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Coletaneas da ANPEPP 147 Reflexées sobre o processo de triagem de clientes a serem atendidos em clinicas-psicolégicas-escola Eliana Herzberg Universidade de Sdo Paulo Importancia do Tema OQ “simples” contato com a nossa realidade quanto 4 situagao da salide da populacio é suficiente para re-afirmar nossa convie¢4o quanto 4 importancia e prioridade deste tema. Na érea do atendimento psi- coldgico 4 populagao, focalizaremos a atengdo, neste momento, nas Clinicas-Psicoldgicas-Escola. Alguns pesquisadores, dentre os quais, ANCONA-LOPEZ (1983), ANCONA-LOPEZ, (Org. 1995), MACEDO (Org. 1984) e SILVARES, (1993), j4 se dedicaram ou vém se dedicando ao assunto. Cada um a sua maneira, preocupado com as Clinicas-Psicoldégicas- Escola existentes. Tal preocupagao diz respeito a varios aspectos, que englobam, desde os problemas de atuac4o do psicdlogo clinico inserido em uma instituicdo voltada para o atendimento a comunidade, a carac- terizagdo da clientela, os) tipo(s) de atendimento(s) prestado(s), os problemas ¢cvidenciados nesses atendimentos, 0 questionamento dos atendimentos tradicionais até propostas inovadoras de atendimento. O presente trabalho também esta inserido nessa area: Clinicas- Psicolégicas-Escola. Aborda questées rclativas, a porta de entrada para as Clinicas-Psicolégicas-Escola, ou seja, o PROCESSO DE TRIAGEM, de fundamental importancia segundo nosso ponte de vista. Estas reflexdes foram feitas a partir da cxperiéncia de trabalho desde 1981 até a presente data, em uma Clinica-Psicoldgica-Escola, pertencente ao Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo. Embora as questées aqui tratadas refiram-se especificamente a Clini- 148 Coletaneas da ANPEPP cas-Psicolégicas-Escola, possivelmente aplicam-se também, com as devidas adaptagdes, aos processos de triagem existentes em outros tipos de servicos voltados a Area da satide mental. Caracterizacao das Clinicas-Psicolégicas-Escola Esto sendo denominadas de “Clinicas-Psicolégicas-Escola”, as Clinicas psicolégicas que oferecem primordialmente servigos de psi- codiagndstico ¢ psicoterapia individual (grupal também) a populagéo em geral. Contam, em alguns casos, com atendimentos especializados em outras dreas, tais como ncurolégico, fonoaudioldgico, social, ¢ outros. $0 Clinicas-Escola pois ¢ nelas que o estudante de psicologia faz grande parte de sua formagao clinica, ou seja,.a maior parte do grupo de profissionais que nelas trabalham ¢ constituida por alunos, geral- mente dos ultimos anos da graduapdo em Psicologia. Assim, tendo-se em vista que se trata de Clinica-Psicoldgica- Escola, onde so fiundamentais o atendimento 4 comunidade (cliente c eventualmente sua familia), aformacdo do aluno bem como apesquisa, fago as seguintes consideragdes sobre os objetivos a serem atingidos na triagem dos clientes que procuram essas Clinicas. Objetivo(s) da Triagem A funcSo basica da triagem, que pode ser feita em uma ou mais entrevistas, é se chegar a alguma conclusdo, na medida do possivel, quanto ao “melhor” encaminhamento(s) do(s) cliente(s). Do ponto de vista do cliente Do ponto de vista do cliente, parece ser essencial que sua demanda ¢ suas expectativas em relaco ao tipo de atendimento que esté procurando sejam ouvidas. A pergunta fundamental a ser respon- dida nesse momento pelo psicdlogo que faz a triagem é: Serd esta Clinica-Psicolégica a melhor instituig¢do para atender, nesse mo- mento, as necessidades do cliente? Cabe, portanto, uma investigagao c Teflexdo, junto ao(s) cliente(s) para se responder essa questo. Casos onde ha necessidade de equipe multiprofissional, com atendimentos especializados em varias areas, além da psicoldgica, fonoaudiolégica e social, por exemplo, poderiam receber atendimento mais adequado cm outras instituicdes, Coletdneas da ANPEPP 149 Uma segunda questdo a ser respondida ¢: Qual a urgéncia do cliente? Ha tolerdncia & espera? O psicdlogo que faz a triagem, conhecendo a rotina especifica da Clinica, tera elementos para tentar responder essas indagagSes, e dependendo da “resposta”, re-encami- nhar © caso para outro servigo, assumi-lo pessoalmente ou indicé-lo para seguir o fluxo regular daquela Clinica (geralmente estudo de caso ou psicoterapia). As questGes mencionadas nado sdo sempre facilmente “res- pondiveis”, mesmo porque muitas vezes 0 préprio cliente nao tem clara a sua demanda, suas prioridades ¢ expectativas, servindo entao esse contato inicial com a instituigdo como um espago para se chegar, se possivel, as primeiras clarificagSes da situag4o (por exemplo, quem da familia esté precisando de atendimento; trata-se de busca espontanea ou 0 atendimento esta sendo sentido como resultante de uma imposi¢do de um terceiro, como escola, ou outra institui¢do? e assim por diante). Do ponto de vista do psicélogo que faz a triagem Do ponto de vista do psicélogo que faza triagem, pademos citar ainda algumas questdes fundamentais a serem, na medida do possivel respondidas: Qual(is) encaminhamento(s} ¢(sGo) prioritario(s)? Conhecendo a rotina ¢ a sistemdtica dos atendimentos ofereci- dos por aquela Clinica, deve encaminhar para psicoterapia? Estado de caso? Para a assistente social? Quanto a servicos ndo aferecidos pela Clinica, deve encaminhar para outros especialistas? Nesses casos a meu ver, e diversamente de uma atua¢éo em consultério particular, onde ocliente estA menos sujeito 4 espera, parece importante ja na triagem, uma vez detectada a necessidade, que sejam feitos encaminhamentos a especialistas das varias dreas. Uma vez que geralmente ha um tempo de espera entre a triagem e a continuidade do atendimento psicoldgico, tendo-se em vista o cliente, pode ser benéfico © encaminhamento para especialistas, no sentido de se agilizar o processo como um todo. Por exemplo, tomemos 0 caso de uma triagem, onde pais pro- curam atendimento para um filho e 0 psicdlogo que faz a triagem, a partir dos dados colhidos, decide encaminhar a crianca para psicodiag- néstico. Se o psicdlogo que faz atriagem também percebe anecessidade de encaminha-la para uma avaliacdo médica, deve fazé-lo, pois além de ser importante para a crianga, agiliza 0 processo, podendo o aluno, ao assumir 0 caso, contar com uma informagdo adicional para a compreensav do mesmo (o relatério médico ja pronto). 150 Coletdneas da ANPEPP Quando a Clinica pode oferecer o que o cliente necessita, isto é, 0 psicélogo que faz a triagem considera que ¢ um caso para a Clinica, Testa responder a pergunta: Esse cliente ndo teria condicdes de arcar Financeiramente com um atendimento particular? Néo estard ele ocupando a vaga que poderia ser destinada a uma pessoa sem condicées de se beneficiar de algum convénio, ou assisténcia particular? Nao podemos nos esquecer de que fazemos parte da rede publica de assisténcia 4 populagdo e que nesse sentido devemos uma satisfacZo aos mais carentes e menos privilegiados. Outra fungdo possivel da triagem é a de verificar o “grav de engajamento” ¢ também estabelecer um “miniprognéstico” da viabili- dade do atendimento do cliente na Clinica. Assim por exemplo, se o cliente mora muito longe, se no tem disponibilidade horaria compativel com o hordrio de funcionamento da Clinica, ou se aparentemente tem disponibilidade compativel, mas quando o psicélogo que faz a triagem propSe uma segunda entrevista, o cliente ndo consegue encontrar um hordrio para seu atendimento, parece haver pequena possibilidade de continuidade desse atendimento (para fazer estudo de caso, por exemplo, precisar4 vir varias vezes, 0 mesmo ocorrendo no caso de psicoterapia), Se se verifica que o cliente espera resolver seu problema comparecendo aum mimero determinado de sessdes, é importante trabalhar com tal expectativa e com a viabili- dade (ou nao), de tal demanda. Neste momento, estamos diante de uma das fungdes mais fun- damentais do processo de triagem, que é 0 de trabalhar as expectativas, iddias e fantasias do cliente quanto ao atendimento que est4 sendo buscado. Apés ouvir o cliente, pode o psicdlogo que faz a triagem informar sobre o funcionamento da Clinica, confirmando suas idéias ou corrigindo eventuzis distorgdes detectadas j4 nesse contato inicial, cliente/Clinica. Um aparente prolongamento da triagem, que considero mais como um processo do que situagdo estatica ¢ unitaria, representa uma economia de esforcos, tanto para o cliente como para a Clinica, pois ou se estreita o vinculo cliente/Clinica/atendimento, ou se desfaz, através do re-encaminhamento, do encerramento, ou mesmo da desisténcia. Coletaneas da ANPEPP 151 Assim reduzem-se tanto burocracias como um pouco da frustracao ¢ culpa sentidas pelos alunos, quando seu cliente desiste. Estes alunos esto tendo géralmente sua primeira experiéncia clinica. Nao acho que os alunos devam ser “poupados”, nem acredito que isso seja possivel, mas certas frustracgdes, tanto para os clientes como para os alunos, podem ser reduzidas. Como atingir esses objetivos na triagem? Para fazer um encaminhamento, podemos partir além da intuigdo © experiéncia clinicas do psicdlogo que faza triagem de alguns elemen- tos concretos, que podem ser pesquisados no decorrer do processo de triagem. O cliente ja foi atendido anteriormente? Qual(is) o(s) tipo(s) de atendimento(s) recebido(s)? Em qual(is} instituigéo(ées) ou com qual (is) profissional(ais)? E possivel obter maiores informagées sobre o atendimento(s) realizado(s)? Assim, um cliente que jd passou por processo psicoterapico deve ser encaminhado para psicodiagnéstico? Com que objetivo? A pesquisa de dados compondo uma mini-anamnese pode orien- tar, por exemplo, encaminhamentos a especialistas de outras areas, ou até possibilitar a emergéncia de dados ou informagdes imprescindiveis para as decisdes a serem tomadas pelo psicélogo que faz a triagem. Isso nado significa a pesquisa exaustiva, como rotina, de todos os itens que podem compor uma anamnese completa, mas apenas o direcionamento para a coleta de alguns dados, muitas yezes ndo referidos espon- taneamente pelo cliente, e que podem ser de capital importancia para a tomada de decisdes, pelo psicdlogo que faz a triagem. ‘No caso de triagem para atendimento de criangas, além dos pais e/ou responsdveis, é importante que o psicdlogo que faz a triagem mantenha um contato direto com a crianga. Esse contato tem objetivos semelhantes aos j4 expostos em rela¢do aos adultos e ¢ muito impor- tante pois o psicélogo que faz a triagem pode estabelecer uma com- paracdo entre a situaco da crianga, tal como descrita por seus pais, com suas proprias percepcdes advindas desse contato direto. A partir de 152 Coletdneas da ANPEPP ent&o pode dar seguimento aos encaminhamentos que havia planejado ou alterd-los de acordo com suas novas impressdes. O contato com a crianga nao necessita seguir procedimentos rigidos, como por exemplo, sempre solicitar um desenho livre, mas deve ser guiado de acordo com o que o psicdloge que faz a triagem sentir que é mais produtivo, mais adequado para aquele momento (por exemplo sé conversar, ou oferecer brinquedos, ou uma combinacdo entre ambos etc.). E importante procurar verificar se a crianga ou adolescente esta disposta e concorda em ser atendida, quais so suas expectativas, opinides etc. Quanto 4 parte formal da(s) entrevista(s) de triagem, é impor- tante que seja feito um registro por escrito do que se passou. Tal registro deve visar mais o esclarecimento do encaminhamento que sera (ou ja foi) feito do que um apanhado exaustivo e minucioso de todos os dados fornecidos pelo cliente. A citaco textual de alguma(s) frase(s) ditas pelo cliente enriquece e da vida ao relato. Observacées do psicélogo que faz a triagem, quer seja quanto ao clima da (s) entrevista(s) ou de peculiaridades, sentimentos etc., ocorridos no decorrer do processo, também enriquecem 0 relato, possibilitando ao colega que vai depois dar continuidade ao atendimento uma visio mais abrangente da si- Tuagdo. Qualificagées do psicélogo que faz a triagem As caracteristicas da atuacdo profissional durante o processo de triagem compartilham muitas das que ji foram extensamente descritas, discutidas e detalhadas em contribuigdes de autores tais como por exemplo, Bellak & Small (1980), Caplan (1980), Fiorini (1979), Simon (1989) e Wolberg (1979), onde os mesmos abordaram abrangente- mente os principios da psicoterapia breve e da psicologia clinica preventiva. Sao fontes importantes para a formagao do aluno, além é claro, da experiéncia pratica supervisionada e da desejavel psicoterapia pessoal do mesmo, Por tudo 0 que foi exposto e dada a complexidade do processo de triagem parece ser desejavel que o psiedlogo que faz a triagem seja Colctaneas da ANPEPP 153 um profissional que.ja disponha de boa bagagem de experiéncia clinica institucional e também que tenha um conhecimento mais aprofundado do funcionamento e objetivos da instituigdo em que trabalha. Se for iniciante, ¢ desejdvel que se familiarize com a Clinica e que conte com supervisao sistemdtica, para podet assumir esse interessante embora complexe trabalho. Conclusa0 A pratica nos ensina que, quando os aspectos mencionados no decorrer deste trabalho, ndo s4o considerados, as conseqiiéncias geral- mente so quase que imediatas atingindo os varios implicados no proceso, de diferentes maneiras. Assim, por exemplo, uma crianca trazida pelos pais 4 Clinica, apresentando como queixa dificuldades escolares, repeténcia e desligamento, aliados 4 queixa de “problema nos ouvidos e nos olhos” (sic), podera ser ainda mais prejudicada em seu rendimento escolar, se ndo for avaliada o mais rapidamente possivel também, quanto a suas queixas de natureza organica. A nosso ver, caberia ao primeiro psicdlogo - formado ou em formacdo - estabelecer prioridades e tomar as primeiras medidas possiveis, que forem consideradas necessarias em relac&o ao cliente. Primeiro, pois ocotre com frequéncia nas Clinicas-Escola que o cliente seja atendido por varias pessoas, ou, dito de outra forma, passe por varias etapas dentro do fluxo de atendimento dentro da institui¢ao, sendo entrevistado e/ou atendido por mais de um profissionai. A capacidade de ouvir as demandas do cliente, suas expectativas e fantasias, aliado a0 conhecimento da rotina e funcionamento daquela Clinica-Escola em particular em muito podem contribuir para alcancar nossos objetivos: quer seja quanto ao bem estar do proprio cliente, quer quanto a boa formacdo do aluno e finalmente, quanto ao desen- volvimento de pesquisas que constituem a base do conhecimento. A propésito, entendemos como dva formagdo do aluno, o exercicio de leva-lo a discriminar cada vez mais 0 foco de seu trabalho: o atendi- mento ao cliente, Assim, rotinas administrativas © burocraticas, bem como ocalendirio escolar, deveriam procurar se adequar de tal maneira 154 Coleténeas da ANPEPP que fosse possivel atingir ao menos parcialmente seus objetives de trabalho. Infelizmente, o que geralmente temos observado na pratica é © inverso: o cliente é quem predominantemente se vé forcado a se adaptar tanto as rotinas administrativas e burocraticas como ao calendario escolar dos semestres letivos das instituigdes de formagao em Psicologia. De uma triagem “bem-sucedida”, se é que se pode utilizar essa expressdo, deveria advir uma sensacgdo de trabalho conjunto, triador/cliente, ¢ de que as decisSes tomadas foram bilaterais e nao imposigdes de qualquer uma das partes sobre a outra. Referéncias Bibliogrificas ANCONA-LOPEZ, M. (Org,) (1995). Psicodiagndstico: processo de intervencdo. Sao Paulo, Cortez. ANCONA-LOPEZ, M. (1983) . Considerag6es sobre o atendimento fornecido por Clinicas-escola de psicologia Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, 35, (2). BELLAK, L. & SMALL, L. (1980) Peicoterapia de emergéncia & psicoterapia breve. Porto Alegre, Artes Médicas. CAPLAN, G. (1980) Principios de psiquiatria preventiva. Rio de Ja- neiro, Zahar. FIORINI, HJ. (1979) Teoria e técnica de psicoterapias. Rio de Janeiro, Francisco Alves. MACEDO, R.M. (Org.) (1984) Psicologia e instituigde. S80 Paulo, Cortez. SILVARES, E.F.M, (1993) O papel preventivo das Clinicas-escola de Psicologia no seu atendimento 4 criangas. Temas de Psicologia, n.2, p. 87-97, SIMON, R. (1989) Psicologia clinica preventiva. Sio Paulo, Editora Pedagégica e Universitaria. WOLBERG, L.R. (1979) Psicoterapia Breve. Sao Paulo, Mestre Jou.

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