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Imagem, Narrativa E Subversão: Artur Freitas Clóvis Gruner Paulo Reis Rosane Kaminski Vinícius Honesko (Organizadores)
Imagem, Narrativa E Subversão: Artur Freitas Clóvis Gruner Paulo Reis Rosane Kaminski Vinícius Honesko (Organizadores)
Artur Freitas
Clóvis Gruner
Paulo Reis
Rosane Kaminski
Vinícius Honesko
[organizadores]
2
Copyright © 2016 Artur Freitas, Clóvis Gruner, Paulo Reis, Rosane Kaminski e Vinícius
Honesko
p. ; cm.
ISBN
CDD 700.904
SUMÁRIO
Diálogos – Artur Freitas, Clóvis Gruner, Paulo Reis, Rosane Kaminski e Vinícius Honesko
.......................................................................................................................................... 4
Diálogos
Artur Freitas, Clóvis Gruner, Paulo Reis, Rosane Kaminski e Vinícius Honesko
constituídos pelos diálogos entre cinema, visualidade, rock, poesia e heranças visuais
concreta e neoconcreta.
Em seguida, partindo da contraposição entre contracultura e tecnocracia ao
longo dos anos 1960 e 1970, Artur Freitas analisa a polêmica obra urbana Vexations,
da multiartista Jocy de Oliveira, apresentada em Curitiba no contexto do VI Encontro
de Arte Moderna, em 1974. Para tanto, o autor enfatiza as formas de subversão
estética inerentes à obra de Jocy, sobretudo quando contrapostas às estratégias
racionalistas do pensamento tecnocrático, cujo urbanismo do prefeito Jaime Lerner
– surgido em plena ditadura militar, durante o chamado “milagre econômico
brasileiro” – foi um dos seus casos mais célebres.
No texto seguinte, Paulo Reis traça um breve panorama da relação de certa
produção de artes visuais dos anos 1980 e início dos anos 1990 com a crise da aids.
Questões como ética das imagens, comprometimento político e novas disposições
de linguagem são discutidas a partir das exposições 'Nicholas Nixon: pictures of
people' e 'Witnesses: against our vanishing' e de algumas proposições dos artistas
Rafael França e José Leonilson.
O capítulo escrito por Rosane Kaminski avalia o curta-metragem O Inspetor
(1988) como desdobramento da obra fílmica que Arthur Omar vinha construindo
desde o início dos anos 1970 e, ao mesmo tempo, como uma forma de inserção do
artista nas discussões estéticas e políticas do Brasil em seu tempo de produção. Para
tanto, além de analisar o caráter geral do filme, situa-o diante do cenário
cinematográfico nacional dos anos 1980, bem como no quadro de discussões
referentes à ampliação da violência, um dos mais candentes problemas urbanos do
período, que se articulava à crise econômica e à projeção de uma imagem negativa
do Brasil.
Arrematando a segunda parte do livro, o ensaio de Vinícius Honesko apresenta
uma concepção de literatura a partir das noções de caos e de ato de criação. Nesse
sentido, expõe como uma obra pode ser compreendida não a partir de seu estatuto
de ato, obra (ergon), mais ainda ligada à dimensão da potência (dynamis) de criação.
Seguindo as leituras de Maurice Blanchot, pretende mostrar como não é possível
9
determinar à literatura um lugar legítimo no campo das obras humanas – num sentido
político de uma obra humana fundamental, um ergon –, e, desse modo, a ela restaria
apenas a parte do fogo, o lugar maldito e estúpido na estruturação do vivente
humano. Aponta como o espaço literário pode constituir-se enquanto crítica radical
(negação da negação: eis o lugar da literatura) das determinações de legitimidade a
um campo literário e, assim, a estupidez do gesto da escrita (um gesto in-efetivo, in-
operante) pode ainda postular uma possibilidade de, apesar de tudo, resistência aos
poderes que orientam a conformação da vida dos homens.
10
Vicente Sánchez-Biosca
1
Uma versão anterior deste texto foi publicada na revista Pasajes, nº 44, Universitat de València,
Primavera de 2014, p. 120-133. Traduzido para o português por Manuel Guerrero e revisado por Rosane
Kaminski.
2
Agradeço a Ben Kiernan (Yale University) a gentileza que teve para responder tantas perguntas e por
brindar-me com tantas pistas. O King Juan Carlos I Center de New York University me deu a
oportunidade, quando ocupei a cátedra de Spanish Culture and Civilization (inverno-primavera de 2013)
de organizar o simpósio The Desire to See: the production and circulation of Images of Atrocity (abril de
2013), no curso de cuja preparação e percurso adquiriram forma algumas das ideias aqui expostas.
Durante a minha estada em Nova Iorque, o festival Season of Cambodia: a Living Arts Festival (abril-
maio 2013) permitiu-me avaliar obras de artistas contemporâneos da terceira geração que reescreviam
a experiência do genocídio e o Congresso Creation and Postmemory (Columbia University, 10-12 abril)
instalou sua reflexão no contexto da Shoah, Rwanda e a justiça transnacional, seguindo os parâmetros
do seminário sobre post-memoria dirigido por Marianne Hirsch.
3
Alphonse Bertillon introduziu em 1879 um sistema de identificação válido para classificar
delinquentes (sinalética ou bertillonage) apoiando-se em quatro componentes: medidas
antropométricas de onze traços faciais e corporais, retrato verbal de marcas, fotografia padronizada
de frente e perfil e sistema de classificação. Muito empregado pela polícia, este método foi substituído
nos Estados Unidos pela impressão digital já em pleno século XX. Cf. AAVV. Fichés? Photographie et
identification 1850-1960, París, Perrin, 2011.
12
4
É frequente, no âmbito do imaginário social, identificar a magnitude das vítimas com a aplicação do
termo genocídio, independentemente das categorizações do direito penal internacional e ignorando
a tradição que nasceu com Raphael Lemkin.
13
5
Daqui em diante, empregar-se-á a denominação Tuol Sleng para referir-se ao lugar e ao museu e se
reservará S-21 para aludir ao presídio e centro de tortura durante o período khmer vermelho.
6
Um dos fotógrafos de S-21, Nhem Ein, tornou-se um verdadeiro star dos meios de comunicação nas
décadas recentes. Enviado à China para sua formação como fotógrafo ainda muito jovem, esta
personagem carente de qualquer remorso e disposto a vender material próprio e desprovido de
escrúpulos, teve até desejos de abrir um museu comemorativo do período khmer vermelho na sua
região de Anglong Veng. Continua convencido de ter realizado um grande trabalho e que este o faz
merecedor de reconhecimento por parte da humanidade.
14
7
Phnom Penh fora desocupada em abril de 1975 depois da ocupação da capital. Depois que foi
dinamitado o banco nacional, abolido o dinheiro, as escolas e fechados os hospitais, iniciara-se o êxodo
rural em direção aos lugares puros em que estava o velho povo, classe em que se basearia a revolução
ruralista dos khmers Vermelhos. KIERNAN, Ben. The Pol Pot Regime: Race, Power, and Genocide in
Cambodia underthe Khmer Rouge, 1975-1979, Chian Mai, Silkworm books, 1996.
8
Em casos excepcionais, em função da importância de alguns dos executados, Duch receberia do seu
superior, Son Sen, a ordem de fotografar o cadáver para eliminar qualquer dúvida em relação ao fim
da ameaça que o executado representava.
16
pequeno formato para ficar junto a uma ficha que continha a biografia criminal de
cada prisioneiro. Não cabia dúvida: tanto para as vítimas quanto para os executores,
as fotos constituíam signos inequívocos do poder e eficiência do regime 9. Não é
arriscado concluir que a história do partido comunista cambojano era precisamente
uma sucessão de complôs. Arquivá-los e preservá-los era uma forma de escrever a
história da revolução, dos seus antagonistas e dos triunfos sobre eles.
9
HUGHES, Rachel. “The abject artefacts of memory: photographs from Cambodia’s genocide”, Media,
Culture & Society, vol. 25, 2003, p. 25. O fotógrafo Nic Dunlop e conhecedor do Sudeste asiático falou
deste ato fotográfico como um trial by camera (julgamento por câmara). DUNLOP, Nic. The Lost
Executioner. A Journey to the Heart of the Killing Fields, New York, Walker, 2006.
17
reconstrução, 1980) que incorporou planos de Tho Van Thay. A estratégia vietnamita
se baseou em não mascarar o encontrado, mas em construir sobre as marcas da
barbárie um relato de denúncia que eliminaria os Khmers Vermelhos da família
comunista e os mostraria como um bando de criminosos que consumaram o
genocídio do seu próprio povo. Para isso, o novo governo optou por uma estratégia
que feria o olho e escandalizava o ânimo. Seu mais arrepiante resultado foi o Museum
of Genocidal Crimes, que abriu oficialmente suas portas em janeiro de 1980.10
A organização do museu foi encomendada a Mai Lam, diretor do Museum of
American War Crimes em Ho Chi Minh City (1975). Embora Lam tivesse visitado
Auschwitz buscando inspiração, a sua fórmula apostou por algo mais visceral do que
sutil, seguindo o modelo ensaiado quatro anos antes na antiga Saigon, isto é: uma
câmara de horrores. Ainda que a direção formal da instituição fosse de um
sobrevivente cambojano, Ung Pech, Lam agiu na sombra como eminência parda. Com
tal finalidade, o museu apostou em acentuar o coletivo, apelando, por outro lado, aos
detalhes para enfatizar o macabro (exposição de objetos de tortura, preservação da
cama metálica em que tinha sido encontrado o cadáver de um homem encharcado
do próprio sangue, fotos de vítimas…). Seu objetivo era (e a estratégia prevaleceu)
introduzir o espectador na experiência patética do trauma, eliminando os
componentes cognitivos, como se deduz da quase total ausência de cartazes
informativos11. Nada expressa melhor o estilo escolhido do que a exposição de um
gigantesco mapa do país formado por crânios de vítimas, no qual os rios se
desenhavam por meio de um escandaloso fio vermelho sangue.12 Sabe-se que foram
ensaiadas outras estratégias complementares. Em 1980, o pintor sobrevivente Vann
Nath, que tinha salvado a própria vida graças à sua habilidade para pintar murais de
10
Até julho de 1979, a população cambojana não foi admitida no presídio, de modo que a estratégia
vietnamita apontou nos primeiros momentos da ocupação à imprensa socialista internacional (Cuba,
URSS, Alemanha Oriental…).
11
VIOLI, Patrizia. “Il visitatore como testimone. Il Tuol Sleng Museum of Genocide Crimes a Phnom
Penh”, in: Maria Pia Pozzato ed., Testi e memoria. Semiotica e costruziones politica dei fatti, Bolonia, Il
Mulino, 2010, p. 38.
12
Mais tarde, este sinistro mapa foi retirado e substituído pela sua fotografia.
18
Pol Pot, foi contratado para reproduzir, em tela, cenas vivenciadas na prisão 13. Suas
obras, que combinavam o documento e o testemunho dos horrores da vida em S-21,14
foram perturbadoramente concebidas com um estilo naïf e incorporadas ao museu;
no ano seguinte outro sobrevivente, o escultor Bou Meng, foi também incorporado.
Muitas foram as omissões diplomáticas, humanitárias e políticas durante o
protetorado vietnamita. Os antigos Khmers Vermelhos, ocultos na selva à espera de
uma situação propícia, eram ainda reconhecidos como o governo legítimo do país
pelas Nações Unidas e Estados Unidos, devido ao fato de que o Vietnã era o seu
inimigo principal. Tampouco a retirada vietnamita de 1989 esclareceu por completo
a situação: em 1991, os acordos de Paris defendiam uma retórica de reconciliação
nacional extremamente prudente para se referir aos crimes da Kampuchea
Democrática. Todavia, outras linhas de ação durante esses mesmos anos
empreenderam iniciativas que dariam frutos a longo prazo: em 1982, os ativistas pró-
direitos humanos David Hawk e Gregory Stanton se mobilizaram em busca de provas
para um eventual processo contra os líderes khmers vermelhos. O segundo fundou o
Cambodian Genocide Project, e Hawk criou a Cambodian Documentation Commission.
Atividades deste tipo, levadas primeiro nas sombras, depois em plena luz,
significaram uma mudança de perspectiva, uma nova mirada sobre os seres
fotografados pela maquinaria khmer vermelha.
13
NATH, Vann. Dans l’enfer de Tuol sleng. L’inquisition khmère rouge en mots et en tableaux, París,
calmann-lévy, 2008, p. 161; TRANCHE, Rafael R. (2011). “’Los huesos gritan, la carne llama’ o la memoria
del horror. S-21, la máquina de matar khmer roja (R. Panh, 2002)”, in V. Sánchez-Biosca ed., Figuras de
la aflicción humana, Valencia, MuVIM, p. 83-88.
14
Vann Nath não conseguiu ver as cenas que pintava porque chegou com os olhos cobertos e passava
seus dias no interior do ateliê em que pintava sob o olhar atento de Duch. As histórias lhe foram
relatadas por outros. Em consequência, sua função de testemunha se deve a essas pessoas e deixa um
espaço para a imaginação.
19
Figura 1: Imagem extraída dos negativos limpos por Christopher Riley e Douglas Niven e exibida
na Exposição do MoMA intitulada Photographs of S-21 (Maio de 1997). A mesma foto foi
publicada no livro dos dois autores intitulado The Killing Fields (1996). Esta foto foi a base para
a peça de mesmo nome, Photographs of S-21, da dramaturga novaiorquina Catherine Filloux
(1997) que a usou para fazer dela um personagem. A identidade corresponde a Sa'an Kong,
prisioneira 606, em cuja etiqueta presa ao peito de seu pijama se lê a data de sua prisão, 17 de
maio de 1978. O formato original do negativo é 6 x 6cm. No entanto, o corte operado pela
administração do S-21 para inclusão na ficha (que foi chamado de "biografia") tornava
imperceptíveis o fundo ou as margens do que foi enquadrado. Aqui, estaria invisível o braço da
criança que agarra o braço da mãe. No entanto, estes detalhes omitidos da foto recortada
contêm informações valiosas para os historiadores.
15
DE DUVE, Thierry. “Art in the Face of Radical Evil”, October 125, 2008, p. 3-23.
21
Exemplar foi, neste sentido, o caso da jovem Hout Bophana, cujas cartas de amor a
condenaram à destruição. Em resumo, dois olhares (museal e narrativo, seja literário
ou cinematográfico) concordavam, apesar de seus diferentes meios de expressão.
Seu esforço comum era nomear, representar, pensar um período, na época excluído
dos livros de texto escolares, longe da área de ação dos tribunais e ausente da
expressão pública do luto.
Um destes olhares (o terceiro segundo nossa numeração) tem a sua origem nos
resultados do mencionado Photo Archive Group. A restituição dos negativos permitiu
trazer à superfície algo que tinha passado desapercebido anteriormente: as
diferenças entre o original da captura fotográfica e o enquadramento recortado
incorporado às fichas dos detentos, no qual ficava eliminado o ruído dos cenários.16
Isolada a cópia fotográfica e exposta em um museu, suscitava uma percepção distinta
pela visibilidade dos detalhes: alguns exteriores da prisão desmentem, por exemplo,
que todas as fotos foram tiradas na habitação–laboratório habilitada para isso, um
detalhe-ruído, como o braço de um neném assomando da borda inferior do
enquadramento, revela que as mulheres eram fotografadas com as suas crianças, um
segundo detento amarrado com aquele que era fotografado ajuda a compreender o
modo em que iam amarrados uns aos outros… Todos estes fragmentos de
cenografia, na medida em que vão além ou aquém do simples retrato, enriqueciam o
conhecimento sobre o aqui e agora em que acontecera a identificação. Ampliavam a
informação sobre o entorno. Observar o singular exigia agora examiná-lo e
transformá-lo em fértil fonte histórica. Por conseguinte, longe de ilustrar uma história
conhecida e documentada por outros meios, as imagens levantavam o véu que
conduzia a uma escura habitação prenhe de signos sobre a estrutura da morte que
reinava em S-21. Os rostos humanos se tornavam fantasmas projetados na penumbra
de um museu que os livrava do lugar do seu suplício, transformando-os em potenciais
viajantes, enquanto a exposição permanente de Phnom Penh envelhecia
inexoravelmente. Fora do seu traumático lugar, disposta em uma parede da Gallery
16
Embora os muros de Tuol Sleng reproduzissem os positivos dos originais, a qualidade das cópias
obtidas por Niven e Riley permitiu a análise de lastimáveis dados em que anteriormente mal se tinha
reparado.
22
17
A exposição do MoMA, intitulada Photographs of S-21, aconteceu entre 15 de maio e 30 de setembro
de 1997 e constava de 22 mug shots ampliados a partir dos negativos de 6 x 6. Ainda que na época já
fosse conhecido o fotógrafo Nhem Ein, embaixo das fotos se indicava ‘photographer unknown’. Em
julho desse mesmo ano, Les Rencontres photographiques d’Arles, apresentou sob a curadoria de
Christian Caujolle S-21. 100 portraits.
18
RILEY, Christopher & NIVEN, Douglas (1996): The Killing Fields, Santa Fe, The Twin Palms, 1996.
19
Nestes anos se produziu a desaparição militar dos khmers vermelhos depois da detenção e farsa do
julgamento de Pol Pot por Ta Mok ‘o carniceiro’ (julho 1997), da entrevista com o ditador doente pelo
jornalista Nate Thayer e da morte e cremação de Pol Pot no ano seguinte.
20
SONTAG, Susan. Ante el dolor de los demás, Madrid, Santillana, 2004, p. 73.
23
21
O novo povo, diferentemente do velho, camponês, analfabeto, era para os khmers vermelhos um
resto do capitalismo, irrecuperável e destinado a uma implacável aniquilação. Estava formado por
instrutores, médicos, enfermeiras, engenheiros e pessoas letradas, em geral.
25
Figura 2: Fotograma do filme de Rithy Panh, Bophana: une tragédie cambodgienne (1996).
O pintor e sobrevivente do S-21 Vann Nath está, nesta sequência, concluindo um díptico
dedicado a esta vítima, Hout Bophana. No quadro à esquerda, copia uma foto da juventude
da menina; à direita, imita o mugshot tomada pelos Khmers Vermelhos na prisão. Esta
imagem seria legada pelo pintor ao Bophana Audiovisual Resource Center, dirigido por Rithy
Panh em Phnom Penh, onde está depositado. Vann Nath morreria em 2011.
O olhar da lei
O arquivo de rostos de Tuol Sleng passou por uma última transformação: a sua
conversão em fundamento de acusação perante os tribunais. Com a constituição da
Extraordinary Chambers in the Courts of Cambodia (ECCC) realizou-se um antigo
sonho: processar os dirigentes khmers vermelhos. Desembocadura de um itinerário
cheio de empecilhos, esse feito deve-se, principalmente, à tenaz investigação
realizada ou encaminhada por DC-Cam. O primeiro caso foi aberto em 2009 contra
aquele que tinha sido diretor de S-21, Kaing Guek Eav, apelidado de Duch. Dez aos
22
Anos depois, Rithy Panh fundou um centro cultural franco-cambojano sediado em Phnom Penh,
arquivo de investigação de primeira importância para o estudo audiovisual do período khmer
vermelho, e o batizou com esse nome de mulher: Bophana Audiovisual Ressource Center
(www.bophana.org).
26
antes, em 1999, um cristão convertido, que colaborava com uma ONG e respondia
pelo nome de Hang Pin, tinha sido identificado pelo fotógrafo Nic Dunlop como o
temível responsável do presídio. Um vídeo feito pelo próprio Dunlop e um novo
encontro, desta vez em companhia do jornalista Nate Thayer, levaram à sua captura
pelas autoridades. O caso Duch (001) significava uma encenação insólita na vida
cambojana do período sinistro que se projetava sobre o presente como traumática
memória. Consistia num ato de reconhecimento público das vítimas, uma cobertura
midiática sem precedentes e um esforço adicional por traduzir a ação da justiça em
instrumento de reflexão e, a longo prazo, de reconciliação nacional. 23
Sem abandonar antigos suportes nem descartar as estratégias examinadas
nestas páginas, a vítima de S-21 passava a ser sustentáculo de uma acusação envolta
pelas vozes dos sobreviventes, familiares e testemunhas, como se esse olhar
humilhado pelos captores se elevasse acima das suas cinzas para acusá-los três
décadas após a sua morte. Ademais, o caminho que termina no tribunal permeia no
seu percurso outros âmbitos que agem como caixa de ressonância ao olhar
acusatório na sociedade civil. Os mugshots passam, assim, entre as mãos dos
implicados no processo de destruição (sejam eles acusados ou não), circulam por
escritórios de advogados e procuradores e chegam aos gabinetes da imprensa. Os
meios de comunicação, em particular, multiplicam exponencialmente o alcance das
imputações, que adquirem agora uma função precisa: servir de base para uma
sentença penal. Nesse trajeto, as fotos são acolhidas pelos familiares que exercem
uma espécie de resgate humano, de recuperação simbólica da sua memória.
Assim como a recuperação simbólica dos crimes de S-21 pela justiça está
representada na reconstrução dos fatos protagonizada pelo camarada Duch no
recinto do presídio, suspeitamos que uma imagem sintetiza a nova função das
fotografias de torturados em Tuol Sleng: aquela em que as efígies deslizam entre as
23
Os processos seguintes ainda estão sendo esclarecidos na atualidade, mesmo que as esperanças de
condenações sejam muito escassas: Ta Mok morreu na cadeia em julho de 2006, antes da constituição
do tribunal; Ieng Thirith foi declarada demente em setembro de 2012; Ieng Sary faleceu em pleno
processo em 14 de março de 2013. Somente Kieu Samphan e Nuon Chea, que se declaram inocentes,
são os últimos grandes dirigentes pendentes de condenação. Outros possíveis processos foram
previstos sem que os nomes dos acusados tenham sido ainda revelados.
27
24
BIZOT, François. Le silence du bourreau, París, Flammarion, 2011.
25
PANH, Rithy & BATAILLE, Christophe. L’élimination, París, Grasset, 2011, p. 233-234.
28
26
CHANDLER, David, KIERNAN, Ben & CHATHOU, Bova. Pol Pot Plans the Furue: Confidential Leadership
Documents from Democratic Kampuchea, 1976-1977, New Haven Yale University Souheast Asia Studies,
1988.
27
Nota do tradutor: Livro traduzido ao português como: Os afogados e os sobreviventes.
29
21. Por esta razão, as fotos são, em primeiro lugar, objetos semióticos que devemos
interrogar a partir de seus códigos de figuração (a escala, o ângulo, proporções, o
recorte, a luminosidade, o tempo de exposição…). Seu estudo nos ajuda a pensar
como os Khmers Vermelhos olhavam e, portanto, concebiam seus inimigos. Esta
representação, todavia, não e suficiente para explicar a força inesgotável das
fotografias. Nelas adquire forma um segundo nível: o instante singular do choque de
olhares; uma faísca registra aquilo que o ser retratado expressou em um gesto,
consciente ou não, a última vez em que foi fotografado, não antes, mas para morrer.
Por isso, o ato fotográfico tem algo de performativo: mais do que descrever um
inimigo, o produz; mais do que abrir uma ficha de detento, condena-o à morte. A foto
nos leva, então, ao instante, mas faz com que gravite sobre ele tudo o que
aconteceria depois. Poucas vezes a ideia barthesiana que define toda fotografia
humana com a arrepiante certeza do “Vai morrer” fica confirmada com mais
inexorável contundência.
Figura 3: Desenho de Vann Nath datado de 2006. Nele, se representa a impressão que o
detido tinha da captura fotográfica. Transportado de longe e com os olhos vendados, este,
ainda amarrado a outros prisioneiros, era repentinamente cegado por um holofote que
acompanhava a tomada da foto, no mesmo momento em que a venda era retirada de seus
olhos. Este desenho poderia ser considerado um contracampo do mugshot.
30
E, no entanto, estas fotos (toda foto, na verdade) são também objetos. Oxidam
em depósitos durante anos, seus negativos são resgatados para obter novas cópias,
mais contrastadas, que se ampliam a bel-prazer para tornar eloquente o detalhe
antes imperceptível; depois, emolduradas, serpenteiam por museus e galerias,
deixam-se acariciar como relíquias pelas mãos dos que amaram os entes nelas
retratados e, em inquietante contágio, deslizam entre as mãos dos executores. São
resíduos de vida nua que, ainda parecendo espectrais quando projetadas como
cortejo fúnebre em algumas páginas web28, em outras ocasiões adquirem corpo,
preenchem os espaços, agem como vestígios do passado em suporte matérico.
Em uma passagem de Shoah (Claude Lanzmann, 1985), o historiador Raul
Hilberg manuseia uma única folha amarelada: é um itinerário, diz, de um trem da
morte. Nele aparecem os horários precisos, mencionam-se nomes de estações,
enumera-se os vagões, as unidades – isto é, os corpos – transportadas no seu interior.
O historiador decifra minuciosamente as distâncias e as projeta sobre o mapa
imaginário da deportação; lê chaves ocultas, como essas duas letras – LZ (leer Zug ou
trem vazio) – que escondem um crime, pois aludem a um trem cujos vagões foram
descarregados em Treblinka e retorna vazio. Hilberg não só interpreta o documento;
preenche suas lacunas e seus silêncios. Contudo, o que mais fascínio produz a este
investigador do Holocausto nesse memorável trecho é que ele se encontra perante
um original, que devia ter tantas cópias como funcionários implicados na ordem.
Como genuíno que é, passou pelas mãos de um funcionário da deportação e só por
isso ele conseguiu cumprir com a tarefa. Em outras palavras, antes de ser documento
do acontecido, esta folha foi um mandato, um texto performativo: não relata, produz.
Possuí-lo, tocá-lo, no mesmo tempo em que é decifrado, é se colocar no lugar do
executor, acompanhar seu processo mental, arrebatar dele, sem dúvida já tarde
demais, a sua arma de destruição.
28
Veja-se, por exemplo, o dispositivo empregado no projeto da Universidade de Yale:
http://cgp.research.yale.edu/cgp/cts/cts_slideshow.jsp Uma estratégia diferente pode ser encontrada
na seção fotográfica da página web de Tuol Sleng: www.tuolsleng.com/photographs.php (última
visita das duas em 25 janeiro 2014).
31
As fotos de Tuol Sleng são tramas de informação que nos falam da identificação
dos detentos e, como tais, hão de ser analisadas também nas suas margens, inferido
o seu fora de campo, reconstruído ou quase imaginado o que apenas se insinua em
alguma das bordas do enquadramento. São, por outro lado, atos que fizeram de um
ser um culpado e o precipitaram a uma queda sem chances. Mas são igualmente, e
por último, vestígios materiais arrancados do obscuro mundo dos Khmers
Vermelhos, objetos manufaturados por eles, recortados, examinados
cuidadosamente, comentados, inventariados, manuseados. Neles permanece ainda
algo do ruído e da fúria de quem os produziu e do calafrio de quem, inocente ou não,
os sofreu. Como tantos objetos que povoam os museus de guerra, fetiches para uns,
dolorosa matéria que provocou a morte para outros, façamos o que façamos com
eles, jamais conseguiremos silenciar seu grito.
Figura 4: Cela no piso térreo do edifício onde, entre 10 e 14 de janeiro de 1979, foi encontrado
pelos vietnamitas que tomaram Phnom Penh um corpo torturado e assassinado em estado
de decomposição. A política do museu preservou a cama de ferro original, dispôs sobre ela
alguns instrumentos de tortura e pendurou a fotografia do primeiro encontro (feita pelo
fotógrafo Vietnamita Ding Fong) na parede da esquerda; amostra da orientação traumática
do museu e da vontade de apostar na memória do encontro do olho com o horror.
32
O contemporâneo pré-figurado
Raul Antelo
The currently evolving phase in the study of art will have to emphasize, in a heretofore
unknown manner, the investigation of individual works. Nothing is more important at the
present stage than an improved knowledge of the individual artwork, and it is in just this
task, above all, that the extant study of art manifests its incompetence… Once the
individual artwork is perceived as a still unmastered task specific to the study of art, it
appears powerfully new and close. Formerly a mere means to knowledge, a trace of
something else which was to be disclosed through it, the artwork now appears as a self-
contained small world of its own, particular sort.2
1
SEDLMAYR, Hans. “Towards a Rigorous Study of Art” in WOOD, Christopher (ed) - The Vienna School
Reader: Politics and Art Historical Method in the 1930s, New York, Zone, 2000, p.133–179. Sobre o texto,
FUHRMEISTER, Christian. “Reine Wissenschaft: Art History in Germany and the Notion of 'Pure Science’
and 'Objective Scholarship’, 1920–1950” in FRANK, Mitchell B. e ADLER, Daniel (ed.) - German Art
History and Scientific Thought: Beyond Formalism. Farnham-Burlington, Ashgate, 2012, p. 161–177;
BORN, Robert. “World Art Histories and the Cold War” in Journal of Art Historiography, nº 9,
Nottingham, dez. 2013; BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo,
Cosac Naify, 2006; VARGIU, Luca. Incroci ermeneutici. Betti, Sedlmayr e l’interpretazione dell’opera
d’arte. Centro Internazionale Studi di Estetica, nº 82, Palermo, abr. 2008.
2
BENJAMIN, Walter. “The rigorous study of art”. Selected writings, Vol. 2, 1927-1934. Trad. Rodney
Livingstone et all. Cambridge, The Belknap Press of Harvard University Press, 1999, p. 667.
33
3
Idem. Rua de mão única. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São
Paulo, Brasiliense, 1987, p. 277 (Obras escolhidas, vol. 2).
4
SEDLMAYR, Hans. Perdita del centro. Le arti figurative dei secoli diciannovesimo e ventesimo come
sintomo e simbolo di un’epoca. Trad. M. Guarducci, Torino, Borla, 1967.
5
Boris Groys vê essa mesma opção em Kojève. Ele teria tomado a Fenomenologia do Espírito como um
ready-made e reservado para si a função de assinar essa obra no novo contexto, o entorno acefálico
do Paris de entre-guerras. Da mesma forma, o fenômeno da reprodução, para Kojève, é que passava
a ocupar agora o centro que Sedlmayr julgava perdido. Na época da religião tradicional, argumenta,
as operações de repetição e reprodução estavam restritas a locais sacros, ao passo que os profanos
permaneciam num fluxo indeterminado de tempo. Na nova condição, exigem-se garantias de
reconhecimento, duração e, eventualmente, vida póstuma, que valeriam para cada um e para todos,
34
omnes et singulatim, para retomarmos a chave biopolítica de Foucault. Ver GROYS, Boris. Introduction
to Antuphilosophy. Trad. David Fernbach. Londres, Verso, 2012, p.100. É o que, paralelamente, Borges
exploraria através de Pierre Menard. Voltaremos nesse ponto.
6
Relembrar o perfil do destruidor segundo Benjamin: “O caráter destrutivo é jovial e alegre. Pois
destruir remoça, já que remove os vestígios de nossa própria idade; traz alegria, já que, para o
destruidor, toda remoção significa uma perfeita subtração ou mesmo uma radicalização de seu
próprio estado. O que, com maior razão, nos conduz a essa imagem apolínea do destruidor é o
reconhecimento de como o mundo se simplifica enormemente quando posto à prova segundo mereça
ser destruído ou não. Este é um grande vínculo que enlaça harmonicamente tudo o que existe. Esta é
uma visão que proporciona ao caráter destrutivo um espetáculo da mais profunda harmonia. O caráter
destrutivo está sempre trabalhando de ânimo novo. É a natureza que lhe prescreve o ritmo, ao menos
indiretamente; pois ele deve se antecipar a ela, senão é ela mesma que vai se encarregar da
destruição.” BENJAMIN, Walter. Rua de mão única, op.cit., p. 235.
35
7
BASSAANI, Ezio e PAUDRAT, Jean-Louis. “Notas sobre un torso” in EINSTEIN, Carl – La escultura negra
y otros escritos. Barcelona, Gili, 2002, p. 63
8
BENJAMIN, Walter. “Die Wahkverwandtschaften de Goethe” in Sobre el programa de la filosofía futura
y otros ensayos. Trad. R. Vernengo. Caracas, Monte Avila, 1970, p. 72.
9
GUERRERO, Luis Juan. Estética Operatoria em sus tres direcciones. Revelación y acogimiento de la obra
de arte. Ed. Ricardo Ibarlucía. Buenos Aires, Las 40, Biblioteca Nacional, 2008.
10
Idem. “Torso de la vida estética actual”. Actas del Primer Congreso Nacional de Filosofía (Mendoza
1949), Universidad Nacional de Cuyo, Buenos Aires 1950, vol. II, p.1474.
36
11
Sedlmayr argumenta que a arte também se afasta do centro e isso vale tanto para os temas artísticos
quanto para a relação entre as artes, relação em que a escultura emerge como mediadora. A arte
torna-se assim ex- cêntrica, em todos os sentidos. O homem pretende sair dela, que por sua própria
natureza constitui o centro entre o espírito e os sentidos, e ela mesma tenta abandonar essa arte em
que, como o homem, já não encontra resposta nem sentido. Tende, portanto, a uma “super-arte” que,
simultaneamente, projeta-a no “sub-artistico”. Com essa descrição, Sedlmayr alude à saída surrealista
das vanguardas, último avatar da inteligência europeia, segundo Benjamin, e seu consequente receio
de queda na diluição e no Kitsch. Como, para Sedlmayr, a arte afasta-se do homem e da justa medida,
esses sintomas se correspondem, a seu ver, com tendências verificáveis no próprio homem. Mas não
é só na arte que o homem busca afastar-se do “centro” e do próprio homem, muito embora seja na
arte, para Sedlmayr, que melhor se ilustram essas ocorrências.
12
GAVIÑA, Graciela Wamba. “La recepción de Walter Benjamin en la Argentina”, in VÁRIOS AUTORES.
Sobre Walter Benjamin. Vanguardias, historia, estética y literatura. Una visión latinoamericana. Buenos
Aires, Alianza/Goethe-Institut, 1993; GARCIA, Luis Ignacio. “Entretelones de una estética operatoria.
Luis Juan Guerrero y Walter Benjamin”. Prismas. Revista de historia intelectual. Quilmes (Argentina),
nº 13, 2009, p. 89-113.
13
BENJAMIN, Walter. Escritos escogidos. Trad. H. A. Murena. Buenos Aires, Sur, 1967. O volume reúne
“Sobre algunos temas en Baudelaire”, “Tesis de la filosofía de la historia”, ”Franz
Kafka”, ”Potemkim”, ”Un retrato de infancia”, ”El hombrecito jorobado”, ”Sancho Panza”, ”La tarea
del traductor”, ”Sobre la facultad mimética”, ”Para una crítica de la violencia” e ”Destino y carácter”.
Sobre o Autor, ver “Murena, el anacrónico”, de Juan Liscano (in Descripciones. Caracas, Monte Avila
Editores, 1983); “Murena, la palabra injusta”, de Hugo Savino (in El innombrable, n° 1, Buenos Aires
1985; “H.A. Murena”, de Héctor Schmucler (La Caja, n° 10, Buenos Aires 1994); ”Relámpago de la
duración”, de David Lagmanovich (in Revista Iberoamericana, n°56, Pittsburgh, 1963, mais tarde
incluído em Discursos poéticos. Universidad Nacional de Tucumán, 1998; “Murena un crítico en
soledad”, de Américo Cristófalo (in Historia crítica de la literatura argentina de Noé Jitrik. Vol 10: La
irrupción de la crítica. Buenos Aires, Emecé, 1999; “El intelectual ultranihilista: H.A. Murena
antisociólogo”, de Leonora Djament (in Historia crítica de la sociología argentina, editor Horacio
González. Buenos Aires, Colihue, 1999; “Murena en busca de una dialéctica trascendental”, de Silvio
Mattoni (in Confines, n°7, Buenos Aires, 1999); “El silencio imposición-incomunicación con el nuevo
mundo en la perspectiva mítica de H.A. Murena”, de Leonor Arias Saravia (in La Argentina en clave de
metáfora, Buenos Aires, Corregidor, 2000); Visiones de Babel, uma antologia preparada e prologada
37
hacia esa época (isto é, fins do século XVIII, inícios do XIX) el arquitecto Lequeu15 concibe
un monumento que será la ‘Entrada a la morada de Plutón’. Pues cuando el hombre cree
autonomizarse y borrar el Cielo, es la Tierra la que se autonomiza a costa del hombre y,
por Guillermo Piro (México, Fondo de Cultura Económica, 2002) e “El arte y el lugar”, de Silvio Mattoni,
prefácio à reedição de La metáfora y lo sagrado (Buenos Aires, Cuenco de plata, 2011). Houve, além do
mais, antologias de seus poemas em El jabalí, revista ilustrada de poesia, n° 10, Buenos Aires, 1999 e
no Diario de Poesía, n° 60, Buenos Aires, jan. 2002.
14
Abriu o colóquio Luigi Pareyson (“Valori permanenti nel divenire storico”), a quem Guerrero incluíra
no congresso filosófico de 1949, uma vez que, à época, Pareyson era professor em Mendoza e, a
seguir, falaram o filósofo da integralidade, Michele Federico Sciacca (“Storicismo o storicità dei
valori?”); o estudioso dos ameríndios Joseph Epes Brown (“The persistence of essential values among
North American Plains Indians”); o jurista Sergio Cotta (“L’esperienza giuridica e i valori permanenti”);
o politólogo Augusto Del Noce (“Contestazione e valori”); o filósofo húngaro Thomas Molnar
(“Religion et utopie”); o psiquiatra Henri Baruk (“Le Tsedek, science de l’homme et religion de
l’avenir”); Cyrill von Korvin-Krasinski (“La crise de l’homme occidental du point de vue de
l’anthropologie indo- thibétaine”); o historiador Paolo Brezzi (“I valori religiosi nel divenire storico”);
Germaine Dieterlen (“Les valeurs permanentes des Bambara et la société initiatique du Komo”); o
sinólogo Carl Philip Hentze (“Le culte des ancetres et l’idée de permanence dans la Chine la plus
ancienne”); Marie E. P. Konig (“A propos de l’évolution continuelle de la civilisation pendant les
périodes préhistoriques”); o etnólogo argelino Jean Servier (“Valeurs permanentes des civilisations
traditionnelles et devenir du tiers-monde”); Giorgio Diaz de Santillana e Herta von Dechend (“Syrius
as a permanent center in the archaic universe”); Seyyed Hossein Nasr (“Man in the universe”); o
biológo Giuseppe Moruzzi (“Visual perception and symbology”); Marius Schneider (“La notion du
temps dans la philosophie et la mythologie védiques”); o cientista político Eric Voegelin (“Equivalences
of experience and symbolization in history”); o etnólogo Dominique Zahan (“Mythes d’origine de la
mort: le message manqué”); o crítico de arte Hans Sedlmayr (“Il legame fra visibile e invisibile nell’opera
d’arte”); o escritor Carlo Cassola (“Cultura e poesia”); um discípulo de Barchelard, o etnólogo Gilbert
Durand (“Le système des images divines et sa pérennité”); o teatrólogo Diego Fabbri (“Spirito creativo
e simboli”); o já citado Héctor Alvarez Murena (“El arte como mediador entre este mundo y el otro”);
o arquiteto norueguês Christian Norberg Schulz (“Il concetto del luogo”); o suiço Théophile Spoerri
(“La permanence des valeurs dans l’éclatement des structures (Mallarmé, Pascal, Dante)”) e o crítico
polonês Wladimir Weidlé (“L’image: deuxième langage de l’homme”). VÁRIOS AUTORES. Eternità e
storia. I valori permanenti nel divenire storico. Ed. Istituto Accademico di Roma. Roma, Valecchi, 1970.
15
Jean-Jacques Lequeu foi um arquiteto e desenhista contemporâneo da Revolução, de cujos projetos
nenhum chegou a se materializar. É famoso por seus retratos em travesti ou pelos estudos sobre os
órgãos sexuais. Marcel Duchamp e, de modo geral, a linha sadeana do surrealismo muito apreciaram
sua obra utopista e in-operante.
38
trasformada en imagen invertida del Cielo, resulta ser el inferus privador, emblema de las
potencias plutónicas, infernales, a las que el mediador queda sometido. Así la moral
autónoma fundada en la libertad interior de Kant encuentra su reducción a la absurda
verdad en que se sustentaba a través de la libertad moral absoluta para el crimen de la
filosofía de Sade. Así la revolución industrial que venía a liberar al hombre de la maldición
originaria del trabajo elimina el elemento humano del trabajo y convierte al hombre en
una máquina para trabajar. Así la economía, de ser la administración (nomos) de la casa
(oikos), mediante la cual el hombre apacentaba sus bienes, se desencadena y se
transforma en un sistema global gracias al que el poder abstracto del dinero se coloca
asfixiantemente por encima del hombre. Así la Revolución Francesa cuyo fin era lograr la
igualdad de todos los hombres encuentra su portavoz en Napoleón, quien es el primero
en decidir que todos los hombres de la comunidad deben servir igualmente a la guerra,
con lo que inaugura las guerras de movilización total que se prolongan hasta hoy e
insinúan que la guerra ha dejado de ser una de las tantas funciones de la comunidad para
convertirse en característica primordial de tiempos de metódica guerra de todos contra
todos. La aspiración a lo total por cualquier aspecto de lo humano – guerra, economía,
libertad, arte, técnicas, etc. –, dice que la parte del Cielo, de Dios, ha sido liquidada sobre
la Tierra: dice que la Tierra se ha vuelto totalitaria. El totalitarismo como fenómeno
constituye la caricatura material terrestre, que busca abarcar y dominar, del absolutismo
espiritual celeste, que penetra y sustenta. Tal totalitarismo puede concretarse
incidentalmente en sistemas políticos autocráticos, aunque esto no es indispensable:
hoy el totalitarismo es puesto en práctica en todos los órdenes con la mayor eficacia por
una tecnocracia que usa políticamente una máscara benévola.16
Con mayor firmeza a partir del siglo XVIII, empieza a observarse en la historia del arte
occidental la deformación de tal imagen mediante lo demoníaco y lo caótico (Goya),
mediante el humor (Daumier), mediante lo onírico mecanizado (Grandville), mediante la
conversión del hombre en un objeto intercambiable con cualquier otro para la mirada
artificialmente pura (Impresionismo), hasta llegar a presentar a los humanos como
muñecos, autómatas, monstruos, espectros, esqueletos, animales, máquinas
(Surrealismo, Picasso, Ensor, Dalí, Seurat, Kokoschka, Grosz, etc.). El desenlace de este
proceso es el llamado arte abstracto y sus sucesores hasta el presente (Kandinsky, Klee,
et al., incluyendo el “tachismo”, la action painting, etc.), que constituye el punto cero en
el que la imagen humana desaparece por completo: lo que se media a este mundo –
ausente como paisaje o contorno natural de cualquier índole en su transformación en
mero espacio pictórico puro – es el Otro Mundo, el Cielo o Dios, reducido a nada. Este
arte media la nada a la nada, queda reducido a la pura función de mediar que ejecuta sus
16
MURENA, H. A. La metáfora y lo sagrado. Buenos Aires, El Cuenco de Plata, 2012, p. 52-53.
17
MARTINO, Ernesto de. La fine del mondo. Contributo all’analisi delle apocalissi culturali, Torino,
Einaudi, 1977.
39
18
MURENA, H. A. La metáfora y lo sagrado, op. cit., p. 54-55.
19
BENJAMIN, Walter. “Che cos´è il aura?” in Charles Baudelaire. Un poeta lirico nell´età del capitalismo
avanzato. Ed. Giorgio Agamben, Barbara Chitussi e Clemens-Carl Härle. Vicenza, Neri Pozza, 2013.
20
MARTINEZ ESTRADA, Ezequiel. Nietzsche. Buenos Aires, Emecé, 1947.
21
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burigo, Belo
Horizonte, Ed. da UFMG, 2002.
22
BUTLER, Judith. “Vida precária”. Contemporânea. Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos,
Departamento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, 2011, nº 1, p.13-33; Idem.
Precarious Life: The Powers of Mourning and Violence. London, Verso, 2004.
40
Nietzsche derruyó el concepto tradicional que desde Aristóteles hasta Hegel afirma que
el hombre es un ser de razón, pero al término de esta tarea tuvo que asentir al irrefutable
principio de que por lo menos es un ser con razón. O sea que el hombre no es sólo razón,
pero tiene una razón que lo distingue. Y que, en consecuencia, como la razón se polariza
fatalmente sobre el par de centros de la verdad y el error.
Em outras palavras, Murena, que a essas alturas ainda não lera Sedlmayr, diz
que o centro se perdeu mas que o homem (o ser-com ou Mit-sein), mesmo querendo
salvar a razão, obedece, na verdade, a dois centros, verdade e erro ou, como dirá
Lacan, Kant com Sade. Esta bipolaridade aventa, portanto, a hipótese por ele mesmo
desenvolvida, em 1954, em El pecado original de América Latina, e que poderia
resumir-se em que a filosofia contemporânea
Los americanos tenemos desde antes que nadie y con mayor intensidad que ninguno la
experiencia de la desuniversalización. Porque América, la tierra aún no poseída por el
espíritu, la tierra que abate al hombre, es por excelencia el mundo desuniversalizado. En
este ámbito oscuro y caótico la razón se ve en cada momento llamada a actuar, en cada
minuto se siente convocada a librar su épica ante la tierra, no puede encerrarse en el
racionalismo ni abandonarse al irracionalismo. Este mundo crudo, en descubierto, libre
de teorías, es la situación que Nietzsche pedía para que la razón hiciera frente a su
verdadera prueba, para fundar una filosofía viva23.
23
MURENA, H. A. “Nietzsche y la desuniversalización del mundo”. Sur, nº 192-94, Buenos Aires, out-
dez 1950, p. 75-85.
41
diria Lacan, uma subversão do sujeito e uma dialética do desejo. Avança, assim, a
noção do singular que se singulariza a si próprio, algo que já não é uma unidade
indivisível ou uma essência, mas uma unicidade entendida como existência sem par
(América como o mundo desuniversalizado). Não é portanto o particular da tradição
hegeliana, uma vez que este, sendo parcial, uma simples parte do Todo, está imerso
na dialética entre o particular e o universal. O singular é a diferença absoluta que
vincula-se com outros singuli, outros sujeitos. Em 1965, a propósito, uma aguda
leitora de Murena, a poeta Alejandra Pizarnik, chama a atenção para um texto dele,
“Trabajo central”, ou seja, o trabalho do centro, onde o autor, precisamente,
Com uma fórmula de inegável sotaque bataillano, Pizarnik intui, nessa peça de
Murena retirada de El demonio de la armonía (1964), a emergência do Real que, ao
dessubstancializar a matéria, propõe, em seu lugar, a subversão. Ora, foi justamente
na introdução a Ensaios sobre subversão (1962), onde Murena começou a elaborar
uma teoria do contemporâneo que muito deve à sua leitura do instante-já
benjaminiano e preanuncia o percurso de Agamben ou mesmo Didi Huberman no
tocante a uma temporalidade pós-histórica ou simplesmente pós-aurática:
En general, las falsas subversiones – de las que está hecha casi el total de la cultura
presente – se dirigen al hombre de letras para reclamarle solidaridad con sus
contemporáneos, contemporaneidad. Y, en efecto, el hombre de letras debe ser
contemporáneo. Pero lo que la falsa subversión exige es adhesión a una de las facciones,
24
PIZARNIK, Alejandra. “Silencios en movimiento”, Sur, nº 294, Buenos Aires, maio-jun. 1965, p. 103-6.
Cito o poema “Trabajo central”, in extenso: “El instante / en que la espada / de lo posible / súbitamente
/ se inyecta de sol, / gira, / a segar empieza / los limbos palpitantes. / Y más allá, / cuando como diluvio
/ de pétalos descienden / las tibias, las fuertes / y finas, / las iridiscentes palabras recogidas / con ambas
manos / antes de que se posen / sobre la realidad / Precisamente / libre de libertad, / lento vuelo / de
pájaros / visto en un espejo, / rumor aciago, / fruta absoluta, / un cadalso cubierto / de polen. / Que se
entienda / esta dicha terrible / que es cualquier barco / hacia todo naufragio”.
42
25
MURENA, Héctor A. Ensayos sobre subversión. Buenos Aires, Sur, 1962, p.12.
26
GIRONDO, Oliverio. Obra Completa. Ed. crítica Raul Antelo. Madrid, Paris… ALLCA XX, 1999, p.73 (Col.
Archivos, 38).
27
MUSCHIETTI, Delfina. “Ni siquiera la llanura llana” in DABOVE, Juan Pablo e BRIZUELA, Natalia (ed.)
Y todo el resto es literatura. Ensayos sobre Osvaldo Lamborghini. Buenos Aires, Interzona, 2008, p. 107-
118. Muschietti sugere a linhagem Girondo (explicitamente citado várias vezes por Lamborghini,
embora a crítica inisista em não vê-lo) - Pizarnik (a dos textos inéditos, póstumos), à qual se
acrescentam Susana Thénon e dois poetas desaparecidos em 1976, Miguel Ángel Bustos e Roberto J.
Santoro.
28
GIRONDO, Oliverio. Membretes. Aforismos y otros textos Ed. Martín Greco. Buenos Aires, Losada,
2014, p. 156.
29
LAMBORGHINI, Osvaldo. Novelas y cuentos. Pref. César Aira. Barcelona, Ed. del Serbal, 1988, p. 37.
43
30
“El matrimonio entre la utopía y el poder”. Literal, nº 1, Buenos Aires, nov. 1973, p. 41.
31
LAMBORGHINI, Osvaldo. Novelas y cuentos, op.cit., p 41. Em 1925, evidentemente após a leitura de
La gloria de don Ramiro (1908), romance que pastichava a vida espanhola do século de Ouro, Girondo
anota em um caderno, durante uma viagem de Lisboa a Buenos Aires: “Larreta: ¡Qué anacronismo
sobre patas! ¡Y al mismo tiempo que falta de amor al anacronismo! Unica posibilidad irónica de
cometer una reconstitución histórica”. GIRONDO, Oliverio. Membretes, op.cit., p. 151.
32
COZARINSKY, Edgardo. Blues. Buenos Aires, Adriana Hidalgo, 1010, p. 35.
33
PRECIADO, Beatriz. Terror anal y manifiestos recientes. Buenos Aires, La isla de la luna, 2013, p. 40.
44
Si en ese centro está la justicia (por social que sea) ¿cómo encontrarla en el pasado sin
evocar el paraíso, que sólo es tal al precio de estar perdido? 34
Son pensables textos en los que el desperdicio se agiganta, en los que emerge como lo
único constitutivo; textos hechos meramente de restos, que no solo niegan todas las
posturas críticas sino todo metalenguaje, aplastando cualquier discurso crítico en tanto
dependiente y dominante de “otra” escritura, en tanto justificado por la existencia de
“otro” texto pero justificándolo a su vez; textos-restos, cuya única posibilidad de hablar
de ellos y del goce que producen sea, después de arduo trabajo, la de Pierre Menard, no
novelista, no autor sino lector de El Quijote35.
34
“El matrimonio entre la utopía y el poder”, op.cit., p. 41
35
“El resto del texto”. Literal, nº 1, op.cit, p. 51.
45
ALEMANA (moderna)
CON FILOSOFO
CATALÁN
(postmoderno)
com-pensados o el Uno
para el Otro
(...)
BENJAMIN
A SUELDO DE UNA
FILOSOFIA DE
ADORNO38
A última frase, novamente, pode ser entendida como referência à dupla teórica
de Frankfurt ou, em compensação, interpretar-se como “o caçula pago por uma
filosofia de puro enfeite”. Constantemente, como muito antes, no ABC da guerra de
Brecht, língua e tesoura produzem a colagem como um diagnóstico certeiro da
normalização neoliberal em curso na Espanha dos anos 80.
36
GIRONDO, Oliverio. Membretes, op.cit., p.88
37
“Dios nos envía la vigilia y la razón mientras que el sueño en cambio (pero ahora, ya no me acuerdo),
el sueño. Hoy no: no hoy. Esclavizado a este evento/total. El juicio oral/cagar/en la boca, cagado en la
boca, el juicio: – Oral. Pero (¿pero?) el gran escritor es, dicho en lengua vulgar, una pasión del Otro.
Quien define un género (masculino/femenino) promulga desde su mayúscula la Ley, pero también la
minúscula y el, el a del goce b, que funda la posibilidad de que otro, cualquiera, hable/le. Quien erige el
Género, y en él se erige, promulga la sexuación, convierte en un incluso, incluso, a los meros devaneos
eróticos del ser (individual: indiviso, para su desdicha): al se hace la pista – el escritor grande –, y gracias
a él, le, hasta el gruñido de Josefina se vuelve canto – él promueve la Fábula, y entonces, también los
animales hablan: así como el Artista del Hambre y el del Trapecio, sin olvidar a Sancho Panza y a la
Pantera: sin olvidar a Martín Fierro, epónimo (por sinonimia) del anonimato”. LAMBORGHINI, Osvaldo.
“Sebregondi se excede”. Novelas y cuentos. Barcelona, Ediciones del Serbal, 1988, p. 93.
38
El sexo que habla. Osvaldo Lamborghini. Barcelona, MACBA, 2015, p. 82.
46
39
Alan Pauls, dentre eles, proclama que “Lamborghini el Maldito ya es un Maldito Mito. Una vida
errática y una muerte triste y lejana habían logrado hacer de él un misterio, eso, exactamente eso que
un albacea fiel y un puñado de detractores 'resuelven' tiroteándose con sus versiones contradictorias:
los 'modales aristocráticos' y la 'severa cortesía' (Aira), la 'mala fe' (Masotta) y el 'cinismo' (García). Y
merecer la contradicción de los otros – merecerla post mortem – es la manera más clásica de ser un
mito. ¿A quién creerle? ¿A Aira, que ve en Lamborghini a un caballero gentil, un fundador, un artista de
la perfección? ¿A García, que lo describe como un manipulador, un pequeñoburgués asustado, una
víctima mimética de El Antiedipo? Lamborghini está muerto, muerto y editado acá, en la Argentina,
donde todavía florecen muchas de las voces socio-psicóticas que aúllan en sus textos. ¿No es una
buena razón para pasar del creer al leer? Yo, por mi parte, confieso que ambas versiones oficiales me
inspiran lecturas levemente desviadas: la de Aira, que hace hincapié en la obra de Lamborghini, la leo
en realidad como una variante peculiar del autorretrato (el autorretrato de Aira); la de García, que hace
hincapié en su 'vida' –o su 'novela familiar'–, como una lectura particularmente perspicaz del
dispositivo retórico de su 'obra' (la obra de Lamborghini). Yo vi personalmente a Lamborghini una vez,
una mañana, en una pequeña librería de la avenida Santa Fe, y lo que más recuerdo de ese encuentro
es su mano blanda y húmeda. Es lo único que quedó de este lado de lo que Lamborghini era, es y acaso
siga siendo: una literatura”. PAULS, Alan. “Maldito mito”. Radar libros, Página 12, Buenos Aires, 4 maio
2003.
40
Osvaldo Lamborghini evoca Enoch Soames em “Neibis (maneiras de fumar no salão literário”
(LAMBORGHINI, Osvaldo. Novelas y cuentos, op.cit., p.115-124) e César Aira analisa o relato de
Beerbohm em seu ensaio Las tres fechas (Rosario, Beatriz Viterbo, 2011).
47
41
“En este sentido, hay que irse a los proyectos concretos, a las estrategias particulares, a las maneras
de interpretar y leer las tensiones, sabiendo de antemano que, al contrario de lo que decía Hal Foster,
lo real no retorna al arte, sino que, en numerosas ocasiones, la realidad sobrepasa cierta intención del
arte por abordarla. Y, sobre todo, que en ese mismo rebasamiento y mediante ese mismo exceso,
formado entre lo que parece claro y lo que resulta incomprensible, entre lo se ofrece al diagnóstico y
lo que se resiste a él, es refundada la propia sustancia crítica de aquellas prácticas que operan desde
el antagonismo, son reificadas –en el sentido marxista del término– las capacidades de los artistas
para imaginar nuevas formas de confrontación, otras condiciones materiales para que, por fin, pueda
expresarse la naturaleza rebelde y compleja del mundo”. ROMA, Valentín. “Return”.
42
“En su texto ya clásico, The Picasso Papers, Rosalind E. Krauss certifica esta intención de hondura
semiótica, esa metafísica de la forma compartida con algunos miembros de October, la cual, vista en
perspectiva, puede parecer fatigosa y un tanto prosaica, aunque también nos ofrece alguna otra
tuerca a la que dar la vuelta. Baste, como ejemplo de esta cuestión, el siguiente fragmento: “La
circulación del signo es, sin embargo, una regla de la relatividad y Picasso, aquí como en otras obras,
se atiene a esta regla. El segundo fragmento de periódico, colocado sobre los hombros del violín,
despliega sus propias muescas y curvas para contener las clavijas y el rollo dibujado, convirtiéndose así
en su «fondo». En esta posición, las líneas impresas del periódico adquieren ahora el aspecto de
salpicaduras de grafito: la taquigrafía visual del pintor para el marco atmosférico. Así un nuevo lugar
convoca a un signo diferente; es la manifestación de la luz, o de la atmósfera.
Pero la magia del collage entero, sin duda el brillo de su juego, es que los dos significados opuestos —
la luz por una parte y la opacidad por la otra— se generan a partir del trocito de papel «idéntico», la
«misma» forma física. A semejanza de la sustancia fonética de Saussure, se ve que este soporte adopta
un significado sólo en el interior de las oposiciones que se enfrentan unas a otras: la p implosiva
de up [arriba] contra la p explosiva de put [poner]. La hoja de Picasso, cortada en dos, es pues un
paradigma, una pareja binaria unida en la oposición; cada parte adquiere un significado en tanto no es
la otra. Aquí figura y fondo se convierten en esta especie de contrarios, vinculados y redoblados por
opaco y transparente o sólido y luminoso, de modo que así como, hablando literalmente, un fragmento
es el revés del material en el cual fue cortado el otro, la circulación del signo produce esta misma
48
isso mesmo, inclina-se por uma posição que exacerbe as dicotomias para atingir a
verdade “após a conclusão”:
Falta, aún, esa “poética” donde el impulso destructivo sea encauzado y donde la
plasticidad devenga una tesitura ética. Y nadie mejor, aquí, que Georges Didi-Huberman,
quien con su texto “Le bref été de la dépense. Carl Eisntein, George Bataille et
l’économie-Picasso” afronta, a partir de la lectura exhaustiva del número
de Documents dedicado a Picasso en 1930, una pregunta acaso fundamental: ¿Bajo qué
claves puede leerse la obra del pintor malagueño y, por extensión, la “brecha”
vanguardista, como una forma de realismo extremo o, por el contrario, como cierta
modalidad de materialismo mágico?
Desde la pluma ciertamente viperina de Ángel González hasta esa manera algo ingrávida
de inclinarse hacia una ontología del mirar característica de Didi-Huberman, pasando por
las alfabetizaciones de Krauss, aquello que parecen explorar estos autores no es el
cubismo ni los relatos críticos de la estética, sino el momento en el cual las prácticas
artísticas desistieron de su capacidad turbadora, es decir, cuándo la “épica” vanguardista
abdicó a favor de la “trivialidad” por venir.
Roma nos propõe, portanto, uma versão “históricamente más fiel”, ao ver, em Picasso, um
“artista proteico y verdaderamente ecuménico”, tal como Lamborghini:
Esto supondría atender a una extensión litúrgica y económica del fenómeno, a rastrearlo
dentro de una tradición y en un número de operaciones artísticas que a menudo sólo
buscan en la galaxia duchampiana su fácil antepasado. El alcance de dicha
reinterpretación atendería, desde Picasso –no como una posibilidad meramente
aleatoria, sino por la precisión de su ascendencia genealógica–, qué intercambios se
producen entre las cosas, pero especialmente cuáles son aquellos ordenamientos
distintos que suponen las operaciones artísticas picassianas, qué consecuencias tienen
éstas en el materialismo de la obra de arte43.
Daí que Roma retire um artista como Lamborghini de seu contexto natural, original, isto é, de
seu centro, e nos revele suas preferências excêntricas, as colagens dadá, os quadros do Bosch, as
condición, pero en sentido semiológico, en el nivel del signo: delante, sólido, figura; detrás,
transparente, marco”. ROMA, Valentín. “González, Krauss, Didi-Huberman: Picasso”. Suplemento
Cultura/s, La Vanguardia, Barcelona, 25 jul. 2012.
43
Idem, ibidem.
49
fotografias clínicas de Bataille para a revista Documents, os retratos de Oskar Kokoshka ou George
Grosz, ou seja, a tradição selvagem e lúgubre, ácrata e taciturna da história da arte 44.
O contemporâneo pré-figurado na pioneira recepção latino-americana de Benjamin, nas
elaborações de Guerrero, Murena ou Lamborghini, nos demostra que tanto nos deparamos com uma
leitura pós-hegeliana e anti-heideggeriana (Murena), quanto com uma outra (Lamborghini) que é anti-
hegeliana e pós-heideggeriana45. De qualquer forma, em ambas, o presente está marcado, desde a
origem, pelo passado e pelo futuro. Há sempre uma lacuna, um hiato, uma ausência, no interior de
cada presente. E a história, mesmo a história da arte (principalmente ela), não pode ser lida como uma
harmoniosa sucessão de presenças, revezando-se e alternando-se entre si. Na arte, todo signo é
presença diferida.
La différance, c'est ce qui fait que le mouvement de la signification n'est possible que si
chaque élément dit « présent », apparaissant sur la scène de la présence, se rapporte à
autre chose que lui-même, gardant en lui la marque de l'élément passé et se laissant déjà
creuser par la marque de son rapport à l'élément futur, la trace ne se rapportant pas
moins à ce qu'on appelle le futur qu'à ce qu'on appelle le passé, et constituant ce qu'on
appelle le présent par ce rapport même à ce qui n'est pas lui : absolument pas lui, c'est-
à-dire pas même un passé ou un futur comme présents modifiés46.
44
Idem. “Siete imágenes para un collage de Lamborghini” in El sexo que habla. Osvaldo Lamborghini.
Barcelona, MACBA, 2015, p.200.
45
OSBORNE, Peter & ALLIEZ, Éric. “Introduction” in Idem. Spheres of Action: Art and Politics. Londres,
Tate Publishing, 2013, p. 7-17.
46
DERRIDA, Jacques. Marges de la philosophie. Paris, Minuit, 1972, p. 13.
50
Roberto Conduru
1
PORTO ALEGRE, Manuel de Araújo. “Résume de l'histoire de la littérature, de les sciences et des arts
au Brésil”. In Debret, Jean-Baptiste. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, v. 3, Paris, 1839, p. 84-
87 (Journal de l'Institut Historique, 1, 1835).
2
Idem. “Memória sobre a antiga escola fluminense de pintura”. In Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, 3, 1841, p. 547-557.
3
Idem, “Résume de l'histoire de la littérature, de les sciences et des arts au Brésil”. Op. cit.
51
4
RODRIGUES, Nina. O Animismo Fetichista dos Negros Baianos (1900). In MAGGIE, Yvonne; FRY, Peter
(orgs.). Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Biblioteca Nacional, 2006.
5
Idem. “As Bellas-Artes nos Colonos Pretos do Brazil – A esculptura”. Revista Kósmos. Rio de Janeiro,
ano I, n. 8, ago. 1904, p. 11-16. Republicado no centenário de morte de seu autor, em fac-símile, por
ARAÚJO, Emanoel (Org.). Para nunca esquecer: negras memórias / memórias de negros. Rio de Janeiro:
Museu Histórico Nacional, 2002, p. 158-163.
52
6
Idem, ibidem, p. 158-163.
7
MAGGIE, Yvonne; FRY, Peter. “Apresentação”. In RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista dos negros
baianos. Op. cit., p. 11.
53
Inclusão
Com efeito, essa vertente artística não tem sido caracterizada como aquela
produzida unicamente por afrodescendentes. O que pode ser demonstrado com a
8
NASCIMENTO, Elisa Larkin (org.). Abdias Nascimento 90 Anos – Memória Viva. Rio de Janeiro:
IPEAFRO, 2004.
9
NASCIMENTO, Abdias. The Orixás: Afro-Brazilian Paintings and Texts. Middleton: Malcom X House,
1969; NASCIMENTO, Abdias. “Afro-Brazilian art: a liberating spirit”, Black Art, no. 1, 1976, p. 54-62.
10
A esse respeito, ver CARDOSO, Rafael. The Problem of Race in Brazilian Painting, c. 1850-1920. In: Art
History, 2015 http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/1467-8365.12134/full; WILLIAMS, Daryle.
‘Peculiar circumstances of the land’: Artists and Models in Nineteenth-Century Brazilian Slave Society.
Art History, v. 35, no. 4, 2012, p. 702-727; CONDURU, Roberto. “Afromodernidade – representações de
afrodescendentes e modernização artística no Brasil”. In: CAVALCANTI, Ana; DAZZI, Camila; VALLE,
Arthur. (orgs.) Oitocentos: Arte Brasileira do Império à Primeira República. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ,
2008, p. 445-452.
54
menção de três casos especiais, mas não únicos: as trajetórias e obras de Pierre
Verger, de origem francesa e que adotou a cidadania brasileira, de Hector Julio Páride
Bernabó, argentino de nascença e depois naturalizado brasileiro, conhecido como
Carybé, e Karl Heinz Hansen, nascido na Alemanha, que se naturalizou brasileiro e
radicou-se na Bahia (como os outros dois), cujo nome adotou como seu. Com
personalidades artísticas distintas, Pierre Verger, Carybé e Hansen Bahia se
dedicaram temas afro no Brasil. Tendo-os, entre outros, como alguns de seus
precedentes, os diálogos mantidos com a problemática sociocultural afro-brasileira
por artistas afrodescendentes ou não, brasileiros e estrangeiros, são usualmente
incluídos no âmbito dessa vertente artística.
Talvez não haja, atualmente, algum estrangeiro radicado no Brasil, naturalizado
brasileiro, dedicado a fazer arte relacionada à problemática africana no Brasil, como
foram os casos de Pierre Verger, de Hansen Bahia e de Carybé. Obras esporádicas,
entretanto, continuam sendo produzidas. Do passado, de muito antes ou nem tanto,
há os precedentes isolados de artistas estrangeiros, como Modesto Brocos, com suas
telas Redenção de Cã e A Mandinga, e Maria Helena Vieira da Silva, com sua Cena de la
macumba. De agora, podem ser destacadas algumas realizações. Há mais de vinte
anos, o fotógrafo norte-americano Gerald Cyrus pesquisa a cultura afro-brasileira.11
De 2000, há a série Capoeira, elaborada pela fotógrafa espanhola Isabel Muñoz. 12 De
lama lâmina foi a intervenção no carnaval de Salvador de 2004 produzida pelos
artistas multimídia norte-americanos Mattew Barney e Arto Lindsay. A portuguesa
Cristina Lamas expôs obras com imagens fotográficas de ex-votos e lojas de ervas no
Brasil, na galeria Lisboa 20, em 2008. No mesmo ano, o norte-americano Kehinde
Wiley retratou pictoricamente jovens rapazes negros brasileiros em seu projeto The
World Stage.13 Outra recente conexão estrangeira ao mundo afro-brasileiro é a série
Debret, com esculturas elaboradas pelo artista português Vasco Araújo em 2009.14
11
FONSECA, Pedro Leal. “Casa dos artistas”. Folha de S. Paulo, São Paulo, 17 julho 2011, caderno
Ilustrada E5.
12
www.isabelmunoz.es Acesso em 22 de janeiro de 2015.
13
PIRES, Francisco Quinteiro. “Jovens negros inspiram pintor americano”. Folha de S. Paulo, São Paulo,
27 janeiro 2013, caderno Ilustrada E5. www.kehindewiley.com/brazil Acesso em 28 de maio de 2015.
14
ARAÚJO, Vasco. Debret. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.
55
15
NASCIMENTO, Abdias. Apud SIQUEIRA, José Jorge. Entre Orfeu e Xangô. A emergência de uma nova
consciência sobre a questão do negro no Brasil, 1944/1968. Rio de Janeiro: Pallas, 2006, p. 224.
56
16
VALENTIM, Rubem. “Manifesto ainda que tardio”. In: FONTELES, Bené, BARJA, Wagner (orgs.).
Rubem Valentim: artista da luz. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2001, p. 28.
57
17
VALENTIM, Rubem. “Manifesto ainda que tardio” (1976). In: FONTELES, Bené; BARJA, Wagner
(orgs.). Rubem Valentim: Artista da Luz. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2001, p. 29.
18
DOS ANJOS, Jorge. apud SAMPAIO, Márcio. “Risco, recorte, percurso”. In: DOS ANJOS, Jorge. Jorge
dos Anjos. Belo Horizonte: C/Arte, 2009, p. 45.
19
SAIA, Luiz. Escultura Popular Brasileira. São Paulo: Edições Gaveta, 1944.
20
BARATA, Mário Barata. “A escultura de origem negra no Brasil”. Rio de Janeiro, Arquitetura
Contemporânea, n. 9, 1957.
21
VALLADARES, Clarival do Prado. “O negro brasileiro nas artes plásticas”. In: AGUILAR, Nelson
(organizador). Mostra do redescobrimento: arte afro-brasileira. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos
Artes Visuais, 2000, p. 426-429; VALLADARES, Clarival do Prado. “O negro como modelo na pintura
brasileira”. In: -- (org.). The Impact of African Culture in Brazil. [s.l.]: Ministério das Relações Exteriores;
Ministério da Educação e Cultura, 1977; VALLADARES, Clarival do Prado. “O impacto da cultura africana
no Brasil”. Idem, ibidem.
58
Crítica
Essa visão inclusiva, que vinha sendo elaborada artisticamente há algum tempo,
ao menos desde o modernismo no final do século XIX, e foi explicitada em forma de
manifesto por Rubem Valentim, em 1976, logo foi sistematizada criticamente por
Marianno Carneiro da Cunha. No texto Arte Afro-brasileira, inserido na História Geral
da Arte no Brasil, organizada por Walter Zanini e publicada em 1983, ele deixa claro
seu ponto de vista: “a qualificação afro-brasileira permanece ambígua e provisória.
Trata-se de um termo que, na realidade, já nasceu envelhecido pela própria dinâmica
a que se têm submetido os elementos culturais africanos no Brasil”. 22 Para Cunha,
“Arte afro-brasileira é uma expressão convencionada artística que, ou desempenha
função no culto dos orixás, ou trata de tema ligado ao culto”.23 Definição que parece
restrita, mas logo se abre “à apropriação de símbolos novos por essas religiões”.
Também sua análise amplia seu foco para além do âmbito religioso ao se
complementar com dois tópicos, além de breves abordagens das “artes corporais e
decorativas”, como identifica adereços pessoais e vestimentas: “joias”, “joias
crioulas”, “alfaias”, “cestaria, cerâmica e marroquinaria”. O primeiro tópico é
“Continuidade provável de convenções formais africanas ligadas à representação
naturalista na arte brasileira”, no qual são aplicados princípios, convenções e formas
da arte África e da “arte popular” no Brasil para pensar a particularidade afro da obra
de Aleijadinho. O segundo tópico é “A emergência de artistas e temas negros a partir
das décadas de 1930 e 40”, no qual o autor propõe outro campo de abrangência para
o termo afro-brasileiro, que é independente da afro-descendência:
Dos artistas cobertos em geral por essa definição muitos são brancos, outros mestiços e
relativamente poucos são negros. Poderíamos subdividi-los portanto em quatro grupos,
ou seja: aqueles que só utilizam temas negros incidentalmente; os que o fazem de modo
sistemático e consciente; os artistas que se servem não apenas de temas como também
de soluções plásticas negras espontâneas, e, não raro, inconscientemente; finalmente
22
CUNHA, Mariano Carneiro da. “Arte afro-brasileira”. In: ZANINI, Walter (organizador). História geral
da arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walter Moreira Salles, 1983, p. 1026.
23
Idem, ibidem, p. 994.
59
Salvo engano, é com essa subdivisão proposta por Mariano Carneiro da Cunha
que se explicita e cristaliza historiograficamente a concepção inclusiva da arte afro-
brasileira, que já era praticada anteriormente, ultrapassando a idéia de raça como
elemento determinante dessa vertente artística.
Instituições
Como visto, essa visão inclusiva foi anunciada antes no campo museológico
com Museu de Arte Negra de Abdias do Nascimento. Mas é preciso dizer que esse
museu ainda não tem uma existência pública efetiva e continuada – em verdade, está
disponível como arquivo. Assim, apenas recentemente foi estabelecido de modo
mais permanente um enquadramento institucional dessa visão ampliada das relações
entre África e Brasil na arte. Para tanto é preciso mencionar a existência, desde 1982,
do Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia, em Salvador, que é um
museu focado na cultura em seu sentido amplo, mas no qual a arte não está ausente,
seja como parte do acervo, seja como questão inerente a objetos e práticas não
usualmente inseridos no campo artístico.25 Também museus de cultura, mas nos
quais a arte tem uma presença mais extensa e intensa, são o Museu Nacional da
Cultura Afro-Brasileira (Muncab), criado em Salvador em 2002, e o Museu AfroBrasil,
em São Paulo em 2004.
O Museu AfroBrasil, criado e gerido por Emanoel Araújo, tem dado a ver, pública
e sistematicamente em termos museais, a visão inclusiva que estava difundida na
prática artística, foi anunciada museologicamente por Abdias do Nascimento,
explicitada no manifesto de Rubem Valentim e sistematizada criticamente por
Marianno Carneiro da Cunha. Entendimento dessa vertente artística como campo
24
Idem, ibidem, p. 1023.
25
www.mafro.ceao.ufba.br. Acesso em 22 de março de 2015.
60
26
AGUILAR, Nelson. “Arte afro-brasileira. Mostra do redescobrimento”. In: AGUILAR, Nelson (org.).
Op. cit., p. 30-31; MUNANGA, Kabengele. “Arte afro-brasileira: o que é, afinal?”. In: AGUILAR, Nelson
(org.), op. cit., p. 108; SALUM, Marta Heloísa Leuba. “Cem anos de arte afro-brasileira”. In: AGUILAR,
Nelson (org.), op. cit., p. 112-121; SILVA, Dilma de Melo; CALAÇA, Maria Cecília Felix. Arte Africana & Afro-
Brasileira. São Paulo: Terceira Margem, 2006; CONDURU, Roberto. Arte Afro-Brasileira. Belo Horizonte:
C/Arte, 2007; BUZZO, Bruna. “A arte afro das raízes do Brasil”. In: SOUZA, Hamilton Octavio de (editor).
Os Negros. História do Negro no Brasil. Fascículo 13 – Arte afro-brasileira. São Paulo: Caros Amigos
Editora, 2009, p. 387-389.
61
como museu que, “em 1940, passou a fazer parte de um Museu de Criminologia, um
Museu Científico e um Museu de Arte Popular”. 27 Coleção que havia sido em parte
tombada pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e inscrita como o
bem número um no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, em
1938.28 A segunda é o Museu do Negro criado em 1969 junto Igreja de Nossa Senhora
do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, no Rio de Janeiro.
No campo especificamente artístico, o precedente é a proposta do Museu do
Negro, que Mário Pedrosa idealizou como um dos cinco museus que constituiriam o
Museu das Origens, que substituiria e ampliaria o Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro após o incêndio que esta instituição sofreu em 1978. 29 Proposta que não
chegou a ser efetivada por seu autor, mas persistiu como referência no campo
artístico e museológico por meio da ação de outros agentes em outras instituições. 30
Na Galeria Permanente Mário Pedrosa, que existiu no Museu Nacional de Belas Artes
entre 1994 e 2003, com curadoria de Dinah Guimaraens, o Museu do Negro foi revisto
no módulo “Origens Africanas”. 31 Na Mostra do Redescobrimento, realizada em São
Paulo em 2000, o Museu do Negro foi desdobrado em dois módulos: Arte Afro-
Brasileira, com curadoria de François Neyt, Catherine Vanderhaeghe, Kabengele
Munanga e Marta Heloísa Leuba Salum, apresentou as artes das cortes da África
negra do Brasil e a arte afro-brasileira desde a modernidade, 32 enquanto Negro de
Corpo e Alma propôs, nas palavras de seu curador, Emanoel Araújo, “uma grande
discussão sobre as relações raciais em nosso país, no sentido de detectar os padrões
27
MAGGIE, Yvonne. Medo do Feitiço: relações entre poder e magia no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1992, p. 261.
28
www.iphan.gov.br/ans/inicial.htm consulta em 12 de maio de 2015.
29
PEDROSA, Mário. “O novo MAM terá cinco museus. É a proposta de Mário Pedrosa”. In: PEDROSA,
Mário. Política das artes. São Paulo: Edusp, 1995, p. 309-312.
30
O projeto teve dois desdobramentos recentes, em formato de exposição: uma bem sintética, no
Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), no Rio de Janeiro, que perdurou entre 1994 e 2003, e a outra
com extensão bem maior, mas com temporalidade muito mais curta, uma vez que durou apenas o
período. A respeito dessas exposições, ver:; AGUILAR, Nelson (org.). Mostra do Redescobrimento: Arte
Afro-Brasileira. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais, 2000; AGUILAR, Nelson (org.).
Mostra do Redescobrimento: Negro de Corpo e Alma. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos Artes
Visuais, 2000.
31
GUIMARAENS, Dinah. “De Mário de Andrade a Mário Pedrosa: Tradição X Modernidade no Museu
Nacional de Belas Artes”. In: Piracema, Rio de Janeiro, FUNARTE, ano 2, n. 3, 1994, p. 98-109
32
AGUILAR, Nelson (org.). Mostra do Redescobrimento: Arte Afro-Brasileira. São Paulo: Associação
Brasil 500 Anos Artes Visuais, 2000.
62
“Back to Black”?
33
ARAÚJO, Emanoel. “Negro de corpo e alma”. In AGUILAR, Nelson (org.). Mostra do
Redescobrimento: Negro de Corpo e Alma. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais, 2000, p.
44.
34
ARAÚJO, Emanoel. A Mão Afro-Brasileira. Significado da Contribuição Artística e Histórica. São Paulo:
Tenenge, 1988.
35
CLEVELAND, Kimberly L. Black Art in Brazil. Gainsville: University Press of Florida, 2013, p. 17.
63
1
Esse trabalho se insere no âmbito do projeto de pesquisa, “Fotografia Pública, usos e funções nos
séculos XIX e XX”, bolsa de produtividade CNPq, 2015-2019 e Cientista do Nosso Estado FAPERJ, 2013-
2016. Conta com a participação dos pesquisadores de Iniciação Científica Marcus Oliveira, Perona
Lannes e Marina Marins do curso de História da UFF.
2
A gravação das mesas-redondas integra a base de dados do LABHOI-UFF, em fase de processamento
com disponibilização ao público prevista para o ano de 2016.
65
ver além do que de fato olhava, o que me motivou a buscar aquilo que só eu via. A
experiência estética mobilizou meus interesses de historiadora da imagem e me
levou a perseguir o trabalho da artista, primeiro como público fiel e, mais
recentemente, como tema de estudo.
A distância entre a obra e a artista foi superada em setembro de 2012, quando
convidada para mediar a mesa “Ficção, imagem e história”, no âmbito do 21 o
Encontro Nacional da ANPAP, tive o primeiro encontro, digamos de 3 o grau, com a
artista. Nessa ocasião, a performance de Rosângela Rennó envolveu a plateia com o
relato de seu processo criativo. O seu relato foi pontuado pela visualização de alguns
de seus trabalhos, cada qual associado a uma história, que remontava a uma
experiência que havia mobilizado o processo de criação. Histórias dentro de histórias,
reveladas por sua obra, que me ofereceu uma oportunidade excepcional para me
aproximar de sua produção artística da maneira mais interessante possível, ou seja,
por meio da sua própria rememoração.
O relato da artista me suscitou uma questão, levantada no momento do debate,
que acabou por definir o ponto de partida para a reflexão que desenvolvo neste
texto: “Por que o passado faz diferença? Toda a sua obra está perpassada por uma
arqueologia que se apropria dos vestígios do passado de uma maneira especial. Por
que o passado faz diferença para a sua prática artística?” E a resposta foi a seguinte:
“é matéria de imaginação”.
Como matéria de imaginação, o que passou como experiência emanada de
vestígios dela mesma, deixa de ser o passado para se tornar um passado possível.
Dentre tantos caminhos que poderia ter tomado aquela vivência impregnada nos
seus vestígios, tornou-se, um deles, ser matéria de arte. Por outro lado, o uso
reiterado de fotografias como suporte ou mesmo resto dessa experiência, qualifica
o interesse da artista em entender o que está em jogo ao se impregnar a imagem de
humanidade e os destinos que essa prática implica para a própria imagem: o álbum
de família, o arquivo policial, o lixo do descarte. Que sociedade é essa que se deixa
fotografar e guarda as suas fotografias, em álbuns e arquivos, mas que ao mesmo
tempo, descarta, desqualifica e desapropria a imagem de sua humanidade ao
66
3
AGAMBEN, G. Profanações, São Paulo: Boitempo, 2007, p. 29
4
MAUAD, Ana Maria. “Uma história visual e os passados possíveis. A propósito da prática artística de
Rosângela Rennó”. IN: Fronteiras: arte, imagem e história, Sheila Cabo Geraldo (org.). Rio de Janeiro:
Beco do Azougue, 2014, p. 133-156.
67
história roubada. Sabe-se que as narrativas guardam uma relação estreita com a
experiência histórica sem, no entanto, se confundir com ela5 e que o acesso às
sociedades passadas se processa através dos documentos que essas mesmas
sociedades produziram como testemunhos diretos ou indiretos da sua existência.
Entretanto, a observação histórica, sua coleta de testemunhos, análise e
interpretação requer que as lacunas de registros sejam preenchidas por processos
dedutivos que contam, com uma boa dose de imaginação, para produzir a explicação
histórica e, assim, o passado se apresentar como uma narrativa coerente.6
O evento que envolveu o roubo das fotografias e outros objetos nos
incomodam pois, ao contrário da situação em que documentos, por vicissitudes
aleatórias foram subtraídos, ou simplesmente, sequer existiram como peças de um
arquivo, esses, que foram roubados, estavam à espera de serem escavados e
iluminarem mais uma fração da totalidade inalcançável do passado. Com os furtos, o
corpo lacunar da história fica em evidência e o vazio se instaura como ausência.
Para lidar com essa problemática, pelo viés da prática artística de Rosângela
Rennó, proponho dois momentos: o primeiro, em que avalio o papel do arquivo na
produção visual da artista, associadas às as experiências da ‘morte da fotografia’ e
do ‘fim da história’ como um fenômeno de geração e o segundo, em que analiso os
dois eventos de lançamento dos livros como performances de engajamento de
públicos à causa da história visual. Em conclusão, me debruço sobre as duas obras
lançadas em uma breve avaliação dos restos de história que jazem na proposta da
artista.
5
CARR, David. “Narrative and the Real World: Argument for Continuity”, History and Theory, vol. 25,
No. 2 (May, 1986), p. 117-131
6
BLOCH, Marc. Apologia da História, Rio de Janeiro: Zahar, 2001
68
7
29a Bienal de São Paulo, confira em www.rosangelarenno.com.br/obras/exibir/30/1, acesso 10/10/2015
8
RENNÓ, Rosângela. O arquivo universal e outros arquivos. São Paulo: Cosac Naif, 2003
9
LE GOFF, Jacques. “Documento/Monumento, IN: Memoria-História, Encilopedia Einaudi, Vol 1, Lisboa:
Casa da Moeda/Imp. Nacional, 1985.
69
incômodo, que se tornou tão ansioso com a memória). Rememorar, não esquecer é
apresentado como um dever pessoal dirigido a cada um de nós. Mas uma tal memória
não é transmissão, mas reconstrução: história”.10
Os discursos da morte da fotografia com o advento da tecnologia digital são
quase contemporâneos aos do fim da história e tiveram o mesmo destino: o de serem
um fenômeno de geração. Combalida pela crise das utopias, a geração que nos anos
1980 ingressa no espaço das sociabilidades públicas, por meio do acesso à
universidade, ao consumo cultural mundializado e à praça pública – dos movimentos
sociais (no Brasil, notadamente, é a geração que participa do movimento pela
redemocratização), vivencia a crise buscando alternativas criativas aos discursos
finalistas e fatalistas.
É dessa forma que estabeleço, ao menos para o Brasil, um paralelo entre a
prática fotográfica da qual o trabalho artístico de Rosangela Rennó é um dos
expoentes, e a prática historiadora, da qual boa parte da produção historiográfica,
que se consolida nos programas de pós-graduação, Brasil a fora, é tributária. Em
ambas as práticas, a artística e a historiadora, um passado imprevisível significa muito
mais, “novas questões a colocar ao passado e, se possível, novas respostas de sua
parte, considerando-o um campo de potencialidades, de que algumas começaram a
acontecer, foram interrompidas, ou evitadas, ou destruídas”. 11
O exercício de interpretação histórica que proponho para a prática artística de
Rennó vai tentar, primeiramente, caracterizar a fotografia como gesto para dar conta
de como o anonimato se torna subjetividade por meio seu trabalho; e, em seguida,
identificar o papel que o passado ocupa na sua poética visual como matéria de
imaginação12.
10
HARTOG, François. Regime de Historicidade [Time, History and the writing of History - KVHAA
Konferenser 37: 95-113 Stockholm 1996]. Disponível em:
www.fflch.usp.br/dh/heros/excerpta/hartog/hartog.html, p.16. versão em pdf acessível em:
https://pos.historia.ufg.br/up/113/o/Fran%C3%A7ois_Hartog_-_Regime_de_Historicidade_(1).pdf
11
HARTOG, idem, p. 17.
12
Para dar conta desse percurso final vou me apoiar em textos escritos sobre artista, disponíveis no
seu site, e em entrevistas dadas por ela e publicadas em livro.
70
13
Refiro-me ao projeto de pesquisa “O olhar engajado: prática fotográfica e os sentidos da História,
Brasil 1960-1990”, financiado pelo CNPq com bolsa de produtividade 2011-2014.
14
AGAMBEN, op.cit. p.58.
15
Idem, p.28.
71
fotografada fosse hoje completamente esquecida, mesmo que seu nome fosse
apagado para sempre da memória dos homens, mesmo assim, apesar disso - ou
melhor, precisamente por isso – aquela pessoa, aquele rosto exigem o seu nome,
exigem que não sejam esquecidos [...] as fotos são testemunhos de todos esses
nomes perdidos, semelhantes ao livro da vida que o novo anjo apocalíptico – o anjo
da fotografia – tem entre as mãos no final dos dias, ou seja, todos os dias”.16
Na linha de Agamben, o autor é aquele cujo gesto de jogar com e nos
dispositivos coloca em evidência a ausência de uma presença. Contraditoriamente,
o sujeito que se apresenta numa foto não está mais presente, foi jogado na foto e a
sua existência implica na sua própria desaparição. O autor da foto, o fotógrafo, opera
um dispositivo que captura uma presença que definirá no futuro uma dupla ausência
– do objeto fotografado e do próprio fotógrafo que não existe mais, a não ser no fora
de quadro, no fantasma de um alguém que some na espuma do tempo.
O gesto de jogar o sujeito na foto – de se jogar na imagem que expressa uma
dada condição histórica - coloca o sujeito-fotógrafo em relação aos dispositivos da
linguagem política. O jogo que se desenrola na arena política é apropriado pela
expressão fotográfica e o gesto do fotógrafo instaura uma presença ausente – os que
lá estavam não mais estarão, mas permanecerão com seus rostos, com a identidade
de sujeitos históricos, nas imagens que circularão e serão reproduzidas, apropriadas
e analisadas no vir a ser da história.
As reflexões de Agamben ecoam nos trabalhos de Rennó. O Arquivo Universal,
projeto iniciado nos anos 1990, abrange a prática historiadora da artista que tem
como objetivo inventariar textos e notícias que se rementem à fotografia e à imagem
fotográfica, farejando, como o ogro da lenda e à maneira de Bloch, 17 carne humana.
Nesse processo de busca, tal como Foucault, no texto assinalado por Agamben,
Rennó descobre a presença de sujeitos como indivíduos vivos por meio do
desvelamento dos processos objetivos de subjetivação, jogando com os dispositivos
e mecanismos de poder, para que fiquem evidentes a sua farsa.
16
Idem, p. 30
17
BLOCH, op. cit.
72
O ARQUIVO: Os arquivos mantêm uma existência discreta. Por mais que os invoquemos,
dia após dia, por mais que se publiquem livros e catálogos sobre eles, eles permanecem
silenciosos, quase ocultos nas suas moradas sombrias. Até que, de repente, algo
acontece. O que acontece é sempre uma catástrofe: natural - inundação, incêndio,
soterramento – ou provocada – vandalismo, descuido, roubo. Paradoxalmente o
acidente tira o arquivo de sua inércia. Se, quando íntegro, vivia uma vida precária, agora
que foi atingido, renasce cheio de honra, como um mutilado de guerra que não oculta
suas feridas nem disfarça suas cicatrizes. O arquivo vulnerado parece sempre estar mais
vivo que o arquivo intocado – este é um arquivo improvável onde os rastros da memória
perfilar-se-iam perfeitos e imóveis, cada qual no seu lugar, na calma vigilante dos
cemitérios. A preocupação de Rosângela com o arquivo vem de longe. Talvez, possamos
encontrar sua possível origem no Arquivo Universal, que Rennó seleciona e organiza
desde 1992, constituído por textos de revistas e jornais que, segundo ela fala, narram
histórias ordinárias sobre gente e fotografia. [...] Nos últimos anos, a artista envereda
por trabalhos silenciosos, nos quais os arquivos são salvos por um gesto alternativo de
reconhecimento ou de contra-memória, que propõe novas ordens de associação afetiva,
parcial e provisória. Neles os arquivos privados questionam os públicos, porque eles
podem ser vistos como ordens perversas que procuram disturbar a ordem simbólica. O
paradigma do artista como etnógrafo, que Hal Foster desenhara no final do século XX,
pode se opor agora do artista como arquivista, aquele que opta pela construção de
lugares de inscrição de memória. [...] Este artista, o artista arquivista, transformaria o
não lugar do arquivo no não lugar da utopia19
18
O arquivo vulnerado ou as ruínas da fotografia de Maria Angélica Melendi se encontra nesse site:
http://pt.scribd.com/doc/265538627/O-Arquivo-Vulnerado#scribd Acessado em 09 de agosto de 2015.
19
49 - 20-02-2010 – Mesa Redonda lançamento do livro – Rosângela Rennó, Paço Imperial, Rio de
Janeiro, LABHOI-UFF, 1:23’. Participantes: Rosangela Rennó, Joaquim Marçal, Maria Angélica Melendi
e Paulo Herkenhoff.
73
20
RENNÓ, Rosângela. Depoimento. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2003
74
As obras de Rosângela Rennó, nas quais a artista re-fotografa velhas fotos e velhos
negativos, podem ser consideradas ótimos exemplos de mise en abîme, tanto do ponto
de vista mecânico quanto conceitual. Nascem da repetição mecânica de um gesto (o de
tirar fotos) já executado: ao mesmo tempo, a imagem final remete conceitualmente ao
original do qual ela foi tirada, sobrepõe-se a esta e a completa, tornando-a finalmente
compreensível em todas as nuances. Como um conto fantástico de Borges, o espectador
é colocado diante de duas imagens, mas vê somente uma. De fato, nesta extraordinária
mise en abîme, a segunda imagem não é inferior a primeira nem em dimensões nem em
importância: ao contrário, é uma reprodução tão fiel, que se sobrepõe perfeitamente ao
original, eclipsando-o...21
A palavra em evidência
21
VISCONTI, Jacopo Crivelli. “Evidências ocultas” [Hidden Evidence]. In Shattered Dreams: Sonhos
despedaçados / Beatriz Milhazes Rosângela Rennó. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2003, p.
42.
22
Herkenhoff, Paulo. “Rennó ou a beleza e o dulçor”. In Rosângela Rennó. São Paulo: Edusp, 1996
23
Trata-se, portanto, de proceder a duplicação, elaboração da ficha sumário e transcrição das fitas com
a minutagem segundo critérios estabelecidos no LABHOI. “49 - 20-02-2010 – Mesa Redonda
lançamento do livro – Rosângela Rennó, Paço Imperial, 20/02/2010, Rio de Janeiro, LABHOI-UFF, 1:23’.
75
o debate público pode ser revisitado e os temas levantados servem para se identificar
os principais agentes, situações e questões que posicionam, atualmente, a fotografia
como patrimônio histórico.
Ambas mesas-redondas foram coordenadas pela própria artista, que como
mestre de cerimônias, transformou o lançamento em uma performance em que cada
interlocutor definiu um lugar institucional de enunciação. No lançamento de 2010, a
mesa composta, além da própria artista, por um representante da instituição
Biblioteca Nacional, Joaquim Marçal; Maria Angélica Melendi, professora e
pesquisadora em Artes Visuais da Universidade Federal de Minas Gerais e Paulo
Herkenhoff, curador de renome internacional e ex-diretor da Biblioteca Nacional. No
lançamento de 2013, a artista contou com a participação na mesa de Beatriz Kushnir,
diretora do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro e, mais uma vez, com a
presença de Joaquim Marçal.
O primeiro evento contou com a apresentação de textos mais formais lidos
pelos integrantes da mesa, inclusive a própria artista, à exceção de Herkenhoff, a
quem coube o papel de polemista. Já a segunda mesa, composta por relatos da
experiência de cada um com os furtos, ganhou um tom mais testemunhal, em alguns
momentos, quase um desabafo. Temas como segurança dos acervos, acesso ao
público e os usos diferenciados das imagens fotográficas, responsabilidade com a
formação do patrimônio e o papel do Estado, política de acervo, papel do mercado e
o colecionismo, etc. perpassaram ambas mesas com ênfases diferenciadas, mas que
permitiu estabelecer algumas questões centrais para se enfrentar, não somente, a
questão do patrimônio cultural e sua preservação, mas também do seu futuro. Para
análise desses dois documentos proponho uma estratégia em que me coloco como
interlocutora do debate.24
Participantes: Rosangela Rennó, Joaquim Marçal, Maria Angélica Melendi e Paulo Herkenhoff” e “00
- 30-04- 2013 – Lançamento do livro – Rosângela Rennó, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro,
30/04/2013, Rio de Janeiro, LABHOI-UFF, 01:16’. Participantes: Rosangela Rennó, Joaquim Marçal e
Beatriz Kushnir”
24
As citações das transcrições das mesas redondas buscam preservar o contexto mais amplo do
enunciado, incluindo toda a elaboração do argumento, o que justifica a sua extensão.
76
Durante mais de vinte anos, estive à frente de uma iniciativa que nunca foi minha, mas
sim nossa, ou seja, de um grupo de profissionais da Biblioteca Nacional, contando ainda
com a valiosa presença de colegas de outras instituições brasileiras e estrangeiras, com
destaque para a FUNARTE. Iniciativa esta que segue seu rumo ainda hoje e vem
buscando incessantemente, desde a década de 1980, há mais de vinte anos, portanto,
promover o resgate das fotografias integrantes da Coleção Dona Thereza Christina
Maria. Acervo doado pelo Imperador Dom Pedro II, em sua maior parte, à Biblioteca
Nacional, onde deu entrada no ano de 1891, quando seu edifício sede ficava ainda na rua
do Passeio. Passados os anos iniciais de prospecção da Coleção e de estudo sobre o
estado da arte, nos campos da identificação, catalogação, indexação, conservação
preventiva e restauro, reprodução, constituição de bases dados, obtivemos um
expressivo patrocínio da Instituição Banco do Brasil para dar início as atividades
propriamente ditas do projeto que ficou conhecido como PROFOTO. [...]
Muitos podem achar estranho que tanto tempo tenha se passado, mais de duas décadas,
e ainda hoje nem todas as dezenas de milhares de fotografias doadas pelo nosso último
monarca estejam integralmente tratadas, recuperadas e à disposição dos interessados.
É porque estamos inteiramente viciados em nossas instituições na política do
imediatismo. Cada gestão, e não é incomum que haja mais de uma gestão num período
governamental. A cada gestão, repito, surgem novas ideias, novas políticas e o que era
prioridade antes, deixa de ser agora. E neste passo, muita coisa boa fica pelo meio. Não
há projeto que resista assim, mas, no caso do PROFOTO, graças à união, à pertinência, à
paciência, as convicções de um grupo de funcionários da Biblioteca Nacional e das
instituições colaboradoras, o trabalho rendeu inúmeros frutos e ainda hoje serve de
exemplo para muitas instituições. [...]
25
LE GOFF. Op. cit.
79
Como falar de política cultural sem falar da presença do Estado nas atividades culturais
da nação brasileira? Sem a presença do Estado, bem sabemos, pouco, ou quase nada,
acontece. Aliás este é outro ponto nevrálgico da questão no caso específico da formação
e manutenção das nossas coleções. Embora nossa legislação patrimonial nos dê, em
teoria, instrumentos para enfrentar a iniciativa privada numa disputa que poderia e
deveria ocorrer, nos salões de leilões mundo a fora sempre que estivesse havendo um
documento de interesse para a memória do Estado, não é isto que temos visto na prática.
O Estado brasileiro tem sido omisso nessa questão e o que vemos hoje, então, é uma
voraz disputa de egos entre alguns super ricos de nosso país que se valem de seus
astutos avatares na tentativa declarada de construir patrimônio documentais e
iconográfico, onde a meta é invariavelmente construir brasilianas tão ricas quanto as da
Biblioteca Nacional, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. [...] (2010)
Existe uma outra questão sobre a qual a gente tem falado pouco, e eu acho que esse é
um fórum bacana para isso, que é a questão do mercado. Em geral, na imprensa e em
todos os lugares que a gente ouve falar sobre esses casos, a gente só fala nisso "Foi
furtado tanto"; "Existe uma quadrilha"; "Não há justiça no Brasil"; "A legislação é
absurda, o cara em pouco tempo tá na rua"; "Os arquivos e as bibliotecas não tem
segurança... segurança... controle"... Bom, por que que tudo isso? Temos que avançar.
Já que não avançamos e que a coisa está assim, por que que ela está assim? Porque existe
um mercado. E, ao meu ver, o nosso mercado está em parte, eu diria, deformado,
atrofiado ou mal estruturado. E eu acho que em parte é porque as instituições públicas
de memória estão fora desse mercado. Eu não proporia aos interessados, por exemplo,
que olhassem para o modelo Francês, que é um modelo que a gente costuma seguir. É
uma tradição que vem do XIX, o modelo Francês. No meu caso, eu sou da Biblioteca
Nacional. [...] Se a gente olhar para o mercado na França, a gente vai ver que a coisa é
bastante diferente. De saída, o Estado é comprador. O Estado, seja no âmbito da
municipalidade, do departamento ou do governo federal, o Estado é o grande
comprador. E, às vezes, ele é capaz de pedir ajuda do cidadão.
[...]Então eu acho assim, a gente tem que começar a discutir mais, se enfronhar mais,
incentivar a imprensa, investigar mais também as entranhas desse mercado. A gente tem
que ver como é que esse mercado funciona, porque que a coisa se deformou até tal
ponto... Não podemos ser ingênuos, é claro que se eles estão furtando é porque há gente
comprando, algumas dessas pessoas que estão comprando ficarão impunes para
sempre porque a gente sabe como as coisas são por aqui. Mas eu acho assim, que não
adianta só a gente ficar batendo nessa tecla, eu acho que a gente tem que lutar por
recursos orçamentários, simplificando a coisa que não é tão simples, para poder voltar a
80
comprar e entrar nesse mercado e, quem sabe, com o passar do tempo reestruturar isso
tudo.
Agora o problema é o seguinte, porque o colecionismo cresce e o mercado cresce, a
gente tinha que ter mais agilidade mais pressa em aparelhamento para justamente
coibir. Assim, essa ideia da visibilidade é incrível. [...] Quanto mais exposto, mais visível,
menos fetiche é. Menos interessante é para o cara, na caverninha dele. Então que seja
melhor, que tornem tudo mais acessível porque assim realmente você democratiza e tira
o aspecto do preciosismo que faz, alimenta os furtos, inclusive. Agora, o que precisa para
aparelhar eu não faço ideia de quanto dinheiro e quanto tempo isso seja necessário. Não,
a questão do tempo de envolvimento também, que você tem que ter uma equipe
preparada para isso (2013).
Eu não acredito que o roubo tenha acontecido naquele final de semana, eu acho que o
roubo já vinha acontecendo há bastante tempo e ele foi um pouco descoberto de uma
maneira muito sensacional e quase fantástica para dar conta do que tinha sido roubado
de mais forte. Uma das piores sensações do mundo era entrar num depósito que foi
furtado. Acho que quem já passou por essa experiência não se recupera. Você abrir as
caixas e ver o destroçado ou você entrar numa biblioteca e ver capas de revistas
xerocadas porque eles queriam aquelas capas então era para abrir e localizar as mesmas
capas, era uma coisa muito complicada. E eu tinha um ano de casa, eu estava dirigindo o
Arquivo Geral há um ano quando o furto aconteceu, então foi um grande teste de
resistência. [...]O furto, primeiro é que assim, aqui de dentro da instituição mapeia essa
instituição para o furtador. Isso é uma coisa dramática. Achar quem fez isso é duro
porque coisas que ele pegou aqui estavam tão escondidas, tão guardadas, ele teria que
ter sido levado a esse lugar. Depois, não é só isso, esse rapaz que furtou à qual minha
diretora de pesquisa me proíbe que eu fale o nome porque ela tem medo que eu seja
processada, então eu não vou falar o nome dele, ele já tinha sido julgado antes, na casa
dele já tinha achado coisas da Mário de Andrade numa primeira vez. [...]. Quando ele foi
julgado em São Paulo, ele teve um escritório de 14 advogados para defendê-lo e o doutor
Saraiva me prometeu que ia prender o sujeito. E ele prendeu e me chamou. Ele prendeu,
eu acho, às vezes, um pouco rápido. Ele ficou com medo que o rapaz fugisse e ele
prendeu o rapaz tentando furtar novamente a casa Rui. Era bom que a gente pudesse
ter pego algum objeto furtado para saber como era esse enlace, mas enfim, não foi
possível. E esse rapaz ficou preso por cinco anos em Bangu VIII, que já me explicaram
que pra ficar em Bangu VIII não é qualquer pessoas [...]O procurador dizia que ele não
podia subir para me ver, então era uma situação bastante delicada. E lá eu conheci as
outras pessoas que também foram furtadas. Um furto do Jardim Botânico que se fala
pouquíssimo e que foi um furto absurdo. O furto que teve na Biblioteca Nacional, na
Chácara do Céu, no Museu Histórico da Cidade. Dentro do acervo da Polícia Federal a
gente encontrou material do próprio Arquivo Nacional que também estava lá, enfim. Isso
mostra que as instituições como um todo são passíveis de que isso aconteça. O que nós
fizemos foi tentar colocar as famosas câmeras de vigilância, enfim, por todos os lugares,
que não resolvem, mas ajudam. Pelo menos quando ele nos visitou recentemente, o
81
furtador, ele se intimidou com o número de câmeras e acho que não voltará. Mas o que
importa não é ele. Ele é uma pessoa rapidamente substituível. O que importa são as
pessoas que continuam comprando dele. [...]
O que a gente está vendo com isso aqui é mais um vandalismo e mais uma negociação
de mercado do que necessariamente uma ausência da instituição de poder guardar a sua
documentação. [...] Eu só queria colocar o seguinte, assim, as instituições nos últimos
dez anos, talvez, só vivem de leis de incentivo. O portal do Malta que eu fiz aqui a gente
fez com a Lei do ISS quando deixavam a gente participar da Lei do ISS, então a gente
conseguiu digitalizar, recondicionar e fazer o portal e é uma coisa ótima porque, assim,
o colecionador não gosta das imagens que estão em público. A imagem que eu tenho
deles é que eles ficam numa caverna todos pelados fumando charutos e mostrando
"olha o que eu tenho, olha o que você não tem" como crianças pequenas porque você
não vai poder expor aquilo em lugar algum! Você não pode trazer a público, você não
pode emprestar para uma galeria. O que você vai fazer com aquilo? Você não pode lançar
um livro com aquilo, nada! Você só pode mostrar para o seu coleguinha o que você
conseguiu e o outro não conseguiu. [...]Eu fico muito chateada quando nos comparam
ao Instituto Moreira Salles porque eu queria muito viver daquele dinheiro público... Não,
não, não, mas assim, o dinheiro do Moreira Salles é um dinheiro público tanto igual ao
meu, ele é um dinheiro de uma renúncia fiscal de um banco só que quando interessa para
ele, ele é privado, quando interessa para ele, ele é público. É o melhor dos mundos, eu
adoraria viver nesse mundo. Mas não vivo (2013).
A cada dois anos os delegados mudam, é uma delegacia de Patrimônio Histórico, Meio
Ambiente e, agora, Grandes Eventos. Então, ao mesmo tempo, que eles têm que nos
atender, eles têm que atender o mico-leão-dourado, as sardinhas. Os agentes da polícia
federal perguntavam, "Mas esse Debret viveu quantos anos? Por que a senhora fala que
ele é de 1834, mas tinha uma coisa dele em 1964, quantos anos esse homem viveu?"
[Risos] Era uma coisa. E eles não tem necessariamente dominar essas questões. O acervo
que estava no acervo da Polícia Federal era enorme, não tinha carimbo de nenhuma
instituição. A Biblioteca Nacional e o Arquivo Nacional têm um trâmite mais burocrático
para se tornar fiel depositária e eu ia lá e dizia assim "Eu me torno fiel depositária, eu
assino, eu levo". E eu trouxe muita coisa, eu tratei, se a gente encontrava de novo as
instituições eu devolvia, senão foram ficando por aqui porque não se sabe de onde eram.
Isso tudo foi uma forma de cativar a Polícia Federal porque para eles eu era uma
instituição municipal que devia ir na Polícia Civil. E com uns dois meses antes do furto do
Arquivo, o Museu da Cidade tinha sido furtado e o Museu da Cidade estava vinculado a
nós e o furto deles foi tratado como um furto de celulares, eu sabia que não ia dar certo.
Então tentei explicar que nós éramos um Arquivo municipal de uma cidade que foi capital
da colônia, do Império e grande parte da República, então a nossa documentação
espelha isso. E depois de muita sedução com alguns delegados, enfim, outros mais,
84
outros menos, nós conseguimos um pouco que eles pudessem olhar para esses casos. É
uma questão difícil de lidar (2010).
26
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares, trad. Yara Aun Khoury, Projeto
História, São Paulo (10), dez, 1993. Acesso em
http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/12101/8763
85
teriam a ver com aquelas ideias.[...] eu concordo, que ao contrário do que essas
pessoas pensam, talvez para muitas das grandes questões desse mundo que a gente
está vivendo, inclusive questões éticas mesmo, talvez o artista esteja na posição mais
apropriada, digamos assim, para se manifestar.” (2013). Afirmação afiançada pela
artista presente, Rosângela Rennó: “eu me comprometo em colocar a minha
criatividade em benefício, a gente pensar em outras coisas juntas, fazer novas
parcerias e ver se a gente consegue alavancar outros projetos” (2013).
Rosângela Rennó nos relata, eu cito o texto do livro: “Não havia sinais de arrombamento.
Os autores do furto trabalharam com sutileza, escolhendo autores e temas, esvaziando
álbuns, substituindo fotografias, para que o crime só fosse descoberto algum tempo
depois. Depois de anos, foram recuperadas exatamente 101 fotografias mutiladas. Os
delinquentes tentaram apagar as marcas dos registros patrimoniais da Fundação, e para
isso descolaram as imagens de seus suportes, as rasgaram e recortaram suas [vozes?]”.
O LIVRO. O livro de artista 2005-510117385-5, cujo título é o número do inquérito criminal
– ainda não concluído – instaurado para investigar o furto, contém as reproduções dos
versos das 101 fotografias recuperadas, em tamanho real, ordenadas segundo a data de
sua reinserção no acervo da Divisão de Iconografia da Fundação Biblioteca Nacional. A
maior parte destas fotografias pertencia à Coleção D. Thereza Christina Maria, nomeada
biblioteca particular do Imperador D. Pedro II e por ele doada à Biblioteca Nacional após
a Proclamação da República, em 1889. Nas páginas do livro não encontramos quase
nenhum outro dado, apenas agrupações das imagens nos lotes em que foram
86
devolvidas; a ordem e os agentes das devoluções. Esse inventário não esclarece muita
coisa. [...]Rennó não está preocupada em propor soluções, ela apresenta os fatos de
modo objetivo. Das fotos recuperadas somente teremos o autor, o título, a data e a
imagem do verso da cópia. O avesso dessas fotografias não será mais a placa sensível, o
negativo – origem para sempre perdida -, mas a pálida superfície manchada do verso do
papel. O reverso da cópia que, destacada do seu álbum, da sua moldura, do seu passe-
partout, não deixa ver nada ou quase nada. Temos, então, que a partir dos escassos
dados que nos são oferecidos, imaginar o imaginável. As imagens colecionadas pelo
imperador, sobreviventes de um tempo remoto, arquivadas por muitos anos na
biblioteca republicana, recuperadas do furto, mutiladas, rasgadas, estão vedadas à nossa
visão. Delas só nos resta uma imagem da materialidade do papel sobre o qual foram
copiadas. O testemunho da existência dessas imagens reside neste suporte amarelado,
manchado, rasgado. Há anos atrás, foram depositadas sobre ele, por um sofisticado
procedimento químico, imagens de coisas que já não existem mais. Onde estão aqueles
navios – é muito curioso, aparecia um catálogo de navios: Andrada, Aquidabam, Audaz,
Cananea, Itaipu, Javary, Marajó, Meteoro, Orion, são bastantes mais – que lutaram na
Guerra do Paraguai ou na Revolta da Armada? E as vistas de Ouro Preto, Rio de Janeiro,
Petrópolis, São Paulo, Bahia, Pernambuco, Paraíba? Que resta das colheitas de café e dos
garimpos de diamantes, dos palácios, das fazendas, das bibliotecas, das pontes, das
ilhas? Ainda existe a Urucurana (Hieronymua alchornioides) de 150 pés de altura, cujos
frutos se usam como redes de pescar? Essas coisas – navios, paisagens, árvores,
camponeses, princesas e imperadores – foram outra vez eliminadas. Pois, se alguém
morre de novo quando a última pessoa se lembra dele, ele morre realmente quando
desfalece sua última imagem fotografada[...]. O livro – não vou ler o título – é também
um arquivo múltiplo, disseminado, conserva e propaga as devoluções do acervo furtado,
mas as nega a visibilidade ordinária. É um livro que um arquivo que se constitui como um
monumento perecível, mas não são todos os monumentos e os documentos perecíveis?
Um monumento que denuncia o atrabiliário do roubo e o irremediável da perda apenas
pelo seu avesso (201o).
Bom, primeiramente, o que me moveu foi o mau estado de conservação das imagens
devolvidas. E eu sou dos tempos analógicos, então eu gosto de papel fotográfico, eu
gosto de gelatina e prata no papel, eu gosto de película, então isso são materiais muito
87
caros, especiais. E fotografar o verso da fotografia era uma forma de direcionar o olhar
do telespectador para o corpo desse objeto, convidá-lo a ver primeiro o objeto para
depois imaginar aquela fotografia que não está mostrada ali, a fotografia que eu não
apresento. Às vezes, ela está sutilmente vista pela transparência do papel. Uma segunda
motivação foi o desejo de projetar uma espécie de cegueira mesmo sobre essas imagens,
para que elas repetissem ou reforçassem a ideia de apagamento, de amnésia histórica.
Bom, eu já venho fazendo isso de outras maneiras, não com o verso das fotos, mas fiz
outras opacações, outros apagamentos no meu trabalho. E quando eu falo de
apagamento e outro resultado de amnésia, eu estou me referindo tanto a perda da
memória histórica, obviamente relacionada à perda das imagens destinadas ao arquivo
e a pesquisa, quanto da impunidade do próprio crime contra o patrimônio. E, tantos anos
depois do furto parece que não uma forma de combater esse apagamento e, às vezes,
soa como se ele nunca tivesse existido que dizer, para mim, é uma espécie de
apagamento do apagamento. Então, esse é o exercício que eu tentei fazer e mostrar um
pouco dentro do livro.
Uma vez você [referindo-se a Paulo Herkenhoff] escreveu uma coisa sobre o meu
trabalho que em vários momentos eu uso uma espécie de estratégia de revelar, de
mostrar com pudor. Eu sempre guardei isso, porque é uma forma de mostrar, quer dizer,
as fotos... Eu pensei muito nisso: como mostrar isso sem... mostrar a violência, mas de
uma forma quase que com recato que resguardo o próprio autor das imagens. Não
mostrar a imagem...Porque a imagem que o autor fez não é essa. Ela estava integra.
Então era uma forma de revelar com pudor. Então o verso funciona assim (2010).
A opção por organizar o livro em capítulos, que são compostos pelos lotes de
fotos devolvidas, e orientados pelo relatório composto pela seção de Iconografia da
BN, como registro das imagens devolvidas, justifica o título do livro como o número
do próprio inquérito policial – 2005-510117385-5 – e reforça a função de denúncia do
trabalho artístico. A produção do livro foi viabilizada pelo edital Arte e Patrimônio e
existe em duas versões, como explica Rennó na apresentação de 2010: “Eu brinco
que é uma versão de colecionador, que tem o formato caixa que segue mais ou
menos o rigor das caixas de álbum do século XIX; e uma versão Offset que tem um
outro formato, é bem diferente, mas que tem basicamente o mesmo conteúdo. O
texto explicativo é apenas um texto pequeno que é muito instrumental e eu não fiz
nenhum tipo de investigação criminal”. Na versão limitada, as pranchas estão soltas
acondicionadas em uma caixa, na versão Offset, se pode folhear o livro, cada versão
é uma experiência distinta, reunidas pelo estranhamento que a subtração da imagem
provoca, como se a publicação de um exame de corpo de delito retirasse o corpo do
exame. A experiência, em primeira mão de Melendi, merece destaque pelo relato
sensível na mesa de 2010:
88
Quer dizer, no caso do livro do Arquivo Geral, quando eu vim começar a pesquisar aqui
nas primeiras conversas com a Ruth, que é a responsável pela divisão de... como é que
chama?
27
Rosângela Rennó refere-se ao seu projeto artístico, de 2001, chamado de “Bibliotheca”, em que
álbuns são expostos em vitrines inacessíveis ao manuseio do público. Confira em
http://www.rosangelarenno.com.br/obras/view/13/1 acesso em 10 de outubro de 2013
90
Eu não posso deixar de trazer uma coisa que me é tão já querida que é essa ideia da
beleza do próprio invólucro, que é o que faz parte da época dos tempos analógicos. Hoje
ninguém faz álbum. Então eu tenho muito apreço pelos álbuns, pelas capas, por mais
simples que elas sejam, as capas são aquilo que você elege como o que você ampliou, o
que você guarda. A finalização mais que perfeita de um objeto que ficava inclusive em
cima das mesas, nas casas das famílias. Hoje em dia agora com os tempos digitais então
esse conceito já nem existe mais. Você tem pastas de computador, você não tem mais
álbuns. A ideia de álbum é muito mais fluida. Então eu acho que é isso, assim, o partido
tomado nesse caso aqui foi de explorar o que ficou dessa coleção. O livro é capitulado,
dividido em capítulos. Na verdade, os capítulos correspondem às caixas, cada caixa eu
considero como um capítulo. Então era uma caixa preta com a descrição de um conteúdo
de acordo com um relatório que o Arquivo Geral me passou com os dados que foram
complementados pelo que eu pude observar e o que eu pesquisei. E as imagens daquilo
que ficou. Quando era caixa vazia, é uma caixa vazia, quando tem uma capa, tem uma
capa, quando tem um conteúdo, tem conteúdo [..] Eu optei por imprimir em fac-símile,
quer dizer, o tamanho real, apenas 20% do conteúdo de cada álbum. Por isso que cada
álbum tem um número, os que ficaram nas caixas tem uma representação específica
dentro do livro. Mas isso tudo está explicado dentro do próprio texto de introdução do
projeto. E como eu pretendia que isso fosse visto como uma espécie de sequência –
espero fazer um terceiro livro sobre um terceiro furto carioca – eu quis manter certos
parâmetros então o livro tem o mesmo acabamento, a mesma duração do livro da
Biblioteca Nacional, o mesmo acabamento de capa, guarda também que é como se fosse
um livro com as guardas estampadinhas, como os álbuns antigos. E esse é o livro novo
com o mesmo formato, com um número diferente de páginas e um outro resultado
gráfico interno diferente (2013).
28
Para visualizar a obra acesse: www.rosangelarenno.com.br/obras/view/56/1
91
Kracauer observa que o historicismo ‘se afirmou quase ao mesmo tempo que a moderna
técnica fotográfica’, dando a entender que ambos eram produtos da sociedade
capitalista. Mas essa coincidência escondia, segundo Kracauer, um paralelismo mais
29
Ginzburg, Carlo. “Detalhes, primeiros planos, microanálises – a margem de um livro de Siegfried
Kracauer”, In: O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.
231-248
92
30
Idem, p. 234-235
31
Idem, p. 237.
93
32
Idem, p. 247
94
Introdução
1
O nome Xul Solar é dado pelo próprio artista para simplificá-lo e passa por várias versões. O seu nome
original é Oscar Augustín Alejandro Schulz Solari.
2
Pode-se exemplificar as relações e afinidades de Ismael Nery e Murilo Mendes no modernismo
brasileiro.
96
Ambos têm interesses comuns pelos mitos arcaicos, pela lingüística, pelas
religiões e filosofias alemã e oriental. Os diálogos entre eles possibilitam a Borges o
conhecimento do ocultismo, de crenças esotéricas e a menção de certas invenções
de Xul em textos literários; e ao artista permite executar muitas ilustrações em
artigos de revistas e livros do escritor, criar poemas, fazer traduções, publicar textos
e ter a sua obra plástica reconhecida nos meios institucionais.
Borges3 em textos e depoimentos sobre Xul salienta as leituras realizadas em
conjunto, como por exemplo, as obras de William Blake e as histórias de filosofia que
contemplam o pensamento oriental, bem como as discussões a respeito das religiões
antigas e ciências ocultas. Ele justifica os interesses comuns como sendo decorrentes
do fato dos dois terem estudado, respectivamente, na Suíça e na Alemanha, e
entrado em contato com o Expressionismo. O escritor acredita que este grupo de
artistas “reflete toda série de preocupações profundas: a magia, os sonhos, as
religiões e filosofias orientais, a aspiração a uma irmandade de mundo”.4 Esta
aspiração é perseguida por Xul em suas produções artísticas e invenções de línguas,
sempre permeadas pela meta de criar a unidade entre os homens e facilitar a sua
comunicação.
Xul5 identifica-se com as concepções do grupo Der Blaue Reiter e as suas
aspirações de criação de um novo homem espiritual, em detrimento de valores
3
BORGES, J.L. Laprida 1214. Atlas, 1984. Buenos A ires: Sudamericana, 1984, p. 80.
4
BORGES, J.L. Recuerdos de mi amigo Xul Solar. Comunicaciones 3, Fund. San Telmo, nov. 1990, s.p.
Ele e Xul fazem leituras de Schopenhauer, Nietzsche, o místico Emanuel Schwedenborg, os poetas
expressionistas alemães, dentre outros temas.
5
Xul estuda no Ateliê de Artes Aplicadas em Munique (1921-22), onde conhece a obra de Paul Klee,
assiste às palestras sobre Antroposofia de Rudolf Steiner. Ele torna-se um grande colorista ao estudar
a multiplicidade de tonalidades e transparências presentes nas pinturas de Blake e Kandinsky. Para os
místicos e Steiner, a cor é considerada como a alma da natureza e do cosmos. Durante a sua estadia
97
Se eu tivesse que comparar alguém com Xul o compararia com aquele místico e poeta
inglês, William Blake, que lemos juntos e que ele me ensinou a admirar, porque a mim
me detinham certas asperezas, certa insensibilidade, digamos à música, às palavras 8.
Borges reconhece que Xul compreende com mais facilidade os sentidos das
ideias e das palavras do visionário poeta inglês.
Em Londres, Xul conhece a obra de Blake, no British Museum, e se entusiasma
em estudar as tonalidades e as transparências de suas aquarelas, os símbolos místicos
e poemas. Xul adquire as obras completas desse artista, fato que estimula Borges a
conhecer melhor o autor e o seu esoterismo. Segundo o escritor, é Xul que o introduz
na Europa (1912-24), Xul mora em diferentes cidades na Itália, França, Alemanha e Inglaterra e entra
em contato com o Cubismo, Futurismo e Construtivismo, bem como com místicos.
6
Artigo publicado na Alemanha na revista Der Sturm e na Argentina em Proa n.1, agosto 1924, 21-24.
(Fac-símile)
7
Xul também possui livros em guarani, língua que estuda quando tem mais maturidade. ARTUNDO,
Patricia. Xul Solar. Entrevistas, artículos y textos inéditos. Buenos Aires: Corregidor, 2005. p. 21. A
pesquisadora identifica na biblioteca do artista 75 livros com textos sublinhados e anotados por
Borges.
8
ABÓS, A. Xul Solar. Buenos Aires: Sudamericana, 2004, p. 78
98
9
BORGES, J.L. Prefácio para apresentação de exposição de Xul Solar. Buenos Aires: Galeria Samos,
1949. Palestra sobre Emanuel Swedenborg, proferida na Universidad de Belgrano, 9 junho 1973. Nessa
ocasião, ele analisa as ideias de William Blake. Borges, J.L.Obras completas, Borges Oral, Buenos Aires:
Ediciones Belgrano, 1989, p. 55-179.
10
Borges reside em Genebra, depois Lugano, Maiorca e Madri (1914-21); Buenos Aires (1921-23) e
retorna a Madri (1923); Xul (1912-24) reside em Londres, Paris, Turim, Milão, Berlim e Munique.
11
A revista mural Prisma é dirigida por Eduardo González Lanuza. A revista Proa é dirigida por Borges,
Brandán Caraffa e Ricardo Güiraldes. Xul faz a capa de Proa (1924) e as ilustrações de textos.
12
Aparece em Sevilha (1919) e tem como articuladores Rafael Cansinos-Asséns, Ramón Gomez de la
Serna, Jacob Sureda, Gerdo Diego e Guillermo De Torre. Os irmãos, Norah e J. L. Borges participam,
ela ilustrando e ele escrevendo para a revista Grécia e Ultra. Os membros do grupo querem romper
com os modelos nacionalistas e regionalistas e propõem a internacionalização da arte na Espanha.
13
BORGES, J. L. Anatomia de mi Ultra. In: Ultra 11, Ano I, 20 maio 1921, sp.
99
14
A Argentina absorve 17% da imigração europeia de 1891 a 1914. Em 1880, a população é estimada em
2.492.000 habitantes; e em 1914, esta cresce para 7.885.000. Neste período, a população de Buenos
Aires passa de 180.000 para 1.500.000. Italianos e espanhóis lideram o processo imigratório. ROMERO,
L. A. Breve história contemporánea de Argentina. Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1994, p.
27.
15
A economia argentina moderniza-se a partir de 1880, momento de maior estabilidade política e de
introdução de capital estrangeiro, investido na construção de estradas de ferro e de portos, na
expansão dos setores agro-exportador e industrial. São os setores ligados às atividades agrícolas
exportadoras que dominam o sistema político, marginalizando e excluindo os imigrantes e grupos
sociais menos privilegiados. Em 1919 ocorrem 367 greves no país, sendo que em janeiro a “Semana
Trágica” (1919) é fruto de repressão aos operários.
100
16
Leopoldo Lugones exalta as tradições criollas e o mito do gaúcho em suas conferências, como El
Payador (1906), além da formação espiritual nacional em oposição aos imigrantes e mestiços. Ele
simpatiza com o fascismo e apoia, em 1930, o golpe militar de José Felix Uriburú (1930-32). O
nacionalismo atinge o auge em 1913, quando os poemas de Hernández são concebidos como
fundadores da nacionalidade, sendo os mesmos acompanhados pela oposição à industrialização,
motivada pelos movimentos operários. A pureza linguística é valorizada por Lugones, ao analisar a
obra de José Hernández Martín Fierro, e por escritores do Centenário. ROMERO, Jose Luis. Las ideas
en la Argentina del siglo XX. Buenos Aires: Biblioteca Actual, 1987, p. 150.
17
Manuel Gálvez, escritor católico e nacionalista, assume como Lugones posicionamento anti-
cosmopolita e antiliberal e torna-se admirador do fascismo. Em El diário de Gabriel Quiroga. Opiniones
de la vida argentina (1910), ele revela o temor à modernização e à degradação dos costumes; ataca os
trabalhadores, sindicatos de esquerda, os imigrantes em prol do patriotismo e da herança hispânica.
MUÑOZ, Miguel. Manuel Galvez, crítico de arte. In: Caiana, Revista de História del Arte y Cultura Visual
del Centro Argentino de Investigadores de Arte, CAIA, set. 2012, s.p.
19
Rojas publica La restauración nacionalista (1909) em que conclama a urgência da reforma de ensino
como solução para o problema da imigração e recebe apoio do ministro da educação para conhecer o
sistema espanhol. Ele também publica História de la literatura argentina (1917), em que consagra Martín
Fierro de Hernandez como o livro fundador da literatura em seu país. Ele escreve para jornais de grande
circulação, como La Nación e El País. MICELI, S. Vanguardas em retrocesso. S. Paulo: Cia. Das Letras,
2012, p. 92.
20
WECHSLER, D. Algunas consideraciones acerca de la vanguardia en el campo de Buenos Aires. In:
Estúdios de Investigaciones Inst. de Teoria e Historia Del Arte J. Payró 2, 1989, p. 43.
21
PENHOS, Marta. Nativos en el salón: artes plásticas e identidad en la primera mitad del siglo XX. In:
PENHOS Y WECHSLER (coord.) Tras los pasos de la norma. Buenos Aires: Jilguero, 1999, p. 113. A
literatura argentina desse momento considera o imigrante trabalhador, mas inculto e sem projetos
culturais elevados.
101
22
Ele rotula o imigrante como pessoa mesquinha, detentora de uma educação precária que visa apenas
o enriquecimento individual, sem interesses coletivos.
23
SARLO, B. Borges, un escritor en las orillas. Buenos Aires: Espasa Calpe Argentina, 2003. pp. 34 e 38.
Annick Louis salienta que o centro é o espaço do estrangeiro, onde não se encontra o autêntico criollo
e o porto é o espaço universal. O arrabalde é identificado pelo escritor como um espaço marginal.
Borges critica o realismo social e o naturalismo por não contemplarem temas verdadeiramente
criollos. In: Jorge Luis Borges: oeuvre et manoeuvres. Paris: L’Harmattan, 1997, p.389. Borges em
Inquisiciones resgata os marcos da literatura criolla no Uruguai para estabelecer a genealogia da
literatura platina. Ver: MICELI, S. Vanguardas em retrocesso. Op. Cit., p. 98.
24
MARECHAL, Leopoldo. “Luna enfrente”, por Jorge Luis Borges. In: Martín Fierro n. 26, 29 dez. 1925,
p. 190. (Fac-símile); LANGE, Norah. “Jorge Luis Borges pensado em algo”. In: Martín Fierro n. 40, 28
abril 1927, p. 332 (Fac-símile).
102
Somos e nos sentimos novos, à nossa meta nova não conduzem caminhos velhos e
alheios. Diferenciemos-nos. Somos maiores de idade e ainda não terminamos as guerras
pró-independência. Acabe já a tutela moral da Europa. (...). Amemos nossos mestres,
mas não queiramos mais nossas únicas Mecas em ultramar. 25
25
XUL SOLAR, A. Pettoruti y obras. Munique, junho de 1923. Arquivo Pan Klub do Museu Xul Solar.
ARTUNDO, P. Mário de Andrade e a Argentina. São Paulo: Edusp, 2004. p.101. Texto escrito por ocasião
da mostra de Pettoruti em Berlim, na galeria Der Sturm, de Herwarth Walden (1923).
26
Xul consciente de que o neocriollo consiste numa língua eurocêntrica, introduz mais tarde o inglês,
o alemão e por último o guarani, para contemplar os povos indígenas da América. As invenções
linguísticas são constantes, fato que apenas o seu criador tem domínio do neocriollo e a meta de língua
universal programada não se concretiza. Muitos estudiosos acreditam que o projeto de Xul abarcasse
a América Latina, por integrar inicialmente o castelhano e o português. Entretanto, nos textos de sua
autoria o termo utilizado é sempre América.
27
ARTUNDO, P. Papéis de trabalho. Introdução a uma exposição retrospectiva de Xul Solar. Visões e
revelações. Buenos Aires: MALBA; São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 24 set. - 30 dez. 2005,
p. 26. Nas décadas de 1910 e 1920, são produzidos vários estudos sobre as artes africanas e pré-
colombianas em que seus autores as concedem o estatuto de arte; e são realizadas várias exposições
na Europa que as consagram como tal. É também o momento em que se valoriza as artes pré-
colombianas, por sua beleza e qualidades plástica e simbólica.
103
ordem espiritual. Para Xul, a criação das artes nacionais, a adoção das crenças e dos
mitos pré-colombianos possibilitariam os meios de invenção do novo, de produção
da arte universal e de combate ao materialismo. O neocriollismo é resultante da
linguagem coloquial agauchada, definidora da fala argentina, mesclada com
expressões próprias da vanguarda criolla. Este termo é cunhado por Xul Solar no
texto em que analisa a obra de Pettoruti, na revista Martín Fierro, para salientar a sua
coragem e a sua independência cultural. “Em vez de destruir, ele constrói” e
28
“expressa a alma da pátria”. As vanguardas destroem, mas os artistas no entre
guerras buscam as raízes nacionais e formas mais estáveis, em prol da harmonia, após
período de conflitos internacionais e de crises. Os discursos de escritores e artistas
modernos revelam ainda a intenção de forjarem uma nova identidade, independente
das normativas linguísticas da Academia de La Lengua Española. 29
Para sustentar o projeto de renovação, a revista Martín Fierro (1924-27), da qual
Xul e Borges são membros, apoia-se na revisão da tradição nacional e no
cosmopolitismo para assim construir a nova identidade nacional circunscrita ao meio
urbano. Os seus mentores buscam promover a unidade frente à diversidade étnica e
cultural, que compõe a moderna sociedade argentina e tentam solucionar desta
forma os conflitos sociais gerados pelo intenso fluxo de imigração europeia. A
argentinidade, defendida por Evar Méndez, diretor da revista, é definida na cidade
pois, para ele, ela congrega a “síntese do país”: a cultura nacional e a modernidade.
30 Entretanto, as tradições criollas dos arrabaldes de Buenos Aires são integradas à
construção da nova identidade cultural, tal qual é concebida por Borges.
Xul aspira a arte total para a América, praticada pelos povos indígenas, de modo
a integrar as distintas categorias artísticas, arquitetura, pintura, objetos decorativos,
28
SOLAR, Xul. Pettoruti. In: Martin Fierro n. 10-11, set-out. 1924, 67, p. 70-71.
29
SCHWARTZ, Jorge. Fervor das vanguardas: arte e Literatura na América Latina. São Paulo: Cia das
Letras, 2013, p. 150.
30
O Manifiesto de “Martin Fierro” destaca também “a importância do aporte intelectual da América”
para o processo de independência cultural. Martín Fierro n. 4, 15 maio 1924, p. 25-6. (Fac-símile) A
exposição das pinturas de Pedro Figari é valorizada pelo fato dele representar as tradições criollas. O
texto estimula os artistas a abandonarem o novo em prol dessas tradições locais. “Don Pedro Figari”.
In: Martín Fierro n. 8-9, ag0.-set. 1924, p. 60-61 (Fac-símile).
104
poesia e música à vida cotidiana. 31 Essa concepção é, em parte, praticada por ele e
pelo grupo Blaue Reiter, com o objetivo de unificação da humanidade.
O artista, apesar de compor o grupo de Martín Fierro, como membro ativo, a
sua proposta é distinta e mais ambiciosa, ao não se restringir apenas à construção de
cultura moderna nacional e apresentar uma obra essencialmente mística. O neocriollo
é introduzido na pintura por Xul desde 1918, sendo mais tarde acrescidos símbolos
arcaicos pré-colombianos, que são representados, lado a lado, aos signos nacionais e
da modernidade europeia. No entanto, os signos nacionais se deslocam da figura do
gaúcho para as bandeiras, mesclados muitas vezes por signos místicos. A conciliação
de signos autóctones e modernos demonstra a sua preocupação com as
problemáticas de unidade nacional e da América. As suas aquarelas apresentam uma
concepção distinta das obras predominantes no país, já que estas são resultantes de
sua imaginação lírica e visão mística de mundo. Nos anos de 1920 e 30, a obra de Xul
desperta pouca atenção da crítica, talvez por seu caráter inusitado. Mesmo a revista
Martín Fierro quase não dedica textos à análise de suas pinturas, pois a crítica de arte
deste periódico está mais condicionada às concepções da revista francesa L’Esprit
Nouveau (1920-25) e dos movimentos de Retour à l’ordre e do Novecento do pós-
guerra, permeados por nacionalismos e recursos formais clássicos.
As transformações urbanas de Buenos Aires sugerem a Xul uma série de
pinturas, nas quais representa os arranha-céus, as grandes avenidas, o porto e a
multidão em meio à presença de seres fantásticos ascensionais em busca de um
mundo sagrado. A cidade é povoada de figuras imaginárias, bandeiras e símbolos
místicos, como as escadas que conectam o espaço terreno com o superior. As suas
pinturas “Doce escaleras” e “Vías” (1925) são estruturadas por formas geométricas,
construídas por planos ordenados, de modo ascendente e pelo jogo de cores que
31
Wagner formula a noção de arte total, elaborada numa dupla dimensão utópica: de um lado, a
totalidade das artes como projeto futuro, em busca da perfeição; e, de outro, a integração arte e vida.
O Almanaque do Cavaleiro Azul (1912) é considerado como a reatualização dessa noção de arte total,
ao englobar todas as formas de expressão artística e ao projetar transformar o homem, a sociedade e
a história, para dar ao mundo uma percepção unitária. LISTA, M. L’Oeuvre d’art totale à la naissance des
avant-gardes. Paris: INHA, 2006, p. 6-10.
105
configuram a sua imaginação lírica a respeito das relações do homem com o espaço
urbano e o universo espiritual.
Muitos escritores argentinos produzem novas poéticas tendo por base a
cidade, porém dirigidas aos avanços científicos, à mecanização e ao devir. Estes
fenômenos exercem o fascínio de Oliverio Girondo, Roberto Arlt e Xul Solar,
intelectuais ativos em Martín Fierro que situam o centro em suas poéticas.
As estratégias de Borges e Xul para construção da moderna cultura argentina
apóiam-se em projetos de mudanças ortográficas do castelhano para dar destaque
ao criollismo.32 As aspirações de renovação da linguagem partem do pressuposto de
que esta se transforma e que não deve ficar estagnada nas normativas acadêmicas
colonialistas. Elas compõem a elaboração da identidade nacional e representam a
independência cultural, assim como se inserem nos projetos de construção da nação
moderna.
Xul, apesar de ser o defensor do neocriollismo e da unidade da América, também
33
é um nacionalista. Em 1923, ele se define: “Sou mais criollo do que nunca”. No
entanto, esta declaração evidencia a sua convicção de que o nacional não está
descolado da dimensão americana. As ilustrações de Xul para o livro El idioma de los
argentinos (1927), são representadas por bandeiras argentinas e cores distintas em
faixas horizontais semelhantes à bandeira com arco-íris por ele projetada para a
América.
Os neologismos e transcrições fonéticas de Borges, presentes nos três livros,
Inquisiciones (1925), El tamaño de mi esperanza (1926) e El idioma de los argentinos
evidenciam traços dos estudos efetuados com Xul e as suas trocas de ideias. 34 No
32
As suas investigações contemplam a simplificação do espanhol, para libertá-lo da rigidez dos verbos
irregulares. Em texto, Xul anotou três questões importantes que deveriam ser repensadas: 1. As rimas
que se repetem; 2. A dificuldade de combinar palavras; 3. Palavras longas devem ser substituídas pelos
monossílabos do inglês. Faltam palavras para exprimir ideias que existem no inglês e alemão. Arquivo
Pan Klub, Museu Xul Solar.
33
SOLAR, X. Cartão postal remetido ao seu pai, 15/06/1923. Arquivo Pan Klub do Museu Xul Solar.
34
LOUIS, Annick. Xul, Borges ou os prazeres da afinidade eletiva. Xul Solar. Visões e revelações. Op.
Cit., p. 83. É interessante destacar que esses três livros de teor nacionalista são excluídos pelo autor
de suas Obras Completas.
106
35
ALCALÁ, M. L.; SCHWARTZ, J. Vanguardas argentinas: anos 20. São Paulo: Iluminuras, 1992, p.158.
36
SARLO, B. Borges, un escritor en las orillas. Op. Cit., p. 36-37.
37
ARTUNDO, Patricia. Alejandro Xul Solar. Entrevistas, artículos y textos inéditos. Buenos Aires:
Corregidor, 2005, pp.59-95. Ela destaca as entrevistas dadas por Xul nas décadas de 1920 e 1930.
38
Em 1924, Xul redige um artigo, em Martín Fierro, sobre a mostra de Emilio Pettoruti na galeria
Witcomb, enfatizando a modernidade de sua obra. Nessa revista, ele publica os poemas de Christian
Mogenstern, Algunos piensos curtos (...). In: Martín Fierro n. 41, 28 maio 1927, p. 337. Posteriormente,
ele e Pettoruti expõem no I Salón Libre de Buenos Aires (1924), sendo as suas obras pouco
compreendidas e aceitas pela crítica de arte e pelo público.
39
No entanto, os grupos de artistas cujas obras se encontram vinculadas às tendências do Retour à
l’ordre e do Novecento são rapidamente consagrados na Argentina.
40
CHIABRA ACOSTA, A. (Atalaya) Críticas de Arte Argentino 1920-1932. Buenos Aires: Gleizer, 1934. p.
311 As obras de Xul são analisadas em “Reflexiones sobre uma exposición en los Amigos del Arte”. La
Razón, 22 maio 1929, p. 1; e também na revista Campana de Palo 17, 1926-7. Xul apresenta suas obras no
Salón de los Independientes (1925); Exposição dos Pintores Modernos, na Associación Amigos del Arte
(1926) e La Peña, no Café Tortoni; no Salón Florida (1927); no Nuevo Salón (1929). Ele faz a tradução do
alemão para o neocriollo dos poemas do expressionista Christian Morgenstern, “Algunos piensos
cortos”, para a revista Martín Fierro 41, maio 1927. Ver: ATALAYA Actuar desde El arte. El archivo
Atalaya. Buenos Aires: Fundación Espigas, 2004.
107
41
MONEGAL, Emir. Mário de Andrade/Borges. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 23.
42
Ele apreende o método de ter visões com Aleister Crowley (1924), devendo após cada visão escrevê-
la. Xul faz a redação em castelhano e muitas vezes em inglês, bem como transcreve para o neocriollo.
Ele publica textos: Apuntes de neocriollo. In: Azul a.2, n. 11, agosto 1931, pp. 201-205; Poema. In: Imán.
Paris: n 1, abril 1931, p. 50; Cuentos del Amazonas... In; Crítica. Revista Multicolor de los sábados. Buenos
Aires, a 2, n.2, 19 agosto 1933; Hablan de los libros Gengis Khan...; In: Crítica. Buenos Aires, a 21, n. 7.298,
9 agosto 1934, p. 8; Visión sobre el Trilíneo. Destiempo. Buenos Aires, a.1, n. 2, novembro 1936, p.4;
Glosa. Destiempo. Buenos Aires, a.1, n.2, novembro 1936; De la cabaña al rascacielos. Los Anales de
Buenos Aires, a. 1, n. 6, 1946. Ver ARTUNDO, P. Xul Solar. Entrevistas, artículos y textos inéditos. Op.
Cit., p. 185-204.
43
O país passa por uma fase de expurgos e de consagração de intelectuais nacionalistas que estreitam
laços com a Igreja e sofrem influência do fascismo italiano. Os conflitos no interior do campo
intelectual se acentuam entre esquerda e extrema direita e as versões políticas desses nacionalismos
acabam interferindo nas práticas artísticas e intensificando as tensões e debates.
108
Xul executa ilustrações e traduções, tais como “Cuentos del Amazonas, de los
mosetenes y guaruyás” (1933), os contos Rudyard Kipling extraídos de Just so stories
for litlle children.44 Na década de 40, ele ainda faz ilustrações para as publicações
dirigidas por Borges, apesar de o artista assumir uma posição política favorável ao
governo de Juan Perón (1946). Borges, ao contrário, assina um documento em apoio
à União Democrática, que reclama da liberdade civil, em oposição ao programa
político de Perón, que limita a autonomia da arte defendida pelo escritor. Nesse
período, Borges é colocado no ostracismo devido ao seu aberto posicionamento
45e
partidário Xul participa de inúmeras atividades, nas quais constrói, de modo
sistemático, a sua imagem pública. 46 A amizade intelectual entre Borges e Xul passa
por uma fase de distanciamento, sendo que o primeiro começa a se consagrar fora
de seu país.
Para Beatriz Sarlo, é o cosmopolitismo de Borges que permite ao escritor da
periferia inventar as tradições argentinas e dialogar com a literatura estrangeira,
fazer de seu locus na margem a sua criação estética. Borges trabalha com temas
filosóficos, estabelece a relação tensa com a literatura inglesa, explora as citações, as
mitologias nórdicas, a Cabala, porém sem deixar de conectar com a literatura do rio
da Prata. Borges desestabiliza as tradições literárias ocidentais e orientais,
“cruzando-as no espaço rio-platense”. A sua obra é resultante desta tensão e
conflito, em que emergem ficções e temas fantásticos, nos quais busca respostas
filosóficas sobre a ordem do mundo, o destino dos homens e as modalidades de
relações sociais.47 A sua imaginação é construída por meio de constantes leituras,
sendo que desde criança lê em inglês na biblioteca de seu pai, posteriormente, em
44
Em 1935, Xul traduz ainda o conto “Onde o fogo nunca se apaga” de May Sinclair, publicado por
Borges na revista El Hogar; e o ensaio de Thomas Mann (1939). Ele também faz resenhas de livros,
como a de Harold Lamb Genghis Khan, Emperador de todos los hombres para o jornal Crítica (1934).
45
Borges perde o cargo na Biblioteca Nacional.
46
ARTUNDO, Patrícia. Xul Solar. Op. Cit., p. 25-28. Nesse momento, ele faz exposições de suas obras,
concede entrevistas, escreve artigos e faz resenhas de livros para revistas, bem como continua
executando ilustrações.
47
SARLO, Beatriz. Borges, un escritor en las orillas. Op. Cit. p. 10-16.
109
alemão e francês, em tantas outras bibliotecas que frequenta. Ele mesmo constata
que na infância: “Poucas coisas me aconteceram e muitas coisas li”. 48
Xul Solar também dialoga com as artes ocidentais, modernas e arcaicas, e com
a filosofia e as crenças orientais. A sua condição cultural periférica e a limitada
projeção internacional não possibilitam que tenha em vida consagração fora da
Argentina. Ele programa a unidade espiritual da América, a partir da aspiração de arte
total, para assumir posição que até aquele momento é ocupada pela Europa, na busca
de inversão de povos colonizados em colonizadores. As recriações de linguagens
além das finalidades de unidade e distinção apresentam conotações místicas na
busca para retomar a língua original e universal, em contraposição à variedade
existente no mundo moderno. Assim, o neocriollo e, mais tarde, a panlingua49 não
podem ser pensados isoladamente, mas em conexão com outras atividades do
artista, como suas pesquisas científicas50, técnicas, seus projetos urbanos, suas visões
transcritas em San Signos ou El Libro del Cielo e transpostas para pinturas, tais como
Paisaje Celestial (1933), Visión en fin del camino (1934). Todas estas atividades
compõem a sua missão religiosa e ética para criar um mundo melhor.51 Daí a
constante preocupação em produzir uma obra que permita a ordenação do mundo e
a planificação do devir.
A partir dos anos de 1930, o artista começa a se interessar pela aviação,
produzindo uma série de pinturas, como “Mestizos de avión y gente” (1936) e
“Vuelvilla” (1936). A última obra se constitui numa cidade espacial, em que as pessoas
têm liberdade de se deslocar pelo céu. Esse interesse de Xul é estimulado pelas
48
OLMOS, Ana Cecília. Porque ler Borges. São Paulo: Globo, 2008. p. 33.
49
A língua é monosilábica, de base numérica e sem gramática, para permitir liberdade no seu uso e se
tornar universal. SOLAR, X. 1/8/1951, Mundo Argentino, s/p. J.L. Borges acrescenta que essa língua se
baseia na Astrologia e se conecta com jogo de xadrez. Laprida 1214. Atlas. Op. Cit., p. 80.
50
Rudolf Steiner propõe a reunificação da arte, ciência e religião como meio de desenvolvimento da
humanidade e de sua espiritualidade, em contraposição ao materialismo que isola os outros campos
do conhecimento e desequilibra a ciência.
51
Klee no seu Journal afirma em 1900: « Diante de seu poder soberano eu queria subsistir e subsistir
de modo ético». In: Journal. Paris: Bernard Grasset, 1995, p. 45. Xul e Borges admiram muito o místico
Emanuel Schwedenborg (1688-1772), criador de nova religião e defensor da salvação por meio de obras
realizadas. A salvação tem um caráter ético e intelectual. A sua vida é dedicada à ciência e aos
diferentes campos do conhecimento, à publicação de livros e à execução de inúmeros projetos, como
por exemplo, o desenho de veículos submarinos, previstos também por Francis Bacon. BORGES, J.L.
Borges oral: conferencias. Buenos Aires: Emecê, 1979, p. 57-179.
110
revistas de caráter técnico que adquire e pelas pesquisas espaciais que estão se
processando, que o conduzem a redigir textos e a projetar cidades. Nestes projetos,
ele estuda o modelo de habitações e prevê a auto-suficiência econômica e as
atividades culturais das cidades, porém sem deixar de relacioná-las com suas visões
místicas. Em “Vuelvilla-Mundi” e “Ruedivilla”, Xul acrescenta símbolos astrológicos.
Numa das revistas lidas pelo artista, Mirador, as matérias sobre os satélites
espaciais, a automação e o ano geofísico internacional agiram sob seu imaginário e
seus ideais de cidades futuras. Ele procura nessas invenções solucionar o excesso
populacional e os problemas de circulação previstos nos grandes centros urbanos. 52
Xul escreve na revista Mirador artigos sobre automação e “Vuelvilla”, sendo o último
resultante de estudos que faz dos anos de 1930 aos de 1950. 53
Ele executa ainda pinturas de paisagem que não são, em geral, meras
representações do mundo natural, nem das singularidades do lugar, mas construções
mentais e simbólicas que procuram apresentar a infinitude do universo e estabelecer
a relação entre o visível e o invisível. Xul Solar acredita que é dotado de um modo
superior de existência e faz da arte uma forma de religião, que concomitante à
pintura pura libera a representação do mundo aparente e o conduz a desvelar o
mundo oculto
Borges, apesar de não apresentar esse perfil místico e utópico, estuda, escreve
e ministra palestras a respeito da Cabala, do místico Emanuel Schwedenborg, da
filosofia, dos neologismos e das fantasias de Xul. Annick Louis observa que nos anos
de 1920, os textos de Borges evidenciam rastros dos neologismos e transcrições
fonéticas de Xul em Inquisiones, El tamaño de mi esperanza, El idioma de los argentinos.
Entretanto, ela verifica que as invenções de idiomas de Xul resultam nas obras de
Borges em práticas lúdicas, mas que no plano social elas se transformam em fascistas,
ao se constituírem em domínio de uma minoria, num momento em que o escritor
combate o fascismo europeu. Os efeitos da invenção expressam o caráter totalitário
da língua, a imposição ao leitor e a perda de variedade. Neste sentido ideológico, as
52
ARTUNDO, Patricia (org.) Xul Solar. Entrevistas, artículos y textos inéditos. Op. Cit., p. 45-51.
53
Xul lê outras revistas, tais como: Mundo Técnico, Selecciones Técnicas, América Técnica, Mecânica
Popular, Science Digest, Archeion. Ele coleta informações também de jornais e outras revistas.
111
54
LOUIS, A. Xul, Borges ou os prazeres da afinidade eletiva. Xul Solar. Visões e revelações. Op. Cit.,
p.83. O perfeccionismo de Xul o condiciona a constantes melhoramentos da língua o que dificulta o
seu domínio coletivo. Borges declara que ao mesmo tempo que ele explica as suas invenções, ele as
aperfeiçoa e só o criador tem conhecimento e entendimento de suas criações.
55
BORGES, J, L. Obras completas. Parte 3. Buenos Aires: Emecé, 1989. p. 444. In: GRADOWCZKY, M. Xul
e Borges. A linguagem de dois gumes. São Paulo: Fund. Memorial da América Latina, 2001, p. 8.
56
Xul preserva as suas obras, seus textos e sua biblioteca e hoje eles compõem o museu dedicado a
ele e a sua memória; enquanto Borges tem manuscritos espalhados em distintas instituições e em
diferentes países.
57
CHIABRA ACOSTA (Atalaya) Atalaya sobre Salón Florida. In: Críticas de arte Argentina. (1920-32). Op.
Cit., p. 167.
112
Apresentação
1
CALLADO, Antônio. A Expedição Montaigne. 6 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2014. p. 9.
114
2
BERNARDET, Jean-Claude. Qual é a história? In: NOVAES, Adauto (org.). Anos 70: ainda sob a
tempestade. Rio de janeiro: Senac, 2005. p. 325-333. Sobre filme histórico: MORETTIN, Eduardo.
Humberto Mauro, Cinema, História. São Paulo: Alameda, 2013.
115
ensaios históricos (ou com algum tipo de mirada histórica) que realizaram este
mesmo empreendimento: Kuarup (1968), de Antônio Callado; Memória de Helena
(1969), de David Neves; Azzylo Muito Louco (1970), de Nelson Pereira dos Santos;
Pindorama (1971), de Arnaldo Jabor; Como era gostoso o meu francês (1971), de Nelson
Pereira dos Santos; Os Inconfidentes (1972), de Joaquim Pedro de Andrade; Iracema,
uma transa amazônica (1976), de Jorge Bodanski; O Genocídio do Negro Brasileiro
(1978), de Abdias do Nascimento; Expedição Montaigne (1982), de Antônio Callado.
O foco deste texto é uma apreciação formal, contextual – e em alguma medida
teórica – de Como era Gostoso o Meu Francês (1971) e Os Inconfidentes (1972), fitas que
selecionaram dois universos históricos com aspectos já construídos como mitos pela
memória cultural. Tais fitas usaram de tropos3 e imagens modernistas, em especial
da antropofagia e do patrimônio, para fazer aparecer e desviar do passado
convencional da cultura histórica vigente na época e figurar uma diferença histórica.
Pretende-se, portanto, entender como o passado colonial foi transformado em
catástrofe e qual o significado dessa leitura naquele momento.
A antropofagia
Entre 1967 e 1972 o Brasil viveu intenso uso das imagens antropofágicas. As
retomadas de José Celso Martinez e a famosa encenação de O Rei da Vela, de 1967,
antecedidas pelos empreendimentos de Hélio Oticica ou dos debates da poesia
concreta, recolocaram no cenário artístico brasileiro o escritor Oswald de Andrade
entre as personagens canônicas da nascente Tropicália4. Entre os muitos tropos ou
figuras de linguagens mobilizadas esteve a antropofagia, desenvolvendo-se como
3
Para saber mais sobre a noção de tropo e sua relação com a imagem: SANTIAGO JR., Francisco das C.
F. Historiofotia, tropologia e história: além das noções de imagem nos escritos de Hayden White.
História (São Paulo) v. 33, n. 2, p. 489-513, jul./dez. 2014; MITCHELL, W. T. J. Teoría de la Imagen. Madrid:
Akal Ediciones, 2009.
4
A figura de Oswald, contudo, só se tornou de fato moeda corrente a partir de meados de 1966. Até
essa data, poucos associavam a produção cultural brasileira à antropofagia e seu autor, com exceções,
evidentemente, como os poetas concretos, que desde os anos 1950 o mencionam. Cf. CAMPOS,
Augusto de (org.). Teoria da Poesia Concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960. 4 ed. Cotia, SP:
Ateliê, 2006.
116
5
Muitos analistas encontram a modalidade da leitura antropofágica de Oswald em José de Alencar
(obras como Ubirajara, de 1874) e Gonçalves Dias (poemas como I-Juca Pirama, de 1851), e reconhecem
o aspecto cultural do ritual antropofágico e a caracterização civilizatória do indígena que ele produz.
A retomada por Oswald de Andrade do canibal, agora, reconduzida pela interpretação do dadaísmo,
reconduziu a antropofagia como um novo “giro” nas imagens românticas de Alencar/Dias, mas
também de Montaigne e do próprio dadaísmo, na medida a devoração cultural-metafórica torna-se
expediente da modernidade brasileira. Cf. ROCHA, João Cézar de Castro. Uma teoria de exportação?
Ou: “antropofagia como visão de mundo”. In: ROCHA, João César de Castro; RUFFINELLI, Jorge
(orgs.). Antropofagia hoje? Oswald de Andrade em cena. São Paulo: É Realizações, 2011. p. 647-668.
6
DUNN, Christian. Brutalidade Jardim: a Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira. São
Paulo: EDUNESP, 2009.
7
FAVARETTO, Celso. Tropicália: a explosão do óbvio. 2007. In: BASUALDO, Carlos. Tropicália: uma
revolução na cultura brasileira (1967-1972). São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 81- 96.
117
8
RAMOS, Guiomar. Um Cinema Brasileiro Antropofágico? (1970-1974). São Paulo: Annablume/FAPESP,
2008.
9
Nas palavras de Joaquim Pedro de Andrade, os subdesenvolvidos se entredevoram: “as relações
entre as pessoas permanecem iguais deste os tempos em que realmente se praticava a antropofagia
direta, simples e selvagem; até os dias de hoje, em que essa forma antropofágica ganha um aspecto
civilizado, um aspecto industrializado”. ANDRADE, Joaquim Pedro. Joaquim Pedro de Andrade por el
mismo. Cine & médios. Argetina, v. 2, n. 5, 1971, p. 23.
118
10
A ambiguidade da fita está em desenvolver seu enredo ao redor da perspectiva idealizada da cultura
do indígena, ao mesmo tempo em que segue o protagonismo do personagem Jean, o qual será
devorado pelos tupinambás. A narração de Como era gostoso o meu francês oscila entre canibais e
vítima.
119
11
Para lembrar do perspectivismo e das análises do canibalismo etnológico estudados por Eduardo
Viveiro de Castro. Cf. CASTRO, Eduardo Viveiros de. A Inconstância da Alma Selvagem. São Paulo: Cosac
& Naify, 2002.
12
FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em Processo. Rio de Janeiro: EDUFRJ, 2005.
120
13
A mediação ocorria entre as pretensões de arquitetos, literatos e outros, com seus projetos
profissionais e ideológicos, e, os sucessivos projetos governamentais, a começar pelo governo Vargas,
criador do próprio SPHAN. Cf. CERÁVOLO, Ana Lúcia. Interpretações do Patrimônio: arquitetura e
urbanismo moderno na constituição de uma cultura da intervenção no Brasil, 1930-1960. São Carlos,
SP: EDUFSCAR, 2013.
14
ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Rodrigo e o SPHAN: coletânea de textos sobre patrimônio
cultural. Rio de Janeiro: MEC, SPHAN, Fundação Pró-Memória, 1987, p. 57.
15
GUIMARÃES, Maria da Conceição Alves. Rodrigo Melo Franco de Andrade e a paisagem hiperreal do
patrimônio. Vitruvius, ano 13, out. 2012. Disponível em:
www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4543. Acesso em maio de 2015.
16
RUBINO, Silvana. O mapa do Brasil passado. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, Rio de Janeiro, v. 24, 1996, p. 97-105.
121
17
RUBINO, Silvana. Op. cit. p. 98.
18
HARTOG, François. Tempo e patrimônio. Varia história, Belo Horizonte, v. 22, n. 36, p. 261-273, jul/dez
2006. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/vh/v22n36/v22n36a02.pdf. Acesso em abril de 2014.
122
19
FONSECA, Maria Cecília Londres. Op. Cit.
20
Carta patrimonial assinada por delegações de inúmeros países latino-americanos na qual se
defendeu a inserção do patrimônio e do turismo no desenvolvimento econômico e social.
21
MAIA, Tayana de Amaral. As políticas culturais na ditadura civil-militar (1967-1974). Anais do Simpósio
Nacional de História. Curitiba: ANPUH, 2011. Disponível em:
http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300631726_ARQUIVO_textocompletoTatyanaMai
aANPUH2011.pdf. Acesso em julho de 2015.
22
O que torna evidente a necessidade de uma história do patrimônio artístico e histórico no cinema
brasileiro para entender a elaboração e a reprodução do cenário patrimonial no campo
cinematográfico.
123
23
Cf.: ZILIO, Carlo. Querela do Brasil. Rio de Janeiro: Edição Funarte, 1982; NAVES, Rodrigo. A Forma
Difícil: ensaios sobre a arte brasileira. São Paulo: Cia das Letras, 2011.
24
RUBINO, Silvana. Op. Cit.
124
25
RIELG, Alois. O Culto Moderno dos Monumentos. Lisboa: edições 70, 2013.
26
Cf.: CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade, 2001; GIOVANNONI,
Gustavo. Gustavo Giovannoni: textos escolhidos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2013.
27
CÉRAVOLLO, Ana Lúcia. Op. Cit. p. 102.
125
28
GUIMARÃES, Maria da Conceição Alves. Rodrigo Melo Franco de Andrade e a paisagem hiperreal do
patrimônio. Vitruvius, ano 13, out. 2012. Disponível em:
www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4543. Acesso em maio de 2015.
29
Cf.: COSTA, Eduardo Augusto. Arquivo, poder, memória: Herman Hugo Graeser e o arquivo
fotográfico do IPHAN. Tese de doutorado em História. IFCH – Programa de pós-graduação em História,
UNICAMP, Campinas, SP, 2015.
30
Cf. entrevistas de Neves e Joaquim Pedro de Andrade em: VIANY, Alex. O Processo do Cinema Novo.
Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 1999. Muitos relatos e analistas apontam para o fato de que Rodrigo
de Melo de Andrade tinha grande sensibilidade para a consolidação da produção cinematográfica no
Brasil, incentivando o filho e amigos (como Neves), chegando inclusive a adquirir material de filmagem
126
para que pudessem ser usados. Cf. VIANY, Alex. Op. Cit.; AVELLAR, João Carlos. A redenção pelo
excesso de pecado. In: ROCHA, José César de Castro Rocha (org.). Nenhum Brasil Existe: pequena
enciclopédia. Rio de janeiro: Toopboks, 2003, p. 993-1004.
31
Sobre estes filmes, cf.: GUIMARÂES, Rosangela Mendonça. Cidades em ação: o olhar de Humberto
Mauro sobre Congonhas e Belo Horizonte. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: PUC Minhas,
2004.
32
Cf. ARAÚJO, Luciana Corrêa de. Joaquim Pedro de Andrade: primeiros tempos. São Paulo: Alameda,
2013; AVELLAR, João Carlos. Op. Cit.
127
33
ANDRADE, Rodrigo de Melo Franco. Op. Cit. p. 57.
128
34
A ideia da “colonização como catástrofe” foi sugerida por Jens Baumgarten durante uma
apresentação nossa, quando chamou atenção para uma memória da colonização brasileira como
trauma. O professor do departamento de História da Arte da UNIFESP desenvolveu este aspecto
também em sua apresentação na mesa “Cultura visual e práticas de poder” no II Seminário
Internacional Cultural Visual e História, em novembro de 2014. Sendo mais fiel a Baumgarten, este
definiu uma concepção de “colonização como trauma”, que aqui desenvolvo como “colonização
como catástrofe”, oscilando propositalmente entre as categorias de trauma e catástrofe.
35
Sobre a diferente entre passado prático e passado histórico. Cf.: WHITE, Hayden. The Practical Past.
Illinois: Northwestern University Press, 2014.
129
36
Sobre cinema e história das representações: BARROS, José d’Assunção; NOVOA, Jorge (org.).
Cinema-História: teoria e representações sociais no cinema. Salvador: Apicuri, 2007. Sobre plasmagem
do passado em imagens: ROSENSTONE, Robert. A História nos Filmes/Os Filmes na História. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2010.
37
RÜSEN, Jörn. Holocausto-memory and Germany identity. In: History: narration, interpretation,
orientation. New York: Berghahn Books, 2005, p. 189-204.
130
38
Cf.: RAMOS, Alcides Freire. Canibalismo dos Fracos: cinema e história do Brasil. São Paulo: EDUSC,
2002; XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, tropicalismo e cinema marginal.
São Paulo: Cosac & Naify, 2012.
39
Conferir a crítica a isso em: PINTO, Carlos Eduardo Pinto de. Relatos fantasmas: os filmes históricos
cinemanovistas e a política cultural da ditadura civil-militar nos anos 1970. Rebecca, São Paulo, ano 2,
n. 3, jan/jun 2013, p. 62-88.
131
40
RÜSEN, Jörn. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-história. Tradução de
Pedro Spinola Pereira Caldas e Valdei Lopes de Araújo. História da Historiografia, Ouro Preto, MG, n.2.
marc. 2009, p.163-209, p. 171. Disponível em:
www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/12/12. Acesso em maio de 2015.
41
RÜSEN, Jörn. Op. Cit. p. 171.
42
Aqui está a diferença fulcral: a projeção da vivência catastrófica criaria, na explicação puramente
alegórica, o presente como calamidade que surge mascarado como passado no filme histórico.
Contudo, isso significa que a memória histórica produzida pela película é apenas o presente projetado
no passado. Ora, portanto, não é memória, uma vez que esta depende de traços.
132
43
Rüsen confunde aparentemente o traumático como a experiência, enquanto os dois choques
evidenciam que o trauma é uma relação, como explorado por Freud, Lacan e historiadores como
Dominick LaCapra.
44
Elaboração: trabalho terapêutico de articular, para além da repetição do trauma, a articulação de
sua significação mesmo que esta seja a indeterminabilidade de seu não-sentido. A elaboração
aproxima-se do luto, com a diferença que este apresenta um objeto perdido localizável. A elaboração
tenta superar a compulsão pela repetição (o acting out) que está na base do mecanismo traumático.
Cf.: LaCAPRA, Dominick. Escribir la historia, escribir el trauma. Buenos Aires: Nueva Visión, 2005.
133
45
MITCHELL, W. T. J. What do pictures want? The lives and loves of images. Chicago: University of
Chicago, 2005.
46
FOSTER, Hal. O Retorno do Real: a vanguarda no final do século XX. Cosac Naify, 2014.
47
FOSTER, Hal. Op. Cit. p. 158.
134
48
MITCHELL, W. T. J. Op. cit.
135
Considerações finais
49
ASSMANN, Aleida. Canon and archive. In: ERL, Astrid; NÜNNING, Ansgar (orgs.). A Companion to
Cultural Memory Studies. London: The Gruyter, 2010, p. 97-108.
136
50
MITCHELL, W. T. J. Op. cit. p. 46: “Assent to the constitutive fiction of pictures as ‘animated’ beings,
quasi-agents, mock persons”. A difícil tradução de “mock persons” empregado por Mitchell, é melhor
compreendida como “fingir/zombar ser uma pessoa”. A solução adotada aqui foi pela tradução que
137
que desloca o (sentido do) passado (para longe do presente) e fazem-no sobreviver
como elemento constitutivo delas (das imagens) e da cultura histórica
compartilhada.
Restabelecer o equilíbrio rompido, depois de cinco séculos, como afirma
Callado, só é possível numa narrativa/imagem da história que se proponha violenta e
capaz de causar novo choque, para fazer emergir algo do estupor. Essa subversão
fez-se pela imagem de quando o mundo (o Brasil) era novo e as regras frustraram os
destinos.
articula a imagem como personagem ou pessoa fingida. São imagens-pessoas sem sê-lo, incorporam a
qualidade vivente de maneira fantasmática, algo entre o jogo (lúdico) e o real.
138
Clóvis Gruner
(...) mas que potente vanguarda que, durante mais de dois meses,
manteve na expectativa todas as forças coligadas das classes
governantes; que imortais soldados os que, nos mortais postos
avançados, respondiam ao versalhês: “Estamos aqui pela
Humanidade!”
Após dois meses de uma batalha de todas as horas, Paris não se acha cansada, nem
dividida.
Paris luta sempre, sem trégua e sem repouso, infatigável, heróica, invicta.
139
Paris fez um pacto com a morte. Por trás de seus fortes, ela em os muros; por trás de seus
muros, as barricadas; por trás de suas barricadas, as casas, que seria preciso arrancar-lhe,
uma a uma, e que ela faria saltar, se necessário, antes de se entregar à misericórdia 1.
1
Apelo às grandes cidades. In.: LUQUET, P. (org.). A Comuna de Paris. Rio de Janeiro: Laemmert, 1969,
p. 97-99.
140
***
2
A historiografia sobre a Comuna de Paris é escassa no Brasil e desde o pequeno grande livro de
Horacio Gonzales pouca coisa foi produzida. Como não é minha intenção falar dela de um ponto de
vista factual nem, tampouco, fazer um balanço historiográfico, remeto aos textos de que me servi para
esse breve relato: GONZALES, Horacio. A Comuna de Paris: os assaltantes do céu. São Paulo: Brasiliense,
1989; BOITO JR., Armando (org.). A Comuna de Paris na história. São Paulo: Xamã, 2001; BARSOTTI,
Paulo; ORSO, P. J. (orgs.). A Comuna de Paris de 1871: história e atualidade. São Paulo: Ícone, 2002. Além
desses, recomendo particularmente o trabalho de Alexandre Samis, talvez o mais completo estudo
escrito por um historiador brasileiro: SAMIS, Alexandre. Negras tormentas: o federalismo e o
internacionalismo na Comuna de Paris. São Paulo: Hedra, 2011.
3
LISSAGARAY, Prosper-Olivier. História da Comuna de 1871. São Paulo: Editora Ensaio, 1991, p. 363.
4
Uma coletânea de textos sobre a Comuna, assinados por autores contemporâneos ou
imediatamente posteriores a ela, entre eles Marx e Bakunin, pode ser encontrada em: COGGIOLA,
Osvaldo (org.). Escritos sobre a Comuna de Paris. São Paulo: Xamã, 2002. Uma análise da produção do
imaginário e das disputas em torno à sua herança pode ser lida em: ROSS, Kristin. Communal luxury:
the political imaginary of the Paris Commune. New York: Verso, 2015.
141
5
BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG/São Paulo: Imprensa Oficial, 2006, p.
434.
142
6
ARENDT, Hannah. O que é política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p. 12.
7
VAUTRIN, Jean e TARDI, Jacques. O Grito do Povo – os canhões de 18 de março (tomo 1) e O Grito do
Povo – o testemunho das ruínas (tomo 2). São Paulo, Conrad Editora do Brasil, 2005.
143
8
Apenas a segunda tem uma edição brasileira: TARDI, Jacques. Era a guerra de trincheiras – 1914-1918.
Belo Horizonte: Nemo, 2012.
9
ALARY, Viviane. Tardi, sa marque, son souffle. MEI, nº 26 (Poétiques de la bande dessinée), 2007, p. 71-
88.
144
10
ARTIÈRES, Philippe. La police de l’écriture: l’invention de la délinquance graphique (1852-1945). Paris:
La Découverte, 2013, p. 33-37.
11
SAMIS, Alexandre. Negras tormentas..., p. 298-302.
12
O historiador Bertrand Tillier defende que, além do pouco tempo e das demandas políticas de
emergência, a mobilizar a energia e a atenção dos artistas, outras razões corroboram para a escassez
da produção plástica sobre a Comuna produzida a partir e no interior dela. Para Tillier, que a define
como um “não-objeto artístico”, os artistas falharam ao representar o evento, uma falta que boa parte
da historiografia reproduziu. De acordo com ele, tão fundamental para entender tal lapso, foram a
censura institucional e a autocensura dos próprios artistas; o esquecimento da Comuna como
condição para a anistia aos communards em 1881; e a a museificação de sua memória por parte da
esquerda francesa. Cf.: TILLIER, Bertrand. La Commune de Paris, révolution sans images? Politique et
représentations dans la France républicaine (1871-1914). Paris: Champ Vallon, 2004.
145
***
13
Respectivamente em: TARDI, Jacques. Os canhões do 18 de Março (vol. 1), p. 70; A esperança
assassinada (vol. 2), p. 116-117.
146
volume, que se abre para a cena a um só tempo trágica e espetacular de uma Paris
em chamas, com o Hotel de Ville em primeiro plano a prenunciar a derrocada final da
Comuna.14 Esta é figurada em sequências onde o leitor tem, paulatinamente, o olhar
sitiado pelas tropas de Versalles até a batalha final, nos muros do Père Lachaise, onde
tombaram fuzilados os últimos revoltosos.
Sem prejuízo à narrativa de reconstituição histórica, Tardi coloca lado a lado
personagens ficcionais e lideranças da Comuna, participando uns e outros da
efervescência política, dos debates e enfrentamentos públicos, lutando, resistindo e
morrendo nas batalhas. Assim, ao mesmo tempo em que acompanhamos,
cronologicamente, a sequência de eventos que vão da proclamação da Comuna ao
seu aniquilamento, ou vemos saltar das páginas uma reconstituição precisa das ruas
e barricadas, das movimentações e agitações políticas, das quase sempre
tumultuadas assembleias, dos cartazes e comunicados fixados nos muros da cidade,
das chamas que consumiram o Hotel de Ville e das sangrentas batalhas de maio,
somos apresentados a um conjunto de personagens – o inspetor Hippolyte
Barthélemy; o subchefe de polícia Horace Grondin; o serralheiro e arrombador Fio de
Ferro; o militar Antoine Tarpagnan; a prostituta Gabriella Pucci, a Caf’Conc’ – e suas
intrigas folhetinescas de amores inconclusos, crimes, traições e vinganças. As suas
trajetórias se cruzam com as de Gustave Courbet, Jules Vallès ou Louise Michel, por
exemplo. A referência a acontecimentos e pessoas reais é parte constitutiva
fundamental do universo ficcional de “O grito do povo”. Um exemplo, entre outros:
a prostituta Gabriella é a modelo de Courbet para “A origem do mundo”, exibida pelo
artista a dois amigos – o fotógrafo Théophile Mirecourt e Tarpagnan – como se
pintada nos dias inaugurais da Comuna. 15 A organização dos acontecimentos e
personagens, segundo Éric Fournier, aproximam Tardi das correntes historiográficas
mais contemporâneas. Ainda que de maneira não intencional, ele constrói um enredo
a partir de perspectivas muito próximas às da micro história, da história das
14
TARDI, Jacques. O testamento das ruínas (vol. 4), p. 92-93.
15
TARDI, Jacques. Os canhões do 18 de Março (vol. 1), p. 57. O quadro, parte do acervo do Musée
D’Orsay, em Paris, foi pintado em 1866. Apesar de algumas especulações, não se sabe ao certo quem
serviu de modelo a Courbet.
147
16
FOURNIER, Éric. Tardi et la Commune de 1871 à travers Le Cri du peuple: roman graphique ou histoire
graphique?, Sociétés & Représentations 2010/1 (n° 29), p. 51-64.
17
A vitória de 18 de Março. In: LUQUET, P. (org.). A Comuna de Paris..., p. 57-58.
18
TILLIER, Bertrand. Tardi, de l'Histoire au feuilleton. Sociétés & Représentations, 2010/1 (n° 29), p. 7-
24. Na apresentação que escreve à obra de Tardi, Jean Vautrin, autor do romance, faz referência
indireta ao gênero folhetim ao afirmar, sobre sua intenção ao escrever “O grito do povo”: “Eu quis
embarcar o leitor no labirinto das ruas daquele 18 de março de 1871 e fazê-lo circular numa Paris
misteriosa como a de Victor Hugo, social como a de Eugène Sue e fervilhante como a Londres de
Charles Dickens”.
148
presentificar uma ausência por um símbolo que a representa e substitui). Sua arte
intenciona (e tensiona) a repetição da realidade como um “ato de fingimento”, na
definição de Wolfgang Iser: “como a irrealização do real e a realização do
imaginário”.19 Isto significa, entre outras coisas, o deslocamento da “ficção como
representação para a ficção como intervenção”20, permitindo ver dados do mundo
empírico por uma ótica outra, de forma diversa do que é; um “ato de transgressão”,
ainda segundo Iser. No caso de “O grito do povo”, tal ato – o de atribuir aparência de
realidade ao mundo, penetrando e agindo nele –, é duplamente transgressor. De um
lado, ao “fingir” a realidade, repetindo-a, revela possibilidades que servem à
produção de outros mundos possíveis, ao fazer aparecer finalidades que não
pertencem a realidade repetida. E o faz com o recurso a uma forma narrativa, a dos
quadrinhos, que embora não prescinda inteiramente da linguagem verbal é,
fundamentalmente, imagética. A intenção não é oferecer da Comuna, a exemplo da
historiografia acadêmica, uma narrativa “realista”. Mas pela imagem oferecer, ao
leitor, uma narrativa que não sendo real, ainda assim existiu ou pode ter existido no
real.21
19
ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Rio de Janeiro:
Eduerj, 2013, p. 34.
20
ISER, Wolfgang, O fictício e o imaginário..., p. 223.
21
Ainda que essa discussão deva muito a uma teoria do ficcional derivada de Iser, me sirvo também da
distinção proposta por Jacques Aumont entre “efeito de realidade” e “efeito do real”. Segundo
Aumont, o “efeito de realidade designa, pois, o efeito produzido no espectador pelo conjunto de
índices de analogia em uma imagem representativa (quadro, foto ou filme, indiferentemente). (...) O
efeito de realidade será mais ou menos completo, mais ou menos garantido, conforme a imagem
respeito convenções de natureza plenamente histórica”. Já o “efeito do real (...) designa assim o fato
de que, na base de um efeito de realidade suposto suficientemente forte, o espectador induz um
“julgamento de existência” sobre as figuras de representação e atribui-lhes um referente no real. Ou
seja, o espectador acredita, não que o que vê é o real propriamente, mas, que o que vê existiu, ou pode
existir, no real”. Cf.: AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas: Papirus, 1993, p. 112-113.
149
22
GARCÍA, Santiago. A novela gráfica. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 17-38. Os pesquisadores
brasileiros Paulo Ramos e Diego Figueira problematizam o uso do termo graphic novel, segundo eles
imerso em uma “aparente zona nebulosa sobre do que realmente se trata: uma forma moderna de
como produzir quadrinhos, um gênero destes ou ainda algo mais?”. Cf.: RAMOS, Paulo; FIGUEIRA,
Diego. Graphic novel, narrativa gráfica, novela gráfica ou romance gráfico? Terminologias distintas
para um mesmo rótulo. In: RAMOS, Paulo; VERGUEIRO, Waldomiro; FIGUEIRA, Diego. Quadrinhos e
literatura: diálogos possíveis. São Paulo: Criativo, 2014, p. 185-207.
150
formatos mais tradicionais, também, por uma nova e singular relação com o tempo,
segundo Català Domènech. Para o pesquisador espanhol, em um processo
comparável às mudanças na narrativa cinematográfica com a passagem dos rolos de
curta para os médias e longas metragens, novos experimentos formais e uma maior
densidade narrativa foram incrementados com a consolidação das graphic novels: ao
ampliarem o tempo da narração, elas permitiram igualmente uma maior
complexidade temática, denotada pelo acúmulo narrativo. De acordo com
Domènech: “Para que exista acumulação, densidade, é necessário poder pensar de
antemão um tempo amplo. (...) Isso só acontece quando há espaço para agrupar as
cenas e criar sequências. O espaço da sequência é o do tempo complexo, e portanto
o da formação complexa das ideias e emoções”.23
Particularmente no caso de “O grito do povo”, essa relação com o tempo se
constrói de diferentes maneiras. Primeiramente, a própria extensão da obra, que se
desenvolve ao longo de quatro tomos – dois, na edição brasileira –, duas centenas de
páginas e dezenas de personagens e acontecimentos, reais e fictícios – a
proclamação da Comuna, as primeiras eleições, a queda da Coluna de Vendôme –,
que se cruzam ao longo da trama. Há ainda a facticidade da Comuna, a delimitar sua
abordagem episódica. Sobre ela, e como para melhor balizá-la, Tardi introduz,
principalmente na parte final de seu romance – na edição brasileira, o segundo
volume – uma série de signos que pontuam temporalmente o seu avanço em direção
ao desfecho trágico da Comuna (“Sábado, 20 de maio”; “Quarta-feira, 24 de maio, 3h
da manhã”; “Sexta-feira, 26 de maio”), com a derrota militar para as tropas de
Versalles.
***
23
DOMÈNECH, Josep M. Català. A forma do real: introdução aos estudos visuais. São Paulo: Summus,
2011, p. 232.
151
da revolta. Segundo o pensador italiano, ela não se encontra em seus fins – uma e
outra podem ter como objetivo a tomada do poder, por exemplo. O que as distingue,
para Jesi, são diferentes experiências de tempo. Se a revolução está “entera y
deliberadamente inmersa en el tiempo histórico”, a revolta “suspende el tiempo
histórico e instaura de golpe un tiempo en el cual todo lo que se cumple vale por sí
mismo, independentemente de sus consecuencias y de sus relaciones com el
complejo de transitoriedade o de perennidad en el que consiste la história”. 24 Se a
revolução é um complexo estratégico de movimentos coordenados, orientados para
o longo prazo e com objetivos finais claros e definidos, com a revolta comprometem-
se deliberadamente homens e mulheres que desconhecem inteiramente as
estratégias em jogo, bem como as consequências de suas ações. Não há um inimigo,
mas adversários convertidos em inimigos a serem combatidos com “el fusil, el bastón
o la cadena de bicicleta”. E toda vitória, por momentânea e parcial, se converte em
um “acto justo y bueno para la defensa de la libertad, la defensa de la propia clase, la
hegemonía de la propria clase”.
Sem renunciar a sua individualidade, anulando-se no todo homogêneo que
compõem as massas revolucionárias, os insurrectos constroem ao longo das batalhas
novos sentidos de comunidade. Não apenas porque compartilham armas, obstáculo
e inimigos, mas também porque partilham os símbolos de sua revolta, tais como o
tempo, e o fazem imersos em uma espacialidade igualmente específica e comum.
Assim como com o tempo histórico, em sua relação principalmente com o espaço da
cidade, a revolta constrói uma relação singular: no gesto insurrecional, nela inscreve-
se o sentido de algo que é a um só tempo próprio (porque a cidade pertence a quem
nela vive) e comum (porque ela também pertence aos “outros” que a habitam). Se
“a la hora de la revuelta, dejamos de estar solos en la ciudad”, é nas batalhas, ainda
segundo Jesi, que tal sentido é tecido. Ao eleger o espaço urbano como locus
privilegiado, os revoltosos dele se apropriam “huyendo o avanzando en la alternancia
24
JESI, Furio. Spartakus: simbologia de la revuelta. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2014, p. 63.
152
O povo votou. Os Parisienses, agentes do triunfo de suas ideias, exprimiram nas urnas
seu desejo de uma mudança banhada de luz. Tudo corria bem com a Comuna. Ela tinha
as cores da liberdade e desabrochava no respeito aos mais necessitados. Ela se exprimia
pela boca da classe operária, que se tornava adulta. E, já que tudo devia ser reaprendido,
ela produziria um novo cidadão. Um juiz. Um resistente. Um agende sua própria força. A
instalação da Comuna em 26 de março não se deu conforme a cerimônia e o fausto de
um Antigo Regime. Ela foi republicana. Valente. Espontânea. Sedutora como uma risada
feliz. Não havia divisão em seu interior. Era uma explosão vermelha. A Comuna era o
agrupamento dos infelizes, dos banidos pela especulação, dos explorados das fábricas,
dos habitantes da periferia e da grande massa dos pobres26.
25
Idem, p. 70-73.
26
TARDI, Jacques. A esperança assassinada (vol. 2), p. 112-113.
153
27
TARDI, Jacques. As horas sangrentas (vol. 3), p. 45.
28
ALARY, Viviane. Tardi, sa marque, son souffle..., p. 85.
29
É o personagem Ziquet quem afirma a Lili, em diálogo travado no interior de um dos mausoléus do
Père Lachaise, que a “Comuna está acabada”. Cf. TARDI, Jacques. O testamento das ruínas (vol. 4), p.
158.
30
De acordo com Andrea Cavalletti, a partir de uma das notas de Benjamin nas “Passagens” – mas que
repercute também o conceito de revolta já presente em Jesi –, se “a classe e suas lutas exigem uma
ordem temporal completamente nova”, este novo tempo “muda também completamente o espaço”.
Cf.: CAVALLETTI, Andrea. Classe: uma ideia política sob o signo de Walter Benjamin. Lisboa: Antígona,
2010, p. 127-128.
154
31
DIDI-HUBERMAN, Georges. Pueblos expuestos, pueblos figurantes. Buenos Aires: Manantial, 2014, p.
101.
155
Celso Favaretto
1
Texto apresentado no II Simpósio de História e Arte – “Narrativa e Subversão”, UFPR, Curitiba, em
28 maio 2015
2
cf. CÁMARA, Mario. Corpos pagãos: usos e figurações na cultura brasileira (1960-1980), trad. Luciana di
Leone. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014, p. 9.
157
público adormecido, em que o político viria como efeito de uma crítica que corroía as
representações constituídas, polarizadoras, quando não maniqueístas.
Ao se rastrear acontecimentos artístico-culturais surgidas entre 1965 e 68 –
que, exemplares, mobilizaram imagens cheias de paixão, fervor e radicalidade, na
efetivação do imbricamento de experimentação e política, cujos efeitos se
estenderam até meados dos anos 70 –, tem-se em vista apreender a reconfiguração
das posições artísticas que tensionaram o período com valor de sintoma; isto é: que
dando forma à irrupção cultural em curso, manifestaram os sinais que, diferencias,
de-semantizavam os discursos instituídos, visando, voluntariamente ou não, o
levantamento dos recalques históricos e estéticos, fazendo a travessia das forças
excêntricas em conflito – um vento, uma brisa que varria o espaço das
representações político-culturais operantes naquela situação.
Nesses acontecimentos, o corpo vira personagem conceitual, como sintoma de
uma nova experiência que estava vindo. Nas artes, na política e nos comportamentos
esta nova experiência teve nos anos 1967-68 o seu ponto de definição, e nos anos
seguintes adquiriu outras figurações, inclusive com desdobramentos originais a partir
de 1969, como os que surgiram sob o signo da experiência contracultural, da “nova
consciência” ou da “nova sensibilidade” em que as palavras-signos “desbunde” e
“curtição” funcionavam como imagens emblemáticas de uma vida liberada sob o
signo da disponibilidade e do prazer, livre das constrições da razão ocidental, na
política, na cultura, nos comportamentos . Estas, foram adquirindo espaço nos
rastros dos acontecimentos anteriores, amplificada pela circulação de informações
que chegavam ao país, referidas às experiências contraculturais do underground
norte-americano e pela divulgação de autores erigidos em referência dos novos
comportamentos, como Marcuse, Reich, Norman Brown e no Brasil Luiz Carlos
Maciel. Também, tais desdobramentos vieram nos rastros dos desenvolvimentos
recentes no Brasil da psicanálise, de variadas terapias e modalidades de expressão
corporal, no imbricadas em algumas na vertente de terapias corporais; a
disseminação das drogas, do rock, da renovação dos costumes e práticas das relações
pessoais, do feminismo e da sexualidade aberta.
158
3
OITICICA, Hélio. “Ondas do corpo”. In: Cesar Oiticica Filho e Ingrid Vieira(org.) Encontros: Hélio
Oiticica. Rio de Janeiro: Azougue, 2009, p. 199.
4
cf. JEUDY, H.-P. O corpo como objeto de arte. trad. Tereza Lourenço. São Paulo: Estação Liberdade,
2002, p. 13.
162
5
Cf. PELBART, P.P. Vida capital: ensaio de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 142.
163
resulta não é mais nem a arte nem a vida empiricamente vivida, as vivências, mas
outra coisa, talvez um além da arte. O entre é o lugar do intempestivo, pois “o
interessante nunca é maneira pela qual alguém começa ou termina. O interessante é
o meio, o que se passa no meio (...). É no meio que há o devir, o movimento, a
velocidade, o turbilhão”6, como diz Deleuze.
Signo de transformabilidade, é a experiência da dança, irrompe naquele
momento como modalidade específica ou conjugada ao teatro e à música,
explicitando a abertura estrutural e a incorporação do som, cor e movimento, a
transmutação do sentido de construção que comandava as proposta artísticas mais
virulentas, implicando a ressemantização do corpo. A dança, dizia Oiticica, institui um
espaço intercorporal gerando comportamentos em que se atualizam relações
mutáveis entre corpo e estrutura. Pois, dizia, a dança integra ritmo, corpo e estrutura;
enfatiza a embriaguez dionisíaca que provém da vivência plena do presente como
“lucidez expressiva da imanência do ato”.7 Para ele, a dança, primeiro o samba e
depois o rock, como “busca do ato expressivo direto”, que respondeu à
“necessidade vital de desintelectualização, de desinibição intelectual, à necessidade
de uma livre expressão”8 – referindo-se certamente à distinção entre a linguagem do
corpo e a das palavras e que a manifestação de sentido no movimento é anterior à
produção do significado 9 –, ressaltando assim o vivencial, implícito já nas
proposições artísticas modernas em que o estrutural era ainda determinante.
Inicialmente o samba, depois com mais ênfase o rock, lhe possibilitaram “uma
imersão do ritmo, uma identificação vital completa do gesto, do ato com o ritmo”.
Porque, ele disse, “as imagens são móveis, rápidas, inapreensíveis – são o oposto do
ícone, estático e característico das artes ditas plásticas – em verdade a dança, o ritmo,
são o próprio ato plástico na sua crueza essencial – está aí apontada a direção da
6
DELEUZE, Gilles. Sobre o teatro: um manifesto a menos. Trad. Fátima Saadi. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2010, p. 34-35.
7
cf. OITICICA, Hélio. “A dança na minha experiência”. Aspiro ao grande labirinto. Org. Luciano
Figueiredo, Lygia Pape e Waly Salomão. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 72-75.
8
Idem, Ibidem.
9
cf. H.-P. Jeudy, Op. cit., p. 69.
164
descoberta da imanência. Esse ato, a imersão no ritmo, é um puro ato criador, uma
arte – é a criação do próprio ato, da continuidade”10.
As práticas que advém dessas ideias, incidem sobre as potências do corpo,
que tanto implicam reflexão sobre o cotidiano e as vivências como expõem
ambiguidades e contradições sociais; repensam a condição dos homens lançados ao
destino e aos debates culturais; anelam pelas utopias de renovação da vida.
Complexas, elaboram-se como pulsação dos ritmos, da linguagem e do corpo;
fortemente iconográfica e gestual, tende sempre a exibir os caracteres daquilo que
denota, suscitando no ouvinte reações imediatas; participa da dança e do espetáculo,
realçando não só a voz como o corpo dos participantes 11.
A antiarte de Oiticica incluiu-se no processo em curso de transformação radical
da concepção de artista – que se tornou um motivador para a criação. Criar, advertiu
Oiticica, citando Yoko Ono, “não é tarefa do artista, sua tarefa é a de mudar o valor
das coisas”12. Oiticica apontava assim para uma nova inscrição do estético: a arte
como intervenção cultural, em que o campo de ação é a atividade coletiva que
intercepta subjetividade e significação social. Está assim associado a muitas
atividades e artistas marcantes: surrealistas, dadá, Duchamp, Warhol, Beuys, etc que
mobilizaram uma investigação com caráter reflexivo sobre a trajetória que vai da
arte à antiarte, em que o corpo foi posto à prova, isto é, quando o corpo foi posto
em jogo13.
Mas o que poderia significar hoje essa proposição de Oiticica sobre a “tarefa do
artista”? Como sempre, que a arte é inscrição da e na experiência. Mudar o valor das
coisas é uma ação cultural, contextualizada. Hoje, que poder teria a arte, que política
seria esta que não se dedicaria, como antes, a mudar o valor das coisas mas a tentar,
10
Idem, Ibidem, p. 73.
11
BERIO,Luciano . “Commentaires au rock”. Musique em Jeu, n° 2, Paris: Seuil, 1971, p. 56; MORIN, E.
“Não se conhece a canção”. VVAA. Linguagem da cultura de massas. Petrópolis: Vozes, 1973, p. 146 e
ss.
12
OITICICA, Hélio. “Experimentar o experimental”. Navilouca. Torquato Neto e Waly Salomão (org.)
Rio de Janeiro: Edições Gernasa, 1974.
13
Cf. GALARD, Jean. “Ao lado da política: poderes e impoderes da arte”. In: Fernando Pessoa e Katia
Canton. Sentidos e arte contemporânea. Seminários Internacionais Museu Vale do Rio Doce, Vila Velha,
ES, 2007, p. 51
165
14
GALARD, Jean. “L’art sans oeuvre”. In: GALARD, J. et al (org.). L’oeuvre d’art totale”. Paris:
Galimard/Musée du Louvre, 2003, p. 168-169.
166
ilustrada com uma imagem dos violentos quadros narrativos, plasticamente brutais,
da Nova Figuração, como “The American Death”; em que o imaginário que circula na
sociedade de massas está conectada à denúncia da dominação.
Texto delirante que finge um efeito de real, a epopeia de Agrippino funciona
como uma alucinação, uma fantasmagoria toda feita de cacos, de “estilhaços da
cultura”15. Blocos narrativos descontínuos se sucedem, construindo hipérboles de
aspectos das mitologias contemporâneas: sexualidade, luta política, astros
cinematográficos, personagens dos esportes, da política, são agenciados numa
narrativa despsicologizada e descentrada, irredutível a um painel ou a uma imagem
totalizadora. São designados e hiperacentuados aspectos da cultura,
simultaneamente satirizados, pois a linguagem que os pressupõe simbólicos é
desconstruída. Procedendo por via expositiva, indiciada pelo uso reiterado da
conjunção, o campo onde a narrativa se institui é fragmentário e lacunar. As
referências e fragmentos da cultura são articulados em ritmo cinematográfico, com
cortes e fusões.
Escrita tóxica, violenta, com o excesso de imagens e reiteração dos mesmos
elementos, induz o leitor à desvalorização dos objetos designados, com que se dá a
destruição da própria imagem. Assim, pulverizando os códigos de produção e
recepção, reiterando o visível, hiperbolizando a representação, o texto desmobiliza
as expectativas do leitor que nele procuraria um sentido, uma significação profunda,
uma crítica como a da alegorização abstratizante do contexto político-cultural
brasileiro, que então era corrente na produção cultural do período 1965-69.
Exterioridade pura, a narrativa corrói o sujeito da representação. O eu reiterado que
o narrador dissemina no texto não fixa nenhuma identidade, antes a pulveriza. Não
sendo posição de um sujeito, o eu é apenas um efeito enunciativo submetido a um
regime técnico, homólogo ao da narrativa cinematográfica. Máquina histérica, a
enunciação é ritmada pela repetição, o que pode ser associado à forma industrial da
produção cinematográfica.
15
Cf. HOISEL, Evelina. Supercaos, os estilhaços da cultura em PanAmérica e Nações Unidas. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
168
16
Cf. GIACOIA JUNIOR, “Teses sobre Nietzsche e o budismo”. In LOPARIC, Zeljko (org.). A escola de
Kyoto e o perigo da técnica. São Paulo: DWW Editorial, 2009, p. 68-69 e GAGNEBIN, Jeanne Marie.
História e narração em Walter. Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994, p. 65-66.
171
17
Cf. “Brasil Diarreia” In: GULLAR, Ferreira (org.). Arte brasileira hoje. Rio de Janeiro: paz e terra, 1973.
172
18
Cf. BARTHES, Roland. Como viver junto. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2003,
p. 11 e 157.
19
Cf. a propósito nosso texto “60/70: viver a arte, inventar a vida”. In: Lisette Lagnado (org.). 27ª.
Bienal de São Paulo: Seminários. Rio de Janeiro: Cobogó, 2008, p. 240-249.
173
Michael Asbury
A cena invocada não poderia ser mais clara: os créditos de abertura daquele que
é considerado o filme inaugural do Cinema Novo, “Rio, 40 Graus”, de Nelson Pereira
dos Santos (lançado em 1955). Acompanhado pelo samba de Zé Keti "A Voz do
Morro" (1955), a câmera sobrevoa a Zona Sul do Rio do Janeiro (no sentido do Pão
de Açúcar para o Leblon) até atravessar as nuvens (rasgando a tela branca, como a
própria música insinua) e chegar à Zona Norte numa quebrada de favela.
Ao associar samba e cinema, os tropicalistas relembram seus próprios anos de
formação, suas influências: a Bossa Nova, a Poesia Concreta, o Pop, a cultura popular
e a contracultura dos anos 1960. Não que esta associação entre música e cinema seja
fruto de uma visão em retrospecto. Já em 1967 (e este foi um ano importante, como
veremos), Augusto de Campos enfatiza o caráter cinematográfico das canções de
Gilberto Gil e Caetano Veloso citando seu colega, o poeta concreto Décio Pignatari:
1
Uma versão inicial deste texto foi traduzida do inglês para o português por Vanessa Rosa Machado.
174
Mas, como me observou Décio Pignatari, enquanto a letra de Gil lembra as montagens
eisenstenianas, com seus closes e suas “fusões” [...], a de Caetano Veloso é uma “letra-
câmera-na-mão”, mais ao modo aberto e informal de um Godard, colhendo a realidade
casual “por entre fotos e nomes”2.
2
CAMPOS, Augusto, ed. (1974), O Balanço da Bossa e outras Bossas. São Paulo: Editora Perspectiva,
(1968, 5th ed. 1993) p. 283-4.1968, p. 153
3
FAVARETTO, Celso. Tropicalia - Alegoria, Alegria. São Paulo Ateliê Editorial, 1996.
4
BHABHA, H. K., ed. Nation and Narration. London, New York: Routledge, 1990.
Seria, por sinal, justamente por apresentarem esse caráter ambivalente, que Roberto Schwartz viria,
mais tarde, criticar os músicos tropicalistas. Schwarz, R. (1987) Tradição/Contradição. Rio de Janeiro:
Zahar / Funarte, p. 91-110.
175
A modernidade dos textos de Caetano e Gil [note que aqui é a música como escrita que
interessa a Augusto] tem feito com que muitos os aproximem dos poetas concretos [...].
Um ponto de conexão entre os dois grupos é, sem dúvida, Oswald de Andrade. [...] Em
vez da “macumba para turistas” dos nacionalóides que Oswald condenava, parece que
os baianos resolveram criar uma “batmacumba para futuristas”.7
5
CAMPOS, Augusto de. O Balanço da Bossa, Op. cit. p. 142.
6
Ibid. p. 286.
7
Ibidem, p. 286-287
176
Batmakumbayêyê batmakumbabaobá
Batmakumbayêyê batmakumbabao
Batmakumbayêyê batmakumba
Batmakumbayêyê batmakum
Batmakumbayêyê batma
Batmakumbayêyê bat
Batmakumbayêyê ba
Batmakumbayêyê
Batmakumbayê
Batmakumba
Batmakum
Batma
Bat
Ba
Bat
Batma
Batmakum
Batmakumba
Batmakumbayê
Batmakumbayêyê
Batmakumbayêyê ba
Batmakumbayêyê bat
Batmakumbayêyê batma
Batmakumbayêyê batmakum
Batmakumbayêyê batmakumba
Batmakumbayêyê batmakumbabao
Batmakumbayêyê batmakumbabaobá
O ambiente criado era obviamente tropical, como que num fundo de chácara, e, o mais
importante, havia a sensação de que se estaria de novo pisando a terra. Esta sensação
sentia-a eu anteriormente ao caminhar pelos morros, pela favela, e mesmo o percurso
de entrar, sair, dobrar “pelas quebradas” da Tropicália, lembram muito as caminhadas
pelo morro. [...] o participador entra em contato com uma multiplicidade de experiências
que se referem à imagem: a táctil, fornecida por elementos dados para manipulação, a
lúdica, a puramente visual [...] até chegar ao fim do labirinto, no escuro, onde um
aparelho de televisão (receptor) encontra-se ligado permanentemente: é a imagem que
absorve o participador na sucessão informativa, global. 9
8
OITICICA, Hélio. Esquema Geral da Nova Objetividade. In: Nova Objetividade Brasileira, Museu de Arte
Moderna, 1967.
9
“Entrevista a Mário Barata”. Rio de Janeiro, 15 maio 1967. In: CATALOGUE RAISONNÉ HÉLIO OITICICA.
(Versão preliminar). Rio de Janeiro: Projeto Hélio Oiticica, 2004. Documentos 0320.67-p02 e 0320.67-
p03.
178
Dois anos mais tarde, em 1969, Edward Pope – que conheceu Oiticica em
Londres durante a exposição do artista brasileiro intitulada “Whitechapel
Experience”, na Whitechapel Gallery – discutiu os happenings contemporâneos do
grupo “Exploding Galaxy” como formas de transmídia, afirmando que:
A ideia foi um achado naquele instante. Por quê? Porque se inspirava no teatro, no teatro
popular tão próximo, por sua própria natureza, ao clima social, à atmosfera política da
época. Pode-se dizer que o grupo de teatro Arena, com sua Opinião, foi o grande
respiradouro dos cidadãos abafados pelo clima de terror e opressão cultural de regime
militar implantado em 1964 [...]. Desse contexto geral e opressor surgiu uma formidável
criação revolucionaria e simbólica que foi ‘Carcará’, de João do Vale. Pouca gente ouvia
então aquele canto, expressando a realidade implacavelmente feia, malvada e egoística
da miséria natural e social do Nordeste, sem ser sacudido por dentro e sem lágrimas nos
olhos. Desde então, ‘Carcará’ é um hino da revolução camponesa nordestina […]. 12
10
POPE, Edward. Statement, in: Oiticica in London, Tate Publishing, p. 47-8.
11
O Projeto Cães de Caça, que incorporaria obras de seus companheiros neoconcretos, teria sido o
primeiro, caso fosse realizado.
12
PEDROSA, Mário. in: AMARAL, Aracy (org.). Mário Pedrosa: Mundo, Homem, Arte em Crise. Série
Debates, São Paulo: Perspectiva (1975, 2nd ed. 1986), p. 99-100.
179
revela que algo de novo se passa no domínio das artes plásticas, e esse carácter novo se
pronuncia no próprio título da mostra: os pintores voltam a opinar! Isto é fundamental.13
13
GULLAR, Ferreira. Opinião 65, Revista Civilização Brasileira, n. 4, Setembro de 1965. Reprinted in: Arte
em Revista: Anos 60, Ano 1, no.2, 1979, Rio de Janeiro: Kairos, p. 22-24.
180
14
AGUILAR, Gonzalo. Na Selva Branca: O Diálogo velado entre Hélio Oiticica e Augusto e Haroldo de
Campos, in: BRAGA, Paula (org.). Hélio Oiticica: Fios Soltos do Experimental. São Paulo: Perspectiva.
2008, p. 237-249.
15 Talvez haja aqui ainda outra referência à literatura modernista brasileira através da associação com
o nomadismo trans-histórico do personagem Macunaíma, do romance de Mário de Andrade, que traça
de forma irreverente a formação político-étnica do Brasil.
16 Depois de ter estudado em Paris na Sorbonne, Joaquim Sousa Andrade (1833-1902) mais tarde, em
1870, mudou-se para Nova York onde publicou (em Português) o periódico "O Novo Mundo". Sua obra
literária foi de modo geral ignorada até os irmãos Campos a "redescobrirem" nos anos 1960. Veja:
www.secrel.com.br/jpoesia/soua.html
17 Entrevista do autor com Dore Ashton, appendix 2, ASBURY, Michael. Hélio Oiticica: Politics and
Ambivalence in Brazilian 20th Century Art, unpublished PhD, UAL, London.
181
eu estava pensando naquela coisa que nós vimos no seu atelier noutro dia, os ninhos, eu
saí de lá e comecei a pensar numa série de coisas que me interessavam nesse mesmo
tipo de idéia sua, e eu tava me lembrando da, de uma peça do teatro japonês nô,
“hagoromo”, (o manto de plumas), que é uma das peças que o ezra pound traduziu para
o inglês, uma peça curta, lindíssima, e onde justamente que a coisa que é o centro da
peça é este manto de plumas que ao mesmo tempo tem uma cor lindíssima e tem uma
fragrância, um perfume maravilhoso que naquela altura já é um problema de sinestesia,
de correspondência de sons, de cores [...].19
18 Cujo conceito se originou durante sua residência na Universidade de Sussex, em Brighton, 1969,
tendo sido exibido posteriormente na mostra de 1970 “Information” no MoMA e, finalmente,
integrando seu próprio ambiente de moradia em seus lofts onde Oiticica se instalou em Nova York,
rebatizado “Babilonests”.
19
“Transcrição de entrevista com Haroldo de Campos”. Nova York, 27-28 maio 1971. In: CATALOGUE
RAISONNÉ HÉLIO OITICICA. (Versão preliminar). Rio de Janeiro: Projeto Hélio Oiticica, 2004.
Documento 0396, p. 71.
182
anjo, ele é encontrado por um pescador, que exige do anjo uma dança, a dança da
lua. Após realizar a dança, o anjo se dissolve no céu, nas palavras de Haroldo, “se
dissolve no branco do céu: como o ninho, branco no mais branco dos brancos”. Não
há dúvida de que essa associação feita pelo poeta teve um grande impacto sobre o
artista, principalmente pela referência a Malevitch, artista muito admirado por
Oiticica já na época do neoconcretismo. Evidência que pode ser encontrada em
diversas notas e textos datilografados produzidos por Oiticica durante o período em
que morou em New York e que ele intitulou “Aglomerado”.20 Num destes textos,
chamado “Bodywise”, de setembro de 1973 (dois anos depois da gravação inicial),
encontramos Oiticica voltando às observações de Haroldo e discorrendo sobre elas.
No início Oiticica já afirma:
E mais adiante:
20
Veja: COELHO, Frederico. Livro ou Livro-me: os Escritos Babilônicos de Hélio Oiticica 1971-1978, Rio
de Janeiro: EDUERJ, 2010.
21
“Apontamentos para citação em publicação VRT”. Nova York, 22 jun. 1973. In: CATALOGUE
RAISONNÉ HÉLIO OITICICA. (Versão preliminar). Rio de Janeiro: Projeto Hélio Oiticica, 2004.
Documentos 0189.73, p .1 e 0189.73, p. 2.
22
Idem. Documento 0189.73-p.2.
183
23 Ver: ASBURY, Michael. O Hélio não tinha ginga, in: Paula Braga (org.) Hélio Oiticica: Fios Soltos do
Experimental, Op. cit.
24 SANTIAGO, Silviano. Caetano Veloso, os 365 dias de carnaval, in: Cadernos de jornalismo e
comunicação, ed. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, nº 40, jan./fev. 1973, p. 52-53.
184
descobri q o q faço é MÚSICA e q MÚSICA não é “uma das artes” mas a síntese da
consequência da descoberta do corpo: porisso o Rock p.ex.se tornou o mais importante
para a minha posta em cheque [sic] dos problemas chave da criação (o samba em que
me iniciei veio junto com essa descoberta do corpo no início dos anos 60: PARANGOLÉ e
DANÇA nasceram juntos e é impossível separar um do outro): o ROCK é a síntese
planetário-fenomenal dessa descoberta do corpo […]25
ELE É ROCK
A INVENÇÃO DA COR É ROCK e tem mais!
25
“De Hélio Oiticica para Biscoitos Finos”. Rio de Janeiro, 11 nov. 1979 In: CATALOGUE RAISONNÉ
HÉLIO OITICICA. (Versão preliminar). Rio de Janeiro: Projeto Hélio Oiticica, 2004. Documento 0057.79,
p. 2.
185
26
“ho rio CG”. Rio de Janeiro, 7 ago. 1978. In: CATALOGUE RAISONNÉ HÉLIO OITICICA. (Versão
preliminar). Rio de Janeiro: Projeto Hélio Oiticica, 2004. Documentos 0118.78-p.1 a 0118.78, p. 4.
27
Ver: ASBURY, O Hélio não tinha ginga, Op. cit.
28
BRITO, Ronaldo. (1975) Neoconcretismo: Vértice e Ruptura do Projeto Construtivo Brasileiro. Rio de
Janeiro: Marcos Marcondes, 1975. Republished: BRITO, Ronaldo, Neoconcretismo: Vértice e Ruptura do
Projeto Construtivo Brasileiro. São Paulo: Edições Cosac & Naify, 1999.
186
duas versões do mesmo Magic Square nº5, foram construídas após sua morte. Uma
no Museu do Açude no Parque da Tijuca no Rio de Janeiro, e outra no Instituto
Inhotim, em Brumadinho, Minas Gerais, a resposta do bilionário do setor de
mineração Bernardo Paz à filantropia norte-americana e aos modelos europeus de
financiamentos público/privados para as artes.
O suposto boom econômico no Brasil durante os anos 1970, o assim chamado
Milagre Brasileiro, trouxe a apropriação comercial pela indústria da música, que
transformou a Tropicália na marca Tropicalismo. Este fenômeno um tanto paradoxal,
visto que o regime havia perseguido os músicos, propagava slogans como “Brasil,
ame-o ou deixe-o”, levaram Oiticica a escrever um texto em 1970 intitulado “Brasil
Diarréia”.29 Me pergunto, portanto: como ele responderia a este segundo milagre
brasileiro de que nós ouvimos falar nos dias atuais e o que ele acharia da incorporação
de seu próprio trabalho no efervescente mundo da arte contemporânea?
Qualquer que seja o caso, seja ele lentamente incorporado ao entorno tropical
ou meticulosamente preservado no Inhotim, esta vitrine do poder do colecionismo
que passou a dominar o mundo da arte contemporânea, os penetráveis parecem ter
voltado ao silêncio.
29
OITICICA, Hélio. Brasil Diarreia. In: Arte Brasileira Hoje. Rio de Janeiro, 1973.
187
Artur Freitas
1
MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. São Paulo: Círculo do Livro, 1982 [1955], p. 45 e ss.
188
2
ROSZAK, Theodore. A contracultura: reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição juvenil.
Petrópolis: Vozes, 1972 [1968], p. 19 e ss.
3
Idem, ibidem, p. 21.
4
VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002 [1985], p. 41-43.
189
5
MAGALHÃES, Marion Brepohl. Paraná: política e governo. Curitiba: SEED, 2001, p. 80 e ss.
190
6
OLIVEIRA, Dennison. A política do planejamento urbano: o caso de Curitiba. Tese (Doutorado em
Ciência Política), Unicamp, Campinas, 1995, p. 113-117. Uma versão revista desta tese foi publicada como
livro: OLIVEIRA, Dennison. Curitiba e o mito da cidade modelo. Curitiba: Ed. UFPR, 2000.
7
Idem, ibidem, p. 34.
8
Idem, ibidem, p. 117-124.
9
Idem, ibidem, p. 77.
191
Novembro em “calçadão” ou Rua das Flores foi o maior emblema “do início das
grandes intervenções urbanas da década de 1970” 10. Em linhas gerais, a revitalização
do centro de Curitiba pela via da pedestrianização foi uma aposta arrojada que,
baseada na ideia de uma cidade voltada para o encontro de pessoas e não de
automóveis, acabou por colocar a capital paranaense na vanguarda urbanística
nacional11. A partir de então, os cidadãos curitibanos, agora imersos nos efeitos
urbanos de um processo decisório externo e verticalizado, poderiam contemplar a
cidade moderna como os "figurantes de um grande anúncio de griffe urbanística"12.
Do “calçadão” à implantação da Fundação Cultural de Curitiba, passando pela
revitalização do Setor Histórico, a agenda política de Jaime Lerner valeu-se de um
modelo urbanístico tecnocrático para destacar, no campo discursivo, uma
abordagem “humanística” e “cultural” da cidade, promovendo assim a imagem do
centro de Curitiba, e particularmente da Rua XV, como uma espécie de “sala de visitas
ao ar livre”, o que, conforme a arquiteta Fernanda Garcia, acabaria implicando na
elaboração de todo um “mobiliário urbano para compor o cenário” 13.
Das luminárias aos quiosques, passando pelas cabines telefônicas moduladas, bancos,
floreiras, elementos articulados por uma comunicação visual que costura o discurso
espacial. O mobiliário urbano é todo ele especialmente projetado, com um "design" de
linhas modernistas orientado à ressemantização do espaço em questão. Transformado
em símbolo, qualquer elemento do mobiliário urbano da Rua das Flores é hoje
imediatamente associado a uma determinada imagem deste espaço14.
10
GARCIA, Fernanda Sánchez. Da cidade modelo à cidade virtual: lastros da cultura urbana de uma
Curitiba emblemática, Anais do V Seminário de história da cidade e do urbanismo, PUC, Campinas,
1998, p. 05.
11
Idem, ibidem, p. 05-06.
12
GARCIA, Fernanda Sánchez. Cidade espetáculo. Curitiba: Palavra, 1997, p. 44.
13
GARCIA, Fernanda Sánchez. Da cidade modelo à cidade virtual. Op. cit, p. 05.
14
Idem, ibidem.
192
O sucesso desta operação coloca o saber técnico como fonte legítima e exclusiva da
solução dos conflitos e o urbanista como juiz incontestável da nova ordem. Nesse jogo,
a técnica aparece apenas como meio que viabilizaria a realização das necessidades e da
felicidade numa sociedade perfeita porque de espaço racionalmente planejado.
Concretamente, a construção da cidade como todo orgânico coloca em marcha a
engrenagem que combina saberes e práticas, promovendo a legitimidade de uma
partilha urbana desigual e a normalização do comportamento de sujeitos sujeitados16.
15
SOUZA, Nelson Rosário de. Planejamento urbano em Curitiba: saber técnico, classificação dos
citadinos e partilha da cidade, Revista de Sociologia Política, Curitiba, n. 16, jun. 2001, p. 108.
16
Idem, ibidem, p. 110.
17
GARCIA, Fernanda. Da cidade modelo à cidade virtual. Op. cit, p. 05.
193
com destaque para a Fundação Cultural, o Teatro Paiol, a Camerata Antiqua, a Casa
Romário Martins, o Centro de Criatividade, entre outros18.
Daquele corpo orgânico e harmonioso, cujo cérebro seria certamente o Estado,
o coração corresponderia à região central recentemente pedestrianizada. Acessível
apenas aos pedestres, o Setor Histórico, com seus edifícios tombados, seria a
contrapartida memorial de um outro setor ainda mais pulsante, o “calçadão” da Rua
XV, a verdadeira artéria aorta de Curitiba: um espaço, em resumo, voltado não apenas
à festa do consumo classe-média, mas sobretudo à convivência estética cordial e
apaziguadora. Planejado para funcionar como uma “sala de visitas ao ar livre”, o
centro da cidade despontava, no contexto do urbanismo lernista, como um lugar que,
não obstante a “partilha desigual do espaço urbano” 19, baseava-se na ideia de
animação cultural, ali entendida como um "novo combustível sem o qual a coalizão
não fabrica os consensos de que necessita”20.
18
MORAES, Ulisses Quadros de. Modernidade em construção. São Paulo: Annablume, 2009, p. 31-40.
19
SOUZA, Nelson Rosário de. Op. cit, p. 110.
20
ARANTES, O.; VAINER, C. B.; MARICATO, E. A cidade do pensamento único: desmanchando
consensos. São Paulo: Vozes, 2002, p. 29.
194
21
Para uma análise mais detida dessas duas frentes de ação, sugiro dois textos meus: FREITAS, Artur.
Corpo em festa: Frederico Morais e o Sábado da Criação, Revista VIS, UnB, Brasília, v. 13, 2014; e
FREITAS, Artur. Perturbações do olhar: um porco no museu. In: KNAUSS, Paulo; MALTA, Marize (Org.).
Objetos do olhar: história e arte. Florianópolis: Ed. Rafael Copetti, 2015.
195
Convidada pelo Diretório Acadêmico Guido Viaro para planejar o evento, a artista
plástica e arquiteta Josely Carvalho optou por dividir parte da coordenação do VI
Encontro com sua irmã, a artista multimídia Jocy de Oliveira. Em linhas gerais, a
programação cultural proposta durou dez dias e englobou duas ações principais,
ambas voltadas à exploração poética dos espaços urbanos da capital paranaense. A
primeira ação, adaptada de um evento urbano realizado na Cidade México e
intitulada Gincana Ambiental, consistiu num conjunto de atividades de sensibilização
coletiva realizadas por grupos em diversos locais da cidade. Ao longo de um final de
semana, os membros de cada grupo percorreram uma série de locais
predeterminados de Curitiba, onde, a partir de algumas “instruções abertas”,
realizaram experiências sensoriais insólitas, tais como descrever “graficamente os
sons”, imaginar “o local com ou sem movimento”, analisar “o som em geral”,
descrever “o contorno do local” e assim por diante. Muito mais complexa, a segunda
ação, por sua vez, consistiu numa série de propostas igualmente coletivas que foram
cumpridas ao longo de um único sábado, dia 31 de agosto. Intitulada Homenagem a
Duchamp, a ação englobou projeções de filmes, instalações, leituras de manifestos, a
apresentação de documentos dadaístas, a construção de uma cabine pornográfica, a
execução da Peça Pão, em que os transeuntes foram convidados a moldar e comer
suas próprias esculturas, além da polêmica apresentação musical e performática da
obra Vexations, composta por Erik Satie. Para os limites deste texto, analisarei
exclusivamente a interpretação de Vexations: uma ação coletiva que, como veremos,
entraria em conflito com a experiência urbanística tecnocrática.
22
PISTONE, Danièle. Jocy de oliveira no espelho de suas cartas. www.academia.org.br, p. 199-201.
23
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 1987 [1980], p. 23-26.
197
24
RUSH, Michael. Novas mídias na arte contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2006 [1999], p. 17-
19.
25
NEIVA, Tania Mello. Cinco mulheres compositoras na música erudita brasileira contemporânea.
Dissertação (Mestrado em Música), Unicamp, Campinas, 2006, p. 162.
26
FERRUA, Pietro. John Cage: anarquista fichado no Brasil, Verve, PUC-SP, São Paulo, n. 04, 2003, p.
22.
27
Idem, ibidem. Sobre o assunto, cf. também: FERRUA, Pietro. O “testamento anarquista” de John
Cage, Verve, PUC-SP, São Paulo, n. 05, 2004.
28
NEIVA, Tania Mello. Op. cit, p. 166; NATALI, João Batista. Crítica: pianista Jocy de Oliveira compõe
retratos pessoais de músicos, Folha de São Paulo, 06 ago. 2014.
198
Convidada por sua irmã Josely Carvalho para participar do VI Encontro de Arte
Moderna, Jocy de Oliveira teve uma passagem tão rápida quanto intensa por Curitiba.
Depois de treze anos sem visitar a capital paranaense 29, onde residia Jandyra
Carvalho de Oliveira, mãe das duas artistas, a pianista chegou a Curitiba numa quinta-
feira, dia 29 de agosto de 197430. Ao longo da sexta-feira, dia 30, Jocy passou “todo o
dia tratando de detalhes do concerto-happening”, previsto para o dia seguinte31.
Como parte de Homenagem a Duchamp, o tal concerto ocorreu durante o dia 31 de
agosto. No dia seguinte, domingo, 1º de setembro, Jocy de Oliveira retornou para o
Rio de Janeiro32, deixando para trás uma ação que marcaria o VI Encontro.
Na ocasião, Jocy propôs e coordenou a interpretação coletiva de uma pequena
peça musical para piano intitulada Vexations, de Erik Satie. Embora composta por um
francês em 1893, a obra demarca um momento seminal na história das vanguardas
norte-americanas do século XX33. Em linhas gerais, trata-se de uma peça curtíssima de
apenas treze compassos com execução de pouco mais de um minuto, que no entanto
deve ser executada 840 vezes seguidas, conforme instruções do próprio autor34. Já
na origem, Vexations é uma composição inusitada que, abrindo mão dos cânones da
29
Pianistas se revezam na peça-homenagem, Diário do Paraná, Curitiba, 31 ago. 1974.
30
MILLARCH, Aramis. As mulheres e o que fazem, Estado do Paraná, Curitiba, 30 ago. 1974; JUNG,
Carlos. Sem título, Coluna Jornal de Carlos Jung, Estado do Paraná, Curitiba, 30 ago. 1974. A matéria
publicada no Diário do Paraná se equivoca ao afirmar que Jocy Oliveira havia chegado em Curitiba na
sexta, dia 30 de agosto. Pianistas se revezam na peça-homenagem. Op. cit.
31
MILLARCH, Aramis. As mulheres e o que fazem. Op. cit.
32
Pianistas se revezam na peça-homenagem. Op. cit.
33
MENDEZ, Matthew. History, homeopathy and the spiritual impulse in the post-war reception of
Satie: Cage, Higgins, Beuys. In: POTTER, Caroline (org). Erik Satie: music, art and literature. Farnham:
Ashgate, 2013, p. 209.
34
SHAW-MILLER, Simon. The only musician with eyes: Erik Satie and visual art. In: POTTER, Caroline
(org). Op. cit, p. 93-95.
199
música tonal, baseia-se numa espécie de “cromatismo total”35. Suas notas espaçadas
e imprevisíveis, de ritmo estranho, aliadas a um andamento lento e melancólico,
criam um ambiente sonoro ligeiramente misterioso, quase sombrio. Na contramão
de qualquer virtuosismo técnico ou complexidade barroca, a simplicidade radical da
peça chegou a ser associada a uma necessidade de esvaziamento do ego, como se
diante dela fôssemos obrigados a encarar nossa própria “pobreza de espírito”. Em
certa medida, contudo, essa privação simbólica é deliberada e fundamental. Nas
palavras do crítico musical Matthew Mendez, a “falta quase total de diferenciação
temática, harmônica e tímbrica” de Vexations seria a prova de que a música de Erik
Satie “é demasiadamente simples para os ouvidos acostumados a sons muito
condimentados”36.
Além disso, a obsessiva repetição da peça, somada à “falta de força
gravitacional em direção à tônica e à dominante”37, tem o efeito de expandir o
ascetismo poético da composição. Como uma cobra infinita que não para de engolir
o próprio rabo, o protocolo do looping acaba criando uma rotina anestésica,
entorpecente, quase hipnótica. Depois de horas de execução, a audiência precisa
lutar contra a “dormência paralisante do tédio”38. De acordo com o musicólogo
Robert Orledge, o procedimento cíclico e por isso mesmo monótono de Vexations
antecipou em algumas décadas o serialismo característico de parte da música de
vanguarda do século XX39.
No caso de Jocy de Oliveira, todavia, a apropriação da obra de Erik Satie era
mais localizada, pois passava pelo filtro da vanguarda norte-americana do pós-guerra,
mais especificamente pela obra de John Cage. De acordo com um depoimento da
própria pianista, a interpretação de Vexations em Curitiba seria a terceira
apresentação pública da peça, sendo que a segunda havia sido realizada por ela
35
ORLEDGE, Robert. Satie’s personal and musical logic. In: POTTER, Caroline (org). Op. cit, p. 07.
36
Tradução livre do inglês: “Vexations, with its near-total lack of thematic, harmonic and timbral
differentiation, in its own way proves that the music of Monsieur le pauvre [Erik Satie] is too simple for
ears accustomed to highly spiced sounds”. MENDEZ, Matthew. Op. cit, p. 220.
37
No original: “The lack of gravitational pull towards the tonic and dominant”. GATES, Grace Wai Kwan.
Satie’s rose-croix piano works. In: POTTER, Caroline (org). Op. cit, p. 57.
38
MENDEZ, Matthew. Op. cit, p. 221.
39
ORLEDGE, Robert. Op. cit, p. 11.
200
40
Jocy de Oliveira apud Das seis da manhã à madrugada: loucura de arte na praça, Diário do Paraná,
Curitiba, 31 ago. 1974.
41
MENDEZ, Matthew. Op. cit, p. 210-211.
42
Idem, ibidem, p. 209-210.
43
Idem, ibidem, p. 210.
201
John Cage “para amplificar estes efeitos”44. Com a inevitável variação perceptiva
derivada da longa execução, o conteúdo emocional de Vexations ia se alterando com
o tempo, gerando novos sentidos. De acordo com o próprio Cage, a ideia era que “as
pessoas percebessem que elas próprias estavam fazendo a sua experiência” 45. E de
fato, passados apenas dez minutos de apresentação, um ouvinte chegou a
abandonar o evento, alegando que a música induzia a sentimentos de “ansiedade,
medo e apreensão”46. Como bem definiu a escritora Ornella Volta, a experiência de
Vexations assemelhava-se a uma “espécie de autoflagelação derivada das penitências
dos monges medievais”47.
Vexations em Curitiba
44
Tradução livre do inglês: “The use of multiple pianists, if partly motivated by the pragmatic concern
of stamina among the executants, was therefore also justified ex post facto as a deliberate strategy
for amplifying these effects”. Idem, ibidem, p. 215.
45
Tradução livre: “I try to get it so that people realize that they themselves are doing their experience
and that it’s not being done to them”. John Cage apud KOSTELANETZ, Richard. Conversing with Cage,
2ª ed. New York: Routledge, 2003, p. 109.
46
Tradução livre: “an audience member at the original Pocket Theater performance had to leave after
10 minutes, claiming the music immediately induced feelings of ‘anxiety, fear and apprehension’”.
MENDEZ, Matthew. Op. cit, p. 220.
47
Tradução livre: Vexations, this “sort of self-flagellation reminiscent of the medieval monk’s
penances”. Ornella Volta apud CICCOLINI, Aldo. Erik Satie: L’oeuvre pour piano. Vol. 02, 1987, p. 06.
48
CARVALHO, Josely. Projeto de criatividade: educação através da arte, texto datilog, 10 páginas
numeradas, ago. 1974, p. 09 (Curitiba, 05 dez. 2002).
202
49
MILLARCH, Aramis. A cidade & a música, Estado do Paraná, Curitiba, 03 set. 1974; BOGUSZEWSKI,
José Humberto. Edifício Paraná, JHB Design, blog, nov. 2014. Disponível em:
www.jhbdesign.com.br/edificio-parana; DAMO, Elvo Benito. Entrevista a Artur Freitas, Centro de
Criatividade da Fundação Cultural de Curitiba, Parque São Lourenço, Curitiba, 14 fev. 2013.
50
MILLARCH, Aramis. A cidade & a música. Op. cit; DAMO, Elvo Benito. Entrevista a Artur Freitas. Op.
cit.
51
OLIVEIRA, Jocy de. Dias e caminhos: seus mapas e partituras. Rio de Janeiro: Imprinta, 1983, p. 69;
BOGUSZEWSKI, José Humberto. Edifício Paraná. Op. cit; DAMO, Elvo Benito. Entrevista a Artur Freitas.
Op. cit.
203
machista que pretendia atuar como uma espécie de tribuna livre para homens
notáveis52. Em meados dos anos 1970, parte da força de seus integrantes derivava de
uma lenda urbana ainda bastante recente, segundo a qual o ex-Governador do
Paraná Haroldo Leon Peres, acusado de improbidade, teria renunciado, em 1971,
graças à oposição política de membros da Boca Maldita. Na prática, contudo, a Boca
consistia num cenário urbano aberto à partilha da experiência sensível: uma
movimentada região da Rua XV repleta de lojas e cafés de toda sorte.
No projeto original, Vexations deveria ser executada por um “número x de
pianistas voluntários”, previamente inscritos53. Ditadas por Jocy de Oliveira, as
instruções de interpretação eram bastante rigorosas. Com início previsto para às seis
horas da manhã do dia 31 de agosto, a execução ininterrupta deveria durar o mesmo
tempo do célebre concerto inaugural de John Cage, 18 horas e 40 minutos,
concluindo-se às zero horas e quarenta minutos da madrugada do dia seguinte. Nesse
meio tempo, cada pianista seria responsável por tocar a peça durante 20 minutos,
executando quinze vezes a partitura, sendo que cada repetição deveria durar 1
minuto e 20 segundos. Finalizado o primeiro bloco, um novo instrumentista assumiria
o piano, tocando mais 20 minutos, e assim sucessivamente. Além disso, “para
concentrar-se e observar o andamento da execução anterior”, o “ritual da peça”
exigia que os pianistas organizassem “um horário, chegando 20 minutos antes de sua
vez”. No término da apresentação, portanto, cada bloco de 20 minutos teria sido
executado cinquenta e seis vezes54.
Para guiar os intérpretes durante a execução da peça, Jocy de Oliveira escreveu
à mão uma partitura de Vexations. No corpo do manuscrito, algumas anotações da
pianista reforçavam as instruções iniciais: “Esta peça deve ser executada como
ritornello em 1 minuto e 20 segundos”, sendo repetida “15 vezes em 20 minutos”. Ao
52
VIEIRA, Flavia. Espaços públicos de lazer no centro de Curitiba. Dissertação (Mestrado em Educação
Física), UFPR, Curitiba, 2010, p. 45.
53
CARVALHO, Josely. Projeto de criatividade. Op. cit, p. 07.
54
CARVALHO, Josely; OLIVEIRA. Jocy de. Slides y Montagem Josely Carvalho Piano Tapes Jocy de
Oliveira, duas folhas, datilog, 1974, p. 01 (MAC-PR)
204
55
CARVALHO, Jocy. Partitura musical de Vexation, folha única, manuscrito com anotações, s.d. (MAC-
PR).
56
MILLARCH, Aramis. A cidade & a música. Op. cit.
57
BOGUSZEWSKI, José Humberto. Edifício Paraná. Op. cit.
58
OLIVEIRA, Jocy de. Dias e caminhos. Op. cit, p. 69.
59
MILLARCH, Aramis. A cidade & a música. Op. cit.
60
MILLARCH, Aramis. As mulheres e o que fazem. Op. cit.
61
[BEDA]. 6º Encontro, texto manuscrito e assinado, duas folhas, s.d. [1974] (MAC-PR); O som
hipnótico, o barro, o xadrez, etc: a nova arte moderna, Estado do Paraná, Curitiba, 1º set. 1974.
62
A Boca vai ouvir muito piano, [sem indicação de jornal], Curitiba, 31 ago. 1974; GOMES, Regina. Sem
título, texto manuscrito e assinado, folha única, s.d. [1974] (MAC-PR).
63
MILLARCH, Aramis. As mulheres e o que fazem. Op. cit.
205
64
OLIVEIRA, Jocy de. Dias e caminhos. Op. cit, p. 71; [BEDA]. 6º Encontro. Op. cit; BOGUSZEWSKI, José
Humberto. Edifício Paraná. Op. cit; DAMO, Elvo Benito. Entrevista a Artur Freitas. Op. cit.
65
Jocy de Oliveira apud Das seis da manhã à madrugada: loucura de arte na praça, Diário do Paraná,
Curitiba, 31 ago. 1974.
66
OLIVEIRA, Jocy de. Dias e caminhos. Op. cit, p. 69.
67
A Boca vai ouvir muito piano. Op. cit.
68
GOMES, Regina. Op. cit.
69
Programa – VI Encontro de Arte Moderna, duas folhas, datilog, 1974, p. 01 (MAC-PR)
206
70
DAMO, Elvo Benito. Entrevista a Artur Freitas. Op. cit.
71
Idem, ibidem.
72
Programa – VI Encontro de Arte Moderna. Op. cit, p. 02; 6º Encontro de Arte Moderna, folder do
Programa, Curitiba, 22 ago. a 02 set. 1974.
73
Programa – VI Encontro de Arte Moderna. Op. cit, p. 02.
74
NAUMANN, Francis. Marcel Duchamp: a reconciliation of opposites. In: KUENZLI, Rudolf;
NAUMANN, Francis (org). Marcel Duchamp: artist of the century. 4ª ed. Cambridge: MIT Press, 1996
[1990], p. 33.
75
OLIVEIRA, Jocy de. Dias e caminhos. Op. cit, p. 70.
207
Nas poucas fotos disponíveis, vemos que algumas mesas encimadas por tabuleiros e
peças de xadrez foram de fato dispostas no interior do quiosque. Divididos entre os
lances da partida e as notas repetitivas de Vexations, os jogadores ficavam a poucos
metros do piano, sentados aos pares, às costas da pianista da vez. Enquanto isso, ao
que parece, “as outras partidas [que integravam Homenagem a Duchamp] foram
jogadas ao ar livre, num tabuleiro gigante desenhado no chão de uma praça pública,
além de partidas em diferentes locais da cidade, onde os jogadores se comunicavam
através de rádio”76.
As partidas de xadrez e a interpretação curitibana da peça de Erik Satie
formaram um bloco poético fracionado. Como no caso da execução criteriosa de
Vexations, que dependia da atenção a normas de interpretação bastante precisas,
cada partida de xadrez baseou-se em um conjunto de instruções previamente
definidas. Além das evidentes regras do próprio xadrez, subentendidas para a prática
do jogo, cada enxadrista precisou conhecer e cumprir um determinado roteiro de
procedimentos que vinculava cada lance da partida à música que se ouvia. No projeto
original, o torneio de xadrez deveria durar o mesmo tempo da execução de
Vexations, ou seja, 18 horas e 40 minutos. Mas além disso, Jocy e Jocely elaboraram
diretrizes mais minuciosas, fazendo com que o próprio torneio, em convergência com
a interpretação musical, fosse entendido como um único jogo. Na prática, a ideia era
a seguinte:
76
Idem, ibidem. Infelizmente, não foi encontrada nenhuma outra fonte documental que aborde o
tabuleiro gigante ou as partidas via rádio.
77
CARVALHO, Josely; OLIVEIRA, Jocy de, Slides y Montagem... Op. cit, p. 01. O mesmo texto relativo às
regras de execução do xadrez no contexto de Homenagem a Duchamp foi também publicado em: Das
seis da manhã à madrugada. Op. cit.
208
tempo objetivo de um relógio duplo, daqueles usados nas partidas de xadrez, mas
pelo tempo, certamente mais subjetivo, de cada execução integral da peça de Satie.
Como um autêntico jogo, uma partida de xadrez pode durar um tempo
evidentemente indeterminado, mesmo nas situações em que há um controle prévio
da duração de cada lance ou partida. Em nenhum caso é possível determinar de
antemão quando um jogo de xadrez chegará ao fim: pode ser num xeque-mate, num
empate por repetição, na aceitação mútua de um empate ou numa imprevista
desistência de um dos jogadores – definitivamente não temos como saber. Em
termos matemáticos, seria possível, embora pouco provável, que no contexto de
Homenagem a Duchamp uma única partida se estendesse por todas as 18 horas e 40
minutos, totalizando 840 movimentos de peça, em convergência com o número
exato de execuções inicialmente previstas para cada looping de Vexations. Para Jocy
e Josely, todavia, “vencer não terá a menor importância e sim a ação em si, a
experiência de verificar quantas partidas foram jogadas no final das 18h 40min” 78.
Dispersos no centro da capital paranaense, enxadristas e pianistas integraram
juntos a mesma estrutura poética, partilhando inclusive de alguns problemas
comuns, voltados à prática de ações coletivas. “Assim como representa uma
dificuldade para o pianista abdicar de seu individualismo mantendo sempre o mesmo
tempo de execução”, afirmaram Jocy e Josely, também “representa para o jogador
um problema de estabelecer o mesmo tempo de raciocínio para mentes
diferentes”79. Todavia, embora música e jogo estivessem intimamente conectados, é
certo que houve uma precedência da primeira sobre o segundo. Diante do aspecto
silencioso e abertamente cognitivo de uma partida de xadrez, foi o caráter invasivo
de uma interpretação musical amplificada como aquela o que afinal motivou não
apenas as ações de cada enxadrista, mas, como veremos a seguir, as mais variadas
reações do público passante.
78
CARVALHO, Josely; OLIVEIRA, Jocy de, Slides y Montagem... Op. cit, p. 01.
79
Idem, ibidem.
209
O público de Vexations
Todo o evento foi observado por psicólogos, assistido por comerciantes, trabalhadores,
envolvendo estudantes e presenciado pelos pedestres que passavam. As reações foram
controvertidas. Alguns próximos da histeria não puderam suportar tanta estimulação.
Outros aceitaram pacificamente a repetição hipnótica da melodia de Satie80.
80
OLIVEIRA, Jocy de. Dias e caminhos. Op. cit.
211
81
GOMES, Regina. Op. cit.
82
BOGUSZEWSKI, José Humberto. Edifício Paraná. Op. cit
83
O som hipnótico, o barro, o xadrez, etc. Op. cit; A terapia da música, Diário do Paraná, Curitiba, 1º set.
1974.
84
Posteriormente, o resultado dessas entrevistas foi transcrito à mão no seguinte documento:
Semana de Arte Moderna, texto manuscrito, cinco folhas com frente e verso, sem paginação, s.d. [31
ago. 1974] (MAC-PR). Não há indicação dos nomes dos entrevistados.
85
A terapia da música. Op. cit.
212
86
MILLARCH, Aramis. As mulheres e o que fazem. Op. cit.
87
Semana de Arte Moderna. Op. cit.
88
Idem, ibidem.
213
qual aqueles alunos estavam habituados, era de tipo “alegre e jovial, e essa música
não condiz com isso”89. Essa música, completou alguém, “não tem ritmo” “não tem
coisa nenhuma. Se isso é cultura, a gente não entende”90.
Mesmo entre músicos, a incompreensão era generalizada. “Eu estou
procurando entender, porque entendo um pouco de música. Sou músico. E gostaria
de saber qual a razão dessa situação e qual a sua finalidade”. Longe dos padrões
tanto da música popular quanto da música erudita tonal, a repetição incessante de
Vexations parecia não ter nenhum propósito. Para outro músico, essa aparente
ausência de função não era prejudicial em si mesma, mas pelos seus efeitos
concretos, na medida em que afastava o público: “Eu estudei música. Não está muito
bom, não. Não dá muita atração. O público não está gostando. Ninguém gostou dessa
música hoje. Eu acho horrível isso. Esse negócio aí, essa música. Todo mundo foi
embora”91.
Ao longo dos anos 1970, com a inauguração do Teatro Paiol e as ações públicas
da recém criada Fundação Cultural de Curitiba, propagou-se o mito enviesado de que
o público curitibano seria mais exigente, nos campos do teatro e da música, que a
média do público nacional. Partilhando dessa ideia, que confundia frieza e
acanhamento com requinte estético, um dos entrevistados chegou a acusar os
organizadores do VI Encontro de falta de pesquisa e planejamento. Na sua opinião,
os curitibanos “têm informação” e conhecimento “pró-música”, e para adequar-se a
esse público, seria necessário saber “como as pessoas de Curitiba reagem às coisas”.
Por outras palavras, “vocês deviam ter feito alguma pesquisa”, e “a partir desses
dados vocês não deveriam colocar [essa música] como foi colocado”. Do modo como
foi feito, “as reações serão piores”, concluiu, sem no entanto explicar se afinal
Vexations estaria aquém ou além dos “exigentes” ouvidos curitibanos 92.
Seja como for, o fato é que boa parte do público de Vexations se sentiu
realmente incomodada diante do “eficiente e às vezes odiado sistema de alto-
89
Idem, ibidem.
90
Idem, ibidem.
91
Idem, ibidem.
92
Semana de Arte Moderna. Op. cit.
214
falantes distribuídos pela área central” 93. Para um dos entrevistados, a performance
“está provocando um impacto. Algumas pessoas estão um pouquinho chocadas”.
Para outra, uma senhora, “a cidade nunca esteve tão perturbada como nesses
últimos dias, mas isto já é demais”94. Mais que a repetição, era a própria estranheza
da composição repetida que garantia o enfado de muitos. “Se tocada das 6 horas à
meia noite”, confessou alguém, “a gente enjoa da música”. “Agora, tem exceção”,
ponderou. “Por exemplo, se você tocar uma música suave, daquela mais romântica,
isso vai ajudar”. O padrão cromático e quase indiferenciado de Vexations, com suas
notas marcadamente espaçadas, parecia magoar o espírito daqueles que,
submetidos a muitas horas de execução contínua, não tinham como se afastar da
Boca Maldita. “Eu estou trabalhando”, enfatizou um entrevistado, “e aquela música
tom-tom-tom-tom”95.
Exposto à interpretação “desde as 9 horas” da manhã, um depoente,
identificado como coordenador de curso da Fundação Teatro Guaíra, deu sua opinião
sincera: “Não acho bom, não, porque é tudo a mesma coisa. É de encher a medida.
Aquela música batendo o dia todo ali. Vou dizer uma coisa: é uma dor de barriga
certa”. Depois de algum tempo, o acúmulo excessivo de notas insuficientemente
diferenciadas – “tom-tom-tom-tom” – funcionava como um protocolo monótono,
algo como uma torneira mal fechada cujos pingos não tardariam a transbordar nas
emoções dos ouvintes. “O que eu estou achando”, respondeu um entrevistado
furioso, “é que o que vocês estão conseguindo é encher o saco do pessoal” 96. “Nós
ficamos dezoito ou vinte e quatro horas” ouvindo a mesma música, exagerou o
artista Elvo Damo, reforçando o efeito do excesso de repetição. “Então foi aquela
merda: tim tom-tom, tim tom-tom-tom-tom, lá no fundo. Foi uma encheção de saco.
O pessoal não gostou, criticou. O pessoal foi lá pedir pra parar. Gente reclamando,
pessoal de loja reclamando. Foi uma reclamação geral”97.
93
A terapia da música. Op. cit.
94
Apud O som hipnótico, o barro, o xadrez, etc. Op. cit.
95
Semana de Arte Moderna. Op. cit.
96
Idem, ibidem.
97
DAMO, Elvo Benito. Entrevista a Artur Freitas. Op. cit.
215
Comerciantes em fúria
Por outro lado, é significativo perceber que as reações mais enfurecidas não
partiram dos transeuntes, mas sim de alguns comerciantes que trabalhavam nas
proximidades do evento. E isso por dois motivos. Primeiro, porque os lojistas da
região ficaram muito tempo expostos aos efeitos da execução contínua de Vexations,
ao contrário dos simples passantes, que podiam escolher se ficavam por perto ou se
iam embora. Mas além disso, a questão central era que, com a partida de muitos
clientes potenciais, o movimento comercial das redondezas acabou sendo
negativamente afetado. De acordo com uma reportagem, a apresentação musical
“não agradou alguns dos que mantêm estabelecimentos comerciais na zona central,
principalmente bares e lanchonetes da Boca Maldita, que, segundo as garçonetes,
98
Semana de Arte Moderna. Op. cit.
99
[Sem título], texto manuscrito, folha única, s.d. [1974] (MAC-PR).
100
Semana de Arte Moderna. Op. cit.
216
101
A terapia da música. Op. cit.
102
O som hipnótico, o barro, o xadrez, etc. Op. cit.
103
Semana de Arte Moderna. Op. cit.
104
MILLARCH, Aramis. A cidade & a música, Estado do Paraná, Curitiba, 03 set. 1974
105
Idem, ibidem.
106
[BEDA]. 6º Encontro, texto manuscrito e assinado, duas folhas, s.d. [1974] (MAC-PR).
107
MILLARCH, Aramis. A cidade & a música. Op. cit.
217
Não entendo nada de música, apesar de chamar-me Wagner. Não sei os objetivos deste
experimento que homenageia Duchamp, mas exponho minhas impressões, após duas
horas de audição. Nos primeiros quinze minutos, a música, para mim, que me encontrava
no centro da cidade, estava simplesmente irritante e insuportável. Manifestei protesto a
alguns amigos. Uma hora depois, senti uma sensação de indiferença – não mais me
incomodei. Uma hora e trinta minutos depois, comecei a gostar. Duas horas depois: a)
encontro-me calmo, em lugares distantes – talvez em outros lugares, b) esqueço dos
problemas do dia a dia, c) apresento vontade de me comunicar, d) gosto da música e
sentiria muito se ela parasse112.
108
O som hipnótico, o barro, o xadrez, etc. Op. cit.
109
Idem, ibidem.
110
BINI, Fernando. Entrevista a Artur Freitas, Curitiba, 05 dez. 2002.
111
A terapia da música. Op. cit.
112
WAGNER. Texto manuscrito, sem título, folha única, s.d. [1974] (MAC-PR). Com ligeiras alterações,
o depoimento de Wagner foi transcrito nas seguintes reportagens: A terapia da música. Op. cit; O som
hipnótico, o barro, o xadrez, etc. Op. cit.
218
113
DEWEY, John. Arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010 [1925-1953], p. 109-110.
114
WAGNER. Op. cit.
115
Idem, ibidem.
219
116
Idem, ibidem.
117
Wagner apud Semana de Arte Moderna. Op. cit.
220
Das vanguardas históricas dos anos 1910 e 1920 às novas vanguardas dos anos
1960 e 1970, a combinação de signos heterogêneos tornou-se um dos traços
determinantes da produção artística experimental. Nesse meio tempo, o princípio da
montagem se generalizou, assumindo diversas formas, que, não obstante a própria
diversidade, tenderam a se concentrar em pelo menos quatro modos básicos.
Constituído de montagens simultâneas realizadas no espaço bidimensional, o
primeiro modo é perceptível tanto nos papiers collés cubistas, quanto nas
fotomontagens de artistas como John Heartfield. Já o segundo modo diz respeito às
montagens simultâneas no espaço tridimensional, como no caso das assemblages em
geral e dos objets trouvé surrealistas, assim como dos environments e demais
procedimentos instalacionais. Marcado pela alternância linear de imagens ou gestos,
o terceiro modo, por sua vez, consiste em montagens sequenciais no tempo,
exemplificadas na filmografia de vanguarda e na videoarte, bem como em certas
118
ADORNO, Theodor. Teoria estética. São Paulo: Martins Fontes, 1982 [1970], p. 177.
119
Idem, ibidem.
120
BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. São Paulo: Cosac Naify, 2012 [1974], p. 137-138.
221
121
Jocy de Oliveira apud Jocy faz a história, Diário do Paraná, Curitiba, 31 ago. 1974.
223
O curso da história, tal como se apresenta sob o conceito de catástrofe, não pode dar ao
pensador mais ocupação que o caleidoscópio nas mãos de uma criança, para a qual, a
cada giro, toda ordenação sucumbe ante uma nova ordem. Essa imagem tem uma bem
fundada razão de ser. Os conceitos dos dominantes foram sempre o espelho graças ao
qual se realizava a imagem de uma “ordem”123.
122
Idem, ibidem.
123
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 154.
124
DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2011 [2000], p.
186.
125
Idem, ibidem, p. 204.
224
126
CHEREM, Rosângela; KIELWAGEN, Jefferson. Renitências da imagem, XVIII Seminário de Iniciação
Científica da UDESC, UDESC, Florianópolis, 2008, p. 04-05.
127
DIDI-HUBERMAN, Georges. Op. cit, p. 211.
225
Paulo Reis
1
BESSA, M. S. Os perigosos: autobiografias e AIDS. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002, p. 10.
227
políticos. Neste ensaio2, será focada uma discussão pontual gerada pela produção de
artes visuais ligada à epidemia, primeiramente no contexto estadunidense,
envolvendo suas diferentes representações, e posteriormente trazendo uma
discussão mais específica de linguagem em algumas propostas dos artistas brasileiros
Rafael França e Leonilson. Passados mais de trinta anos das primeiras notícias da
epidemia, certas pesquisas artísticas nos ajudam a compreender de maneira mais
profunda uma época. Essas pesquisas persistem na atualidade em decorrência de
seus debates reflexivos mais amplos sobre a arte contemporânea, nas múltiplas
pesquisas de linguagem e nas relações entre a arte e a sociedade.
As fotografias foram algumas das primeiras representações que deram uma
visibilidade pública mais geral à crise da aids e às pessoas por ela afetadas. Em 1988,
foi mostrada no Museu de Arte Moderna de Nova York a exposição intitulada Nicholas
Nixon: pictures of people (Nicholas Nixon: retratos de pessoas), realizada pelo
fotógrafo Nicholas Nixon, com textos e pesquisa de Bebe Nixon. A exposição era
constituída por cinco segmentos, sendo um deles parte de uma pesquisa in progress
do fotógrafo intitulada People with AIDS (Pessoas com aids). A exposição foi a
primeira a mostrar em uma das instituições mais influentes da arte a questão da aids
por meio do olhar foto-jornalístico de Nicholas Nixon ao focar, em um de seus
segmentos, pessoas afetadas pela doença. A exposição gerou um grande impacto
junto ao público e à crítica por sua contundência e, com isso, sofreu críticas, em
grande medida partindo do grupo norte-americano de luta e conscientização da aids
ACT-UP3. A maior crítica realizada por esse grupo devia-se ao fato da exposição
apresentar apenas um lado da epidemia, ou seja, os aspectos ligados a seu
sofrimento, debilidade física, estado de abandono das pessoas afetadas e,
2
A elaboração deste texto remonta a outros textos de minha autoria: ao capítulo final da dissertação
de mestrado A construção do desenho – sujeito, temporalidade e cartografias em Leonilson (1998), ao
texto Imagens soropositivas, publicado no jornal Gazeta do Povo (1998), e a um artigo para um
catálogo nunca publicado (2011).
3
O ACT-UP (AIDS Coalition to Unleash Power) é um grupo civil formado em 1987 inicialmente sediado
em Nova York e criado pelo ativista Larry Kramer na Era Reagan para lutar politicamente pelas
condições de tratamento, prevenção e atendimento a pessoas com AIDS.
228
4
ATKINS, R.; SOKOLOWSKI, T. W. From media to metaphor. Nova York: Independente Curators
Incorporated, 1991, p. 50.
5
GOTT, T. (org.). Don't leave me this way: art in the age of aids. Canberra: National Gallery of Australia,
1994, p. 215.
6
REID, C. Beyond mourning. Art in America. Nova York, vol. 78, nº 4, april, 1990, p. 50-57.
7
GOLDIN, N. Witnesses: against our vanishing. Nova York: Artists Space, 1989, p. 5.
229
(...) as questões de ver e lembrar adquirem uma significância especial em relação à AIDS,
uma vez que muitos daqueles que morreram eram de alguma maneira, invisíveis em suas
vidas, vistas na perspectiva da ordem normativa da sociedade heterossexual8.
8
GOTT, T. (org.). p. 57.
230
9
TAGER, A. La abstracción del sida. Revista Poliester, vol. 3, nº. 9, Mexico, verano 1994, p. 9-19.
10
Usa-se o conceito de comprometimento da arte para sublinhar a multiplicidade de relações críticas
possíveis entre as artes visuais e o contexto social e político, ao invés do conceito histórico de
engajamento da arte. Este último, mais fechado em termos de uma estética tradicional marxista, não
prevê a experimentação da própria linguagem. Também opta-se pelo conceito de comprometimento
pelo fato de que num dos livros sobre o engajamento da arte (“O que é a literatura?” de Jean-Paul
Sartre), nem a linguagem da música ou das artes visuais são previstas como manifestações artísticas
passíveis de um posicionamento crítico político, cabendo apenas à literatura tal papel.
11
O grupo 3NÓS3, formado por Mario Ramiro, Hudinilson Jr. e Rafael França, realizou uma série de
ações urbanas na cidade de São Paulo no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, que eram
denominadas de “interversões”.
12
COSTA, H. (org.). Sem medo da vertigem. São Paulo: Marca d´Água, 1997.
231
barbas cortadas e os relógios no pulso dos dois amantes, que são Rafael França e seu
companheiro, Geraldo Rivello13. Ao começar a música, uma ária do terceiro ato da
ópera La Traviata de Giuseppe Verdi cantada por Bydu Saião14, deixa-se evidente o
drama que envolvia os dois homens. Nesse momento, o preto e branco das imagens
dá lugar ao colorido. Em seguida, sobrepostos aos dois amantes, passam pela tela
diversos nomes de homens que, mesmo não sendo informado, sabe-se que
morreram em decorrência da aids, entre eles, o do ator e diretor de teatro Luiz
Roberto Galizia (1954-1985). Terminada a ária, aparece em uma tela negra a frase
“above all they had no fear of vertigo” (acima de tudo, eles não tinham medo da
vertigem). Após essa afirmação, o vídeo finaliza com a imagem de Rafael ao som da
potente guitarra da canção Day of the eagle, do cantor Robin Trower, e a passagem
dos créditos.
Rafael França sobrepôs, no vídeo Prelude to an announced death, o drama
pessoal ao drama coletivo. O procedimento da colagem de linguagens, música,
imagens e palavras sublinhou o vídeo como uma alegoria à aids. Fundiu-se o que era
da ordem do privado, o afeto entre os amantes e a proximidade da morte, ao que é
público, “os nomes de todos os amigos brasileiros e norte-americanos que foram
vitimados pela AIDS”15. O artista David Wojnarowicz afirmara que, ao ser informado
que contraíra o vírus, “não demorou muito para dar-me conta que eu contraíra uma
doença social”16. E dessa forma o atravessamento entre o íntimo e o público, ou
social, caracterizou fortemente a poética dos artistas envolvidos com uma produção
artística comprometida com a epidemia. Rafael França, cuja pesquisa artística já
estivera ligada à ocupação do espaço público urbano em um momento de
redemocratização do país, tramou conceitualmente esse vídeo como um testamento
de caráter pessoal e ao mesmo tempo coletivo. O afeto entre os amantes descolava-
se do estritamente subjetivo ao fundir-se ao drama literário-musical dos amantes da
13
COSTA, H. (org.), p. 78.
14
A ária Addio del passato apresenta o lamento da personagem Violetta, doente e debilitada, portando
a carta de arrependimento, já tardia, do pai de seu amante Alfredo. Violetta e Alfredo formam o par
romântico da história, baseada no romance “A Dama das Camélias” de Alexandre Dumas.
15
COSTA, H. (org.), p. 78.
16
GOLDIN, N., p. 7.
232
ópera La Traviata. A lista de nomes que percorre a superfície da imagem dos dois
homens trocando carícias, tendo ao fundo a ária cantada por Bidu Sayão, não se
constituía em um obituário factual, mas em um memorial pungente de uma geração,
da qual fazia parte Rafael. Essa geração enfrentou o impacto de suas vidas
transformadas e produziu artisticamente afirmações sensíveis fundadas no
comprometimento estético-político.
A obra do artista José Leonilson funda-se, entre tantas leituras possíveis,
também numa poética fundada por um trânsito entre o que é da ordem do privado e
do público, na fricção entre sujeito e mundo, estabelecida em uma relação quase
sempre mediada pelo desejo amoroso, ora difuso, ora pontual, que se move entre a
potência de realizar-se e o voltar-se a si. E, de forma geral, pode-se afirmar que
praticamente toda a discussão de visualidade proposta pelo artista em seus últimos
trabalhos configurou-se também como uma reflexão complexa sobre o olhar, uma
resposta veemente à crise da aids, à sua condição de soropositivo e à vida nacional 17.
Já no ano de 1985, a obra “Sem título” (desenho e pintura sobre página dupla do
Jornal da Tarde – SP) anunciava uma preocupação do artista com o aparecimento da
aids. Em uma folha de jornal que anunciava em sua manchete “AIDS – a doença
mortal que assusta o mundo”, havia um posicionamento sobre a cadeia midiática
sensacionalista de informações a respeito da epidemia. O desafio da vertigem foi
aposta desde cedo em Leonilson e Rafael.
Um prosaico espelho vendido em camelôs, com a moldura de madeira na cor
laranja e recoberto com um tecido listrado, constitui um dos mais importantes
trabalhos da trajetória de Leonilson. A obra em questão é o autorretrato El Puerto
(bordado sobre tecido sobre espelho, 23x18cm, 1992, col. Família Bezerra Dias) e se
apresenta em um espelho velado por uma pequena cortina de tecido de listras verdes
bordada com o nome do artista, a idade, o peso, a altura e o título da obra. No título
do trabalho, está a indicação de um lugar, o porto, e sobre ele discorreu Leonilson:
17
Um olhar concernente com a crise ética-social do Brasil alinhavou os desenhos realizados para a
coluna da jornalista Barbara Gancia no jornal Folha de São Paulo e publicados entre os anos de 1991 e
1993.
233
O porto recebe. O Leo com 35 anos, 60 quilos e 1,79 metro é um porto que fica
recebendo. Acho que hoje eu recebo muito mais do que dou, porque preciso canalizar
minhas energias para minha intimidade. É isso, simplesmente. Precisava fazer um objeto
com estas características para mim18.
18
LAGNADO, L. Leonilson: são tantas as verdades. São Paulo: Projeto Leonilson/SESI, 1995. p. 99-100.
234
19
Revista Veja, n. 1.077, 26 abr. 1986 (Editora Abril).
235
Rosane Kaminski
1 WOOD, James. Como funciona a ficção. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 63. O caráter de
exemplaridade das experiências estéticas diante da vida é assunto amplamente discutido pelo filósofo
francês Jacques Rancière, em obras como: A partilha do sensível; O inconsciente estético; e O Espectador
Emancipado.
2 L.C.O. O provocador das palavras e das imagens. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30.07.2001, p. 4
3 Em 1971, Arthur Omar realizou seus primeiros curtas-metragens em 35 mm, Serafim Ponte Grande e
Sumidades Carnavalescas. Em 1972, realizou o curta O Congo, e em 1974 o longa Triste trópico, filmes
que se destacaram pelo experimentalismo de linguagem. Nos anos seguintes, produziu: O anno de 1798
(1975), Tesouro da Juventude (1977), Vocês (1979), Música Barroca Mineira (1981), O Som ou tratado da
harmonia (1984). Nesse ano se aproximou do vídeo e produziu nessa bitola: Tony Cragg in/no Rio (1984)
e O nervo de prata (1987). Em 1988 produziu os curtas O Inspetor e Ressurreição, ambos em 35mm.
Depois disso, dedicou-se ao vídeo, à videoinstalação, fotografia, instalações sonoras, entre outros
237
em especial a do documentário; por outro, aos assuntos que discute em cada uma de
suas obras. Nesse sentido, quanto ao conjunto de seus filmes, e de um modo amplo,
percebe-se que o cineasta maneja uma série de elementos referentes às ideias de
brasilidade, cultura brasileira, identidade, sempre de uma forma pouco usual, ou seja,
subvertendo estereótipos e sem traçar considerações explicativas. Suas obras são
construções caleidoscópicas que misturam fragmentos “capturados” do cotidiano
com elementos narrativos ficcionais, trabalhados num tipo de montagem
perturbadora, opaca e densa.
A atitude fílmica de Arthur Omar é coerente com a observação de Silvio Da-Rin
de que desde os anos 1970, ao menos, alguns autores “vêm identificando no
documentário uma tendência a adotar estratégias anti-ilusionistas, mostrando a obra
como produto, remetendo a uma instância produtora e desnudando seu processo de
produção”4, engajando-se num “metacomentário sobre os mecanismos que dão
forma” ao argumento desenvolvido num filme. Da-rin destaca o caráter auto
reflexivo desse tipo de filme, no sentido já apontado por Bill Nichols quanto a um
“modo reflexivo de representação”, que “assimila os mais diversos recursos
retóricos desenvolvidos ao longo da história do documentário e produz uma inflexão
deles sobre si mesmos, problematizando suas limitações”5.
Vários estudiosos sobre o cinema brasileiro já destacaram características
provocativas nos filmes de Arthur Omar. No texto “A voz do outro”, publicado por
Jean-Claude Bernardet em 1979, ao apontar atitudes de ruptura no documentário
brasileiro a partir de filmes que o “perturbaram e modificaram” nos anos 1970, o
autor enfatizou o curta-metragem O Congo, feito por Arthur Omar em 1972. Bernardet
considerou o filme O Congo “paradoxal por não fornecer ao espectador o que ele
anuncia”6. Omar aborda um assunto recorrente no cinema de curta-metragem,
referente à cultura popular, mas sem apresentar nenhuma imagem sobre a temática
tipos de obras multimidiáticas. É artista e cineasta atuante até hoje, e também escreve ensaios
estéticos e poéticos.
4
DA-RIN, Sílvio. Auto-reflexividade no documentário. Cinemais nº7, Rio de Janeiro: set/out. 1997, p. 73.
5
Ibidem, p. 74
6
BERNARDET, Jean-Claude. A voz do outro. In: AVELLAR, José Carlos; BERNARDET, Jean-Claude;
MONTEIRO, Ronald. Anos 70. Cinema. Rio de Janeiro, Europa, 1979, p. 7.
238
7
Ibidem, p.10.
8
Jean-Claude Bernardet mencionou também outros autores que apontavam para a multiplicidade da
realidade ao longo dos anos 1970 por meio de seus filmes, ainda que com propostas bem distintas
entre si. Por exemplo: Antônio Manuel, Glauber Rocha, Juana dos Santos, Aluísio Raulino, João Batista
de Andrade e Vladimir de Carvalho. Além desse texto, há outros em que Bernardet fallou do caráter
de “pesquisa radical” nos documentários de Omar, como: BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e
imagens do povo. São Paulo: Brasiliense, 1985; e ainda “A pornochanchada contra a cultura ‘culta’”,
publicado originalmente em 1974 no jornal Opinião, sob pseudônimo, e atualmente disponível em:
Cinema Brasileiro: propostas para uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 210-215.
9
XAVIER, Ismail. Do golpe militar à abertura: a resposta do cinema de autor. In: O desafio do cinema: a
política do Estado e a política dos autores. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 34. Ao falar de um
“metacinema”, Xavier referiu-se ao trabalho experimental e consciente de alguns cineastas sobre as
“experiências já empilhadas”, tornando mais explícito o diálogo com o repertório cinematográfico, e
“discutindo o cinema dentro do cinema”. Mencionou filmes de Júlio Bressane, Glauber Rocha, Arthur
Omar e Rogério Sganzerla, entre outros.
10
VIEIRA, João Luiz. A reflexividade na tela. Cinemais, Rio de Janeiro, n. 30, jul-ago 2001. “Este ensaio
foi originalmente publicado no catálogo da Quarta Mostra Curta Cinema, realizada no Rio de Janeiro,
Centro Cultural Banco do Brasil, e Niterói, Cine Arte-Uff, de 6 a 11 de dezembro de 1994. Escrito nesse
ano, propunha uma prática comum na crítica brasileira ao desenvolver um panorama e um balanço da
produção de curtas-metragens na década de 80, mapeando os diversos caminhos tomados pelo
239
cinema reflexivo ‘de citação’, marca incontestável de uma época e de uma geração de jovens
realizadores”. Texto completo disponível em: www.vivacine.org.br/site/textos/ver/?id=8
11
DA-RIN, Sílvio. Op. cit., p. 75-76.
12
RAMOS, Guiomar. O espaço fílmico sonoro em Arthur Omar. Dissertação de Mestrado. SP: USP, 1995,
p. 23-24. A autora identifica um primeiro momento de “negação do documentário padrão” (filmes de
1972 até 1975), em que a estrutura do documentário padrão está presente, mas de forma desconexa,
nonsense e constantemente ironizada; seguida de um segundo momento de composição fílmica mais
abstrata, sem referência a um tema, e nos quais não se observa mais o confronto com a estrutura do
cinema documental (filmes de 1977 a 1979). As experiências de desconstrução dos documentários no
primeiro momento e o aprofundamento das relações entre sons e imagens nos filmes que se seguiram,
conduzem, de acordo com Ramos, a um terceiro momento da obra de Omar, marcado pela busca de
produção de sentido numa relação positiva com o tema proposto (filmes de 1981 e 1984). Nota-se,
240
nesse momento, uma presença “modificada” do documentário. Guiomar Ramos realiza uma análise
detalhada dos filmes que compõem esses três momentos da produção fílmica de Arthur Omar, que
pode ser lida nas páginas 29 a 53 de sua dissertação de mestrado. Também publicou uma boa síntese
desse assunto em: RAMOS, Guiomar. O documentário como fonte para o experimental no cinema de
Arthur Omar. In: TEIXEIRA, Francisco E. (org.). Documentário no Brasil: tradição e transformação. São
Paulo: Summus, 2004.
13
RAMOS, Guiomar. Documentários experimentais? In: MACHADO, R. Jr.; SOARES, R. de L.; ARAÚJO,
L. C. (orgs.) Estudos de Cinema SOCINE VII. São Paulo: Annablume, Socine, 2006, p.265-271. A autora
discute “o momento em que o formato experimental se interliga ao formato documentário” e o
exemplifica a partir de quatro filmes feitos na década de 1970, entre os quais está O Congo.
14
OMAR, Arthur. O antidocumentário, provisoriamente. Cinemais, nº7, Rio de Janeiro: set/out. 1997, p.
202. Obs: Este texto foi publicado pela primeira vez em 1978 na Revista Vozes nº 72, p. 405-418.
15
PIMENTEL, M. Arthur Omar: corpo, tempo e experiência. Dissertação de Mestrado em História Social
da Cultura. PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2004, p. 11.
16
Ibidem, p. 14. A autora argumenta que a diferença de uma fase para outra implica “na maneira pela
qual o cineasta vai articular a problemática do falso em seus filmes, problemática ontológica decerto,
que vai influir diretamente na forma como o tempo vai ser trabalhado em seus filmes. Se num primeiro
momento o falso será articulado a partir de um embate entre ficção e realidade, fazendo com que
esses dois planos apareçam sempre embaralhados e indiscerníveis, onde o mesmo é pensado em
oposição à identidade como não identidade - temporalidade crônica -, num segundo momento essa
241
No entanto, apesar desta divisão em fases feita por Pimentel, considero que ao
produzir o filme O Inspetor a relação de Arthur Omar com o documentário
estabelecia-se ainda naquela dinâmica positiva observada por Guiomar, dentro da
qual o tema pôde ser desenvolvido, mesmo que observemos um confronto entre os
elementos fílmicos representativos do universo temático, dispostos em múltiplas
ramificações de significados possíveis através de uma narrativa estranha e de uma
montagem perturbadora. Ao mesmo tempo, pode-se dizer – se aceitarmos as fases
propostas por Pimentel – que este filme, juntamente com o Ressurreição, marcou um
momento de transição e de desdobramento na trajetória autoral de Omar, indo do
cinema para outros suportes, embora sem abandonar sua postura questionadora
quanto ao caráter paradoxal de incompletude e de complexidade sígnica do
audiovisual.
dicotomia se desfaz em favor de uma terceira instância, a fabulação, de modo que o falso desponta
como potência criadora - imagem-tempo”. Ibidem, p. 18.
17
No banco de dados da Cinemateca Brasileira, aparecem as seguintes informações sobre o filme: O
Inspetor, 1987. 11 minutos, 35 mm. Argumento, roteiro, narração, trilha musical, som direto: Arthur
Omar. Elenco: Jamil Warwar. Direção de Fotografia: Walter Carvalho. Assistência de fotografia: Carlos
Azambuja. Montagem: Aída Marques. Efeitos Sonoros: Geraldo José. Produtora: Melopeia/Cortex. Co-
produtora: Embrafilme. No entanto, como a exibição do filme começou a ocorrer em 1988, e como o
material de divulgação sobre o filme que acessei até este momento atribui essa data à produção do
filme, assumo-a aqui.
242
18
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 124-184.
19
AHMED, Flávio Villela. Dois curtas de Omar. Cine Imaginário nº 35, outubro de 1988, p. 7.
20
PIMENTEL, Mariana. Op. cit., p. 29.
243
Todos os elementos que foram descritos até aqui apontam para a temática do
filme: violência, tráfico, Brasil, universo da ação policial, e o próprio detetive Jamil
Warwar. Mas também para o universo do filme em si e da encenação: um universo de
“falseamento de identidade”, que condiz com o perfil do detetive, conhecido por
usar disfarces.
O tema primário, pode-se dizer, é a atuação do detetive Jamil Warwar na polícia
do Rio de Janeiro, no combate ao tráfico e desvendamento de casos de homicídios.
Mas envolve outras questões, como a relação entre real e ficção tanto na atuação do
detetive (que também foi ator de fotonovelas, como anunciado na terceira parte do
filme), quanto na edificação de um documentário experimental. O primeiro ponto
que remete a essa questão, é a presença de Jamil Warwar “representando a si
mesmo”. Não se trata de apresentar fragmentos de entrevistas feitos pelo diretor
com o detetive, como se esperaria de um documentário convencional. Mas de vê-lo
travestindo-se diante da câmera, ou encenando a própria ação de refletir sobre os
indícios que tinha ao seu alcance num determinado caso a solucionar ou, ainda, lendo
um trecho do livro escrito por ele mesmo, para remeter à violência policial e a
“opinião pública iludida”. Um segundo ponto, é a insistência em estabelecer
comparações entre o trabalho do inspetor e o trabalho de um artista. Isso é feito pela
voz do narrador, naquela remissão aos seguidores de Brecht, e pela voz off de
246
Warwar, quando ele mesmo diz que “O policial tem que ter um pouco de artista nas
suas encenações para poder penetrar no mundo do crime sem levantar suspeita” 23.
E um terceiro ponto referente a essa questão, é a forma de insinuar a condição
inapreensível da verdade, bem como a impossibilidade de imprimir uma única face
para o Inspetor. A ambiguidade na construção de sentidos, o caráter fugidio das
noções de verdade e autenticidade, as múltiplas tinturas entre o bem e o mal, a
opinião pública iludida, são ideias que pontuam o filme desde a primeira frase até o
final do curta-metragem.
Quando Warwar aparece em imagem pela primeira vez, está ao lado de uma
viatura policial com a sirene ligada, vestindo uma jaqueta. Ele despreza a presença da
câmera, enquanto o narrador afirma: “O inspetor tinha mil faces mas nenhuma delas
se imprimia no espelho”. Nova cena, e Warwar está fantasiado de padre, numa praça,
dando milho aos pombos. Agora é sua voz que ouvimos, falando em primeira pessoa:
23
Sobre isso, sugiro a leitura do artigo: GUÉRON, Rodrigo. “O Inspetor” de Arthur Omar: fabulação e
gestus. Estudos da Língua(gem). Vitória da Conquista v. 12, n. 1 p. 157-173 junho de 2014. Guéron diz que
“Jamil se tornou um personagem midiático: um personagem criador de personagens que virou,
exatamente por isso, um personagem também” (p. 158). Diz ainda: “De fato, um detetive de polícia é
já um “papel” que se assume: um personagem. Warwar, como sabemos, é um detetive criador de
personagens – os disfarces –, e que pelas suas performances como policial se torna ele mesmo um
personagem midiático frequente nas manchetes de jornais a ponto, inclusive, de ser convidado a
participar como ator em fotonovelas onde ele protagoniza um personagem de um policial: o
“inspetor” propriamente dito. São as múltiplas fabulações de Warwar que jogam o próprio Omar em
suas múltiplas fabulações” (p. 167).
247
“Desde garoto eu sempre tive o ideal de ser policial”. Mas será de frente para a
câmera que ele se apresentará objetivamente, na sequência seguinte: “Meu nome é
Jamil Warwar. Estou na polícia desde 1963”. O ambiente é um suposto “salão de
processos” extremamente precário, com letreiro escrito à mão, o que insinua as
condições toscas de trabalho da Polícia num país de tantos contrastes.
24
Cláudia Lessin Rodrigues, 21 anos, foi morta em 24 de julho de 1977. Seu corpo foi encontrado dois
dias depois, nas pedras do Chapéu dos Pescadores, na Avenida Niemeyer. Ela estava nua e tinha um
saco cheio de pedras amarrado ao pescoço. Pela indicação de uma placa de carro, a polícia chegou aos
nomes de dois suspeitos que estavam com ela em uma festa na noite de seu desaparecimento: George
Khour e Michel Frank. Este fugiu para a Suíça e nunca foi julgado. O caso teve ampla repercussão na
mídia, e o inquérito se estendeu por vários anos. O afastamento “suspeito” de Jamil Warwar do caso
é mencionado no Programa do Globo Repórter que foi ao ar em 25 de julho de 1988, disponível em:
http://memoriaglobo.globo.com/programas/jornalismo/coberturas/claudia-lessin-morte/claudia-
lessin-morte-a-historia.htm
248
Esse caso, amplamente difundido pela mídia, nunca foi completamente esclarecido,
pois Michel Frank fugiu para a Suíça poucos dias após a morte de Cláudia. Os
depoimentos dos demais envolvidos eram confusos e vários deles “desapareceram”.
Dez anos depois, em 1987, o jornal carioca O Globo anunciava que os acusados ainda
não haviam sido julgados, estavam livres25. Nesse mesmo ano Arthur Omar iniciou a
produção do seu filme O Inspetor, com o qual trouxe novamente à tona a participação
de Warwar no desvendamento do crime, inicialmente pela própria verbalização do
investigador, mas também através de outros elementos.
Uma das cenas que remete ao caso do assassinato de Cláudia é aquela em que
vemos Warwar andando de um lado para o outro diante de uma espécie de fachada
de uma loja, sobre a qual vê-se um enorme letreiro em vermelho com o nome
“Claudia”. Ele mostra-se pensativo, com a mão no queixo, como se estivesse
concentrado tentando resolver um enigma. Representa a si mesmo em plena
atividade mental. Tais imagens são alternadas com fotografias documentais em
preto e branco, que mostram um homem abrindo, com as próprias mãos, a boca de
uma mulher deitada, como se fosse segurar a sua língua. Isso se relaciona com o
depoimento de Michel Frank em 1977, quando afirmou que Cláudia havia sofrido uma
overdose e que ele próprio tentara salvá-la puxando sua língua, pois “estava
enrolada, a ponta voltada para dentro, tapando-lhe a garganta”26. Logo em seguida,
25
Após dez anos, acusados ainda não foram julgados. O Globo. Matutina. Rio de Janeiro, 12 de julho de
1987, p. 27. Ver também: Estão livres acusados da morte de Cláudia. O Globo. Matutina. Rio de Janeiro,
31 de julho de 1987, p. 26.
26
Depoimento publicado em: O mistério vai acabar? Revista Veja, São Paulo, 7.09.1977, p. 31.
249
27
Um exemplo de fotonovela com a participação de Warwar é “Destino Fatal”, In: Sétimo Céu nº 264,
Editora Bloch, 1978. De acordo com Raquel de Barros Pinto Miguel, a “grande maioria das fotonovelas
publicadas nas revistas brasileiras era italiana ou francesa. A produção de uma fotonovela era bastante
onerosa, por este motivo as editoras brasileiras preferiam importá-las a produzi-las. Apenas a editora
Bloch produzia com regularidade suas próprias fotonovelas. Para tornar tal empreendimento
economicamente viável, a revista contava com a participação de ídolos da televisão em suas histórias,
assim como utilizava hotéis e restaurantes como cenário, fazendo merchandising, mesmo que
discreto, destes”. In: MIGUEL, Raquel de B. P. Fotonovelas e leitoras: um romance. AlcarSul 2014: Anais
do 5º Encontro Regional sul de História da Mídia. Florianópolis, UFSC, 2014.
28
Essa aproximação entre o inspetor e o cineasta é sugerida por Marcelo Leitão, que diz: “Ele próprio,
Arthur Omar, assim como o inspetor, utiliza disfarces (melhor: fantasias) menos para frequentar locais
indevassáveis do que para apurar os crimes cometidos entre fotógrafos, cineastas, videastas...”
LEITÃO, Marcelo Magalhães. Modulações em fuga: movimentos acerca de Arthur Omar. Dissertação em
Letras, PUC-RIO, 2003, p. 22.
250
Jamil Warwar como ator de fotonovelas. Imagens de O Inspetor (Arthur Omar, 1988)
29
GUÉRON, Rodrigo. Op. cit., p. 159.
30
KLEIN, Cristian. Trópicos no MOMA. Jornal do Brasil, 17/9/1999. Nessa matéria, afirma-se que Warwar
desvendou mais de 2 mil homicídios ao longo de sua carreira.
251
travestir, enquanto ele explicava os métodos de disfarce que costumava usar em suas
investigações.
Em seguida, são apresentadas imagens de armas de fogo em vários
enquadramentos rápidos, entre eles um close num revólver com o Selo Nacional e a
legenda “Exército Brasileiro”. A montagem sonora é complexa: a execução
instrumental de um hino, sons de tiros, efeitos de filmes de ação. Ao final, ouve-se a
exclamação “Até breve, inspetor!”, seguida de um grito, enquanto a câmera se
aproxima de um quadro numa fotonovela, em que Warwar beija a mocinha.
Após essa breve descrição do caráter geral do filme e de suas partes, pretendo
ainda situá-lo em relação ao seu contexto de produção, ou seja, os anos 1980 no
Brasil. Para tanto, ao estabelecer um percurso de reflexão, nas próximas páginas
serão destacados dois aspectos referentes àquela década: 1) O cenário
cinematográfico nacional, em especial no que tange à produção de curtas-
metragens; 2) As questões referentes à ampliação da violência, um dos mais
candentes problemas urbanos do período, que se articulava ao momento de crise e
à projeção de uma imagem negativa do Brasil.
31
Segundo Tonico Amâncio, “Durante os anos 1980 a Embrafilme enfrentou a crise econômica e a
reorganização e redemocratização da sociedade civil (com a Anistia e as Diretas-Já) reduzindo o
número de filmes produzidos”, além disso “O aumento galopante da inflação fez com que os
orçamentos se tornassem problemáticos, exigindo reajustes constantes.” AMÂNCIO, Tonico. Pacto
cinema-Estado: os anos Embrafilme. Alceu, v. 8, n. 15, jul./dez. 2007, p. 180.
32
CESAR FILHO, Francisco e SAMPAIO, Rafael. Anos 80: cinema e vídeo. Catálogo. Centro Cultural Banco
do Brasil. São Paulo, 19 de fevereiro a 7 de março de 2010, p. 5.
33
Ibidem. Na mostra Anos 80: cinema e vídeo não foram incluídos filmes de Omar. No entanto, foram
exibidos diversos curtas em 35 mm que são contemporâneos ao O Inspetor, entre os quais: Queremos
as ondas do ar! (Tata Amaral e Francisco Cesar Filho, 1987, 11 min); História familiar (Tata Amaral, 1988,
11 min); Rock paulista (Anna Muylaert, 1988, 11 min); Caramujo-flor (Joel Pizzini, 1988, 21 min); A mulher
do atirador de facas (Nilson Villas Bôas, 1988, 11 min); Ilha das flores (Jorge Furtado, 1989, 12 min); e Pós-
modernidade (Mirella Martinelli, 15 min).
34
O Inspetor foi contemplado com os seguintes prêmios: Melhor montagem no Festival de Brasília em
1988; Prêmio Leon Hirzman, da Fidalc, no FestRio, 1988; Prêmio Joaquim Pedro de Andrade do
Governo do Estado do Rio de Janeiro de Melhor Curta de 1988; Troféu Muiraquitã de Melhor Curta
Metragem de 1988.
253
da Imagem e do Som de São Paulo, com curadoria de João Luiz Vieira e Amir Labaki35.
Já desde alguns anos antes desse festival no MIS de São Paulo, João Luiz Vieira vinha
assumindo papel importante na construção da visibilidade internacional dos filmes
de Omar, intermediando, enquanto diretor da Cinemateca do MAM do Rio de Janeiro,
a participação do cineasta numa mostra em Toronto e outra no Museu de Arte
Moderna (MoMA) de Nova York36.
Em 1994, num texto escrito para o catálogo da Quarta Mostra Curta Cinema,
realizada no Rio de Janeiro e em Niterói, Vieira comentou essa visibilidade que o
curta-metragem experimental conquistara ao longo dos anos 1980, em meio à crise
do cinema brasileiro que, segundo ele, vinha se delineando “quando os governos
Figueiredo e Sarney iniciaram a retirada gradual do apoio do Estado à cultura,
radicalizada, no caso do cinema, a partir da omissão federal frente ao vazio criado
com a falência do modelo Embrafilme”37, apesar da criação de um Ministério da
Cultura em 1985 e da Lei Sarney em 198638.
Além disso, nos anos 1980 também foi constatado um afastamento do público
das salas de cinema (geralmente atribuído à concorrência da televisão e à crise
35
CARVALHOSA, Zita. Sem título. In: IV São Paulo Internacional Short Film Festival. Museu da Imagem e
do Som, São Paulo. 19 a 29 de agosto de 1993. Catálogo do festival.
36
“Levado pelo curador do Brasil no Congresso, o diretor da Cinemateca do Museu de Arte Moderna
do Rio, João Luiz Vieira, a mostra com onze curtas, quatro vídeos e um longa-metragem do cineasta
[Arthur Omar] foi a única que, divulgada pela imprensa e pelo ‘boca a boca’ local, mereceu um bis da
selecionadíssima plateia, que incluía desde o cineasta Stan Drakhage ao crítico do The New York Times,
Noel Carol.” REGO, Alita Sá. Cinema rolando quente. Última Hora. Rio de Janeiro, 06.07.1989. Ver
também: VIEIRA, João Luiz. Toronto/Nova York. Letras & Artes, Rio de Janeiro, ano IV, no 10, setembro
de 1990, p. 9; e MOCARZEL, Evaldo. Omar, um artista de múltiplas artes. Folha da tarde, 21.12.1989. Dez
anos depois, em 1999, Arthur Omar realizaria uma retrospectiva completa de seus trabalhos em
cinema e vídeo no MoMA, “tendo sido o primeiro latino-americano a receber esse convite”.
COCCHIARALE, Fernando. Sobre filmes de artista. In: Filmes de artista. Brasil 1965-80. Rio de Janeiro:
Contracapa / Metropolis, 2007. Catálogo da exposição realizada no Oi Futuro, Rio de Janeiro, de 1º de
maio a 17 de junho de 2007, com a curadoria de Fernando Cocchiarale, p. 72.
37
VIEIRA, João Luiz. A reflexividade na tela. Op. cit. A Quarta Mostra Curta Cinema aconteceu no Rio de
Janeiro, no Centro Cultural Banco do Brasil, e em Niterói, no Cine Arte-Uff, de 6 a 11 de dezembro de
1994.
38
Contraditoriamente, na gestão do presidente José Sarney se disfarçou esse desinteresse do governo
através do estabelecimento de um Ministério da Cultura, criado por meio do Decreto nº 91.144 em
15/3/1985 com o argumento de que “os assuntos da cultura nunca haviam sido objeto de uma política
consistente”. Entre os órgãos que compunham o novo ministério, figuravam o Conselho Nacional de
Cinema (Concine) e a Empresa Brasileira de filmes S.A (Embrafilme). Já a Lei Sarney (Lei 7.505, de
2/7/1986) foi criada na gestão do Ministro da Cultura Celso Furtado e concedia benefícios fiscais na
área do imposto de renda para operações de caráter artístico-cultural. Cf: CALEBRE, Lia. Políticas
culturais no Brasil: dos anos 1930 ao século XXI. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009, p. 99-101.
254
39
1986: mais público para novos cinemas. Filme Cultura nº 47, agosto, 1986, p. 128. A Filme Cultura era
uma revista publicada pela Embrafilme. Parou na edição nº 48, que seria publicada apenas em
novembro de 1988. Ou seja: a própria interrupção da revista já é parte da crise vivenciada pelo meio
cinematográfico brasileiro naquele momento.
40
VIEIRA, João Luiz. Op. cit.
41
Ibidem.
255
42
Ibidem.
43
BENTES, Ivana. Vídeo e cinema: rupturas, reações e hibridismo. In: MACHADO, Arlindo (org.). Made
in Brasil: três décadas de vídeo brasileiro. São Paulo: Iluminuras/Itaú Cultural, 2007, p. 119.
44
RAMOS, Guiomar. Documentários experimentais? Op. cit, p. 265-271. A autora aponta a produção de
documentários como uma das tendências observáveis no cinema brasileiro entre 1985-2005. Mas
questiona: que tipo de característica experimental há nesse tipo de cinema? Trabalha a questão
discutindo alguns filmes dos anos 1970, nos quais observa o formato experimental se interligando ao
formato documentário, conforme dito antes.
45
BENTES, Ivana. Op. cit., p. 115.
46
Os sistemas portáteis de gravação de vídeo só se tornaram disponíveis no Brasil entre 1979-80. O
videocassete de uso doméstico e suas pequenas câmeras com gravadores-reprodutores chega em
1982. Cf: FECHINE, Yara. O vídeo como um projeto utópico de televisão. In: MACHADO, Arlindo (org.).
Made in Brasil: três décadas de vídeo brasileiro. São Paulo: Iluminuras/Itaú Cultural, 2007, p. 87-88.
47
Ibidem, p. 95.
256
Festival de Cinema e Vídeo do Canadá (ocasião em que expôs onze curtas, quatro
vídeos e um longa-metragem), disse que o vídeo “revolucionou o ato de ver” 48.
Noutra matéria, se declarou “um apaixonado pelo vídeo, já que a mídia eletrônica
tem uma linguagem mais quente e mais febril, principalmente na hora da edição”, e
também afirmou a importância de “um cinema que fale sobre a realidade, o aqui-e-
agora com impacto e contemporaneidade, aguçando a sensibilidade do
telespectador sempre pelo excesso”49. Ao falar de “telespectador” na mesma frase
em que remetia ao tipo de cinema que aspirava, já denunciou a mescla de meios que
caracterizaria seus trabalhos posteriores, compostos de videoinstalações,
fotografias, instalações sonoras, etc. Para Christine Mello, Omar possui “papel
fundamental nos caminhos de hibridização na arte ao entrecruzar as linguagens da
fotografia, do cinema e do vídeo e tem um trabalho considerado dos mais densos na
potencialização dos sentidos da imagem”50.
Enfim, em diálogo com os debates estéticos envolvendo cinema e vídeo no
Brasil, sua postura questionadora sobre a linguagem e sobre a “função do cinema
dentro do real” é candente no curta-metragem O Inspetor. Pouco tempo após a
exibição deste curta em festivais, José Guimarães afirmou que “em O Inspetor Arthur
Omar aproveita alguns de seus achados em vídeo moldando-os segundo a métrica do
curta-metragem”; e que neste filme Omar “faz, desfaz e refaz o documentário em
forma de prosa-poética”, sendo capaz de “revelar o documentário pelo avesso;
mostrá-lo na sua essência como ficção pura e simples”51.
As observações do crítico demonstram coerência entre o produto fílmico e
aquele desejo enunciado por Omar de provocar reações e deslocamentos de sentidos
através de suas obras, desejo ao qual já me referi no início deste texto. Em O Inspetor
nota-se uma forma de remissão ao mundo fatual e próximo, ao escancaramento da
violência urbana, mas não por uma retórica expositiva ou descritiva, e sim por meio
48
PÉROLAS na mediocridade. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: 18.08.1989.
49
REGO, Alita Sá. Cinema rolando quente. Última Hora. Rio de Janeiro, 06.07.1989.
50
MELLO, Christine. Arte nas extremidades. In: MACHADO, Arlindo (org.). Made in Brasil: três décadas
de vídeo brasileiro. São Paulo: Iluminuras/Itaú Cultural, 2007, p. 155.
51
GUIMARÃES, José Claudio. As pernas cabeludas do polícia. Caderno de Crítica, n. 6, maio de 1989. p.
74-75.
257
Um universo de violências
52
VIEIRA, João Luiz. Op. cit.
53
Declaração de Arthur Omar para o jornal Última Hora. In: REGO, Alita Sá. Op. cit.
54
DELLASOPPA, Emilio; BERCOVICH, Alicia; ARRIAGA, Eduardo. Violência, direitos civis e democracia
no Brasil na década de 1980: o caso da Área Metropolitana do Rio de Janeiro. Revista Brasileira de
Ciências Sociais, Vol. 14 nº 39, fevereiro/1999, p. 156.
55
ZALUAR, Alba. Um debate disperso: violência e crime no Brasil da redemocratização. São Paulo em
Perspectiva, n. 13 (3), 1999, p. 9. Ver também a nota n. 7, p. 14. A autora afirma que no contexto urbano
258
“os pobres figuraram simultaneamente como protagonistas principais dos crimes violentos cometidos
e como vítimas preferenciais deles”. Ver p. 3.
56
Ibidem, p. 9. Ver também: SOUZA, Edinilsa Ramos. Homicídios no Brasil: O Grande Vilão da Saúde
Pública na Década de 80. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (supl. 1): 45-60, 1994; e SOUZA, Edinilsa
Ramos. Mortalidade por homicídios na década de 80: Brasil e capitais de regiões metropolitanas. Rio
de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1998.
57
ZALUAR, Alba. Para não dizer que não falei de samba, os enigmas da violência no Brasil. In:
SCHWARCZ, Lilia. (Org.). História da Vida Privada no Brasil, vol. IV. São Paulo: Companhia das Letras,
1998, p. 246.
58
De acordo com Minayo, “de 2% no total da mortalidade geral em 1930 (Prata, 1992), a violência subiu
para 10,5% em 1980; 12,3% em 1988 (Minayo & Souza, 1993); e 15,3% em 1989 (Souza & Minayo, 1994),
correspondendo, no final da década, à segunda causa de óbitos no país, abaixo apenas das doenças
cardiovasculares”. MINAYO, M. C. S. A violência social sob a perspectiva da saúde pública. Cad. Saúde
Públ. 10, Rio de Janeiro, 1994, p. 10 [grifos meus].
59
Maria D’Alva Kinzo diz que o processo de transição da ditadura militar para a democratização
brasileira foi o mais longo da América Latina: 11 anos para que os civis retomassem o poder e mais 5
anos para que o presidente da República fosse eleito por voto popular. A autora aponta três fases
nesse processo: 1) o período de 1974 a 1982, com as estratégias de transição totalmente conduzidas
pelo governo militar; 2) o período entre 1982 e 1985, marcado pelas eleições de 1982 e sucessão
presidencial, os novos partidos e a volta de políticos que haviam perdido seus direitos no início dos
anos 1960; e 3) o período entre 1985 e 1989, quando uma “nova República” nascia sob circunstâncias
frágeis”, com a morte de Tancredo e o início do governo Sarney, vulnerável a todos os tipos de
259
pressão. KINZO, Maria D’Alva G. A democratização brasileira: um balanço do processo político desde
a transição. São Paulo em Perspectiva, nº 15, 2001, p. 5-9.
60
“Entre 1986 e 1994 o país mudou quatro vezes de moeda e teve seis experimentos em estabilização
econômica”. Ibidem, p. 8.
61
Sem violência. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 17.09.1986, p. 6.
260
62
Zaluar aponta que os estudos sobre o medo e sobre o apoio dado pela sociedade a políticas
despóticas ou extremamente repressivas devido à crise dos anos 1980, conduziram alguns autores a
“qualificar a sociedade brasileira como antônimo da cordialidade e cooperação: a inversão da teoria
do homem cordial brasileiro”. ZALUAR, Alba. Um debate disperso... Op. cit., p. 5.
63
“Com origem policial, o Esquadrão da Morte surgiu fundado em um discurso moralista de defesa da
sociedade contra os elementos indesejáveis e de manutenção da ordem pública. Mas, desde o seu
início [nos anos 1950], ele esteve ligado com corrupção, venda de proteção para traficantes de drogas,
associação com grupos de criminosos”. Para maiores detalhes, sugiro: COSTA, Marcia Regina. São
Paulo e Rio de Janeiro: A Constituição do Esquadrão da Morte. Anais do XXII Encontro anual da Anpocs.
Caxambu, Minas Gerais, 1998.
64
Disponível em: www.rodaviva.fapesp.br/materia/834/entrevistados/paulo_brossard_1986.htm
261
Warwar lendo o seu próprio livro, e o “jurista” que declara-se favorável à pena de morte.
Cenas de O Inspetor (Arthur Omar, 1988).
Sentado numa sala obscura, com uma réstia de luz que entra por uma janela e
o ilumina parcialmente, Warwar lê dramaticamente enquanto a câmera se aproxima
dele. Durante toda a cena, ouve-se uma música melodramática que evoca algum filme
épico em momento de grande heroísmo, o que carrega a cena de uma tonalidade
kitsch, reforçada pelas frases lidas em rima:
65
DELLASOPPA, Emilio; BERCOVICH, Alicia; ARRIAGA, Eduardo. Op. cit., p. 154.
262
A mise en scène dos policiais pegando as armas, um depois do outro, para sair numa
“operação”; a cena desta operação numa favela miserável, com a radicalização do
distanciamento na frase cômica e ácida de Omar narrador, “O Inspetor sentiu a certeza
de não estar em Paris”; a cena dos policiais alinhados de perfil e atirando contra um
terreno baldio numa clara performance para a câmera, e o policial que coloca a arma
“estilosamente” na cintura e dá uma olhada para a câmera revelando a sua
representação são exemplos claros da descoberta do gestus brechtiniano à maneira de
Omar66.
66
GUÉRON, Rodrigo. Op. cit., p. 171
263
67
PIMENTEL, Mariana. Op. cit., p. 18.
68
Quanto à espetacularização da violência na mídia, Zaluar comentava, em 1998, que “as notícias de
violência tornaram-se mercadoria”, e que “o próprio conceito de violência tem sido usado de maneira
abusiva para encobrir qualquer acontecimento ou problema visto como socialmente ruim ou
ideologicamente condenável”. ZALUAR, Alba. Para não dizer... Op. cit, p. 247.
69
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 62.
264
propunha uma “estética da fome” para o cinema brasileiro: ele convocava a violência
para o plano simbólico, e o fazia sobre os moldes da convocação a uma violência real,
segundo os termos de Franz Fanon em Os condenados da terra70. E, como disse João
Luiz Vieira, a inspiração no cinema experimental dos anos 1960-70 teria dado origem
a um tipo de “método-matriz” observável nos curtas experimentais dos anos 1980.
Isso fez com que ampliassem sua potência política de provocar reações e
deslocamentos perceptivos. Compreendo, enfim, que em filmes desse teor
coexistem a convição poética e a violência. São produtos com os quais se pretende
uma intervenção na sociedade ou, ao menos, constituem uma forma pela qual o
cineasta pode posicionar-se, enquanto formador de opinião, entre aqueles que
discutem e problematizam o seu entorno histórico, político e cultural.
Gotas distópicas
70
Sobre a violência simbólica no cinema de Glauber e suas relações com Franz Fanon, sugiro: XAVIER,
Ismail. Considerações sobre a estética da violência. In: Sertão mar. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 183-
184.
71
No Brasil dos anos 1980 “as dúvidas quanto às possibilidades de construir uma sociedade
efetivamente moderna tendem a crescer e o pessimismo ganha, pouco a pouco, intensidade”. MELLO,
J.M. e NOVAIS, F. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. In: SCHWARCZ, Lilia. (Org.). História da
Vida Privada no Brasil, vol. IV. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 560 [grifos meus].
265
72
A ascensão da cocaína. Revista Veja. São Paulo, 7.09.1977, p. 32-38.
73
COSTA, Marcia Regina. Op. cit., p. 29-30.
266
Iñaki Echavarne, bar Giardinetto, rua Granada del Penedés, Barcelona, julho de 1994. Por
algum tempo, a Crítica acompanha a Obra, depois a Crítica se desvanece e são os leitores
que a acompanham. A viagem pode ser comprida ou curta. Depois os leitores morrem
um a um, e a Obra segue sozinha, muito embora outra Crítica e outros Leitores pouco a
pouco se ajustem à sua singradura. Depois a Crítica morre outra vez, os Leitores morrem
268
outra vez, e sobre esse rastro de ossos a Obra segue sua viagem rumo à solidão.
Aproximar-se dela, navegar em sua esteira é um sinal inequívoco de morte segura, mas
outra Crítica e outros Leitores dela se aproximam, incansáveis e implacáveis, e o tempo
e a velocidade os devoram. Finalmente a Obra viaja irremediavelmente sozinha na
Imensidão. E um dia a Obra morre, como morrem todas as coisas, como se extinguirá o
Sol e a Terra, o Sistema Solar e a Galáxia, e a mais recôndita memória dos homens. Tudo
que começa como comédia acaba como tragédia.1
A leitura faz do livro o que o mar e o vento fazem da obra modelada pelos homens: uma
pedra mais lisa, o fragmento caído do céu, sem passado, sem futuro, sobre o qual não se
indaga enquanto é visto. A leitura confere ao livro a existência abrupta que a estátua
“parece” reter do cinzel: esse isolamento que a furta aos olhos que a vêem, essa
distância altaneira, essa sabedoria órfã, que dispensa tanto o escultor quanto o olhar que
gostaria de voltar a esculpi-la. O livro tem, de certo modo, necessidade do leitor para
tornar-se estátua, necessidade do leitor para afirmar-se coisa sem autor, e também sem
leitor.2
1
BOLAÑO, Roberto. Os detetives selvagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Trad.: Eduardo
Brandão. p. 497.
2
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. Trad.: Álvaro Cabral. p. 194.
269
espaço aberto por esse sim, deixa afirmar-se a decisão desconcertante da obra, a
afirmação de que ela é – e nada mais.”3 Como, no âmbito da atividade dos homens
(nessa via de mão dupla da constituição do livro: escritura/leitura), pensar esse
“deixar ser o que é”, no gesto de leitura, com a afirmação desconcertante da obra,
que nada exige da leitura senão esse espaço de afirmação de existência? Podemos
propor, a princípio, uma leitura dessa liberdade a partir do ponto em que, por fim, a
memória dos homens, a Obra, o Sistema Solar, as Galáxias – o Uni-verso – encontram
seu destino: o caos informe, o silêncio de antes do cosmos, por assim dizer.
Em Diálogos do começo, Yann Kassile – que no livro assume o nome de Jean
D’Istria – vai ao Japão e tem uma série de, justamente, diálogos com pensadores
japoneses contemporâneos. Em uma dessas conversas, com Uno Kuniichi, antes de
entrar nas diferenças de compreensões (Japão/Europa, grosso modo) a respeito das
noções de literatura, filosofia e pensamento, o assunto tem como ponto de início o
caos. D’Istria pensa uma necessidade de se defender do caos para evitar certa loucura
e, diante dessa afirmativa, Kuniichi, numa associação interessante entre caos e
liberdade, diz:
Acredito que temos necessidade do caos. Para mim, o que me deixa louco, o que me
deprime, não é o caos, mas muita ordem. Muita ordem me deixa louco, no sentido que
isso me deprime. Temos necessidade de nos proteger do caos, mas, ao mesmo tempo,
também temos necessidade do caos como forma de liberdade. O caos é um perigo, é
algo terrível, mas é uma forma de liberdade, de viagem. Para que algo se crie é preciso
deixar certas ordens, é preciso se lançar no caos. 4
Quando escrevemos, quando pensamos, quando descobrimos algo, claro, isso é sair do
caos, mas é também usufruir do caos. Assim, o problema é agora saber como definir,
como classificar o que vemos no caos e como viver o caos. Para mim, pensar, escrever,
3
Idem.
4
KASSILE, Yann. Penseurs japonais. Dialogues du commencement. Paris: Éditions de l’éclat, 2006. p. 86.
[Todas as citações em outras línguas foram traduzidas pelo autor].
270
escrever para pensar, pensar para escrever, sempre estou com o caos. O caos me agita,
me abala, o caos me estimula.5
Já não há mais mundo: nem mundus, nem cosmos, nem ordenação composta e completa
no interior ou desde o interior da qual encontrar lugar, abrigo e os sinais de uma
orientação. Mais ainda, já não contamos com o ‘aqui embaixo’ de um mundo que
caminharia para um mais além do mundo ou para um outro mundo. Não há mais Espírito
do mundo, nem história para conduzir diante de seu tribunal. Dito de outro modo, não
há mais sentido do mundo.8
5
Idem.
6
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Companhia Editorial Nacional;
EdUSP, 1968. Trad.: José Arthur Giannotti. p. 55.
7
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. Trad.: Álvaro Cabral. p. 50.
8
NANCY, Jean-Luc. El sentido del mundo. Buenos Aires: La Marca, 2003. Trad.: Jorge Manuel Casas. p.
17.
271
caos (...). Sou amigo do caos.”9 Não é esse caos o início informe do mundo que se
construiu e caminhou inexoravelmente para seu fim. O caos é o que sempre já está
no mundo, é o que se mostra como impossível. É também Maurice Blanchot a abrir
esse campo do impossível à angústia da criação, do ato poético. Lendo Artaud, ele
percebe que “ser é não ser, é essa falta do ser, falta viva que torna a vida
desfalecente, inacessível e inexprimível, exceto pelo grito de uma feroz
abstinência”10.
Esse grito, que para Gilles Deleuze é a declaração de existência de um Idêntico11,
de um absolutamente singular, da conjugação de um ateísmo com a escritura (o
nome de Deus, um nome sem conceito, que apenas é chamado), é o clamor dessa
“feroz abstinência”, dessa ausência e afastamento ou ausentamento, como diz Jean-
Luc Nancy, do sentido. Aliás, lembra o próprio Nancy a respeito de Blanchot:
9
KASSILE, Yann. Penseurs japonais… p. 87
10
Idem. p. 53.
11
Em seu estudo sobre Leibniz, Deleuze pensa o grito de maneira correlata aos princípios de identidade
e de contradição no filósofo barroco. Diz que tal como um grito, “cada um [cada princípio] assinala a
presença de uma classe de seres, seres que lançam o grito e se fazem reconhecer por esse grito (...)
faz com que conheçamos uma classe de seres, a dos Idênticos, que são seres completos. O princípio
de identidade, ou sobretudo de contradição, é somente o grito dos Idênticos e não pode ser abstrato.
É um sinal. Os idênticos são indefiníveis em si e talvez incognoscíveis para nós; nem por isso deixam
de ter um critério que o princípio nos permite conhecer ou ouvir.” Cf. DELEUZE, Gilles. A Dobra. Leibniz
e o Barroco. Campinas: Papirus, 1991. Trad.: Luiz B. L. Orlandi. p. 80.
12
NANCY, Jean-Luc. O Nome de Deus em Blanchot. In.: Outra Travessia. n. 18. 2ºSem/2014. Florianópolis:
UFSC, Trad.: Carlos E. S. Capela e Vinícius N. Honesko. p. 84.
13
Cf. BLANCHOT, Maurice. La escritura del desastre. Caracas: Monte Avila Editores, 1987. Trad.: Pierre
de Place. p. 32. “La renuncia al yo sujeto no es una renuncia voluntaria, por tanto tampoco es una
abdicación involuntaria; cuando el sujeto se torna ausencia, la ausencia de sujeto o el morir como sujeto
272
subvierte toda la frase de la existencia, saca el tiempo de su orden, abre la vida a la pasividad,
exponiéndolo a lo desconocido de la amistad que nunca se declara.”
14
BLANCHOT, Maurice. El Diálogo Inconcluso. Caracas: Monte Avila Editores, 1993. Trad.: Pierre de
Place. p. 88-89.
15
É fundamental, a respeito da ideia de exterior, lembrar o texto de Michel Foucault sobre Blanchot –
O Pensamento do exterior – no qual uma concepção da linguagem enquanto brilho do exterior aparece
de modo fundamental. Cf.: FOUCAULT, Michel. O Pensamento do Exterior. In.: Ditos e Escritos. Vol. III
Estética: Literatura e Pintura; Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. Org.: Manoel
Barros da Motta. Trad.: Inês Autran Dourado Barbosa. p. 223. “A partir do momento, efetivamente, em
que o discurso para de seguir a tendência de um pensamento que se interioriza e, dirigindo-se ao próprio
ser da linguagem, devolve o pensamento para o exterior, ele é também e de uma só vez: narrativa
meticulosa de experiência, de encontros de signos improváveis – linguagem sobre o exterior de qualquer
linguagem, falas na vertente invisível das palavras; e atenção para o que da linguagem já existe, já foi dito,
impresso, manifesto – escuta não tanto do que se pronunciou nele, mas do vazio que circula entre suas
palavras, do murmúrio que não cessa de desfazê-lo, discurso sobre o não-discurso de qualquer linguagem,
ficção do espaço invisível em que ele aparece.”
16
BLANCHOT, Maurice. La escritura del desastre… p. 56.
273
17
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Trad.: Leyla Perrone-Moyses.
p. 285.
18
Cf. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. In.: BENJAMIN, Walter.
Obras Escolhidas I. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1994. Trad.: Sérgio Paulo Rouanet.
19
RANCIÈRE, Jacques. Malaise dans l’esthétique. Paris: Galilée, 2004. p. 16.
274
a partir da arte é apostar que seu papel subsidiário, uma vez levantada sua limitação
estética (sensorial, aquém de qualquer pretensão política – em sentido de
estruturação de sentido ao em comum, tal qual Hegel sugeriria para a arte clássica),
possa ser retomado – numa epifania redentorista, reveladora e misteriosa ao mesmo
tempo – como uma possibilidade política. Ou seja, no jogo já findo entre o
encantamento, que dava à arte sua aura capaz de aglutinar um em comum, e o puro
prazer estético, que Hegel via como a impotência da arte no que tangia à realização
do Estado20, a arte parece encontrar um limite (e as vanguardas artísticas – com
adágio dadaísta “arte é merda” soando em alto e bom som – do início do século XX,
com suas incessantes tentativas de ruptura com o discurso esvaziado da estética, são
uma faceta das tentativas de resgate – ou construção – de um sentido em comum para
a arte).
Mas não podemos dizer que a arte – as obras de arte – tiveram fim juntamente
com o anúncio de seu fim preconizado por Hegel, uma vez que esse fim é apenas um
fim relacionado à tentativa inexorável de realização da história e, por isso, é o fim que
proporciona a fragmentação de uma unidade de sentido a ser cumprido. Se há algo a
que chamamos arte (e, também, literatura), mesmo que de todo diverso das
compreensões que a antecedem, se há algo que impacta e que ainda nos toca os
sentidos, podemos vislumbrar que seu lugar é ilegítimo (e, como nos lembra o breve
século XX, esse algo é relegado ao caráter de, por vezes, mercadoria, produto de um
sistema de produção econômico-cultural).
O artista (o escritor) constrange-se por ser ainda alguma coisa num mundo onde
ele se vê injustificado e, via de consequência, a literatura expõe sua ilegitimidade no
mundo, sua força fraca, por assim dizer. “A arte age mal e age pouco”, diz Blanchot
20
Lembro a interessante análise de Eduardo Pellejero em texto – cujo título é Perder por perder –
gentilmente cedido pelo autor: “a arte (...) já não constitui uma manifestação dos interesses substanciais
da comunidade, do que conta e vale como lei para os homens, do que contribui para a atualização da
nossa liberdade. A arte deixou de ser – como fora no mundo grego – uma mediação efetiva para os
homens. Logo, segundo Hegel, é inútil na necessária reconciliação do indivíduo com as instituições do
mundo moderno (reconciliação que só terá lugar ao nível duma reflexão capaz de satisfazer as demandas
da racionalidade crítica, demandas que a arte não pode satisfazer). A poética da política moderna volta
assim a expulsar da cidade, ou a relegar nas suas margens esquecidas, qualquer possível política da
poética.”
275
(e Marx, caso tivesse escrito belos romances em vez do Capital “teria encantado o
mundo mas não o teria abalado”21). Poderíamos dizer que já a expulsão dos poetas
da cidade (a antiga contenda platônica) é o que irá gravar com a insígnia da frustração
– o lugar de um perda eternizada no tempo dos homens – o lugar da arte e de seus
feitores. Em dois momentos diferentes Blanchot nos lembra dessa caráter amargo,
por assim dizer, da arte. Em 1955, em O Espaço Literário, nos diz:
A atividade artística, para aquele mesmo que a escolheu, revela-se insuficiente nas horas
decisivas, essas horas que soam a cada hora, em que ‘o poeta deve completar sua
mensagem pela recusa de si’. A arte pôde conciliar-se outrora com outras exigências
absolutas, a pintura serviu os deuses, a poesia fê-los falar; é que essas potências não
eram deste mundo e, reinando fora do tempo, não mediam o valor dos serviços que lhes
eram prestados para sua eficácia temporal. A arte também esteve a serviço da política,
mas a política não estava então a serviço exclusivo da ação, e a ação ainda não tomara
consciência de si mesma como exigência universal. Enquanto o mundo não é realmente
o mundo, a arte pode, sem dúvida, ter aí sua reserva. Mas essa reserva, é o próprio artista
que a condena, se, tendo reconhecido na obra a essência da arte, reconhece desse modo
o primado da obra humana em geral. A reserva permite-lhe agir em sua obra. Mas a obra
nada mais é, então, do que a ação dessa reserva, ação puramente reservada, inatuante,
pura e simples reticência em relação à tarefa histórica, ativa e ordenada, na ação geral. 22
A arte é poderosamente voltada para a obra, e a obra de arte, a obra que tem sua origem
na arte, mostra-se como uma afirmação completamente diversa das obras que se
medem pelo trabalho, os valores e as trocas, diversa mas não contrária: a arte não nega
o mundo moderno, nem o da técnica, nem o esforço de libertação e de transformação
que se apóia nessa técnica, mas exprime, e talvez realize, relações que precedem toda
realização objetiva e técnica.
21
BLANCHOT, Maurice. O Espaço literário… p. 213.
22
Idem. pp. 213-214.
23
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir… p. 288-289
276
O poeta, o escritor, como inimigo da figura do poeta. Imagem forte que marca
a literatura nos seus trajetos periclitantes que, talvez, seriam formas de inventariar a
infâmia ou de historiar a eternidade (e, claro, o jogo borgeano é aqui fundamental;
aliás, é o modo com o qual os escritores tentam suas vinganças). Jogados pela
história num canto inútil, humilhados, os escritores enveredam-se por caminhos onde
suas vidas estão em jogo numa aventura incomensurável, ou na aventura24.
O catalão Enrique Vila-Matas no seu constante jogo de perdas, indefinições,
cruzamentos híbridos entre biografia do autor (que pretende desaparecer – e, nesse
sentido, lembremos de Dr. Pasavento) e ficção, sabe que seu canto inútil está
garantido. Na coluna que mantém no diário El País a angústia do sinal trocado (leitor
que é escritor, escritor que é leitor) transparece com toda sua força, e a literatura é,
então, uma vingança que é dada ao leitor que é escritor em toda réplica possível (toda
resposta que é a da literatura para a vida):
Realmente, a literatura parece uma atividade em contato com um material menos vivo
que a vida e, ademais, tem algo da imensa conjunção de frustrados, todos com um
retardado talento para a réplica. Por certo, ainda me recordo dos dias em que persegui
obsessivamente um indivíduo para tentar com ele recriar uma situação já vivida e poder,
assim, por fim – fracassei no meu intento –, dar-lhe minha resposta a umas palavras que,
em certo momento, haviam me deixado mudo e humilhado.25
24
Num recente opúsculo, Giorgio Agamben trabalha a noção de aventura de um modo que, para nosso
intuito, é bastante pertinente. Cf.: AGAMBEN, Giorgio. L’Avventura. Roma: Nottetempo, 2015. Cito aqui
o trecho final do segundo capítulo do livro, Aventure (pp. 34-35): “Aventure (âventiure) è un termine
tecnico essenziale del vocabolario poetico medievale. Come tale esso è stato riconosciuto dagli studiosi
moderni, che hanno sottolineato il significato poetologico che il vocabolo acquista in Hartmann von Aue
(ma era già implicito in Chrétien de Troyes – Mertens, p. 339), e il carattere performativo che il testo
poetico acquisisce, nella misura in cui atto del raccontare e contenuto del racconto tendono a identificarsi
(Strohschneider, pp. 379-380). Dell’avventura ci interessa, però, qui anche un altro aspetto. In quanto
esprime l’unità inscindibile di evento e racconto, cosa e parola, essa non può non avere, al di là del suo
valore poetologico, un significato propriamente ontologico. Se l’essere è la dimensione che si apre agli
uomini nell’evento antropogenetico del linguaggio, se l’essere è sempre, nelle parole di Aristotele,
qualcosa che “si dice”, allora l’avventura ha certamente a che fare con una determinata esperienza
dell’essere.”
25
VILA-MATAS, Enrique. El espíritu de la escalera. Documento eletrônico disponível em:
http://elpais.com/diario/2011/12/13/cultura/1323730805_850215.html (acesso: 02/10/2015).
277
A literatura se parece muito com uma luta de samurais, mas um samurai não luta contra
outro samurai: luta contra um monstro. Geralmente sabe, ademais, que vai ser
derrotado. Manter o valor, sabendo previamente que vai ser derrotado, e sair para a luta:
isso é a literatura.27
Mas não façamos literatura. Pelo mesmo correio (ou amanhã) registadamente enviarei
o meu caderno de versos que você guardará e de que você pode dispor para todos os
26
Cf. AGAMBEN, Giorgio. L’Image Immémoriale. In.: AGAMBEN, Giorgio. Image et Mémoire. Paris:
Hoëbeke, 1998, p. 78.
27
BOLAÑO, Roberto. Hay que mantener la ficción en favor de la conjetura. Entrevista a Roberto Bolaño.
Documento eletrônico disponível em: http://critica.cl/literatura/entrevista-a-roberto-bolano-hay-que-
mantener-la-ficcion-en-favor-de-la-conjetura (acesso: 02/10/2015).
278
fins como se fosse seu. (...) Adeus. Se não conseguir arranjar amanhã a estricnina em
dose suficiente, deito-me para debaixo do “metro”... Não se zangue comigo.28
Parece justo ver, na preocupação que anima os artistas e os escritores, não seu próprio
interesse, mas uma preocupação que exige ser expressa em obras. As obras deveriam,
pois, ser o mais importante. Mas será assim? De modo algum. O que atrai o escritor, o
que impulsiona o artista não é diretamente a obra, é sua busca, o movimento que conduz
a ela, a aproximação que torna a obra possível: a arte, a literatura e o que essas duas
palavras dissimulam. Por isso um pintor, a um quadro, prefere os diversos estados desse
quadro. E o escritor, frequentemente, não deseja acabar quase nada, deixando em
estado de fragmentos cem narrativas que tiveram a função de conduzi-lo a determinado
ponto, e que ele deve abandonar para tentar ir além desse ponto.29
28
Mário de Sá-Carneiro em carta a Fernando Pessoa, 31/03/1916. In.: VILA-MATAS, Enrique. Suicídios
exemplares. São Paulo: Cosac Naify, 2009. Trad.: Carla Branco, p. 205.
29
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir… p. 291.
279
30
Cf.: HEIDEGGER, Martin. El Origen de la Obra de Arte. In.: HEIDEGGER, Martin. Caminos de Bosque.
Madrid: Alianza Editorial, 2010. Traducción: Helena Cortés y Arturo Leyte. p. 11-62.
31
AGAMBEN, Giorgio. Il fuoco e il racconto. Roma: Nottetempo, 2014, p. 141-142.
280
A literatura não se interroga sobre a verdade: podemos dizer que ela está dentro ou
mesmo que faz a verdade. Lendo Proust, Shakespeare, Thomas Mann ou Roberto
Bolaño, você não dirá que é “literatura” no sentido que queremos indicar que é fictício,
ilusório e inconstante (“irreal”). Certamente de maneira alguma não é indiferente que a
palavra “literatura” tenha tomado esse sentido do que não tem solidez, massiva certeza
das coisas tangíveis. Pois há muitas produções escritas, filmadas ou cantadas que só
buscam divertir com um elemento de sonho ou de magia. Mas penso que aquelas e
aqueles que gostam disso (e todos nós fazemos mais ou menos parte) sabem muito bem
que estão numa trilha de evasão.
Por outro lado, escritores como aqueles que tomei como exemplo estão engajados
numa tarefa completamente outra. Trata-se de fazer ou de deixar falar (a diferença aqui
é impalpável) o que justamente está aquém ou além das significações. Proust abre a
Recherche com a frase: “Longtemps je me suis couché de bonne heure” [Durante muito
tempo costumava me deitar cedo]. Como informação, essa frase é pobre e não interessa
a ninguém. Mas não a leio para me informar; aliás, não sei quem é esse “eu” que fala.
Ainda menos porque ele escreve na primeira pessoa. Por outro lado, eis-me aqui preso
na frase, na sua aparência: ela começa por “longtemps”. Esse advérbio imprime uma
cadência lenta que deixa o longo tempo suspenso numa imprecisão manifesta, assim
como “de bonne heure” permanece pouco determinado. Quem fala aí? Por que diz isso?
Não sou eu quem, de pronto, é remetido às vezes que me deitava na infância ou na
adolescência? Mas também: esse narrador fala no passado, fala do passado: qual? Por
quê?
Como para a filosofia, paro porque isso seria interminável. Mas não da mesma maneira.
Não se trata aqui de uma fuga, mas de um retorno infinito: essa frase e todo o livro que
ela abre são feitos evidentemente para ser retomados, relidos, mas, sobretudo, revistos,
re-escutados, apreciados e apalpados de todas as maneiras possíveis. Não digo
“interpretar”, o que por certo é possível e desejável, mas provar, recitar, sentir, deixar-
se tocar pela verdade própria, singular e, no entanto, muito bem comunicável,
contagiosa, que faz falar aqui a vida de uma voz inimitável. Sim, é a vida – real, a verdade
– que se manifesta por ela própria (ao mesmo tempo que particular, datada, situada
etc.).32
32
NANCY, Jean-Luc. Vouloir un sens unique ouvre sur une violence: le meurtre des autres sens. Entretien
réalisé par Nicolas Dutent. In.: L’Humanité. Documento eletrônico disponível em:
281
Essa atitude resume muito bem Adeus, o poema no qual Rimbaud conta que ardeu
demasiado depressa e, portanto, já busca seu próprio outono e o silêncio. “Procurei
inventar flores novas, astros novos, carnes novas, idiomas novos. Acreditei adquirir
poderes sobrenaturais. E então, devo sepultar minha imaginação e minhas lembranças!”,
nos diz, e parece já nos dar às costas, como se quisesse fechar a mala com a qual viajará
para a Abissínia. Não muito depois, completaria com estas palavras sua despedida:
“Maintenant je puis dire que l’art est une sottise” (Agora posso dizer que a arte é uma
estupidez). Oh, claro, querido Rimbaud, é claro que a literatura, como toda forma de arte
é uma estupidez. Ainda que sem a arte a vida não teria muito sabor, ou mesmo nem
sequer sentido. Ademais, a estupidez da arte não é mais do que a sensível demonstração
de que a vida não basta. E por isso seguimos falando dela, às vezes só para dialogar sobre
a melhor forma de vivê-la.33
A estupidez da literatura como uma lembrança de que a vida não basta, de que
a vida – e é o Iñaki Echavarne de Bolaño a nos dizer – como toda Obra e toda Crítica,
e tudo o que ronda o mundo dos homens, encaminha-se para o silêncio, mas nem por
isso deixamos de falar, nem por isso deixamos de escrever justamente sobre esse fim.
E, assim, com essa explosão e fragmentação (suposta ou evidente) da literatura (mas
não só: também das várias artes, da história, das religiões e da política) ainda nos
resta a possibilidade de, apesar de tudo, seguirmos nosso caminho para o silêncio
lançando nossas cartas com os traços de nossa estupidez.
www.humanite.fr/jean-luc-nancy-vouloir-un-sens-unique-ouvre-sur-une-violence-le-meurtre-des-
autres-sens-585496 (acesso: 02/10/2015).
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VILA-MATAS, Enrique. Cómo vivir. In.: El País. Documento eletrônico disponível em:
http://elpais.com/diario/2012/01/24/cultura/1327359606_850215.html (acesso: 02/10/2015)
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Autores
Ana Maria Mauad é doutora em História (UFF), pós-doutora pelo Museu Paulista
(USP), professora do Departamento de História e coordenadora do Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH/UFF), Bolsista do
CNPq e autora de Poses e flagrantes: ensaios sobre história e fotografias (Eduff, 2008)
e Sob o signo da imagem (LABHOI/UFF, 2002).
Maria Lúcia Bastos Kern é doutora em História da Arte (Université de Paris I), pós-
doutora pela Université de Paris I e pela École des Hautes Études en Sciences Sociales,
professora titular do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Bolsista 1A do CNPq e autora,
entre outros, de Arte argentina (EDIPUCRS, 1996) e Imagem e conhecimento (Org,
Edusp, 2006).
Michael Asbury é PhD pelo London Institute (atualmente UAL), professor assistente
no Research Centre for Transnational Art, Identity and Nation (TrAIN) na University
of the Arts London (UAL) e, como pesquisador, tem experiência em arte moderna e
contemporânea brasileira, com vários artigos, capítulos e textos de catálogo
publicados sobre o tema.