do
Eu, importa reter a dualidade narcisismo / objectalidade, no senti-
do de que são duas dimensões estruturantes da acção que de certa
forma se opõem, mas que são complementares. Esta oposição
coincide com a oposição, desenhada teoricamente por Freud,
entre líbido do Eu e líbido objectal.
A representação do corpo, no quadro do narcisismo, resulta
de uma percepção fragmentada de si, já que aquele deriva, como
vimos em cima, de uma repressão da líbido, que empurra esta
para um «investimento ideal»36.
Uma vez que o narcisista se concentra na possibilidade da
sua auto-suficiência afectiva e/ou material, a sua atenção vai para
os limites a essa auto-suficiência (proveniente dos objectos) que
ele não poderá controlar. Como veremos adiante, a partir da aná-
lise de Christopher Lasch, esse parece ser um traço dominante da
cultura ocidental do século xx. Freud defendera já que o ódio,
36 Neste sentido, a morte, a degradação física, a doença, a contaminação, que podem

tomar dimensões paranóides, são factores extremamente angustiantes no quadro de um compor-


tamento narcísico. Não será pois por acaso que esses são alguns dos «grandes temas» da arte con-
temporânea e particularmente da auto-representação.

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como relação com os objectos, é mais antigo que o amor, na


medida em que resulta de «uma recusa primordial do ego narcísico
para com o mundo externo e a sua efusão de estímulos» (Freud
1915: 223).
Por essa razão defendeu também Freud que o amor e o ódio
não podiam ser relacionados com as pulsões, mas com o ego, por-
que «se o objecto é fonte de sentimentos de desprazer, há um
impulso que luta para aumentar a distância entre o objecto e o
ego, e para repetir em relação ao objecto a tentativa original de
fuga do mundo externo»37. As relações de amor e ódio estariam
assim reservadas «para as relações entre o ego total e os objectos»
(Freud 1915: 223).
Certos aspectos conceptuais do conceito de narcisismo foram
objecto de novas reflexões a partir de Freud. É o que veremos
mais adiante.

37 Freud 1915: 223. Relativamente a esta questão, parece-nos relevante o esclarecimento

de Kohut: «A antítese do narcisismo não é a relação objectal, mas o amor objectal. A profusão de
relações objetais de um indivíduo, no sentido do observador do campo social, pode esconder a
sua experiência narcísica do mundo objectal; e o isolamento e solidão aparentes de uma pessoa
podem constituir o ambiente adequado para uma riqueza de investimentos objectais reais.»
Kohut 1972: 9.

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II
O «EGO-PELE» DE DIDIER ANZIEU E
OS DADOS ETOLÓGICOS

A interpretação freudiana da importância do olhar e do tocar


como fundamentalmente ligados a uma pulsão erótica, sublima-
da ou não, é corroborada por outros autores, num longo debate,
que foi muito aceso nos anos 60/70, entre etologistas e psicana-
listas. Algumas importantes descobertas etológicas, no domínio
da vinculação primitiva do bebé à mãe, da impregnação precoce
de comportamentos instintivos («imprinting»), ou dos cuidados
primários relacionados com o contacto-conforto, levaram um
conjunto de teóricos a postular a relação dual precoce da criança
como o veículo fundamental para o seu desenvolvimento afectivo
e cognitivo, e, basicamente, para a sua socialização38.
Spitz (A Vinculação 1974), com a observação em instituições,
defendeu a tese do «hospitalismo»: observou que crianças lacten-
tes, em situação de separação da mãe, entravam frequentemente
em processos de regressão até à morte, mesmo que os seus cuida-
dos básicos não fossem descurados pelas funcionárias da institui-
ção. O que o levou a concluir que esta regressão era causada pela
impossibilidade de estabelecer uma vinculação preferencial a um
outro ser, dado que os cuidados, apesar de eficientes, eram minis-
trados indiferentemente pelo grupo de enfermeiras de serviço.
Harlow (A Vinculação 1974), com experimentações em labo-
ratório em macacos-bebés, defendeu a existência da vinculação
primária a um ser, fundada naquilo a que chamou a necessidade
de «contacto-conforto». Por outro lado, Bowlby (A Vinculação
1974), ensaiou a defesa de uma vinculação primária que seria

38 Cf: A Vinculação 1974.

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independente da pulsão oral defendida por Freud (e associada


por este à actividade alimentar); isto é, que não estaria de modo
algum associada a uma pulsão sexual infantil, estando mais depen-
dente de certas necessidades inatas, como a do movimento.
No entanto, é num texto de Didier Anzieu, «A pele e o pen-
samento», que me parece estar a chamada de atenção para a pos-
sibilidade de conciliar os dados etológicos – resultantes da experi-
mentação, com os pontos de vista psicanalíticos – metapsicológi-
cos. Anzieu defende que não deve opor-se a ideia de uma necessi-
dade de vinculação primária (attachement) à da existência de uma
pulsão oral no sentido em que Freud, pela primeira vez, a abor-
dou. Pelo contrário, os resultados da observação e experimenta-
ção dos etólogos, que salientam o papel da ligação necessária a
uma primeira figura, permitem, no entender de Anzieu, aprofun-
dar a extensão das pulsões eróticas primárias do bebé, no sentido
de um envolvimento alargado e difuso com o primeiro objecto ao
qual se encontra ligado. Mas para Anzieu, mesmo que «o aleita-
mento seja para o lactente ocasião de dois prazeres consecutivos:
o de sucção e o de replecção», as pulsões orais não se limitam «a
uma experiência da cavidade bucofaríngea» (Anzieu 1974: 120).
Remetendo para Freud, este autor refere que a actividade de suc-
ção do polegar parece estar na origem da vida interior, na medida
em que permite à criança alucinar o seio materno na sua ausên-
cia39: «É assim que o desejo, realidade puramente psíquica, nasce-
rá por apoio sobre a necessidade biológica de alimento, e que o
devaneio, primeira actividade mental pura (de tipo metonímico),
se produz» (Anzieu 1974: 124).
A par da sucção, a pele tem um papel semelhante. É através
do contacto epidérmico que o bebé configura a relação com a mãe.

39 Este aspecto está muito bem sintetizado por Hanna Segal, retomando W. Bion:

«Somente quando o bebé pode reconhecer a ausência do objecto é que ele é capaz de simbolizar
ou pensar»: Segal 1991: 69.

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É a partir dela que estabelece uma troca, que começa a diferen-


ciar percepções, que recebe os gestos maternos «não apenas como
prazer, como uma excitação geral, mas também como uma men-
sagem» (Anzieu 1974: 124). Neste sentido, o «prazer de excitação
da pele é um prazer difuso global», que conviria definir como
não-sexual, mas erótico. Por outro lado, e em consequência de
todas estas valências, a pele serviria como um veículo precoce de
diferenciação do ego, funcionando simultaneamente como invólu-
cro e como barreira, como veículo para filtrar trocas e estabelecer
fronteiras. Assim, a relação que estabelece entre oralidade e pele
leva-o a teorizar o conceito de «Ego-pele».
A questão que nos parece aqui mais importante é a da consti-
tuição das fronteiras psíquicas, que permitem a construção da
identidade, ao delimitar o mundo externo do mundo interno.
É talvez, difusamente, a esta ideia que Barthes revém constante-
mente na referência ao «Tu es cela» configurado pela mãe e pela
sua palavra protectora: «… a Mãe gratificante, ela, mostra-me o
Espelho, a Imagem e fala-me: “Tu és este”. Mas a Mãe muda não
me diz quem eu sou: (…) flutuo dolorosamente sem existência»40.
Para Anzieu, a conceptualização do Ego-pele, numa perspecti-
va psicanalítica, implica a valorização dos fantasmas conscientes,
pré-conscientes e inconscientes e do papel destes como «ponte e
écrã intermediário entre a psique e o corpo, o mundo»41. Enquanto

40 Barthes 1977: 200. É também com esta ideia que o mesmo autor abre «Barthes par lui-

-même», referenciando-se certamente a Lacan: junto a uma imagem da mãe com o filho ao colo,
Barthes reitera: «Le stade du miroir: “Tu est cela”». (Barthes 1978: 6). A ideia da palavra funda-
dora vem de encontro ao conceito de bom objecto interno (Klein; Winnicott) que deriva da capa-
cidade de internalização de experiências gratificantes na relação dual primitiva: «Maturity and
the capacity to be alone implies that the individual has had the chance through good-enough
mothering to build up a belief in a benign environment. This belief is built up through a repeti-
tion of satisfactory instinctual gratifications»: Winnicott 1958: 417.
41 «Le Moi-Peau est une réalité d'ordre fantasmatique: à la fois figurée dans les fantasmes,

les rêves, le langage courant, les attitudes corporelles, les troubles de pensée; et fournisseur de
l'espace imaginaire constituant du fantasme, du rêve, de la réflexion, de chaque organisation
psychopathologique»: Anzieu 1985: 4.

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intermediário entre a criança e o mundo (a mãe), o «Ego-Pele» é-o


em dois sentidos: cronologicamente, entre a mãe e o bebé; estrutu-
ralmente, entre a inclusão mútua dos psiquismos na organização
fusional primitiva e a diferenciação das instâncias psíquicas corres-
pondentes à segunda tópica freudiana (Anzieu 1985: 4).
O fundamento das pesquisas de Didier Anzieu apoia-se
sobretudo em dados biológicos relativamente ao funcionamento
celular e às características físicas da pele. A pele é um sistema de
várias sensações (tacto, pressão, dor, calor) e está em estreita rela-
ção com os outros órgãos dos sentidos externos (ouvido, visão,
odor, gosto), bem como com as sensibilidades quinestésica e de
equilíbrio. Mas a função mais central, que se estende à maior
parte dos órgãos dos sentidos, da postura, e mais tarde da motri-
cidade, é a troca de sinais com o meio envolvente, sob a forma de
um «duplo feedback» (Anzieu 1985: 14).
Para Bergler (Bergler 1976), por outro lado, a percepção do
mundo externo na infância é um campo gerador de medos. Ao
analisar esses medos, Bergler situa-os nos primeiros tempos de
vida, distinguindo sete medos básicos que pouca relação têm com
factos42: «tout le developpement de l’enfant dépend de ses efforts
pour maintenir sa toute-pouissance et son autarchie infantiles et
parer aux continuels assauts de la réalité qui se dirigent à l’encon-
tre de ce but merveilleux» («Todo o desenvolvimento infantil
depende dos esforços para manter a omnipotência e a autarcia
infantis e aguentar os contínuos assaltos da realidade que contra-
riam esse maravilhoso objectivo») (Bergler 1976: 36) As pulsões
fusionais constituem assim defesas, narcísicas, contra a ideia de
diferenciação e separação, exprimindo conflitos relativos às fron-
teiras entre o Eu e o outro, que o mito de Narciso ilustra.
42 Bergler 1976. Ver em particular «Symptomes et signes de la régression orale»: 17-39.

É aqui que o autor contabiliza os «medos infantis»:1) medo de morrer de fome; 2) medo de ser
devorado; 3) medo de ser envenenado; 4) medo de ser sufocado; 5) medo de ser fragmentado;
6) medo de ser esvaziado; 7) medo de ser castrado. Ver também: Slotowickz 1976.

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A questão das fronteiras do Eu é hoje, para Anzieu, mais


aguda. Enquanto no final do século xix as patologias dominantes
eram a neurose histérica e a neurose obsessiva, o que se verifica
hoje é a incidência nos estados limites e nas patologias narcísicas,
facto constatado pela maioria dos psicanalistas. Os indivíduos em
causa sofrem de uma ausência de limites, expressa através de múlti-
plos sintomas, que Anzieu enumera: incertezas sobre a fronteira
entre o Eu psíquico e o Eu corporal, e entre o Eu real e o Eu ideal;
entre o que depende de si e o que depende dos outros, com brus-
cas flutuações destas fronteiras, acompanhadas de quedas em pro-
funda depressão; vivência das pulsões sob a forma de violência e
não de desejo; confusão entre sensações agradáveis e dolorosas;
vulnerabilidade narcísica; «sentimento de não habitar a sua pró-
pria vida», de ver o seu corpo funcionar de fora (com estranheza),
bem como o seu pensamento, ser o «espectador de algo que é e
não é ao mesmo tempo a sua própria existência»43.
Se se considerarem os dados recolhidos pela psicanálise44, inte-
grados e alargados com a posição de Didier Anzieu, parece-nos
poder estabelecer uma ligação entre esta construção da ordem ini-
cial com a procura da imagem do real fornecida pela fotografia.
A tendência para procurar figuras no fundo não é específica da
fotografia, como vimos no início. Condiciona toda a estratégia
representativa e particularmente a que está mais próxima do
inconsciente: a arte e o mito. O que é específico é que essas figuras

43 Anzieu 1985: 7. Este sentimento de estranheza perante o seu próprio corpo está bem

caracterizado num poema de Mário de Sá-Carneiro, de 1914: «As mesas do café endoideceram
feitas Ar…/Caiu-me agora um braço…Olha lá vai ele a valsar,/Vestido de casaca, nos salões do
Vice-Rei…/ (Subo por mim acima como por uma escada de corda,/ E a minha Ânsia é um tra-
pézio escangalhado…): in Sá-Carneiro 1916: 197.
44 Quando me refiro à «psicanálise», não é apenas ao corpo teórico iniciado por Freud,

mas a um historial teórico mais alargado, onde figuram dados, conceitos e reformulações de
vária ordem, nomeadamente em relação à caracterização dos estádios iniciais de desenvolvimento
do ser humano, tal como podemos encontrar em Karl Abraham, Melanie Klein, Winnicott,
René Spitz, Hans Kohut, entre outros.

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apareçam como reais, e capturadas. Ora, como sugere Serge Tisse-


ron45, a dimensão de captura da fotografia vem lado a lado com
uma outra: a da conexão do sujeito com o mundo, pois «somente
o fotógrafo que se sente presente no mundo pode fazer uma foto-
grafia». Neste sentido, e retomando as pesquisas sobre a relação
precoce de Anzieu, Tisseron estabelece uma ligação determinante
entre a fotografia e a necessidade de assimilação do mundo externo
pelo sujeito. Ao considerar a vida psíquica em termos de «assimila-
ção permanente do mundo externo», este autor valoriza a capaci-
dade da fotografia para guardar as componentes da experiência
com vista a uma assimilação mais ou menos próxima no tempo.
Assim, a «captura» fotográfica seria a resposta à necessidade de
colocar a realidade num envelope subjectivo, garantindo a segu-
rança de uma identidade cada vez mais insegura.
Esta hipó(tese) supera, decisivamente, o impasse colocado
pela tradição, iniciada com Barthes e Sontag, que centra a análise
da fotografia nas noções de captura e de morte, na medida em
que ultrapassa o nível descritivo em direcção a uma conceptuali-
zação e compreensão da fotografia no quadro de uma psicologia
geral.
A fotografia inclui também uma componente de erotização
do olhar, quer em geral na procura das relações figura-fundo,
quer no carácter massajante das imagens fotográficas. Nos «Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade», Freud refere, num aponta-
mento sobre «Tocar e olhar», que o contacto é essencial como
momento intermediário para atingir o alvo sexual: «Toda a gente
conhece», afirma, «que fonte de prazer e que influxo de nova
excitação são proporcionados pelas sensações tácteis da pele do
objecto sexual». E adianta: «O mesmo é verdade no que diz res-
peito ao olhar – actividade que, em última instância, derivou do
45 Cf. Tisseron 1996, pp. 33-36.

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tocar. As impressões visuais continuam a ser a via mais frequente


pela qual é despertada a excitação libidinal.» (Freud 1905: 39.)
Para o autor, o próprio encorajamento do objecto sexual no sen-
tido da «beleza», com o sentido de manter acordada a curiosidade
sexual, é prova disso. Ora a fotografia cria, precisamente, uma
relação entre o olhar e o corpo – a imagem do corpo – que torna
este ilusoriamente presente, e, por conseguinte, ilusoriamente
possuível. Daí que seja frequente a tentação de tocar na fotogra-
fia, como quem toca na pele de um corpo.
Voltando à questão da assimilação psíquica do mundo, esta-
ria ainda em causa uma compulsão para a fusão com a realidade,
sublimada na fabricação de imagens-duplos dessa mesma realida-
de. Recordemos o que diz Nan Goldin sobre a sua relação com a
fotografia: «Eu fotografo directamente a partir da minha vida.
(…) gostaria que não houvesse nenhum mecanismo entre mim e
o momento que fotografo. A câmara é como uma parte do meu
dia-a-dia, como a comida ou o sexo. O instante da fotografia,
apesar de criar distância, é um momento de clareza e de conexão
emocional para mim. (…) O diário é a minha forma de ter con-
trolo sobre a minha vida. Permite registar cada detalhe. Permite-
-me recordar.» (Goldin 1986: 6.)
Compreende-se assim o agonismo latente – entre a contem-
plação e o afastamento – na produção/recepção do auto-retrato
fotográfico que domina grande parte da arte contemporânea.
O auto-retrato surge como suporte das fantasias e devaneios pró-
prios de uma época, ao nível da forma como se afirma a identi-
dade, permitindo uma afirmação fantasmática – e delirante –
do sujeito, a partir da ideia de «verosimilhança» e de duplicação
de si mesmo.
Poderá vislumbrar-se, a partir daqui, alguma luz sobre essa
tendência crescente para a «aproximação de pessoas e objectos,
tendência tão apaixonante como a de querer ultrapassar o único,

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em cada situação, através da sua reprodução», referida por Walter


Benjamin46. Pelas razões apontadas, torna-se importante analisar
os aspectos culturais do narcisismo, já que a duplicação que a
fotografia permite pode ser vista como um alicerce significativo
de alguns traços culturais do carácter narcísico.

46 Benjamin 1931: 127. É este movimento, não tanto de «ultrapassar o único», mas de o

interiorizar, que preside aos milhões de fotografias de turismo, que, muitas vezes, não chegam a
ser reveladas ou levantadas nas lojas (cf. Tisseron 1996: 10).

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III
A «CULTURA DO NARCISISMO»:
LASCH E KOHUT

A designação de «cultura do narcisismo», para caracterizar a


época contemporânea, tem vindo a tornar-se num lugar comum.
Essencialmente teorizada por psicanalistas americanos – Hans
Kohut, Cristopher Lasch, Erich Fromm –, esta caracterização
parte da identificação de certas desordens de carácter que os auto-
res associam também a formas de organização social.
Mas a forma como caracterizam esse «narcisismo» difere sen-
sivelmente de uns para outros. Para Hans Kohut (Kohut 1972), o
narcisismo está associado ao medo perante a integridade do Self,
mas, também, a uma forte componente agressiva – a raiva narcísi-
ca –, muito perto da pulsão de morte tal como Freud a enunciou.
Para Christopher Lasch (Lasch 1978), o homem narcísico do
século xx não pode ser definido por uma «pulsão de morte» pois
procura apenas «a paz de espírito». Vai nesse sentido o investimento
que faz nas terapias, que constituem uma espécie de «anti-reli-
gião», dirigindo o pensamento apenas para «as necessidades imedia-
tas» (Lasch 1978: 13). Esta posição nirvânica de Lasch é também
contrariada pela escola freudiana inglesa (Melanie Klein, Hannah
Segal, Winnicott), que, tal como Freud, fazem remontar à orali-
dade as pulsões agressivas e sádicas do sujeito.
Num dos seus estudos sobre a raiva narcísica, Kohut (1972)
parte de um texto de Heinrich von Kleist, «Uber das Marionet-
tentheater» (1811), escrito pouco antes do suicídio do seu autor.
Nesse pequeno texto o narrador conversa com um bailarino da
Ópera sobre o teatro de marionetas. O bailarino explica-lhe, ao
longo do diálogo, o seu fascínio pelas marionetas, que advém do
facto de aquelas não estarem dependentes da gravidade; o seu

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centro «é a sua alma», e a sua alma é puramente mecânica: por


estas razões, as marionetas seriam perfeitas. Esta teoria é corrobo-
rada pelo seu interlocutor, que lhe conta como um dia, ao ver um
jovem muito belo, numa certa posição que lhe lembrara a de uma
estátua, lhe pedira para a repetir; ao fazê-lo, o jovem ficou aca-
nhado, apenas se tornou motivo de riso, tornando-se, a partir
daí, obcecado com a sua imagem ao espelho.
Para Kohut, a história funciona como paradigma do discurso
narcísico, já que este texto contém quase todas as facetas do nar-
cisismo: o medo relativamente à integridade vital do Self e do
corpo, que é negado através da excessiva valorização dos bonecos
mecânicos, considerados perfeitos; a alusão à omnipotência figu-
rada no desejo de voar e associado à ausência de gravidade; a alu-
são à homossexualidade, ao exibicionismo, ao acanhamento e ao
namoro com o espelho. O único componente que não surge aqui
é o da agressividade*.
A agressividade própria da personalidade narcísica resulta em
grande parte, para Kohut, da repressão do Self grandioso: «Oficial-
mente, a existência de manifestações sociais provenientes do Self
grandioso e do self-objecto omnipotente são negadas, ainda que o
seu domínio dissociado seja visível em toda a parte.»47 Ao reprimir
esses impulsos de dominação e de ambição, «as estruturas narcísi-
cas reprimidas, mas não transformadas, tornam-se intensificadas à
medida que se impede a sua expressão; e terminam rompendo os
frágeis controlos e fazendo aparecer subitamente, não apenas em
indivíduos, mas também em grupos inteiros, a busca desenfreada,
seja de objectivos grandiosos ou de fusão irrestrita com self-objetos
omnipotentes» (Kohut 1972: 84-5).
* A relação desta questão com o conceito de «unheimlich» de Freud é inevitável. Não pode

já ser explorada aqui por limitações de tempo, mas sê-lo-á noutra oportunidade.
47 Kohut 1972: 85. Para Kohut, esta negação do Self grandioso é equivalente à negação da

sexualidade no período vitoriano, e constitui, portanto, tal como aquela, uma atitude «hipócrita».

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Apesar de Lasch não partilhar da ideia de uma pulsão destru-


tiva inata, neste ponto, que me parece muito importante para a
análise do conteúdo de obras de arte contemporâneas, parece
estar de acordo: o autor analisa longamente a vulgarização da
estética confessional (autobiográfica) no século xx, como uma
forma de fazer eclodir desenfreadamente o «narcisismo controla-
do» de que falava Kohut. Lasch refere que, no caso concreto da
literatura, a crescente interpenetração da ficção, da autobiografia
e do jornalismo denota a dificuldade cada vez maior para os escri-
tores em encontrarem o distanciamento («detachment») indis-
pensável à arte: «eles tentam seduzir o leitor em vez de dar um
significado à narrativa» (Lasch 1978: 18).
Contrariamente a certos lugares-comuns de inspiração socio-
lógica, que tendem a descrever o mundo contemporâneo como
centrado na afirmação do Eu e da personalidade, a leitura de
Lasch aponta para uma determinação mais profunda desse dis-
curso do Eu. Na sua crítica a Richard Sennett (The Fall of the
Public Man (1977)), Lasch afirma que o culto da intimidade tem
a sua origem não na assumpção da personalidade, mas no seu
colapso: «Hoje os poetas e novelistas, longe de glorificarem o Self,
relatam a sua desintegração» (Lasch 1978: 30). Convergindo com
os dados sobre os estados precoces analisados no ponto anterior,
o autor considera que as principais características psicológicas do
narcisismo são: o medo da dependência, o refúgio compulsivo
nos outros, o sentimento de vazio, a raiva reprimida, a insatisfa-
ção oral. E são estas características – as psicológicas – que con-
vém, quanto a nós, salientar, em detrimento de uma caracteriza-
ção mais social ou mesmo moral – como encontramos em Erich
Fromm (Fromm 1968) –, que tende a caracterizar o narcisismo
mais como sinónimo de «egoísmo» e de individualismo associal,
centrado na vaidade e na auto-admiração. O narcisismo não é,
para Lasch, um simples movimento do egocentrismo. A psicaná-

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lise lida hoje, como refere Anzieu, não com pessoas moralmente
reprimidas, mas com indivíduos de carácter rígido que tendem a
agir («acting out»48) os seus conflitos em lugar de os reprimirem
ou sublimarem. As suas personalidades são basicamente estrutura-
das por defesas contra a raiva e contra fantasmas de privação oral.
Um outro aspecto também muito referido na literatura psi-
canalítica (Kohut 1972) é a divisão interior do sujeito no sentido
da criação de um falso Self: o indivíduo tende a criar uma «persona-
lidade de fachada», conveniente, de vigilância a uma outra interior
e sentida como a «verdadeira», mas não-apresentável. A divisão
surge como uma defesa contra a possibilidade de contacto, que é
visto, no quadro da personalidade narcísica, como uma ameaça.
Este conceito vem assim de encontro às afirmações de Freud aqui
citadas sobre a relação entre o ódio e o Eu, uma vez que este afas-
tamento dos objectos constitui uma forma de ataque do Eu ao
mundo exterior.
A divisão do Self parece surgir, como vimos, da impossibilida-
de de extravasamento dos impulsos grandiosos. Impossibilidade
que Kohut atribui ao «actual racionalismo materialista da cultura
ocidental», que, «se bem que dê maior liberdade para o realce do
self, tende a depreciar ou proibir as formas tradicionais de relacio-
namento com o objecto idealizado» (Kohut 1972: 84). Lasch salien-

48 É difícil a tradução directa da expressão psicanalítica inglesa acting-out, que na tradução

portuguesa do Vocabulário de Psicanálise (Laplanche e Pontalis 1967), revista por João dos
Santos, não é estabelecida. Esta expressão surge para designar um certo agir compulsivo por parte
do indivíduo, que tem por função evitar a elaboração dos conflitos. Na obra citada, os autores
relacionam este conceito com o retorno do recalcado, bem como com um certo género de actos,
exteriorizados dentro ou fora do gabinete do analista, relativos à transferência em curso. No que
diz respeito ao tema analisado neste trabalho, salienta-se a relação estabelecida nesta obra entre o
termo clínico (relacionado com a transferência) e a sua extrapolação para fora dos sistemas tera-
pêuticos: «… depois de clarificadas teoricamente as relações entre o acting out e a transferência
analítica poderíamos indagar se as estruturas assim evidenciadas podem ser extrapoladas para
além de qualquer referência ao tratamento, isto é, perguntar se os actos impulsivos da vida quo-
tidiana não se poderão esclarecer depois de referidos a relações de tipo transferencial»: Op. cit.:
30.

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ta ainda que a cultura actual promove uma ideia da vida como


corrida de obstáculos, denotativa dos seus traços narcísicos: «A per-
cepção do mundo como um lugar perigoso e proibido, embora
originada numa percepção realista da insegurança da vida social
contemporânea, é reforçada pela projecção narcísica dos impulsos
agressivos para fora de si.» (Lasch 1978: 51.)
Relativamente à questão do colapso do Eu, parece-me que
ela é dificilmente equacionável sem o recurso ao conceito de pul-
são de morte: como poderemos compreender essa desintegração
do Eu se não reconhecermos nesse Eu um alargamento a partes
de si mesmo até aí contidas, e que, em determinadas condições
históricas se podem manifestar? Mais do que de colapso do Eu,
será talvez preciso falar de destrutividade interna, manifesta nas
defesas narcísicas que caracterizam quer as patologias dominantes
do século xx, quer certas formas culturais e de organização social.

Se, de acordo com as análises que seguimos aqui, o género


confessional na literatura surge como o acting out do escritor
numa cultura narcísica, reflectindo uma identidade perturbada e
reduzida à imediata exposição de si, o uso da fotografia por um
número cada vez maior de artistas parece constituir também o
acting out – simbólico – do artista, uma vez que a fotografia lhe
permite igualmente a imediata exposição de si. Mas, o que é mais
importante, permite-lhe lidar com a dificuldade de assimilação
dos estímulos do mundo externo, que surge assim domesticável e
tranquilizador.

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IV

FOTOGRAFIA E
A U T O - R E P R E S E N TA Ç Ã O
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I
O «DUPLO» NA ARTE: O DUPLO-SOMBRA OU ESPELHO E
O FANTASMA DA MORTE

Num texto escrito em 1914, intitulado «O duplo»49, Otto


Rank compara o artista criador ao herói, tal como este existiu na
humanidade pré-histórica. Durante os grandes períodos criadores
da cultura, o artista «preenche a função social do herói antigo que
lhe fornece sempre o assunto e o modelo» (Rank 1914: 6). A arte
assumiria pois esse papel de simbolização do inconsciente que nou-
tras épocas coube preferencialmente ao mito e à religião. A ideia
de morte e de desaparecimento, que é uma das mais importantes
determinações da religião e dos mitos, surge também como uma
das determinações fundamentais do discurso artístico.
Também para Jean Clair (Clair 1989) as vanguardas artísticas
constituem uma «fuga para a frente», no sentido de criar a ilusão
de que podemos evitar a morte. Por essa razão, a modernidade é a
mortificação da natureza da arte50.
A reflexão sobre a morte através da arte surge no romantis-
mo, com grande incidência, associada ao tema do duplo: duplo
persecutório, fantasma, espectro, esqueleto omnipresente, voz
«do outro mundo», imagem no espelho que foge ou não se vê,
fotografia… Mas não é certamente por acaso que este tema do
duplo associado à morte surge tematizado essencialmente no
romantismo: o contexto «excessivamente humano» do pensamen-

49 Este texto está incluído, na tradução francesa, na obra Don Juan et son double: Rank
1914.
50 «L’art était née du besoin de conjurer la menace de la mort, et les artefacts produits par

sa praxis, les talismans qui, placés près du corps du défunt, l’accompagneraient dans l’autre
monde. Il est désormais ce déballage au grand jour des musées qui, clinquant et chatoyant, nous
permet de croire, au prix de la mort de l’art, que nous échapperons au fatum oedipéen»: Clair
1989: 174.

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to científico do século xix, transporta para a criação artística a


responsabilidade de resolver os dilemas existenciais – como salien-
tava Clair.
A relação entre o duplo e a morte não é nova nem aleatória.
O duplo está originariamente ligado à ideia de alma, enquanto
esta é vista como essência descarnada, imaterial, que assegura a
continuidade do Eu para além do corpo.
O tema do duplo é o suporte de grande parte dos mitos e das
religiões antigas, reforçado paralelamente com o culto dos gémeos.
Segundo Rank, o culto dos gémeos remonta à origem da civiliza-
ção humana; é uma concretização mítica do motivo do duplo. Os
gémeos estão geralmente associados à ideia de par, que favorece a
ideia de alma dupla essencial à afirmação da eternidade, salien-
tando um princípio auto-criador, que nega o nascimento e afilia-
ção. Em Homero, a psuché, espécie de alma-sombra, habitava o
indivíduo durante a vida, mas só começava a sua verdadeira exis-
tência depois da morte: duplo virtual, ela assegurava o pleno
prosseguimento da essência do indivíduo, e por conseguinte, a
sua eternidade ainda mais plena, uma vez que a psuché só atingia
a sua inteira revelação após a morte do sujeito que ela habitava
(Rank 1914: 6).
O culto do duplo permite uma divisão do sujeito que o sub-
trai à angústia de morte associada ao narcisismo51, diz Rank. Para
este autor, a duplicação surge frequentemente associada ao senti-
mento de culpa, que leva o herói a desresponsabilizar-se de certas
acções do Eu e a encarregar delas um outro eu – a «alma demonía-
ca», o «Diabo», o espelho persecutório: «as tendências e inclinações

51 «Le motif du Double, dont le sens principal dans le folklore se rapporte à l’âme et à la

mort, n’est donc pas étranger dans son essence véritable au narcissisme. Les traditions mytholo-
giques, que nous avons mentionnées, d’après lesquelles le monde serait une création de auto-
-admiration d’un dieu dans le miroir, et surtout les productions littéraires, où à côté du problème
de la mort, le motif narcissique paraît brutal, en pleine lumière ou estompé dans des états patho-
logiques, le prouvent amplement.»: Rank 1914: 83-4.

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reconhecidas como condenáveis são separadas do Eu e incorpora-


das neste Duplo» (Rank 1914: 90). Este aspecto é particularmen-
te evidente no «Retrato de Dorian Gray», onde a contemplação
da imagem de si é indissociável do pavor persecutório de ser con-
frontado com o envelhecimento.
O duplo tem pelo menos duas funções a seu cargo: de pre-
servação do narcisismo, enquanto é eliminada a angústia de
morte associada à destrutividade interna; de afirmação da imorta-
lidade. Por essa razão, a ideia de uma «alma do outro mundo»
que persegue o sujeito, como o «duplo-quadro» de Dorian Gray,
a imagem aprisionante de Narciso, o esqueleto-morte do roman-
tismo, podem ser considerados como estratégias de afirmação de
controlo sobre os limites do Eu, no sentido mágico: mesmo que o
duplo tome características persecutórias, ele assegura a existência
de uma «alma» que resiste à degradação e à morte e cuja imateria-
lidade lhe assegura, circularmente, a incorrupção.
O tema do espelho é reiterado na arte sobretudo a partir do
momento em que a noção de sujeito, do seu enraizamento corpó-
reo e não-transcendente, se configura. Se olharmos hoje de perto
para o trabalho dos artistas do século xx, verificamos que uma
boa parte incide sobre séries auto-representativas e, mais generi-
camente, sobre a imagem do corpo. Não podemos comparar a
ocorrência deste tema na iconografia clássica com a sua ocorrên-
cia a partir do romantismo e, em especial, a partir do século xx.
Se a «Vénus de Rockeby» de Velásquez (c. 1648, National Gallery)
como muitas outras representações do espelho na pintura, tema-
tiza expressamente a ideia de auto-contemplação, não é para
enunciar uma quebra ou um deslize na percepção de si; pelo
contrário, é um acto de auto-confiança e de vaidade que aí se
enuncia. Mas quando observamos, por exemplo, o trabalho de
Francis Bacon, é um cenário muito diferente o que se nos apre-
senta: a auto-representação de Bacon é des-figurante, obsessiva,

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trepidante; nela está implícita uma interrogação sobre o ser, sobre


o sentido da configuração das formas; está implícita uma necessi-
dade de desestabilizar essas formas, construindo movimentos de
sucessão aparentemente acidental. Bacon anuncia a ameaça de
morte do Eu (que é um equivalente simbólico da des-configura-
ção) através da insistência na representação de si deformada.
Anuncia-o porque essa representação é dramática, ou mesmo trá-
gica: deixa entrever a solidão humana, a percepção de si como
non-sense, como em permanente descontinuidade com o mundo.
Parece-me ser essa a principal razão pela qual o pintor fala de aci-
dente52, relativamente à construção das suas formas.
Jean Clair refere que não existe nada mais perturbador para o
sujeito do que deixar de se reconhecer perante a sua imagem: «O
que surge no espelho, quando a imagem já não corresponde ao
seu objecto, é o rosto do demónio, é a expressão do demente ou
o rosto da morte. O homem comum, quando, depois de uma
noite agitada, não se «reconhece» de manhã, diz, bem a propósi-
to, que está com uma cara de «desterrado» (Clair 1989: 167).
Esta associação de ideias de Clair, entre a estranheza da ima-
gem do Eu e o desvario da identidade, é um dos jogos preferen-
ciais de alguns artistas contemporâneos. É o rosto da loucura e da
dilaceração que vemos nas imagens de Jo Spence; é a imagem do
demónio des-figurante que surge em grande parte do trabalho de
Cindy Sherman; é o mal-estar manifesto na degradação corporal
e psicológica em Nan Goldin.
Este aspecto da duplicação, ou duplicidade, vai ser radical-
mente acentuado com o surgimento da fotografia: o desenvolvi-
mento do dispositivo especular vai aí encontrar a sua técnica de
eleição, já que a fotografia permite gerar representações de si

52 «You just don’t know (…) how the image is made at all, (…) because it is really a com-

plete accident»: Sylvester 1975: 11. Ver também: Bacon 1993.

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mesmo com características de realidade. Assim, a estratégia dupli-


cante do sujeito exprime um descentramento de si, um movimento
para fora, que agonisticamente procura denegar/resolver uma divi-
são interna.
Se a fotografia se relaciona, desde os seus inícios, com esta
vertigem do Duplo, é porque permite uma duplicação quase ime-
diata, veloz, respondendo adequadamente à aceleração dos valo-
res de exposição de que falava Benjamin, e que se tornam cada
vez mais determinantes na construção das imagens: «Na fotogra-
fia, o valor de exposição começa a afastar, em todos os aspectos, o
valor de culto.»53 O que comporta, naturalmente, uma diminui-
ção da componente sublimadora que caracterizava a arte.

53 Benjamin 1936: 87. No entanto, Benjamin reserva ainda para o retrato a possibilidade

de a fotografia produzir essa aura, afirmando que esta «… ocupa uma última trincheira: o rosto
humano (…) No culto da recordação dos entes queridos, ausentes ou mortos, o valor de culto
da imagem tem o seu último refúgio. Na expressão efémera de um rosto humano acena, pela
última vez, a aura das primeiras fotografias»: Ibidem.

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II
O EU E A SUA FRAGMENTAÇÃO

Uma das fontes de trabalho de Francis Bacon são as cronofo-


tografias de Edward Muybridge, técnica desenvolvida no final do
século xix, que permitia a captação de uma sequência de movi-
mentos. Esta técnica enquadra-se no conjunto de processos foto-
gráficos destinados a fixar o instante real, e é um dos dispositivos
de representação que permitem descortinar uma preocupação
com a análise do tempo e do espaço. Correlativo deste processo
analítico é um aspecto central no desenvolvimento da fotografia,
e já referido atrás (Frade 1992): a obsessão pelo detalhe.
Ora quer as pesquisas nosológicas de Jean-Martin Charcot
na Salpêtrière, quer sobretudo os trabalhos em cronofotografia
(Edward Muybridge, Etienne Jules Marey, Thomas Eakins), são
testemunhos de uma fragmentação do olhar que começamos a
observar, a partir de então, nos processos representativos. Jean
Clair refere, a este propósito, uma moda do final do século xix e
princípio do século xx. Essa moda consistia em fazer-se fotografar
sob cinco ângulos diferentes, utilizando espelhos, e imprimindo o
conjunto de imagens na mesma folha: o sujeito aparece sentado,
de costas; de perfil direito e de perfil esquerdo; a três quartos à
direita e à esquerda. Duchamp e Henri-Pierre Roché fizeram-se
fotografar em Nova Iorque, em 1917, por este processo. Mas
antes dele, Umberto Boccioni tinha deixado uma fotografia ainda
mais impressionante, porque continha a seguinte legenda: «Io»
(«Eu»), para a imagem de costas; «Noi» («Nós»), para as restantes
(Clair 1989: 165-6). Esta «split-representation» (representação
clivada), como lhe chama Clair, remete-nos para uma característica
central da representação moderna: a visão fragmentária do corpo,
associada à observação do sujeito.
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Para Linda Nochlin, num pequeno livro intitulado «The


Body in pieces/Fragment as a metaphor of modernity» (Nochlin
1994), a modernidade é marcada pela trágica perda da totalidade,
que empurra o sujeito para o discurso metonímico. A autora ini-
cia o seu livro com a análise de um desenho de Fuseli, de 1778-
-79, intitulado «The artist overwhelmed by the grandeur of
Antique Ruins»: o desenho representa um enorme plano de um
pé e de uma mão esculpidos em pedra, como ruínas, junto do
qual um indivíduo (supostamente o artista) está sentado em pose
reflexiva. A autora comenta: «O Moderno constrói-se a partir
desta perda. Num certo sentido, Fuseli dá-nos uma visão parti-
cularmente moderna da antiguidade enquanto perda – uma pers-
pectiva, um corte, que constitui a essência do modernismo repre-
sentacional.» (1994: 8.)
No centro da destruição da totalidade está o guilhotinamen-
to das vítimas do Regime de Terror. A iconografia alusiva a esses
acontecimentos é vasta. Uma tal imagem tão poderosa e sugestiva
da castração (a castração do Rei, simbolizada no corte da cabeça)
é, diz Nochlin, central ao discurso revolucionário da destruição.
Esta imagem da castração será simbolicamente estendida a vários
níveis: não apenas da destruição das monarquias (com a figura
centralizadora do rei) mas, pouco a pouco, será visível na frag-
mentação dos impérios coloniais e na dessacralização da política.
Num outro pólo da representação revolucionária, a fragmenta-
ção surge através da obscenidade. Uma gravura de James Gillray,
«Un petit souper à la parisienne, or A family of Sans-Culotts
Refreshing after the Fatigue of the Day» (1792), mostra-nos uma
espécie de refeição canibal: os convivas sentados à mesa deleitam-se
com uma cabeça cortada, de cujo dono vão tirando pedaços (um
olho, um coração…) que levam à boca; no chão, um grupo de
pequenos homens, de feições monstruosas, devora avidamente o
que parecem ser vísceras; um pouco por toda a sala, pernas e braços

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soltos, corpos desmembrados, completam o cenário. O corpo em


pedaços, o corpo «moderno», é um corpo demasiado próximo e a
sua proximidade torna mais salientes as pulsões de morte expressas
no comportamento obsceno. É um corpo dessacralizado, aquele
que nos sobra dessa fragmentação da imagem total…
Nas pinturas de Géricault, como salienta Nochlin, a expe-
riência da fragmentação do corpo torna-se absolutamente eviden-
te, embora de forma não-obscena: Membros decepados (1818;
1819); Cabeças decepadas (1818), Cabeça de um homem morto
(1818-19) representam imagens de pés e cabeças cortadas no
repouso do lar: o terror da destruição/mutilação invade o cenário
íntimo, próximo, e já não apenas o espaço público dos heróis da
mitologia ou da política.
Na confrontação solitária com o «duplo» de si, a imagem ao
espelho, o Eu fragmenta-se e auto-destrói-se, garantindo dora-
vante uma identidade centrada na obsessão com a morte e com a
necessidade de a representar. Se o retorno de Narciso está presen-
te como indício da modernidade, é um Narciso menos cósmico e
mais carnal (humano) do que na mitologia grega. Um Narciso ao
espelho que, continuando a não se reconhecer tal como no mito,
nos surge, agora, despedaçado. O que acompanha a descoberta
de Freud, de que a pulsão erótica já não é apenas poder aglutina-
dor e força de coesão, mas Trieb, força desorganizadora e mortífe-
ra. O Outro, agora, não é um simples Narciso, é um «Narciso
mudado para Górgone» (Clair 1989: 171). A representação espe-
cular, obsessiva, de si, encontra a até aí ignorada (ou iludida) des-
trutividade do sujeito, a sua desorganização subjectiva, a tentação
em não se reconhecer e em atacar a sua própria imagem: Narciso
encontra-se com Medusa. Van Gogh, por exemplo. Mas também
Munch, Andy Wharol, Mapplethorpe, Francis Bacon, Cindy
Sherman, Nan Goldin, Jo Spence, Duane Michals, Francesca
Woodman, Jorge Molder. A duplicação de si surge como suporte

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da exposição de um Eu fragmentado, esvaziado, morto, pela sua


própria agressividade54. Essa fragmentação ou morte exibida na
representação de si, esse sacrifício do corpo, estratégia utilizada
por um número crescente de artistas contemporâneos, é uma das
características da modernidade.
Já em pleno século xx, Herbert Bayer, artista oriundo da
Bauhaus, produz um auto-retrato impressionante (Autoportrait
1932), no qual se vê ao espelho com o braço decepado e seguran-
do na mão uma «fatia» do mesmo braço, sintetizando os vários
níveis de análise do problema que tenho vindo a esboçar. Por três
razões: primeiro, porque a ideia do espelho incluído na fotografia
demonstra o modo como a fotografia veio ao encontro desse
«insight» que se produz a partir do século xix, e que é contempo-
râneo da psicologia introspectiva e da psicanálise; segundo, por-
que a fotografia permite de uma forma mais radical não só repre-
sentar a ideia de fragmentação, que se manifesta no corte e
enquadramento produzidos no visor, como produz um maior
«realismo» – daí a expressão de espanto dramático do (auto)retra-
tado, como se fosse estranho ao facto, e este tivesse acabado de
lhe «acontecer»; terceiro, porque a observação que o sujeito faz de
si mesmo toma paradoxalmente o carácter de uma encenação tea-
tral, tragicómica, remetendo para o sentimento de divisão interna
produzido no próprio movimento de auto-observação.
É também essa encenação que podemos encontrar nas auto-
-representações de Mapplethorpe. E a penetração da linguagem
da abjecção, do sadismo e da agressão corporal na obra de Cindy

54 Para Clair essa duplicação do Eu está essencialmente ligada, como a psicanálise alertou,

à percepção da morte e à angústia face à morte: «La contradiction qui fait que l’image, répétée,
revue, redoublée, rédupliquée, éprouvée derechef, loin de confirmer son identité, à l’inverse la
bascule et introduit un trouble de la reconnaissance, c’est le mérite de la psychanalyse (…) d’en
avoir expliqué le sens: l’automatisme propre à la compulsion de répétition ne nous livre pas aux plai-
sirs du moi qui se saisirait dans sa parfaite transparence, mais à l’appréhension mordante de la mort,
qui est l’expérience de l’Autre»: Clair 1989: 167 (sublinhado nosso).

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Sherman vem revelar novas direcções na encenação do duplo.


Este deixa de ser caracterizado genericamente como a sombra
persecutória dos contos de Poe ou Dostoievsky, ou o retrato de
Dorian Gray, ou a caveira do romantismo; envereda pela poli-
morfia da destrutividade interna, encenando os pavores moder-
nos da contaminação, do descontrolo existencial, da corrupção
física, do envelhecimento.
A obra de Jo Spence, outro exemplo, resulta de uma necessi-
dade de criar imagens que retratam a sua luta com o cancro, num
diálogo com este como se fora uma figura externa, alheia. Nessas
imagens, a autora aparece nua, apresentando o seu corpo inscri-
ções relacionadas com o local do cancro, com a dor, o horror do
sofrimento corporal.
Em Duane Michals, através de uma linguagem poética, está
sempre presente a reflexão sobre si mesmo: em Self Portrait as a
devil on my 40th birthday (1976), ou Self Portrait as Being Dead
(1987), o autor fala-nos de uma permanente consciência de si
mesmo enquanto ser com-um-limite, levando (através da ironia) a
encenar os fantasmas decorrentes dessa percepção.
O facto de uma grande parte de obras serem hoje auto-repre-
sentativas, parece ser uma continuação do tema do duplo, que a
magia antiga tanto perseguiu. Mas não sendo agora o duplo uma
referência de coesão interna (se é que alguma vez o foi…), a arte
não pode mais assumir a totalidade do corpo humano segundo o
«espelho das proporções» (Clair); a função integrativa do Eu já
não encontra um lugar onde se possa exercer55.

55 Cf. Clair 1989: 171. O que lhe permite concluir que «ce qui vous est le plus proche,

dans la répétition de sa proximité, vous est aussi le plus étranger»: Idem: 173. A fragmentação
moderna da imagem do corpo e do Eu surge-nos bem clara no poema «Apoteose» (1914), de
Mário de Sá-Carneiro: «Mastros quebrados, singro num mar de Ouro / Dormindo fogo, incerto,
longemente… / Tudo se me igualou num sonho rente, / E em metade de mim hoje só moro…(…)
Desci de Mim. Dobrei o manto de Astro,/ Quebrei a taça de cristal e espanto, Talhei em sombra o
Oiro do meu rastro…» in Sá-Carneiro 1916: 197 (sublinhado nosso).

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A fotografia virá possibilitar o acentuar da expressão dessa


destrutividade, ao permitir, por meios mecânicos, a rápida ence-
nação do acto mesmo da fragmentação sucessiva.

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III
FOTOGRAFIA E PERFORMANCE

A importação de conceitos entre os vários domínios artísticos


é hoje prática corrente, e corresponde a uma transmutação das
hierarquias e divisões tradicionais dos saberes. O conceito de per-
formance é um desses casos. Etimologicamente relacionado com
«dar forma», do latim «performare», a palavra tem hoje um senti-
do muito abrangente, sendo usado quer no campo artístico em
geral quer no plano técnico56. Foi associado às artes cénicas,
como o teatro e a dança, apesar de etimologicamente não estar
associada à ideia de espectáculo. O facto de este conceito estar
sobretudo associado à ideia de encenação/desempenho de papéis,
aproxima-o hoje de outras técnicas artísticas e de outras lingua-
gens, como a fotografia. O corte produzido pelos enquadramen-
tos e montagens, a modificação que a luz introduz na forma dos
objectos, a intervenção a nível das escalas, e, sobretudo, a possibi-
lidade de construir cenários como se de instantes da vida se tra-
tasse, vieram mostrar como a fotografia é, também, um dispositi-
vo propício à reinvenção de papéis.
A técnica fotográfica, ao produzir imagens em contiguidade
física com a realidade, veio fornecer um meio ideal para a ficcio-
nalidade do Eu que são o centro do retrato e do auto-retrato.
Cindy Sherman, concretamente na série «Untitled film stills»
(1977-1980), recorre a uma reconstrução de cenários fílmicos,
criando no espectador a ilusão de que está diante da fotografia de
um instante de um filme.57 No campo da análise comunicacional
56 Cf. Carlos 1992: 81.
57 É a própria autora, que, sobre o seu trabalho (não apenas dessa série), nos diz: «I’m
acting enough to go into a kind of trance and draw a caracter up. I have little scenarios in my
mind».

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sob o ponto de vista pragmático, Austin e Searle (Austin 1962;


Searle 1970) designam por performativo tudo aquilo que «não é
verdadeiro nem falso», mas que remete para uma acção constituí-
da pelo facto mesmo da enunciação – é o enunciado performativo
(Austin) ou o speech act (Searle). Este aspecto pode ser relaciona-
do com a fotografia, já que esta comporta uma dimensão (simbo-
licamente falando) de acting-out. O que está explícito na obra de
autores contemporâneos como Sophie Calle (Calle 1994). Calle
faz fotografias que constituem uma espécie de relicário de
momentos da sua vida que ela passa directamente para o especta-
dor, à maneira da escrita autobiográfica ou do diário, que está
hoje tão presente nas publicações literárias. A essas fotografias
junta textos nos quais descreve a situação a que a imagem se refe-
re, funcionando o conjunto como um memento mori; mas, simul-
taneamente, esse conjunto de texto e imagem funciona como
uma espécie de realização fantasmática. Numa fotografia, vê-se
um homem a urinar, de frente, tendo à sua volta as mãos de uma
mulher que lhe segura no pénis. A imagem é acompanhada pelo
seguinte texto: «Nos meus fantasmas, sou eu o homem. Greg
apercebeu-se rapidamente disso. Talvez por isso propôs-me um
dia ajudá-lo a urinar. Isso tornou-se um ritual entre nós: eu
encostava-me a ele, desabotoava-lhe às cegas as calças, pegava no
pénis e esforçava-me por colocar-me na posição apropriada, fazer
boa pontaria. (…) Pouco depois da nossa separação propus a
Greg fazer uma fotografia deste ritual. (…) Este cliché serviu-me
de pretexto para pousar a mão sobre o sexo dele, uma última vez.
Nessa noite, aceitei o divórcio.» (Calle 1994: 60-61). Nan Goldin,
por seu lado, afirma: «Estas fotografias provêm de relações, não da
observação» (Goldin 1986: 6). Esta ideia de acção, associada à
representação fotográfica faz-nos compreender a associação, na
fotografia, entre o dispositivo encenatório (falseante, construído)
e o dispositivo capturante (de acção sobre/dominação).

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Peggy Phelan (Phelan 1993), que utiliza expressamente o


conceito de performance em relação à fotografia, diz-nos que a
imagem fotográfica é sempre uma cópia de uma cópia, implica
sempre dois58. Aqui reencontramos a velha ideia de Aristóteles, de
que a mimesis refaz o original, mantendo a semelhança com ele.
A duplicidade mimética da fotografia, no sentido aristotélico – «o
mimema não é a mesma coisa nem completamente outra» – com-
porta essa brecha que abre para um dispositivo encenatório do Eu.
Um outro aspecto salientado por Peggy Phelan é que a repro-
dução mimética da imagem de si envolve sempre um desvio pelo
suposto olhar do outro: «Para nos reconhecermos num retrato (ou
num espelho), imitamos a imagem que imaginamos que o outro
vê» (Phelan 1993: 37). Nesse sentido, a performatividade da foto-
grafia implicaria, indirectamente, uma ideia de presença virtual do
espectador, em função do qual a imagem é produzida. Podemos
interpretar esta inevitável passagem pelo espectador como um sin-
toma de ameaça narcísica, na medida em que esse jogo ou anteci-
pação alucinatória perante o Outro remete para o sentimento de
perda precisamente desse Outro, possível fundador de uma auto-
-referência estável. Daí a flutuação pela auto-representação obsessi-
va, o centramento na imagem do corpo, a ideia de (se) representar,
de exposição permanente de si, de exterioridade absoluta, que
caracteriza a arte contemporânea, com especial incidência na foto-
grafia59. Francesca Woodman é um bom exemplo disso.
Nesse sentido, o auto-retrato seria uma forma de repetir uma
perda originária, resultante da clivagem do Eu de que falava
Freud – clivagem entre o Eu e o inconsciente –, e revelando, de
forma denegatória, a percepção da impossibilidade de coincidên-
cia consigo mesmo do sujeito.
58 «Reproduction within portrait photography is always a double copy: an imitation of the

gaze of the other and a copy of the negative»: Phelan 1993: 36.
59 E o livro Made in Heaven, de Jeff Koons e Cicciolina (1987) é um caso-limite dessa

exterioridade absoluta do auto-retrato que a fotografia permite.

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Uma das características que acentuam o carácter performati-


vo da fotografia é a construção de narrativas a partir de sequên-
cias de imagens. Em Duane Michals, por exemplo, encontramos
aquilo a que se poderá chamar uma narrativa fotográfica: o fotó-
grafo constrói pequenas séries de imagens, acompanhadas de bre-
ves textos, nas quais surgem ele próprio ou os seus personagens.
A fotografia permite-lhe o delírio da omnipotência – característica
inseparável do inconsciente –, que o próprio fotógrafo conscien-
cializa (ver entrevista): a imagem de si depois de morto, que con-
cebe em Self Portrait as Being Dead, é algo que nunca poderia
ver, tal como acontece com os retratos «como morta» de Florence
Chevalier (ver entrevista). A fotografia serve-lhes assim para
ultrapassar esse limite vital. O caso do diário fotográfico expli-
citamente intitulado «London Diaries» (1994), de Daniel Blau-
fuks, parece mesmo relacionar a nova literariedade, associada à
escrita diarística (ou «escrita-psicanálise») com o dispositivo ime-
diatista da fotografia – o que não faz senão realçar ainda mais o
carácter auto-encenatória da obra. Em Helena Almeida encontra-
mos também um percurso centrado na reconfiguração da sua
própria figura, sob a forma de sequências, quer em fotografias
quer em serigrafias, numa pesquisa desenvolvida ao longo de
trinta anos. No caso de Jorge Molder, cujos últimos anos têm
sido preenchidos com séries nas quais a única figura é a do pró-
prio autor – The secret agent (1993), Inox (1995), T.V. (1996)
Anatomia e Boxe (1998), Nox (1999) –, vemos a auto-representação
surgir através de temas em torno dos quais o autor encena figura-
ções teatrais. Ao afirmar que não se reconhece nas suas fotografias,
Molder (Molder 1995) sublinha esse jogo de reconhecimento/des-
-conhecimento que caracteriza a performatividade fotográfica. Se
considerarmos, com Freud, que a multiplicação das representações
do Eu está ligada à angústia de morte, a auto-representação estará
então relacionada com uma estratégia subjacente de recusa da

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morte, que a fotografia permite adequadamente exprimir. Júlia


Ventura é ainda um outro exemplo no contexto português.
Enquanto na pintura – como é o caso de Bacon – o dispositi-
vo performativo é igualado ou mesmo suplantado pelo figurativo,
pelo processo gerador das formas, na fotografia domina o primei-
ro, porque domina também o «esteve lá» de que falava Barthes.
Poderemos imaginar, a partir de uma pintura, que o pintor nela se
auto-retrata mas que já morreu, que mais não é do que pura von-
tade ou um puro espírito; não podemos imaginar isso a partir de
uma fotografia, já que esta implica a presença física do retratado60.
O carácter performativo da fotografia está pois associado às
suas possibilidades miméticas e mecânicas: através do auto-retra-
to fotográfico, o artista pode destruir, reconstruir, ficcionar o seu
Eu, com a garantia de que a imagem construída comporta consi-
go um estatuto de discrição quanto ao seu dispositivo falseante.
O auto-retrato fotográfico comporta assim, pela sua imediatez,
uma dimensão mágica: o artista pode agir o seu desejo da mesma
maneira que o ritual mágico permite ao crente a ilusão de, com
esse acto, transformar a sua existência.
Inversamente, uma arte tradicionalmente performativa como a
dança está hoje condicionada, em grande parte, pelos aconteci-
mentos da realidade: a doença, a morte, a solidão, a contaminação,
a catástrofe, a guerra, são temas dos quais muitos coreógrafos, entre
os quais Bill T. Jones, Pina Bausch – em Portugal Francisco
Camacho, Vera Mantero –, partem para construir as suas coreogra-
fias. Usam fotografias e gravações áudio como elementos cénicos
integrantes dos seus espectáculos. Em «Still / Here» (1995), Bill T.
60 É o que nos diz Bazin: «O universo estético do pintor é heterogéneo no universo que o

envolve. O quadro encerra um microcosmo substancial e essencialmente diferente. A existência


do objecto fotografado participa, pelo contrário, da existência do modelo como uma impressão
digital e, assim, ela junta-se realmente à criação natural em vez de a substituir por outra.»: Bazin
1945: 20. Hoje, no entanto, esta diferença tende a esbater-se, já que, com os novos processos de
digitalização da imagem, é possível recuperar uma imagem do passado (do morto) e integrá-la
num cenário actual.

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Jones faz ouvir a voz de uma rapariga com um cancro na cabeça, ao


mesmo tempo que projecta slides de um rosto: «O meu corpo às
vezes é o demónio no meu espírito, outras vezes é música nos meus
ouvidos. Por que é que eu estou viva e os outros já morreram?»
Esta contaminação entre os dispositivos enunciativos das
artes é outro dos elementos que reforçam a ideia de incerteza do
Eu perante os limites do seu discurso e do seu corpo, ou da emer-
gência das pulsões destrutivas.
A miscigenação entre realidade e ficção (um dos traços do
delírio psicótico), que é um elemento integrante do Eu na moder-
nidade, está hoje igualmente muito presente em qualquer repre-
sentação de si. As modulações da imagem do sujeito parecem sig-
nificar uma tendência para tornar confuso o sentimento de identi-
dade, para questionar permanentemente: «Quem sou eu? Estarei
vivo ou morto?» –, sintomas de uma relação alucinada com a rea-
lidade. Esse facto parece surgir de um sentimento de descontinui-
dade do tempo e da experiência, que induz a ruptura permanente
com os laços ao mundo exterior, e que é também o sintoma de
uma descontinuidade psíquica e afectiva – um traço da «cultura
do narcisismo».
Esta reflexão tem por objecto mostrar que a valorização da per-
formatividade da fotografia se desenvolveu simultaneamente a esse
processo de desestruturação cultural da identidade, e de reestrutura-
ção em função do narcisismo: à medida em que a imagem fotográ-
fica é trabalhada pelo sujeito cada vez mais no sentido do auto-
-retrato, esse retrato anuncia-nos um Outro, revelando partes do
sujeito que tendem para a auto-destruição e para o descentramento.
Parece-me poder estabelecer aqui, então, uma relação entre o
falso Self, a procura cada vez maior dos dispositivos auto-repre-
sentativos na arte e a miscigenação entre a realidade e o delírio, já
que todos eles concorrem para enunciar/anunciar uma preocupa-
ção de base face ao relacionamento do sujeito com o mundo
exterior e à sua identidade.

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CINDY SHERMAN: IDENTIDADE E


DEFORMAÇÃO DA IMAGEM DO CORPO
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I
UMA FANTASIA DE INFÂNCIA:
«UNTITLED FILM STILLS» (1977-80)

Na obra de Cindy Sherman parecem-me confluir diversos


aspectos que são nucleares para o tema da auto-representação: 1)
o questionamento da identidade e da sua configuração psíquica;
2) a projecção sobre o corpo da interrogação sobre a identidade;
3) o uso da fotografia como linguagem privilegiada para encenar
o discurso auto-referencial.
Comecemos pela sua primeira série, «Untitled film stills».
A autora figura em todas as imagens. Mas permanece irreco-
nhecível, num certo sentido. Estas imagens remetem-nos para
um certo reconhecimento, mas é o reconhecimento de cenários
muito comuns nos filmes da série B americana, dos anos 50 e 60:
mulheres que seduzem, que pedem boleia com uma mala na
estrada, que fazem pose. Os títulos não referem a identidade da
figurante, nem sequer identificam o cenário: apenas identificam
as imagens como títulos de uma série, como se, de facto, fossem
imagens extraídas de filmes. Cindy Sherman, nestas séries, com-
põe imagens-simulacros que recriam essa «ambiance» feminina dos
anos 50/60, conseguindo um efeito de naturalismo: acreditamos
estar diante de uma verdadeira fotografia de «plateau», ou um
«fotograma», como a própria autora insinua. Com este efeito, a
imagem produzida ganha a dimensão – falsa – de «instantâneo»
de filme; pressupõe que foi retirada do contexto de uma narrativa
na qual a figura – da fotógrafa – é suposto ter uma performance
específica e relevante.
O trabalho da artista é pois o de representar papéis, mas de
uma forma, como disse atrás, «naturalista»: nada nos remete para

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o original do qual esta imagem seria uma encenação, ou uma


cópia no sentido platónico: elas são antes um simulacro, uma
cópia da cópia, já que tentam imitar um instante de uma sequên-
cia fílmica imaginária. Desde logo Sherman se inscreve numa
lógica pós-modernista, já que se permite a construção de um sis-
tema significante cujo referente é engolido pelo próprio processo
de fabricação, impossível que está de poder aparecer diante dos
nossos olhos – porque não existe. A ilusão de instantâneo (apesar de
«fílmico»), remete igualmente o personagem para um fechamento:
não conseguimos vislumbrar, a partir dela, a Cindy Sherman ori-
ginal, do qual estas figuras seriam apenas imagens encenadas;
pelo contrário, a sensação é a de que aquela figura só pode existir
através desses papéis que representa61. Estamos diante de um
género de auto-retrato não «canónico», de onde está ausente o
sentido psicológico, de auto-questionamento, do termo.
Neste sentido, a fugacidade do momento associada à imagem
fotográfica não é aqui um verdadeiro memento mori, mas apenas
enuncia a condição de alteridade do sujeito, o seu esvaziamento
interior, metaforizado nas máscaras sociais. É essa a razão pela qual
Arthur Danto nos diz que, em «Untitled Film Stills», Sherman nos
fala da «rapariga» («The Girl»): «… nenhuma das imagens de
Cindy Sherman trata da Cindy Sherman como se fosse. Elas são
d’A Rapariga, para quem Cindy Sherman posa. Portanto as ima-
gens são de Cindy Sherman num sentido acidental e mesmo
secundário relativamente a cada um dos trabalhos, mas num senti-
do central e essencial se considerarmos o trabalho no seu todo»62.
Embora discordemos da linha divisória estabelecida por este
autor entre auto-representação e utilização de si próprio na obra

61 Esta serialização de papéis femininos fez com que o trabalho de Cindy Sherman fosse

interpretado, na literatura feminista, como uma reflexão em torno da ideia da mulher-como-


-imagem («woman-as-image»). Cf Krauss 1993a: 41.
62 Danto 1990: 10.

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apenas como modelo63, bem como da fixação do trabalho de


Sherman a um trabalho sobre universais ideológicos (The Girl), o
facto de se prestar a essa leitura não deixa de ser importante.
Porque um dos traços que caracterizam esta série é a postura de
performance assumida pela fotógrafa, e salientada por Danto: «A
sua singularidade deve-se ao facto de serem simultaneamente
fotografias e performances»64. Ora é precisamente esse carácter
performativo que nos interessa salientar, não no sentido apenas
de jogo sobre representações sociais, mas no sentido de um jogo
onírico/fantasmático do sujeito consigo mesmo: o jogo é o da
exposição de si, da colocação de si mesma em evidência, da única
forma segura: através da fotografia por ela mesma controlada.
Finalmente, a série Untitled Film Stills deixa-nos a imagem
de um ser que arrisca com a fabricação de uma alteridade perma-
nente a possibilidade de concentrar sobre si mesma os holofotes
do «plateau», de estar no palco, assumindo ao mesmo tempo
uma atitude de distância – denegatória – face a esse desejo65. Essa
é uma possibilidade que nos é aberta pelo dispositivo fotográfico,
já que o processo de construção serial e intensiva de personagens
se torna absolutamente viável com esta técnica. O seu imediatis-
mo, ao permitir a multiplicação de (auto)retratos, permite a sim-
bolização narcísica que se centra nas pulsões de morte e de fecha-
mento do sujeito sobre si mesmo. Cindy Sherman permite-se
assim tornar-se «vitrine dela mesma», ideia que deve ser associada
a esse aumento das pulsões de morte que caracteriza a moderni-
dade, e que empurra o sujeito para a exposição compulsiva de si.
63 «… Cindy Sherman is… in no sense the subject of these works, even if it is an impor-

tant fact about them that they are more or less all of her. She is no more their subject than the
model for a painting is the subject of the painting…» Danto: 1990: 10.
64 Danto 1990: 11.
65 Esta distância permite toda uma série de leituras desconstrutivas desta obra, bem como

as leituras feministas. O efeito de distância face aos «personagens» advém não só da sua diversifi-
cação, como da perfeição com que são construídos, permitindo essa ilusão de que não estamos
diante de um auto-retrato mas do jogo com um qualquer modelo.

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II
UM MUNDO DE MULHERES

Apesar de não considerar o trabalho de Cindy Sherman sob


um ângulo feminista66, não partilho o ponto de vista de Rosalind
Krauss (Krauss 1993 (a)), que recusa a possibilidade de a obra de
Sherman se referir a categorias universais, mesmo a nível incons-
ciente. Pelo contrário, parece ser possível encontrar um certo
denominador comum na obra de certos artistas contemporâneos
e entre esta e a sua cultura. Se a auto-representação é um desses
denominadores comuns, no que diz respeito à obra das artistas
mulheres, essa auto-representação toma certas características que
se poderá designar de paradigmáticas, não tanto no plano formal,
mas no plano daquilo a que chamo imaginário.
As imagens a que me refiro aqui representam um nível fantas-
mático desse imaginário de Cindy Sherman que já estava de
algum modo iminente em Untitled film stills. Uma imagem
(Untitled #153 (1985)) representa Cindy Sherman no chão, no
campo, junto a folhas secas e terra esverdeada. Faz de morta. O
rosto mostra equimoses, como se fora vítima de uma violação ou
agressão. A pequena parte da roupa que se vê, o ombro direito,
está suja do contacto com a erva, e o pescoço e o rosto também.
O cabelo é platinado, quase branco, e os olhos azuis estão abertos,
focando um ponto no infinito, desencontrados do espectador.
Numa outra imagem, surge-nos um rosto deformado, com os
olhos entumecidos, vidrados como se fossem de uma boneca, ou
de uma morta (Untitled #180 (1987)). Numa outra, um par de
nádegas ostenta enormes bolhas purulentas (Untitled #177 (1987)).

66 Para uma crítica deste ponto de vista, Cf. Krauss 1993(a): 6-9.

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O que há de comum nestas imagens? A ideia de um corpo morti-


ficado, vítima de maus tratos. Mas também a demarcação da ima-
gem de si mesma como representante de um ideal de beleza cons-
truída para a sedução. As imagens – auto-representativas – que
encontramos não são de uma mulher desejável e bonita, que estu-
da a sua imagem no sentido de uma fantasia de sedução. Pelo con-
trário, toda a estratégia representativa vai no sentido de tornar-se
feia, desagradável à vista, fisicamente degradada. Por esta razão, o
trabalho de Cindy Sherman tem sido apreciado de um ponto de
vista «feminista», sendo enquadrado ideologicamente67, já que
desafia os cânones tradicionais de representação da mulher, e o
que convencionalmente se designa como o «olhar masculino».
Embora esse aspecto deva ser levado em conta, não me parece
possível reduzi-lo a uma componente ideológica. Se estas imagens
de Cindy Sherman questionam os códigos de relação homem /
/mulher, isso é apenas uma das facetas em torno das quais os fan-
tasmas narcísicos se estruturam, e não a sua temática última. O que
aqui procuro é o sujeito arcaico que está presente na obra, e este
não é acessível, por definição, directamente. Por outras palavras, o
discurso feminista é também ele um elemento da modernidade
que deve ser integrado no quadro mais geral do questionamento
do Eu, da emergência do individualismo, da cultura do narcisis-
mo, com toda a abertura cultural e social que propiciou.
A partir dos anos 80, as figuras construídas por Cindy Sher-
man estão deformadas pela acção do mundo externo e dos seus
poderes destrutivos: sugerem a presença de um Outro, presença
constrangedora e ameaçante, potencialmente violadora; as imagens
desfiguradas de si que a autora apresenta são nesse sentido introjec-
ções paranóides desse perigo exterior que se simboliza na agressão

67 A bibliografia feminista sobre Cindy Sherman é extensa. Para um aprofundamento

dessa questão, ver: Williamson 1983; Phillips 1989; Mulvey 1991; Solomon-Godeau 1991.

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corporal. Por outro lado, esta agressão corporal remete para o


medo arcaico de ser fragmentado, e para um sentimento de disso-
lução narcísica que atravessa toda esta série: dissolução da imagem,
dissolução da identidade psíquica, dissolução da carne, projectadas
sobre um Outro, aparentemente um poder masculino. Um dos
recursos de que Sherman se serve para reforçar essa ideia é precisa-
mente o da deterioração corporal: olhos pisados, bocas feridas,
nódoas negras, pêlos ensanguentados, cenários outonais, como
podemos observar em Untitled #180 (1987), ou em Untitled #175
(1987). Porquê este cenário de destruição corporal?
Neste ponto, é útil remontar ao discurso que a filosofia e a
religião desenvolveram, ao longo dos séculos, sobre a mulher, para
compreendermos até que ponto o conteúdo da obra de Cindy
Sherman está deles de alguma maneira suspenso. Segundo a reco-
lha desse ideário realizada por Anthony Synnott (Synnott 1993), a
diferença entre homem e mulher sempre foi objecto de reflexão, e,
talvez porque a tradição escrita é dominantemente uma tradição
masculina, é mais abundante a literatura dos homens sobre as
mulheres do que o inverso68. Em todo o caso, é esta última que
interessa aqui. A associação entre a mulher e o demónio é muito fre-
quente no final da Idade Média, tendo esta associação como
mediador, a sexualidade: «Toda a feitiçaria tem origem na luxúria,
que na mulher é insaciável… No intuito de satisfazer a sua luxú-
ria, elas juntam-se até com o diabo.»69 João Crisóstomo, arcebispo
de Constantinopla (c. 347-407), diz igualmente: «O que é uma
mulher senão… um castigo ao qual não se pode escapar, um
68 Esta literatura radica numa visão da oposição entre os dois géneros que visa apoiar-se na

correspondência entre outro género de dualidade existentes, quer na natureza quer na cultura: a
visão dualista do mundo é central na filosofia grega – na sequência de Parménides –, na filosofia
socrática e platónica. A tábua de opostos de Pitágoras coloca, pela primeira vez explicitamente, a
definição do homem e da mulher como opostos, correlativos de oposições metafísicas e matemáti-
cas: «Limit / unlimites; Odd / even; One / Plurality; Right / Left; Male / Female; Resting / Moving;
Straight / Curved; Light / Darkness; Good / Bad; Square / Oblong»: Cf. Synnott 1993: 47.
69 In «Malleus Maleficarum», cit. por Synnott 1993: 47.

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demónio necessário, uma tentação natural, uma calamidade dese-


jável, um perigo doméstico (…), uma natureza demoníaca, pinta-
da com cores agradáveis?» (Synnott 1993: 45.)
Esta associação entre mulher e demónio estrutura também
certas religiões indígenas, e está presente na cultura popular por-
tuguesa.
Géza Róheim (Róheim 1934), ao analisar o enigma da Esfin-
ge (a Esfinge que desafia os homens às portas de Tebas, e que Édipo
venceu) compara-a a outras figuras femininas: Górgone, Mórmon,
Lâmia, Gella, Empusa e outros monstros fêmeas. O nome «Sphinx»
significa «a estranguladora», e este monstro pertence a um grupo
de seres, «semi-animal semi-mulher, que levam as almas dos mor-
tos para o outro mundo ou os próprios mortos, voando pelos
ares» (Róheim 1934: 29). A estas figuras estão associadas caracte-
rísticas de sedução e canibalismo: Lâmia é a que devora, tal como a
Esfinge é a que estrangula e Empusa a que bebe70. A Esfinge é
ainda comparável à Fada do Meio-Dia, a uma criatura do tipo de
Serpolnica, figura de pesadelo que aparece aos camponeses quando
adormecem ao ar livre debaixo do sol. Róheim fala-nos também
de duas religiões – uma masculina e outra feminina – na Austrália
Central, que funcionam alternativamente, consoante os indígenas
se encontram na estação das chuvas, onde a comida abunda, ou
na estação seca, onde a comida escasseia. No primeiro caso domi-
na o totemismo, dando lugar às cerimónias da multiplicação e aos
ritos de puberdade, bem como às reuniões em grandes grupos de
pessoas; no segundo, os grupos são pequenos (apenas a família),
dominando a crença nas erintja. As pessoas têm medo de ser ata-
cadas por uma espécie de demónios fantasmas, que rondam

70 Lâmia era a mulher de Zeus, a quem tinha dado filhos, mas Hera, por ciúme, obrigou-a

a matá-los ou matou-os ela própria. Depois disto, Lâmia, que até aí era uma mulher de grande
beleza, transformou-se num monstro e enfiou-se numa gruta longe de tudo e, instigada pela
raiva, pôs-se a matar os filhos das mães mais felizes do que ela: Cf. Róheim 1934: 30.

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durante a noite, para ajustar contas; essas criaturas são comedoras


de homens (Róheim 1934: 37).
A ideia da mulher como insaciável sexualmente remonta
ainda à mitologia grega, ao mito de Juno. A história vem contada
nas Metamorfoses de Ovídio. Estando Juno e Júpiter em doce
enleio, Júpiter diz a Juno: «Vocês, mulheres, têm mais prazer no
amor do que os homens, tenho a certeza.» Juno discordou, pelo
que resolveram pedir a Tirésias, que passara sete anos como
mulher, para decidir qual deles tinha razão. Tirésias concordou
com Júpiter, o que enfureceu Juno. Cheia de raiva (por alguém
ter descoberto o segredo das mulheres?), condenou Tirésias à
cegueira (Ovídio: 60-61).
Evidentemente que se trata de mitos. Mas onde radicam
estes mitos sobre a sexualidade feminina?
Em primeiro lugar, na estranheza perante a diferença de
sexos. A diferença biológica estabelece uma visibilidade incontor-
nável ao sexo masculino, ao passo que a sexualidade feminina,
escondendo-se no interior do corpo, surge como algo que se adi-
vinha, se imagina, mas não se vê. Ela permanece da ordem do
silêncio visual sendo pretexto para todas as efabulações, já que o
seu lugar é o do indeterminado, do apeiron. Talvez seja essa a
razão pela qual Medusa é uma mulher, e o corte da sua cabeça
apenas a confirmação do terror de que o segredo da mulher (a
vagina e o útero) seja afinal a de um excesso fálico (daí a profusão
das serpentes) castrador71. A ideia da mulher abrasadora/devo-
radora72 que faz parte do imaginário colectivo de muitos povos,

71 A este terror estão certamente ligadas as figurações da mulher enquanto «vagina denta-

da», que podemos encontrar na arte surrealista – Max Ernst é um bom exemplo; no quadro de
Picasso, Os três dançarinos, uma das figuras remete igualmente para essa ideia. Nas fotografias de
Cindy Sherman esse imaginário está também explícito, através da figuração de si própria com
dentes saídos e de aspecto sádico, sarcástico ou monstruoso: Cf. Untitled #146 (1985), #189
(1989), #146 (1985), #141 e #145 (1985).
72 Que é também uma fantasia masculina ligada à ideia do pénis «engolido» pela vagina.

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manifesta uma associação explícita entre sexualidade feminina,


agressividade e canibalismo, visível ainda no ditado popular: «A
mulher tem duas bocas: uma quer carne outra quer sopas.»
Em segundo lugar, no facto de a identidade feminina ser ela
mesma sujeita a uma psicogénese específica. A especificidade da
sexualidade feminina, especificidade intrigante que levou Freud à
célebre pergunta «Was will das Weiß?», parece-me estar omnipre-
sente no trabalho de Cindy Sherman. As suas imagens, nomeada-
mente nesta série, reflectem a polarização passivo/activo que a
cultura ocidental atribuiu à diferença homem/mulher. Se por um
lado a mulher é vista como castrada, isso implica defini-la a par-
tir de uma ausência. Mas o que encontramos na obra de Cindy
Sherman é uma persistência em auto-representar-se a partir de
um excesso de actividade, regra geral destrutiva73: a ligação entre
sexualidade, corporalidade e thanatos torna-se evidente à medida
que nos aproximamos das imagens mais recentes. O que significa
que a oposição passivo/activo, fálico/castrado, se desenha, numa
segunda leitura, como uma projecção – ideológica – sobre a rela-
ção homem/mulher de uma relação mais arcaica: a relação dual à
mãe, vivida pelo sexo feminino.
A «surpreendente actividade sexual da rapariga» na relação
com a sua mãe manifesta-se, segundo Freud, em sucessão crono-
lógica, através de impulsos orais, sádicos e finalmente também
fálicos. Mas o mais interessante desta análise da actividade femi-
nina é a constatação que Freud faz das fantasias pré-edipianas de
ser devorada ou morta pela mãe. O medo de ser devorado (muito
73 Segundo Freud, a relação da rapariga com a mãe possui finalidades tanto activas como

passivas, e são determinadas pelo desenvolvimento libidinal. Mas em qualquer sector da expe-
riência psíquica (não somente o da sexualidade) «es dable observar que una impresión pasiva-
mente recibida evoca en los niños la tendencia a una reacción activa. El niño trata de hacer por
si mismo lo que se acaba de hacerle a él o con él. He aquí una parte de la necessidad de dominar
el mundo exterior a que se halla sometido y que aun puede llevalo a esforzarse por repetir impre-
siones que a causa de su contenido desagradable tendria bons motivos para evitar»: Freud 1931:
3084.

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frequente nas fantasias masculinas relativamente ao pai) e de ser


morto parecem a Freud constituir uma reacção às intensas expe-
riências de sucção correspondentes à fase oral, particularmente
intensas no sexo feminino. A identidade é deste modo equaciona-
da a partir das tendências destrutivas expressas na auto-mutilação
ou mesmo na própria morte, que remetem para os ataques fan-
tasmáticos da relação pré-edipiana74.
Considerando, com Klein (1933) e Chasseguet-Smirgel (1971),
que toda a arte procura de alguma forma a reparação da destruti-
vidade primitiva do sujeito face ao objecto, alguns aspectos desta
série de imagens podem ser clarificados: a ideia de vitimização
que nelas surge75 funciona como forma de desidealização do rela-
cionamento com o mundo, assumindo o sujeito, perante este,
uma atitude anti-mitificadora. Esta atitude anti-mitificadora per-
mite à autora construir um novo mito, o mito do ser-em-perigo-
-permanente face aos objectos do mundo externo, que nos surgem
discriminados: moscas, sangue, órgãos fragmentados, corpos desar-
ticulados (Untitled #167 (1986), Untitled #236 (1987), Untitled
#173 (1987), Untitled #244 (1991)). Os objectos são projecções
paranóides de um mundo interno em desagregação, e que encon-
tra na construção da imagem a forma possível de elaborar as suas

74 Freud 1931: 3078. O reconhecimento de uma fase pré-edípica no desenvolvimento da

rapariga é para Freud algo de perturbante e surpreendente: «… es para nosotros una sorpresa,
análoga a la que en otro campo representó el descubrimento de la cultura minoico-miceniana
tras la cultura griega»: Ibidem.
75 Cf. igualmente o trabalho de Nan Goldin, «Ballad of sexual dependency» (1986). Não

deixa de estar próxima, indirectamente, a sombra da obra de Diane Arbus: embora neste último
caso estejamos longe do género de proposta de Cindy Sherman (não é a fotógrafa que se encena
ou mostra), num ponto as duas obras se tocam, como muitas outras obras dos últimos trinta
anos: a pesquisa de tudo o que perturba uma ordem do mundo – física e moral – ideal: as figuras
procuradas por Diane Arbus são gigantes, aleijados, cegos, prostitutas, casais de meia-idade
suburbanos, velhas excêntricas, atrasados mentais. Tudo o que constitui o campo da exclusão e
que a censura tende a recalcar. Por essa razão me parece que a obra de Cindy Sherman pode ser
vista como um auto-retrato do seu próprio inconsciente, enquanto este é definido pela lei da
contradição, da intemporalidade, da não racionalidade, mas também da afirmação das suas pul-
sões agressivas e anti-sociais.

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pulsões sádicas. E levando em conta a precisão que Chasseguet-


-Smirgel estabelece sobre a reparação do sujeito (e não do objecto)
ela permite-me identificar na obra de Cindy Sherman uma elabo-
ração de certos aspectos, já referidos, da cultura do narcisismo.
O imaginário ferozmente feminino – e aparentemente femi-
nista – começa a desenvolver-se, na obra da artista, a partir dos
anos 80, logo após a série de imagens Untitled film stills. O facto
de a artista trabalhar com ela própria, permite-lhe o aprofunda-
mento (no sentido reparador) de uma realidade interna da qual se
vai aproximando à medida que se intensifica o contacto consigo
própria. E isso é gradualmente visível: quase na sequência de
Untitled film stills, Sherman desenvolve um trabalho semelhante,
mas agora como se fora um manequim de moda; ensaia-se ao
espelho, veste-se como «lady», faz poses de glamour à maneira da
fotografia de moda, como podemos ver nas imagens Untitled
#138 (1984), Untitled #137 (1984), entre muitas outras. O
insight para com a agressividade feminina acentua-se já aqui con-
sideravelmente, numa espécie de provocação dos cânones de bele-
za estabelecidos, relativamente aos quais assume uma postura
simultaneamente eufórica e disfórica: se por um lado se manifesta
um «querer mostrar-se» (Untitled #118 (1983) e #121 (1983)),
por outro a dificuldade de permanecer num quadro coerente de
sedução esvai-se num olhar deprimido, sombrio, agressivo ou rai-
voso (Untitled #137 (1984), Untitled #117 (1883), Untitled
#129 (1983), Untitled #122 (1983)). Mas este desconforto vai
adquirir a sua plena expressão nas sequências posteriores, onde
vemos surgir as figuras monstruosas e os cenários abjectos. Talvez
seja essa a razão pela qual Cindy Sherman afirma que «o que se
torna difícil quando eu não estou nas fotografias é que elas se tor-
nam menos espontâneas» (Goldsmith 1993: 40).
Em Untitled #311 (1994) os fantasmas de morte acentuam-
-se: um redemoinho vermelho, onde umas mãos se contorcem;

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não sabemos se o vermelho é o do sangue que escorre de um


assassinato, se do fluxo menstrual vivido como ataque à fertilida-
de materna; mas é certamente uma imagem de dissolução e de
agressão corporal. O pânico de ser morto ou devorado, caracterís-
tico do imaginário feminino, surge aqui, mais explicitamente,
associado ao seu inverso: o impulso de destruição e de ataque do
corpo do Outro, o desejo da sua fragmentação e manipulação, e,
mais concretamente, a denegação do impulso oral para devorar.
Este último está muito presente na série «History portraits»: um
dos recursos plásticos usados por Sherman para desfazer as ima-
gens clássicas da arte ocidental é o da substituição dos seios dos
modelos («madonnas del latte», Virgens e outras figuras de
mulheres) por seios artificiais de tipo caricatural. O ataque ao
corpo materno – no sentido quase de um gesto escarnecedor –
faz ressurgir a agressividade pulsional feminina, denunciando
uma espécie de não-lugar. Igualmente o corpo masculino é objec-
to das pulsões de morte: em Untitled #179 (1987), o cenário é
povoado de preservativos usados, pénis de plástico espalhados, de
conotação anal, objectos de configuração fálica, como cenouras,
tudo isso amontoado no chão, enquanto a imagem da artista se
vislumbra de costas, sentada no chão, em grande plano, como
uma criança que brinca.
Este panorama temático ocorre, como já tive ocasião de
salientar, na obra de várias artistas mulheres. Em Jo Spence, por
exemplo. Aqui a auto-representação é acompanhada de uma mili-
tância teórica e crítica muito intensa, no campo da análise da
imagem do corpo, sobretudo do corpo feminino, na sua relação
com a doença, a velhice e a morte. Igualmente está presente a crí-
tica feroz à instituição médica, sob o ponto de vista da relação
desta com o corpo. Poder-se-á mesmo dizer que o centro da foto-
grafia de Spence é a afirmação do corpo personalizado contra o
corpo esvaziado do seu psiquismo, tal como é olhado/produzido

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pela medicina. A luta contra a imagem do cancro como veículo


de exclusão social e de morte antecipada (simbólica) foi o centro
do seu trabalho com a fotografia. Partindo da sua própria expe-
riência como cancerosa (carcinoma da mama), o seu trabalho vai
no sentido do aprofundamento psíquico do Self, para além da
perfeição ou saúde do corpo.
Aí se encontra, tal como em Cindy Sherman ou em Orlan,
uma estratégia de negação dos cânones de beleza tradicionais76:
Jo Spence apresenta-se-nos nua, velha, com cicatrizes, marcada
de vermelho, legendando o seu corpo com a palavra «monstro».
O corpo, em Spence, é «odiado», mas na medida em que é a fonte
de inquietações narcísicas, de ameaça de integridade. O corpo
saudável e belo das fantasias publicitárias é para Spence o corpo
ilusório, já que é sustentado por um excesso de afirmatividade
segregador; quando doente e velho, ele torna-se um pesadelo.
Trata-se aqui de uma espécie de terapia anti-depressiva, mas que
possui uma forte lógica defensiva: a total frontalidade com que
expõe o corpo doente nas fotografias revela a agressividade latente
com que a personalidade se estrutura face ao mundo exterior.
A única possibilidade de reparação é pela acção da fotografia.
O trabalho de Spence toma assim, num primeiro nível de aná-
lise, características feministas, já que discute uma certa imagem ins-
tituída do corpo feminino, reinvincando a sedução e a integridade
do Eu, não através da imagem do exterior do corpo, mas de uma
integridade psíquica. Apesar de este trabalho não coincidir, em
muitos aspectos, com o trabalho de Cindy Sherman, existem pon-
tos comuns: o questionamento da identidade feminina; a reivindi-
cação da ultrapassagem da imagem do corpo enquanto invólucro
76 «We are constantly bombarded by the media into an imagery view of what we should

ideally be like as women, a view that most of us feel we cannot match up to, living instead with
the anxiety of body size, beauty culture and “fitness” at one end of a spectrum, and tiredness,
ageing, illness, drugging, mutilation and death at the other.»: Spence 1995: 139

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identitário; o sentimento de dilaceração e fragmentação na relação


com o mundo externo; a presença da ideia de morte; a necessidade
de se procurarem a si mesmas através da auto-representação77.
No trabalho de uma outra fotógrafa, Nan Goldin, a auto-
-representação centra-se na proximidade com o seu quotidiano:
as drogas, as relações sexuais, as agressões físicas com origem
nesse relacionamento sexual, ou em certas formas de sado-maso-
quismo. Ballad of Sexual Dependency (1986), o primeiro livro
publicado pela fotógrafa, faz-nos penetrar num universo de rela-
ções humanas marcado pelo sentimento de desencontro com a
vida78. Para a autora, fotografar é uma certa forma de sobrevivên-
cia (uma forma de reparação), mas, sobretudo, uma forma de se
encontrar a partir de uma identidade confusa: a imagem «Nan
after being battered» (1984), é um retrato seu espancada, com os
olhos em sangue e o rosto inchado. A fotografia parece ser uma
espécie de apelo, revelando um desconforto profundo perante a
vida, uma enorme dificuldade em ser, mas, ao mesmo tempo,
transmite o sentimento de que o facto de ser batida a faz sentir
realmente existente. O sentimento de colapso do Eu, que se mani-
festa numa espécie de re-orientação a partir do investimento num
círculo fechado de relações amorosas e perversas, não anda longe
da temática de Cindy Sherman. A diferença aqui reside, tal como
em Jo Spence, na forma directa com que lida com a máquina
fotográfica.
Que a auto-representação feminina assuma um contorno
mais agonístico e centrado no corpo – sobretudo na sua destrui-

77 Numa extensão da legenda da fotografia «Cultural Sniper» (Jo Spence/David Roberts,

1990), a autora escreve: «A crisis of identity culminating in my trying to tell myself a story of
who I thought I was. I finally came up with an image which had evaded me, one which was
structurally absent from my previous photographic discourse, the image of myself as a Cultural
Sniper, capable of appearing anywhere, in any guise: Spence 1995: 163).
78 «I want to show exactly what my world looks like, without glamorization, without glo-

rification.»: Goldin 1986: 6.

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ção –, isso deve-se pois a dois aspectos: por um lado, a especifici-


dade da sexualidade feminina e da sua ontogénese; por outro, o
facto de, numa cultura do indivíduo, a emergência de um discur-
so feminino permitir tornar manifesta a ambivalência e a comple-
xidade dessa identidade feminina.

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III
A PANELA MÁGICA E A MÁQUINA FOTOGRÁFICA

A autora conta, a propósito de uma série mais recente de


imagens, realizada com bonecos, que mistura os ingredientes para
as fotografias como se estivesse para cozinhar, só que aqui é ela
que faz a receita; e enquanto que não seria capaz de comer uma
mistura, ao acaso, de ingredientes, para a composição das foto-
grafias vai seguindo por vezes uma intuição de momento, até
conseguir um todo que lhe agrade79; esta ideia não anda longe da
de poção (da Maga Patalógica, a terrível bruxa de Walt Disney,
dos druídas ou das poções amorosas): a ideia de cozinhado é vul-
garmente associada à magia, quer esta tenha desígnios malignos
ou benignos. O acto de «misturar ingredientes» numa fotografia
de forma intuitiva (criativa), mágica, relembra também certas
estratégias de manha (mètis) presentes na mitologia grega80. Certas
imagens, particularmente Untitled #179 (1987), ou Untitled
#180 (1987), são dessa ideia reveladoras: pénis de plástico parti-

79 «When I’m cooking, I’m just following a recipe – I’m being told what to do. When I’m

working on my photographs I have a vision of what I want but mostly I’m guided by what I
don’t want. I’m happy to make mistakes; making photos is more like playing than cooking is. I
woudn’t want to eat what I made just playing with cooking ingredients, but sometimes the mis-
takes in the photos are better than I had in mind»: in Goldsmith 1993: 34.
80 O que nos leva a pensar no estatuto mágico da obra (enquanto realização de desejos

fantasmáticos), e nas vantagens da fotografia para a realização desse objectivo: o que confirma a
tese que defendi atrás: a fotografia serve para agir o desejo aparentemente de uma forma imedia-
ta, podendo pois transformar a arte numa forma sublimada de acting-out. Em «Totem et Tabou»,
Freud estabelece esse paralelismo entre arte e magia: «L’art est le seul domaine où la toute-puis-
sance des idées se soit maintenue jusqu’à nos jours. Dans l’art seulement il arrive encore qu’un
homme, tourmenté par des désirs, fasse quelque chose qui ressemble à une satisfaction; et, grâce à
l’illusion artistique, ce jeu se produit les mêmes effets affectifs que s’il s’agissait de quelque chose
de réel. C’est avec raison qu’on parle de la magie de l’art et qu’on compare l’artiste à un magi-
cien.»: Freud 1913: 106. Freud acrescenta ainda a hipótese da relação entre arte e magia não ser
de mera comparação, mas mesmo de identidade: «L’art, qui n’a certainement pas débuté en tant
que “l’art pour l’art”, se trouvait au début au service de tendances qui sont aujourd’hui éteintes
pour la plupart. Il est permis de supposer que parmis ces tendances se trouvaient bon nombre
d’intentions magiques.»: Ibidem.

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dos, preservativos furados, corpos desmembrados de bonecos ter-


ríficos, parecem sair de um pesadelo ou de um filme de terror81.
Este paralelismo entre manha, cozinha, entrelaçado mágico e cria-
ção de imagens sugere a relação estreita entre arte, magia e
inconsciente, no sentido em que estes dois discursos se situam
muito perto do princípio do prazer, isto é, do processo primário82.
Neste cozinhado as imagens indicam uma procura, cada vez
maior, de elementos terríficos, grotescos, abjectos. No encontro
com o abjecto – o «não-objecto» (Kristeva), o sujeito encontra a
fragmentação própria à perversão, à relação parcial com o objec-
to. Há uma presença obsidiante do sangue (Untitled #173
(1986), Untitled #180 (1987)), ou de partes do corpo fragmenta-
das onde a autora de certa forma se espelha através da sua presen-
ça em segundo plano, quer permanecendo fisicamente como ele-
mento do cenário, quer aí entrando sub-repticiamente, como em
Untitled #167 (1987), através do seu rosto reflectido num espe-
lho de maquilhagem, ou nuns óculos escuros.
A ideia de cozinhar elementos díspares atravessa a obra da
artista desde meados dos anos 80, desde a série «Disasters / Fairy
Tales» (1985-89) voltando a instalar-se, na sua forma grotesca,
nos «retratos históricos» (1988-90). A perversidade que se joga
nesse cozinhado é pois a da reivindicação da imagem parcial,
fragmentada – pré-edipiana – do corpo contra a imagem global
(genital) que dominou a arte até ao século xx. A consciência
desse processo de progressiva fragmentação da representação, é-
-nos fornecida pela autora e pode esclarecer-nos, através do
comentário que faz à sua relação com o computador: «Eu come-
cei agora a aprender a fazer coisas com computador, como cortar
uma cabeça de um corpo e colá-la no corpo de outra pessoa.

81 Algumas dessas imagens foram realizadas a partir de brinquedos de um jogo intitulado

«The mad scientist»: Goldsmith 1993: 37.


82 Com as características que lhe são próprias, nomeadamente a omnipotência e a megalo-

mania.

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Pequenas operações como transplantes de cabeça.» E acrescenta:


«Usar o computador pode ser como desenhar ou escrever à
máquina – uma acção obsessiva que se faz com as mãos.» (Gold-
smith 1993: 39.) Daqui sobressaem dois aspectos: o carácter
manipulativo da representação, que aproxima esta da culinária (o
manuseamento de matérias), mas também da magia («uma acção
obsessiva»); a elaboração das pulsões sádicas associada à fragmenta-
ção («pequenas operações», «transplantes»). Decorre daqui, sem
dúvida, a razão pela qual as últimas séries realizadas por Cindy
Sherman já não incluem a sua presença, preferindo a artista tra-
balhar com bonecos (manequins médicos, máscaras), já que se
assiste, no decorrer da obra, a um acentuar dessa destrutividade
interna, que conduz a uma cada vez maior necessidade de frag-
mentar o objecto/corpo. Sobre as séries com bonecos/manequins,
designadas globalmente por «Sex pictures», e realizadas a partir
de 1992, a autora refere esse processo de disjunção corporal: «À
medida que as séries avançavam, eu comecei cada vez mais a des-
membrar os corpos e então eles tornaram-se mais… desconjunta-
dos. Desconstruídos!» (Goldsmith 1993: 37.)*
As séries com bonecos parecem confirmar as características
do narcisismo no plano da sublimação artística, revelando-as,
simultaneamente, como características do sentir de uma cultura.
A instintualidade que as imagens, não somente das «Sex pictures»
como as das séries anteriores reinvindicam, parece surgir de um
esforço narcísico do Ego para manter o controlo sobre o mundo
externo, mesmo que isso seja à custa da construção de um cená-
rio de destruição e deformação do corpo83. Talvez por essa razão,

* No entanto, a autora afirmaria mais tarde a decepção com o trabalho por computador

(ver entrevista em anexos).


83 O que faz relembrar a definição que Freud dá, em «A pulsão e as suas vicissitude», da

organização sádico-anal: «Na fase… de organização sádico-anal pré-genital a luta pelo objecto
aparece sob a forma de dominação, para o qual qualquer dano ou aniquilação do objecto é abso-
lutamente indiferente. Na sua atitude para com o objecto, o amor, nesta forma e nesta fase preli-
minar, é difícil de distinguir do ódio.»: Freud 1915: 224-5.

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as «Sex pictures» se constituam como cenários de uma certa vio-


lência (ou depressão) corporal, nomeadamente no que diz respei-
to à exibição dos órgãos sexuais (e que possui uma função apotro-
paica) e à sua manipulação agressiva (cf. Untitled #259 (1992)).
Nessa manipulação, agressiva, do corpo e do sexo, está presente
um desejo de confusão da identidade sexual, através de «trans-
plantes» entre partes do corpo femininas e partes do corpo mas-
culinas (vaginas de onde saem pénis, por exemplo).
Por outro lado é importante sublinhar a relação entre a ideia
subjacente de cozinhar e o trabalho da fotógrafa: em ambos os
processos sobressaem: a componente mágica; o carácter controlado
do processo; o seu carácter activo, que permitem a satisfação/repa-
ração dos impulsos destrutivos.

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IV
MIMESIS E METAMORFOSE: «HISTORY PORTRAITS»

Nos «retratos históricos» (History Portraits (1989-90)), a


auto-representação construída por Sherman parece deslocar-se
numa outra direcção formal. Numa viagem à arte clássica, fruto
de uma estadia em Roma, Sherman realizou uma série de foto-
grafias nas quais reconstrói cenários da pintura clássica. Nessas
reconstruções introduz elementos deformantes, irónicos, ou con-
traditórios. A maioria são retratos de mulheres, madonas ou vir-
gens; Sherman modifica partes do cenário de fundo, dos adereços
ou da figura pintada: os seios, o rosto – as duas partes do corpo
da mulher mais frequentemente objecto dos estereótipos da sedu-
ção –, o nariz, são os alvos preferidos do seu processo de defor-
mação. O rosto é sempre o seu, quer a pintura retrate original-
mente um homem ou uma mulher.
Estes «auto-retratos históricos» permitem-lhe insistir no uni-
verso grotesco. A grande encenação a que recorre aqui, desfiguran-
do-se e desfigurando a imagem a que se refere, representa um
esforço para negar/destruir a forma da qual se vê como excluída (à
semelhança do que já fizera, de outra maneira, em «Untitled film
stills»). Mas esta desfiguração toma aqui uma tonalidade sádica,
evidenciada quer pelo carácter manipulativo do trabalho quer pelo
género de «acrescentos» que introduz no cenário. As imagens sur-
gem-nos reconstruídas com próteses: falsos seios, falsas barrigas,
falsos narizes (Untitled #205 (1989)). Tornam-se ridículas, apalha-
çadas, constituindo uma espécie de galeria de «monstros», de cari-
caturas, que ocupam o lugar onde estavam as formas perfeitas e
idealizadas, representadas através das convenções «totalizadoras»

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da arte. Aqui não é tão dominante a ideia analisada no ponto


anterior, de «cozinhado», mas a de modificação (embora a compo-
nente manipulativa continue presente) exercida sobre uma forma
estável, já existente.
O que é interessante notar nesta série, é a forma como Cindy
Sherman trabalha sobre um dispositivo de reconhecimento, para, a
partir dele, construir um outro reconhecimento. A deformação
dos cenários clássicos a que Sherman procede só faz sentido por-
que ela mantém, até certo ponto, a possibilidade do reconheci-
mento dos mesmos, isto é, de semelhança da forma obtida como
uma anterior84. Por outro lado, a sua própria figura sofre um
grande processo de disfarce, permanecendo, em todo o caso,
reconhecível.
Os «History Portraits» de Sherman vêm relembrar-nos a pul-
são humana, paradoxal, para a desconstrução figurativa, que
encontramos muito bem sintetizada em Didi-Huberman: «A
“Figura Humana” – a semelhança que podemos reivindicar – é o
que o homem mais ferozmente, mais obstinadamente destrói,
mas é também o que o homem experimenta como a necessidade
do indestrutível por excelência.» (Didi-Huberman 1995: 167.)
É nesse intervalo, ou vaivém, entre a figura e a sua negação/
/reconfiguração85 que Sherman se pode permitir a introdução de
elementos que são específicos ao seu universo. O trabalho de
deformação do corpo que nos surge nestas criações fotográficas é
simultaneamente um trabalho de deformação das formas clássi-
cas, de devir no sentido da transgressão das formas, não como
aquilo que não tem forma, mas que se demarca relativamente a
uma forma primeira.
84 Alguns dos historiadores de arte interrogados sobre a identificação dos «originais» que

Sherman reconstrói encontraram extrema dificuldade em fazê-lo, mas reconhecerem que cada
imagem se referia a um quadro conhecido: Cf. Danto 1990: 5.
85 Jogando naquilo que a teoria gestaltista chamou a pregnância da boa forma.

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Para Rosalind Krauss (Krauss 1993 (a)) os «History Portraits»


constituem um meio de desacreditar as formas clássicas. Sem
dúvida que este trabalho passa também por aí, mas o seu sentido
está longe de se esgotar nessa paródia com a história de arte.
A relação desta série com a história de arte é, simultanea-
mente, denotativa de um desejo de apropriação (omnipotente),
que lhe é permitido pela fotografia, das representações idealizadas
do passado. Mas o desejo dessa apropriação é, como já o era em
«Untitled Film Stills», denegado, sendo essa denegação aqui mais
explícita: Sherman apropria-se e simultaneamente expele essas
formas, num jogo de profunda ambivalência face às mesmas.
O imaginário da autora, que continua das séries anteriores para
esta, encontra na manipulação dos cenários clássicos de represen-
tação uma outra forma de reparação da destrutividade interna.
Como se manifesta ela? Na incidência da artista em certos deta-
lhes, que estão em relação estreita com o seu imaginário que se
vai explicitando ao longo das diferentes séries. Esses detalhes são,
precisamente: os seios, o ventre, o nariz, a boca, e a sua deforma-
ção provocante sugere um ataque à figura materna, sob a forma
da sua substituição (tomar o seu lugar), mas para escarnecer dos
seus mais valiosos dons: a fecundidade, o aleitamento, o sorriso.
Nas figuras masculinas, o travestimento a que as sujeita
remete-nos para um aspecto complementar do seu imaginário: as
figuras são deformadas regra geral no nariz, que surge como uma
prótese com algumas conotações de reforço fálico. Numa dessas
figuras, Untitled #194 (1989), surge-nos um homem de peito à
mostra por entre o fato desapertado; os seus mamilos estão pro-
vocantemente salientes e envoltos de pêlos. Parece aqui residir
um impulso para a indiferenciação sexual, mas que tem um desti-
natário preciso: ao contrário do que alguns dos autores citados
salientam, não se trata aqui de um discurso feminista, isto é,
assente na «guerra dos sexos», mas numa guerra com o mesmo sexo.

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É perante os seus pares (as mulheres, ou uma imagem arcaica de


mulher), que Cindy Sherman mede a sua identidade: parece exis-
tir aqui, neste jogo entre ser homem e/ou ser mulher, a ideia de
tomar o lugar do Outro (do pai…). Mas esse desejo não é realiza-
do de forma aberta, já que as figuras são caricaturais e escarnece-
doras, como se a apropriação do phallus tivesse a função, não de
destruir os homens mas o desejo das mulheres.

Nos seus trabalhos mais recentes (1995-98), desde as Sex


Pictures, a tendência para abandonar o auto-retrato é clara e deci-
siva, ao mesmo tempo que a ideia de corpo-máscara, paradoxal-
mente, se acentua. Imagens de máscaras vazias, rostos deforma-
dos, continuam e reforçam a divisão entre o corpo-carne e o seu
possível sentido. Por vezes os rostos, disformes e aberrantes, mis-
turam o interior e exterior (Cruz 1997), como que sugerindo a
sua indiferenciação. Noutros casos, Sherman fala da morte de
uma forma mais directa, mostrando o braço de uma figura com-
pósita com um golpe fundo, ensanguentado, ou uma máscara
sem rosto por detrás, oca (Untitled #324, #323).
O abandono do auto-retrato representa o fechamento de um
ciclo, durante o qual Sherman precisou de associar à sua própria
imagem a iconografia da destruição e da fragmentação corporal.
A partir do momento em que essa elaboração narcísica deixa o
domínio da figuração de certa forma teatral, estamos a braços
com o ataque ao mundo, e, portanto, perante um discurso mais
directo.
Anuncia-se pois, nos últimos trabalhos, um esgotamento das
possibilidades figurativas que trabalham a sua obra desde Untitled
Film Stills, e que é contemporâneo do abandono do uso da sua
figura como suporte do jogo de máscaras. O que significa isso?
Que o trabalho de Sherman avança numa direcção diferente, mas
nunca abandonando esse núcleo central de questionamento do

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Eu face à morte. A angústia surge agora com menos disfarce,


menos personalizada, mais abstracta, divisando o terror generali-
zado sobre tudo o que é humano.

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CONCLUSÃO
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Ao longo deste trabalho tentei estabelecer a articulação possí-


vel entre certas tendências do desenvolvimento emocional huma-
no e certas formas de representação artística, a partir de um
objectivo primeiro: compreender a relação entre a auto-represen-
tação e a fotografia.
O que posso concluir?
Em primeiro lugar, a análise da relação entre a pintura e a
fotografia desde o seu aparecimento permite-nos pensar que esta
última veio acrescentar novas possibilidades à execução do retra-
to e do auto-retrato, mas que a tendência para a auto-representa-
ção é uma tendência da cultura artística a partir do final do
século xix. O que significa que não podemos desligar, no estudo
da auto-representação, os aspectos simbólicos/culturais, dos aspec-
tos psicológicos, técnicos e formais que historicamente lhe são
contemporâneos. Por esta razão nos parece muito acertada a
observação de Didi-Huberman, de que o retrato constitui um «nó
antropológico».
Em segundo lugar, podemos concluir do estudo, embora
muito sumário, da mitologia grega e de alguns textos filosóficos,
que aqui desenvolvemos, que a imagem do corpo é um mediador
incontornável do discurso do homem sobre si próprio; essa ima-
gem modifica-se de acordo com as necessidades defensivas que o
mesmo homem experimenta em épocas históricas determinadas.
Mas, simultaneamente, podemos observar como o ser humano
enfrenta uma dificuldade particular na relação com a sua identi-
dade, dificuldade a que não é alheia a percepção da morte e dos
seus próprios impulsos destrutivos. A imagem do corpo (na sua

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totalidade ou nas suas partes) funciona, em nosso entender, como


mediador incontornável da reflexão sobre o Eu, confirmando a
tese de Freud de que a sexualidade humana tem um valor subli-
matório. A exposição do corpo próprio surge assim como uma
metáfora de interrogações existenciais relacionadas com a integri-
dade do Eu.
Em terceiro lugar, relativamente à crescente tendência para a
auto-representação, esta surge, na nossa perspectiva, como um
sintoma, ou efeito (ou denúncia) de uma cultura, que tende a
centrar no ensimesmamento narcísico do sujeito a resposta para
os dilemas ontológicos fundamentais, conforme foi aqui analisa-
do no capítulo iii. Essa «cultura», que ao longo deste trabalho
designámos, com Lasch, Kohut, Anzieu, «cultura do narcisismo»,
é um sintoma do aumento das pulsões de morte. E é interessante
verificar como essa pulsão de separação surge associada, histórica
e politicamente, à fragmentação da totalidade, à queda das
monarquias, à dissolução dos impérios coloniais, à noção de
massa e de anonimato, i.é, de indiferenciação social e de burocra-
cia, expresso simbólica e historicamente no guilhotinamento pro-
movido pelo Regime de Terror.
Poder-se-á assim afirmar que esse aumento das pulsões de
morte significa, correlativamente, uma dificuldade para o sujeito
em confrontar-se com uma divisão interna ou cisão, à qual reage
com a constituição de um carácter narcísico, tal como Freud,
Lasch e Kohut o descreveram.
Em quarto lugar, a observação da ocorrência do tema da
auto-representação na arte contemporânea conduz-nos a pensar
que a imagem do Eu dada através das representações do corpo é
essencialmente polimorfa, parcial/perversa e mutante (meta-mór-
fica), no sentido que encontrámos na mitologia grega. Mas com
uma diferença: na mitologia grega encontramos uma polimorfia
permanente expressa na necessidade explícita de resolução de

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conflitos ou aporias na relação com outros seres, não perdendo


portanto de vista a identidade do sujeito que se metamorfoseia;
na arte e fotografia contemporâneas, a polimorfia que se manifes-
ta na imagem do corpo está assombrada pela dissolução da iden-
tidade, pela possibilidade (ou desejo) de destruição, pela dificul-
dade de relacionamento com o mundo externo – que conduz o
artista a optar pelo monólogo, a imagem especular, o trabalho
sobre a sua própria figura, de forma a poderem falar desse estado
das coisas.
Em quinto lugar, verificamos que a técnica fotográfica veio
fornecer um meio muito mais eficaz de desenvolvimento da auto-
-representação, na forma como ela hoje se manifesta: a imagem
fotográfica permite um retorno a ideias arcaicas de magia e omni-
potência, características de um sentir narcísico; permite o apro-
fundamento de uma necessidade de «captura» da realidade que
poderá estar associada a impulsos arcaicos, de assimilação do
mundo externo; permite igualmente desenvolver uma prática
representativa que produz formas de acting-out simbólico, já que
a fotografia promove a ilusão de colagem à realidade, de «objecti-
vidade» e, por conseguinte, de possibilidade de passagem ao acto.
O mesmo é dizer que ao fabricar um auto-retrato o artista pode
ficcionar, muito mais eficazmente do que com a pintura, a ilusão
de ser assim ou de fazer assim… mas, sobretudo… pode exorcizar
a profunda depressão que advém de se sentir só perante si
mesmo, projectando em múltiplas imagens um mundo do qual
muitas vezes se sente excluído… ou voluntariamente se exclui.

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ANEXOS
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ENTREVISTA COM CINDY SHERMAN

Margarida Medeiros – Se eu lhe perguntasse directamente,


o que é que procura com a sua obra, acha que conseguia responder?
Cindy Sherman – Não sei. Diria que me interesso pelo fun-
cionamento dos estereótipos, e pela forma como estes se relacio-
nam com as diferenças de género.
M.M. – Essa preocupação com o género, ou com a sua defi-
nição cultural, fá-la sentir-se próxima de uma atitude feminista?
Uma grande parte da crítica e apreciação do seu trabalho provém
dessa área.
C.S. – Sim. Eu acho que que o trabalho funciona definitiva-
mente dessa forma. Mas eu tento não ser tão «política», não está
nas minhas preocupações impingir ideias a martelo, apenas abrir
um espaço no pensamento das pessoas.
M.M. – E no seu também, não? É que por vezes o seu tra-
balho parece mais dizer respeito ao feminino do que ao «femi-
nista»…
C.S. – Sim. Eu sei que as críticas oriundas do feminismo
consideram por vezes que eu não sou suficientemente feminista,
porque não sou suficientemente crítica, e que as minhas fotogra-
fias não questionam claramente os estereótipos femininos: segun-
do essa crítica eu coloco-me excessivamente colada a essas figuras
pin-up que elas combatem, não sendo claro de que lado estou (eu
deveria colocar-me mais perto da câmara, por exemplo, para tor-
nar mais óbvia a minha crítica…); mas o que eu gosto é dessa
ambiguidade, o facto de que o espectador possa ficar na dúvida
sobre se estou a ironizar ou não, parece muito mais subversivo,
obriga muito mais as pessoas a pensar.

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M.M. – Desde o início do seu trabalho, nos anos 70, que


trabalha com a sua própria imagem. Acha que esse facto a enqua-
dra de alguma forma na auto-representação?
C.S. – Não. O que se passa é que eu gosto de trabalhar sozi-
nha. Eu comecei por estudar pintura, que é o género de trabalho
em que se faz tudo sozinho; mas mesmo quando estava a dese-
nhar ou a pintar, eu usava a minha imagem no espelho para trei-
nar o desenho de um rosto. Eu penso que muitos pintores o
fazem, sem chamar a isso auto-retrato. Muitos dos homens de
Clemente se parecem com ele! Penso que é mais um hábito; eu já
experimentei fotografar com outras pessoas (o meu marido, as
minhas enteadas, os meus amigos, uma assistente), mas senti
sempre que não era tão divertido; era apenas uma espécie de jogo
de mascarada, de halloween, e que me era difícil avançar através
de outras pessoas. Se preciso de empurrar um pouco as coisas,
então preciso fazê-lo comigo mesma. Quando trabalho comigo,
mesmo que não me esteja a dar muito gozo, sinto que consigo
uma intensidade emocional muito maior.
M.M. – Mas então concorda que não é completamente indi-
ferente… Não se trata precisamente de, através do trabalho com
a sua imagem, poder ir mais longe na exploração dos seus fantas-
mas pessoais?
C.S. – Eu acho que, inconscientemente, é esse o resultado.
Não se trata de alguma vez ter explorado o auto-retrato como
«género», procurando os estratos do Self, mas acaba por isso
naturalmente acontecer, uma vez que estou a usar a minha pró-
pria imagem.
Se eu usasse outras pessoas, sinto que a certa altura não sabe-
ria o que fazer a seguir, porque não estava a trabalhar comigo
mesma; o que significa que, mesmo que inconscientemente, seja
sobre mim que estou a trabalhar.
M.M. – Podemos pensar que está a brincar com o controlo
sobre a sua própria imagem, de tal forma que chega a um ponto
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em que recorre a bonecos e manequins, para poder avançar com


os «transplantes» corporais?
C.S. – Não posso dizer que decidi isso, ou que decidi agora
preciso de cortar um braço e que foi por isso que recorri a bone-
cos. O que se passou foi que eu estava a ficar farta de me usar a
mim mesma, e tinha de pensar numa forma de continuar a traba-
lhar sozinha. A certa altura descobri os bonecos do jogo «The
mad cientist», uma boneca, manequins, e percebi que podia fazer
outras coisas que ainda não tinha feito, como virar tudo de per-
nas para o ar, tornar a figura muito mais abstracta. Aí os críticos
falaram de desconstrução, mas isso não foi nada que eu planeasse
conscientemente.
M.M. – Um vez disse que estava a começar a trabalhar com
o computador, o que lhe dava novas possibilidades de manipula-
ção da imagem do corpo…
C.S. – Oh, mas isso não tem avançado, porque me desiludi
muito. Não gosto dos trabalhos que vejo feitos por computador,
porque é demasiado óbvio o facto de ser por computador, e eu
gostaria que não parecessem feitos em computador. Por outro
lado, o computador dá uma infinita margem de manobra e eu
não gostei disso. Eu gosto de trabalhar com limites, sinto que é
preciso haver um limite que puxe por mim, que implique um
esforço da minha parte para configurar as fronteiras. Até onde
posso puxar a escuridão?, por exemplo. Algumas coisas que eu fiz,
as que considero «surrealistas», eu poderia tê-las feito em compu-
tador, mas eu também gosto de ter tudo em frente da câmara…
M.M. – A opção pela fotografia tem também a ver com a
vontade de disfarce?
C.S. – Eu sempre fui fascinada, desde pequena, por maqui-
lhagem e roupas. Quando era criança, o que eu gostava era de me
mascarar como uma velha, pôr meias na cara. E quando era
jovem, enquanto as minhas amigas preferiam mascarar-se de bai-

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larinas, ou de noivas, de «beauty queens», eu preferia a figura do


monstro ou da bruxa!… Essa tendência é em mim natural.
M.M. – Então as «bruxas» vêm da infância… Mas podemos
dizer que o seu trabalho é sobre «representar», no sentido teatral,
e de tirar fotografias a essas performances?
C.S. – De certa forma, embora eu não goste propriamente
de representar. Por vezes sugerem-me, amigos ou conhecidos, que
eu entre num filme, mas eu não me sinto uma actriz que seja
capaz de desempenhar um papel, que fale…
M.M. – No seu trabalho, povoado de monstros, bruxas,
figuras fragmentadas, parece haver uma reflexão sobre a morte e
sobre a doença, sobre o ataque à identidade narcísica. Concorda?
C.S. – Eu interesso-me muito pela ideia do desconhecimento
total que temos da nossa morte. Acho que deve ser horrível uma
pessoa, que tem uma doença terminal, saber que vai morrer, deve
ser uma experiência terrível. Mas, por outro lado, acho que um
dos grandes medos vem do facto de não termos qualquer pista
sobre o que nos vai acontecer a esse respeito. Pode ser amanhã
que eu seja atropelada… acordo a pensar no dia como em qual-
quer outro, sem fazer ideia de que são as minhas últimas horas de
vida. Isso fascina-me, e acho que isso é bastante mais aterroriza-
dor do que o próprio facto da morte. O não saber quando nem
como. Nunca sabemos até ser demasiado tarde…
Eu sinto que essa questão determina uma grande parte do
trabalho que faço. Por outro lado, eu não estou tão morbidamen-
te centrada nessa questão que não possa ter uma certa distância.
É por isso que procuro introduzir o humor, até porque não levo a
minha própria vida tão a sério, nem a minha arte (ou dos outros)
tão a sério. Acho que mesmo a representação mais horrível tem
sempre um lado cómico. Pessoalmente acho que os filmes de ter-
ror têm sempre um lado meio ridículo, ou cómico. Porque no
fundo nós estamos confortavelmente sentados na sala de cinema!

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M.M. – Na sua obra há uma espécie de diálogo com as bru-


xas, ou com as partes horríveis do Self, especificamente em certas
fotografias que encenam a sua figura num contraste de luz e obs-
curidade…
C.S. – É como se eu me sentisse às vezes uma cigana, que
está a ser incendiada por alguém, o marido, por exemplo, ou rou-
bada, assaltada! Algo de horrível!
M.M. – Está muito à-vontade no diálogo com o horror, com
os fantasmas do horror…
C.S. – Pois, eu acho que a beleza tem de comportar uma
certa distância. Por vezes parece que as coisas são mais horríveis
do que belas, mas isso interessa-me muito mais. Interessa-me
mais uma certa beleza que vem do horror, do que a beleza que
vem dos cânones habitualmente aceites pela sociedade. Há certas
coisas realmente muito bonitas, e eu compreendo que possa
haver pessoas que se identifiquem nesse género de beleza, mas
para mim isso é muito aborrecido.
M.M. – É isso que explicita nos «Historical Portraits», que a
«beleza é chata»?
C.S. – Sim, claro, mas não é apenas isso. Nessas composições
clássicas, por vezes os artistas eram compelidos mesmo a torna-
rem as coisas «bonitas», porque o quadro era encomendado por
alguém que gostaria de se ver favorecido. E eu quis distorcer isso.
Não é a «beleza» que é aborrecida, a beleza de supermercado é
que é muito chata. Mesmo quando vejo alguém que é tão «boni-
ta» que poderia ser modelo, faz-me impressão, porque não parece
real, parece artificial.
M.M. – A maior parte das representações femininas dos
«Historical Portraits» possui falsos seios, falsas barrigas. Isso pare-
ce uma provocação à posição tradicional da mulher, porque essas
são as partes do corpo da mulher mais representativas do ponto
de vista simbólico. Concorda?

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C.S. – Para mim, toda a ideia da nudez em arte é muito


aborrecida, porque está muito ligada à glorificação do corpo da
mulher, e em certos casos ligada ao erotismo. A representação do
homem nu na arte não parece estar relacionada eroticamente
com as mulheres, não é a mesma forma de erotismo. Parece mais
uma afirmação de grandeza e de força. Agora é diferente, mas
continua a não estar relacionada com as mulheres, mas com os
homens, na homossexualidade, o que é uma coisa em que estou a
trabalhar mais recentemente. A ideia de incorporar a nudez no
meu trabalho nunca teve a ver com a ideia de me revelar a mim
mesma. Houve pessoas que me falaram disso, por que é que não
aparecia a minha nudez, mas nunca achei que isso fosse uma
forma de me revelar. Por isso, as próteses que surgem, as barrigas,
os seios, é uma forma de falar da nudez, preservando um lado
composto, artificial, sem ter de usar a minha própria nudez.
M.M. – Trata-se de representar a nudez, em vez de a expor?
C.S. – Sim. Eu sei que há pessoas obcecadas em saber em
quais fotografias eu estou e em quais não estou, e até os coleccio-
nadores valorizam mais aquelas em que estou, o que é ridículo.
Mas para mim faz muito mais sentido usar as próteses, até porque
acho que há algo de tão artificial na representação tradicional da
nudez, desde há séculos!… Ou mesmo nas revistas de nus, tudo
aquilo é tão artificial, as mulheres não se parecem com aquilo.
M.M. – Pode dizer-se que o seu trabalho, desde as séries dos
anos 70, «Untittled film stills», quer tenha ou não como base a
sua figura, é um trabalho sobre a identidade e os limites do indi-
vidual?
C.S. – Provavelmente. Mas eu nunca pensei muito sobre
isso, não me preocupo com a formulação ideológica do que faço,
mas percebo que isso seja algo que os escritores e críticos pensem
sobre o meu trabalho.

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ENTREVISTA COM DUANE MICHALS

Margarida Medeiros – Gostaria de começar por lhe per-


guntar o que significa para si fazer um retrato.
Duane Michals – Eu não acredito em retratos. Eu acho que
os retratos mentem a toda a hora; descrevem como as pessoas são
fisicamente, mas não nos dizem nada acerca delas. Se pudéssemos
olhar para uma pessoa, e ver realmente o que ela é, então não
teríamos políticos nem escândalos. Boas pessoas podem ter um
aspecto estranho e outras, muito belas, podem ser escroques. Por
isso posso dizer que eu não trato, nos meus livros, quer nos retra-
tos que faço quer nos auto-retratos, da beleza dos rostos ou da
minha. Isso para mim não é fotografia. Eu faço retratos e gosto
de retratos. Mas nunca pretendi que os retratos pudessem «reve-
lar» o que quer que seja acerca das pessoas. Nunca reivindiquei
que os retratos pudessem capturar algo de especial relacionado
com a realidade. Os retratos não descrevem nada. Eu conheci o
meu pai e a minha mãe a minha vida inteira. Agora a minha mãe
está a morrer e eu apercebo-me de que não a conheço bem.
Conheço a minha mãe «histórica», que reconheço nos retratos
quando eu era criança; mas agora, olhando aquela velha senhora,
sinto que não a conheço de facto. É essa relação perturbadora
que eu tenho com os retratos. Aquela ideia de que tirando um
retrato eu posso revelar algo das pessoas, parece-me muito estra-
nha e impossível.
M.M.— É por isso que escreve tanto à volta das fotografias?
D.M. – Sim, eu escrevo muito. Eu senti, ao longo dos anos,
que consigo exprimir-me melhor com a linguagem, consigo uma
maior intimidade. Eu escrevo para mim próprio. Não sou um

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escritor no sentido normal. Só escrevo quando estou num certo


estado de espírito, quando alguma coisa me apaixona.
Mas a questão é que eu não acredito em categorias. Acredito
na expressão. Às vezes faço sequências de fotografias porque a
ideia necessita de ser desenvolvida numa pequena narrativa. Às
vezes faço uma fotografia com um texto, porque sinto que a ideia
necessita de alguma coisa escrita acerca dela. Portanto não sinto
que possa haver essas categorias de fotografias, pintura, desenho,
escrita. A questão é apenas esta: como é que me expresso de uma
forma completa?
M.M.— Isso significa também, por outro lado, que o seu
trabalho tem pouco a ver com a fotografia no sentido tradicional,
centrada na relação com uma realidade externa?
D.M. – A minha inserção no espaço da fotografia não é a de
procurar «como é que as coisas são», mas o seu devir, aquilo em
que se podem tornar. Se vejo uma mulher a chorar, quero saber
porquê, o que é que lhe dói, não me interessa o que é que aquelas
lágrimas parecem. Eu quero saber o que é que se pode sentir para
além do que as coisas parecem. Eu fiz a fotografia de Magritte a
dormir, num sofá. Isso é o que a fotografia aparenta. Mas a foto-
grafia é sobretudo acerca dos sonhos de Magritte. Eu penso que
no meu caso, os retratos têm muito mais a ver com o chegar
perto de algo que tem a ver com a pessoa. Quando eu fiz o retra-
to de Magritte em que só se vê a sombra, isso tem a ver com o
que eu sinto como o estilo de Magritte. Está a ver a diferença?
Eu questiono tudo, tenho uma enorme curiosidade sobre a
vida, e sinto que a maioria das pessoas não sabe que está viva. Só
se apercebem vagamente quando estão doentes. Para além disso,
agem automaticamente, por hábitos. Levantam-se, vão para o
trabalho, vêm do trabalho, sentam-se a ver televisão, vão dormir,
depois levantam-se, vão para o trabalho, vêm para casa… Não
têm consciência. O meu livro The Nature of desire provém desse

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questionar, um questionar filosófico. Eu sinto uma enorme necessi-


dade em questionar a minha existência e a minha experiência.
Claro que se pode ser um Adams, um Cartier-Bresson, mas isso é
outro tipo de fotografia. O que eu pretendo dizer não é que só o
que eu faço é que tem sentido; o que me interessa é afirmar: isto
também pode ser fotografia.
M.M.— No seu trabalho, tudo começa pela fotografia, foi
por aí aliás que começou no final dos anos 50, de uma forma
mais estrita…
D. M. – A fotografia é a minha forma essencial de expressão.
A fotografia «descreve» muito bem, e esse é o seu perigo. Mas
penso que o trabalho artístico transcende a descrição, é preciso
penetrar nas coisas.
M.M. – A fotografia é a linguagem moderna por excelência?
D.M. – A nossa era é a grande era do cinema. Não da música,
nem da escrita, nem da pintura. O cinema é que é verdadeira-
mente mobilizador. Woody Allen, Spielberg, Bertollucci, Bergman.
Para mim, os grandes realizadores são os maiores artistas do nosso
tempo. Se eu tivesse vivido há cem anos, teria provavelmente sido
um escritor, ou um pintor. Porque não havia cinema. É por isso
que sou fotógrafo. Mas não sou um fotógrafo no sentido usual,
sou de uma espécie muito particular…
M.M. – Então por que não escolheu o cinema?
D.M. – Porque eu gosto de trabalhar sozinho. Por vezes isso é
duro, porque tenho imensa coisa para fazer! Mas seria incapaz de
trabalhar tendo à minha volta sempre 20 ou 30 pessoas! A máqui-
na do cinema é incompatível com a minha forma de trabalhar.
M.M. – É o sentido poético, o que mais lhe interessa?
D.M. – Claro. A relação com a linguagem. Mas a questão é
que eu também não me sinto realmente americano. Sinto-me
muito mais europeu. Eu não me interesso por rock’n roll, nem
por baseball, nada do que interessa aos americanos. Eu amo as

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palavras, a literatura, o surrealismo. O meu herói é Borges. O que


eu amo é a imaginação, William Blake, Lewis Carroll, qualquer
pessoa que invente.
M.M. – É por essa razão que cada vez mais mistura desenhos
com as fotografias? Porque o lado (pseudo)realista da fotografia
não o satisfaz?
D.M. – Não são desenhos, são exposições duplas: fotografo o
desenho e sobreponho. Mas o essencial é o mesmo: para mim
existe apenas uma palavra-chave: expressão. Para mim não existe
«a pintura», «a fotografia», não acredito em categorias. O essen-
cial é que eu consiga encontrar os meios para me exprimir. Por
isso uso meios diversos: por vezes uso as sequências, por vezes uso
uma fotografia e texto, por vezes uso as duplas exposições. O
essencial é conseguir a expressão.
Muitos fotógrafos «absorvem» a realidade como um feliz
incidente que podem recolher da rua. No meu caso, eu invento
tudo. Por exemplo, eu não posso ver o espírito a sair do corpo86.
Eu não estou interessado na imagem de um corpo morto, eu já
sei como é; a mim não me interessa aquilo que eu já sei da reali-
dade. Eu nunca poderia ver algo como a imagem que eu fiz,
«Auto-retrato com o meu anjo da guarda». A minha realidade são
os meus sonhos e os meus pesadelos. Nada nas minhas fotografias
poderia ter existido. São sempre metáforas. Há fotógrafos que
preferem a realidade, porque isso lhes vem reforçar os preconcei-
tos sobre o que é a realidade… Talvez se sintam mais seguros
assim… Se eu quisesse fotografar o pôr do sol, com as suas cores
laranja, etc., eu posso fazê-lo. Mas se eu quiser mostrar o que é a
ansiedade, eu posso apenas sugeri-lo, não posso fotografar a an-
siedade fisicamente, não podemos ver essas coisas.

86 Alusão à série «The spirit leaves the body».

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M.M. – No seu trabalho, desde há muito tempo que cons-


trói frequentemente sequências, como que histórias. Isso tem
alguma relação com o cinema?
D.M. – Quando eu comecei a fazer sequências, isso foi
muito libertador para mim. O que me interessa na fotografia é o
que acontece antes e depois de produzir a imagem; eu não acredi-
to na imagem como algo que existe. Há um antes e um depois.
Foi por isso que comecei a fazer sequências, ainda nos anos 60
quando ainda ninguém trabalhava assim em fotografia.
M.M. – A morte parece estar presente em muitos dos seus
retratos e sequências. É uma das suas realidades?
D. M. – Sim. Eu fiz muitas fotografias e auto-retratos sobre
esse tema. Por exemplo, no Self Portrait as Being Dead: essa é uma
visão que eu nunca terei! Eu acho que quis imaginar algo que eu
nunca poderei ver.
Mas também fiz Death comes to an old lady, The spirit comes
out of the body, Grandpa goes to heaven… Eu volto sempre a essa
questão, da morte, talvez porque é algo que nunca poderá estar
resolvido.
M.M. – O seu trabalho é sobretudo sobre o auto-questiona-
mento?
D.M. – Sim, eu ando sempre à volta disso. Quando escrevi
«Quem sou eu?», ou algo do género, eu referi o que é para mim o
retrato essencial. Mas o meu trabalho é mais como um diário da
minha vida, autoral, sobre as minhas vivências, o que vou sentin-
do. Como já disse, estou muito ligado à linguagem. É por isso
que quando uma fotografia falha, eu tenho de escrever. Quando
não podemos ver. Uma vez fiz uma fotografia de um bar, e escrevi
«Há coisas nesta fotografia que não podemos ver». O bar está
vazio. Mas através daquela imagem eu conseguia imaginar a sede,
o barulho das pessoas, tudo o que não estava lá. A fotografia só
dá, por si mesma, os factos.

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M.M. – Acha que essa ilusão dada pela fotografia está relacio-
nada com o facto de esta implicar uma fragmentação do tempo?
D.M. – Sim, mas esse também é o milagre da fotografia.
Interessa-me muito essa questão do tempo, da natureza do
tempo. O grande génio da fotografia é que quando eu digo
«agora» nunca é agora. Não há futuro nem passado, o passado é
apenas aquilo que retemos na memória como passado. Há a ilu-
são do momento, e a câmara regista essa ilusão.
M. M. – Há um lado erótico nas suas fotografias, não ime-
diato mas sugerido. Como se as suas fotografias sugerissem a pos-
sibilidade do tocar…
D. M. – Sim. Por exemplo, no texto «A carícia da câmara»
(«Camera’s caress») eu falo da possibilidade que o acto de fotogra-
far me oferece de poder estar em contacto com o outro. Acon-
teceu-me que enquanto tirava essa fotografia, comecei a ficar
como que encantado com a beleza da imagem que estava na
minha frente. Parece que me apercebi inconscientemente, que
quando a câmara parasse esse momento de contemplação acaba-
va, como se despertasse de um sonho. E não conseguia deixar que
essa sensação desaparecesse. Então, no final, comecei a pensar por
que é que tinha continuado a tirar fotografias àquele personagem,
quando eu já tinha a fotografia que pretendia. Porquê continuar?
Então percebi que era o próprio acto de fotografar que permitia
aquele encantamento, e que quando aquele terminasse, tudo
desapareceria. E eu não queria que isso acontecesse…
É assim que a minha cabeça funciona. Quando tirei esta
fotografia não tencionava escrever este texto, mas achei isto tão
interessante que senti necessidade de o escrever.
M.M. – Acha então que o erotismo está muito ligado à foto-
grafia?
D.M. – Acho que é uma grande parte dela.

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ENTREVISTA COM FLORENCE CHEVALLIER

Margarida Medeiros – Você começou pelo teatro, como


actriz. Como foi parar à fotografia?
Florence Chevallier – Quando era actriz, pôs-se-me a
questão, a certa altura, de poder conciliar as duas vertentes do
teatro: actriz e encenadora, uma vez que também tinha desejo de
pôr em cena as imagens, as histórias, que tinha na cabeça. Ao
mesmo tempo, apercebi-me de que essa realidade seria para mim
dolorosa, uma vez que existe um risco permanente na relação
directa com o público. Aliás, o desejo de encenar tinha, em parte,
a ver com essa necessidade de me defender da «exposição», de me
«pôr em guarda». Acabei por ir parar à fotografia. No fim, esse
desejo de pôr em cena o meu corpo, acabei por pô-lo em prática
através da fotografia. Havia um desejo muito forte de mostrar de
imediato, no presente, o corpo, a nível emocional e a nível estéti-
co, mas ao mesmo tempo, uma grande vontade de me «proteger»,
de colocar um intermediário entre mim e o outro. A fotografia
permitiu-me ao mesmo tempo construir esse imaginário do
corpo, mas, ao mesmo tempo, de me pôr à distância, criando
uma imagem de uma imagem. Eu construí este trabalho de auto-
-retrato como um trabalho de encenação do corpo relativamente
à luz (e à dança também). O corpo é, aí, quem se torna verdadei-
ramente actor.
Ao mesmo tempo tudo isto passa pelo pensamento do mesmo:
sou eu quem sente, quem pensa, quem vê a imagem formar-se na
minha frente, e isso é fantástico.
M.M. – A sua relação com a fotografia está predominante-
mente ligada ao auto-retrato?

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F.C. – Eu tenho uma relação passional com a fotografia a


partir do auto-retrato.
M.M. – Porque este lhe permite continuar esse lado de per-
formatividade do Eu que é próprio do teatro?
F.C. – Havia essa relação ao tempo presente, à acção que está
em vias de acontecer. Os meus projectos não estavam estabeleci-
dos, nem as imagens criadas, tudo acontece a partir da luz, no
início a luz do sol.
M.M. – Acha que entre o teatro e a fotografia existe uma
diferença em termos de imediatez…?
F.C. – Para mim a fotografia não é o «instante decisivo».
Talvez por isso, ultimamente tenho realizado trabalhos que têm
mais a ver com o tempo, através de associação de imagens. Isto é,
uma imagem, com o que a precede e o que lhe sucede, traz-me
muito do que eu necessito no auto-retrato. Há toda uma organi-
zação do tempo e do espaço que o corpo e o pensamento ocupam
e que serve para chegar às imagens.
M.M. – Fala da teatralização e da composição?
F.C. – Sim, e de um certo «aquecimento» que é necessário
para chegar a uma composição, a uma «forma», na sua plenitude.
Todos esses momentos que estão à volta da imagem são para mim
extremamente importantes, e fazem parte desse trabalho da foto-
grafia que tem muito a ver com a teatralidade.
M.M. – Acha então que a fotografia é essa forma de «com-
por»?
F.C. – O meu referente não é o mundo exterior, é o mundo
interior. Portanto a questão é: como fazê-lo vir ao de cima, fisica-
mente? Trata-se de compor o desejo, o imaginário. O material
que ponho «em cena» é um material de pintor, de actor, de tudo
o que tem a ver com a história da arte…
M.M. – Nesse sentido, a fotografia pode ser um écrã de idea-
lização, como no seu trabalho Le Bonheur?

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F.C. – Essa é uma série especial, porque se trata aí de paro-


diar os cenários idealizados, de uma forma crítica e até sarcástica.
Em L’enchantement é diferente, porque eu tento uma pesquisa de
harmonia, tento mesmo aproximar-me de uma certa intimidade
de uma forma não-sarcástica. Mas, de facto, pela fotografia eu
tento imaginar uma vida ideal, ou que estaria muito próxima
dele, mesmo que não acredite muito nisso; estas representações
estão no quadro de uma tradição: fotografias de família, de férias.
Tento sempre preservar uma dimensão «realista» para que não se
pense que as imagens são completamente falsas.
M.M. – Voltando à questão do auto-retrato. Começou pela
série do Corpo, depois o rosto e a seguir os dois corpos. Acha que
há uma dimensão de interrogação sobre a identidade mais forte
nas imagens do rosto?
F.C. – É o conjunto. Começo aliás a aperceber-me de que no
centro do meu trabalho está essa questão da identidade, da exis-
tência; e depois há a questão da morte: por que é que eu me
represento morta (alusão a uma das suas séries) quando estou
bem viva?
Parece-me que com a fotografia encontrei esse desenvolvi-
mento de ideias de que fala a psicanálise: a questão da perda do
Eu, da perda da identidade, a noção de histeria.
M.M. – A sua obra está em paralelo com essas noções?
F.C. – Mais do que em paralelo, dá a impressão de que são o
próprio material das minhas fotografias.
M.M. – Posteriormente, abandona o auto-retrato. Houve
alguma razão consciente?
F.C. – Eu abandonei o auto-retrato por diversas razões. É um
trabalho extremamente esgotante – é uma forma de nos esgotar-
mos na imagem. E isso faz sentir uma certa necessidade de auto-
preservação. Nessa altura encontrei pessoas com as quais senti
que poderia caminhar para outros projectos.

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Spence, Jo (1995) Cultural Sniping / The art of transgression, Londres e Nova
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Sylvester, David (1975) Interviews with Francis Bacon, Nova Iorque, Thames and
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Synnott, Anthony (1993) The Body Social. Symbolism, Self and Society,
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Tisseron, Serge (1996) Le mystère de la Chambre Claire, Paris, Les Belles Lettres,
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C O L E C Ç Ã O A RT E E P RO D U Ç Ã O
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Psicologia do Vestir, Alberoni, Dorfles, Eco, Livolsi, Lomazzi, Sigurtá


tradução de José Colaço Barreiros

Paisagem com Muitas Figuras, João Miguel Fernandes Jorge

Noa, Noa, Paul Gauguin / precedido de Homenagem a Gauguin, Victor Segalen


tradução de Aníbal Fernandes

O Engenheiro do Tempo Perdido, Marcel Duchamp e Pierre Cabanne


tradução de António Rodrigues

Arte e Dinheiro, Baudrillard, Raymonde Moulin, Howard Becker,


Maria de Lourdes Lima dos Santos, Alexandre Melo, Idalina Conde
organização de Alexandre Melo

Trespassa-se. Boqueirão da Praia da Galé

Bestiário, Fábulas e Outros Escritos, Leonardo Da Vinci


selecção, apresentação e tradução de José Colaço Barreiros

Velocidades Contemporâneas, Alexandre Melo

Würzburg Bolton Landing, Rui Chafes

Imagem da Fotografia, Bernardo Pinto de Almeida

O Plano de Imagem, Bernardo Pinto de Almeida

As Escolhidas, Graça Morais

Julião Sarmento, Germano Celant e Alexandre Melo

Ser Moderno… em Portugal, Ernesto de Sousa


introdução e organização de José Miranda Justo

Rosa Carvalho,
textos de João Miguel Fernandes Jorge, Isabel Carlos e João Lima Pinharanda

Luxury Bound – Fotografias de Jorge Molder


John Coplan, Ian Hunt, Delfim Sardo

Ilda David’
posfácio de João Lima Pinharanda

Henrique Pousão, Bernardo Pinto de Almeida

Dacosta em Paris,
introdução de José-Augusto França

Fotografia e Narcisismo, Margarida Medeiros


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DEPÓSITO LEGAL 155844/00



ESTE LIVRO
FOI COMPOSTO E IMPRESSO
NA GUIDE – ARTES GRÁFICAS, LDA.
LISBOA
NOVEMBRO 2000
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