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IMAGEM, NARRATIVA E SUBVERSÃO

Artur Freitas
Clóvis Gruner
Paulo Reis
Rosane Kaminski
Vinícius Honesko

[organizadores]
2

Copyright © 2016 Artur Freitas, Clóvis Gruner, Paulo Reis, Rosane Kaminski e Vinícius
Honesko

Revisão: Nome e sobrenome


Projeto gráfico, capa: Nome e sobrenome

IMAGEM, NARRATIVA E SUBVERSÃO

Dados Internacionais de catalogação na publicação


Bibliotecária responsável: Nome e sobrenome

FREITAS, Artur; GRUNER, Clóvis; HONESKO, Vinícius; KAMINSKI, Rosane;


REIS, Paulo [orgs.]

Imagem, narrativa e subversão. São Paulo: Intermeios, 2016.

p. ; cm.

ISBN

1. Imagem e narrativa. 2. Arte e política. 3. Cultura visual. 4. Historiografia


da arte. I. Freitas, Artur; II. Gruner, Clóvis; III. Honesko, Vinícius; IV.
Kaminski, Rosane; V. Reis, Paulo

CDD 700.904

Todos os direitos reservados à Editora Intermeios


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SUMÁRIO

Diálogos – Artur Freitas, Clóvis Gruner, Paulo Reis, Rosane Kaminski e Vinícius Honesko
.......................................................................................................................................... 4

HISTÓRIA, IMAGENS E SUBVERSÃO

O semblante mutável das vítimas: imagens da aflição em Camboja (1975-2013) –


Vicente Sánchez-Biosca ....................................................................................................11
O contemporâneo pré-figurado – Raul Antelo ..............................................................32
Negro | Afro | Negro – africanidade e historiografia da arte no Brasil – Roberto
Conduru .......................................................................................................................... 50
O que restou – história e documento – na prática artística de Rosangela Rennó – Ana
Maria Mauad ................................................................................................................... 64
Xul Solar e Jorge L. Borges: os projetos de modernidade para a Argentina – Maria
Lúcia Bastos Kern............................................................................................................ 95
A memória colonial: devolvendo o passado como imagem-catástrofe no cinema
brasileiro – Franciso Santiago Júnior ............................................................................. 113
Suspender o tempo, reencantar a cidade: “O grito do povo”, uma história gráfica da
Comuna de Paris – Clóvis Gruner .................................................................................. 138

POÉTICAS DA ARTE E DO PENSAMENTO

Incorporação: corpo e política nos anos 60/70 – Celso Favaretto............................. 156


Hélio Oiticica: O Q Faço é Música – Michael Asbury .................................................... 173
O caleidoscópio ou a subversão da cidade – Artur Freitas ......................................... 187
Limiar da visualidade: artes visuais e a crise da aids – Paulo Reis ............................. 226
As mil faces do inspetor – Rosane Kaminski ............................................................... 236
Nos rastros de nossa estupidez: ou da literatura – Vinícius Honesko ....................... 267
Autores ..........................................................................................................................282
4

Diálogos

Artur Freitas, Clóvis Gruner, Paulo Reis, Rosane Kaminski e Vinícius Honesko

O livro Imagem, Narrativa e Subversão discute alguns dos diversos modos de


subversão das narrativas, seja no âmbito das narrativas historiográficas sobre arte,
seja no das próprias narrativas artísticas enquanto produtos histórico-culturais. As
articulações entre diferentes formas de arte e sua potência estética e política; a força
das imagens e das narrativas na edificação da memória (individual, local, regional,
nacional); a urgência de pautas como o corpo, a cidade, a violência, a catástrofe, a
experiência traumática e a aids transfiguradas em matéria artística; a necessidade de
revisão dos cânones historiográficos sobre arte a partir de novos enfoques como a
América Latina e a africanidade – são temas presentes neste livro que está
organizado em duas partes relativamente abrangentes. Seu intento é sugerir novas
conexões a partir da aproximação entre as ideias propostas pelos diferentes autores,
estimulando assim a subversão de saberes já parcialmente cristalizados sobre a arte,
a história e suas múltiplas relações com outros campos discursivos.
A primeira parte, intitulada História, imagens e subversão, reflete sobre as
formas de relação entre o tempo histórico e os usos das imagens e da própria
historiografia da arte, seja com o intuito de edificar sentidos históricos para o
presente a partir das mesmas, seja para problematizar e modificar alguns dos seus
significados já assentados culturalmente.
Abrindo a primeira parte, o texto de Vicente Sánchez-Biosca lança um olhar
sobre as vítimas do Khmer Vermelho, no Camboja, a partir das fotografias que
compõem o Tuol Sleng Genocide Museum de Phnom Penh. Criado pelo governo de
ocupação vietnamita em 1979, em uma antiga escola transformada, durante o regime
liderado por Pol Pot, em um centro secreto de detenção e tortura, o Tuol Seng foi
erigido sobretudo para denunciar os crimes praticados pelo Khmer enquanto
responsável pelo genocídio do seu próprio povo. A estratégia, como mostra Sánchez-
Biosca, foi principalmente “ferir o olho e escandalizar o ânimo”, fazendo com que as
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imagens de dor, sofrimento e morte fossem seguida e continuamente ressignificadas


e reapresentadas, inclusive em outros suportes e linguagens que não apenas a
fotográfica, promovendo contínuas colisões entre os enfoques dados a esse material.
Na sequência, o ensaio de Raúl Antelo pretende rastrear, mediante o conceito
de contemporâneo pré-figurado, como certas teorizações sobre a arte de
historiadores tradicionais como Wöllflin e Riegl são absorvidas, discutidas,
contrapostas e desenvolvidas por Walter Benjamin e, a partir deste, recepcionadas
na América Latina. Fazendo uso de um procedimento arqueológico, o texto indica
como a dimensão fragmentária das imagens do pensamento, figurada na imagem do
torso, aponta, nesse processo de queda, para uma temporalidade pós-aurática (em
referência a Benjamin). Tal temporalidade, aqui, estaria ligada à noção de anacronia
que, por sua vez, seria o modo de leitura efetivo do contemporâneo: o tempo da
lacuna, o hiato que comporta todo presente. Três são os autores latino-americanos
fundamentais para a construção dessa dimensão singular e lacunar do presente: Luíz
Juan Guerrero (introdutor de Benjamin na América Latina ainda em 1933), Héctor
Álvarez Murena (que faz a primeira tradução comercial de Benjamin em 1967) e
Osvaldo Lamborghini (autor marginal que empreende colagens que, como
fragmentos, corresponderiam às imagens do pensamento benjaminianas). Nesse
sentido, o ensaio, num gesto de imaginação teórica e de rastreamento arqueológico,
aponta para a necessidade de se ler a história (e principalmente a história da arte)
não como uma sucessão de presenças, mas, nesse jogo con-temporâneo e nos traços
de Derrida, como uma presença diferida.
Também ocupando-se da historiografia da arte, Roberto Conduru, por sua vez,
demonstra como a questão da africanidade pode ser vista como um campo propício
à subversão das narrativas históricas sobre arte no Brasil. A partir de alguns
importantes exemplos historiográficos, museológicos e autorais oriundos da
complexa relação entre artes visuais e afro-brasilidade, o texto não apenas salienta a
condição muitas vezes marginal desse tema, como também destaca, no âmbito de
uma visão inclusiva, o embate terminológico recente implícito nos termos “arte afro-
brasileira” e “arte negra”.
6

Em seguida, no âmbito de uma possível história visual, Ana Maria Mauad


discute duas publicações da artista plástica Rosangela Rennó compostas por
fotografias dos furtos na Biblioteca Nacional, em 2005, e no Arquivo Geral do Rio de
Janeiro, em 2006. Para a autora, a forma como essa artista insere, em seu trabalho,
indícios da experiência vivida por meio de objetos, documentos e fotografias “cria
uma trama temporal complexa apoiada nas relações entre memória e imagem”.
Mauad defende que, ao estreitar as fronteiras entre arte e história e declarar seu
compromisso com a memória e o patrimônio, Rosangela Rennó transforma-se, ela
mesma, em uma historiadora visual.
Pensando as imagens em suas múltiplas temporalidades históricas e
interessada na pluralidade de sentidos própria à ideia de modernidade, Maria Lúcia
Bastos Kern investiga a produção artística argentina das décadas de 1920 e 1930, com
ênfase na convergência entre as obras e pensamentos de Xul Solar e Jorge Luis
Borges. Abertos ao embate entre as práticas estéticas europeias e as tradições
criollas, de corte mítico e identitário, os dois artistas engajaram-se na construção de
uma moderna cultura argentina, “ora assumindo a liderança da vanguarda e
valorizando o cosmopolitismo cultural, ora o recusando e agenciando a construção
de nova cultura nacional”.
Também no âmbito das discussões sobre imagem, história e mitos modernistas,
Francisco Santiago discute as narrativas da catástrofe colonial no cinema feito no
Brasil do início dos anos 1970, a partir da releitura que os cineastas fizeram dos
modernistas brasileiros. A ênfase da análise recai sobre Como era Gostoso o Meu
Francês (1971) e Os Inconfidentes (1972), filmes que, na visão do autor, “selecionaram
dois universos históricos com aspectos já construídos como mitos pela memória
cultural”, utilizando-se de imagens modernistas tais quais a antropofagia e o
patrimônio. Santiago questiona os sentidos possíveis dessa figuração do passado
colonial pelo cinema dos anos 1970, sugerindo que tais filmes, além de remeter ao
presente do regime civil-militar como uma catástrofe em imagem cifrada, também
fazem aparecer elementos catastróficos do próprio passado.
7

Fechando a primeira parte do livro, o texto de Clóvis Gruner investiga as


possibilidades de leitura do passado nas histórias em quadrinhos. O historiador se
debruça sobre a graphic novel “Le cri du peuple”, de Jacques Tardi, para, a partir dela,
analisar as possíveis figurações da história por meio das narrativas gráficas.
Particularmente no caso de Tardi, ao aproximar o “histórico” e o “ficcional” até a
dissolução de suas fronteiras, o artista francês realiza uma operação de seleção e
combinação de elementos do passado que pretendem, mais que apenas sua
representação, a repetição da realidade como um “ato de fingimento” e de
transgressão. A intenção, segundo Gruner, não é oferecer da Comuna uma narrativa
“realista” mas, pela imagem, tecer uma narrativa que faça aparecer as potências
libertárias de uma experiência única como foi a da Comuna de Paris.
Sob o título Poéticas da arte e do pensamento, a segunda parte do livro trata
da homologia entre experimentalismo estético e pensamento subversivo, com
ênfase na função crítica da linguagem e da imaginação frente à imobilidade dos
juízos, à rigidez dos valores e aos cânones artísticos. Nesses termos, ora são
examinadas obras de artistas brasileiros, ora discute-se a potência criativa enquanto
forma de resistência e contestação.
No primeiro texto, Celso Favaretto discute uma concepção poético-política de
corporeidade que atravessou uma série de proposições artísticas, notadamente artes
visuais, teatro, cinema, música e literatura, e constituiu uma nova (des)ordem social
contracultural de caráter crítico ao regime ditatorial brasileiro. A partir do conceito
de “incorporação”, o texto enfoca mais detalhadamente algumas propostas
vivenciais do artista Hélio Oiticica e a produção literária experimental de José
Agrippino de Paula.
Michael Asbury, por sua vez, aborda a movimentação artística do Tropicalismo
e perfaz um caminho reflexivo que passa, entre outros pensadores, por Augusto de
Campos, Haroldo de Campos e Silviano Santiago, bem como nas operações
antropofágicas previstas por Oswald de Andrade. De modo mais específico, o texto
analisa as últimas pesquisas artísticas de Hélio Oiticica e seus procedimentos poéticos
8

constituídos pelos diálogos entre cinema, visualidade, rock, poesia e heranças visuais
concreta e neoconcreta.
Em seguida, partindo da contraposição entre contracultura e tecnocracia ao
longo dos anos 1960 e 1970, Artur Freitas analisa a polêmica obra urbana Vexations,
da multiartista Jocy de Oliveira, apresentada em Curitiba no contexto do VI Encontro
de Arte Moderna, em 1974. Para tanto, o autor enfatiza as formas de subversão
estética inerentes à obra de Jocy, sobretudo quando contrapostas às estratégias
racionalistas do pensamento tecnocrático, cujo urbanismo do prefeito Jaime Lerner
– surgido em plena ditadura militar, durante o chamado “milagre econômico
brasileiro” – foi um dos seus casos mais célebres.
No texto seguinte, Paulo Reis traça um breve panorama da relação de certa
produção de artes visuais dos anos 1980 e início dos anos 1990 com a crise da aids.
Questões como ética das imagens, comprometimento político e novas disposições
de linguagem são discutidas a partir das exposições 'Nicholas Nixon: pictures of
people' e 'Witnesses: against our vanishing' e de algumas proposições dos artistas
Rafael França e José Leonilson.
O capítulo escrito por Rosane Kaminski avalia o curta-metragem O Inspetor
(1988) como desdobramento da obra fílmica que Arthur Omar vinha construindo
desde o início dos anos 1970 e, ao mesmo tempo, como uma forma de inserção do
artista nas discussões estéticas e políticas do Brasil em seu tempo de produção. Para
tanto, além de analisar o caráter geral do filme, situa-o diante do cenário
cinematográfico nacional dos anos 1980, bem como no quadro de discussões
referentes à ampliação da violência, um dos mais candentes problemas urbanos do
período, que se articulava à crise econômica e à projeção de uma imagem negativa
do Brasil.
Arrematando a segunda parte do livro, o ensaio de Vinícius Honesko apresenta
uma concepção de literatura a partir das noções de caos e de ato de criação. Nesse
sentido, expõe como uma obra pode ser compreendida não a partir de seu estatuto
de ato, obra (ergon), mais ainda ligada à dimensão da potência (dynamis) de criação.
Seguindo as leituras de Maurice Blanchot, pretende mostrar como não é possível
9

determinar à literatura um lugar legítimo no campo das obras humanas – num sentido
político de uma obra humana fundamental, um ergon –, e, desse modo, a ela restaria
apenas a parte do fogo, o lugar maldito e estúpido na estruturação do vivente
humano. Aponta como o espaço literário pode constituir-se enquanto crítica radical
(negação da negação: eis o lugar da literatura) das determinações de legitimidade a
um campo literário e, assim, a estupidez do gesto da escrita (um gesto in-efetivo, in-
operante) pode ainda postular uma possibilidade de, apesar de tudo, resistência aos
poderes que orientam a conformação da vida dos homens.
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HISTÓRIA, IMAGENS E SUBVERSÃO


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O semblante mutável das vítimas: imagens da aflição em Camboja


(1975-2013)1 2

Vicente Sánchez-Biosca

El tiempo, ese medio transparente en el que los hombres


nacen, se mueven y desaparecen sin dejar rastro
Vasili Grossman – Vida y destino

L’homme en péril de mort, quand les conditions le permettent, prend


le parti de sympathizer avec ceux qui le menacent
François Bizot – Le silence du bourreau

Vítimas, entre número e drama

A visita a antigas prisões, museus comemorativos e centros memoriais


(encabeçados por aqueles dedicados ao Holocausto) familiarizou nossos modernos
turistas de catástrofes humanas com galerias, habitações e muros povoados por
rostos de vítimas fotografadas em primeiro ou em primeiríssimo plano, em ocasiões
de frente e perfil, tal como foi fixado na segunda metade do século XIX pelo
denominado bertillonnage.3 Tais mosaicos sugerem uma síntese particular entre o

1
Uma versão anterior deste texto foi publicada na revista Pasajes, nº 44, Universitat de València,
Primavera de 2014, p. 120-133. Traduzido para o português por Manuel Guerrero e revisado por Rosane
Kaminski.
2
Agradeço a Ben Kiernan (Yale University) a gentileza que teve para responder tantas perguntas e por
brindar-me com tantas pistas. O King Juan Carlos I Center de New York University me deu a
oportunidade, quando ocupei a cátedra de Spanish Culture and Civilization (inverno-primavera de 2013)
de organizar o simpósio The Desire to See: the production and circulation of Images of Atrocity (abril de
2013), no curso de cuja preparação e percurso adquiriram forma algumas das ideias aqui expostas.
Durante a minha estada em Nova Iorque, o festival Season of Cambodia: a Living Arts Festival (abril-
maio 2013) permitiu-me avaliar obras de artistas contemporâneos da terceira geração que reescreviam
a experiência do genocídio e o Congresso Creation and Postmemory (Columbia University, 10-12 abril)
instalou sua reflexão no contexto da Shoah, Rwanda e a justiça transnacional, seguindo os parâmetros
do seminário sobre post-memoria dirigido por Marianne Hirsch.
3
Alphonse Bertillon introduziu em 1879 um sistema de identificação válido para classificar
delinquentes (sinalética ou bertillonage) apoiando-se em quatro componentes: medidas
antropométricas de onze traços faciais e corporais, retrato verbal de marcas, fotografia padronizada
de frente e perfil e sistema de classificação. Muito empregado pela polícia, este método foi substituído
nos Estados Unidos pela impressão digital já em pleno século XX. Cf. AAVV. Fichés? Photographie et
identification 1850-1960, París, Perrin, 2011.
12

singular e o coletivo, e a sua estratégica disposição aspira se beneficiar das vantagens


do primeiro sem sacrificar o impacto do segundo: se a acumulação de rostos sublinha
a dimensão estatisticamente monstruosa do ato criminal que em tais lugares se
recorda, cada imagem nos interroga como se de um único homem ou mulher se
tratasse. Ao percorrer com os olhos os vestíbulos, corredores ou cúpulas decoradas
com fotografias, hesitamos entre abraçar o arrepiante conjunto (onde cada vítima se
apequena até a beira do imperceptível) e nos submetermos ao choque de uns olhos
humanos alargados que nos perscrutam de algum instante infausto estacado no
tempo.
No entanto, o equilíbrio nessas exposições é pouco duradouro e o individual se
intimida fatalmente perante o coletivo. Na verdade, nenhum rosto dessas
impressionantes collages possui as proporções físicas necessárias para nos interpelar
em escala humana, isto é, para nos encarar frente a frente. Desta maneira, e apesar
da sua intenção sintética, esta estratégia museal bicéfala acaba privilegiando a
natureza massiva do crime, seu estatuto virtualmente genocida, 4 em detrimento da
tragédia pessoal, temendo, talvez, que realçar o individual equivaleria a incorrer no
anedótico, ao passo que colocar o acento no número agravaria a culpa dos algozes e
provocaria maior enfraquecimento do ânimo. Na verdade, as vítimas representadas
são estranhas, pois, ainda que a sua condição não dependa da sua quantidade, esta
acrescenta a presunção do sofrimento de cada uma delas… ao passo que desvanece
a sua singularidade.
Assim foi concebido o Tuol Sleng Genocide Museum de Phnom Penh (Camboja)
desde a sua criação pelo governo de ocupação vietnamita em 1979 para denunciar os
crimes do Khmer Vermelho (1975-1979). Antiga escola transformada em centro
secreto de detenção e tortura, colocado sob o controle direto da polícia de segurança
(Santebal) e da cúpula dirigente do partido (Angkar), suas celas foram destinadas a
administrar as crescentes punições contra os dissidentes e “traidores” ao regime. Na
medida em que o país se fechava hermeticamente devido aos fracassos econômicos

4
É frequente, no âmbito do imaginário social, identificar a magnitude das vítimas com a aplicação do
termo genocídio, independentemente das categorizações do direito penal internacional e ignorando
a tradição que nasceu com Raphael Lemkin.
13

do regime e as novas ameaças vietnamita e soviética, a paranoia conspirativa tomou


conta dos dirigentes e Tuol Sleng, conhecido como S-21,5 tornou-se um dos centros
nevrálgicos da repressão em Camboja.
Contudo, quando se perscruta estes rostos encontrados nos espaços do atual
museu, advertimos que os olhos dos detentos parecem habitados por emoções tão
heterogêneas quanto difíceis de desentranhar: há os que parecem surpresos, outros
entregues à própria sorte; uns ostentam ainda as marcas da recente tortura, no
entanto se diria que outros aceitam com resignação o que está por acontecer com
eles. Em qualquer caso, se meditarmos sobre isso, o olhar com que todos estes seres
humanos nos observam não emana da sua condição de vítimas; ao contrário, carrega
infiltrado na sua medula o estatuto de traidores com que foram registrados pela
câmera fotográfica que os capturou. Pois no preciso instante em que dirigiram seus
olhos à câmara e em que esta os capturou no enquadramento, nada havia nestes
seres daquilo que hoje lhes atribuímos sem duvidar – o estatuto de vítimas. Eram
precisamente o contrário: culpados.
No fim das contas, o que surpreende é a naturalidade com que, sem alterar o
conteúdo do plano, a condição atribuída a estas pessoas transformou-se no seu
antônimo. Como foi possível, no momento de encarar o tempo, o lugar e os afetos
emanados destas fotos, ignorar o olhar que os criou? A cena, em contrapartida, se
encontra historicamente bem documentada: o prisioneiro, transportado de
caminhão às vezes de muito longe, era lançado pelos seus captores ao interior de
uma construção e nela se arrancava a venda que cobria os seus olhos para tirar o
instantâneo.6 Esse fugaz disparo fotográfico deixou uma marca infindável que tem
perpassado o tempo: a própria foto. Por mais pobre e insuficiente que ela nos pareça,
seu exame é crucial para refletir sobre o gesto fundador do arquivo: o olhar que o

5
Daqui em diante, empregar-se-á a denominação Tuol Sleng para referir-se ao lugar e ao museu e se
reservará S-21 para aludir ao presídio e centro de tortura durante o período khmer vermelho.
6
Um dos fotógrafos de S-21, Nhem Ein, tornou-se um verdadeiro star dos meios de comunicação nas
décadas recentes. Enviado à China para sua formação como fotógrafo ainda muito jovem, esta
personagem carente de qualquer remorso e disposto a vender material próprio e desprovido de
escrúpulos, teve até desejos de abrir um museu comemorativo do período khmer vermelho na sua
região de Anglong Veng. Continua convencido de ter realizado um grande trabalho e que este o faz
merecedor de reconhecimento por parte da humanidade.
14

engendra. Nessa foto sobrevivente do detento se encena a colisão repentina de dois


olhares.

Inimigos: o olhar fundador

No momento de serem feitas, essas fotos identificavam temíveis inimigos,


supostos (mais tarde, confessos mediante tortura) espiões da KGB ou da CIA (ou das
duas ao mesmo tempo), sabotadores da revolução ou infiltrados no partido. O
imaginário khmer vermelho fez de S-21 um presídio de alta segurança destinado,
diferentemente de outros centros de tortura que existiram no país, aos altos quadros
caídos em desgraça. Foi também o ponto de chegada, seja pela sua relação com estes
ou pela paranoia crescente do Angkar, de muitos detentos (incluindo anciãos,
crianças e mulheres) cujos destinos tinham se precipitado na teia de aranha do
complô. Poder-se-ia dizer que S-21 foi o produto mais genuíno da cosmovisão khmer
vermelha, do seu afã por desmascarar, fichar, reprimir e exterminar seus
antagonistas. Porém, compreender isso requer penetrar na lógica arquivística dos
seus autores e na sua função no processo de destruição, correlato à construção da
nova utopia. Daí a necessidade de formular algumas perguntas: como se operava esta
captura fotográfica? De que sequência de ações fazia parte? Com que propósito se
documentava a imagem do detento se este ia ser executado sem hesitação? Com que
objetivo foi preservada? Quais outros documentos completavam o arquivo criminal?
Sem procurar respostas a essas questões seria impossível discernir sobre o papel da
fotografia no processo e ficaríamos desarmados perante qualquer uso alternativo
destas imagens.
Sabemos hoje que os encarcerados de S-21 estavam condenados a morrer já no
momento mesmo da sua chegada. O ato fotográfico fazia parte de uma sequência
que comportava várias fases concatenadas em regime de inexorável causalidade:
detenção e translado, geralmente noturno, a esse recinto semiclandestino de uma
15

cidade deserta7; fichamento em que se anotava seu nome e se lhe conferia um


número que se colocava, por via de regra, no peito do detento; captura fotográfica
quando seus olhos se abriam subitamente perante uma luz que cegava; logo depois,
o prisioneiro, oprimido por algemas com barras, era transportado a uma cela comum
da qual só saía para interrogatórios periódicos que começavam com a fase
denominada “política” (discussão, persuasão) para passar a outra “quente” cheia de
torturas físicas e acabar, nos casos de maior resistência em colaborar, com a fase
“furiosa” que poderia resultar na morte não desejada do interrogado (“se morre o
prisioneiro, perde-se o documento”, indicava um lema do responsável do centro). A
duração variava em função da importância do réu ou da sua resistência, mas sempre
era minuciosamente supervisionada pelo eficiente diretor, Kaing Guek Eav (apelidado
de Duch), que anotava escrupulosamente de próprio punho instruções para obter
uma confissão satisfatória; uma vez que a conseguia, sua miúda e perfeita caligrafia
decidia o momento da “eliminação” que se consumava, salvo exceção, nos campos
de Choeung Ek para onde um caminhão noturno realizava o transporte. Iluminado
por um gerador de energia, o condenado, sempre com o rosto coberto, era
conduzido à beira de uma vala e perante ela se inclinava para receber um golpe
mortal na cabeça com uma barra de ferro; já caído na vala, outro executor no interior
desta o degolava.8
Neste sentido, o ato fotográfico se inseria em uma estrita cadeia que, se fosse
rompida, ameaçaria a rija estabilidade do poder khmer vermelho. Isso porque,
segundo a lógica dos dirigentes e funcionários, estava-se lidando com agentes da
sedição, que contavam com redes de espionagem tanto dentro quanto fora do país.
Consideradas desta maneira, as fotografias obtidas não arquivavam acusados ou
suspeitos, mas culpados. Pouco depois, esses mesmos positivos eram recortados em

7
Phnom Penh fora desocupada em abril de 1975 depois da ocupação da capital. Depois que foi
dinamitado o banco nacional, abolido o dinheiro, as escolas e fechados os hospitais, iniciara-se o êxodo
rural em direção aos lugares puros em que estava o velho povo, classe em que se basearia a revolução
ruralista dos khmers Vermelhos. KIERNAN, Ben. The Pol Pot Regime: Race, Power, and Genocide in
Cambodia underthe Khmer Rouge, 1975-1979, Chian Mai, Silkworm books, 1996.
8
Em casos excepcionais, em função da importância de alguns dos executados, Duch receberia do seu
superior, Son Sen, a ordem de fotografar o cadáver para eliminar qualquer dúvida em relação ao fim
da ameaça que o executado representava.
16

pequeno formato para ficar junto a uma ficha que continha a biografia criminal de
cada prisioneiro. Não cabia dúvida: tanto para as vítimas quanto para os executores,
as fotos constituíam signos inequívocos do poder e eficiência do regime 9. Não é
arriscado concluir que a história do partido comunista cambojano era precisamente
uma sucessão de complôs. Arquivá-los e preservá-los era uma forma de escrever a
história da revolução, dos seus antagonistas e dos triunfos sobre eles.

Segundo olhar: um museu dos horrores

Em janeiro de 1979, forças vietnamitas da Sétima Divisão entravam em Phnom


Penh culminando uma ofensiva planejada algumas semanas antes. No seu percurso
acharam um clima apocalíptico que foi registrado pelas câmaras fotográficas e
cinematográficas do repórter de guerra Ho Van Thay e a sua equipe.
A situação geopolítica na região havia se tornado muito complexa desde 1977-
1978 e iria se agravar nos anos seguintes em função de jogo de forças em várias
frentes: a guerra entre o Vietnã e a Camboja foi desencadeada a partir da divisão do
bloco comunista (Vietnã, aliado da URSS; os Khmers Vermelhos dependentes do
apoio chinês). Após a vitória vietnamita, as forças de ocupação puseram todo seu
empenho em demonstrar que os crimes cometidos na Kampuchea Democrática,
longe de serem cometidos pelos comunistas, tinham sido obra de sádicos dirigentes
cujos atos os aproximavam do nazismo. A operação não era fácil de orquestrar e era
preciso seduzir, em primeiro lugar, à comunidade internacional. Por esta razão, em
25 de janeiro de 1979, apenas três semanas depois da tomada da capital, foram
convidados a Tuol Sleng pela recém-constituída República Popular de Kampuchea
jornalistas de países socialistas. Inclusive, os célebres documentaristas da Alemanha
Oriental Walter Heynowki e Gerhard Scheumann disporiam de todas as facilidades
para rodar seu filme Kampuchea – Sterben und Auferstehen (Camboja, morte e

9
HUGHES, Rachel. “The abject artefacts of memory: photographs from Cambodia’s genocide”, Media,
Culture & Society, vol. 25, 2003, p. 25. O fotógrafo Nic Dunlop e conhecedor do Sudeste asiático falou
deste ato fotográfico como um trial by camera (julgamento por câmara). DUNLOP, Nic. The Lost
Executioner. A Journey to the Heart of the Killing Fields, New York, Walker, 2006.
17

reconstrução, 1980) que incorporou planos de Tho Van Thay. A estratégia vietnamita
se baseou em não mascarar o encontrado, mas em construir sobre as marcas da
barbárie um relato de denúncia que eliminaria os Khmers Vermelhos da família
comunista e os mostraria como um bando de criminosos que consumaram o
genocídio do seu próprio povo. Para isso, o novo governo optou por uma estratégia
que feria o olho e escandalizava o ânimo. Seu mais arrepiante resultado foi o Museum
of Genocidal Crimes, que abriu oficialmente suas portas em janeiro de 1980.10
A organização do museu foi encomendada a Mai Lam, diretor do Museum of
American War Crimes em Ho Chi Minh City (1975). Embora Lam tivesse visitado
Auschwitz buscando inspiração, a sua fórmula apostou por algo mais visceral do que
sutil, seguindo o modelo ensaiado quatro anos antes na antiga Saigon, isto é: uma
câmara de horrores. Ainda que a direção formal da instituição fosse de um
sobrevivente cambojano, Ung Pech, Lam agiu na sombra como eminência parda. Com
tal finalidade, o museu apostou em acentuar o coletivo, apelando, por outro lado, aos
detalhes para enfatizar o macabro (exposição de objetos de tortura, preservação da
cama metálica em que tinha sido encontrado o cadáver de um homem encharcado
do próprio sangue, fotos de vítimas…). Seu objetivo era (e a estratégia prevaleceu)
introduzir o espectador na experiência patética do trauma, eliminando os
componentes cognitivos, como se deduz da quase total ausência de cartazes
informativos11. Nada expressa melhor o estilo escolhido do que a exposição de um
gigantesco mapa do país formado por crânios de vítimas, no qual os rios se
desenhavam por meio de um escandaloso fio vermelho sangue.12 Sabe-se que foram
ensaiadas outras estratégias complementares. Em 1980, o pintor sobrevivente Vann
Nath, que tinha salvado a própria vida graças à sua habilidade para pintar murais de

10
Até julho de 1979, a população cambojana não foi admitida no presídio, de modo que a estratégia
vietnamita apontou nos primeiros momentos da ocupação à imprensa socialista internacional (Cuba,
URSS, Alemanha Oriental…).
11
VIOLI, Patrizia. “Il visitatore como testimone. Il Tuol Sleng Museum of Genocide Crimes a Phnom
Penh”, in: Maria Pia Pozzato ed., Testi e memoria. Semiotica e costruziones politica dei fatti, Bolonia, Il
Mulino, 2010, p. 38.
12
Mais tarde, este sinistro mapa foi retirado e substituído pela sua fotografia.
18

Pol Pot, foi contratado para reproduzir, em tela, cenas vivenciadas na prisão 13. Suas
obras, que combinavam o documento e o testemunho dos horrores da vida em S-21,14
foram perturbadoramente concebidas com um estilo naïf e incorporadas ao museu;
no ano seguinte outro sobrevivente, o escultor Bou Meng, foi também incorporado.
Muitas foram as omissões diplomáticas, humanitárias e políticas durante o
protetorado vietnamita. Os antigos Khmers Vermelhos, ocultos na selva à espera de
uma situação propícia, eram ainda reconhecidos como o governo legítimo do país
pelas Nações Unidas e Estados Unidos, devido ao fato de que o Vietnã era o seu
inimigo principal. Tampouco a retirada vietnamita de 1989 esclareceu por completo
a situação: em 1991, os acordos de Paris defendiam uma retórica de reconciliação
nacional extremamente prudente para se referir aos crimes da Kampuchea
Democrática. Todavia, outras linhas de ação durante esses mesmos anos
empreenderam iniciativas que dariam frutos a longo prazo: em 1982, os ativistas pró-
direitos humanos David Hawk e Gregory Stanton se mobilizaram em busca de provas
para um eventual processo contra os líderes khmers vermelhos. O segundo fundou o
Cambodian Genocide Project, e Hawk criou a Cambodian Documentation Commission.
Atividades deste tipo, levadas primeiro nas sombras, depois em plena luz,
significaram uma mudança de perspectiva, uma nova mirada sobre os seres
fotografados pela maquinaria khmer vermelha.

Olhares, biografias, relatos

Nos interstícios da diplomacia internacional foi, pois, constituindo-se um


cuidadoso acervo de documentos e uma otimização da informação graças a projetos
universitários e iniciativas privadas. Em 1988, Judy Ledgerwood, em colaboração com

13
NATH, Vann. Dans l’enfer de Tuol sleng. L’inquisition khmère rouge en mots et en tableaux, París,
calmann-lévy, 2008, p. 161; TRANCHE, Rafael R. (2011). “’Los huesos gritan, la carne llama’ o la memoria
del horror. S-21, la máquina de matar khmer roja (R. Panh, 2002)”, in V. Sánchez-Biosca ed., Figuras de
la aflicción humana, Valencia, MuVIM, p. 83-88.
14
Vann Nath não conseguiu ver as cenas que pintava porque chegou com os olhos cobertos e passava
seus dias no interior do ateliê em que pintava sob o olhar atento de Duch. As histórias lhe foram
relatadas por outros. Em consequência, sua função de testemunha se deve a essas pessoas e deixa um
espaço para a imaginação.
19

John Badgley, edificou o Cornell University’s Microfilming Project com a finalidade de


inventariar e preservar as abundantes provas existentes em S-21 que se encontravam
abandonadas e em risco de desaparição. Em setembro de 1989 foram autorizados a
registrar em microfilme a abundante documentação disponível no mencionado
centro. Por outro lado, em 1994 e por iniciativa do historiador Ben Kiernan, a
Universidade norte-americana de Yale fundou o Cambodia Genocide Program, que, em
janeiro de 1995, abriu uma repartição em Phnom Penh: o Documentation Center of
Cambodia (DC-Cam). À frente desta, foi colocado o cambojano-americano Youk
Chhang, sobrevivente do genocídio e grande artífice, em reconhecimento à tarefa
então desenvolvida, dos grandes processos de 2009-2013. Estas iniciativas buscavam
frutificar em terreno minado: as ameaças de asfixiar a gestão de Tuol Sleng ou até de
fechar o museu aumentavam, ao mesmo tempo em que seus documentos sofriam
deterioração ou se extraviavam; os acordos de Paris e a consequente criação de
United Nations Transitional Authority in Cambodia (UNTAC, 1992-1993) preferiam
ocultar o passado genocida; ao passo que prosseguiam as tentativas de reconstrução
dos Khmers Vermelhos até que, em 1998, entregaram definitivamente as armas.
Naquela atmosfera de incertezas e receios, os fotógrafos Chris Riley e Douglas
Niven assumiram em 1993 a tarefa de limpar, catalogar e obter cópias novas dos
negativos encontrados em um depósito de Tuol Sleng, junto com outro material
documental valiosíssimo até então desconhecido. Após três anos de restauração e
inventário, seu Photo Archive Group abria novos horizontes para conhecer a
identidade das vítimas e permite um olhar novo: examinar cada foto, arrancar de cada
rosto uma vida cerceada e registrar as pequenas ou grandes diferenças entre elas.
20

Figura 1: Imagem extraída dos negativos limpos por Christopher Riley e Douglas Niven e exibida
na Exposição do MoMA intitulada Photographs of S-21 (Maio de 1997). A mesma foto foi
publicada no livro dos dois autores intitulado The Killing Fields (1996). Esta foto foi a base para
a peça de mesmo nome, Photographs of S-21, da dramaturga novaiorquina Catherine Filloux
(1997) que a usou para fazer dela um personagem. A identidade corresponde a Sa'an Kong,
prisioneira 606, em cuja etiqueta presa ao peito de seu pijama se lê a data de sua prisão, 17 de
maio de 1978. O formato original do negativo é 6 x 6cm. No entanto, o corte operado pela
administração do S-21 para inclusão na ficha (que foi chamado de "biografia") tornava
imperceptíveis o fundo ou as margens do que foi enquadrado. Aqui, estaria invisível o braço da
criança que agarra o braço da mãe. No entanto, estes detalhes omitidos da foto recortada
contêm informações valiosas para os historiadores.

Outras estratégias, que partem da literatura, do testemunho ou do cinema,


demarcam objetivos cuja semelhança com o anterior consiste em inverter a
coletivização do sofrimento que fora imposto, desde a sua abertura, com a derrubada
dos muros de S-21. Isolada ou auxiliada por outros documentos biográficos, a vítima
recupera um fugaz hálito para nos exortar, seja desde a penumbra de uma sala de
arte, da página de um catálogo ou das sombras em movimento de um filme. Por um
lado, a irrupção nos museus e nas exposições de arte colocava um desafio moral: qual
é o limite da arte em relação ao sofrimento humano? 15; por outro, a narração fílmica
aspirava recompor o tecido humano que os Khmers Vermelhos tinham esgarçado,
encaixando as peças de uma experiência trágica capaz de encarnar o destino do país.

15
DE DUVE, Thierry. “Art in the Face of Radical Evil”, October 125, 2008, p. 3-23.
21

Exemplar foi, neste sentido, o caso da jovem Hout Bophana, cujas cartas de amor a
condenaram à destruição. Em resumo, dois olhares (museal e narrativo, seja literário
ou cinematográfico) concordavam, apesar de seus diferentes meios de expressão.
Seu esforço comum era nomear, representar, pensar um período, na época excluído
dos livros de texto escolares, longe da área de ação dos tribunais e ausente da
expressão pública do luto.
Um destes olhares (o terceiro segundo nossa numeração) tem a sua origem nos
resultados do mencionado Photo Archive Group. A restituição dos negativos permitiu
trazer à superfície algo que tinha passado desapercebido anteriormente: as
diferenças entre o original da captura fotográfica e o enquadramento recortado
incorporado às fichas dos detentos, no qual ficava eliminado o ruído dos cenários.16
Isolada a cópia fotográfica e exposta em um museu, suscitava uma percepção distinta
pela visibilidade dos detalhes: alguns exteriores da prisão desmentem, por exemplo,
que todas as fotos foram tiradas na habitação–laboratório habilitada para isso, um
detalhe-ruído, como o braço de um neném assomando da borda inferior do
enquadramento, revela que as mulheres eram fotografadas com as suas crianças, um
segundo detento amarrado com aquele que era fotografado ajuda a compreender o
modo em que iam amarrados uns aos outros… Todos estes fragmentos de
cenografia, na medida em que vão além ou aquém do simples retrato, enriqueciam o
conhecimento sobre o aqui e agora em que acontecera a identificação. Ampliavam a
informação sobre o entorno. Observar o singular exigia agora examiná-lo e
transformá-lo em fértil fonte histórica. Por conseguinte, longe de ilustrar uma história
conhecida e documentada por outros meios, as imagens levantavam o véu que
conduzia a uma escura habitação prenhe de signos sobre a estrutura da morte que
reinava em S-21. Os rostos humanos se tornavam fantasmas projetados na penumbra
de um museu que os livrava do lugar do seu suplício, transformando-os em potenciais
viajantes, enquanto a exposição permanente de Phnom Penh envelhecia
inexoravelmente. Fora do seu traumático lugar, disposta em uma parede da Gallery

16
Embora os muros de Tuol Sleng reproduzissem os positivos dos originais, a qualidade das cópias
obtidas por Niven e Riley permitiu a análise de lastimáveis dados em que anteriormente mal se tinha
reparado.
22

Three do MoMA ou na sede dos Rencontres Photographiques d’Arles,17 cada unidade


fotográfica, pelo seu tamanho ampliado e sua separação do resto, podia ser
perscrutada na sua irredutibilidade. Em contrapartida, corria o risco de se ver
canonizada, quando envolvida em uma espécie de aura. Os riscos de estetização
eram grandes e a crítica especializada não economizou repreensões aos curadores,
como aquele que denunciava a sua insensibilidade mostrando as vítimas tal e qual
tinham sido contempladas pelos seus executores, apresentando-as, ademais, como
seres carentes de identidade.
Um livro muito especial apareceu em 1996. Seu título foi tomado de um filme
dirigido por Roland Joffe que fez muito sucesso em 1984: The Killing Fields18. Seus
autores eram precisamente Riley e Niven. 19 Utilizando as excelentes cópias obtidas,
seu quase catálogo constituía um convite a um mergulho solitário entre os rostos de
vítimas dispostas em página inteira, pontuados por fotogramas negros que
prolongavam a sensação de túnel escuro. O efeito aspirava prolongar a
contemplação hipnótica própria das exposições, mas na solidão da leitura. Perante
esses semblantes, adquiria toda a sua força a reflexão de Susan Sontag 20: “Estes
homens e mulheres cambojanos de todas as idades, entre eles muitas crianças,
retratados a um ou dois metros de distância, geralmente de meio corpo, encontram-
se – como em A esfola de Marsias de Tiziano onde a faca de Apolo está prestes a cair
eternamente – sempre olhando a morte, sempre prestes a serem assassinados,
humilhados para sempre. E o espectador se encontra na mesma posição que o lacaio
por trás da câmera; a vivência é nauseabunda”.
Todavia, este confronto humano tinha uma contrapartida: a sua abstração, o
seu desarraigamento do lugar do trauma e o afastamento da imagem em relação à

17
A exposição do MoMA, intitulada Photographs of S-21, aconteceu entre 15 de maio e 30 de setembro
de 1997 e constava de 22 mug shots ampliados a partir dos negativos de 6 x 6. Ainda que na época já
fosse conhecido o fotógrafo Nhem Ein, embaixo das fotos se indicava ‘photographer unknown’. Em
julho desse mesmo ano, Les Rencontres photographiques d’Arles, apresentou sob a curadoria de
Christian Caujolle S-21. 100 portraits.
18
RILEY, Christopher & NIVEN, Douglas (1996): The Killing Fields, Santa Fe, The Twin Palms, 1996.
19
Nestes anos se produziu a desaparição militar dos khmers vermelhos depois da detenção e farsa do
julgamento de Pol Pot por Ta Mok ‘o carniceiro’ (julho 1997), da entrevista com o ditador doente pelo
jornalista Nate Thayer e da morte e cremação de Pol Pot no ano seguinte.
20
SONTAG, Susan. Ante el dolor de los demás, Madrid, Santillana, 2004, p. 73.
23

documentação que selava o destino do sujeito contemplado (confissões, notas,


biografia, outras fotos, inclusive…). Faltava precisamente aquilo que as tentativas de
Cornell, Yale e DC-Cam estavam buscando costurar na imagem durante aqueles anos.
Na experiência que nos propõe o livro The Killing Fields, seguindo a trilha das
exposições, o único documento é a foto, e só ela; um olhar isola o personagem, fixa-
o no presente como o ato fotográfico o fixou no seu dia, arranca-o da sequência da
sua destruição e o exila do teatro de sua tortura. Sua contemplação é
indubitavelmente dolorosa, mas há nela algo de transcendente; sua força é muito
intensa, mas destila algo de fraudulento.

A espécie humana: Bophana, contrafigura

Em 1996, o cineasta Rithy Panh realizou o filme Bophana: une tragédie


cambodgienne, primeira produção em língua khmer que abordava o infausto período.
Panh, um sobrevivente emigrado para a França cuja família pereceu nos campos de
trabalho, analisava o regime da Kampuchea Democrática em relação à guerra civil
precedente na perspectiva de sua memória. Para isso, elegeu como heroína uma
pessoa que descobriu nos textos da jornalista estadunidense Elizabeth Becker, uma
mulher cuja confissão de crime vinha acompanhada de cartas de amor. A autora das
cartas – Hout Bophana – atribuía-se nesta escrita a identidade de uma personagem
do Ramayana e descrevia a sociedade revolucionária como uma alegoria das
catástrofes evocadas no célebre poema épico. Número 59, Bophana, Mom ou Seda
tinha crescido no interior de uma família de educadores cultos. Com o início da guerra
civil, ficou isolada em uma região tortuosa, foi estuprada por soldados do exército de
Lol Nol, teve um filho e trabalhou para a instituição de caridade Catholic Relief
Services, mais tarde casou-se com um primo seu, na ocasião monge bonzo, que
recebera a ajuda do pai de Bophana. Após a queda de Phnom Penh em 17 de abril de
1975, Bophana teve que fugir enquanto Ly Sitha, seu marido, crescia no partido com
o nome de camarada Seth. Encontros fugazes, um salvo-conduto falso achado entre
os papéis de Ly Sitha e as amargas cartas se tornaram provas inquestionáveis quando
24

o protetor de Sitha caiu em desgraça. Em 19 de setembro de 1976, Seth foi preso,


levado a Tuol Sleng, torturado e “destruído” oficialmente em 18 de março de 1977; já
Bophana, aprisionada em 12 de outubro de 1976, foi eliminada no mesmo dia que seu
amado, embora nenhum dos dois devam ter sabido da sua proximidade nos
momentos finais da sua vida.
No início do filme, Panh registra o tio de Bophana nos corredores de S-21
identificando, entre o tramado de rostos, o mugshot da sua sobrinha, com seu
semblante digno, sereno. O ancião evoca sua despedida em uma Phnom Penh
tomada pelo pânico e o filme recua no tempo para narrar a tragédia de Bophana. Tal
qual uma fantasia de renascimento, o rosto da culpada dá lugar a uma idílica
paisagem campestre em que uma jovem de formosos contornos passeia de bicicleta
perto de um rio. A leitura das desventuradas cartas de amor por uma voz feminina, a
crônica da sua vida por outro narrador, a perseguição e o complô tornarão este ser
culto e delicado um emblema das virtudes do espírito cambojano de outrora e dos
defeitos odiados pelos Khmers Vermelhos.
Panh capta com a sua câmara os traços de Bophana vistos por outros e mais
piedosos olhos: os do pintor Vann Nath, que desenha suas graciosas formas com seu
grafite, em contraste à ficha criminal fabricada pelos seus captores. É Bophana, nos
olhos de Panh, uma condensação do espírito sensível, cultivado, de Camboja; aquilo
que os novos dirigentes chamaram “o novo povo”, a classe social que decidiram
destruir.21 O termo empregado pelo Angkar para dar a ordem de execução condensa
o mistério mecânico da iniquidade: kamtech não significa somente destruir; implica
arrasar, reduzir a pó, para que nenhum vestígio permaneça. Os segredos do Angkar,
como os do Terceiro Reich, estão marcados a fogo no seu próprio idioma.
Desta forma, a imagem sinalética de Bophana é resgatada por outros olhares
que a redimem da ficha que decidiu e ao mesmo tempo documentou seu assassinato.

21
O novo povo, diferentemente do velho, camponês, analfabeto, era para os khmers vermelhos um
resto do capitalismo, irrecuperável e destinado a uma implacável aniquilação. Estava formado por
instrutores, médicos, enfermeiras, engenheiros e pessoas letradas, em geral.
25

Seu relato trágico gira em torno de uma das palavras e sentimentos


contrarrevolucionários mais odiados pela Kampuchea Democrática: o amor. 22

Figura 2: Fotograma do filme de Rithy Panh, Bophana: une tragédie cambodgienne (1996).
O pintor e sobrevivente do S-21 Vann Nath está, nesta sequência, concluindo um díptico
dedicado a esta vítima, Hout Bophana. No quadro à esquerda, copia uma foto da juventude
da menina; à direita, imita o mugshot tomada pelos Khmers Vermelhos na prisão. Esta
imagem seria legada pelo pintor ao Bophana Audiovisual Resource Center, dirigido por Rithy
Panh em Phnom Penh, onde está depositado. Vann Nath morreria em 2011.

O olhar da lei

O arquivo de rostos de Tuol Sleng passou por uma última transformação: a sua
conversão em fundamento de acusação perante os tribunais. Com a constituição da
Extraordinary Chambers in the Courts of Cambodia (ECCC) realizou-se um antigo
sonho: processar os dirigentes khmers vermelhos. Desembocadura de um itinerário
cheio de empecilhos, esse feito deve-se, principalmente, à tenaz investigação
realizada ou encaminhada por DC-Cam. O primeiro caso foi aberto em 2009 contra
aquele que tinha sido diretor de S-21, Kaing Guek Eav, apelidado de Duch. Dez aos

22
Anos depois, Rithy Panh fundou um centro cultural franco-cambojano sediado em Phnom Penh,
arquivo de investigação de primeira importância para o estudo audiovisual do período khmer
vermelho, e o batizou com esse nome de mulher: Bophana Audiovisual Ressource Center
(www.bophana.org).
26

antes, em 1999, um cristão convertido, que colaborava com uma ONG e respondia
pelo nome de Hang Pin, tinha sido identificado pelo fotógrafo Nic Dunlop como o
temível responsável do presídio. Um vídeo feito pelo próprio Dunlop e um novo
encontro, desta vez em companhia do jornalista Nate Thayer, levaram à sua captura
pelas autoridades. O caso Duch (001) significava uma encenação insólita na vida
cambojana do período sinistro que se projetava sobre o presente como traumática
memória. Consistia num ato de reconhecimento público das vítimas, uma cobertura
midiática sem precedentes e um esforço adicional por traduzir a ação da justiça em
instrumento de reflexão e, a longo prazo, de reconciliação nacional. 23
Sem abandonar antigos suportes nem descartar as estratégias examinadas
nestas páginas, a vítima de S-21 passava a ser sustentáculo de uma acusação envolta
pelas vozes dos sobreviventes, familiares e testemunhas, como se esse olhar
humilhado pelos captores se elevasse acima das suas cinzas para acusá-los três
décadas após a sua morte. Ademais, o caminho que termina no tribunal permeia no
seu percurso outros âmbitos que agem como caixa de ressonância ao olhar
acusatório na sociedade civil. Os mugshots passam, assim, entre as mãos dos
implicados no processo de destruição (sejam eles acusados ou não), circulam por
escritórios de advogados e procuradores e chegam aos gabinetes da imprensa. Os
meios de comunicação, em particular, multiplicam exponencialmente o alcance das
imputações, que adquirem agora uma função precisa: servir de base para uma
sentença penal. Nesse trajeto, as fotos são acolhidas pelos familiares que exercem
uma espécie de resgate humano, de recuperação simbólica da sua memória.
Assim como a recuperação simbólica dos crimes de S-21 pela justiça está
representada na reconstrução dos fatos protagonizada pelo camarada Duch no
recinto do presídio, suspeitamos que uma imagem sintetiza a nova função das
fotografias de torturados em Tuol Sleng: aquela em que as efígies deslizam entre as

23
Os processos seguintes ainda estão sendo esclarecidos na atualidade, mesmo que as esperanças de
condenações sejam muito escassas: Ta Mok morreu na cadeia em julho de 2006, antes da constituição
do tribunal; Ieng Thirith foi declarada demente em setembro de 2012; Ieng Sary faleceu em pleno
processo em 14 de março de 2013. Somente Kieu Samphan e Nuon Chea, que se declaram inocentes,
são os últimos grandes dirigentes pendentes de condenação. Outros possíveis processos foram
previstos sem que os nomes dos acusados tenham sido ainda revelados.
27

mãos do antigo diretor do presídio como se o interpelassem. Captado


deliberadamente pelas câmeras, este choque de olhares constitui uma radical
metamorfose do primeiro destes: Duch, que no passado as havia contemplado
aderidas às fichas para determinar a sequência de interrogatórios e execuções,
reencontra-as agora, ampliadas e em cópias de grande qualidade. Tenta lembrar-se
de alguns casos, mas algo se dissolveu na sua mente mesma durante esses trinta
anos: seu sentimento de perscrutar rostos de inimigos. Em outras palavras, entre
esses dois olhares do mesmo sujeito, interpõe-se um abismo no estatuto das pessoas
observadas, mas também no poder da contemplação. Olhar era decidir sobre o ritmo
do aniquilamento. Agora, significa assumir a responsabilidade. De certa forma, o
poder do olhar se inverteu. Que Duch tenha pronunciado o mea culpa em público,
implorando o perdão das vítimas (fosse ou não sincero) produz uma mudança no
tecido social congregado em torno da corte. Todavia, não pode haver substituição,
apagamento: nesta mutação final, todos os olhares que se foram revivem como
palimpsesto, surgindo em um instante para se dissipar logo depois. São olhares que
encerram para sempre outros olhares.
O processo de Duch constituiu um escoadouro no qual se precipitaram muitas
personalidades notáveis. O antropólogo francês François Bizot, cativo na selva em
1973 e enigmaticamente liberado por Duch, sentiu-se inquieto pela detenção deste e
foi vê-lo para perguntar pelas razões da graça envenenada que o poupou da morte24.
O cineasta Rithy Panh, que tinha construído seu filme S-21. La machine de mort khmère
rouge (2003) sobre esta figura demiúrgica e, no entanto, ausente, viu-se impelido a
fazê-lo, falar-lhe, filmá-lo, debatendo-se entre as densas redes estabelecidas por esse
antigo professor de matemática. Só a montagem do seu filme Duch, le maître des
forges de l’enfer (2011) serviu-lhe para frear a angústia gerada pela estratégia de
envolvimento de Duch25. François Roux, um advogado militante da não-violência,
aceitou o desafio de defender ao carrasco com a condição de que este se declarasse
culpado com a esperança de caracterizar o delito de obediência, em lugar de

24
BIZOT, François. Le silence du bourreau, París, Flammarion, 2011.
25
PANH, Rithy & BATAILLE, Christophe. L’élimination, París, Grasset, 2011, p. 233-234.
28

considerá-lo uma defesa. Uma virada inesperada de Duch e do seu advogado


cambojano, Kar Savuth, expulsou Roux da defesa. Todos eles sabiam que Duch, como
meio século antes Adolf Eichmann, falava a partir tênue fronteira que separa e une a
humanidade da sua ausência. Quanto mais próximo dele, quanto mais envolvido no
seu discurso, sua compaixão, seu riso, o desconforto humano cresce. Todos eles
constataram, com acabrunhamento, seu fracasso e a frágil cicatrização da sua
consciência.
Algo parecido acontece com as vítimas. Entre os mais de 12.000 seres humanos
que pereceram em S-21, houve um alto número de impiedosos e fanáticos khmers
vermelhos caídos em desgraça, inclusive interrogadores da própria prisão que foram
também executados. Nada, pois, garante que olhar esses rostos implique em
contemplar a inocência. Assim o demostram alguns dossiês como o extensíssimo do
Ministro de Propaganda Hu Nim, detido numa punição interna em 10 de Abril de 1977,
interrogado, torturado e finalmente executado em 6 de julho de 1977 26. Esta zona
cinzenta, empregando a reflexão feita por Primo Levi em Los hundidos y los salvados27
em relação ao Holocausto, envolve, no caso de S-21, doses muito mais intrincadas e
humanamente difíceis de dirimir; questão chave, entretanto, para qualquer projeto
de reconciliação nacional.

Artefatos, representações e ícones

Os mugshots de Tuol Sleng figuram entre os escassos objetos que sobreviveram


a um tempo de destruição. Desapareceram as vítimas, apenas são reconhecíveis
alguns ossos; restam documentos que a tenacidade de alguns transforma em
agentes de acusação, instrumento de compreensão histórica e exercício de memória
para uma futura reconciliação. Já as imagens antropométricas recolhem os traços
físicos, a expressão, o corpo, as feridas de seres que sofreram tortura e morte em S-

26
CHANDLER, David, KIERNAN, Ben & CHATHOU, Bova. Pol Pot Plans the Furue: Confidential Leadership
Documents from Democratic Kampuchea, 1976-1977, New Haven Yale University Souheast Asia Studies,
1988.
27
Nota do tradutor: Livro traduzido ao português como: Os afogados e os sobreviventes.
29

21. Por esta razão, as fotos são, em primeiro lugar, objetos semióticos que devemos
interrogar a partir de seus códigos de figuração (a escala, o ângulo, proporções, o
recorte, a luminosidade, o tempo de exposição…). Seu estudo nos ajuda a pensar
como os Khmers Vermelhos olhavam e, portanto, concebiam seus inimigos. Esta
representação, todavia, não e suficiente para explicar a força inesgotável das
fotografias. Nelas adquire forma um segundo nível: o instante singular do choque de
olhares; uma faísca registra aquilo que o ser retratado expressou em um gesto,
consciente ou não, a última vez em que foi fotografado, não antes, mas para morrer.
Por isso, o ato fotográfico tem algo de performativo: mais do que descrever um
inimigo, o produz; mais do que abrir uma ficha de detento, condena-o à morte. A foto
nos leva, então, ao instante, mas faz com que gravite sobre ele tudo o que
aconteceria depois. Poucas vezes a ideia barthesiana que define toda fotografia
humana com a arrepiante certeza do “Vai morrer” fica confirmada com mais
inexorável contundência.

Figura 3: Desenho de Vann Nath datado de 2006. Nele, se representa a impressão que o
detido tinha da captura fotográfica. Transportado de longe e com os olhos vendados, este,
ainda amarrado a outros prisioneiros, era repentinamente cegado por um holofote que
acompanhava a tomada da foto, no mesmo momento em que a venda era retirada de seus
olhos. Este desenho poderia ser considerado um contracampo do mugshot.
30

E, no entanto, estas fotos (toda foto, na verdade) são também objetos. Oxidam
em depósitos durante anos, seus negativos são resgatados para obter novas cópias,
mais contrastadas, que se ampliam a bel-prazer para tornar eloquente o detalhe
antes imperceptível; depois, emolduradas, serpenteiam por museus e galerias,
deixam-se acariciar como relíquias pelas mãos dos que amaram os entes nelas
retratados e, em inquietante contágio, deslizam entre as mãos dos executores. São
resíduos de vida nua que, ainda parecendo espectrais quando projetadas como
cortejo fúnebre em algumas páginas web28, em outras ocasiões adquirem corpo,
preenchem os espaços, agem como vestígios do passado em suporte matérico.
Em uma passagem de Shoah (Claude Lanzmann, 1985), o historiador Raul
Hilberg manuseia uma única folha amarelada: é um itinerário, diz, de um trem da
morte. Nele aparecem os horários precisos, mencionam-se nomes de estações,
enumera-se os vagões, as unidades – isto é, os corpos – transportadas no seu interior.
O historiador decifra minuciosamente as distâncias e as projeta sobre o mapa
imaginário da deportação; lê chaves ocultas, como essas duas letras – LZ (leer Zug ou
trem vazio) – que escondem um crime, pois aludem a um trem cujos vagões foram
descarregados em Treblinka e retorna vazio. Hilberg não só interpreta o documento;
preenche suas lacunas e seus silêncios. Contudo, o que mais fascínio produz a este
investigador do Holocausto nesse memorável trecho é que ele se encontra perante
um original, que devia ter tantas cópias como funcionários implicados na ordem.
Como genuíno que é, passou pelas mãos de um funcionário da deportação e só por
isso ele conseguiu cumprir com a tarefa. Em outras palavras, antes de ser documento
do acontecido, esta folha foi um mandato, um texto performativo: não relata, produz.
Possuí-lo, tocá-lo, no mesmo tempo em que é decifrado, é se colocar no lugar do
executor, acompanhar seu processo mental, arrebatar dele, sem dúvida já tarde
demais, a sua arma de destruição.

28
Veja-se, por exemplo, o dispositivo empregado no projeto da Universidade de Yale:
http://cgp.research.yale.edu/cgp/cts/cts_slideshow.jsp Uma estratégia diferente pode ser encontrada
na seção fotográfica da página web de Tuol Sleng: www.tuolsleng.com/photographs.php (última
visita das duas em 25 janeiro 2014).
31

As fotos de Tuol Sleng são tramas de informação que nos falam da identificação
dos detentos e, como tais, hão de ser analisadas também nas suas margens, inferido
o seu fora de campo, reconstruído ou quase imaginado o que apenas se insinua em
alguma das bordas do enquadramento. São, por outro lado, atos que fizeram de um
ser um culpado e o precipitaram a uma queda sem chances. Mas são igualmente, e
por último, vestígios materiais arrancados do obscuro mundo dos Khmers
Vermelhos, objetos manufaturados por eles, recortados, examinados
cuidadosamente, comentados, inventariados, manuseados. Neles permanece ainda
algo do ruído e da fúria de quem os produziu e do calafrio de quem, inocente ou não,
os sofreu. Como tantos objetos que povoam os museus de guerra, fetiches para uns,
dolorosa matéria que provocou a morte para outros, façamos o que façamos com
eles, jamais conseguiremos silenciar seu grito.

Figura 4: Cela no piso térreo do edifício onde, entre 10 e 14 de janeiro de 1979, foi encontrado
pelos vietnamitas que tomaram Phnom Penh um corpo torturado e assassinado em estado
de decomposição. A política do museu preservou a cama de ferro original, dispôs sobre ela
alguns instrumentos de tortura e pendurou a fotografia do primeiro encontro (feita pelo
fotógrafo Vietnamita Ding Fong) na parede da esquerda; amostra da orientação traumática
do museu e da vontade de apostar na memória do encontro do olho com o horror.
32

O contemporâneo pré-figurado

Raul Antelo

Heinrich Wölfflin já advogava, em A arte clássica (1898), por um estudo rigoroso


das mudanças estilísticas, baseado numa profunda análise das opções individuais,
sem tanta ênfase na anedota historicista. Walter Benjamin, que foi seu aluno em
Munique, em 1915, e era muito crítico, não só com relação a seu ensino, mas também
quanto a seu método, muitas vezes considerado formalista e anti-historicista, sentia-
se, porém, mais à vontade com as teorias de Aloïs Riegl. Em um artigo
intitulado “Estudo rigoroso da arte” (1932), Benjamin demonstra sua proximidade às
ideias de Riegl como ponto de partida para uma disciplina futura e para tanto
apropriava-se da ideia de Hans Sedlmayr1 acerca da necessidade de um estudo
rigoroso da arte:

The currently evolving phase in the study of art will have to emphasize, in a heretofore
unknown manner, the investigation of individual works. Nothing is more important at the
present stage than an improved knowledge of the individual artwork, and it is in just this
task, above all, that the extant study of art manifests its incompetence… Once the
individual artwork is perceived as a still unmastered task specific to the study of art, it
appears powerfully new and close. Formerly a mere means to knowledge, a trace of
something else which was to be disclosed through it, the artwork now appears as a self-
contained small world of its own, particular sort.2

Nesse mesmo momento em que enfatizava o rigor construtivo da obra de arte,


Benjamin começa também a elaborar uma poética própria, através das imagens do

1
SEDLMAYR, Hans. “Towards a Rigorous Study of Art” in WOOD, Christopher (ed) - The Vienna School
Reader: Politics and Art Historical Method in the 1930s, New York, Zone, 2000, p.133–179. Sobre o texto,
FUHRMEISTER, Christian. “Reine Wissenschaft: Art History in Germany and the Notion of 'Pure Science’
and 'Objective Scholarship’, 1920–1950” in FRANK, Mitchell B. e ADLER, Daniel (ed.) - German Art
History and Scientific Thought: Beyond Formalism. Farnham-Burlington, Ashgate, 2012, p. 161–177;
BORN, Robert. “World Art Histories and the Cold War” in Journal of Art Historiography, nº 9,
Nottingham, dez. 2013; BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo,
Cosac Naify, 2006; VARGIU, Luca. Incroci ermeneutici. Betti, Sedlmayr e l’interpretazione dell’opera
d’arte. Centro Internazionale Studi di Estetica, nº 82, Palermo, abr. 2008.
2
BENJAMIN, Walter. “The rigorous study of art”. Selected writings, Vol. 2, 1927-1934. Trad. Rodney
Livingstone et all. Cambridge, The Belknap Press of Harvard University Press, 1999, p. 667.
33

pensamento que obedeceriam então à preceptiva de movimento de Riegl. Escreve,


por exemplo, por esses mesmos dias, um fragmento intitulado “Após a conclusão”:

Com freqüência se tem imaginado a gênese das grandes obras na imagem do


nascimento. Esta imagem é dialética; abrange o processo por dois aspectos. Um tem a
ver com a concepção criativa e se refere, no temperamento, ao feminino. Este fator
feminino se esgota com a conclusão. Dá vida à obra e então se extingue. O que morre no
mestre com a criação concluída é aquela parte nele em que a obra foi concebida. Mas eis
que a conclusão da obra não é uma coisa morta – e isto nos leva ao outro aspecto do
processo. Ele não é alcançável pelo exterior; o polimento e o aprimoramento não podem
extraí-lo à força. Ele se consome no interior da própria obra. Aqui também se pode falar
de um nascimento. Ou seja, em sua conclusão, a criação torna a parir o criador. Não
segundo a sua feminilidade, na qual ela foi concebida, mas no seu elemento masculino.
Bem-aventurado, o criador ultrapassa a natureza: pois esta existência que ele recebeu,
pela primeira vez, das profundezas escuras do útero materno, terá de agradecê-la agora
a um reino mais claro. A sua terra natal não é o lugar onde nasceu, mas, sim, ele vem ao
mundo onde é a sua terra natal. É o primogênito masculino da obra, que foi por ele
concebida.3

Retornaremos à ideia de que, após seu esgotamento, a criação faz o criador,


premissa maior de uma concepção dinâmica e inclinada à metamorfose contínua,
mas frisemos que, muito embora freqüentemente sejam confrontados por posições
políticas antagônicas, cabe relembrar que Hans Sedlmayr também proporia, em sua
obra prima, A perda do centro 4, uma série de seqüências que organizariam uma
história após-a-finitude. Destaca, assim, por exemplo, que Goya seria o primeiro
artista ocidental a derrubar o sublime. Para tanto, Sedlmayr parte de uma ideia de
Ernst Jünger, a de que os altares em ruína são habitados pelos demônios, que é uma
forma de admitir que a tecnologia transformou o universo em um imenso ready-
made, uma obra de arte total, inversão especular do gesto vanguardista de Duchamp,
quem colocou qualquer objeto como obra de arte5. Sedlmayr propõe então ver, em

3
Idem. Rua de mão única. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São
Paulo, Brasiliense, 1987, p. 277 (Obras escolhidas, vol. 2).
4
SEDLMAYR, Hans. Perdita del centro. Le arti figurative dei secoli diciannovesimo e ventesimo come
sintomo e simbolo di un’epoca. Trad. M. Guarducci, Torino, Borla, 1967.
5
Boris Groys vê essa mesma opção em Kojève. Ele teria tomado a Fenomenologia do Espírito como um
ready-made e reservado para si a função de assinar essa obra no novo contexto, o entorno acefálico
do Paris de entre-guerras. Da mesma forma, o fenômeno da reprodução, para Kojève, é que passava
a ocupar agora o centro que Sedlmayr julgava perdido. Na época da religião tradicional, argumenta,
as operações de repetição e reprodução estavam restritas a locais sacros, ao passo que os profanos
permaneciam num fluxo indeterminado de tempo. Na nova condição, exigem-se garantias de
reconhecimento, duração e, eventualmente, vida póstuma, que valeriam para cada um e para todos,
34

Goya, um êmulo de Kant, um destruidor6, por partir da esfera mais subjetiva, a do


sonho, que transfere às suas imagens um caráter disparatado. Elas não teriam a
ambição de uma escrita ideográfica; mas seriam, em compensação, uma linguagem
universal, sem por isso serem alegorias, em demanda de decifração. Os sonhos
tornam-se assim meros caprichos (solução para a qual Goya, a rigor, inspira-se em
Tiepolo); mas cabe destacar também que as didascálias originais de Goya, nessas
gravuras, são indecifráveis não só para nós mas, basicamente, para o próprio artista,
assim como certas ações do sonho tem sentido apenas enquanto dura o sonho mas,
cessada a experiência, vêem-se desprovidas de qualquer valor. Ou antes, passam a
ser reconfiguradas après-coup. Nasce daí, segundo Sedlmayr, uma nova leitura do
humano, em que o homem paulatinamente se demoniza, e não apenas
exteriormente, como aliás, já detectara Baudelaire, quando observou que os rostos
ocupam, em Goya, o entre-lugar entre homem e animal. Derrubada, portanto, a
centralidade da razão, Sedlmayr destaca, a seguir, em Grandville, um passo além,
mesmo que muito simples, de propor a degradação. Ele consiste em contemplar o
mundo humano a vôo de pássaro, de tal forma que os acontecimentos mundanos
apareçam desvalorizados, carentes de qualquer relevo ou dignidade. E novamente
Baudelaire comparece para justificar que Grandville seria uma sensibilidade pós-
humana, um cérebro literário doentio que se comprazia, através dessas figuras de
sonho, em preanunciar o Apocalipse.
Essa ideia de um mundo fragmentado se traduziria, exemplarmente, na
questão do torso, que remonta à escultura de Rodin, algumas de cujas obras são

omnes et singulatim, para retomarmos a chave biopolítica de Foucault. Ver GROYS, Boris. Introduction
to Antuphilosophy. Trad. David Fernbach. Londres, Verso, 2012, p.100. É o que, paralelamente, Borges
exploraria através de Pierre Menard. Voltaremos nesse ponto.
6
Relembrar o perfil do destruidor segundo Benjamin: “O caráter destrutivo é jovial e alegre. Pois
destruir remoça, já que remove os vestígios de nossa própria idade; traz alegria, já que, para o
destruidor, toda remoção significa uma perfeita subtração ou mesmo uma radicalização de seu
próprio estado. O que, com maior razão, nos conduz a essa imagem apolínea do destruidor é o
reconhecimento de como o mundo se simplifica enormemente quando posto à prova segundo mereça
ser destruído ou não. Este é um grande vínculo que enlaça harmonicamente tudo o que existe. Esta é
uma visão que proporciona ao caráter destrutivo um espetáculo da mais profunda harmonia. O caráter
destrutivo está sempre trabalhando de ânimo novo. É a natureza que lhe prescreve o ritmo, ao menos
indiretamente; pois ele deve se antecipar a ela, senão é ela mesma que vai se encarregar da
destruição.” BENJAMIN, Walter. Rua de mão única, op.cit., p. 235.
35

indecidíveis quanto a constituírem um todo em si mesmas ou serem apenas um


esboço de algo maior. No torso, forma e matéria separam-se, como em Catedral,
apenas duas mãos alçadas ao sublime, de tal modo que podemos (ou não) ver essas
mãos como fragmento de um todo, atendendo aquilo que Baudelaire dizia, em “Salão
de 1859”, que as esculturas são os arquivos mais importantes da vida universal.
Ora, no início do século XX, o crítico de arte Carl Einstein qualificou seu
revolucionário Negerplastik (1915) de simples torso7, mas caberia dizer que, tal como
Benjamin, e com as mesmas ruínas mexicanas, aliás, da Rua de mão única, o filósofo
argentino Luis Juan Guerrero (1899-1957) captaria, pioneiramente, o julgamento de
Benjamin de que somente completa a obra quem a quebra, “tornando-se um
fragmento do mundo vindouro, o torso de um símbolo”8. A estética operatória de
Guerrero poderia ser pois uma resposta à necessidade de politização da arte que
Benjamin propunha no ensaio sobre a obra de arte de 1936 e, nesse sentido, a
questão da forma era portanto, e tão somente, a exposição temática de uma
diminuição axiológica da realidade e uma correlativa elevação do poder individual de
criação de valores, o que levava Guerrero a vaticinar, já em 1949, uma mudança de
estatuto da obra de arte, na época da sua reprodutibilidade técnica. Essas ideias de
Guerrero, confirmadas mais adiante na sua magna opus, em três volumes, Estética
Operatoria em sus tres direcciones. Revelación y acogimiento de la obra de arte (1956)9,
apoiadas não só no filósofo das passagens, mas também em Heidegger, Blanchot e
Husserl, estabeleciam que a expressão do homem somente se realiza se previamente
podemos contar com uma auto-realização do homem, através da arte, ou seja,
“cuando entendamos el ec-sorcismo, no solamente como la brujería artística de crear
un objeto insular, sino también como la magia que emplea el hombre sobre si mismo,
para proyectarse en una nueva realización de la vida humana”10. Monumentalização

7
BASSAANI, Ezio e PAUDRAT, Jean-Louis. “Notas sobre un torso” in EINSTEIN, Carl – La escultura negra
y otros escritos. Barcelona, Gili, 2002, p. 63
8
BENJAMIN, Walter. “Die Wahkverwandtschaften de Goethe” in Sobre el programa de la filosofía futura
y otros ensayos. Trad. R. Vernengo. Caracas, Monte Avila, 1970, p. 72.
9
GUERRERO, Luis Juan. Estética Operatoria em sus tres direcciones. Revelación y acogimiento de la obra
de arte. Ed. Ricardo Ibarlucía. Buenos Aires, Las 40, Biblioteca Nacional, 2008.
10
Idem. “Torso de la vida estética actual”. Actas del Primer Congreso Nacional de Filosofía (Mendoza
1949), Universidad Nacional de Cuyo, Buenos Aires 1950, vol. II, p.1474.
36

do esboço, o torso precipitaria assim o diagnóstico de Sedlmayr: o homem perdeu


seu centro11. Haveria, portanto, apesar dos pesares, um certo paralelismo entre a
perda do centro (Verlust der Mitte) de Sedlmayr e a perda da aura (Verlust der Aura)
de Benjamin.
Guerrero, como sabemos, foi o introdutor de Walter Benjamin nos estudos
universitários latino-americanos. Em seu curso de Estética, em La Plata, em 1933,
inclui “O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão” (1918, publicado em
1920) e seu próprio texto sobre o torso (1949) não deixa dúvidas quanto à leitura do
ensaio benjaminiano sobre a obra de arte, explícitamente citado, na tradução de
Klossowski ao francês, na obra posterior de Guerrero, em 1956 12. Mas em 1967, outro
argentino, o escritor H. A. Murena (Héctor Álvarez Murena, 1923-1975) empreende a
primeira tradução comercial dos ensaios de Benjamin13, à qual seguiria, em 68, a

11
Sedlmayr argumenta que a arte também se afasta do centro e isso vale tanto para os temas artísticos
quanto para a relação entre as artes, relação em que a escultura emerge como mediadora. A arte
torna-se assim ex- cêntrica, em todos os sentidos. O homem pretende sair dela, que por sua própria
natureza constitui o centro entre o espírito e os sentidos, e ela mesma tenta abandonar essa arte em
que, como o homem, já não encontra resposta nem sentido. Tende, portanto, a uma “super-arte” que,
simultaneamente, projeta-a no “sub-artistico”. Com essa descrição, Sedlmayr alude à saída surrealista
das vanguardas, último avatar da inteligência europeia, segundo Benjamin, e seu consequente receio
de queda na diluição e no Kitsch. Como, para Sedlmayr, a arte afasta-se do homem e da justa medida,
esses sintomas se correspondem, a seu ver, com tendências verificáveis no próprio homem. Mas não
é só na arte que o homem busca afastar-se do “centro” e do próprio homem, muito embora seja na
arte, para Sedlmayr, que melhor se ilustram essas ocorrências.
12
GAVIÑA, Graciela Wamba. “La recepción de Walter Benjamin en la Argentina”, in VÁRIOS AUTORES.
Sobre Walter Benjamin. Vanguardias, historia, estética y literatura. Una visión latinoamericana. Buenos
Aires, Alianza/Goethe-Institut, 1993; GARCIA, Luis Ignacio. “Entretelones de una estética operatoria.
Luis Juan Guerrero y Walter Benjamin”. Prismas. Revista de historia intelectual. Quilmes (Argentina),
nº 13, 2009, p. 89-113.
13
BENJAMIN, Walter. Escritos escogidos. Trad. H. A. Murena. Buenos Aires, Sur, 1967. O volume reúne
“Sobre algunos temas en Baudelaire”, “Tesis de la filosofía de la historia”, ”Franz
Kafka”, ”Potemkim”, ”Un retrato de infancia”, ”El hombrecito jorobado”, ”Sancho Panza”, ”La tarea
del traductor”, ”Sobre la facultad mimética”, ”Para una crítica de la violencia” e ”Destino y carácter”.
Sobre o Autor, ver “Murena, el anacrónico”, de Juan Liscano (in Descripciones. Caracas, Monte Avila
Editores, 1983); “Murena, la palabra injusta”, de Hugo Savino (in El innombrable, n° 1, Buenos Aires
1985; “H.A. Murena”, de Héctor Schmucler (La Caja, n° 10, Buenos Aires 1994); ”Relámpago de la
duración”, de David Lagmanovich (in Revista Iberoamericana, n°56, Pittsburgh, 1963, mais tarde
incluído em Discursos poéticos. Universidad Nacional de Tucumán, 1998; “Murena un crítico en
soledad”, de Américo Cristófalo (in Historia crítica de la literatura argentina de Noé Jitrik. Vol 10: La
irrupción de la crítica. Buenos Aires, Emecé, 1999; “El intelectual ultranihilista: H.A. Murena
antisociólogo”, de Leonora Djament (in Historia crítica de la sociología argentina, editor Horacio
González. Buenos Aires, Colihue, 1999; “Murena en busca de una dialéctica trascendental”, de Silvio
Mattoni (in Confines, n°7, Buenos Aires, 1999); “El silencio imposición-incomunicación con el nuevo
mundo en la perspectiva mítica de H.A. Murena”, de Leonor Arias Saravia (in La Argentina en clave de
metáfora, Buenos Aires, Corregidor, 2000); Visiones de Babel, uma antologia preparada e prologada
37

tradução parcial do colombiano Carlos Rincón e, em 1973, a muito mais difundida do


duque de Alba, Jesús Aguirre, pela editora espanhola Taurus. Quase
simultaneamente, porém, em outubro de 1968, Murena intervém, em Roma, em um
colóquio, “Eternidade e História. Valores permanentes no devir histórico” 14,
convocado por Luigi Pareyson, e do qual participam, entre outros, Michelle Sciacca,
Eric Voegelin, Wladimir Weidlé e o próprio Hans Sedlmayr. Em sua comunicação,
Murena parte de uma observação, a primeira vista, extravagante de Sedlmayr,
colhida na tradução italiana de A perda do centro, publicada um ano antes:

hacia esa época (isto é, fins do século XVIII, inícios do XIX) el arquitecto Lequeu15 concibe
un monumento que será la ‘Entrada a la morada de Plutón’. Pues cuando el hombre cree
autonomizarse y borrar el Cielo, es la Tierra la que se autonomiza a costa del hombre y,

por Guillermo Piro (México, Fondo de Cultura Económica, 2002) e “El arte y el lugar”, de Silvio Mattoni,
prefácio à reedição de La metáfora y lo sagrado (Buenos Aires, Cuenco de plata, 2011). Houve, além do
mais, antologias de seus poemas em El jabalí, revista ilustrada de poesia, n° 10, Buenos Aires, 1999 e
no Diario de Poesía, n° 60, Buenos Aires, jan. 2002.
14
Abriu o colóquio Luigi Pareyson (“Valori permanenti nel divenire storico”), a quem Guerrero incluíra
no congresso filosófico de 1949, uma vez que, à época, Pareyson era professor em Mendoza e, a
seguir, falaram o filósofo da integralidade, Michele Federico Sciacca (“Storicismo o storicità dei
valori?”); o estudioso dos ameríndios Joseph Epes Brown (“The persistence of essential values among
North American Plains Indians”); o jurista Sergio Cotta (“L’esperienza giuridica e i valori permanenti”);
o politólogo Augusto Del Noce (“Contestazione e valori”); o filósofo húngaro Thomas Molnar
(“Religion et utopie”); o psiquiatra Henri Baruk (“Le Tsedek, science de l’homme et religion de
l’avenir”); Cyrill von Korvin-Krasinski (“La crise de l’homme occidental du point de vue de
l’anthropologie indo- thibétaine”); o historiador Paolo Brezzi (“I valori religiosi nel divenire storico”);
Germaine Dieterlen (“Les valeurs permanentes des Bambara et la société initiatique du Komo”); o
sinólogo Carl Philip Hentze (“Le culte des ancetres et l’idée de permanence dans la Chine la plus
ancienne”); Marie E. P. Konig (“A propos de l’évolution continuelle de la civilisation pendant les
périodes préhistoriques”); o etnólogo argelino Jean Servier (“Valeurs permanentes des civilisations
traditionnelles et devenir du tiers-monde”); Giorgio Diaz de Santillana e Herta von Dechend (“Syrius
as a permanent center in the archaic universe”); Seyyed Hossein Nasr (“Man in the universe”); o
biológo Giuseppe Moruzzi (“Visual perception and symbology”); Marius Schneider (“La notion du
temps dans la philosophie et la mythologie védiques”); o cientista político Eric Voegelin (“Equivalences
of experience and symbolization in history”); o etnólogo Dominique Zahan (“Mythes d’origine de la
mort: le message manqué”); o crítico de arte Hans Sedlmayr (“Il legame fra visibile e invisibile nell’opera
d’arte”); o escritor Carlo Cassola (“Cultura e poesia”); um discípulo de Barchelard, o etnólogo Gilbert
Durand (“Le système des images divines et sa pérennité”); o teatrólogo Diego Fabbri (“Spirito creativo
e simboli”); o já citado Héctor Alvarez Murena (“El arte como mediador entre este mundo y el otro”);
o arquiteto norueguês Christian Norberg Schulz (“Il concetto del luogo”); o suiço Théophile Spoerri
(“La permanence des valeurs dans l’éclatement des structures (Mallarmé, Pascal, Dante)”) e o crítico
polonês Wladimir Weidlé (“L’image: deuxième langage de l’homme”). VÁRIOS AUTORES. Eternità e
storia. I valori permanenti nel divenire storico. Ed. Istituto Accademico di Roma. Roma, Valecchi, 1970.
15
Jean-Jacques Lequeu foi um arquiteto e desenhista contemporâneo da Revolução, de cujos projetos
nenhum chegou a se materializar. É famoso por seus retratos em travesti ou pelos estudos sobre os
órgãos sexuais. Marcel Duchamp e, de modo geral, a linha sadeana do surrealismo muito apreciaram
sua obra utopista e in-operante.
38

trasformada en imagen invertida del Cielo, resulta ser el inferus privador, emblema de las
potencias plutónicas, infernales, a las que el mediador queda sometido. Así la moral
autónoma fundada en la libertad interior de Kant encuentra su reducción a la absurda
verdad en que se sustentaba a través de la libertad moral absoluta para el crimen de la
filosofía de Sade. Así la revolución industrial que venía a liberar al hombre de la maldición
originaria del trabajo elimina el elemento humano del trabajo y convierte al hombre en
una máquina para trabajar. Así la economía, de ser la administración (nomos) de la casa
(oikos), mediante la cual el hombre apacentaba sus bienes, se desencadena y se
transforma en un sistema global gracias al que el poder abstracto del dinero se coloca
asfixiantemente por encima del hombre. Así la Revolución Francesa cuyo fin era lograr la
igualdad de todos los hombres encuentra su portavoz en Napoleón, quien es el primero
en decidir que todos los hombres de la comunidad deben servir igualmente a la guerra,
con lo que inaugura las guerras de movilización total que se prolongan hasta hoy e
insinúan que la guerra ha dejado de ser una de las tantas funciones de la comunidad para
convertirse en característica primordial de tiempos de metódica guerra de todos contra
todos. La aspiración a lo total por cualquier aspecto de lo humano – guerra, economía,
libertad, arte, técnicas, etc. –, dice que la parte del Cielo, de Dios, ha sido liquidada sobre
la Tierra: dice que la Tierra se ha vuelto totalitaria. El totalitarismo como fenómeno
constituye la caricatura material terrestre, que busca abarcar y dominar, del absolutismo
espiritual celeste, que penetra y sustenta. Tal totalitarismo puede concretarse
incidentalmente en sistemas políticos autocráticos, aunque esto no es indispensable:
hoy el totalitarismo es puesto en práctica en todos los órdenes con la mayor eficacia por
una tecnocracia que usa políticamente una máscara benévola.16

Quase em simultâneo com a aposta de Auerbach pela irrestrita continuidade do


realismo em Ocidente, Hans Sedlmayer propunha, em 1948, a perda do centro, tese
que repercutiria aqui em Osman Lins; Murena, porém, recebe essa tese, em 68, em
chave guerrero-benjaminiana, como perda da aura, mais ou menos na linha também
explorada por um pensador gramsciano como Ernesto de Martino, em O fim do
mundo17.

Con mayor firmeza a partir del siglo XVIII, empieza a observarse en la historia del arte
occidental la deformación de tal imagen mediante lo demoníaco y lo caótico (Goya),
mediante el humor (Daumier), mediante lo onírico mecanizado (Grandville), mediante la
conversión del hombre en un objeto intercambiable con cualquier otro para la mirada
artificialmente pura (Impresionismo), hasta llegar a presentar a los humanos como
muñecos, autómatas, monstruos, espectros, esqueletos, animales, máquinas
(Surrealismo, Picasso, Ensor, Dalí, Seurat, Kokoschka, Grosz, etc.). El desenlace de este
proceso es el llamado arte abstracto y sus sucesores hasta el presente (Kandinsky, Klee,
et al., incluyendo el “tachismo”, la action painting, etc.), que constituye el punto cero en
el que la imagen humana desaparece por completo: lo que se media a este mundo –
ausente como paisaje o contorno natural de cualquier índole en su transformación en
mero espacio pictórico puro – es el Otro Mundo, el Cielo o Dios, reducido a nada. Este
arte media la nada a la nada, queda reducido a la pura función de mediar que ejecuta sus

16
MURENA, H. A. La metáfora y lo sagrado. Buenos Aires, El Cuenco de Plata, 2012, p. 52-53.
17
MARTINO, Ernesto de. La fine del mondo. Contributo all’analisi delle apocalissi culturali, Torino,
Einaudi, 1977.
39

movimientos en el vacío: de esta suerte el arte denominado abstracto pone de


manifiesto la naturaleza del arte “puro”.18

O julgamento embute a avaliação dura de Sedlmayr, próxima da condenação à


arte degenerada. Mas, assim fazendo, Murena está também percorrendo o caminho
cheio de percalços do filósofo das passagens porque, se o totalitarismo pervive na
tecnocracia democrática, bem pode o cinema, que Benjamin considerava a saída para
a obra de arte na época da reprodutibilidade técnica, transformar-se em algoz da
sensibilidade e da memória. A recente edição de Giorgio Agamben, Barbara Chitussi
e Clemens-Carl Härle do ensaio benjaminano sobre Baudelaire recupera um torso
textual, um esboço manuscrito de Benjamin, que assim o documenta. Ao contrario
do ensaio sobre a obra de arte, de 1936, que enfatizava a potencialidade
revolucionária do cinema, o pequeno “Was ist Aura?”, redigido dois anos mais tarde,
mostra, porém, seu aspecto regressivo, quando pondera que, sem o cinema, talvez a
decadência da aura se sentiria de um modo insuportável, isto é, a imagem
cinematográfica amenizaria ou até mesmo impediria o impacto da queda do centro
e, conseqüentemente, toda saída emancipatória19.
Ora, independentemente de Sedlmayr, Murena já desenvolvera uma leitura
muito semelhante em 1950. Em um ensaio em homenagem a Nietzsche, certamente
influenciado pelo livro de seu precursor, um warburguiano como Ezequiel Martinez
Estrada20, Murena afirma que “no hay impulsos para vivir cuando la vida es lo único
que se nos ofrece” e, nesse sentido, diante dessa vida nua21, essa vida precária22, como
as massas são cegas e arrastam consigo os Estados à sua própria destruição, “el
hombre no puede pensar que no debe pensar”, ideia que se alimenta da simples

18
MURENA, H. A. La metáfora y lo sagrado, op. cit., p. 54-55.
19
BENJAMIN, Walter. “Che cos´è il aura?” in Charles Baudelaire. Un poeta lirico nell´età del capitalismo
avanzato. Ed. Giorgio Agamben, Barbara Chitussi e Clemens-Carl Härle. Vicenza, Neri Pozza, 2013.
20
MARTINEZ ESTRADA, Ezequiel. Nietzsche. Buenos Aires, Emecé, 1947.
21
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burigo, Belo
Horizonte, Ed. da UFMG, 2002.
22
BUTLER, Judith. “Vida precária”. Contemporânea. Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos,
Departamento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, 2011, nº 1, p.13-33; Idem.
Precarious Life: The Powers of Mourning and Violence. London, Verso, 2004.
40

impossibilidade “de trasladar lo absoluto a la tierra, de tomar a la tierra centro de si


misma”. E acompanhando o Mit-sein heideggeriano, Murena completa:

Nietzsche derruyó el concepto tradicional que desde Aristóteles hasta Hegel afirma que
el hombre es un ser de razón, pero al término de esta tarea tuvo que asentir al irrefutable
principio de que por lo menos es un ser con razón. O sea que el hombre no es sólo razón,
pero tiene una razón que lo distingue. Y que, en consecuencia, como la razón se polariza
fatalmente sobre el par de centros de la verdad y el error.

Em outras palavras, Murena, que a essas alturas ainda não lera Sedlmayr, diz
que o centro se perdeu mas que o homem (o ser-com ou Mit-sein), mesmo querendo
salvar a razão, obedece, na verdade, a dois centros, verdade e erro ou, como dirá
Lacan, Kant com Sade. Esta bipolaridade aventa, portanto, a hipótese por ele mesmo
desenvolvida, em 1954, em El pecado original de América Latina, e que poderia
resumir-se em que a filosofia contemporânea

desdiviniza y desuniversaliza, pero cumple el giro copernicano de hacer que la razón se


introduzca en el mundo, que afronte las cosas tal como son. Las enseñanzas y
descubrimientos que aportan sus análisis de la contingencia son preciosos, son como el
pico que se va abriendo camino a través de la más dura roca de la realidad. Y cuando esta
crisis haya pasado −y la razón y la humanidad son más fuertes que cualquier crisis−,
cuando el espíritu del hombre vuelva a sacar su cabeza del otro lado del mundo, la nueva
universalización, la nueva idea de Dios que surgirá, será la más fuerte, la más verdadera,
porque por primera vez se habrá logrado después de sostener realmente la prueba del
mundo. Será entonces la universalización que Nietzsche quería, la del superhombre, que
no prescinde de razones ni de pasiones, que pone en juego todas las cartas que le han
sido dadas al hombre.

Los americanos tenemos desde antes que nadie y con mayor intensidad que ninguno la
experiencia de la desuniversalización. Porque América, la tierra aún no poseída por el
espíritu, la tierra que abate al hombre, es por excelencia el mundo desuniversalizado. En
este ámbito oscuro y caótico la razón se ve en cada momento llamada a actuar, en cada
minuto se siente convocada a librar su épica ante la tierra, no puede encerrarse en el
racionalismo ni abandonarse al irracionalismo. Este mundo crudo, en descubierto, libre
de teorías, es la situación que Nietzsche pedía para que la razón hiciera frente a su
verdadera prueba, para fundar una filosofía viva23.

Murena coloca, no lugar de uma substância, o americano, uma subversão. Não


fala em identidade americana mas alude, porém, a uma posição do sujeito, ou como

23
MURENA, H. A. “Nietzsche y la desuniversalización del mundo”. Sur, nº 192-94, Buenos Aires, out-
dez 1950, p. 75-85.
41

diria Lacan, uma subversão do sujeito e uma dialética do desejo. Avança, assim, a
noção do singular que se singulariza a si próprio, algo que já não é uma unidade
indivisível ou uma essência, mas uma unicidade entendida como existência sem par
(América como o mundo desuniversalizado). Não é portanto o particular da tradição
hegeliana, uma vez que este, sendo parcial, uma simples parte do Todo, está imerso
na dialética entre o particular e o universal. O singular é a diferença absoluta que
vincula-se com outros singuli, outros sujeitos. Em 1965, a propósito, uma aguda
leitora de Murena, a poeta Alejandra Pizarnik, chama a atenção para um texto dele,
“Trabajo central”, ou seja, o trabalho do centro, onde o autor, precisamente,

poetiza un instante soberano, un instante privilegiado. Una suerte de energía primordial


fundamenta ese instante en el que cesa toda oposición. Lo posible irrumpe como un sol
y las palabras vuelven a ser las genuinas, aquellas “no perdidas en lo extraño”. Del mismo
modo, el doloroso límite de las cosas es anulado y, en consecuencia, la libertad del poeta
se torna ilimitada. Por eso el poema finaliza así: Que se entienda / esta dicha terrible / que
es cualquier barco / hacia todo naufragio. Estos versos dicen de la alegría más alta, invocan
a la muerte, pero aquí la muerte ya no es más lo ajeno que produce miedo, no es más lo
contrario de la vida, y se comprende que su fascinación sea irresistible24.

Com uma fórmula de inegável sotaque bataillano, Pizarnik intui, nessa peça de
Murena retirada de El demonio de la armonía (1964), a emergência do Real que, ao
dessubstancializar a matéria, propõe, em seu lugar, a subversão. Ora, foi justamente
na introdução a Ensaios sobre subversão (1962), onde Murena começou a elaborar
uma teoria do contemporâneo que muito deve à sua leitura do instante-já
benjaminiano e preanuncia o percurso de Agamben ou mesmo Didi Huberman no
tocante a uma temporalidade pós-histórica ou simplesmente pós-aurática:

En general, las falsas subversiones – de las que está hecha casi el total de la cultura
presente – se dirigen al hombre de letras para reclamarle solidaridad con sus
contemporáneos, contemporaneidad. Y, en efecto, el hombre de letras debe ser
contemporáneo. Pero lo que la falsa subversión exige es adhesión a una de las facciones,

24
PIZARNIK, Alejandra. “Silencios en movimiento”, Sur, nº 294, Buenos Aires, maio-jun. 1965, p. 103-6.
Cito o poema “Trabajo central”, in extenso: “El instante / en que la espada / de lo posible / súbitamente
/ se inyecta de sol, / gira, / a segar empieza / los limbos palpitantes. / Y más allá, / cuando como diluvio
/ de pétalos descienden / las tibias, las fuertes / y finas, / las iridiscentes palabras recogidas / con ambas
manos / antes de que se posen / sobre la realidad / Precisamente / libre de libertad, / lento vuelo / de
pájaros / visto en un espejo, / rumor aciago, / fruta absoluta, / un cadalso cubierto / de polen. / Que se
entienda / esta dicha terrible / que es cualquier barco / hacia todo naufragio”.
42

inmediatez absoluta, liquidación de la distancia, que es justamente lo que la cultura debe


instaurar y preservar en forma viva, para impedir la violencia inhuman o ahumana. Así, el
hombre de letras, si desea ser contemporáneo, debe comenzar por ser anacrónico.
Anacrónico en el sentido originario de la palabra que designa el estar contra el tiempo.
La entrega total al presente es una entrega parcial; la contemporaneidad inmediata es
una atemporaneidad. Sólo se vive con plenitud el presente cuando se lo percibe en su
totalidad desde la perspectiva del pasado. Sólo se es con profundidad contemporáneo
al sumergirse en la contemporaneidad con la distancia del anacronismo. Ese
anacronismo contemporáneo puede encenderse en el mundo de las obras que el
hombre de letras forja cuando vive su fe y no se ve forzado a proclamarla 25.

“Em sua conclusão, a obra torna a parir o criador”

Hasta Darío no existía un idioma tan rudo y maloliente como el español.


Oliverio Girondo - Membretes26

Osvaldo Lamborghini (1940-1985) radicaliza essa alternativa. Ele começa a


escrever crente de que um significante nada representa, salvo um sujeito, uma
singularidade, para outro significante. Enuncia o que Murena ou Pizarnik, pudicos,
calam27, mas que Girondo, muito antes deles todos, arriscara a nomear: “El Falo es
nuestro dios”28. Ou seja, não há relação sexual. “Las partes son algo más que partes
- lemos no início de Sebregondi retrocede, onde o significante partes também conota
sexo, as partes pudendas - Dejan de ser partes cuando la última ilusión de cosagrande
redonda está pinchada. Desde adentro del repollo se ve la misma luz en todas partes,
pero. No hay partes. No hay muchos uno ni muchos ni uno uno” e é por isso mesmo
que “la convención se sostiene” 29. Nessa passagem, onde ressoa a filosofia
cucurbitácea de Macedonio Fernández, Lamborghini denuncia que para o

25
MURENA, Héctor A. Ensayos sobre subversión. Buenos Aires, Sur, 1962, p.12.
26
GIRONDO, Oliverio. Obra Completa. Ed. crítica Raul Antelo. Madrid, Paris… ALLCA XX, 1999, p.73 (Col.
Archivos, 38).
27
MUSCHIETTI, Delfina. “Ni siquiera la llanura llana” in DABOVE, Juan Pablo e BRIZUELA, Natalia (ed.)
Y todo el resto es literatura. Ensayos sobre Osvaldo Lamborghini. Buenos Aires, Interzona, 2008, p. 107-
118. Muschietti sugere a linhagem Girondo (explicitamente citado várias vezes por Lamborghini,
embora a crítica inisista em não vê-lo) - Pizarnik (a dos textos inéditos, póstumos), à qual se
acrescentam Susana Thénon e dois poetas desaparecidos em 1976, Miguel Ángel Bustos e Roberto J.
Santoro.
28
GIRONDO, Oliverio. Membretes. Aforismos y otros textos Ed. Martín Greco. Buenos Aires, Losada,
2014, p. 156.
29
LAMBORGHINI, Osvaldo. Novelas y cuentos. Pref. César Aira. Barcelona, Ed. del Serbal, 1988, p. 37.
43

establishment é necessário manter o centro. Sonhar com a restituição de uma Ordem


perdida que continua operando nas palavras como referência mítica - confessam,
anônimos, Lamborghini e Germán García - significa reprimir o possível en nome do
real30. Aliás, o diálogo de Lamborghini com um liberal inteligente, que bem poderia
ser Murena, condensa-se na pergunta: “¿por qué siente la necesidad de estar des-
garrado? Porque usted usted ne-cesita sentirse mal”31. Uma testemunha da época,
Edgardo Cozarinsky, confirma essa percepção quando define Murena como “el
hombre inaceptable por excelencia. Su soledad iba a hacerse aislamiento, su vida, una
ardua resistencia silenciosa”32. Lamborghini, no entanto, buscava um vínculo.
Ora, se não há muitos Um, nem muitos nem um Um, é porque muitos anus há
que não é possível legislar a contento. A política anal de Lamborghini, em sintonia
com Deleuze e Guattari, situa-se entre Sartre-o-universal, que enuncia todas as causas
políticas como se fossem próprias, e Foucault-o-impessoal, que recusa a possibilidade
de articular sua posição no interior das próprias lutas que ele mesmo impulsiona33.
Lamborghini encarna assim uma política local, anal, pós-colonial. Sua escritura não
cria segundo a sua feminilidade, mas conforme o seu elemento masculino e, tal como
dizia Benjamin, “após-a-conclusão”, sua terra natal não é o lugar onde nasceu, mas,
sim, ali onde essa escrita veio ao mundo é que se torna sua terra natal. Não seria essa,
precisamente, a via que o modernismo brasileiro não chegou a percorrer? A política
que, em Macunaíma, demandava o puito, o ânus, menos a gênese do que a
emergência, algo que não tem gênero e que escapa à diferença e que, mais tarde, em
“O carro da miséria”, pedia “um grito não um gruto”, ou seja não uma gruta, uma
cavidade, não pedia algo grotesco, mas um valor devidamente sublimado pela
máquina antropológica. Lamborghini, no entanto, busca esse ponto zero de
desterritorialização da política e dos corpos; não busca fazer do ânus o centro

30
“El matrimonio entre la utopía y el poder”. Literal, nº 1, Buenos Aires, nov. 1973, p. 41.
31
LAMBORGHINI, Osvaldo. Novelas y cuentos, op.cit., p 41. Em 1925, evidentemente após a leitura de
La gloria de don Ramiro (1908), romance que pastichava a vida espanhola do século de Ouro, Girondo
anota em um caderno, durante uma viagem de Lisboa a Buenos Aires: “Larreta: ¡Qué anacronismo
sobre patas! ¡Y al mismo tiempo que falta de amor al anacronismo! Unica posibilidad irónica de
cometer una reconstitución histórica”. GIRONDO, Oliverio. Membretes, op.cit., p. 151.
32
COZARINSKY, Edgardo. Blues. Buenos Aires, Adriana Hidalgo, 1010, p. 35.
33
PRECIADO, Beatriz. Terror anal y manifiestos recientes. Buenos Aires, La isla de la luna, 2013, p. 40.
44

perdido de Sedlmayr, mas deslanchar um amplo processo de deshierarquização e


descentralização dos fluxos. O jogo está claro:

Si en ese centro está la justicia (por social que sea) ¿cómo encontrarla en el pasado sin
evocar el paraíso, que sólo es tal al precio de estar perdido? 34

Esse hipotético diálogo, que é um diálogo com um iluminista, um letrado


universal, não é só inconfessável, mas também inacabado, infinito. Josefina Ludmer,
autora de um texto em parceria com Larborghini, e tão anônima quanto seus outros
colegas da revista Literal, os quais, ao rasurarem a assinatura, ecoavam o Scilicet de
Lacan, traça a fronteira que separa Lamborghini da literatura culta, de Borges a
Murena, que lhe antecede:

El discurso crítico debe confesar su límite: imposible seguir el viaje infinito de la


connotación (y es evidente que el reconocimiento de ese límite lo denuncia como un
discurso represor: todo corte de la cadena connotativa equivale a su institucionalización,
así como toda interrupción del viaje esquizofrénico instaura un “loco”). Y los efectos de
la dispersión del significante y del resto como goce son idénticos: cuando el significante,
después de atravesar el signo, después de recibir todas sus significaciones y
asociaciones, se borra como tal y se convierte en pura materialidad, cuando se deja
“entender” pero no es susceptible de “saber” el lenguaje anula sus niveles, jerarquías y
representaciones que constituyen la base del discurso crítico como metalenguaje.

Son pensables textos en los que el desperdicio se agiganta, en los que emerge como lo
único constitutivo; textos hechos meramente de restos, que no solo niegan todas las
posturas críticas sino todo metalenguaje, aplastando cualquier discurso crítico en tanto
dependiente y dominante de “otra” escritura, en tanto justificado por la existencia de
“otro” texto pero justificándolo a su vez; textos-restos, cuya única posibilidad de hablar
de ellos y del goce que producen sea, después de arduo trabajo, la de Pierre Menard, no
novelista, no autor sino lector de El Quijote35.

Nesse sentido, Osvaldo Lamborghini opta pela transformação mínima, a


transcrição e a colagem, fazendo do texto canônico um simples ready-made, algo que
já não deveria estar circunscrito a acólitos, mas aberto à profanação. Como já
ponderava Girondo em um de seus lembretes dos anos 20, o fato de Jean Lorrain usar
reto de platina e dentes de rubi, não é objeção suficiente para ignorar que foi ele que

34
“El matrimonio entre la utopía y el poder”, op.cit., p. 41
35
“El resto del texto”. Literal, nº 1, op.cit, p. 51.
45

descobriu os cassinos, o music-hall e portanto a literatura moderna 36. Outro tanto


aplica-se a Lamborghini37. Há um fotoepigrama muito emblemático, em seu Teatro
proletário de câmara, que nos mostra uma perspectiva crítica, pós-colonial diríamos
simplificando, mas que eu gostaria de chamar de sloterdijkiana. Corresponde a sua
derradeira época, em Barcelona. Há um título em letras garrafais: DELATORA (que
tanto podemos entender como uma agente feminina de delação, como um ator
masculino de pornopolítica que desca a tora na loira masoquista que se vê na foto).
Acima dela e aos lados, lemos:

ALEMANA (moderna)
CON FILOSOFO
CATALÁN
(postmoderno)
com-pensados o el Uno
para el Otro
(...)
BENJAMIN
A SUELDO DE UNA
FILOSOFIA DE
ADORNO38

A última frase, novamente, pode ser entendida como referência à dupla teórica
de Frankfurt ou, em compensação, interpretar-se como “o caçula pago por uma
filosofia de puro enfeite”. Constantemente, como muito antes, no ABC da guerra de
Brecht, língua e tesoura produzem a colagem como um diagnóstico certeiro da
normalização neoliberal em curso na Espanha dos anos 80.

36
GIRONDO, Oliverio. Membretes, op.cit., p.88
37
“Dios nos envía la vigilia y la razón mientras que el sueño en cambio (pero ahora, ya no me acuerdo),
el sueño. Hoy no: no hoy. Esclavizado a este evento/total. El juicio oral/cagar/en la boca, cagado en la
boca, el juicio: – Oral. Pero (¿pero?) el gran escritor es, dicho en lengua vulgar, una pasión del Otro.
Quien define un género (masculino/femenino) promulga desde su mayúscula la Ley, pero también la
minúscula y el, el a del goce b, que funda la posibilidad de que otro, cualquiera, hable/le. Quien erige el
Género, y en él se erige, promulga la sexuación, convierte en un incluso, incluso, a los meros devaneos
eróticos del ser (individual: indiviso, para su desdicha): al se hace la pista – el escritor grande –, y gracias
a él, le, hasta el gruñido de Josefina se vuelve canto – él promueve la Fábula, y entonces, también los
animales hablan: así como el Artista del Hambre y el del Trapecio, sin olvidar a Sancho Panza y a la
Pantera: sin olvidar a Martín Fierro, epónimo (por sinonimia) del anonimato”. LAMBORGHINI, Osvaldo.
“Sebregondi se excede”. Novelas y cuentos. Barcelona, Ediciones del Serbal, 1988, p. 93.
38
El sexo que habla. Osvaldo Lamborghini. Barcelona, MACBA, 2015, p. 82.
46

Talvez a questão que Osvaldo Lamborghini nos coloca, para pensarmos as


relações entre história e imaginação, tenha sido justamente a exagerada
(amedrontada, cínica?) adesão ao presente, que ele conseguiu representar de
maneira paradigmática. Não fez nada singular, ele apenas foi alguém singular, daí que
muitos o evoquem, na turbulência 68, como o mito literário por antonomásia 39.
Lembra-nos uma personagem de Max Beerbohm, Enoch Soames, alguém
transportado num tempo inexistente e cuja história é reconstruída numa linguagem
igualmente inexistente, um inglês transcrito como se ouve, enquanto puro som,
alheio portanto à convenção, daí que a ficção de Beerbohm (que seria, no futuro, a
vida de Lamborghini) não seja mais do que a reconstrução retrospectiva de an
immajnari karrakter, o mesmo Soames que tanto Osvaldo Lamborghini quanto César
Aira escolheriam como modelos do anacronismo40.
A exposição do Teatro proletário de câmara (MACBA, Barcelona 2015) reabre
essas questões e diríamos que uma forma de constatar como as noções de Sedlmayr,
Benjamin, Guerrero ou mesmo Murena estão nela ainda presentes consiste em
atentarmos às escolhas do curador, Valentín Roma. Destaca Roma o caráter culto das
leituras e opções estéticas de Lamborghini, sempre retornando a Hogarth (a mãe
Hogarth, de seu poema “Die Verneinung”) ou Goya, mas também mantendo um olho

39
Alan Pauls, dentre eles, proclama que “Lamborghini el Maldito ya es un Maldito Mito. Una vida
errática y una muerte triste y lejana habían logrado hacer de él un misterio, eso, exactamente eso que
un albacea fiel y un puñado de detractores 'resuelven' tiroteándose con sus versiones contradictorias:
los 'modales aristocráticos' y la 'severa cortesía' (Aira), la 'mala fe' (Masotta) y el 'cinismo' (García). Y
merecer la contradicción de los otros – merecerla post mortem – es la manera más clásica de ser un
mito. ¿A quién creerle? ¿A Aira, que ve en Lamborghini a un caballero gentil, un fundador, un artista de
la perfección? ¿A García, que lo describe como un manipulador, un pequeñoburgués asustado, una
víctima mimética de El Antiedipo? Lamborghini está muerto, muerto y editado acá, en la Argentina,
donde todavía florecen muchas de las voces socio-psicóticas que aúllan en sus textos. ¿No es una
buena razón para pasar del creer al leer? Yo, por mi parte, confieso que ambas versiones oficiales me
inspiran lecturas levemente desviadas: la de Aira, que hace hincapié en la obra de Lamborghini, la leo
en realidad como una variante peculiar del autorretrato (el autorretrato de Aira); la de García, que hace
hincapié en su 'vida' –o su 'novela familiar'–, como una lectura particularmente perspicaz del
dispositivo retórico de su 'obra' (la obra de Lamborghini). Yo vi personalmente a Lamborghini una vez,
una mañana, en una pequeña librería de la avenida Santa Fe, y lo que más recuerdo de ese encuentro
es su mano blanda y húmeda. Es lo único que quedó de este lado de lo que Lamborghini era, es y acaso
siga siendo: una literatura”. PAULS, Alan. “Maldito mito”. Radar libros, Página 12, Buenos Aires, 4 maio
2003.
40
Osvaldo Lamborghini evoca Enoch Soames em “Neibis (maneiras de fumar no salão literário”
(LAMBORGHINI, Osvaldo. Novelas y cuentos, op.cit., p.115-124) e César Aira analisa o relato de
Beerbohm em seu ensaio Las tres fechas (Rosario, Beatriz Viterbo, 2011).
47

aberto sobre a arte de transvanguarda de Achille Benito Oliva (o pós-modernismo


emergente na Espanha da redemocratização) mas não menos no néo-
expressionismo alemão de Origem e visão, a mostra na feira ARCO de 1982. Ou seja, o
mercado e o anti-mercado, algo verificável também nas preferências
cinematográficas, Pasolini, Fassbinder, Antonioni, Dreyer. Todavia, isto é elucidatuvo
não só da estética de Lamborghini, mas também das próprias posições apocalípticas
(para usar um termo demodé) de Roma, que tem-se mostrado cético quanto a um
eufórico “retorno do real”, tal como proclamado por Hal Foster, e pedido, no
entanto, um “estudo rigoroso da arte”, nada formalista, nem anti-historicista,
idêntica reivindicação à formulada por Benjamin contra Wölfflin e a favor das teorias
de Aloïs Riegl 41. E, em outra ocasião, ao discutir o problema das colagens, algo
extremamente relevante no trabalho visual de Lamborghini, e que não deixa de ser o
mesmo problema que perseguia Benjamin com suas imagens do pensamento, Roma
percebe quão insatisfatória, dura ou mecânica, é a análise de Rosalind Krauss 42 e, por

41
“En este sentido, hay que irse a los proyectos concretos, a las estrategias particulares, a las maneras
de interpretar y leer las tensiones, sabiendo de antemano que, al contrario de lo que decía Hal Foster,
lo real no retorna al arte, sino que, en numerosas ocasiones, la realidad sobrepasa cierta intención del
arte por abordarla. Y, sobre todo, que en ese mismo rebasamiento y mediante ese mismo exceso,
formado entre lo que parece claro y lo que resulta incomprensible, entre lo se ofrece al diagnóstico y
lo que se resiste a él, es refundada la propia sustancia crítica de aquellas prácticas que operan desde
el antagonismo, son reificadas –en el sentido marxista del término– las capacidades de los artistas
para imaginar nuevas formas de confrontación, otras condiciones materiales para que, por fin, pueda
expresarse la naturaleza rebelde y compleja del mundo”. ROMA, Valentín. “Return”.
42
“En su texto ya clásico, The Picasso Papers, Rosalind E. Krauss certifica esta intención de hondura
semiótica, esa metafísica de la forma compartida con algunos miembros de October, la cual, vista en
perspectiva, puede parecer fatigosa y un tanto prosaica, aunque también nos ofrece alguna otra
tuerca a la que dar la vuelta. Baste, como ejemplo de esta cuestión, el siguiente fragmento: “La
circulación del signo es, sin embargo, una regla de la relatividad y Picasso, aquí como en otras obras,
se atiene a esta regla. El segundo fragmento de periódico, colocado sobre los hombros del violín,
despliega sus propias muescas y curvas para contener las clavijas y el rollo dibujado, convirtiéndose así
en su «fondo». En esta posición, las líneas impresas del periódico adquieren ahora el aspecto de
salpicaduras de grafito: la taquigrafía visual del pintor para el marco atmosférico. Así un nuevo lugar
convoca a un signo diferente; es la manifestación de la luz, o de la atmósfera.
Pero la magia del collage entero, sin duda el brillo de su juego, es que los dos significados opuestos —
la luz por una parte y la opacidad por la otra— se generan a partir del trocito de papel «idéntico», la
«misma» forma física. A semejanza de la sustancia fonética de Saussure, se ve que este soporte adopta
un significado sólo en el interior de las oposiciones que se enfrentan unas a otras: la p implosiva
de up [arriba] contra la p explosiva de put [poner]. La hoja de Picasso, cortada en dos, es pues un
paradigma, una pareja binaria unida en la oposición; cada parte adquiere un significado en tanto no es
la otra. Aquí figura y fondo se convierten en esta especie de contrarios, vinculados y redoblados por
opaco y transparente o sólido y luminoso, de modo que así como, hablando literalmente, un fragmento
es el revés del material en el cual fue cortado el otro, la circulación del signo produce esta misma
48

isso mesmo, inclina-se por uma posição que exacerbe as dicotomias para atingir a
verdade “após a conclusão”:

Falta, aún, esa “poética” donde el impulso destructivo sea encauzado y donde la
plasticidad devenga una tesitura ética. Y nadie mejor, aquí, que Georges Didi-Huberman,
quien con su texto “Le bref été de la dépense. Carl Eisntein, George Bataille et
l’économie-Picasso” afronta, a partir de la lectura exhaustiva del número
de Documents dedicado a Picasso en 1930, una pregunta acaso fundamental: ¿Bajo qué
claves puede leerse la obra del pintor malagueño y, por extensión, la “brecha”
vanguardista, como una forma de realismo extremo o, por el contrario, como cierta
modalidad de materialismo mágico?

Dice Didi-Huberman: “En primer lugar, [en Documents nº 3] se exonera a Picasso de


cualquier tendencia surrealista, como aboga Michel Leiris contra la apropiación del
pintor por el grupo de André Breton –del cual se formaría como disidencia el de George
Bataille–, por la sencilla razón de que jamás será “prófugo” ante la realidad. En segundo
lugar, sus formas, sus “organismos”, incluso sus “criaturas” poseen “el peso exacto de
las cosas” y actúan, lejos de toda existencia espectral, de la manera más “terrenal”,
más material que exista”.

Desde la pluma ciertamente viperina de Ángel González hasta esa manera algo ingrávida
de inclinarse hacia una ontología del mirar característica de Didi-Huberman, pasando por
las alfabetizaciones de Krauss, aquello que parecen explorar estos autores no es el
cubismo ni los relatos críticos de la estética, sino el momento en el cual las prácticas
artísticas desistieron de su capacidad turbadora, es decir, cuándo la “épica” vanguardista
abdicó a favor de la “trivialidad” por venir.

Roma nos propõe, portanto, uma versão “históricamente más fiel”, ao ver, em Picasso, um
“artista proteico y verdaderamente ecuménico”, tal como Lamborghini:

Esto supondría atender a una extensión litúrgica y económica del fenómeno, a rastrearlo
dentro de una tradición y en un número de operaciones artísticas que a menudo sólo
buscan en la galaxia duchampiana su fácil antepasado. El alcance de dicha
reinterpretación atendería, desde Picasso –no como una posibilidad meramente
aleatoria, sino por la precisión de su ascendencia genealógica–, qué intercambios se
producen entre las cosas, pero especialmente cuáles son aquellos ordenamientos
distintos que suponen las operaciones artísticas picassianas, qué consecuencias tienen
éstas en el materialismo de la obra de arte43.

Daí que Roma retire um artista como Lamborghini de seu contexto natural, original, isto é, de
seu centro, e nos revele suas preferências excêntricas, as colagens dadá, os quadros do Bosch, as

condición, pero en sentido semiológico, en el nivel del signo: delante, sólido, figura; detrás,
transparente, marco”. ROMA, Valentín. “González, Krauss, Didi-Huberman: Picasso”. Suplemento
Cultura/s, La Vanguardia, Barcelona, 25 jul. 2012.
43
Idem, ibidem.
49

fotografias clínicas de Bataille para a revista Documents, os retratos de Oskar Kokoshka ou George
Grosz, ou seja, a tradição selvagem e lúgubre, ácrata e taciturna da história da arte 44.
O contemporâneo pré-figurado na pioneira recepção latino-americana de Benjamin, nas
elaborações de Guerrero, Murena ou Lamborghini, nos demostra que tanto nos deparamos com uma
leitura pós-hegeliana e anti-heideggeriana (Murena), quanto com uma outra (Lamborghini) que é anti-
hegeliana e pós-heideggeriana45. De qualquer forma, em ambas, o presente está marcado, desde a
origem, pelo passado e pelo futuro. Há sempre uma lacuna, um hiato, uma ausência, no interior de
cada presente. E a história, mesmo a história da arte (principalmente ela), não pode ser lida como uma
harmoniosa sucessão de presenças, revezando-se e alternando-se entre si. Na arte, todo signo é
presença diferida.

La différance, c'est ce qui fait que le mouvement de la signification n'est possible que si
chaque élément dit « présent », apparaissant sur la scène de la présence, se rapporte à
autre chose que lui-même, gardant en lui la marque de l'élément passé et se laissant déjà
creuser par la marque de son rapport à l'élément futur, la trace ne se rapportant pas
moins à ce qu'on appelle le futur qu'à ce qu'on appelle le passé, et constituant ce qu'on
appelle le présent par ce rapport même à ce qui n'est pas lui : absolument pas lui, c'est-
à-dire pas même un passé ou un futur comme présents modifiés46.

44
Idem. “Siete imágenes para un collage de Lamborghini” in El sexo que habla. Osvaldo Lamborghini.
Barcelona, MACBA, 2015, p.200.
45
OSBORNE, Peter & ALLIEZ, Éric. “Introduction” in Idem. Spheres of Action: Art and Politics. Londres,
Tate Publishing, 2013, p. 7-17.
46
DERRIDA, Jacques. Marges de la philosophie. Paris, Minuit, 1972, p. 13.
50

Negro | Afro | Negro – africanidade e historiografia da arte no Brasil

Roberto Conduru

As relações entre África e Brasil constituem um veio marginal no campo de


historiografia da arte no Brasil. E um no qual permanências e transformações
constituíram visões dominantes e, consequentemente, contrapontos a elas.
A questão da africanidade está presente nos primeiros textos que, em meados
do século XIX, começaram a sistematizar criticamente a história da arte no Brasil. Eu
penso nos textos com que Manuel de Araújo Porto-Alegre iniciou a reflexão crítica
sobre a arte no Brasil, a palestra sobre a literatura e as artes que proferiu em Paris em
1935 e foi publicada pelo Instituto Histórico da França em 1835 1 e o texto sobre a
escola fluminense de pintura que ele publicou na Revista do IHGB, no Rio de Janeiro
em 1841.2 Nesse último texto, ele inclui um alemão, um filho de italianos e um ex-
escravo entre os oito artistas que, a seu ver, constituíram a escola fluminense de
pintura e “honram a terra em que nasceram”.3 Assim, delineia uma brasilidade
irrestrita ao Brasil e que incorpora um afrodescendente.
Desde então, a africanidade no Brasil tem sido incluída de modo assistemático
e em condição marginal nas narrativas historiográficas da arte no país. Usualmente
não é questionado em que medida o regime escravocrata afetou a produção de arte
no Brasil, nem é discutido se e como valores, ideias, práticas e formas africanas foram
articulados aos de outros sistemas artísticos em desdobramento no Brasil desde o
tráfico de pessoas da África para serem escravizadas na América durante e após a
colonização portuguesa.

1
PORTO ALEGRE, Manuel de Araújo. “Résume de l'histoire de la littérature, de les sciences et des arts
au Brésil”. In Debret, Jean-Baptiste. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, v. 3, Paris, 1839, p. 84-
87 (Journal de l'Institut Historique, 1, 1835).
2
Idem. “Memória sobre a antiga escola fluminense de pintura”. In Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, 3, 1841, p. 547-557.
3
Idem, “Résume de l'histoire de la littérature, de les sciences et des arts au Brésil”. Op. cit.
51

No entanto, desde o final dos oitocentos, há uma diferença. Passaram então a


ser elaboradas narrativas específicas sobre a produção artística de africanos e dos
afrodescendentes no Brasil, embora não exatamente no campo da crítica e da
historiografia da arte.
Para tanto, foi decisiva a publicação de dois trabalhos de Raimundo Nina
Rodrigues. O primeiro é O Animismo Fetichista dos Negros Baianos, conjunto de textos
que foi publicado, inicialmente, em quatro partes, no ano de 1896, na Revista
Brazileira, editada no Rio de Janeiro, e, acrescido de um artigo intitulado “Ilusões da
catequese no Brasil” (que fora publicado em 1894 na mesma revista) foi vertido para
a língua francesa, constituindo o livro homônimo – L’animisme fétichiste dês nègres
de Bahia –, que foi publicado em Salvador, em 1900, pela editora Reis & Comp.
Éditeurs.4 O segundo texto dele é “As Belas Artes nos Colonos Pretos do Brasil – A
escultura”, que foi publicado, em 1904, na Revista Kósmos, editada no Rio de Janeiro.5
Não faltam a esses textos de Nina Rodrigues frases que expõem sua visão
hierarquizada das raças, na qual os negros estão em posição de inferioridade. Por
outro lado, em “As Belas-Artes nos Colonos Pretos do Brasil – A escultura”, Nina
Rodrigues ressalta dimensões artísticas e intelectuais nas práticas culturais dos
negros, especialmente nas artes plásticas, ao defender que “as manifestações da sua
capacidade artística na pintura e na escultura – as mais intelectuais das Belas-Artes –
melhor o atestarão agora do que o puderam fazer a música e a dança”. Ele também
interpreta como arte – Belas Artes – o que outros classificam como cultura material
das religiões afrodescendentes.
Nina Rodrigues aponta imperfeições na execução das esculturas dos negros,
mas acrescenta: “feito o desconto, nesses toscos produtos, já é a arte que se revela
e desponta na concepção da ideia a executar como na expressão conferida à ideia
dominante dos motivos”. Apesar de ele não entender de modo pleno a artisticidade

4
RODRIGUES, Nina. O Animismo Fetichista dos Negros Baianos (1900). In MAGGIE, Yvonne; FRY, Peter
(orgs.). Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Biblioteca Nacional, 2006.
5
Idem. “As Bellas-Artes nos Colonos Pretos do Brazil – A esculptura”. Revista Kósmos. Rio de Janeiro,
ano I, n. 8, ago. 1904, p. 11-16. Republicado no centenário de morte de seu autor, em fac-símile, por
ARAÚJO, Emanoel (Org.). Para nunca esquecer: negras memórias / memórias de negros. Rio de Janeiro:
Museu Histórico Nacional, 2002, p. 158-163.
52

dos objetos provenientes de terreiros de candomblé baianos, ele reconhecia valor no


idear, na execução e na linguagem, diferentemente de outros tantos intérpretes da
cultura material artística africana e afro-brasileira a seu tempo. E vislumbrava um
futuro para essa arte ao concluir com uma aposta no futuro, em função de mudanças
sociais – “com outros recursos, em outro meio, muito podem dar de si.”6
Como disseram Yvonne Maggie e Peter Fry, ao apresentar uma reedição
recente de O animismo fetichista dos negros baianos, Nina Rodrigues “fez muito mais
do que descrever os candomblés na Bahia de sua época: estabeleceu formas de
compreender esse fenômeno que permeou a escrita de todos que o seguiram.
Estabeleceu os temas e as questões que fascinam estudiosos até hoje. Formou o
campo dos estudos da religiosidade afro-brasileira”.7 Curiosamente, tal efeito não se
observa no campo da crítica e da historiografia da arte. Apenas algum tempo depois
surgiram no país estudos sobre os objetos usados em prática rituais das religiões afro-
brasileiras, seus autores, usuários, modos de ideação, feitura, uso e crítica, de autoria
de Cecília Meireles, Mário Barata, Clarival do Prado Valladares, Marianno Carneiro da
Cunha e Raul Lody, entre outros.
Com efeito, esse processo ganhou maior dinâmica e sistematicidade entre as
décadas de 1950 e 1980, quando exposições, instituições museológicas, manifesto
artístico e análises críticas cristalizaram uma entendimento amplo e inclusivo das
conexões entre arte e africanidade no Brasil, ao não limitá-las a autores e temas
afrodescendentes.
Institucionalmente, essa visão inclusiva foi iniciada na década de 1950, quando
Abdias Nascimento começou a constituir, no âmbito do Teatro Experimental do
Negro (TEN), o Museu de Arte Negra, no Rio de Janeiro. A partir de sua coleção
pessoal e por meio de doações de artistas, críticos e intelectuais engajados no seu
projeto, ele compôs uma coleção aberta em termos de autoria, com
afrodescendentes ou não, e tematicamente, como pode ser percebido no concurso
do “Cristo Negro”, realizado por ocasião da realização no Rio de Janeiro do 36°

6
Idem, ibidem, p. 158-163.
7
MAGGIE, Yvonne; FRY, Peter. “Apresentação”. In RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista dos negros
baianos. Op. cit., p. 11.
53

Congresso Eucarístico Internacional. 8 Contudo, essa iniciativa ainda não chegou a se


firmar permanentemente, uma vez que o Museu de Arte Negra não possui uma sede
onde difundir publicamente sua visão e ações.
No entanto, um tempo depois Nascimento passou a usar outro nome para a
arte relacionadas à África no Brasil, começando a designar essa produção como afro-
brasileira em textos publicados durante seu autoexílio, nos anos 1960 e 1970, durante
a ditadura militar, quando viveu nos Estados Unidos e na África. 9 Assim, salvo engano
meu, ele abriu caminho para muitos autores. Com efeito, nas últimas décadas o termo
arte afro-brasileira tem sido o mais usado no campo artístico e historiográfico no
Brasil, seja na crítica, livros, museus, cursos em universidades e outras instituições.
A designação arte afro-brasileira vem sendo utilizada em referência a um
conjunto heterogêneo de ideias, práticas e obras, seguindo a abrangência ampla com
a qual se configurou desde meados do século XX, mas que vinha sendo delineada pelo
menos desde o século anterior.10 Referência nem tanto aos textos Nina Rodrigues,
que se referem apenas à produção de africanos e de afrodescendentes, mas a
pintores estrangeiros, como Modesto Brocos y Gómez, que abordavam a temática
afro, ou artistas afrodescendentes, como Estevão Silva e os irmãos Timóteo da Costa,
os quais aparentemente a evitavam.

Inclusão

Com efeito, essa vertente artística não tem sido caracterizada como aquela
produzida unicamente por afrodescendentes. O que pode ser demonstrado com a

8
NASCIMENTO, Elisa Larkin (org.). Abdias Nascimento 90 Anos – Memória Viva. Rio de Janeiro:
IPEAFRO, 2004.
9
NASCIMENTO, Abdias. The Orixás: Afro-Brazilian Paintings and Texts. Middleton: Malcom X House,
1969; NASCIMENTO, Abdias. “Afro-Brazilian art: a liberating spirit”, Black Art, no. 1, 1976, p. 54-62.
10
A esse respeito, ver CARDOSO, Rafael. The Problem of Race in Brazilian Painting, c. 1850-1920. In: Art
History, 2015 http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/1467-8365.12134/full; WILLIAMS, Daryle.
‘Peculiar circumstances of the land’: Artists and Models in Nineteenth-Century Brazilian Slave Society.
Art History, v. 35, no. 4, 2012, p. 702-727; CONDURU, Roberto. “Afromodernidade – representações de
afrodescendentes e modernização artística no Brasil”. In: CAVALCANTI, Ana; DAZZI, Camila; VALLE,
Arthur. (orgs.) Oitocentos: Arte Brasileira do Império à Primeira República. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ,
2008, p. 445-452.
54

menção de três casos especiais, mas não únicos: as trajetórias e obras de Pierre
Verger, de origem francesa e que adotou a cidadania brasileira, de Hector Julio Páride
Bernabó, argentino de nascença e depois naturalizado brasileiro, conhecido como
Carybé, e Karl Heinz Hansen, nascido na Alemanha, que se naturalizou brasileiro e
radicou-se na Bahia (como os outros dois), cujo nome adotou como seu. Com
personalidades artísticas distintas, Pierre Verger, Carybé e Hansen Bahia se
dedicaram temas afro no Brasil. Tendo-os, entre outros, como alguns de seus
precedentes, os diálogos mantidos com a problemática sociocultural afro-brasileira
por artistas afrodescendentes ou não, brasileiros e estrangeiros, são usualmente
incluídos no âmbito dessa vertente artística.
Talvez não haja, atualmente, algum estrangeiro radicado no Brasil, naturalizado
brasileiro, dedicado a fazer arte relacionada à problemática africana no Brasil, como
foram os casos de Pierre Verger, de Hansen Bahia e de Carybé. Obras esporádicas,
entretanto, continuam sendo produzidas. Do passado, de muito antes ou nem tanto,
há os precedentes isolados de artistas estrangeiros, como Modesto Brocos, com suas
telas Redenção de Cã e A Mandinga, e Maria Helena Vieira da Silva, com sua Cena de la
macumba. De agora, podem ser destacadas algumas realizações. Há mais de vinte
anos, o fotógrafo norte-americano Gerald Cyrus pesquisa a cultura afro-brasileira.11
De 2000, há a série Capoeira, elaborada pela fotógrafa espanhola Isabel Muñoz. 12 De
lama lâmina foi a intervenção no carnaval de Salvador de 2004 produzida pelos
artistas multimídia norte-americanos Mattew Barney e Arto Lindsay. A portuguesa
Cristina Lamas expôs obras com imagens fotográficas de ex-votos e lojas de ervas no
Brasil, na galeria Lisboa 20, em 2008. No mesmo ano, o norte-americano Kehinde
Wiley retratou pictoricamente jovens rapazes negros brasileiros em seu projeto The
World Stage.13 Outra recente conexão estrangeira ao mundo afro-brasileiro é a série
Debret, com esculturas elaboradas pelo artista português Vasco Araújo em 2009.14

11
FONSECA, Pedro Leal. “Casa dos artistas”. Folha de S. Paulo, São Paulo, 17 julho 2011, caderno
Ilustrada E5.
12
www.isabelmunoz.es Acesso em 22 de janeiro de 2015.
13
PIRES, Francisco Quinteiro. “Jovens negros inspiram pintor americano”. Folha de S. Paulo, São Paulo,
27 janeiro 2013, caderno Ilustrada E5. www.kehindewiley.com/brazil Acesso em 28 de maio de 2015.
14
ARAÚJO, Vasco. Debret. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.
55

Além de alguns estrangeiros, artistas das mais diferentes regiões brasileiras,


afrodescendentes ou não, atualizam e ampliam as frentes de ação abertas
anteriormente nos diálogos entre arte visuais e afro-brasilidade, respondendo a
questões artísticas e culturais contemporâneas. Poderiam ser citados muitos artistas
que se vinculam com maior ou menor frequência ao mundo afro, atuando em meios
variados, de acordo com a relativização das mídias na arte na contemporaneidade,
focando em questões diversas. A questão religiosa persiste, em obras feitas “de
dentro” e “de fora”, “para dentro” e “para fora” dos terreiros: sejam peças litúrgicas
que passam a circular em outros universos, sejam obras que abordam a temática
religiosa externamente a esse âmbito. A política é um tópico que tem crescido
recentemente nas conexões ao universo afro no Brasil, seja em ações antirracistas e
contrárias à marginalização social dos afrodescendentes, seja na abordagem da
história; seja na reelaboração de memórias individuais e coletivas, seja em expressões
étnicas diferenciadas.
Em vez da origem do autor da obra, seria, portanto, essa vertente artística
caracterizada a partir da temática da negritude vinculada à africanidade, à
permanência de valores, ideias, linguagens, formas e conteúdos africanos no Brasil?
Por um lado, sim. É o caso do pan-africanismo defendido por Abdias Nascimento, a
partir de 1968. Na ocasião, ele afirmou: “futuros passos sobre estradas pragmáticas
deverão procurar os meios de enfatizar a cultura pan-africana, e nunca de meramente
promover, por exemplo, a cultura iorubá, a haitiana ou qualquer outra cultura pan-
africana singular”.15
Por outro lado, a dita arte afro-brasileira não tem sido identificada apenas em
relação à África. Pois também há quem a caracterize sem circunscrevê-la
exclusivamente a temas africanos e afrodescendentes, embora os tenha como os
núcleos principais de sua definição. É o que se pode ver na obra de Rubem Valentim,
o qual, em seu “Manifesto ainda que tardio”, de 1976, explicita a amplitude de seu
projeto artístico:

15
NASCIMENTO, Abdias. Apud SIQUEIRA, José Jorge. Entre Orfeu e Xangô. A emergência de uma nova
consciência sobre a questão do negro no Brasil, 1944/1968. Rio de Janeiro: Pallas, 2006, p. 224.
56

Minha linguagem plástico-visual-signográfica está ligada aos valores míticos profundos


de uma cultura afro-brasileira (mestiça-animista-fetichista). Com o peso da Bahia sobre
mim – a cultura vivenciada; com o sangue negro nas veias – o atavismo; com os olhos
abertos para o que se faz no mundo – a contemporaneidade; criando seus signos-
símbolos procuro transformar em linguagem visual o mundo encantado, mágico,
provavelmente místico que flui continuamente dentro de mim. O substrato vem da terra,
sendo eu tão ligado ao complexo cultural da Bahia: cidade produto de uma grande
síntese coletiva que se traduz na fusão de elementos étnicos e culturais de origem
européia, africana e ameríndia. Partindo desses dados pessoais e regionais, busco uma
linguagem poética, contemporânea, universal, para expressar-me plasticamente. Um
caminho voltado para a realidade cultural profunda do Brasil – para suas raízes – mas
sem desconhecer ou ignorar tudo o que se faz no mundo, sendo isso por certo impossível
com os meios de comunicação de que já dispomos, é o caminho, a difícil via para a criação
de uma autêntica linguagem brasileira de arte. Linguagem plástico-sensorial: O Sentir
Brasileiro.16

Variados em suas propostas, Valentim e Nascimento são próximos em suas


crenças na atualidade da potência das artes e das culturas africanas e
afrodescendentes no mundo, no uso de linguagens artísticas do modernismo, no
modo livre como lidam com essas referências. Mas também guardam distância um
do outro em suas práticas artísticas.
Nascimento concentra sua proposta na unidade africana, embora em sua
pintura, ao contrário, se dedique a figurar, em linguagem modernista, contextos
específicos – principalmente o universo religioso afro-brasileiro, mas incorporando
por vezes outros elementos referentes à África como hieróglifos egípcios e símbolos
Adinkra. Enquanto Valentim apostou com textos, pinturas, gravuras e objetos em
somas, superposições e misturas de signos de diferentes culturas religiosas, em
particular o candomblé e a umbanda, que foram processadas no e a partir do Brasil.
A equação explicitamente mestiça montada por Valentim, que articula
construtivismo e religiões com matrizes africanas no Brasil, propõe, portanto, uma
prática artística inclusiva. Ideia e fazer que persistem nas trajetórias e obras de
artistas iniciadas ainda na vigência e sob a influência de sua “riscadura afro-

16
VALENTIM, Rubem. “Manifesto ainda que tardio”. In: FONTELES, Bené, BARJA, Wagner (orgs.).
Rubem Valentim: artista da luz. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2001, p. 28.
57

brasileira”:17 Emanoel Araújo, Ronaldo Rêgo e o “construtivismo crioulo” de Jorge


dos Anjos.18
Entretanto, ainda que exista há algum tempo e seja de algum modo dominante
atualmente, essa visão não é a única, uma vez que podem ser facilmente citados
textos e classificações pautados pela marcação étnica exclusiva e até pela questão
da raça, embora, por vezes, deixem entrever ou produzam análises para além dela.
Eu penso, por exemplo, em Luiz Saia, 19 Mário Barata,20 e Clarival do Prado
Valladares,21 os quais, em alguns de seus textos, se referem à ideia de arte negra, que
era forte no início do século XX. De acordo com essas visões, o território circunscrito
pela conjugação de arte, África e Brasil se caracterizaria por realizações de artistas
africanos e afrodescendentes vinculados às religiões de matrizes africanas no país,
como fizeram, antes, Raimundo Nina Rodrigues e Arthur Ramos. Seria um critério
para enquadrar como afro-brasileiras as obras de Mestre Didi, Chico Tabibuia, Louco,
Jorge Rodrigues, José Adário, Junior de Odé, Lena Martins, Wuelyton Ferreiro.
Com efeito, a afro-descendência do autor ainda é um critério; dificilmente
deixará de sê-lo. Artistas como Arthur Bispo do Rosário, Jorge dos Anjos, Juarez
Paraíso, Nêgo (Geraldo Simplício) e Rosalina Paulino tão díspares em suas poéticas,
podem ser incluídos nessa vertente por serem afrodescendentes. Embora não
apenas por esse fator. São artistas com origens, procedências, campos de atuação,
trajetórias e obras bastante diversas. O que confirma o modo ampliado como a
vertente artística afro-brasileira vem sendo entendida no Brasil.

17
VALENTIM, Rubem. “Manifesto ainda que tardio” (1976). In: FONTELES, Bené; BARJA, Wagner
(orgs.). Rubem Valentim: Artista da Luz. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2001, p. 29.
18
DOS ANJOS, Jorge. apud SAMPAIO, Márcio. “Risco, recorte, percurso”. In: DOS ANJOS, Jorge. Jorge
dos Anjos. Belo Horizonte: C/Arte, 2009, p. 45.
19
SAIA, Luiz. Escultura Popular Brasileira. São Paulo: Edições Gaveta, 1944.
20
BARATA, Mário Barata. “A escultura de origem negra no Brasil”. Rio de Janeiro, Arquitetura
Contemporânea, n. 9, 1957.
21
VALLADARES, Clarival do Prado. “O negro brasileiro nas artes plásticas”. In: AGUILAR, Nelson
(organizador). Mostra do redescobrimento: arte afro-brasileira. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos
Artes Visuais, 2000, p. 426-429; VALLADARES, Clarival do Prado. “O negro como modelo na pintura
brasileira”. In: -- (org.). The Impact of African Culture in Brazil. [s.l.]: Ministério das Relações Exteriores;
Ministério da Educação e Cultura, 1977; VALLADARES, Clarival do Prado. “O impacto da cultura africana
no Brasil”. Idem, ibidem.
58

Crítica

Essa visão inclusiva, que vinha sendo elaborada artisticamente há algum tempo,
ao menos desde o modernismo no final do século XIX, e foi explicitada em forma de
manifesto por Rubem Valentim, em 1976, logo foi sistematizada criticamente por
Marianno Carneiro da Cunha. No texto Arte Afro-brasileira, inserido na História Geral
da Arte no Brasil, organizada por Walter Zanini e publicada em 1983, ele deixa claro
seu ponto de vista: “a qualificação afro-brasileira permanece ambígua e provisória.
Trata-se de um termo que, na realidade, já nasceu envelhecido pela própria dinâmica
a que se têm submetido os elementos culturais africanos no Brasil”. 22 Para Cunha,
“Arte afro-brasileira é uma expressão convencionada artística que, ou desempenha
função no culto dos orixás, ou trata de tema ligado ao culto”.23 Definição que parece
restrita, mas logo se abre “à apropriação de símbolos novos por essas religiões”.
Também sua análise amplia seu foco para além do âmbito religioso ao se
complementar com dois tópicos, além de breves abordagens das “artes corporais e
decorativas”, como identifica adereços pessoais e vestimentas: “joias”, “joias
crioulas”, “alfaias”, “cestaria, cerâmica e marroquinaria”. O primeiro tópico é
“Continuidade provável de convenções formais africanas ligadas à representação
naturalista na arte brasileira”, no qual são aplicados princípios, convenções e formas
da arte África e da “arte popular” no Brasil para pensar a particularidade afro da obra
de Aleijadinho. O segundo tópico é “A emergência de artistas e temas negros a partir
das décadas de 1930 e 40”, no qual o autor propõe outro campo de abrangência para
o termo afro-brasileiro, que é independente da afro-descendência:

Dos artistas cobertos em geral por essa definição muitos são brancos, outros mestiços e
relativamente poucos são negros. Poderíamos subdividi-los portanto em quatro grupos,
ou seja: aqueles que só utilizam temas negros incidentalmente; os que o fazem de modo
sistemático e consciente; os artistas que se servem não apenas de temas como também
de soluções plásticas negras espontâneas, e, não raro, inconscientemente; finalmente

22
CUNHA, Mariano Carneiro da. “Arte afro-brasileira”. In: ZANINI, Walter (organizador). História geral
da arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walter Moreira Salles, 1983, p. 1026.
23
Idem, ibidem, p. 994.
59

os artistas rituais. Os três primeiros grupos definiriam o termo afro-brasileiro em seu


sentido lato e o último grupo em sentido estrito.24

Salvo engano, é com essa subdivisão proposta por Mariano Carneiro da Cunha
que se explicita e cristaliza historiograficamente a concepção inclusiva da arte afro-
brasileira, que já era praticada anteriormente, ultrapassando a idéia de raça como
elemento determinante dessa vertente artística.

Instituições

Como visto, essa visão inclusiva foi anunciada antes no campo museológico
com Museu de Arte Negra de Abdias do Nascimento. Mas é preciso dizer que esse
museu ainda não tem uma existência pública efetiva e continuada – em verdade, está
disponível como arquivo. Assim, apenas recentemente foi estabelecido de modo
mais permanente um enquadramento institucional dessa visão ampliada das relações
entre África e Brasil na arte. Para tanto é preciso mencionar a existência, desde 1982,
do Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia, em Salvador, que é um
museu focado na cultura em seu sentido amplo, mas no qual a arte não está ausente,
seja como parte do acervo, seja como questão inerente a objetos e práticas não
usualmente inseridos no campo artístico.25 Também museus de cultura, mas nos
quais a arte tem uma presença mais extensa e intensa, são o Museu Nacional da
Cultura Afro-Brasileira (Muncab), criado em Salvador em 2002, e o Museu AfroBrasil,
em São Paulo em 2004.
O Museu AfroBrasil, criado e gerido por Emanoel Araújo, tem dado a ver, pública
e sistematicamente em termos museais, a visão inclusiva que estava difundida na
prática artística, foi anunciada museologicamente por Abdias do Nascimento,
explicitada no manifesto de Rubem Valentim e sistematizada criticamente por
Marianno Carneiro da Cunha. Entendimento dessa vertente artística como campo

24
Idem, ibidem, p. 1023.
25
www.mafro.ceao.ufba.br. Acesso em 22 de março de 2015.
60

amplo e heterogêneo que está presente em outros autores contemporâneos. 26 Ou


seja, de acordo com essas concepções e práticas artísticas, críticas e institucionais,
essa vertente artística não se refere a obras produzidas apenas por sujeitos africanos
e afrodescendentes, ou exclusivamente com temas e conteúdos africanos e
afrodescendentes no Brasil. Além de não derivar de questões raciais, é étnica e
culturalmente aberta.
No entanto, é preciso ressaltar que o Museu AfroBrasil tem se destacado por
suas mostras sobre arte e cultura da África, da diáspora africana e, especialmente, do
afro Brasil, assim como por seus contatos com artistas africanos, e, muito importante,
por sua audiência, seja ao abrir seus espaços a vozes de artistas afrodescendentes do
Brasil, seja no acolhimento especial do público afrodescendente. Com essa ênfase, o
Museu Afro Brasil atua contra a marginalização dos afrodescendentes no país e
especificamente no meio artístico brasileiro.
Nesse sentido, é importante ressaltar instituições museológicas criadas
recentemente, não dedicadas exclusivamente à arte, que ressaltam afro-
descendência, e destacam em suas designações a marcação cromática persistente
nas relações etnorraciais no Brasil: o Museu Capixaba do Negro – Mucane, criado em
Vitória, no Espírito Santo, em 1993; o Museu do Negro de Campinas, em 2002; o
Museu do Negro, em Piraí, no Rio de Janeiro, em 2005; o Museu de Percurso Negro,
em Porto Alegre em 2010.
Com certeza, elas se conectam a duas instituições que foram constituídas muito
antes. A primeira é o Museu de Magia Negra que existia na Seção de Tóxico,
Entorpecentes e Mistificação da 1ª Delegacia Auxiliar no Rio de Janeiro e era
constituído por objetos apreendidos pela Polícia Civil em comunidades religiosas com
matrizes africanas existentes na cidade, no início do século XX. Conjunto nomeado

26
AGUILAR, Nelson. “Arte afro-brasileira. Mostra do redescobrimento”. In: AGUILAR, Nelson (org.).
Op. cit., p. 30-31; MUNANGA, Kabengele. “Arte afro-brasileira: o que é, afinal?”. In: AGUILAR, Nelson
(org.), op. cit., p. 108; SALUM, Marta Heloísa Leuba. “Cem anos de arte afro-brasileira”. In: AGUILAR,
Nelson (org.), op. cit., p. 112-121; SILVA, Dilma de Melo; CALAÇA, Maria Cecília Felix. Arte Africana & Afro-
Brasileira. São Paulo: Terceira Margem, 2006; CONDURU, Roberto. Arte Afro-Brasileira. Belo Horizonte:
C/Arte, 2007; BUZZO, Bruna. “A arte afro das raízes do Brasil”. In: SOUZA, Hamilton Octavio de (editor).
Os Negros. História do Negro no Brasil. Fascículo 13 – Arte afro-brasileira. São Paulo: Caros Amigos
Editora, 2009, p. 387-389.
61

como museu que, “em 1940, passou a fazer parte de um Museu de Criminologia, um
Museu Científico e um Museu de Arte Popular”. 27 Coleção que havia sido em parte
tombada pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e inscrita como o
bem número um no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, em
1938.28 A segunda é o Museu do Negro criado em 1969 junto Igreja de Nossa Senhora
do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, no Rio de Janeiro.
No campo especificamente artístico, o precedente é a proposta do Museu do
Negro, que Mário Pedrosa idealizou como um dos cinco museus que constituiriam o
Museu das Origens, que substituiria e ampliaria o Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro após o incêndio que esta instituição sofreu em 1978. 29 Proposta que não
chegou a ser efetivada por seu autor, mas persistiu como referência no campo
artístico e museológico por meio da ação de outros agentes em outras instituições. 30
Na Galeria Permanente Mário Pedrosa, que existiu no Museu Nacional de Belas Artes
entre 1994 e 2003, com curadoria de Dinah Guimaraens, o Museu do Negro foi revisto
no módulo “Origens Africanas”. 31 Na Mostra do Redescobrimento, realizada em São
Paulo em 2000, o Museu do Negro foi desdobrado em dois módulos: Arte Afro-
Brasileira, com curadoria de François Neyt, Catherine Vanderhaeghe, Kabengele
Munanga e Marta Heloísa Leuba Salum, apresentou as artes das cortes da África
negra do Brasil e a arte afro-brasileira desde a modernidade, 32 enquanto Negro de
Corpo e Alma propôs, nas palavras de seu curador, Emanoel Araújo, “uma grande
discussão sobre as relações raciais em nosso país, no sentido de detectar os padrões

27
MAGGIE, Yvonne. Medo do Feitiço: relações entre poder e magia no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1992, p. 261.
28
www.iphan.gov.br/ans/inicial.htm consulta em 12 de maio de 2015.
29
PEDROSA, Mário. “O novo MAM terá cinco museus. É a proposta de Mário Pedrosa”. In: PEDROSA,
Mário. Política das artes. São Paulo: Edusp, 1995, p. 309-312.
30
O projeto teve dois desdobramentos recentes, em formato de exposição: uma bem sintética, no
Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), no Rio de Janeiro, que perdurou entre 1994 e 2003, e a outra
com extensão bem maior, mas com temporalidade muito mais curta, uma vez que durou apenas o
período. A respeito dessas exposições, ver:; AGUILAR, Nelson (org.). Mostra do Redescobrimento: Arte
Afro-Brasileira. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais, 2000; AGUILAR, Nelson (org.).
Mostra do Redescobrimento: Negro de Corpo e Alma. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos Artes
Visuais, 2000.
31
GUIMARAENS, Dinah. “De Mário de Andrade a Mário Pedrosa: Tradição X Modernidade no Museu
Nacional de Belas Artes”. In: Piracema, Rio de Janeiro, FUNARTE, ano 2, n. 3, 1994, p. 98-109
32
AGUILAR, Nelson (org.). Mostra do Redescobrimento: Arte Afro-Brasileira. São Paulo: Associação
Brasil 500 Anos Artes Visuais, 2000.
62

que determinaram, ao longo dessa história, a convivência entre brancos e negros no


Brasil”.33

“Back to Black”?

Quando criou o Museu AfroBrasil em 2004, Emanoel Araújo adotou uma


designação que remete à ideia de cultura e arte afro-brasileiras, a qual antes utilizara
na exposição e no livro homônimos A Mão Afro-Brasileira.34 No entanto, com Negro
de Corpo e Alma, ele retomou a marcação cromática das relações etnorraciais. O título
dessa exposição pode ser tomado como um indício de mudança de rota na
historiografia das relações entre arte, África e Brasil.
Com efeito, recentemente, a visão ampla e inclusiva algo dominante nessa
vertente marginal da história da arte no Brasil vem sendo revista por artistas,
curadores, críticos e instituições que têm enfatizado a questão da afro-descendência
dos artistas e outros agentes. Não por acaso, com a re-emergência da questão da
negritude, voltou a ser nomeada como negra a arte que antes era designada como
afro-brasileira.
É como aparece no título do livro de Kimberly Cleveland, que propõe voltar a
usar o termo Black art (arte negra), mas sem pretender “uma retomada de seus
sentidos negativos originais”, uma vez que ela admite seguir “o padrão brasileiro de
privilegiar o tema em vez da raça”. Ela argumenta que “apesar de curadores e
acadêmicos brancos brasileiros procurarem empregar o termo arte afro-brasileira em
uma tentativa inócua de acomodar a frequente inclusão do termo no discurso
nacional desde 1988, o termo ainda não se difundiu no pensamento e no discurso
popular”.35

33
ARAÚJO, Emanoel. “Negro de corpo e alma”. In AGUILAR, Nelson (org.). Mostra do
Redescobrimento: Negro de Corpo e Alma. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais, 2000, p.
44.
34
ARAÚJO, Emanoel. A Mão Afro-Brasileira. Significado da Contribuição Artística e Histórica. São Paulo:
Tenenge, 1988.
35
CLEVELAND, Kimberly L. Black Art in Brazil. Gainsville: University Press of Florida, 2013, p. 17.
63

Por um lado, pode-se contra-argumentar que afro-brasileiro e afrodescendente


são termos que vêm ganhando difusão crescente em discursos e instituições no país.
Por outro lado, é preciso notar como a questão da negritude voltou a ser destacada
recentemente, uma vez que marcações de cor continuam sendo decisivas no
processo de exclusão social e, portanto, na manutenção de desigualdades que
caracterizam a sociedade brasileira. Portanto, o uso do termo arte negra pode ser
associado a um entendimento da cor negra relacionada mais a tópicos socioculturais
brasileiros e menos a fenótipos.
Assim, sem restringir os artistas afrodescendentes a representações da afro-
brasilidade, e sem limitar esta apenas àqueles, pode-se perguntar qual é a
especificidade do afro Brasil representado por afrodescendentes no país. E notar a
importância de ressaltar essas autorrepresentações em uma sociedade que tenta
tornar invisíveis e mudos os afrodescendentes.
No entanto, mesmo que o novo uso do termo arte negra não mais se ancore em
seu significado anterior, ou seja, em fenótipos, em marcações de cor que indicam
raças, e seja mais relacionado a questões históricas e sociais do que a classificações
biológicas, alguém pode perguntar em que medida os sentidos antigos ainda ecoam
e se é possível manter afastadas as implicações sociopolíticas de seus usos prévios.
Negro ou Afro? Qual Afro? Qual Negro?
64

O que restou – história e documento – na prática artística de Rosangela


Rennó1

Ana Maria Mauad

Em 2005 e 2006, respectivamente, o a Biblioteca Nacional e o Arquivo Geral da


Cidade do Rio de Janeiro, foram alvo de furtos em seus acervos fotográficos. As fotos
recuperadas compõem duas obras publicadas em formato de livro da artista visual
Rosângela Rennó. O primeiro, publicado em 2010, relaciona-se às peças furtadas na
Biblioteca Nacional em 2005 e ganhou o nome do número do processo criminal
aberto sobre o caso 2005-510117385-5. Três anos depois, em 2013, lançou o segundo
livro que recebeu como denominação a notação de arquivo dos documentos
roubados – A01 [COD. 19.1.1.43] – A27 [S|COD.23].
Para os lançamentos de 2010, no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, e de 2013, no
auditório do próprio AGCRJ, foram organizadas mesas-redondas em que
participaram os responsáveis pelos respectivos arquivos e a própria artista, no intuito
não somente de apresentar ao público às obras, mas, fundamentalmente, engajar as
pessoas no debate sobre a preservação do patrimônio histórico e no dever de manter
viva a memória sobre os furtos como prevenção de roubos no futuro. A publicação
das obras e a mobilização do público se articulam à uma estratégia de
comprometimento da artista e seus públicos em defesa da história. 2
Venho acompanhando o trabalho de Rosângela Rennó com mais atenção,
desde 2003, quando expôs no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, as
séries O Arquivo Universal e Outros Arquivos. O primeiro contato, como público,
mobilizou as minhas competências de historiadora em uma estranha experiência de

1
Esse trabalho se insere no âmbito do projeto de pesquisa, “Fotografia Pública, usos e funções nos
séculos XIX e XX”, bolsa de produtividade CNPq, 2015-2019 e Cientista do Nosso Estado FAPERJ, 2013-
2016. Conta com a participação dos pesquisadores de Iniciação Científica Marcus Oliveira, Perona
Lannes e Marina Marins do curso de História da UFF.
2
A gravação das mesas-redondas integra a base de dados do LABHOI-UFF, em fase de processamento
com disponibilização ao público prevista para o ano de 2016.
65

ver além do que de fato olhava, o que me motivou a buscar aquilo que só eu via. A
experiência estética mobilizou meus interesses de historiadora da imagem e me
levou a perseguir o trabalho da artista, primeiro como público fiel e, mais
recentemente, como tema de estudo.
A distância entre a obra e a artista foi superada em setembro de 2012, quando
convidada para mediar a mesa “Ficção, imagem e história”, no âmbito do 21 o
Encontro Nacional da ANPAP, tive o primeiro encontro, digamos de 3 o grau, com a
artista. Nessa ocasião, a performance de Rosângela Rennó envolveu a plateia com o
relato de seu processo criativo. O seu relato foi pontuado pela visualização de alguns
de seus trabalhos, cada qual associado a uma história, que remontava a uma
experiência que havia mobilizado o processo de criação. Histórias dentro de histórias,
reveladas por sua obra, que me ofereceu uma oportunidade excepcional para me
aproximar de sua produção artística da maneira mais interessante possível, ou seja,
por meio da sua própria rememoração.
O relato da artista me suscitou uma questão, levantada no momento do debate,
que acabou por definir o ponto de partida para a reflexão que desenvolvo neste
texto: “Por que o passado faz diferença? Toda a sua obra está perpassada por uma
arqueologia que se apropria dos vestígios do passado de uma maneira especial. Por
que o passado faz diferença para a sua prática artística?” E a resposta foi a seguinte:
“é matéria de imaginação”.
Como matéria de imaginação, o que passou como experiência emanada de
vestígios dela mesma, deixa de ser o passado para se tornar um passado possível.
Dentre tantos caminhos que poderia ter tomado aquela vivência impregnada nos
seus vestígios, tornou-se, um deles, ser matéria de arte. Por outro lado, o uso
reiterado de fotografias como suporte ou mesmo resto dessa experiência, qualifica
o interesse da artista em entender o que está em jogo ao se impregnar a imagem de
humanidade e os destinos que essa prática implica para a própria imagem: o álbum
de família, o arquivo policial, o lixo do descarte. Que sociedade é essa que se deixa
fotografar e guarda as suas fotografias, em álbuns e arquivos, mas que ao mesmo
tempo, descarta, desqualifica e desapropria a imagem de sua humanidade ao
66

transformar todos em “fantasmas da gelatina”, para usar uma expressão da própria


artista?
Entretanto, no trabalho de Rennó o exercício de referenciar o passado se faz
por meio de uma prática artística que, ao mesmo tempo, nos aproxima e nos distancia
da experiência comum e prosaica: os anônimos retornam sujeitos de uma história que
cada um pode completar, por meio de estratégias e recursos técnicos. Embora
padronizados por uma prática institucionalizada, em seu trabalho, esses recursos são
reorientados para um novo objetivo, que é o da construção de uma narrativa sempre
aberta e porosa que se completa pela afecção provocada em cada espectador. Nesse
sentido, a fotografia é para a artista um gesto de trazer à tona um passado possível
para cada sujeito descartado como imagem em um arquivo morto. Em certa medida,
ecoa nessa aproximação às referências à Agamben segundo o qual: “A imagem
fotográfica é sempre mais que uma imagem: é o lugar de um descarte, de um
fragmento sublime entre o sensível e o inteligível, entre a cópia e a realidade, entre a
lembrança e a esperança” 3
Paralelamente, observa-se na arqueologia de Rennó, o florescimento de um
pensamento plástico, engendrado pela forma como a fotografia ganha contornos
narrativos em suas obras, compondo um exercício de história visual, sendo ela
mesma uma historiadora visual. Nesta função, a artista trabalha a biografia das
imagens, traçando suas diásporas e utilizando-se de sua atribuição de autora, para
promover a migração de métodos e estratégias de um campo para o outro. Práticas
que tencionam os limites tênues entre o que referencia a verdade histórica e o que
delimita a competência ficcional.4
Este conjunto de indagações não esgota as possibilidades de investigar o
trabalho da artista na sua relação com a condição histórica no mundo
contemporâneo. Entretanto, a publicação das duas obras realizadas com os roubos
de documentos me colocou um desafio, que seria o de enfrentar o vazio de uma

3
AGAMBEN, G. Profanações, São Paulo: Boitempo, 2007, p. 29
4
MAUAD, Ana Maria. “Uma história visual e os passados possíveis. A propósito da prática artística de
Rosângela Rennó”. IN: Fronteiras: arte, imagem e história, Sheila Cabo Geraldo (org.). Rio de Janeiro:
Beco do Azougue, 2014, p. 133-156.
67

história roubada. Sabe-se que as narrativas guardam uma relação estreita com a
experiência histórica sem, no entanto, se confundir com ela5 e que o acesso às
sociedades passadas se processa através dos documentos que essas mesmas
sociedades produziram como testemunhos diretos ou indiretos da sua existência.
Entretanto, a observação histórica, sua coleta de testemunhos, análise e
interpretação requer que as lacunas de registros sejam preenchidas por processos
dedutivos que contam, com uma boa dose de imaginação, para produzir a explicação
histórica e, assim, o passado se apresentar como uma narrativa coerente.6
O evento que envolveu o roubo das fotografias e outros objetos nos
incomodam pois, ao contrário da situação em que documentos, por vicissitudes
aleatórias foram subtraídos, ou simplesmente, sequer existiram como peças de um
arquivo, esses, que foram roubados, estavam à espera de serem escavados e
iluminarem mais uma fração da totalidade inalcançável do passado. Com os furtos, o
corpo lacunar da história fica em evidência e o vazio se instaura como ausência.
Para lidar com essa problemática, pelo viés da prática artística de Rosângela
Rennó, proponho dois momentos: o primeiro, em que avalio o papel do arquivo na
produção visual da artista, associadas às as experiências da ‘morte da fotografia’ e
do ‘fim da história’ como um fenômeno de geração e o segundo, em que analiso os
dois eventos de lançamento dos livros como performances de engajamento de
públicos à causa da história visual. Em conclusão, me debruço sobre as duas obras
lançadas em uma breve avaliação dos restos de história que jazem na proposta da
artista.

Rastros na fotografia e os passados possíveis

Na obra de Rosângela Rennó, o passado tem um lugar de destaque, quer seja


como memória propositadamente organizada em álbuns que não se pode folhear,
pois reservam os segredos da privacidade; quer como objetos impregnados de vida

5
CARR, David. “Narrative and the Real World: Argument for Continuity”, History and Theory, vol. 25,
No. 2 (May, 1986), p. 117-131
6
BLOCH, Marc. Apologia da História, Rio de Janeiro: Zahar, 2001
68

e matéria de “menos-valia [leilão]”7, em performances onde se evidencia o valor de


mercado que o passado adquire ao entrar no mercado de arte; ou, ainda, como
“arquivo universal”8, em que os rostos de anônimos entram para a História pela via
da Arte, resistindo ao apagamento que a (des)ordem de alguns arquivos reservaria
para a sua condição de sujeitos.
Esta avaliação se sustenta numa posição específica e em um conceito chave
para lidar com a aproximação entre artes visuais e história: a posição de que toda a
arte é histórica e, portanto, toda a imagem possui uma historicidade fundamentada
numa prática cultural e social; e o conceito o de cultura visual que viabiliza a
centralidade da noção de visualidade como fenômeno social. A visualidade se
fundamenta em imagens, é claro, mas também, em um conjunto de textos não visuais
que apoiam a criação de imagens por sujeitos históricos num circuito social ampliado.
A posição defendida acima é a superação, no século XXI, da chamada revolução
na consciência historiográfica, que remonta aos anos 60 do século XX,9 quando o
ponto de partida das pesquisas históricas se deslocava dos documentos para o
problema. Ao mesmo tempo em que apontava para a consolidação de um regime de
historicidade, no qual o presente, onde o problema era proposto, teria mais peso do
que o passado, no qual o documento havia sido produzido. O valor da questão a ser
respondida pela pesquisa histórica estaria afiançado pelo modelo teórico no qual a
proposta de estudo estaria associada e ao projeto de sociedade a ela vinculado.
Nessa perspectiva, o presente seria uma mera passagem de nível para o futuro.
Os anos 1980, marcados pela perda do telos que unia a história a uma única
finalidade no futuro – sociedade sem classes/progresso global - mergulhou na
opacidade do passado seduzidos pela memória. Como reflete o historiador francês
François Hartog, há que se superar esse estado de sublimação e trabalhar com a
relação entre memória e história: “Então veio um passado oculto, esquecido ou
simplesmente falsificado (vinculado com o que acabei de dizer acerca do presente

7
29a Bienal de São Paulo, confira em www.rosangelarenno.com.br/obras/exibir/30/1, acesso 10/10/2015
8
RENNÓ, Rosângela. O arquivo universal e outros arquivos. São Paulo: Cosac Naif, 2003
9
LE GOFF, Jacques. “Documento/Monumento, IN: Memoria-História, Encilopedia Einaudi, Vol 1, Lisboa:
Casa da Moeda/Imp. Nacional, 1985.
69

incômodo, que se tornou tão ansioso com a memória). Rememorar, não esquecer é
apresentado como um dever pessoal dirigido a cada um de nós. Mas uma tal memória
não é transmissão, mas reconstrução: história”.10
Os discursos da morte da fotografia com o advento da tecnologia digital são
quase contemporâneos aos do fim da história e tiveram o mesmo destino: o de serem
um fenômeno de geração. Combalida pela crise das utopias, a geração que nos anos
1980 ingressa no espaço das sociabilidades públicas, por meio do acesso à
universidade, ao consumo cultural mundializado e à praça pública – dos movimentos
sociais (no Brasil, notadamente, é a geração que participa do movimento pela
redemocratização), vivencia a crise buscando alternativas criativas aos discursos
finalistas e fatalistas.
É dessa forma que estabeleço, ao menos para o Brasil, um paralelo entre a
prática fotográfica da qual o trabalho artístico de Rosangela Rennó é um dos
expoentes, e a prática historiadora, da qual boa parte da produção historiográfica,
que se consolida nos programas de pós-graduação, Brasil a fora, é tributária. Em
ambas as práticas, a artística e a historiadora, um passado imprevisível significa muito
mais, “novas questões a colocar ao passado e, se possível, novas respostas de sua
parte, considerando-o um campo de potencialidades, de que algumas começaram a
acontecer, foram interrompidas, ou evitadas, ou destruídas”. 11
O exercício de interpretação histórica que proponho para a prática artística de
Rennó vai tentar, primeiramente, caracterizar a fotografia como gesto para dar conta
de como o anonimato se torna subjetividade por meio seu trabalho; e, em seguida,
identificar o papel que o passado ocupa na sua poética visual como matéria de
imaginação12.

10
HARTOG, François. Regime de Historicidade [Time, History and the writing of History - KVHAA
Konferenser 37: 95-113 Stockholm 1996]. Disponível em:
www.fflch.usp.br/dh/heros/excerpta/hartog/hartog.html, p.16. versão em pdf acessível em:
https://pos.historia.ufg.br/up/113/o/Fran%C3%A7ois_Hartog_-_Regime_de_Historicidade_(1).pdf
11
HARTOG, idem, p. 17.
12
Para dar conta desse percurso final vou me apoiar em textos escritos sobre artista, disponíveis no
seu site, e em entrevistas dadas por ela e publicadas em livro.
70

Nas considerações que venho desenvolvendo sobre o engajamento como


forma de autoria na prática fotográfica 13, defendo a fotografia como gesto, numa
perspectiva que abraça as reflexões de Giorgio Agamben sobre a noção de autor. A
situação de uma presença ausente redefine a concepção de autoria. O nome do autor
não é simplesmente um nome próprio como os outros, nem no plano da descrição,
nem naquele da designação, apoiado na noção de função-autor de Michel Foucault,
afirma-se: “o autor não está morto, mas pôr-se como autor significa ocupar o lugar
do morto. [...] E o que significa, para um indivíduo, ocupar o lugar do morto, deixar
as próprias marcas em um lugar vazio?”.14 O sujeito/autor não é algo que possa ser
alcançado diretamente de uma realidade substancial presente em algum lugar. Ele é
o que resulta da experiência com os dispositivos (aqui no sentido de Foucault, ou seja,
práticas e estratégias de sujeição) em que foi posto – se pôs – em jogo.
A marca de presença do sujeito na imagem pelo gesto de captura que realiza o
fotógrafo transforma qualquer experiência banal num momento excepcional, em
que segundo Agamben, somos confrontados com o dia do Juízo Final. Toda
explicação para todas as coisas foi potencializada naquela marca de presença que se
inscreve numa na superfície fotográfica como um devir. É a marca de uma presença
ausente, dela só existe a sombra da impregnação luminosa possibilitada pelo gesto
do fotógrafo.
Essa natureza escatológica do gesto que o bom fotógrafo sabe colher, sem,
porém, diminuir em nada a historicidade e singularidade do evento fotografado:
“todas essas fotos contêm um inconfundível indício histórico, uma data inesquecível
e, contudo, graças ao poder especial do gesto, tal indício remete agora a outro
tempo, mais atual e mais urgente do que qualquer outro tempo cronológico”.15
A situação fotografada implica na exigência do sujeito fotografado de não ser
esquecido. Assim, essa exigência, que nada tem de factual, se transforma num
imperativo da defesa do sujeito histórico na representação: “Mesmo que a pessoa

13
Refiro-me ao projeto de pesquisa “O olhar engajado: prática fotográfica e os sentidos da História,
Brasil 1960-1990”, financiado pelo CNPq com bolsa de produtividade 2011-2014.
14
AGAMBEN, op.cit. p.58.
15
Idem, p.28.
71

fotografada fosse hoje completamente esquecida, mesmo que seu nome fosse
apagado para sempre da memória dos homens, mesmo assim, apesar disso - ou
melhor, precisamente por isso – aquela pessoa, aquele rosto exigem o seu nome,
exigem que não sejam esquecidos [...] as fotos são testemunhos de todos esses
nomes perdidos, semelhantes ao livro da vida que o novo anjo apocalíptico – o anjo
da fotografia – tem entre as mãos no final dos dias, ou seja, todos os dias”.16
Na linha de Agamben, o autor é aquele cujo gesto de jogar com e nos
dispositivos coloca em evidência a ausência de uma presença. Contraditoriamente,
o sujeito que se apresenta numa foto não está mais presente, foi jogado na foto e a
sua existência implica na sua própria desaparição. O autor da foto, o fotógrafo, opera
um dispositivo que captura uma presença que definirá no futuro uma dupla ausência
– do objeto fotografado e do próprio fotógrafo que não existe mais, a não ser no fora
de quadro, no fantasma de um alguém que some na espuma do tempo.
O gesto de jogar o sujeito na foto – de se jogar na imagem que expressa uma
dada condição histórica - coloca o sujeito-fotógrafo em relação aos dispositivos da
linguagem política. O jogo que se desenrola na arena política é apropriado pela
expressão fotográfica e o gesto do fotógrafo instaura uma presença ausente – os que
lá estavam não mais estarão, mas permanecerão com seus rostos, com a identidade
de sujeitos históricos, nas imagens que circularão e serão reproduzidas, apropriadas
e analisadas no vir a ser da história.
As reflexões de Agamben ecoam nos trabalhos de Rennó. O Arquivo Universal,
projeto iniciado nos anos 1990, abrange a prática historiadora da artista que tem
como objetivo inventariar textos e notícias que se rementem à fotografia e à imagem
fotográfica, farejando, como o ogro da lenda e à maneira de Bloch, 17 carne humana.
Nesse processo de busca, tal como Foucault, no texto assinalado por Agamben,
Rennó descobre a presença de sujeitos como indivíduos vivos por meio do
desvelamento dos processos objetivos de subjetivação, jogando com os dispositivos
e mecanismos de poder, para que fiquem evidentes a sua farsa.

16
Idem, p. 30
17
BLOCH, op. cit.
72

A presença do arquivo na arte contemporânea atua como um sintoma da


consciência histórica contemporânea. A produção artística vem acompanhada de
uma performance crítica, em que se confundem propositadamente as formas de
enunciação, verbal e plástica, congregando o mundo das artes numa espécie de
“mania contemporânea pelos arquivos”.18 Essa expressão utilizada por Maria
Angélica Melendi, na mesa-redonda de lançamento da obra de Rennó sobre os furtos
na Biblioteca Nacional, em 2010, nos convoca a refletir sobre a condição trágica da
história, em que o passado é retirado de sua inércia nos arquivos, e sua apreensão
pela obra de Rosângela Rennó:

O ARQUIVO: Os arquivos mantêm uma existência discreta. Por mais que os invoquemos,
dia após dia, por mais que se publiquem livros e catálogos sobre eles, eles permanecem
silenciosos, quase ocultos nas suas moradas sombrias. Até que, de repente, algo
acontece. O que acontece é sempre uma catástrofe: natural - inundação, incêndio,
soterramento – ou provocada – vandalismo, descuido, roubo. Paradoxalmente o
acidente tira o arquivo de sua inércia. Se, quando íntegro, vivia uma vida precária, agora
que foi atingido, renasce cheio de honra, como um mutilado de guerra que não oculta
suas feridas nem disfarça suas cicatrizes. O arquivo vulnerado parece sempre estar mais
vivo que o arquivo intocado – este é um arquivo improvável onde os rastros da memória
perfilar-se-iam perfeitos e imóveis, cada qual no seu lugar, na calma vigilante dos
cemitérios. A preocupação de Rosângela com o arquivo vem de longe. Talvez, possamos
encontrar sua possível origem no Arquivo Universal, que Rennó seleciona e organiza
desde 1992, constituído por textos de revistas e jornais que, segundo ela fala, narram
histórias ordinárias sobre gente e fotografia. [...] Nos últimos anos, a artista envereda
por trabalhos silenciosos, nos quais os arquivos são salvos por um gesto alternativo de
reconhecimento ou de contra-memória, que propõe novas ordens de associação afetiva,
parcial e provisória. Neles os arquivos privados questionam os públicos, porque eles
podem ser vistos como ordens perversas que procuram disturbar a ordem simbólica. O
paradigma do artista como etnógrafo, que Hal Foster desenhara no final do século XX,
pode se opor agora do artista como arquivista, aquele que opta pela construção de
lugares de inscrição de memória. [...] Este artista, o artista arquivista, transformaria o
não lugar do arquivo no não lugar da utopia19

Agregaria às ponderações de Melendi, que, no trabalho de Rennó, a produção


de um arquivo tem como objetivo duplicar a experiência histórica de sujeitos sem

18
O arquivo vulnerado ou as ruínas da fotografia de Maria Angélica Melendi se encontra nesse site:
http://pt.scribd.com/doc/265538627/O-Arquivo-Vulnerado#scribd Acessado em 09 de agosto de 2015.
19
49 - 20-02-2010 – Mesa Redonda lançamento do livro – Rosângela Rennó, Paço Imperial, Rio de
Janeiro, LABHOI-UFF, 1:23’. Participantes: Rosangela Rennó, Joaquim Marçal, Maria Angélica Melendi
e Paulo Herkenhoff.
73

identificação específica e a interpolação de textos e fotografias que não possuem a


mesma procedência. E esta construção convida o público a entrar no jogo da criação
de múltiplos passados para aqueles anônimos, que ganham vida na obra de arte. Na
arte, inverte-se o jogo de reificação fornecendo um passado possível ao sujeito da
imagem. O depoimento da Rosângela Rennó esclarece, mas acima de tudo, evidencia
o trabalho de historiadora visual e a criação de passados possíveis:

As fotos são testemunhos, provas, documentos que você guarda. Se eu pudesse


arquivaria todos os retratos do mundo. [...] O Arquivo Universal é uma ironia em cima da
ideia de colecionar infinitas fotografias que só se realizam através da leitura de textos
sobre as mesmas, que que você não tem acesso à imagem propriamente dita. Você pode
projetar a si próprio ou projetar sua foto, pelo fato de não poder conhece-la. Assim, a
foto transformada em palavras passa a integrar um arquivo que não acaba nunca, um
arquivo que está sempre em transformação, que não tem tamanho definido, um arquivo
virtual. [...]
Gosto dessa ideia de fazer o espectador entrar no jogo. No caso das fotos do arquivo do
Museu Penitenciário, você não pode identificar o indivíduo [– destaque para a
tatuagem]. [...] Naquele momento eu estava interessada em reforçar que aqueles
indivíduos não são anônimos. Mesmo sem saber seus nomes, meu propósito era
provocar no espectador o desejo de conhecer e compactuar com aquela dor, ou as várias
dores. Então por isso escolhi deliberadamente certos textos do Arquivo universal para
atuarem junto com as imagens, quer dizer, tirá-las de uma espécie de limbo coletivo do
presídio. Os textos não têm nada que ver com os presos, mas tratam igualmente de
singularidades, situações extremamente particulares. [..] Gosto da ideia de fazer você
descobrir o indivíduo, se relacionar com ele ou recuperar através dele sua própria história
pessoal. Por isso, às vezes, torno a imagem quase invisível. Você tem que buscar aquela
imagem, arrancá-la do preto ou do vermelho.
Mas se trata de uma narrativa criada, inventada, não necessariamente aquela que gerou
aquela imagem. Gosto da ideia de fazer você entrar no jogo, você acha essa marca
histórica, por exemplo, na foto dos presos. Mas minha estratégia é provocar uma espécie
de apagamento do primeiro referencial para que essas imagens ganhem visibilidade, mas
de uma nova forma, pois não faz sentido repetir o que está feito. Não faço sociologia ou
antropologia. Mesmo que se considere um aspecto interdisciplinar na minha prática, a
ponta do iceberg é de ordem estética. [...]
A ideia de margem nos meus trabalhos corresponde ao que quase pula para fora do
circuito dos objetos. O que quase vai para o lixo. Interesso-me por esse material, pois me
leva a pensar em que medida posso determinar que uma coisa não serve para
absolutamente mais nada. Trata-se de uma questão de atribuição de valor, e meu
trabalho sempre começa pelo questionamento da atribuição de valor, valor simbólico,
valor sentimental, e por aí vai.... Então, quando se destinou uma imagem ao lixo, significa
que ela perdeu muita coisa.20

20
RENNÓ, Rosângela. Depoimento. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2003
74

Estratégias operadas pela artista colocam em evidência o gesto fotográfico que


existe no seu trabalho independentemente da própria fotografia, Rennó opera por
meio da técnica da mise en abîme:

As obras de Rosângela Rennó, nas quais a artista re-fotografa velhas fotos e velhos
negativos, podem ser consideradas ótimos exemplos de mise en abîme, tanto do ponto
de vista mecânico quanto conceitual. Nascem da repetição mecânica de um gesto (o de
tirar fotos) já executado: ao mesmo tempo, a imagem final remete conceitualmente ao
original do qual ela foi tirada, sobrepõe-se a esta e a completa, tornando-a finalmente
compreensível em todas as nuances. Como um conto fantástico de Borges, o espectador
é colocado diante de duas imagens, mas vê somente uma. De fato, nesta extraordinária
mise en abîme, a segunda imagem não é inferior a primeira nem em dimensões nem em
importância: ao contrário, é uma reprodução tão fiel, que se sobrepõe perfeitamente ao
original, eclipsando-o...21

Da mesma forma que na escrita da história, Rennó coloca a evidência em


evidência para a produção de conhecimento, em seu trabalho, a superação dos
modos de ver do passado se processa pela sua inscrição na trama da consciência
histórica do presente, onde cada espectador ocupa o lugar central no destino das
imagens. O futuro da tríade temporal é sempre uma possibilidade em aberto. Na
verdade, como aponta Herkenhoff, “a produção de Rennó tem marchado para
constituir uma epistheme da fotografia”.22

A palavra em evidência

Nos lançamentos das duas obras, em 2010 e 2013, realizaram-se mesas-


redondas, com a participação de Rosangela Rennó e de representantes das
instituições que tiveram as suas peças roubadas. Os eventos foram gravados e
cedidos pela autora para o Laboratório de História Oral e Imagem da UFF, onde foram
tratados segundo os protocolos da História Oral. 23Com base nesses dois documentos

21
VISCONTI, Jacopo Crivelli. “Evidências ocultas” [Hidden Evidence]. In Shattered Dreams: Sonhos
despedaçados / Beatriz Milhazes Rosângela Rennó. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2003, p.
42.
22
Herkenhoff, Paulo. “Rennó ou a beleza e o dulçor”. In Rosângela Rennó. São Paulo: Edusp, 1996
23
Trata-se, portanto, de proceder a duplicação, elaboração da ficha sumário e transcrição das fitas com
a minutagem segundo critérios estabelecidos no LABHOI. “49 - 20-02-2010 – Mesa Redonda
lançamento do livro – Rosângela Rennó, Paço Imperial, 20/02/2010, Rio de Janeiro, LABHOI-UFF, 1:23’.
75

o debate público pode ser revisitado e os temas levantados servem para se identificar
os principais agentes, situações e questões que posicionam, atualmente, a fotografia
como patrimônio histórico.
Ambas mesas-redondas foram coordenadas pela própria artista, que como
mestre de cerimônias, transformou o lançamento em uma performance em que cada
interlocutor definiu um lugar institucional de enunciação. No lançamento de 2010, a
mesa composta, além da própria artista, por um representante da instituição
Biblioteca Nacional, Joaquim Marçal; Maria Angélica Melendi, professora e
pesquisadora em Artes Visuais da Universidade Federal de Minas Gerais e Paulo
Herkenhoff, curador de renome internacional e ex-diretor da Biblioteca Nacional. No
lançamento de 2013, a artista contou com a participação na mesa de Beatriz Kushnir,
diretora do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro e, mais uma vez, com a
presença de Joaquim Marçal.
O primeiro evento contou com a apresentação de textos mais formais lidos
pelos integrantes da mesa, inclusive a própria artista, à exceção de Herkenhoff, a
quem coube o papel de polemista. Já a segunda mesa, composta por relatos da
experiência de cada um com os furtos, ganhou um tom mais testemunhal, em alguns
momentos, quase um desabafo. Temas como segurança dos acervos, acesso ao
público e os usos diferenciados das imagens fotográficas, responsabilidade com a
formação do patrimônio e o papel do Estado, política de acervo, papel do mercado e
o colecionismo, etc. perpassaram ambas mesas com ênfases diferenciadas, mas que
permitiu estabelecer algumas questões centrais para se enfrentar, não somente, a
questão do patrimônio cultural e sua preservação, mas também do seu futuro. Para
análise desses dois documentos proponho uma estratégia em que me coloco como
interlocutora do debate.24

Participantes: Rosangela Rennó, Joaquim Marçal, Maria Angélica Melendi e Paulo Herkenhoff” e “00
- 30-04- 2013 – Lançamento do livro – Rosângela Rennó, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro,
30/04/2013, Rio de Janeiro, LABHOI-UFF, 01:16’. Participantes: Rosangela Rennó, Joaquim Marçal e
Beatriz Kushnir”
24
As citações das transcrições das mesas redondas buscam preservar o contexto mais amplo do
enunciado, incluindo toda a elaboração do argumento, o que justifica a sua extensão.
76

O que faz da fotografia um objeto de patrimônio e lhe agrega valor de objeto de


coleção?
Em ambas oportunidades a fala dos representantes das instituições, Biblioteca
Nacional e AGCRJ, respectivamente, Joaquim Marçal e Beatriz Kushnir, apontam para
a presença de projetos de organização e reconhecimento do valor histórico da
fotografia, não somente como representação do passado, mas com referência à sua
materialidade como objeto da cultura visual.
Vale lembrar, antes de se destacar as posições em jogo no debate, que nos anos
1980, se afirmou no Brasil um novo tipo de experiência fotográfica que se traduziu
em duas principais frentes (Mauad, Louzada, Souza Jr.). Do ponto de vista da
fotojornalismo e da fotografia documental, a emergência do movimento das
agências de fotografia independentes, entre as quais, a Agil, em Brasília, a F4, em São
Paulo, Imagens do Povo, no Rio de Janeiro, foi significativa para se estabelecer um
espaço público visual independente da grande imprensa, mas em franco diálogo com
os meios de comunicação. Pela via dos mundos da arte e dos arquivos, a criação da
divisão de fotografia, em 1982, na Funarte que deu origem ao INFOTO, foi
fundamental para se definir uma política pública para a fotografia, tanto pelo lado da
experimentação artística, ampliação dos circuitos de exposição e divulgação de
saberes relacionados a fotografia, quanto pelo lado da produção de um conjunto de
técnicas e estratégias de organização, restauração e preservação dos acervos
fotográficos de instituições públicas e privadas.
Esta nova experiência evidenciaria a emergência de novos circuitos sociais para
a fotografia que assumiria sua face pública de diferentes maneiras: pela valorização
das coleções públicas composta por uma rica documentação fotográfica produzida
por agentes e instituições do Estado; pela valorização da fotografia como fonte
histórica e objeto de estudo em pesquisas acadêmicas; pela criação de bancos de
imagens, em que se destacaria o valor iconográfico da fotografia como forma de
ilustrar o passado visualmente, sobretudo, em livros didáticos e nos meios de
comunicação. Este movimento, se consolidaria nos anos subsequentes, com os
festivais de fotografia, os coletivos fotográficos, os movimentos de inclusão visual
77

pela produção fotográfica nas comunidades populares, a inauguração de galerias de


arte especializadas em fotografia, e ainda, com valorização acadêmica da fotografia,
por meio de linhas de pesquisa em cursos de pós-graduação nas áreas de História,
Artes, Comunicação, mas também, Literatura, entre outros processos em curso.
Este processo se evidencia na fala de Joaquim Marçal, design e doutor em
história social, que perfaz uma trajetória de engajamento com a causa fotográfica:

Durante mais de vinte anos, estive à frente de uma iniciativa que nunca foi minha, mas
sim nossa, ou seja, de um grupo de profissionais da Biblioteca Nacional, contando ainda
com a valiosa presença de colegas de outras instituições brasileiras e estrangeiras, com
destaque para a FUNARTE. Iniciativa esta que segue seu rumo ainda hoje e vem
buscando incessantemente, desde a década de 1980, há mais de vinte anos, portanto,
promover o resgate das fotografias integrantes da Coleção Dona Thereza Christina
Maria. Acervo doado pelo Imperador Dom Pedro II, em sua maior parte, à Biblioteca
Nacional, onde deu entrada no ano de 1891, quando seu edifício sede ficava ainda na rua
do Passeio. Passados os anos iniciais de prospecção da Coleção e de estudo sobre o
estado da arte, nos campos da identificação, catalogação, indexação, conservação
preventiva e restauro, reprodução, constituição de bases dados, obtivemos um
expressivo patrocínio da Instituição Banco do Brasil para dar início as atividades
propriamente ditas do projeto que ficou conhecido como PROFOTO. [...]

Muitos podem achar estranho que tanto tempo tenha se passado, mais de duas décadas,
e ainda hoje nem todas as dezenas de milhares de fotografias doadas pelo nosso último
monarca estejam integralmente tratadas, recuperadas e à disposição dos interessados.
É porque estamos inteiramente viciados em nossas instituições na política do
imediatismo. Cada gestão, e não é incomum que haja mais de uma gestão num período
governamental. A cada gestão, repito, surgem novas ideias, novas políticas e o que era
prioridade antes, deixa de ser agora. E neste passo, muita coisa boa fica pelo meio. Não
há projeto que resista assim, mas, no caso do PROFOTO, graças à união, à pertinência, à
paciência, as convicções de um grupo de funcionários da Biblioteca Nacional e das
instituições colaboradoras, o trabalho rendeu inúmeros frutos e ainda hoje serve de
exemplo para muitas instituições. [...]

Aquilo que se denomina Patrimônio Histórico e Artístico Nacional é o documento de


identidade da nação brasileira, nas palavras de Rodrigo Melo Franco de Andrade.
Defender nosso patrimônio histórico e artístico é alfabetização, dizia Mário de Andrade.
São pensamentos desta ordem que nos inspiraram e nortearam a nossa luta. Cito ainda
algumas palavras de Aloísio Magalhães proferidas durante o depoimento a uma
comissão parlamentar de inquérito na Câmara de Deputados, em Brasília, em 1981. Dizia
ele: “Não acredito, nem aceito, meus senhores, que se diga neste país que não se fizeram
as coisas por falta de dinheiro porque isto não é verdade. Não se fizeram as coisas, e não
fazem as coisas, por falta de determinação, por falta de coragem – o grifo é meu - e, às
vezes, por falta de competência”. Nosso trabalho com a Coleção do Imperador, como
ficou conhecida a partir de 1996, quando realizamos uma exposição que prestava contas
dos resultados até então alcançados e que itinerou pelo Rio de Janeiro, São Paulo,
Buenos Aires, Porto e Lisboa. Proporcionou-nos um momento de extrema gratificação,
78

retribuição mesmo por ocasião da solenidade promovida pela UNESCO, no auditório da


Biblioteca Nacional em outubro de 2003. Quando, pela primeira vez na História deste
país, um conjunto documental do Brasil foi inscrito no programa internacional do
Registro da Memória do Mundo sob o título A coleção do Imperador: a fotografia
brasileira e estrangeira do século XIX (2010).

Em seu depoimento, evidencia-se que foi por meio do trabalho coletivo, da


elaboração de projetos para captar recursos junto aos órgãos financiadores, que as
instituições de memória e patrimônio transformaram sua documentação fotográfica
em coleções de objetos memoráveis. O investimento que, por um lado, representou
o “resgate” das fotografias, do fundo das caixas em que estavam guardadas,
possibilitando que essas imagens iluminassem nacos do passado completamente
obscurecidos pela sua reclusão. Por outro lado, ao agregar valor de coleção aos
objetos de arquivo, aguçou o interesse do mercado de raridades, em que o passado
se reifica, e como coisa comercializável perde a sua dimensão de coisa pública. O que
nos leva a segunda questão.
A quem pertence as fotografias reconhecidas como patrimônio histórico?
A história se beneficiou do salutar movimento de valorização da fotografia
como documento/monumento.25 O passado ganhou contornos cada vez mais visíveis
e a iconosfera configuraria, de forma acabada, uma possível totalização da história.
As fotografias, seus usos e funções, circuitos sociais e formas de agenciamento,
passaram a integrar a problemática dos estudos históricos que superaram os limites
de uma tradicional história da fotografia como a sucessão conquistas técnicas e
mudança de estilos. A fotografia, seu suporte material e práticas associadas à sua
produção, como decorrência desse movimento, se tornariam patrimônios históricos,
o que levantou a questão do pertencimento e da propriedade dos objetos do
passado. Quais os limites entre o público e o privado quando se está em questão a
tomada de posse do passado das sociedades?
Nos debates de 2010 e 2013, as respostas à essa questão indicaram dois
problemas ainda insolúveis: o mercado que opera com peças furtadas e o
entesouramento de coleções privadas por instituições que limitam as formas de

25
LE GOFF. Op. cit.
79

acesso público ao patrimônio histórico; e ainda a ausência de uma política pública


voltada para a aquisição de bens culturais pelo Estado.
Joaquim Marçal argumentou, em ambas as mesas, sobre a necessidade das
instituições de memória e patrimônio apresentarem uma política de aquisição que
não oponha colecionismo privado e público, e que o Estado seja comprador de bens
culturais para domínio público:

Como falar de política cultural sem falar da presença do Estado nas atividades culturais
da nação brasileira? Sem a presença do Estado, bem sabemos, pouco, ou quase nada,
acontece. Aliás este é outro ponto nevrálgico da questão no caso específico da formação
e manutenção das nossas coleções. Embora nossa legislação patrimonial nos dê, em
teoria, instrumentos para enfrentar a iniciativa privada numa disputa que poderia e
deveria ocorrer, nos salões de leilões mundo a fora sempre que estivesse havendo um
documento de interesse para a memória do Estado, não é isto que temos visto na prática.
O Estado brasileiro tem sido omisso nessa questão e o que vemos hoje, então, é uma
voraz disputa de egos entre alguns super ricos de nosso país que se valem de seus
astutos avatares na tentativa declarada de construir patrimônio documentais e
iconográfico, onde a meta é invariavelmente construir brasilianas tão ricas quanto as da
Biblioteca Nacional, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. [...] (2010)

Existe uma outra questão sobre a qual a gente tem falado pouco, e eu acho que esse é
um fórum bacana para isso, que é a questão do mercado. Em geral, na imprensa e em
todos os lugares que a gente ouve falar sobre esses casos, a gente só fala nisso "Foi
furtado tanto"; "Existe uma quadrilha"; "Não há justiça no Brasil"; "A legislação é
absurda, o cara em pouco tempo tá na rua"; "Os arquivos e as bibliotecas não tem
segurança... segurança... controle"... Bom, por que que tudo isso? Temos que avançar.
Já que não avançamos e que a coisa está assim, por que que ela está assim? Porque existe
um mercado. E, ao meu ver, o nosso mercado está em parte, eu diria, deformado,
atrofiado ou mal estruturado. E eu acho que em parte é porque as instituições públicas
de memória estão fora desse mercado. Eu não proporia aos interessados, por exemplo,
que olhassem para o modelo Francês, que é um modelo que a gente costuma seguir. É
uma tradição que vem do XIX, o modelo Francês. No meu caso, eu sou da Biblioteca
Nacional. [...] Se a gente olhar para o mercado na França, a gente vai ver que a coisa é
bastante diferente. De saída, o Estado é comprador. O Estado, seja no âmbito da
municipalidade, do departamento ou do governo federal, o Estado é o grande
comprador. E, às vezes, ele é capaz de pedir ajuda do cidadão.

[...]Então eu acho assim, a gente tem que começar a discutir mais, se enfronhar mais,
incentivar a imprensa, investigar mais também as entranhas desse mercado. A gente tem
que ver como é que esse mercado funciona, porque que a coisa se deformou até tal
ponto... Não podemos ser ingênuos, é claro que se eles estão furtando é porque há gente
comprando, algumas dessas pessoas que estão comprando ficarão impunes para
sempre porque a gente sabe como as coisas são por aqui. Mas eu acho assim, que não
adianta só a gente ficar batendo nessa tecla, eu acho que a gente tem que lutar por
recursos orçamentários, simplificando a coisa que não é tão simples, para poder voltar a
80

comprar e entrar nesse mercado e, quem sabe, com o passar do tempo reestruturar isso
tudo.
Agora o problema é o seguinte, porque o colecionismo cresce e o mercado cresce, a
gente tinha que ter mais agilidade mais pressa em aparelhamento para justamente
coibir. Assim, essa ideia da visibilidade é incrível. [...] Quanto mais exposto, mais visível,
menos fetiche é. Menos interessante é para o cara, na caverninha dele. Então que seja
melhor, que tornem tudo mais acessível porque assim realmente você democratiza e tira
o aspecto do preciosismo que faz, alimenta os furtos, inclusive. Agora, o que precisa para
aparelhar eu não faço ideia de quanto dinheiro e quanto tempo isso seja necessário. Não,
a questão do tempo de envolvimento também, que você tem que ter uma equipe
preparada para isso (2013).

Em 2013, Beatriz Kushnir, ao discorrer sobre o furto no Arquivo Geral da Cidade


do Rio de Janeiro, em tom de desabafo, revela os meandros da rede do tráfico de
peças históricas:

Eu não acredito que o roubo tenha acontecido naquele final de semana, eu acho que o
roubo já vinha acontecendo há bastante tempo e ele foi um pouco descoberto de uma
maneira muito sensacional e quase fantástica para dar conta do que tinha sido roubado
de mais forte. Uma das piores sensações do mundo era entrar num depósito que foi
furtado. Acho que quem já passou por essa experiência não se recupera. Você abrir as
caixas e ver o destroçado ou você entrar numa biblioteca e ver capas de revistas
xerocadas porque eles queriam aquelas capas então era para abrir e localizar as mesmas
capas, era uma coisa muito complicada. E eu tinha um ano de casa, eu estava dirigindo o
Arquivo Geral há um ano quando o furto aconteceu, então foi um grande teste de
resistência. [...]O furto, primeiro é que assim, aqui de dentro da instituição mapeia essa
instituição para o furtador. Isso é uma coisa dramática. Achar quem fez isso é duro
porque coisas que ele pegou aqui estavam tão escondidas, tão guardadas, ele teria que
ter sido levado a esse lugar. Depois, não é só isso, esse rapaz que furtou à qual minha
diretora de pesquisa me proíbe que eu fale o nome porque ela tem medo que eu seja
processada, então eu não vou falar o nome dele, ele já tinha sido julgado antes, na casa
dele já tinha achado coisas da Mário de Andrade numa primeira vez. [...]. Quando ele foi
julgado em São Paulo, ele teve um escritório de 14 advogados para defendê-lo e o doutor
Saraiva me prometeu que ia prender o sujeito. E ele prendeu e me chamou. Ele prendeu,
eu acho, às vezes, um pouco rápido. Ele ficou com medo que o rapaz fugisse e ele
prendeu o rapaz tentando furtar novamente a casa Rui. Era bom que a gente pudesse
ter pego algum objeto furtado para saber como era esse enlace, mas enfim, não foi
possível. E esse rapaz ficou preso por cinco anos em Bangu VIII, que já me explicaram
que pra ficar em Bangu VIII não é qualquer pessoas [...]O procurador dizia que ele não
podia subir para me ver, então era uma situação bastante delicada. E lá eu conheci as
outras pessoas que também foram furtadas. Um furto do Jardim Botânico que se fala
pouquíssimo e que foi um furto absurdo. O furto que teve na Biblioteca Nacional, na
Chácara do Céu, no Museu Histórico da Cidade. Dentro do acervo da Polícia Federal a
gente encontrou material do próprio Arquivo Nacional que também estava lá, enfim. Isso
mostra que as instituições como um todo são passíveis de que isso aconteça. O que nós
fizemos foi tentar colocar as famosas câmeras de vigilância, enfim, por todos os lugares,
que não resolvem, mas ajudam. Pelo menos quando ele nos visitou recentemente, o
81

furtador, ele se intimidou com o número de câmeras e acho que não voltará. Mas o que
importa não é ele. Ele é uma pessoa rapidamente substituível. O que importa são as
pessoas que continuam comprando dele. [...]

O que a gente está vendo com isso aqui é mais um vandalismo e mais uma negociação
de mercado do que necessariamente uma ausência da instituição de poder guardar a sua
documentação. [...] Eu só queria colocar o seguinte, assim, as instituições nos últimos
dez anos, talvez, só vivem de leis de incentivo. O portal do Malta que eu fiz aqui a gente
fez com a Lei do ISS quando deixavam a gente participar da Lei do ISS, então a gente
conseguiu digitalizar, recondicionar e fazer o portal e é uma coisa ótima porque, assim,
o colecionador não gosta das imagens que estão em público. A imagem que eu tenho
deles é que eles ficam numa caverna todos pelados fumando charutos e mostrando
"olha o que eu tenho, olha o que você não tem" como crianças pequenas porque você
não vai poder expor aquilo em lugar algum! Você não pode trazer a público, você não
pode emprestar para uma galeria. O que você vai fazer com aquilo? Você não pode lançar
um livro com aquilo, nada! Você só pode mostrar para o seu coleguinha o que você
conseguiu e o outro não conseguiu. [...]Eu fico muito chateada quando nos comparam
ao Instituto Moreira Salles porque eu queria muito viver daquele dinheiro público... Não,
não, não, mas assim, o dinheiro do Moreira Salles é um dinheiro público tanto igual ao
meu, ele é um dinheiro de uma renúncia fiscal de um banco só que quando interessa para
ele, ele é privado, quando interessa para ele, ele é público. É o melhor dos mundos, eu
adoraria viver nesse mundo. Mas não vivo (2013).

A caricatura dos colecionadores criada por Beatriz Kushnir evidencia o perfil


rocambolesco da forma como o colecionismo de peças raras vem se estruturando no
Brasil. Imagem semelhante, mas com uma veemência mais demarcada, foi delineada
por Paulo Herkenhoff ao traçar o histórico das políticas de Estado em relação ao
patrimônio. O que nos leva a terceira questão.
O que o furto das fotografias revelou sobre os usos do passado?
As nações modernas, ao longo do século XVIII e XIX, se constituíram como
comunidades de sentido, segundo um padrão que se orientava por uma língua
comum, um território figurado cartograficamente e uma narrativa passada que
deveria ser compartilhada por todos os membros dessa comunidade. Os projetos
nacionais se sustentaram, em linhas gerais, na constituição de um sistema de ensino,
na criação das academias e do saber acadêmico e nas instituições de memória –
arquivo, bibliotecas e museus. Em todas essas frentes, o Estado desempenhava um
papel central.
Se no seu surgimento, as nações modernas valorizavam os usos do passado
como narrativa unificadora daquilo que ela foi, é e se tornará, ao longo do século XX,
82

a noção do passado como construção e da história como conhecimento crítico, levou


a necessidade de se assumir a pluralidade do passado, por meio de seus diferentes
suportes e representações, como objeto das políticas de Estado, desde a avaliação
dos livros didáticos de História pelos Planos Nacionais do Livro Didático até as
políticas de restauração, guarda, conservação e acesso ao patrimônio histórico.
Entretanto, o roubo de fotografias e outras peças dos arquivos e bibliotecas no
Rio de Janeiro, entre 2005 e 2006, revelou que, atualmente, os usos do passado estão
saindo do domínio público. Na percepção de Paulo Herkenhoff, na mesa-redonda de
2010, há que se superar o colonialismo interno e devolver às instituições de
patrimônio e memória do Rio de Janeiro a sua devida importância:

Nós temos de falar de um colonialismo interno e a Biblioteca Nacional é vítima deste


colonialismo interno. Porque até o início da absoluta, do triunfo paulista sobre a
sociedade brasileira, a Biblioteca Nacional era respeitada, em termos de contratação de
funcionários, de respeito aos seus funcionários e de recursos para aquisições. [...] A farsa
continua. No Governo Fernando Henrique Cardoso, o Ministério da Cultura restaurou,
com recursos da Petrobrás e etc., a Pinacoteca do Estado de São Paulo, que é um órgão
estadual e deixou o Museu Nacional de Belas Artes à beira de um incêndio nas mãos de
uma pessoa que, irresponsavelmente, tinha conduzido o Museu de Arte Moderna do Rio
de Janeiro até o seu incêndio. E o acervo do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro
interessa ao IPHAN, porque, na hipótese de dissolução do MAM, ele reverte para o
Museu Nacional de Belas Artes. [...] Essa memória que aparece pelo avesso, porque ele
vai puxando essas camadas. Isso é a cena do crime! Isto aqui é aquela fotografia que hoje
falsifica e que a arte volta a afirmar a sua possibilidade de falar do mundo.
Evidentemente, que isso aqui, cada um desses é uma relação metonímica como a
cegueira. A cegueira que nos cala diante dos problemas, a cegueira que nos cala diante
da lentidão do processo[...] o que esperar de um diretor, um presidente da Fundação
Biblioteca Nacional? O que é a destruição de um patrimônio da Biblioteca Nacional? Não
é apenas o roubo. Não é apenas aquele modo como a Biblioteca Nacional esconde os
milhares de roubo dizendo que as peças estão fora de lugar. Existe uma quantidade de
roubo de livro na Biblioteca Nacional que não se imagina. Perde-se um livro e diz que está
fora de lugar e fica por isso mesmo. Mas onde estão? O que se fez em termo de
segurança do acervo da Biblioteca Nacional desde então? Vamos lembrar que o roubo na
Chácara do Céu foi há 5 anos atrás e ele ficou 5 dias e depois foi apagado. As telas
roubadas da Pinacoteca de São Paulo e do MASP, enquanto não foram achadas, a
imprensa não parou de discutir[...], o roubo da Chácara do Céu saiu da imprensa em 5
dias. Demorou 5 anos para inventarem um projeto de segurança, que, na verdade,
segurança de que num museu que foi dilapidado? [...] Como está a questão, por exemplo,
do depósito legal hoje na Biblioteca Nacional? Como é que está? Como é que está o
depósito do Cais do Porto? Como é que está o processamento da Coleção da Biblioteca
Nacional? Ou seja, a maneira como o patrimônio é dilapidado varia. O que nos choca mais
é o roubo, porque lida com a questão de propriedade. Agora aquilo que é braço cruzado,
coleções que não aumentam, coleções que não são completadas, que não são
83

desenvolvidas, isso também é uma forma de dilapidar em negativo o patrimônio


nacional. Ou seja, eu tenho uma teoria que, infelizmente, o Império tratou e colecionou
no Museu Nacional de Belas Artes e na Biblioteca Nacional melhor que a República. A
República Velha melhor que a República Pós-Vargas. A ditadura melhor que os Anos de
Abertura e a Democracia. É uma realidade que nós precisamos refletir [...]. Eu acho que
são sintomas, na verdade, de uma doença profundamente que a culpa que a Biblioteca
Nacional carrega hoje de estar no Rio de Janeiro. Então, esta é uma questão que eu acho
bastante séria num certo sentido. E eu queria terminar dizendo o seguinte. Eu acho que
quando um diretor, um presidente da Biblioteca Nacional, que coincidentemente é um
grande marchand de livros, de manuscritos e de fotografias, ele deve a sociedade
brasileira uma doação que seja uma contrapartida a essa perda, porque em qualquer
manual de museologia, o mais simples possível, o primeiro responsável pela segurança
do acervo é o diretor, o presidente da instituição. Então, essa contrapartida, eu acho que
é devida a sociedade brasileira. Eu queria colocar essas questões que são, na verdade,
extra imagem... [...] Então eu acho que este livro trata disso: aquilo que é infotografável.
Aquilo que na sociedade brasileira, por exemplo, é apropriação do espaço público por
interesses privados [...]. Eu acho que isso é um problema grave, sério muitas vezes, e,
por outro lado, temos uma sociedade anestesiada. Nós não temos uma imprensa
cultural. Nós não temos isso. Enquanto nossos jornais não tiverem uma editoria de
cultura adequada, nós vamos ter isso. O roubo da Chácara do Céu morre no sábado de
Carnaval. [...] São Paulo precisa que tudo saia do Rio para consolidar o seu triunfo [risos].
Essa é a uma realidade que nós temos que dar o nome, uma verdade perversa (2010).

À farsa denunciada por Herkenhoff, se soma as dificuldades de apurar e prender


os culpados e também pela ausência de uma polícia voltada ao patrimônio. Beatriz
Kushnir revela, em sua fala, que os roubos no patrimônio são tratados pela mesma
delegacia que trata de crimes ambientais:

A cada dois anos os delegados mudam, é uma delegacia de Patrimônio Histórico, Meio
Ambiente e, agora, Grandes Eventos. Então, ao mesmo tempo, que eles têm que nos
atender, eles têm que atender o mico-leão-dourado, as sardinhas. Os agentes da polícia
federal perguntavam, "Mas esse Debret viveu quantos anos? Por que a senhora fala que
ele é de 1834, mas tinha uma coisa dele em 1964, quantos anos esse homem viveu?"
[Risos] Era uma coisa. E eles não tem necessariamente dominar essas questões. O acervo
que estava no acervo da Polícia Federal era enorme, não tinha carimbo de nenhuma
instituição. A Biblioteca Nacional e o Arquivo Nacional têm um trâmite mais burocrático
para se tornar fiel depositária e eu ia lá e dizia assim "Eu me torno fiel depositária, eu
assino, eu levo". E eu trouxe muita coisa, eu tratei, se a gente encontrava de novo as
instituições eu devolvia, senão foram ficando por aqui porque não se sabe de onde eram.
Isso tudo foi uma forma de cativar a Polícia Federal porque para eles eu era uma
instituição municipal que devia ir na Polícia Civil. E com uns dois meses antes do furto do
Arquivo, o Museu da Cidade tinha sido furtado e o Museu da Cidade estava vinculado a
nós e o furto deles foi tratado como um furto de celulares, eu sabia que não ia dar certo.
Então tentei explicar que nós éramos um Arquivo municipal de uma cidade que foi capital
da colônia, do Império e grande parte da República, então a nossa documentação
espelha isso. E depois de muita sedução com alguns delegados, enfim, outros mais,
84

outros menos, nós conseguimos um pouco que eles pudessem olhar para esses casos. É
uma questão difícil de lidar (2010).

Na confluência entre arte e história, coloca-se tanto a reificação do passado


pelo colecionismo fetichista que reduz tudo a mercadoria, quanto o seu reverso pela
dimensão de engajamento ético, que os artistas assumem ao tomar partido do
passado, como representação de algo que já não existe mais, uma fotografia. O que
nos leva a última questão que levanto para debate.
Seduzidos pela memória, como reagir à reificação do passado?
O processo de redemocratização da sociedade brasileira, que se iniciou com os
primeiros movimentos da ditadura militar rumo a distensão “lenta e gradual”, pode
ser datado com a lei da Anistia de 1979. O que iniciaria o processo de retomada pela
sociedade civil dos espaços de representação e da luta pelos direitos, inclusive o
direito a memória. Multiplicaram-se, nos anos 1980, as iniciativas relacionadas àquilo
que Pierre Nora denominou de memória-dever,26 por meio da abertura de centros e
casas de memória e de políticas de valorização das identidades sociais através da
tomada de posse de seus passados.
A sedução pela memória, que já foi título de livro (nota), tem uma dupla face
que coloca, a todos, muitas vezes diante de um desafio: garantir o direito à memória
e ao mesmo tempo defender o lugar da história, como discurso crítico que, inclusive,
toma a memória como objeto de estudo. Creio que esse desafio possa ser mais bem
enfrentado em equipe, de preferência multidisciplinar (ou ainda indisciplinar), em
que a história e a arte se reúnam numa mesma frente de batalha em defesa dos
passados possíveis e das memórias imagináveis.
Nos debates de 2010 e 2013, não se discutiu sobre o papel do historiador na
defesa do patrimônio histórico, mas do artista que, já naquele momento, assumia o
seu lugar delineando a face criativa da reação. Como sintetizou Marçal em 2013:
“Algumas pessoas têm dificuldade de entender o que é a arte hoje e outras também
não entendem como e porque o artista se mete em coisas que em princípio nada

26
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares, trad. Yara Aun Khoury, Projeto
História, São Paulo (10), dez, 1993. Acesso em
http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/12101/8763
85

teriam a ver com aquelas ideias.[...] eu concordo, que ao contrário do que essas
pessoas pensam, talvez para muitas das grandes questões desse mundo que a gente
está vivendo, inclusive questões éticas mesmo, talvez o artista esteja na posição mais
apropriada, digamos assim, para se manifestar.” (2013). Afirmação afiançada pela
artista presente, Rosângela Rennó: “eu me comprometo em colocar a minha
criatividade em benefício, a gente pensar em outras coisas juntas, fazer novas
parcerias e ver se a gente consegue alavancar outros projetos” (2013).

O que restou? A história e seus vazios ou a arte subverte a perda

Em uma das falas de Beatriz Kushnir, na mesa de 2013, quando do lançamento


da obra com as peças roubadas de seu acervo (acima reproduzida), a diretora do
AGCRJ revela o sentimento de perda e impotência ao se deparar com a cena do crime.
Caixas que deveriam preservar, das intempéries, as peças de grande valor histórico,
devassadas pela cobiça irracional de colecionadores que não poderão sequer expor
os seus tão preciosos objetos, sob o risco de se exporem. A presença de uma
ausência, percepção que temos quando encontramos evidências de arrombamento
e furto, é também a condição de toda a fotografia que nos faz lembrar que o que
estamos vendo, não existe mais. Este argumento que apoia a bela apresentação que
Maria Angélia Malendi faz da obra de Rennó com as peças recuperadas do furto da
Biblioteca Nacional, na mesa de 2010:

Rosângela Rennó nos relata, eu cito o texto do livro: “Não havia sinais de arrombamento.
Os autores do furto trabalharam com sutileza, escolhendo autores e temas, esvaziando
álbuns, substituindo fotografias, para que o crime só fosse descoberto algum tempo
depois. Depois de anos, foram recuperadas exatamente 101 fotografias mutiladas. Os
delinquentes tentaram apagar as marcas dos registros patrimoniais da Fundação, e para
isso descolaram as imagens de seus suportes, as rasgaram e recortaram suas [vozes?]”.
O LIVRO. O livro de artista 2005-510117385-5, cujo título é o número do inquérito criminal
– ainda não concluído – instaurado para investigar o furto, contém as reproduções dos
versos das 101 fotografias recuperadas, em tamanho real, ordenadas segundo a data de
sua reinserção no acervo da Divisão de Iconografia da Fundação Biblioteca Nacional. A
maior parte destas fotografias pertencia à Coleção D. Thereza Christina Maria, nomeada
biblioteca particular do Imperador D. Pedro II e por ele doada à Biblioteca Nacional após
a Proclamação da República, em 1889. Nas páginas do livro não encontramos quase
nenhum outro dado, apenas agrupações das imagens nos lotes em que foram
86

devolvidas; a ordem e os agentes das devoluções. Esse inventário não esclarece muita
coisa. [...]Rennó não está preocupada em propor soluções, ela apresenta os fatos de
modo objetivo. Das fotos recuperadas somente teremos o autor, o título, a data e a
imagem do verso da cópia. O avesso dessas fotografias não será mais a placa sensível, o
negativo – origem para sempre perdida -, mas a pálida superfície manchada do verso do
papel. O reverso da cópia que, destacada do seu álbum, da sua moldura, do seu passe-
partout, não deixa ver nada ou quase nada. Temos, então, que a partir dos escassos
dados que nos são oferecidos, imaginar o imaginável. As imagens colecionadas pelo
imperador, sobreviventes de um tempo remoto, arquivadas por muitos anos na
biblioteca republicana, recuperadas do furto, mutiladas, rasgadas, estão vedadas à nossa
visão. Delas só nos resta uma imagem da materialidade do papel sobre o qual foram
copiadas. O testemunho da existência dessas imagens reside neste suporte amarelado,
manchado, rasgado. Há anos atrás, foram depositadas sobre ele, por um sofisticado
procedimento químico, imagens de coisas que já não existem mais. Onde estão aqueles
navios – é muito curioso, aparecia um catálogo de navios: Andrada, Aquidabam, Audaz,
Cananea, Itaipu, Javary, Marajó, Meteoro, Orion, são bastantes mais – que lutaram na
Guerra do Paraguai ou na Revolta da Armada? E as vistas de Ouro Preto, Rio de Janeiro,
Petrópolis, São Paulo, Bahia, Pernambuco, Paraíba? Que resta das colheitas de café e dos
garimpos de diamantes, dos palácios, das fazendas, das bibliotecas, das pontes, das
ilhas? Ainda existe a Urucurana (Hieronymua alchornioides) de 150 pés de altura, cujos
frutos se usam como redes de pescar? Essas coisas – navios, paisagens, árvores,
camponeses, princesas e imperadores – foram outra vez eliminadas. Pois, se alguém
morre de novo quando a última pessoa se lembra dele, ele morre realmente quando
desfalece sua última imagem fotografada[...]. O livro – não vou ler o título – é também
um arquivo múltiplo, disseminado, conserva e propaga as devoluções do acervo furtado,
mas as nega a visibilidade ordinária. É um livro que um arquivo que se constitui como um
monumento perecível, mas não são todos os monumentos e os documentos perecíveis?
Um monumento que denuncia o atrabiliário do roubo e o irremediável da perda apenas
pelo seu avesso (201o).

A ênfase de Melendi recai sobre o duplo desaparecimento das coisas e das


imagens que se decalcam na perda que o furto provoca. A fotografia roubada impede
definitivamente o acesso às informações e representações que poderíamos ter dessa
sociedade que não existe mais, compreendendo aí a própria experiência de
fotografar. Assim, sua ausência decreta a morte definitiva da possibilidade da
história. Entretanto, a estratégia artística de Rennó, nesta obra, foi justamente a de
publicar o reverso das imagens recuperadas, ocultando, do desejo curioso, a frente
das imagens recuperadas. A artista reflete sobre a sua prática no diálogo com o
público e com seus interlocutores na mesa de 2010:

Bom, primeiramente, o que me moveu foi o mau estado de conservação das imagens
devolvidas. E eu sou dos tempos analógicos, então eu gosto de papel fotográfico, eu
gosto de gelatina e prata no papel, eu gosto de película, então isso são materiais muito
87

caros, especiais. E fotografar o verso da fotografia era uma forma de direcionar o olhar
do telespectador para o corpo desse objeto, convidá-lo a ver primeiro o objeto para
depois imaginar aquela fotografia que não está mostrada ali, a fotografia que eu não
apresento. Às vezes, ela está sutilmente vista pela transparência do papel. Uma segunda
motivação foi o desejo de projetar uma espécie de cegueira mesmo sobre essas imagens,
para que elas repetissem ou reforçassem a ideia de apagamento, de amnésia histórica.
Bom, eu já venho fazendo isso de outras maneiras, não com o verso das fotos, mas fiz
outras opacações, outros apagamentos no meu trabalho. E quando eu falo de
apagamento e outro resultado de amnésia, eu estou me referindo tanto a perda da
memória histórica, obviamente relacionada à perda das imagens destinadas ao arquivo
e a pesquisa, quanto da impunidade do próprio crime contra o patrimônio. E, tantos anos
depois do furto parece que não uma forma de combater esse apagamento e, às vezes,
soa como se ele nunca tivesse existido que dizer, para mim, é uma espécie de
apagamento do apagamento. Então, esse é o exercício que eu tentei fazer e mostrar um
pouco dentro do livro.

Uma vez você [referindo-se a Paulo Herkenhoff] escreveu uma coisa sobre o meu
trabalho que em vários momentos eu uso uma espécie de estratégia de revelar, de
mostrar com pudor. Eu sempre guardei isso, porque é uma forma de mostrar, quer dizer,
as fotos... Eu pensei muito nisso: como mostrar isso sem... mostrar a violência, mas de
uma forma quase que com recato que resguardo o próprio autor das imagens. Não
mostrar a imagem...Porque a imagem que o autor fez não é essa. Ela estava integra.
Então era uma forma de revelar com pudor. Então o verso funciona assim (2010).

A opção por organizar o livro em capítulos, que são compostos pelos lotes de
fotos devolvidas, e orientados pelo relatório composto pela seção de Iconografia da
BN, como registro das imagens devolvidas, justifica o título do livro como o número
do próprio inquérito policial – 2005-510117385-5 – e reforça a função de denúncia do
trabalho artístico. A produção do livro foi viabilizada pelo edital Arte e Patrimônio e
existe em duas versões, como explica Rennó na apresentação de 2010: “Eu brinco
que é uma versão de colecionador, que tem o formato caixa que segue mais ou
menos o rigor das caixas de álbum do século XIX; e uma versão Offset que tem um
outro formato, é bem diferente, mas que tem basicamente o mesmo conteúdo. O
texto explicativo é apenas um texto pequeno que é muito instrumental e eu não fiz
nenhum tipo de investigação criminal”. Na versão limitada, as pranchas estão soltas
acondicionadas em uma caixa, na versão Offset, se pode folhear o livro, cada versão
é uma experiência distinta, reunidas pelo estranhamento que a subtração da imagem
provoca, como se a publicação de um exame de corpo de delito retirasse o corpo do
exame. A experiência, em primeira mão de Melendi, merece destaque pelo relato
sensível na mesa de 2010:
88

A FOTOGRAFIA (O AVESSO DA FOTOGRAFIA) FORA DO ARQUIVO. Os ângulos superiores


da fotografia estão cortados, no lado direito da imagem aparece uma inscrição
manuscrita Ferrez, M., que confirma a identificação completa na página ao lado: Marc
Ferrez; Apprendiz Marinheiro (Navios da Marinha de Guerra e Mercante do Brasil, 189?).
Na foto, no verso da foto, não vemos quase nada além dessa anotação feita a lápis sobre
o papel amarelado, umas poucas manchas do tempo, algumas sombras. Mas guiados
pelas misteriosas palavras Apprendiz marinheiro, que queria dizer Navio escola,
procuramos algo mais naquela imagem - a imagem do verso de uma foto - algo que faça
sentido. E assim, porque acreditamos que veremos algo consentimos em criar a partir
das sombras. Como se olhássemos num daguerreótipo, movimentamos na tela do
computador a página do livro (eu tinha a imagem no computador), buscamos pela
imagem que não está, que não deveria estar, até conseguir organizar as manchas, o
arquipélago de manchas, numa figura. Vemos, então, conseguimos ver um navio - a proa,
os altos mastros, as redes, as bandeirolas, os marinheiros no convés. Vemos,
acreditamos ver, a sombra de um navio, um espectro pálido que emerge do papel - da
tela de cristal líquido - mas que logo começa a se afundar, a ser, outra vez, um
arquipélago de manchas. [...] Os espectros que aparecem no reverso das fotos deste
livro, imagens produzidas pelo tempo, pelo descolamento do suporte, pelo
enfraquecimento da folha de papel alcançam, talvez, a áurea que muitas imagens
perderam. A aparição única de uma coisa distante por mais perto que ela esteja. [...] A
cobiça de alguns e a força da lei resgataram sua existência; o trabalho de Rennó as
devolve ao convívio, apenas mostrando seu avesso. O que nunca foi visto ou o que não
vale nada, o que se perde no trânsito e na translação. O que desaparece na foto digital.
E aí a gente poderia falar muito, mas não vou falar [risos]. Mas você deixou isso assim
que se perde mesmo. Neste processo, a artista não somente amplia as possibilidades de
ver o que pode ser visto, mas denuncia a existência de mais um desaparecimento, o do
suporte material da imagem. Por outro lado, ela explicita a dialética que flui entre a
fotografia química e a opacidade do papel que a suporta. Nesse confronto, a imagem de
prata persiste, impregna o papel, o vara, o contamina, o corrompe. Um fora de campo
que afeta o espaço da enunciação e o estende além dos seus limites. A persistência da
fotografia - do avesso da fotografia - está nesse fora de campo, nesse fora da imagem
que a artista nos oferece no seu livro. Um estar sem estar, pois não todas as fotografias
permitem decifrar o que se esconde no arquipélago de manchas, mas um estar nas
palavras com que reconstrói as imagens. Assim, como os navios que não mais existem,
como a fazenda que há muito tempo foi loteada, as fotos que o imperador colecionou
não estão mais onde deviam estar. Neste livro, porém, elas aparecem, como aparece um
rosto no sudário de Turim. Iluminados pelo trabalho da artista que ilumina o seu desejo
de ver o que não pode mais ser visto. [Palmas] (2010).

Das falas da artista e da estudiosa, quero reter duas noções que, se


complementam dialeticamente pela ação da arte, a de opacação e a de espectro.
Ambas figuras de linguagem recorrentes para se remeter ao passado criam a ideia de
que uma experiência passada, sempre se mostra inatingível na sua completude, mas
possível de ser visualizada pelos seus restos ou indícios.
89

Na segunda obra publicada em 2013, intitulada A01 [COD.19.1.1.43] – A27


[s|COD.23], refere-se a notação e ordenação original dos álbuns furtados. O Arquivo
Geral da Cidade do Rio de Janeiro, sofreu em 2006, a perda de inúmeras peças
valiosas de seu acervo, dentre as quais, dezenove álbuns da coleção Pereira Passos.
Na mesa de lançamento dessa obra, em 2013, Rennó apresenta o partido adotado
nesta obra que, ao contrário, do furto da Biblioteca Nacional, em que algumas
fotografias foram devolvidas, mesmo de forma bem fragilizada, no AGCRJ, as fotos
ainda fazem parte de uma busca:

Quer dizer, no caso do livro do Arquivo Geral, quando eu vim começar a pesquisar aqui
nas primeiras conversas com a Ruth, que é a responsável pela divisão de... como é que
chama?

Sub-gerência de documentação especial! Isso! E com a Beatriz eu percebi e falei assim:


“aqui a gente não tem devoluções”. Então de cara o meu projeto de livros já teria que
ter um outro partido gráfico, não um partido, um partido conceitual diferente. O partido
gráfico eu tentei manter ao máximo, inclusive ele tem mais ou menos as mesmas
dimensões do livro da Biblioteca Nacional, depois vocês podem ver aqui na mesa que eu
trouxe um exemplar. A partir das pesquisas e das conversas aqui dentro do arquivo [...]
Eu decidi fazer um recorte. Então, não trabalhar com a questão desse grande furto que
não se sabe nem ao certo exatamente precisar a data em que a coisa ocorreu porque na
verdade a gente tem é uma data em que o furto foi descoberto, digamos. Que foi logo
após o feriado de Corpus Christi. Mas eu queria fazer alguma coisa que deixasse claro
que haveria uma representação de um furto. Então, qual foi o material iconográfico
escolhido? A coleção Malta. Porque a coleção Malta ficava arquivada dentro do depósito
da câmara fria, da Sub-gerência de documentação especial. E ela ficava num
determinado lugar dentro de caixas que foram feitas em algum momento da década de
90 [1990] para arquivar esse material com condições mínimas de manuseio porque é um
material frágil, inclusive. Então cada álbum ficava em caixas individuais. Então, o que
aconteceu? A partir desse feriado, em que foi descoberto o furto, a equipe da Sub-
gerência foi perceber o seguinte: as caixas não tinham conteúdo. Quer dizer, muitas
vezes, você abre uma caixa e era uma caixa vazia, todo o conteúdo tinha sido subtraído
dali ou tinha sido subtraído partes e deixavam as capas e levavam o conteúdo... Quer
dizer, as páginas, as folhas de cartão, com a fotografia colada; ou alguns álbuns foram
páginas arrancadas. O álbum ficava ali, mas algumas páginas tinham sido retiradas. E
ficaram alguns poucos álbuns. Os dados são 27 álbuns que pertenciam à coleção Malta,
dos quais 18 foram retirados ou danificados, ou totalmente subtraídos, sobraram 8
dentro das caixas. Então eu tinha ali um material para trabalhar porque eu tinha algumas
fotos remanescentes, eu tinha essa ideia das capas sem conteúdo que, na verdade, me
atraiu muito do ponto de vista como artista porque vocês devem se lembrar do meu
projeto Bibliotheca.27 O projeto Bibliotheca eu parti do princípio, um projeto

27
Rosângela Rennó refere-se ao seu projeto artístico, de 2001, chamado de “Bibliotheca”, em que
álbuns são expostos em vitrines inacessíveis ao manuseio do público. Confira em
http://www.rosangelarenno.com.br/obras/view/13/1 acesso em 10 de outubro de 2013
90

completamente diferente, outra questão conceitual. Mas visualmente havia um


impedimento de você manipular os álbuns que pertencem a minha Biblioteca e, na
verdade, eu só deixo você ver a capa do álbum. E o conteúdo você só vê dentro da vitrine,
a minha grande coleção de cem álbuns e você só vê lateralmente. Quer dizer, é quase
como se eu convidasse o espectador a ver só o volume e jamais a foto de cima, jamais
incluir o objeto em sua totalidade. Então, de cara, na hora que eu vi aquela situação eu
falei: “Bom, é juntar a fome com a vontade de comer”.

Eu não posso deixar de trazer uma coisa que me é tão já querida que é essa ideia da
beleza do próprio invólucro, que é o que faz parte da época dos tempos analógicos. Hoje
ninguém faz álbum. Então eu tenho muito apreço pelos álbuns, pelas capas, por mais
simples que elas sejam, as capas são aquilo que você elege como o que você ampliou, o
que você guarda. A finalização mais que perfeita de um objeto que ficava inclusive em
cima das mesas, nas casas das famílias. Hoje em dia agora com os tempos digitais então
esse conceito já nem existe mais. Você tem pastas de computador, você não tem mais
álbuns. A ideia de álbum é muito mais fluida. Então eu acho que é isso, assim, o partido
tomado nesse caso aqui foi de explorar o que ficou dessa coleção. O livro é capitulado,
dividido em capítulos. Na verdade, os capítulos correspondem às caixas, cada caixa eu
considero como um capítulo. Então era uma caixa preta com a descrição de um conteúdo
de acordo com um relatório que o Arquivo Geral me passou com os dados que foram
complementados pelo que eu pude observar e o que eu pesquisei. E as imagens daquilo
que ficou. Quando era caixa vazia, é uma caixa vazia, quando tem uma capa, tem uma
capa, quando tem um conteúdo, tem conteúdo [..] Eu optei por imprimir em fac-símile,
quer dizer, o tamanho real, apenas 20% do conteúdo de cada álbum. Por isso que cada
álbum tem um número, os que ficaram nas caixas tem uma representação específica
dentro do livro. Mas isso tudo está explicado dentro do próprio texto de introdução do
projeto. E como eu pretendia que isso fosse visto como uma espécie de sequência –
espero fazer um terceiro livro sobre um terceiro furto carioca – eu quis manter certos
parâmetros então o livro tem o mesmo acabamento, a mesma duração do livro da
Biblioteca Nacional, o mesmo acabamento de capa, guarda também que é como se fosse
um livro com as guardas estampadinhas, como os álbuns antigos. E esse é o livro novo
com o mesmo formato, com um número diferente de páginas e um outro resultado
gráfico interno diferente (2013).

No movimento de “juntar a fome com a vontade de comer”, a artista


transforma furto em experiência estética. Ao dramatizar o evento ressalta a sua
excepcionalidade e tenta ao provocar os sentimentos do público arregimentá-lo para
sua causa. Quando folheamos o livro da artista somos jogados na cena do crime e
presenciamos as ações de vandalismo perpetradas pelos ladrões: capas de álbuns
desprovidas do seu miolo, páginas arrancadas, fotografias incompletas, presilhas de
álbuns soltas como restos de uma vida que não existe mais 28.

28
Para visualizar a obra acesse: www.rosangelarenno.com.br/obras/view/56/1
91

As duas obras são potentes denúncias sobre os abusos do mercado, que


transformam documentos históricos em fetiche de colecionadores, cujo valor
agregado pela sedução a memória-mercadoria, abre caminho para ações de furto,
dilapidação do patrimônio histórico e entesouramento. Por outro lado, é a
confirmação no trabalho de Rennó da fotografia como gesto, que nestas obras
garantem vida às próprias imagens roubadas.
Vale indagar, portanto, o que essas duas experiências artísticas revelam da
experiência histórica contemporânea? A reposta a essa questão pode ser direta, mas
me permito, uma breve digressão no texto, antes concluí-lo.
O historiador Carlo Ginzburg,29 em uma de suas obras, dedica um capítulo muito
interessante, a aprofundar a leitura que, o filósofo alemão S. Kracauer propõe no seu
livro póstumo History: the last things before the last [História: as últimas coisas antes
das últimas], publicado pela primeira vez em 1969, sobre a relação entre história e os
meios fotográficos. Trata-se, no exercício proposto por Ginzburg, de colocar o
pensamento de Kracauer em perspectiva no tempo, incidindo na discussão sobre o
realismo da imagem, sobre a existência de um sentido na história e sobre o papel do
historiador e do fotógrafo como observadores privilegiados da História.
No tratamento do pensamento de Kracauer, Ginzburg identifica duas posições
quase opostas na relação que o filósofo estabelece entre a história e a fotografia. Em
linhas gerais, na década de 1920, antes de se exilar nos Estados Unidos, Kracauer
publicou, um capítulo denominado “Fotografia”, na obra A massa como ornamento.
Neste texto, o autor critica a profusão de imagens nas revistas ilustradas como
tentativa totalitária do capitalismo em duplicar o mundo em imagens. Crítica
semelhante recaía sobre o historicismo, paralelismo apresentado por Ginzburg nas
seguintes passagens:

Kracauer observa que o historicismo ‘se afirmou quase ao mesmo tempo que a moderna
técnica fotográfica’, dando a entender que ambos eram produtos da sociedade
capitalista. Mas essa coincidência escondia, segundo Kracauer, um paralelismo mais

29
Ginzburg, Carlo. “Detalhes, primeiros planos, microanálises – a margem de um livro de Siegfried
Kracauer”, In: O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.
231-248
92

profundo. Os representantes do historicismo como Dilthey (uma referência que


Kracauer eliminou ao inserir o ensaio na coletânea), pensam ‘poder explicar qualquer
fenômeno unicamente com base na sua gênese. Eles consideram poder apreender a
realidade histórica reconstruindo a cadeia dos acontecimentos na sua sucessão
temporal, sem deixar nada de lado. Enquanto a fotografia proporciona um continuum
espacial, o historicismo pretendia preencher continuum temporal’. [...] Kracauer
contrapunha ao historicismo e a fotografia a memória e suas imagens. Estas últimas são
por definição fragmentárias: ‘A memória não compreende nem a imagem espacial total
nem todo o decurso temporal de um acontecimento’. E aqui aparecia o significado,
profundo da contraposição entre historicismo e fotografia, de um lado, e a memória e
suas imagens de outro: ‘A objetiva que devora o mundo é o sinal do medo da morte.
Acumulando fotografias sobre fotografias, pretender-se-ia banir a recordação daquela
morte que, no entanto, está presente em toda a imagem da memória’ [...] É bem verdade
que, na conclusão do ensaio, com uma brusca inversão dialética, Kracauer aventa uma
emancipação da fotografia do simples registro dos acontecimentos, da acumulação dos
detritos das realidades naturais [...] Mas na essência, para o Kracauer de 1927, a
fotografia e o historicismo estavam reunidos na mesma condenação. Kracauer
contrapunha a eles a ‘história’ entre aspas: uma história a ser escrita, uma história que
de fato não existia30.

A virada na percepção de Kracauer sobre a relação fotografia e história se dá


com o seu exílio e a valorização do princípio do estranhamento. A identificação do
historiador como exilado é o ponto de chegada de uma reflexão prolongada sobre
fotografia, que perde a dimensão de duplo ao se colocar em questão o dado realista:
A fotografia não é um mero espelho da realidade. O fotógrafo poderia ser
comparado, observa Kracauer, com o ‘leitor cheio de imaginação, absorto em estudar
e decifra um texto cujo significado não consegue captar”. 31
A relevância da leitura de Kracauer, para Ginzburg, se deve ao fato de que as
reflexões do pensador alemão, servem de apoio à tese das implicações cognitivas (e
não apenas retórico-ornamentais) de qualquer narração, sobretudo, a artística. O
paralelo entre a crítica radical de Kracauer às formas artísticas no capitalismo
avançado, com destaque para sua análise sobre o cinema, e o debate travado com
Benjamin em que se evidencia a tensão entre um historicismo pessimista que permite
a compreensão do passado não messiânico e a negação do historicismo por uma
filosofia da história alimentada pela existência de um sentido (telos), desvela para
Ginzburg a emergência de uma nova consciência da história: “Kracauer não

30
Idem, p. 234-235
31
Idem, p. 237.
93

acreditava no progresso inscrito na forma de um historicismo a maneira de Dilthey,


mas acreditava no valor do passado e na possibilidade de empatia entre o hoje e o
ontem, como o princípio de uma racionalidade que permitiria a compreensão da
experiência humana na sua diversidade”32.
Para dar sentido a essa inflexão, observo que a prática artística de Rosangela
Rennó tenciona a relação entre fotografia e história na dimensão da crítica do
filósofo. Em seus trabalhos, a fragmentação do passado evidenciado nos restos dos
arquivos fotográficos, se potencializa a incompletude da história, evidenciando, por
um lado, seus vazios, mas por outro, oferecendo ao público modos possíveis de
completá-los criativamente.
No regime histórico em que a artista se move superou-se a noção de telos e de
totalidade atribuídas às formas de apreender o passado, pelo historicismo do século
XIX. Os sentidos da história são plurais e se estabelecem, e o passado continuamente
se reconstrói quer pela pesquisa historiográfica fundada pela prática acadêmica, quer
na história pública organizada sem redes de agentes sociais que problematizam o
passado em diferentes linguagens.
Na prática artística de Rennó, se revela, em um duplo movimento, as condições
para o reconhecimento de uma consciência histórica contemporânea. O primeiro
movimento caracteriza-se pelo ato artístico de uma história fotográfica - em que a
experiência vivida no passado condensada em rastros, restos, indícios, registros, etc.
se tornam matéria de conhecimento histórico propriamente fotográfico – a
fotografia não é só o meio, mas também a condição desse conhecimento. No
segundo, evidencia-se a atribuição dos espaços expositivos e seus públicos como
agentes de uma história pública. Nessa nova escrita visual da história, a mise-en-scène
não segue os princípios do realismo colocando o espectador diante da cena como a
pintura histórica do século XIX operava, mas promove a percepção do passado como
uma intriga a se desvelar. O sujeito/espectador se lança no jogo das diferenças e
semelhanças proposto pelo sujeito/autor, no exercício de engajar o público no
reconhecimento da sua própria condição histórica. Sujeitos a serem esquecidos, a

32
Idem, p. 247
94

fotografia pública de Rosangela Rennó, retorna os ‘fantasmas da gelatina’ à sua


condição humana.
95

Xul Solar e Jorge L. Borges: os projetos de modernidade para a


Argentina

Maria Lúcia Bastos Kern

Introdução

O presente ensaio procura analisar a modernidade em Buenos Aires, nos anos


de 1920 a 1940, a partir das relações e das afinidades intelectuais entre os argentinos
Xul Solar1 (1887-1963) e Jorge Luiz Borges (1899-1986). Os debates entre artistas e
escritores e suas ações permitem verificar o contexto em que estes são praticados, o
alargamento dos próprios campos de conhecimento e os processos de construção da
modernidade e de institucionalização de suas produções simbólicas. As relações
entre esses intelectuais geram certa cumplicidade e são recorrentes nos movimentos
de instauração da modernidade estética, por se constituírem em estratégias
programadas de ações convergentes para enfrentar as resistências institucionais.2
Os escritores, com quem os artistas mantêm amizade e identidade intelectual,
são os que melhor compreendem as suas obras e escrevem a seu respeito. Não se
tem o objetivo de traçar relações de influências, mas de refletir sobre as atividades
exercidas, os interesses em comum e as suas trajetórias para se entender como eles
protagonizam no campo intelectual a modernidade artística e agem para a
construção de nova cultura nacional.
Nesse ensaio busca-se ainda compreender as razões que conduzem um escritor
consagrado nos meios literários nacional e internacional a dedicar, ao longo de sua
trajetória, inúmeros textos em homenagem ao artista, cujas obras durante a sua vida
não gozam de calorosa recepção pela crítica de arte na Argentina. Borges e outros
escritores acabam exercendo o papel de crítico de arte ao estabelecer a

1
O nome Xul Solar é dado pelo próprio artista para simplificá-lo e passa por várias versões. O seu nome
original é Oscar Augustín Alejandro Schulz Solari.
2
Pode-se exemplificar as relações e afinidades de Ismael Nery e Murilo Mendes no modernismo
brasileiro.
96

intermediação entre a obra e o público, ao buscar informar e formar a sua opinião, ao


agir diretamente sobre a sua sensibilidade a partir de sólida argumentação e fazer da
arte objeto de reflexão.

Jorge Luiz Borges e Xul Solar

Ambos têm interesses comuns pelos mitos arcaicos, pela lingüística, pelas
religiões e filosofias alemã e oriental. Os diálogos entre eles possibilitam a Borges o
conhecimento do ocultismo, de crenças esotéricas e a menção de certas invenções
de Xul em textos literários; e ao artista permite executar muitas ilustrações em
artigos de revistas e livros do escritor, criar poemas, fazer traduções, publicar textos
e ter a sua obra plástica reconhecida nos meios institucionais.
Borges3 em textos e depoimentos sobre Xul salienta as leituras realizadas em
conjunto, como por exemplo, as obras de William Blake e as histórias de filosofia que
contemplam o pensamento oriental, bem como as discussões a respeito das religiões
antigas e ciências ocultas. Ele justifica os interesses comuns como sendo decorrentes
do fato dos dois terem estudado, respectivamente, na Suíça e na Alemanha, e
entrado em contato com o Expressionismo. O escritor acredita que este grupo de
artistas “reflete toda série de preocupações profundas: a magia, os sonhos, as
religiões e filosofias orientais, a aspiração a uma irmandade de mundo”.4 Esta
aspiração é perseguida por Xul em suas produções artísticas e invenções de línguas,
sempre permeadas pela meta de criar a unidade entre os homens e facilitar a sua
comunicação.
Xul5 identifica-se com as concepções do grupo Der Blaue Reiter e as suas
aspirações de criação de um novo homem espiritual, em detrimento de valores

3
BORGES, J.L. Laprida 1214. Atlas, 1984. Buenos A ires: Sudamericana, 1984, p. 80.
4
BORGES, J.L. Recuerdos de mi amigo Xul Solar. Comunicaciones 3, Fund. San Telmo, nov. 1990, s.p.
Ele e Xul fazem leituras de Schopenhauer, Nietzsche, o místico Emanuel Schwedenborg, os poetas
expressionistas alemães, dentre outros temas.
5
Xul estuda no Ateliê de Artes Aplicadas em Munique (1921-22), onde conhece a obra de Paul Klee,
assiste às palestras sobre Antroposofia de Rudolf Steiner. Ele torna-se um grande colorista ao estudar
a multiplicidade de tonalidades e transparências presentes nas pinturas de Blake e Kandinsky. Para os
místicos e Steiner, a cor é considerada como a alma da natureza e do cosmos. Durante a sua estadia
97

materialistas. Como o grupo alemão, ele acredita que a arte é portadora de


mudanças, de construção e de consolidação de uma postura espiritual do homem
diante do mundo. Este projeto de mudança compõe a modernidade e funciona como
um dos elementos propulsores das transformações propostas por certas
vanguardas. O interesse pelo Expressionismo e outros movimentos é comum entre
Borges e Xul, sendo que o primeiro traduz um artigo de Herwarth Walden,
proprietário da galeria de arte de vanguarda Der Sturm, dedicado ao “Cubismo,
Expressionismo e Futurismo” para ser publicado na revista. 6
Outra afinidade entre o escritor e o artista são suas excelentes bibliotecas, com
obras originais em inglês, alemão, francês, italiano e espanhol, sendo que a de Xul
apresenta certas particularidades que estimulam Borges a consultá-la, tais como os
livros de ciências ocultas, filosofia e místicos europeus e orientais. 7 As leituras
realizadas em conjunto, as explorações de linguagens dos expressionistas, como o
poeta Christian Morgenstern, as trocas intelectuais entre eles geram
desdobramentos criativos em suas obras. Borges declara em 1975:

Se eu tivesse que comparar alguém com Xul o compararia com aquele místico e poeta
inglês, William Blake, que lemos juntos e que ele me ensinou a admirar, porque a mim
me detinham certas asperezas, certa insensibilidade, digamos à música, às palavras 8.

Borges reconhece que Xul compreende com mais facilidade os sentidos das
ideias e das palavras do visionário poeta inglês.
Em Londres, Xul conhece a obra de Blake, no British Museum, e se entusiasma
em estudar as tonalidades e as transparências de suas aquarelas, os símbolos místicos
e poemas. Xul adquire as obras completas desse artista, fato que estimula Borges a
conhecer melhor o autor e o seu esoterismo. Segundo o escritor, é Xul que o introduz

na Europa (1912-24), Xul mora em diferentes cidades na Itália, França, Alemanha e Inglaterra e entra
em contato com o Cubismo, Futurismo e Construtivismo, bem como com místicos.
6
Artigo publicado na Alemanha na revista Der Sturm e na Argentina em Proa n.1, agosto 1924, 21-24.
(Fac-símile)
7
Xul também possui livros em guarani, língua que estuda quando tem mais maturidade. ARTUNDO,
Patricia. Xul Solar. Entrevistas, artículos y textos inéditos. Buenos Aires: Corregidor, 2005. p. 21. A
pesquisadora identifica na biblioteca do artista 75 livros com textos sublinhados e anotados por
Borges.
8
ABÓS, A. Xul Solar. Buenos Aires: Sudamericana, 2004, p. 78
98

na Cabala e nas ciências ocultas, conhecimentos que propiciam a criação de sua


poética literária e que são divulgados em palestras. 9
Borges e Xul retornam a Buenos Aires depois de longa estadia10 na Europa e de
contato com as vanguardas. Ambos encontram outra cidade, mais moderna, agitada
e cosmopolita, mas conservadora no que se refere à arte e à literatura. Borges
juntamente com os escritores espanhóis participa do movimento Ultraísta e, em 1921,
quando chega à capital portenha procura difundi-lo através de revistas, tais como
Prisma (1921-23) e Proa (1921-23/1924-26).11 Ambas apresentam propostas inovadoras
em contraposição à literatura modernista de Rubén Dario e à tradicional criolla.
O Ultraísmo12 constitui-se no primeiro movimento moderno literário e artístico
na Espanha que procura incentivar a experimentação de novas linguagens, a partir
de base teórica eclética e sem estabelecer diretrizes rigorosas. Os artistas e escritores
apoiam-se no Expressionismo alemão do pós-guerra, no Futurismo, no Creacionismo
de Vicente Huidobro e no Construtivismo formalista da poesia francesa. Borges
apresenta em seus poemas a lírica expressionista e redige o manifesto Anatomia de
mi Ultra na revista Ultra, em que opõe valores das líricas expressionista e futurista. 13
É com a intenção renovadora que o escritor, em Buenos Aires, começa a liderar o
movimento intelectual a partir das revistas e de sua participação no grupo do
periódico quinzenal Martín Fierro (1924-27). Entretanto, no seu retorno à Argentina,
ele fica surpreso com a pluralidade cultural, o crescimento da capital portenha e o seu
processo de modernização, fenômenos que o levam a repensar o seu papel como
escritor.

9
BORGES, J.L. Prefácio para apresentação de exposição de Xul Solar. Buenos Aires: Galeria Samos,
1949. Palestra sobre Emanuel Swedenborg, proferida na Universidad de Belgrano, 9 junho 1973. Nessa
ocasião, ele analisa as ideias de William Blake. Borges, J.L.Obras completas, Borges Oral, Buenos Aires:
Ediciones Belgrano, 1989, p. 55-179.
10
Borges reside em Genebra, depois Lugano, Maiorca e Madri (1914-21); Buenos Aires (1921-23) e
retorna a Madri (1923); Xul (1912-24) reside em Londres, Paris, Turim, Milão, Berlim e Munique.
11
A revista mural Prisma é dirigida por Eduardo González Lanuza. A revista Proa é dirigida por Borges,
Brandán Caraffa e Ricardo Güiraldes. Xul faz a capa de Proa (1924) e as ilustrações de textos.
12
Aparece em Sevilha (1919) e tem como articuladores Rafael Cansinos-Asséns, Ramón Gomez de la
Serna, Jacob Sureda, Gerdo Diego e Guillermo De Torre. Os irmãos, Norah e J. L. Borges participam,
ela ilustrando e ele escrevendo para a revista Grécia e Ultra. Os membros do grupo querem romper
com os modelos nacionalistas e regionalistas e propõem a internacionalização da arte na Espanha.
13
BORGES, J. L. Anatomia de mi Ultra. In: Ultra 11, Ano I, 20 maio 1921, sp.
99

As mudanças na Argentina são decorrentes da entrada no país de imigrantes


europeus, que se alojam, sobretudo, em Buenos Aires.14 Se por um lado, a imigração
atua como agente de modernização, de fortalecimento da economia e de introdução
de mão de obra especializada; por outro, ela reivindica através de sindicatos e de
movimentos operários a sua participação nas decisões políticas e melhores condições
sociais e de trabalho. Esses movimentos geram uma série de greves e conflitos sociais
que estimulam o crescimento de projetos nacionalistas conservadores pelas elites
dirigentes, temerosas da desintegração nacional e da ameaça de desestruturação do
sistema político.15 Além dos problemas sociais, evidenciam-se questões de ordem
cultural, como a pluralidade lingüística e as alterações fonéticas.
Frente a esse contexto, o projeto de modernidade e a poética de Borges sofrem
transformações ao se dirigirem à memória nacional e às tradições criollas. Ele começa
a questionar a estética das vanguardas e o Ultraísmo, num momento em que o
mesmo fenômeno se processa entre artistas e escritores europeus, face à crise
vivenciada com o conflito mundial e o descrédito dos valores liberais.
Borges procura na memória nacional a criação de outra poética, distinta da
geração do Centenário, cuja prática literária de alguns escritores se apoiam no
espiritualismo e no Modernismo de Rubén Darío, assim como outros compartilham
ideais nacionalistas conectados com as tradições rurais e populares das províncias,
das quais muitos intelectuais saíram. As suas atuações em importantes cargos
dirigentes junto ao Estado possibilitam o apoio oficial à literatura e às artes de teor

14
A Argentina absorve 17% da imigração europeia de 1891 a 1914. Em 1880, a população é estimada em
2.492.000 habitantes; e em 1914, esta cresce para 7.885.000. Neste período, a população de Buenos
Aires passa de 180.000 para 1.500.000. Italianos e espanhóis lideram o processo imigratório. ROMERO,
L. A. Breve história contemporánea de Argentina. Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1994, p.
27.
15
A economia argentina moderniza-se a partir de 1880, momento de maior estabilidade política e de
introdução de capital estrangeiro, investido na construção de estradas de ferro e de portos, na
expansão dos setores agro-exportador e industrial. São os setores ligados às atividades agrícolas
exportadoras que dominam o sistema político, marginalizando e excluindo os imigrantes e grupos
sociais menos privilegiados. Em 1919 ocorrem 367 greves no país, sendo que em janeiro a “Semana
Trágica” (1919) é fruto de repressão aos operários.
100

nacionalista. Leopoldo Lugones 16 e Manuel Gálvez17, detentores de pensamento mais


conservador, radicalizam ao projetarem o mito da raça sem mescla para evitar a
degradação cultural. Gálvez propaga o nacionalismo por meio da crítica de arte da
revista Nosotros de 1912 a 1914. Neste período, ele exerce a militância estético-
ideológica nas instâncias institucionais sob sua influência, como os Salões, na defesa
da arte que fosse verdadeira e expressasse a alma e o caráter do argentino. 18 Outro
intelectual nacionalista é Ricardo Rojas 19 que no livro Eurindia. Ensayo de estética
fundado en la experiência histórica de las culturas americanas (1924), propõe uma
estética regida por leis para dar continuidade à tradição e evitar a perda de memória
20
coletiva e de identidade nacional. Entretanto, sem renegar a herança da cultura
europeia e da cultura indígena. Esse ensaio tem grande repercussão no país, durante
duas décadas, sendo referência para artistas e arquitetos. Rojas acredita que a arte é
o meio de formar a consciência nacional e educar a população.21 O escritor teme que
a introdução de ideias, valores e costumes estrangeiros leve à dissolução dos ideais

16
Leopoldo Lugones exalta as tradições criollas e o mito do gaúcho em suas conferências, como El
Payador (1906), além da formação espiritual nacional em oposição aos imigrantes e mestiços. Ele
simpatiza com o fascismo e apoia, em 1930, o golpe militar de José Felix Uriburú (1930-32). O
nacionalismo atinge o auge em 1913, quando os poemas de Hernández são concebidos como
fundadores da nacionalidade, sendo os mesmos acompanhados pela oposição à industrialização,
motivada pelos movimentos operários. A pureza linguística é valorizada por Lugones, ao analisar a
obra de José Hernández Martín Fierro, e por escritores do Centenário. ROMERO, Jose Luis. Las ideas
en la Argentina del siglo XX. Buenos Aires: Biblioteca Actual, 1987, p. 150.
17
Manuel Gálvez, escritor católico e nacionalista, assume como Lugones posicionamento anti-
cosmopolita e antiliberal e torna-se admirador do fascismo. Em El diário de Gabriel Quiroga. Opiniones
de la vida argentina (1910), ele revela o temor à modernização e à degradação dos costumes; ataca os
trabalhadores, sindicatos de esquerda, os imigrantes em prol do patriotismo e da herança hispânica.
MUÑOZ, Miguel. Manuel Galvez, crítico de arte. In: Caiana, Revista de História del Arte y Cultura Visual
del Centro Argentino de Investigadores de Arte, CAIA, set. 2012, s.p.
19
Rojas publica La restauración nacionalista (1909) em que conclama a urgência da reforma de ensino
como solução para o problema da imigração e recebe apoio do ministro da educação para conhecer o
sistema espanhol. Ele também publica História de la literatura argentina (1917), em que consagra Martín
Fierro de Hernandez como o livro fundador da literatura em seu país. Ele escreve para jornais de grande
circulação, como La Nación e El País. MICELI, S. Vanguardas em retrocesso. S. Paulo: Cia. Das Letras,
2012, p. 92.
20
WECHSLER, D. Algunas consideraciones acerca de la vanguardia en el campo de Buenos Aires. In:
Estúdios de Investigaciones Inst. de Teoria e Historia Del Arte J. Payró 2, 1989, p. 43.
21
PENHOS, Marta. Nativos en el salón: artes plásticas e identidad en la primera mitad del siglo XX. In:
PENHOS Y WECHSLER (coord.) Tras los pasos de la norma. Buenos Aires: Jilguero, 1999, p. 113. A
literatura argentina desse momento considera o imigrante trabalhador, mas inculto e sem projetos
culturais elevados.
101

de nação e de coesão social.22 Rojas defende como solução, integrar as populações


nativas gaúcha, criolla de origem espanhola e indígena, com os imigrantes.
Diante da modernização portenha e da imigração, Borges nos primeiros livros
Fervor de Buenos Aires (1923), Luna enfrente (1925) e Cuaderno San Martín (1929),
abandona o Ultraísmo e apresenta a fundação mítica de Buenos Aires, reconstrói o
antigo plano da cidade e de seus bairros afastados do centro moderno, recuperando-
os de forma intimista. Ele formula uma poética pautada no cenário dos bairros e
arrabaldes, onde os vestígios do campo ainda estão muito presentes, suas moradias
e seus costumes. A cidade é focalizada por um olhar retrospectivo, nostálgico e
mítico, circunscrito à memória hispano-criolla do século XIX, em detrimento do
centro, onde a modernidade se instaura e compõe o espaço dinâmico, diversificado
e cosmopolita. 23
Os livros de Borges repercutem na revista Martín Fierro por seu olhar sensível,
inovador e humano, conjugando o passado e o futuro em contraposição aos
discursos teóricos de Lugones. 24 Em distintos momentos, Borges, Rojas e Lugones
revisam a história cultural argentina e revelam algumas ideias semelhantes, como
aquela relativa à política liberal estabelecida após a queda de Rosas que teria
motivado o enfraquecimento das tradições criollas. Em Inquisiciones (1925), Borges
analisa o problema do enfraquecimento das práticas culturais criollas, e procura
solucionar com a inovação da linguagem e a retomada da literatura de tradição criolla.
No entanto, ele não deixa de dialogar com as poéticas hispânica e germânica
contemporâneas e com sua formação anglo-saxônica. Ele concede ao passado a
função de pensar o seu significado e de projetar o porvir em busca de coesão social.

22
Ele rotula o imigrante como pessoa mesquinha, detentora de uma educação precária que visa apenas
o enriquecimento individual, sem interesses coletivos.
23
SARLO, B. Borges, un escritor en las orillas. Buenos Aires: Espasa Calpe Argentina, 2003. pp. 34 e 38.
Annick Louis salienta que o centro é o espaço do estrangeiro, onde não se encontra o autêntico criollo
e o porto é o espaço universal. O arrabalde é identificado pelo escritor como um espaço marginal.
Borges critica o realismo social e o naturalismo por não contemplarem temas verdadeiramente
criollos. In: Jorge Luis Borges: oeuvre et manoeuvres. Paris: L’Harmattan, 1997, p.389. Borges em
Inquisiciones resgata os marcos da literatura criolla no Uruguai para estabelecer a genealogia da
literatura platina. Ver: MICELI, S. Vanguardas em retrocesso. Op. Cit., p. 98.
24
MARECHAL, Leopoldo. “Luna enfrente”, por Jorge Luis Borges. In: Martín Fierro n. 26, 29 dez. 1925,
p. 190. (Fac-símile); LANGE, Norah. “Jorge Luis Borges pensado em algo”. In: Martín Fierro n. 40, 28
abril 1927, p. 332 (Fac-símile).
102

É nesse sentido que se verificam os intercâmbios entre o escritor e Xul, pois


ambos se encontram preocupados com a criação de uma linguagem distinta da
metrópole e da necessidade de conciliar as diferenças culturais trazidas pela massa
de imigrantes.
Xul Solar antes de seu retorno a Buenos Aires (1924) já esboça o seu projeto de
modernidade cultural para a Argentina:

Somos e nos sentimos novos, à nossa meta nova não conduzem caminhos velhos e
alheios. Diferenciemos-nos. Somos maiores de idade e ainda não terminamos as guerras
pró-independência. Acabe já a tutela moral da Europa. (...). Amemos nossos mestres,
mas não queiramos mais nossas únicas Mecas em ultramar. 25

Este texto, em tom de manifesto, apresenta a intenção do artista de


revolucionar a arte no seu país e colocar em xeque o domínio das práticas estéticas
europeias. Xul projeta ainda a unidade da América através de nova língua comum, o
neocriollo, fruto da junção do espanhol e do português do Brasil,26 bem como por
meio das artes e da espiritualidade. Ele acredita que é necessário “ao mundo
cansado, acrescentar sentido novo, uma vida mais múltipla e mais alta nossa missão
de raça que se alça. (...) Pois somos uma raça esteta, (...) começaremos a dizer o
nosso novo”27.
O neocriolismo constitui-se na retomada da tradição criolla nacional, porém Xul
apresenta uma projeção maior ao englobar a América. Face à crise europeia, os
neocriollos devem liderar a criação artística moderna e o estabelecimento de uma

25
XUL SOLAR, A. Pettoruti y obras. Munique, junho de 1923. Arquivo Pan Klub do Museu Xul Solar.
ARTUNDO, P. Mário de Andrade e a Argentina. São Paulo: Edusp, 2004. p.101. Texto escrito por ocasião
da mostra de Pettoruti em Berlim, na galeria Der Sturm, de Herwarth Walden (1923).
26
Xul consciente de que o neocriollo consiste numa língua eurocêntrica, introduz mais tarde o inglês,
o alemão e por último o guarani, para contemplar os povos indígenas da América. As invenções
linguísticas são constantes, fato que apenas o seu criador tem domínio do neocriollo e a meta de língua
universal programada não se concretiza. Muitos estudiosos acreditam que o projeto de Xul abarcasse
a América Latina, por integrar inicialmente o castelhano e o português. Entretanto, nos textos de sua
autoria o termo utilizado é sempre América.
27
ARTUNDO, P. Papéis de trabalho. Introdução a uma exposição retrospectiva de Xul Solar. Visões e
revelações. Buenos Aires: MALBA; São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 24 set. - 30 dez. 2005,
p. 26. Nas décadas de 1910 e 1920, são produzidos vários estudos sobre as artes africanas e pré-
colombianas em que seus autores as concedem o estatuto de arte; e são realizadas várias exposições
na Europa que as consagram como tal. É também o momento em que se valoriza as artes pré-
colombianas, por sua beleza e qualidades plástica e simbólica.
103

ordem espiritual. Para Xul, a criação das artes nacionais, a adoção das crenças e dos
mitos pré-colombianos possibilitariam os meios de invenção do novo, de produção
da arte universal e de combate ao materialismo. O neocriollismo é resultante da
linguagem coloquial agauchada, definidora da fala argentina, mesclada com
expressões próprias da vanguarda criolla. Este termo é cunhado por Xul Solar no
texto em que analisa a obra de Pettoruti, na revista Martín Fierro, para salientar a sua
coragem e a sua independência cultural. “Em vez de destruir, ele constrói” e
28
“expressa a alma da pátria”. As vanguardas destroem, mas os artistas no entre
guerras buscam as raízes nacionais e formas mais estáveis, em prol da harmonia, após
período de conflitos internacionais e de crises. Os discursos de escritores e artistas
modernos revelam ainda a intenção de forjarem uma nova identidade, independente
das normativas linguísticas da Academia de La Lengua Española. 29
Para sustentar o projeto de renovação, a revista Martín Fierro (1924-27), da qual
Xul e Borges são membros, apoia-se na revisão da tradição nacional e no
cosmopolitismo para assim construir a nova identidade nacional circunscrita ao meio
urbano. Os seus mentores buscam promover a unidade frente à diversidade étnica e
cultural, que compõe a moderna sociedade argentina e tentam solucionar desta
forma os conflitos sociais gerados pelo intenso fluxo de imigração europeia. A
argentinidade, defendida por Evar Méndez, diretor da revista, é definida na cidade
pois, para ele, ela congrega a “síntese do país”: a cultura nacional e a modernidade.
30 Entretanto, as tradições criollas dos arrabaldes de Buenos Aires são integradas à
construção da nova identidade cultural, tal qual é concebida por Borges.
Xul aspira a arte total para a América, praticada pelos povos indígenas, de modo
a integrar as distintas categorias artísticas, arquitetura, pintura, objetos decorativos,

28
SOLAR, Xul. Pettoruti. In: Martin Fierro n. 10-11, set-out. 1924, 67, p. 70-71.
29
SCHWARTZ, Jorge. Fervor das vanguardas: arte e Literatura na América Latina. São Paulo: Cia das
Letras, 2013, p. 150.
30
O Manifiesto de “Martin Fierro” destaca também “a importância do aporte intelectual da América”
para o processo de independência cultural. Martín Fierro n. 4, 15 maio 1924, p. 25-6. (Fac-símile) A
exposição das pinturas de Pedro Figari é valorizada pelo fato dele representar as tradições criollas. O
texto estimula os artistas a abandonarem o novo em prol dessas tradições locais. “Don Pedro Figari”.
In: Martín Fierro n. 8-9, ag0.-set. 1924, p. 60-61 (Fac-símile).
104

poesia e música à vida cotidiana. 31 Essa concepção é, em parte, praticada por ele e
pelo grupo Blaue Reiter, com o objetivo de unificação da humanidade.
O artista, apesar de compor o grupo de Martín Fierro, como membro ativo, a
sua proposta é distinta e mais ambiciosa, ao não se restringir apenas à construção de
cultura moderna nacional e apresentar uma obra essencialmente mística. O neocriollo
é introduzido na pintura por Xul desde 1918, sendo mais tarde acrescidos símbolos
arcaicos pré-colombianos, que são representados, lado a lado, aos signos nacionais e
da modernidade europeia. No entanto, os signos nacionais se deslocam da figura do
gaúcho para as bandeiras, mesclados muitas vezes por signos místicos. A conciliação
de signos autóctones e modernos demonstra a sua preocupação com as
problemáticas de unidade nacional e da América. As suas aquarelas apresentam uma
concepção distinta das obras predominantes no país, já que estas são resultantes de
sua imaginação lírica e visão mística de mundo. Nos anos de 1920 e 30, a obra de Xul
desperta pouca atenção da crítica, talvez por seu caráter inusitado. Mesmo a revista
Martín Fierro quase não dedica textos à análise de suas pinturas, pois a crítica de arte
deste periódico está mais condicionada às concepções da revista francesa L’Esprit
Nouveau (1920-25) e dos movimentos de Retour à l’ordre e do Novecento do pós-
guerra, permeados por nacionalismos e recursos formais clássicos.
As transformações urbanas de Buenos Aires sugerem a Xul uma série de
pinturas, nas quais representa os arranha-céus, as grandes avenidas, o porto e a
multidão em meio à presença de seres fantásticos ascensionais em busca de um
mundo sagrado. A cidade é povoada de figuras imaginárias, bandeiras e símbolos
místicos, como as escadas que conectam o espaço terreno com o superior. As suas
pinturas “Doce escaleras” e “Vías” (1925) são estruturadas por formas geométricas,
construídas por planos ordenados, de modo ascendente e pelo jogo de cores que

31
Wagner formula a noção de arte total, elaborada numa dupla dimensão utópica: de um lado, a
totalidade das artes como projeto futuro, em busca da perfeição; e, de outro, a integração arte e vida.
O Almanaque do Cavaleiro Azul (1912) é considerado como a reatualização dessa noção de arte total,
ao englobar todas as formas de expressão artística e ao projetar transformar o homem, a sociedade e
a história, para dar ao mundo uma percepção unitária. LISTA, M. L’Oeuvre d’art totale à la naissance des
avant-gardes. Paris: INHA, 2006, p. 6-10.
105

configuram a sua imaginação lírica a respeito das relações do homem com o espaço
urbano e o universo espiritual.
Muitos escritores argentinos produzem novas poéticas tendo por base a
cidade, porém dirigidas aos avanços científicos, à mecanização e ao devir. Estes
fenômenos exercem o fascínio de Oliverio Girondo, Roberto Arlt e Xul Solar,
intelectuais ativos em Martín Fierro que situam o centro em suas poéticas.
As estratégias de Borges e Xul para construção da moderna cultura argentina
apóiam-se em projetos de mudanças ortográficas do castelhano para dar destaque
ao criollismo.32 As aspirações de renovação da linguagem partem do pressuposto de
que esta se transforma e que não deve ficar estagnada nas normativas acadêmicas
colonialistas. Elas compõem a elaboração da identidade nacional e representam a
independência cultural, assim como se inserem nos projetos de construção da nação
moderna.
Xul, apesar de ser o defensor do neocriollismo e da unidade da América, também
33
é um nacionalista. Em 1923, ele se define: “Sou mais criollo do que nunca”. No
entanto, esta declaração evidencia a sua convicção de que o nacional não está
descolado da dimensão americana. As ilustrações de Xul para o livro El idioma de los
argentinos (1927), são representadas por bandeiras argentinas e cores distintas em
faixas horizontais semelhantes à bandeira com arco-íris por ele projetada para a
América.
Os neologismos e transcrições fonéticas de Borges, presentes nos três livros,
Inquisiciones (1925), El tamaño de mi esperanza (1926) e El idioma de los argentinos
evidenciam traços dos estudos efetuados com Xul e as suas trocas de ideias. 34 No

32
As suas investigações contemplam a simplificação do espanhol, para libertá-lo da rigidez dos verbos
irregulares. Em texto, Xul anotou três questões importantes que deveriam ser repensadas: 1. As rimas
que se repetem; 2. A dificuldade de combinar palavras; 3. Palavras longas devem ser substituídas pelos
monossílabos do inglês. Faltam palavras para exprimir ideias que existem no inglês e alemão. Arquivo
Pan Klub, Museu Xul Solar.
33
SOLAR, X. Cartão postal remetido ao seu pai, 15/06/1923. Arquivo Pan Klub do Museu Xul Solar.
34
LOUIS, Annick. Xul, Borges ou os prazeres da afinidade eletiva. Xul Solar. Visões e revelações. Op.
Cit., p. 83. É interessante destacar que esses três livros de teor nacionalista são excluídos pelo autor
de suas Obras Completas.
106

final de El tamaño de mi esperanza, o escritor conclui: “Estes apuntes los dedico al


gran Xul Solar, ya que en la ideación de ellos no está limpio de culpa”. 35
A nova produção literária e artística é divulgada nos periódicos de vanguarda,
que além de propagarem a arte moderna exercem a função de tornar conhecidos os
jovens intelectuais, suas ideias e seus projetos de nação. Esses jovens colaboram
também com os veículos mais tradicionais e populares para difundir os seus projetos
estéticos. Borges escreve para os jornais - Critica (1913) e El Mundo (1928) - onde
veicula a sua poética nacionalista,36 e se justifica por sua meta de fazer ampla reforma
social, a partir da educação de massa e criar certa unidade cultural no país. Xul
concede entrevistas também para os meios de comunicação populares, como El
Hogar, Almanaque de la Mujer, Mundo Argentino dentre outros. 37
Nos anos de 1920, Xul Solar assume uma postura profissional distinta de Borges,
que produz a sua imagem pública ao difundir a produção literária em jornais e revistas
de grande circulação. Xul expõe a sua obra em geral em mostras coletivas em
instituições com propostas inovadoras, mas a crítica não lhe dá a acolhida
necessária,38 exceto o crítico Acosta.39 Ele refere-se ao artista como o gênio de Martín
Fierro e se interessa em refletir sobre suas aquarelas. A sua primeira exposição
individual só ocorre em 1929, na Associación Amigos del Arte, sendo esta melhor
recebida pela crítica e pelo público. 40 Xul privilegia as representações místicas em

35
ALCALÁ, M. L.; SCHWARTZ, J. Vanguardas argentinas: anos 20. São Paulo: Iluminuras, 1992, p.158.
36
SARLO, B. Borges, un escritor en las orillas. Op. Cit., p. 36-37.
37
ARTUNDO, Patricia. Alejandro Xul Solar. Entrevistas, artículos y textos inéditos. Buenos Aires:
Corregidor, 2005, pp.59-95. Ela destaca as entrevistas dadas por Xul nas décadas de 1920 e 1930.
38
Em 1924, Xul redige um artigo, em Martín Fierro, sobre a mostra de Emilio Pettoruti na galeria
Witcomb, enfatizando a modernidade de sua obra. Nessa revista, ele publica os poemas de Christian
Mogenstern, Algunos piensos curtos (...). In: Martín Fierro n. 41, 28 maio 1927, p. 337. Posteriormente,
ele e Pettoruti expõem no I Salón Libre de Buenos Aires (1924), sendo as suas obras pouco
compreendidas e aceitas pela crítica de arte e pelo público.
39
No entanto, os grupos de artistas cujas obras se encontram vinculadas às tendências do Retour à
l’ordre e do Novecento são rapidamente consagrados na Argentina.
40
CHIABRA ACOSTA, A. (Atalaya) Críticas de Arte Argentino 1920-1932. Buenos Aires: Gleizer, 1934. p.
311 As obras de Xul são analisadas em “Reflexiones sobre uma exposición en los Amigos del Arte”. La
Razón, 22 maio 1929, p. 1; e também na revista Campana de Palo 17, 1926-7. Xul apresenta suas obras no
Salón de los Independientes (1925); Exposição dos Pintores Modernos, na Associación Amigos del Arte
(1926) e La Peña, no Café Tortoni; no Salón Florida (1927); no Nuevo Salón (1929). Ele faz a tradução do
alemão para o neocriollo dos poemas do expressionista Christian Morgenstern, “Algunos piensos
cortos”, para a revista Martín Fierro 41, maio 1927. Ver: ATALAYA Actuar desde El arte. El archivo
Atalaya. Buenos Aires: Fundación Espigas, 2004.
107

suas aquarelas, em detrimento de temas nacionalistas, como se verifica nas obras do


escritor nesse momento.
Borges publica Evaristo Carriego (1930) em homenagem ao poeta popular,
amigo de sua família. Nesse livro, ele resgata as práticas culturais criollas, como as
milongas, a virilidade e a coragem do gaúcho em contraposição ao imigrante, bem
como o bairro de Palermo e as mudanças sofridas no antigo arrabalde onde Carriego
viveu. Borges discorre sobre o criollismo urbano que pensa proceder da herança
cultural argentina, da biografia e do sangue do poeta, sem negar a herança europeia,
mas que a transforma através de suas experiências no tempo e no espaço. 41
Na década de 1930, Xul continua a participar de mostras coletivas e a se dedicar
às traduções encomendadas por Borges para as revistas, por ele coordenadas, a
publicar seus poemas, textos e as suas visões, como San Signos, e às representá-las
em pinturas.42 Os anos de 1930 se constituem num momento político difícil na
Argentina, motivado pelo golpe militar e o estabelecimento da ditadura, o que
conduz Borges ao abandono das práticas literárias nacionalistas e à elaboração de
novas poéticas. 43 Estes acontecimentos terminam com o otimismo das vanguardas
e com os ensaios experimentais de muitos escritores e artistas.
Em 1931, Borges ingressa no grupo da revista Sur (1931-70), fundada por Victoria
Ocampo, e que mantém estreita conexão com Europa e EUA; e, dois anos mais tarde,
dirige o suplemento literário da revista Multicolor (1933-34) do jornal Crítica, no qual
publica textos que depois reúne em História Universal de la Infâmia (1935).

41
MONEGAL, Emir. Mário de Andrade/Borges. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 23.
42
Ele apreende o método de ter visões com Aleister Crowley (1924), devendo após cada visão escrevê-
la. Xul faz a redação em castelhano e muitas vezes em inglês, bem como transcreve para o neocriollo.
Ele publica textos: Apuntes de neocriollo. In: Azul a.2, n. 11, agosto 1931, pp. 201-205; Poema. In: Imán.
Paris: n 1, abril 1931, p. 50; Cuentos del Amazonas... In; Crítica. Revista Multicolor de los sábados. Buenos
Aires, a 2, n.2, 19 agosto 1933; Hablan de los libros Gengis Khan...; In: Crítica. Buenos Aires, a 21, n. 7.298,
9 agosto 1934, p. 8; Visión sobre el Trilíneo. Destiempo. Buenos Aires, a.1, n. 2, novembro 1936, p.4;
Glosa. Destiempo. Buenos Aires, a.1, n.2, novembro 1936; De la cabaña al rascacielos. Los Anales de
Buenos Aires, a. 1, n. 6, 1946. Ver ARTUNDO, P. Xul Solar. Entrevistas, artículos y textos inéditos. Op.
Cit., p. 185-204.
43
O país passa por uma fase de expurgos e de consagração de intelectuais nacionalistas que estreitam
laços com a Igreja e sofrem influência do fascismo italiano. Os conflitos no interior do campo
intelectual se acentuam entre esquerda e extrema direita e as versões políticas desses nacionalismos
acabam interferindo nas práticas artísticas e intensificando as tensões e debates.
108

Xul executa ilustrações e traduções, tais como “Cuentos del Amazonas, de los
mosetenes y guaruyás” (1933), os contos Rudyard Kipling extraídos de Just so stories
for litlle children.44 Na década de 40, ele ainda faz ilustrações para as publicações
dirigidas por Borges, apesar de o artista assumir uma posição política favorável ao
governo de Juan Perón (1946). Borges, ao contrário, assina um documento em apoio
à União Democrática, que reclama da liberdade civil, em oposição ao programa
político de Perón, que limita a autonomia da arte defendida pelo escritor. Nesse
período, Borges é colocado no ostracismo devido ao seu aberto posicionamento
45e
partidário Xul participa de inúmeras atividades, nas quais constrói, de modo
sistemático, a sua imagem pública. 46 A amizade intelectual entre Borges e Xul passa
por uma fase de distanciamento, sendo que o primeiro começa a se consagrar fora
de seu país.
Para Beatriz Sarlo, é o cosmopolitismo de Borges que permite ao escritor da
periferia inventar as tradições argentinas e dialogar com a literatura estrangeira,
fazer de seu locus na margem a sua criação estética. Borges trabalha com temas
filosóficos, estabelece a relação tensa com a literatura inglesa, explora as citações, as
mitologias nórdicas, a Cabala, porém sem deixar de conectar com a literatura do rio
da Prata. Borges desestabiliza as tradições literárias ocidentais e orientais,
“cruzando-as no espaço rio-platense”. A sua obra é resultante desta tensão e
conflito, em que emergem ficções e temas fantásticos, nos quais busca respostas
filosóficas sobre a ordem do mundo, o destino dos homens e as modalidades de
relações sociais.47 A sua imaginação é construída por meio de constantes leituras,
sendo que desde criança lê em inglês na biblioteca de seu pai, posteriormente, em

44
Em 1935, Xul traduz ainda o conto “Onde o fogo nunca se apaga” de May Sinclair, publicado por
Borges na revista El Hogar; e o ensaio de Thomas Mann (1939). Ele também faz resenhas de livros,
como a de Harold Lamb Genghis Khan, Emperador de todos los hombres para o jornal Crítica (1934).
45
Borges perde o cargo na Biblioteca Nacional.
46
ARTUNDO, Patrícia. Xul Solar. Op. Cit., p. 25-28. Nesse momento, ele faz exposições de suas obras,
concede entrevistas, escreve artigos e faz resenhas de livros para revistas, bem como continua
executando ilustrações.
47
SARLO, Beatriz. Borges, un escritor en las orillas. Op. Cit. p. 10-16.
109

alemão e francês, em tantas outras bibliotecas que frequenta. Ele mesmo constata
que na infância: “Poucas coisas me aconteceram e muitas coisas li”. 48
Xul Solar também dialoga com as artes ocidentais, modernas e arcaicas, e com
a filosofia e as crenças orientais. A sua condição cultural periférica e a limitada
projeção internacional não possibilitam que tenha em vida consagração fora da
Argentina. Ele programa a unidade espiritual da América, a partir da aspiração de arte
total, para assumir posição que até aquele momento é ocupada pela Europa, na busca
de inversão de povos colonizados em colonizadores. As recriações de linguagens
além das finalidades de unidade e distinção apresentam conotações místicas na
busca para retomar a língua original e universal, em contraposição à variedade
existente no mundo moderno. Assim, o neocriollo e, mais tarde, a panlingua49 não
podem ser pensados isoladamente, mas em conexão com outras atividades do
artista, como suas pesquisas científicas50, técnicas, seus projetos urbanos, suas visões
transcritas em San Signos ou El Libro del Cielo e transpostas para pinturas, tais como
Paisaje Celestial (1933), Visión en fin del camino (1934). Todas estas atividades
compõem a sua missão religiosa e ética para criar um mundo melhor.51 Daí a
constante preocupação em produzir uma obra que permita a ordenação do mundo e
a planificação do devir.
A partir dos anos de 1930, o artista começa a se interessar pela aviação,
produzindo uma série de pinturas, como “Mestizos de avión y gente” (1936) e
“Vuelvilla” (1936). A última obra se constitui numa cidade espacial, em que as pessoas
têm liberdade de se deslocar pelo céu. Esse interesse de Xul é estimulado pelas

48
OLMOS, Ana Cecília. Porque ler Borges. São Paulo: Globo, 2008. p. 33.
49
A língua é monosilábica, de base numérica e sem gramática, para permitir liberdade no seu uso e se
tornar universal. SOLAR, X. 1/8/1951, Mundo Argentino, s/p. J.L. Borges acrescenta que essa língua se
baseia na Astrologia e se conecta com jogo de xadrez. Laprida 1214. Atlas. Op. Cit., p. 80.
50
Rudolf Steiner propõe a reunificação da arte, ciência e religião como meio de desenvolvimento da
humanidade e de sua espiritualidade, em contraposição ao materialismo que isola os outros campos
do conhecimento e desequilibra a ciência.
51
Klee no seu Journal afirma em 1900: « Diante de seu poder soberano eu queria subsistir e subsistir
de modo ético». In: Journal. Paris: Bernard Grasset, 1995, p. 45. Xul e Borges admiram muito o místico
Emanuel Schwedenborg (1688-1772), criador de nova religião e defensor da salvação por meio de obras
realizadas. A salvação tem um caráter ético e intelectual. A sua vida é dedicada à ciência e aos
diferentes campos do conhecimento, à publicação de livros e à execução de inúmeros projetos, como
por exemplo, o desenho de veículos submarinos, previstos também por Francis Bacon. BORGES, J.L.
Borges oral: conferencias. Buenos Aires: Emecê, 1979, p. 57-179.
110

revistas de caráter técnico que adquire e pelas pesquisas espaciais que estão se
processando, que o conduzem a redigir textos e a projetar cidades. Nestes projetos,
ele estuda o modelo de habitações e prevê a auto-suficiência econômica e as
atividades culturais das cidades, porém sem deixar de relacioná-las com suas visões
místicas. Em “Vuelvilla-Mundi” e “Ruedivilla”, Xul acrescenta símbolos astrológicos.
Numa das revistas lidas pelo artista, Mirador, as matérias sobre os satélites
espaciais, a automação e o ano geofísico internacional agiram sob seu imaginário e
seus ideais de cidades futuras. Ele procura nessas invenções solucionar o excesso
populacional e os problemas de circulação previstos nos grandes centros urbanos. 52
Xul escreve na revista Mirador artigos sobre automação e “Vuelvilla”, sendo o último
resultante de estudos que faz dos anos de 1930 aos de 1950. 53
Ele executa ainda pinturas de paisagem que não são, em geral, meras
representações do mundo natural, nem das singularidades do lugar, mas construções
mentais e simbólicas que procuram apresentar a infinitude do universo e estabelecer
a relação entre o visível e o invisível. Xul Solar acredita que é dotado de um modo
superior de existência e faz da arte uma forma de religião, que concomitante à
pintura pura libera a representação do mundo aparente e o conduz a desvelar o
mundo oculto
Borges, apesar de não apresentar esse perfil místico e utópico, estuda, escreve
e ministra palestras a respeito da Cabala, do místico Emanuel Schwedenborg, da
filosofia, dos neologismos e das fantasias de Xul. Annick Louis observa que nos anos
de 1920, os textos de Borges evidenciam rastros dos neologismos e transcrições
fonéticas de Xul em Inquisiones, El tamaño de mi esperanza, El idioma de los argentinos.
Entretanto, ela verifica que as invenções de idiomas de Xul resultam nas obras de
Borges em práticas lúdicas, mas que no plano social elas se transformam em fascistas,
ao se constituírem em domínio de uma minoria, num momento em que o escritor
combate o fascismo europeu. Os efeitos da invenção expressam o caráter totalitário
da língua, a imposição ao leitor e a perda de variedade. Neste sentido ideológico, as

52
ARTUNDO, Patricia (org.) Xul Solar. Entrevistas, artículos y textos inéditos. Op. Cit., p. 45-51.
53
Xul lê outras revistas, tais como: Mundo Técnico, Selecciones Técnicas, América Técnica, Mecânica
Popular, Science Digest, Archeion. Ele coleta informações também de jornais e outras revistas.
111

invenções linguísticas de Xul deixam de despertar o interesse de Borges e colaboram


para certo afastamento, motivados também pelas divergências políticas. A estudiosa
salienta ainda que a proposta de idioma conduz à ausência de autonomia da arte,
defendida por Borges e que a sua produção se torna cada vez mais internacional. 54
Logo, as afinidades intelectuais são temporárias, criam entre eles certa cumplicidade,
que é de forma recorrente expressa por Borges em textos e conferências, após a
morte do artista. As marcas e os traços de Xul encontram-se no escritor, mas não no
artista. Borges afirma que ele próprio teria ajudado para que o “inevitável destino (o
de Xul) se cumprisse”.55 Graças às afinidades comuns, sobretudo na fase de
construção e maturação de suas poéticas, o escritor é o que melhor compreende a
obra de Xul e a consagra na Argentina, apesar dos rumos distintos que ambos seguem
a partir dos anos de 1940.56
O crítico de arte Atalaya destaca que, nos anos de 1920, “do grupo
martimfierrista, não é Borges (...), o escritor de mais puro acento e sólida cultura
linguística e universal, senão Xul Solar. É o gênio da casa”. 57
Xul é um artista cosmopolita, como o próprio Borges o define “cidadão do
cosmos, cidadão do universo”, é extremamente criativo, fenômenos que o distingue
dos demais artistas e que são admirados pelo escritor.
A afinidade entre os dois não coloca um no lugar de outro, mas ao contrário, ela
se constitui por interesses comuns e libera toda a semelhança inicial observada,
conduzindo ao heterogêneo e às ações diversificadas dentro e fora do campo
intelectual. Xul continua místico, suas obras tornam-se cada vez mais representativas
de suas crenças espirituais e de suas invenções de linguagens. Borges se consagra

54
LOUIS, A. Xul, Borges ou os prazeres da afinidade eletiva. Xul Solar. Visões e revelações. Op. Cit.,
p.83. O perfeccionismo de Xul o condiciona a constantes melhoramentos da língua o que dificulta o
seu domínio coletivo. Borges declara que ao mesmo tempo que ele explica as suas invenções, ele as
aperfeiçoa e só o criador tem conhecimento e entendimento de suas criações.
55
BORGES, J, L. Obras completas. Parte 3. Buenos Aires: Emecé, 1989. p. 444. In: GRADOWCZKY, M. Xul
e Borges. A linguagem de dois gumes. São Paulo: Fund. Memorial da América Latina, 2001, p. 8.
56
Xul preserva as suas obras, seus textos e sua biblioteca e hoje eles compõem o museu dedicado a
ele e a sua memória; enquanto Borges tem manuscritos espalhados em distintas instituições e em
diferentes países.
57
CHIABRA ACOSTA (Atalaya) Atalaya sobre Salón Florida. In: Críticas de arte Argentina. (1920-32). Op.
Cit., p. 167.
112

como escritor internacional, mas em distintos momentos homenageia o grande


amigo em textos e conferências. Esta cumplicidade e amizade intelectual possibilita
a execução de projetos conjuntos e debates críticos a respeito da modernidade na
Argentina, ora assumindo a liderança da vanguarda e valorizando o cosmopolitismo
cultural, ora o recusando e agenciando a construção de nova cultura nacional.
113

A memória colonial: devolvendo o passado como imagem-catástrofe


no cinema brasileiro

Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior

Era, acompanhado do fotógrafo, o jornalista Vicentino Beirão,


libertador de silvícolas, antibandeirante, contra Cabral, não
descobridor, que acabava de invadir o presídio. Como uma pororoca
resolvida a dar cabo do Amazonas, enfiando no rio água salgada e
peixe do mar até os Andes, Vicentino pretendia enfiar uma pororoca
de índios pela história branca do Brasil acima, para restabelecer,
depois de breve intervalo de cinco séculos, o equilíbrio rompido... 1

Apresentação

O trecho acima do romance Expedição Montaigne, de Antônio Callado usa como


ponto de partida metáforas do estupro para desenvolver certa perspectiva da
história do Brasil. Toma a “história branca” do país como uma violação/estupro da
terra virgem, tropo comum desde as narrativas dos descobrimentos, que feminiliza
ao Novo Mundo para fazer-se olhar fálico da empresa colonial. Faz-se, porém, como
ironia ao voltar o estupro contra o estuprador e retomar por meio de imagens
nativas/indígenas (pororoca, Amazonas, águas pindorâmicas) a possibilidade de
inverter a grande catástrofe que fora anunciada pela queda da âncora da nau de
Cabral. Neste pequeno romance de 1982, Callado retoma o descobrimento como ato
de barbárie/ invasão/estupro e “gira” a história do Brasil étnica/branca noutra
direção, criando um distanciamento. Este aspecto já era explorado desde finais dos
anos 1960, quando os mitos de passado do Brasil foram invertidos, cada vez mais, na
direção de aparição de certa catástrofe na memória cultural já consolidada da
colonização.

1
CALLADO, Antônio. A Expedição Montaigne. 6 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2014. p. 9.
114

A hipótese desenvolvida neste texto é da aparição de narrativas da catástrofe


colonial brasileira no cinema nacional a partir da releitura dos mitos do modernismo
pelos cineastas no início dos anos 1970. Os mecanismos aplicados no cinema e em
alguns textos pertinentes dos movimentos culturais (tais como o concretismo, o
cinema novo e a tropicália) retomaram e refiguraram a história nacional, atualizando
e deslocando mitos ao redor do signo da catástrofe. Os estudos correntes sobre a
produção do período tendem a tratar de duas formas com essas questões: 1)
conferindo grande pertinência à construção de alegorias do passado no cinema
brasileiro como reflexão aos eventos da ditadura civil-militar; 2) investigando a
originalidade da história brasileira construída pelo cinema, mostrando sua
“liberdade” poética em relação ao momento histórico. Não nos interessa aqui fazer
uma coisa ou outra, nem apontar a originalidade, nem tornar o cinema reflexo do
social, mas evidenciar a mobilização de imagens e metáforas que foram partilhadas
na cultura histórica como reencontro com um aspecto recalcado na memória cultural
brasileira.
Os filmes históricos aqui abordados inserem-se num contexto de tentativa
pública de reconstruir a memória nacional pelo cinema: a partir do governo Médici,
principalmente, a partir de 1970, com o Ministério da Educação de Jarbas Passarinho
(1969-1974), exortou-se aos cineastas que se voltassem para o desenvolvimento de
tópicos da cultura popular e para o filme histórico. Passarinho chegou a pautar temas
para filmes históricos: FEB, CAN, Borba Gatoi, Anhangüera, Paes Leme, Oswaldo Cruz,
Santos Dumont, Delmiro Gouveia, Duque de Caxias, Marechal Rondon, etc. numa
predileção clara por episódios e personagens “ilustres” 2.
O período entre 1968 e 1975, porém, fora magro de filmes históricos.
Sintomaticamente, com exceção da obra comemorativa Independência ou Morte
(1972), de Carlos Coimbra, a maioria das fitas configurava uma visão de passado na
qual as velhas imagens do Brasil colonial eram marcadas por um novo signo naquele
contexto: a catástrofe. Não foram poucas as narrativas, entre filmes, romances e

2
BERNARDET, Jean-Claude. Qual é a história? In: NOVAES, Adauto (org.). Anos 70: ainda sob a
tempestade. Rio de janeiro: Senac, 2005. p. 325-333. Sobre filme histórico: MORETTIN, Eduardo.
Humberto Mauro, Cinema, História. São Paulo: Alameda, 2013.
115

ensaios históricos (ou com algum tipo de mirada histórica) que realizaram este
mesmo empreendimento: Kuarup (1968), de Antônio Callado; Memória de Helena
(1969), de David Neves; Azzylo Muito Louco (1970), de Nelson Pereira dos Santos;
Pindorama (1971), de Arnaldo Jabor; Como era gostoso o meu francês (1971), de Nelson
Pereira dos Santos; Os Inconfidentes (1972), de Joaquim Pedro de Andrade; Iracema,
uma transa amazônica (1976), de Jorge Bodanski; O Genocídio do Negro Brasileiro
(1978), de Abdias do Nascimento; Expedição Montaigne (1982), de Antônio Callado.
O foco deste texto é uma apreciação formal, contextual – e em alguma medida
teórica – de Como era Gostoso o Meu Francês (1971) e Os Inconfidentes (1972), fitas que
selecionaram dois universos históricos com aspectos já construídos como mitos pela
memória cultural. Tais fitas usaram de tropos3 e imagens modernistas, em especial
da antropofagia e do patrimônio, para fazer aparecer e desviar do passado
convencional da cultura histórica vigente na época e figurar uma diferença histórica.
Pretende-se, portanto, entender como o passado colonial foi transformado em
catástrofe e qual o significado dessa leitura naquele momento.

A antropofagia

Entre 1967 e 1972 o Brasil viveu intenso uso das imagens antropofágicas. As
retomadas de José Celso Martinez e a famosa encenação de O Rei da Vela, de 1967,
antecedidas pelos empreendimentos de Hélio Oticica ou dos debates da poesia
concreta, recolocaram no cenário artístico brasileiro o escritor Oswald de Andrade
entre as personagens canônicas da nascente Tropicália4. Entre os muitos tropos ou
figuras de linguagens mobilizadas esteve a antropofagia, desenvolvendo-se como

3
Para saber mais sobre a noção de tropo e sua relação com a imagem: SANTIAGO JR., Francisco das C.
F. Historiofotia, tropologia e história: além das noções de imagem nos escritos de Hayden White.
História (São Paulo) v. 33, n. 2, p. 489-513, jul./dez. 2014; MITCHELL, W. T. J. Teoría de la Imagen. Madrid:
Akal Ediciones, 2009.
4
A figura de Oswald, contudo, só se tornou de fato moeda corrente a partir de meados de 1966. Até
essa data, poucos associavam a produção cultural brasileira à antropofagia e seu autor, com exceções,
evidentemente, como os poetas concretos, que desde os anos 1950 o mencionam. Cf. CAMPOS,
Augusto de (org.). Teoria da Poesia Concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960. 4 ed. Cotia, SP:
Ateliê, 2006.
116

mola mestra da interpretação do legado colonial & estrangeiro5. A potência de sentido


na elaboração tropicalista, investida de forte subversão contra o “coro dos
contentes”, configurava um misto de distância e proximidade com Oswald 6. A
Tropicália, portanto, usou formas e performances antropofágicas como estratégias
para subversões simbólicas.
O modernista Oswald, no “momento tropicalista”, era uma figura que permitia
elaborar a ideia do devorar simbolicamente os elementos do passado e presente e
reinscrevê-los numa nova ordem: diversos estilos e potencialidade formais, musicais
e temáticas advindos de procedências diferentes poderiam ser harmonizados e
desequilibrados em produções subversivas das identidades vigentes. Se no Manifesto
Antropófago de Oswald o canibal comeria/incorporaria a técnica e cultura
estrangeiras, esse aspecto foi combinado junto aos elementos consagrados da
própria cultura brasileira no ideário do nacional popular já fraturado depois do golpe
civil-militar7. A tropicália empreendeu a autodevoração de expressões culturais
brasileiras e a devoração das estrangeiras cujos sentidos sociais eram realinhados em
novas expressões estéticas, flexibilizando-se entre si em outra visada da
nacionalidade.
Atente-se, portanto, à diferença histórica do tropo em fins dos anos 1960. Não
era a antropofagia de Oswald, mas um deslocamento de cunho estético/formal e/ou
ideológico resultante de diversos usos dos sujeitos da época – era um legado
diferenciado segundo cada uso. Se o estrangeiro a ser simbolicamente comido em
Oswald fora imagem fundante; para Torquato Neto, Caetano Veloso, Hélio Oiticica, a

5
Muitos analistas encontram a modalidade da leitura antropofágica de Oswald em José de Alencar
(obras como Ubirajara, de 1874) e Gonçalves Dias (poemas como I-Juca Pirama, de 1851), e reconhecem
o aspecto cultural do ritual antropofágico e a caracterização civilizatória do indígena que ele produz.
A retomada por Oswald de Andrade do canibal, agora, reconduzida pela interpretação do dadaísmo,
reconduziu a antropofagia como um novo “giro” nas imagens românticas de Alencar/Dias, mas
também de Montaigne e do próprio dadaísmo, na medida a devoração cultural-metafórica torna-se
expediente da modernidade brasileira. Cf. ROCHA, João Cézar de Castro. Uma teoria de exportação?
Ou: “antropofagia como visão de mundo”. In: ROCHA, João César de Castro; RUFFINELLI, Jorge
(orgs.). Antropofagia hoje? Oswald de Andrade em cena. São Paulo: É Realizações, 2011. p. 647-668.
6
DUNN, Christian. Brutalidade Jardim: a Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira. São
Paulo: EDUNESP, 2009.
7
FAVARETTO, Celso. Tropicália: a explosão do óbvio. 2007. In: BASUALDO, Carlos. Tropicália: uma
revolução na cultura brasileira (1967-1972). São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 81- 96.
117

ideia de digestão tropical tornava-se mais ampla. Ou seja, a antropofagia tropicalista


era um tropo (um giro) das imagens de canibalismo modernistas, pela qual artistas
diversos geraram outras práticas/imagens.
O cinema também viveu um “momento antropofágico”, embora no Brasil isso
só seja evidente após o ápice da fúria da tropicália. Provavelmente esta onda
antropófaga esteve relacionada também com o uso do canibalismo no cinema
internacional cuja onda inicial, como chamou atenção Guiomar Ramos 8, pode ser
registrada em filmes como Pocilga (1967), de Pier Paolo Pasolini, Week-end (1967), de
Jean-Luc Godard, e Pink Flamingo (1967), de John Walters. O principal episódio fílmico
antropofágico do período no Brasil, sem dúvida, se deve ao Macunaíma (1969) de
Joaquim Pedro de Andrade, a adaptação cinematográfica do célebre romance de
Mário de Andrade. O cineasta reconceituou a antropofagia como uma “autofagia”9
para poder abordar o tópico das desigualdades culturais e econômicas brasileiras.
Mas apesar de seus episódios canibais, o filme de Andrade não recuava ao
passado histórico, embora usasse do mito histórico como base. Outras fitas do início
dos anos 1970 trouxeram à tona episódios da antropofagia histórica/etnológica:
Como era gostoso o meu francês (1971), de Nelson Pereira dos Santos, Pindorama
(1971), de Arnaldo Jabor, Orgia ou o homem que virou suco (1970), de João Silvério
Trevisan, e Triste Trópico (1974), de Arthur Omar.
O uso da antropofagia histórica nos filmes brasileiros foi fundamental para a
inversão do significado da memória dos tempos coloniais. Os casos de Pindorama e
Como era gostoso o meu francês são exemplares. O canibalismo simbólico de Oswald
de Andrade foi retomado e transformado, restaurado em seu aspecto
histórico/etnológico, do devorar o corpo físico do estrangeiro/colonizador. O Brasil
colonial é reconstruído como um mundo edênico, mas não o paraíso cristão, ou o
mundo da não violência do “bom selvagem”. Trata-se do paraíso do nativo e do

8
RAMOS, Guiomar. Um Cinema Brasileiro Antropofágico? (1970-1974). São Paulo: Annablume/FAPESP,
2008.
9
Nas palavras de Joaquim Pedro de Andrade, os subdesenvolvidos se entredevoram: “as relações
entre as pessoas permanecem iguais deste os tempos em que realmente se praticava a antropofagia
direta, simples e selvagem; até os dias de hoje, em que essa forma antropofágica ganha um aspecto
civilizado, um aspecto industrializado”. ANDRADE, Joaquim Pedro. Joaquim Pedro de Andrade por el
mismo. Cine & médios. Argetina, v. 2, n. 5, 1971, p. 23.
118

inferno do colonizador que é devorado pelo indígena. Os filmes caracterizam o


crepúsculo do paraíso como resultado da colonização europeia, responsável por
transladar a barbárie, e não a civilização, através do oceano. Compreende-se que para
estas fitas o “pensamento selvagem” não é qualidade do bárbaro, mas o contrário.
Foi o civilizador europeu a origem do mal, de maneira que a colonização
transformava-se em catástrofe civilizatória indígena. O Pindorama fora o paraíso
perdido e o Brasil nação, fruto da empresa colonial portuguesa, é um misto de
genocídio e conspurcação da natureza ancestral. A colonização fora, assim uma
calamidade.
Em Como Era Gostoso o Meu Francês o cineasta Nelson Pereira dos Santos
mobilizou relatos de viajantes, usou matrizes visuais de gravuras da época (como as
produzidas por Theodore de Bry) e confrontou essas fontes históricas com as
imagens da fita, as quais desmentem todas as informações dos relatos de maneira
irônica. A fita mostra a sobreposição entre antropofagia e cenário natural, quando a
paisagem de Paraty, localidade na qual o filme fora gravado, destaca-se como lugar
do passado/paraíso na época em que os indígenas ainda eram proprietários da terra
que habitavam. Na principal cena do filme, Jean, o “protagonista” 10 é levado pela
tupinambá Seboipepe para o alto de uma grande pedra litorânea. Lá a jovem explica-
lhe como ele deverá reagir quando estiver no ritual no qual será devorado pela tribo
dos tupinambás. Num momento lírico e belo, Seboipepe encena os momentos do
futuro ritual antropofágico, terminando por deitar o corpo de Jean na pedra. Lá ela
simula os atos de cortar-lhe os membros e depois começa a mordiscar seu corpo,
seduzindo-o até que finalmente os dois rolam nus pela pedra e terminam por fazer
amor, enquanto a câmera se afasta e mostra o mar paradisíaco à frente.
O paraíso ali não é algo “natural” apenas, um resultado da beleza evidente da
paisagem. A orla de Paraty, gravada em Como era gostoso o meu francês (1971), é o
cenário da primeira civilização brasileira, a única realmente telúrica, identificada com

10
A ambiguidade da fita está em desenvolver seu enredo ao redor da perspectiva idealizada da cultura
do indígena, ao mesmo tempo em que segue o protagonismo do personagem Jean, o qual será
devorado pelos tupinambás. A narração de Como era gostoso o meu francês oscila entre canibais e
vítima.
119

a civilização indígena. O português/francês torna-se invasor/ladrão/negociador, não


um colonizador. Filme sobre o princípio de colonização nas imediações da cidade
histórica de Paraty, Como era gostoso... transformou a paisagem litorânea em índice
do passado remoto. Paraty, que a narrativa nunca denomina como tal, porque assim
sua ligação com o paraíso terreal torna-se mais automática, tem na natureza tropical
a marca da memória colonial antes da Queda. O antropófago vivia na praia, nas
margens dos rios, na floresta, na aldeia e estes são os marcadores visuais da época
quando não havia colonizadores. Isto e o ritual de comer o adversário, afinal o
parentesco indígena é definido pela afinidade e partilha da carne do inimigo, o qual é
marcado como tal justamente por ser devorado11.

O cenário patrimonial e a definição da paisagem histórica

A retomada do passado em chave modernista foi continuada por outras


iniciativas do filme histórico brasileiro do período. Pouco se tem estudado sobre os
vínculos entre a elaboração e atualização de concepções e afecções patrimoniais no
Brasil e suas relações com o campo cinematográfico. Seguindo essa perspectiva, a
cidade de Ouro Preto, a qual fora classificada como “histórica” pela
institucionalização do patrimônio no Brasil, tornou-se estratégica no cinema
brasileiro naquele momento. Tratava-se do cenário da fita e Os Inconfidentes (1972),
de Joaquim Pedro de Andrade, filho de Rodrigo de Andrade, diretor do Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Brasileiro (SPHAN). Para entendermos a dimensão
desse cenário, é preciso retomar as relações entre passado, patrimônio e filme
histórico.
O período entre 1937 e 1967, a “era de ouro” do SPHAN, sob direção de Rodrigo
de Melo de Andrade12, foi fundamental nos processos de inventário, seleção e
tombamento do patrimônio histórico e artístico brasileiro. Sob a perspectiva do

11
Para lembrar do perspectivismo e das análises do canibalismo etnológico estudados por Eduardo
Viveiro de Castro. Cf. CASTRO, Eduardo Viveiros de. A Inconstância da Alma Selvagem. São Paulo: Cosac
& Naify, 2002.
12
FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em Processo. Rio de Janeiro: EDUFRJ, 2005.
120

reconhecimento, entendido como identificação das marcas da história nacional, os


itens culturais monumentais foram institucionalizados pelo “Patrimônio” (termo
como passara a ser “apelidado”, naqueles anos, o SPHAN) e conceituado por muitos
intelectuais, entre eles o próprio Rodrigo Andrade, os quais exerciam funções de
mediação13 na criação de uma coleção de lugares:

O que se denomina Patrimônio Histórico e Artístico Nacional representa parte muito


relevante e expressiva do acervo aludido, por ser espólio dos bens materiais móveis e
imóveis aqui produzidos por nossos antepassados, com valor de obras de arte erudita e
popular, ou vinculados a personagens e fatos memoráveis da história do país. São
documentos de identidade da nação brasileira. A subsistência do patrimônio é que
comprova, melhor do que qualquer outra coisa, nosso direito de propriedade sobre o
território que habitamos [grifos nossos]14.

Reconhece-se que o espólio do passado têm valor comprobatório e que marca


simbolicamente uma propriedade territorial pelo viés simbólico. Neste trecho
duplamente jurídico, Rodrigo de Andrade desenvolvia a definição legal do decreto Lei
n. 378 de 13 de janeiro de 1937, que definira o patrimônio e criara o SPHAN,
assegurando que o valor histórico reconhecido legalmente pelo tombamento
garantia uma propriedade jurídica comprovada pela história. A delimitação espacial
também se destacava, uma vez que evidenciava o patrimônio como “lugar assinalado
por um acontecimento notável”15. A partir do recurso legal do tombamento, sítios,
cidades, monumentos e conjuntos arquitetônicos tiveram suas qualidades estéticas
e de antiguidade deslocadas na direção de uma memória nacional “notável”. A rigor
isso significou criar uma “geografia do Brasil passado” 16, ou seja, além de
reconhecimento, o SPHAN e os intelectuais modernistas ali sediados formaram uma

13
A mediação ocorria entre as pretensões de arquitetos, literatos e outros, com seus projetos
profissionais e ideológicos, e, os sucessivos projetos governamentais, a começar pelo governo Vargas,
criador do próprio SPHAN. Cf. CERÁVOLO, Ana Lúcia. Interpretações do Patrimônio: arquitetura e
urbanismo moderno na constituição de uma cultura da intervenção no Brasil, 1930-1960. São Carlos,
SP: EDUFSCAR, 2013.
14
ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Rodrigo e o SPHAN: coletânea de textos sobre patrimônio
cultural. Rio de Janeiro: MEC, SPHAN, Fundação Pró-Memória, 1987, p. 57.
15
GUIMARÃES, Maria da Conceição Alves. Rodrigo Melo Franco de Andrade e a paisagem hiperreal do
patrimônio. Vitruvius, ano 13, out. 2012. Disponível em:
www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4543. Acesso em maio de 2015.
16
RUBINO, Silvana. O mapa do Brasil passado. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, Rio de Janeiro, v. 24, 1996, p. 97-105.
121

noção de passado público que se iniciava “no momento mágico da classificação”17


pelo inventário e legitimado legalmente pelo tombamento em todo o território
brasileiro.
Quando, portanto, o cinema se aproximou do patrimônio no avançado dos anos
1960, já havia uma história consolidada na forma de uma coleção e uma cartografia
do passado que institucionalizara as marcas do passado colonial e imperial com
episódios e lugares de destaque. Havia, portanto, um regime de temporalidade – ou
de historicidade como chama Francois Hartog18 – construído pelo SPHAN. Quando da
reação à herança modernista em meados dos anos 1960, momento no qual o cinema
novo voltou-se para o passado, os cineastas brasileiros encontraram um cenário
colonial já organizado como prova/pedagogia patrimonial. O patrimônio pôde ser
tomado como um complexo de índices do passado (objetos, lugares, construções,
paisagens) e tropos de interpretação nacionalistas (ruínas e monumentos históricos)
enredados e enredando a história brasileira.
As noções patrimoniais foram elaboradas por Rodrigo de Melo de Andrade,
Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Carlos Drumond de Andrade, Manuel Bandeira, etc. e
uma série de outros modernistas. De certa forma os modernistas criaram o
patrimônio como um mito de passado cujos objetos/tropos identificatórios foram
revisitados pelo campo cinematográfico em finais dos anos 1960 e 1970 como
material base para figuração do passado público. A revisitação aos mitos modernistas
pelos cineastas se propunha como deslocamento (não como repetição) de
significado do passado patrimonial, por meio das mídias e das práticas de produção
audiovisuais, refazendo-o segundo preocupações do tempo e da história práticas.
Evidentemente o momento histórico no final dos anos 1960 e início dos anos
1970 era outro: o estatuto público do patrimônio, aparentemente já consolidado na
cultura brasileira, começava a sofrer alterações pelas políticas de memória do regime
civil-militar. Com a direção de Renato Soiero, novo diretor após a saída de Rodrigo
Andrade em 1967, o qual não contava com a mesma articulação política de seu

17
RUBINO, Silvana. Op. cit. p. 98.
18
HARTOG, François. Tempo e patrimônio. Varia história, Belo Horizonte, v. 22, n. 36, p. 261-273, jul/dez
2006. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/vh/v22n36/v22n36a02.pdf. Acesso em abril de 2014.
122

antecessor, a falta de autonomia do SPHAN ficou evidente e a dinâmica cultural


nacional dependeria de Aluísio Magalhães19. Desde 1965 o órgão tentava estabelecer
um vínculo entre o potencial turístico e o desenvolvimento econômico a partir de
bens culturais, marcada por novas diretrizes a partir das Normas de Quito (1967)20.
Costumeiramente, a divulgação das Diretrizes para uma Política Nacional de
Cultura em 1973, elaborada por Raymundo Aragão, presidente do Conselho Federal
de Cultura, é tomada como marco no estabelecimento dos princípios de uma política
cultural como “preservação do patrimônio cultural” e “a difusão das criações e
manifestações culturais” e teve importantes consequências cinematográficas 21. A
adoção das Diretrizes... evidenciou uma nova preocupação com tópicos da cultura e
do passado comum nacional a partir de iniciativas do Ministério da Educação e da
Cultura. Foi elaborada pelo Conselho Federal de Cultura (CFC), o qual, esteve
relacionado (e, no geral, sob controle) com a equipe técnica do SPHAN até 1968. A
partir desta data ocorreu a renovação de quadro de pessoal e a alteração das
perspectivas de trabalho de seleção do material do passado brasileiro.
Mencionamos essas mudanças das políticas patrimoniais para ilustrar que
quando os cineastas brasileiros se apropriaram do patrimônio histórico em finais dos
anos 1960 e início dos anos 1970, o conceito estava em metamorfose. Numa primeira
aproximação parece que os cenários históricos dos filmes seriam autoevidentes nos
filmes22, mas a apropriação do patrimônio no cinema não acontece simplesmente na
gravação do cenário já formatado, o que faria do campo cinematográfico um mero
reprodutor de mitos consagrados. Foi a partir da ressignificação ou mesmo pela
configuração de loci patrimoniais que as películas recorreram aos padrões narrativos
debatidos no SPHAN. O mais importante é entender que, para além das abordagens

19
FONSECA, Maria Cecília Londres. Op. Cit.
20
Carta patrimonial assinada por delegações de inúmeros países latino-americanos na qual se
defendeu a inserção do patrimônio e do turismo no desenvolvimento econômico e social.
21
MAIA, Tayana de Amaral. As políticas culturais na ditadura civil-militar (1967-1974). Anais do Simpósio
Nacional de História. Curitiba: ANPUH, 2011. Disponível em:
http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300631726_ARQUIVO_textocompletoTatyanaMai
aANPUH2011.pdf. Acesso em julho de 2015.
22
O que torna evidente a necessidade de uma história do patrimônio artístico e histórico no cinema
brasileiro para entender a elaboração e a reprodução do cenário patrimonial no campo
cinematográfico.
123

sobre a retomada da herança modernista no cinema brasileiro, que debatem a


“querela do Brasil” ou a “forma difícil”23, o patrimônio tornou-se um dos mais
duradouros e potentes mitos de passado construídos pelo modernismo, fornecendo
um arcabouço mitológico ao Brasil.
Desta mitologia, dois conjuntos de paisagens foram mobilizadas e
transformadas em índices do passado pelos filmes que abordaram ou recorreram ao
período colonial brasileiro: de um lado, nos filmes antropofágicos citados acima, o
idílio paradisíaco da floresta/praia foi retomado na gravação fílmica, tornando-se
cenário do Brasil ancestral. Paraty, neste caso, reconhecida como patrimônio
histórico e natural pelo SPHAN em 1967, ocupou um dos lugares paradigmáticos ao
ser cenário, por exemplo, de Como era gostoso o meu francês. De outro lado, os
cenários dos sítios históricos, ou seja, as construções coloniais foram apropriadas
como paisagem histórica da encenação fílmica. Cenário, neste caso, deve ser
entendido em duas dimensões: uma primeira relacionada com a operação de
construção do lugar narrativo do enredo, quando o espaço fílmico é transformado em
lugar onde transcorre a ação dos agentes da fábula contada; a segunda é a de um
tempo anterior ao vivido pelo espectador e ao próprio filme, quando o lugar narrativo
também é fabulado como lugar no passado histórico. As cidades históricas são o
centro da apropriação neste caso, pois elas já estão foram marcadas como tais, uma
vez que o patrimônio propõe-se, desde o início, como uma geografia e uma
cenografia do urbano 24.
A própria noção de cidade histórica é uma novidade do século XX, um novo
recorte urbano que articula uma cidade (ou uma área da urbe) significada como
histórica, a qual passa a reconstruir simbolicamente uma dada região como cenário
do passado acessível no presente. O valor cultural dos monumentos históricos é
repleto de usos contraditórios e concorrentes, entre os quais se digladiam os valores
de antiguidade (referentes à sensorialidade do passado que está encarnada na ideia
de ruína/monumento presentes na urbe), os valores históricos (que é um valor de

23
Cf.: ZILIO, Carlo. Querela do Brasil. Rio de Janeiro: Edição Funarte, 1982; NAVES, Rodrigo. A Forma
Difícil: ensaios sobre a arte brasileira. São Paulo: Cia das Letras, 2011.
24
RUBINO, Silvana. Op. Cit.
124

memória informado por uma narrativa comunitária de passado que a urbe


representa) e os valores de uso (novas impressões e possibilidades de
funcionamento do artefato cultural, inclusive seu valor de arte)25. A novidade da
cidade histórica é articular um valor histórico qualificado por uma narrativa a uma
totalidade urbana, carregada de valores sensoriais de memória, os quais entram em
choque com valores cotidianos atribuídos pelos diversos usos urbanos. Neste sentido
a cidade histórica (ou o centro histórico) não é uma simulação do passado, mas o
encontro do passado com um presente, quando os sujeitos domesticam aquele como
histórico/narrativo a partir do conjunto urbano26.
Mesmo antes da criação do SPHAN já existia uma cultura de preservação no
país. Demonstra-se isso pela elevação da cidade de Ouro Preto à categoria de
“monumento nacional” pelo Decreto Lei 22.928 de 1933, feito inédito uma vez que
escolhia uma urbe como um complexo histórico monumental 27. Quando o próprio
SPHAN fora criado, por iniciativa de Gustavo Capanema (Ministro da Cultura de
Getúlio Vargas) e colocado sob o controle de Rodrigo de Andrade, a noção da cidade
histórica de Ouro Preto como “jóia” do passado colonial foi sendo reconfigurada na
busca por uma cenarização do passado que tornasse cada vez mais intensa a
memória da velha “Vila Rica”. Era preciso não apenas ter relíquias, ruínas ou
monumentos, mas precisava-se que tais objetos e lugares parecessem coloniais para
fundamentarem a história nacional. Em busca de um determinado tempo, a cidade
foi transformada em majoritariamente histórica.
Isso ocorreu na “fase heroica” do SPHAN, sob direção de Rodrigo de Melo de
Andrade, que entre tantos conduziu uma operação de patrimonialização da memória
mineira (a prática de ressignificação de ruínas, prédios, igrejas, obras de arte e
paisagens) como marcas da história do povo brasileiro. A cidade-monumento
transforma-se em prova documental cuja longevidade garantiria a sobrevivência da
história da nação. Segundo Maria da Conceição Guimarães, tal narrativa dependeu de

25
RIELG, Alois. O Culto Moderno dos Monumentos. Lisboa: edições 70, 2013.
26
Cf.: CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade, 2001; GIOVANNONI,
Gustavo. Gustavo Giovannoni: textos escolhidos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2013.
27
CÉRAVOLLO, Ana Lúcia. Op. Cit. p. 102.
125

um conceito de entorno e de lógica paisagística tanto na elaboração conceitual como


administrativa. A concepção de cidade histórica, assim, materialização do “direito de
propriedade sobre o território” habitado pelos brasileiros, surgia de uma noção de
urbe, entorno e de paisagem históricos28.
A cidade histórica de Ouro Preto, cenário de Os Inconfidentes, como “lugar
assinalado por um acontecimento notável” fora classificação prévia que Joaquim
Pedro de Andrade e tantos outros encontraram quando foram fazer seus filmes
históricos. Para enfrentar este passado, o cinema teve de refazer a cenarização
patrimonial como operação de redefinição dos sítios como lugares narrativos da
nação. Qual a narrativa, construída, neste caso, por Os Inconfidentes?

A cidade histórica brasileira como locus do fracasso

Pesquisas recentes têm investigado a forma como o patrimônio nacional


dependeu de práticas visuais que definiram arcabouços de registro e incorporação
dos objetos e valores patrimoniais, ou seja, a maneira como por meio do uso da
fotografia e do cinema, por exemplo, uma delimitação cultural de patrimônio
realizou-se por práticas de visualização e visualidade 29. Novamente aqui se
reencontra a questão da relação do campo cinematográfico com os mitos
modernistas. Não foi por acaso que alertamos para o fato de que o pai do cineasta
Joaquim Pedro de Andrade fora diretor do SPHAN por décadas. Nunca é demais
lembrar que alguns personagens de destaque do cinema novo estiveram diretamente
relacionados ao “Patrimônio”: David Neves fora um dos responsáveis pelo material,
pela câmera do órgão e por sua manutenção nos anos 1960 30. Aparentemente,

28
GUIMARÃES, Maria da Conceição Alves. Rodrigo Melo Franco de Andrade e a paisagem hiperreal do
patrimônio. Vitruvius, ano 13, out. 2012. Disponível em:
www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4543. Acesso em maio de 2015.
29
Cf.: COSTA, Eduardo Augusto. Arquivo, poder, memória: Herman Hugo Graeser e o arquivo
fotográfico do IPHAN. Tese de doutorado em História. IFCH – Programa de pós-graduação em História,
UNICAMP, Campinas, SP, 2015.
30
Cf. entrevistas de Neves e Joaquim Pedro de Andrade em: VIANY, Alex. O Processo do Cinema Novo.
Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 1999. Muitos relatos e analistas apontam para o fato de que Rodrigo
de Melo de Andrade tinha grande sensibilidade para a consolidação da produção cinematográfica no
Brasil, incentivando o filho e amigos (como Neves), chegando inclusive a adquirir material de filmagem
126

Memória de Helena, fita de 1969 de David Neves, gravada na cidade histórica de


Diamantina, surgiu do contato com os empreendimentos de documentação
levantados pelo “Patrimônio” na cidade de Diamantina, em meados dos anos 1960,
quando Neves estreou na direção de filmes. O cineasta também auxiliou Humberto
Mauro, cineasta que antes realizara documentários sobre as cidades históricas
mineiras para o Instituto Nacional de Cinema31.
Joaquim Pedro de Andrade, por sua vez, já havia gravado um filme em
Diamantina, adaptando o poema de Carlos Drummond de Andrade O padre, a moça
em fita quase homônima (exceto pela supressão da vírgula no título): O Padre e a
Moça, em 1966. Sua primeira incursão no cinema fora numa película cuja trama se
desenrolava no cenário histórico de Ouro Preto, como assistente de direção na
produção Rebelião em Vila Rica, de 1957, fita de Geraldo Santos Pereira. Em ambas as
fitas o sítio histórico tinha papel destacado, permitindo entrever a reconstrução dos
monumentos mineiros por meio do cinema como um aspecto importante na vida
produtiva de Joaquim Pedro, questão que os analistas consideram como traço da
influência de seu pai Rodrigo de Melo 32. Os Inconfidentes fora uma película realizada
por Joaquim Pedro de Andrade e lançada em 1972, atingindo diretamente as
comemorações pelo Sesquicentenário da Independência do Brasil. Joaquim Pedro
retornava à cidade histórica de Ouro Preto para retratar um importante episódio da
mitologia republicana, no qual se afirmava o heroísmo e o martírio dos rebelados
contra a monarquia portuguesa. Neste caso, o cenário patrimonial (Ouro Preto) fora
o cenário fílmico ficcional (Vila Rica).
Os Inconfidentes têm dois momentos magistrais para ilustrar a maneira como
cidade histórica fora tratada. Em todo o filme, a opção por planos fechados e
interiores mal mostra o cenário urbano, rejeitando muito do convencional cenário

para que pudessem ser usados. Cf. VIANY, Alex. Op. Cit.; AVELLAR, João Carlos. A redenção pelo
excesso de pecado. In: ROCHA, José César de Castro Rocha (org.). Nenhum Brasil Existe: pequena
enciclopédia. Rio de janeiro: Toopboks, 2003, p. 993-1004.
31
Sobre estes filmes, cf.: GUIMARÂES, Rosangela Mendonça. Cidades em ação: o olhar de Humberto
Mauro sobre Congonhas e Belo Horizonte. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: PUC Minhas,
2004.
32
Cf. ARAÚJO, Luciana Corrêa de. Joaquim Pedro de Andrade: primeiros tempos. São Paulo: Alameda,
2013; AVELLAR, João Carlos. Op. Cit.
127

histórico no qual as ruas e as fachadas de prédios comunicam e reafirmam ao


espectador o lugar da narrativa encenada. Próximo das cenas finais, após mostrar os
interrogatórios dos líderes da conjuração mineira, a sentença de Tiradentes é lida pela
própria Dona Maria I, a qual aparece em pessoa (numa das muitas licenças poéticas
adotadas) para proferir seu grande discurso no pátio da Casa dos Contos de Vila
Rica/Ouro Preto. Na sequência seguinte, pórem, tudo muda: enquanto pedaços de
carne são cortados ao som de batidas de facão, um estrondoso som anuncia uma
parada de dia de Tiradentes com muitos adolescentes e espectadores desfilando na
Praça Tiradentes da Ouro Preto contemporânea. Os raccords para a carne cortada,
em alusão ao esquartejamento do inconfidente, são intercalados com flashs da festa
cívica e fica evidente o questionamento de que tipo de “Inconfidência Mineira”
estaríamos, de fato, vendo a imagem. Nesta cena, efetivamente, a cidade de Ouro
Preto aparece, mas curiosamente, quando ela surge não é mais como Vila Rica, o
cenário da película, mas como Ouro Preto, a cidade histórica na qual transcorre
comemoração cívica atual.
Mais do que desafiar a memória patriótica, porém, a fita mostra como o
“grande” episódio “republicano” do período colonial fora uma sobreposição infinda
de perspectivas equivocadas dos colonos que almejavam a independência. As elites
mostram-se equivocadas, despreparadas e o próprio mártir, o Tiradentes, fora
sacrificado por um ideal fracassado. O empreendimento colonizador é mostrado pela
fita, portanto, como uma infeliz catástrofe republicana, uma fonte de incômodo ao
qual, se a comemoração cívica o encena com pompa (num misto de ignorância e
engano), a rememoração fílmica encena como crise de projetos frustrados, crise de
referências que jamais se pretenderam compromissadas com a liberdade.
A fita se apropria do cenário consagrado para articular a Inconfidência Mineira
como “fato memorável da história do país” 33 e questiona a comemoração desse
“fato” no próprio cenário no qual teve lugar. A Inconfidência aparece como fratura
do passado, diferença de um empreendimento frustrado por uma elite incapaz de
articular alternativas transformadoras. Aquele projeto de república esquartejado

33
ANDRADE, Rodrigo de Melo Franco. Op. Cit. p. 57.
128

emerge como outra catástrofe, que se soma ao paraíso perdido da civilização


tupinambá, retratada apenas um ano antes na película Como era gostoso o meu
francês. Tanto no cenário paradisíaco e antropofágico de Paraty, como em Ouro
Preto, a paisagem colonial torna-se índice do passado colonial como calamidade
histórica.

A colonização como catástrofe34

Cumpre entender o que estamos chamando de catástrofe. Sabe-se que


nenhuma relação com o passado é histórica por si mesma. Dependendo da
perspectiva, o passado vira histórico quando sujeito a uma operação de inserção num
dado corpo de referências temporais produzidas por uma maneira investigativa de se
aproximar dele, variando seu impacto no corpo das memórias comunitárias pela
disputa entre os diversos grupos sociais. Seja como histórico ou prático, o passado
depende da mídia e da linguagem, a qual transforma a temporalidade em história 35.
O campo cinematográfico, produtor de artefatos visuais (os filmes), fornece uma
possibilidade de transformar o passado prático materializado na memória cultural em
passado histórico.
Não podemos esquecer que Como era gostoso o meu francês e Os Inconfidentes
são filmes que mobilizaram uma mirada histórica, na medida em que seus roteiros e
propostas envolvem a incorporação de sinais do passado na narrativa: relatos de
viajantes e gravuras e pinturas da época aparecem na fita de Nelson Pereira dos
Santos, bem como os Autos da Devassa foram tratados por Joaquim Pedro de
Andrade. Como era gostoso... usou comparações com textos etnológicos e Os

34
A ideia da “colonização como catástrofe” foi sugerida por Jens Baumgarten durante uma
apresentação nossa, quando chamou atenção para uma memória da colonização brasileira como
trauma. O professor do departamento de História da Arte da UNIFESP desenvolveu este aspecto
também em sua apresentação na mesa “Cultura visual e práticas de poder” no II Seminário
Internacional Cultural Visual e História, em novembro de 2014. Sendo mais fiel a Baumgarten, este
definiu uma concepção de “colonização como trauma”, que aqui desenvolvo como “colonização
como catástrofe”, oscilando propositalmente entre as categorias de trauma e catástrofe.
35
Sobre a diferente entre passado prático e passado histórico. Cf.: WHITE, Hayden. The Practical Past.
Illinois: Northwestern University Press, 2014.
129

Inconfidentes ainda trabalhou com os O Romanceiro da Independência, de Cecília


Meirelles, para mediar-se com o passado histórico. Elementos da cultura
historiográfica e outros aspectos da memória cultural foram mobilizados na
operação da criação de imagens do passado. Estes se somam, como exploramos
acima, com os cenários paradisíacos e patrimoniais como marcadores de tempos
pretéritos. Há, portanto, uma afirmação de velhos sinais (documentos
reconhecidamente como relatos e textos oficiais), mas também da busca por
mediações com tais elementos históricos, no geral, fornecidos pela antropofagia, no
caso da película de Nelson Pereira, e pelo patrimônio, na fita de Joaquim Pedro. Com
isso recriam-se índices de antiguidade por meio da etnologia indígena e da cidade
histórica.
Frente às convenções sobre a maneira como o cinema trata a história, tornou-
se comum a concepção de que o cinema, objeto da história das representações do
passado pode plasmar a história em imagens36. O cinema teria, nesta perspectiva,
uma maneira própria ao campo de produção fílmico, sujeito, portanto, às demandas
e aos interesses de outros grupos sociais, de atribuir significado ao passado. A
narrativa fílmica seria o resultado da atividade cinematográfica de lançar
representações da história num mercado de consumo de bens culturais.
Contudo, como exposto acima, a história plasmada em imagens pelo filme reage
e dialoga com a memória cultural constituída de numa dada sociedade. As figurações
de passado fílmicas enfrentam situações de carências de sentido de um ou mais
grupos sociais, de maneira que o recurso ao “histórico” confere a possibilidade de
construções de respostas às demandas do presente, para tomarmos o vocabulário
de Jörn Rüsen37. No caso dos filmes históricos aqui mencionados (Como era gostoso
o meu francês e Os Inconfidentes) figurar o passado colonial como catástrofe
significava o que no contexto do início dos anos 1970? O que motiva a busca pela

36
Sobre cinema e história das representações: BARROS, José d’Assunção; NOVOA, Jorge (org.).
Cinema-História: teoria e representações sociais no cinema. Salvador: Apicuri, 2007. Sobre plasmagem
do passado em imagens: ROSENSTONE, Robert. A História nos Filmes/Os Filmes na História. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2010.
37
RÜSEN, Jörn. Holocausto-memory and Germany identity. In: History: narration, interpretation,
orientation. New York: Berghahn Books, 2005, p. 189-204.
130

história catastrófica em fitas históricas que tentam articular um distanciamento do


presente? O que seria, portanto, catastrófico nos filmes: o passado ou o presente no
qual ele é gerado?
A tradição de estudos cinematográficos tem optado em supor que a chave para
compreensão da produção fílmica histórica deste período estaria no conceito de
alegoria e na alegorização do presente38. Desenvolvendo esta tese, a máscara do
pretérito esconderia o próprio presente do regime civil-militar como uma catástrofe
em imagem cifrada, havendo pouco de fato a dizer sobre o passado histórico em si.
Queremos levantar a hipótese, contudo, de que Como era gostoso o meu francês e Os
Inconfidentes revelam não apenas a relação de crise que os realizadores e o campo
cinematográfico estabeleceram com seu presente autoritário, mas a indagação de
como uma crise catastrófica do presente permite fazer aparecer os elementos
catastróficos do próprio passado. É preciso, portanto, restaurar o vetor da alegoria
que se lança no rumo pretérito – que estabelece a distância – e não apenas o vetor
que explora o agora do regime civil-militar39.
Podemos dimensionar esse vetor ao passado a partir das contribuições de Jörn
Rüsen e da aplicação de conceitos dos estudos históricos da memória traumática.
Segundo Rüsen a contingência (mudança) tem um papel de crise na vida dos sujeitos
que buscam nas orientações temporais da consciência histórica a possibilidade de
responder ao desafio proposto pelas transformações cotidianas. As “crises” ou
contingências podem ser de variados tipos, e para muitos casos a cultura histórica
cria modelos que permitem construir orientações contingenciais. Existem, porém, as
crises catastróficas, cujo modelo para o historiador alemão, seria o holocausto,
situação na qual a recorrência aos protocolos e às orientações oferecidas pela
consciência histórica torna-se ineficientes e não parecem mais capazes de oferecer
soluções às carências do presente:

38
Cf.: RAMOS, Alcides Freire. Canibalismo dos Fracos: cinema e história do Brasil. São Paulo: EDUSC,
2002; XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, tropicalismo e cinema marginal.
São Paulo: Cosac & Naify, 2012.
39
Conferir a crítica a isso em: PINTO, Carlos Eduardo Pinto de. Relatos fantasmas: os filmes históricos
cinemanovistas e a política cultural da ditadura civil-militar nos anos 1970. Rebecca, São Paulo, ano 2,
n. 3, jan/jun 2013, p. 62-88.
131

Nesse caso, os princípios básicos da geração de sentido em si mesmos, que permitem a


coerência da narrativa histórica, são desafiados ou mesmo destruídos (...) quando isso
ocorre, a linguagem do sentido histórico silencia. Ela torna-se traumática. Leva tempo,
algumas vezes mesmo gerações, para se encontrar a linguagem na qual seja possível
articulá-la40.

Ligando sua noção de catástrofe ao trauma, Rüsen afirma que a crise


catastrófica “destrói o potencial da consciência histórica de processar a contingência
em uma narrativa portadora e provedora de sentido” 41. Percebe-se que Rüsen toma
o trauma como diagnóstico social para compreender a caracterização de algumas
experiências históricas como traumáticas. Se retomarmos o modelo alegórico, a
história nos filmes abordados acima é uma máscara para o presente do regime civil-
militar, ele sim uma experiência traumática que desafia as possibilidades de
explicação correntes, criando certa suspensão na operação de significação da vida
prática. A ditadura seria o trauma, mas há algo de incompleto nessa asserção, uma
vez que qualquer trauma requer uma memória e não apenas uma projeção de vivência
– para a ditadura existir como trauma ela precisa de uma memória anterior 42.
Isso pode ser entendido melhor se explorarmos os filmes discutidos. A
figuração fílmica dos dois filmes alerta para algo do passado como experiência
catastrófica, fonte de frustração, qual seja a colonização. Ressalte-se que as fitas,
realizadas no século XX, não foram produzidas por qualquer um que tenha vivido no
período colonial. O empreendimento civilizador brasileiro, portanto, só pode ser
abordado por meio da memória cultural em suas dimensões práticas e históricas, ou
seja, no conjunto de artefatos, imagens, tropos e narrativas que a sociedade brasileira
produziu sobre eles. A colonização é um objeto distante no tempo e só pôde ser
proposta como catástrofe pelos filmes no início dos anos 1970 quando os cineastas

40
RÜSEN, Jörn. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-história. Tradução de
Pedro Spinola Pereira Caldas e Valdei Lopes de Araújo. História da Historiografia, Ouro Preto, MG, n.2.
marc. 2009, p.163-209, p. 171. Disponível em:
www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/12/12. Acesso em maio de 2015.
41
RÜSEN, Jörn. Op. Cit. p. 171.
42
Aqui está a diferença fulcral: a projeção da vivência catastrófica criaria, na explicação puramente
alegórica, o presente como calamidade que surge mascarado como passado no filme histórico.
Contudo, isso significa que a memória histórica produzida pela película é apenas o presente projetado
no passado. Ora, portanto, não é memória, uma vez que esta depende de traços.
132

recorreram às imagens/tropos (antropofagia e patrimônio) modernistas que


permitiam a reavaliação deste passado histórico. Isso quer dizer que a colonização é
tratada a partir de um conjunto de traços na memória cultural, que sobrevive pelas
constantes (re)afirmações de sua importância como período definidor do passado
nacional, pelo menos desde o romantismo do século XIX. O passado colonial,
portanto, não é apenas uma máscara para o presente mirar a própria face, mas uma
sobrevivência na memória cultural que permite aos sujeitos do presente mirar-se nele
e fraturar-se nele.
A emergência do trauma requer pelo menos dois choques: um primeiro,
originário, aquilo que Rüsen chamara de crise catastrófica advinda de uma
experiência extrema43; e uma segunda crise que permite a emergência da primeira
como memória recalcada. Na economia psíquica individual o trauma é uma relação
com um traço mnemônico de sofrimento ao qual se é incapaz de enfrentar em si
mesmo e surge figurado numa máscara – portanto repetido – acionada por um
choque do presente, o qual, em si mesmo, não é a única fonte do sofrimento. Numa
economia cultural a segunda crise permite a repetição, a qual pode tornar-se
obsessiva ou permitir a tentativa da resolução das carências, ou seja, a reclassificação
de uma experiência comum anterior e recuada na memória – numa palavra, uma
elaboração44.
A noção de trauma social, portanto, pode ser útil para definir melhor o que está
em jogo nessas projeções espelhadas. O trauma implica na dificuldade da elaboração
narrativa, num bloqueio no processamento da contingência. Se Como era Gostoso o
Meu Francês e Os Inconfidentes propuseram sentido ao passado, ou seja, se a
experiência foi elaborada, ainda que como catastrófica, ou a colonização não era um
trauma ou as películas se tornaram loci da elaboração de várias experiências históricas

43
Rüsen confunde aparentemente o traumático como a experiência, enquanto os dois choques
evidenciam que o trauma é uma relação, como explorado por Freud, Lacan e historiadores como
Dominick LaCapra.
44
Elaboração: trabalho terapêutico de articular, para além da repetição do trauma, a articulação de
sua significação mesmo que esta seja a indeterminabilidade de seu não-sentido. A elaboração
aproxima-se do luto, com a diferença que este apresenta um objeto perdido localizável. A elaboração
tenta superar a compulsão pela repetição (o acting out) que está na base do mecanismo traumático.
Cf.: LaCAPRA, Dominick. Escribir la historia, escribir el trauma. Buenos Aires: Nueva Visión, 2005.
133

(a ditadura e a própria colonização). Haveria uma terceira possibilidade: a imagem


fílmica ocuparia o lugar do próprio choque ao confrontar de nova maneira o passado
já classificado previamente na cultura histórica. Atribuir às fitas a possibilidade de
serem sujeitos-linguagens que elaboram traumas ou chocam, desejam ou articulam
sensibilidades parece implicar em uma animação quase fetichista, como chama
atenção W. T. J. Mitchell45, contudo, em breve veremos que a perspectiva se
sustenta.
Seguindo Jacques Lacan, Hal Foster46 afirma que o traumático define-se como
um encontro faltoso com o real. Nesta condição, o real não poderia ser representado,
mas apenas repetido (mesmo obrigatoriamente deve ser repetido), uma vez que a
repetição protege a pessoa do sofrimento original, garantindo-lhe a existência. Não
haveria, neste sentido, um sujeito no trauma, uma vez que sua posição fora evacuada
pela impossibilidade de transformar a memória em simbolização plena e/ou
consciente. Contudo, como alerta Foster:

na cultura popular o trauma é tratado como um acontecimento que assegura o sujeito,


e nesse registro psicológico o sujeito, embora perturbado, volta como testemunha,
atestador, sobrevivente. Eis aí decerto um sujeito traumático, e ele tem autoridade
absoluta, pois não se pode contestar o trauma de outrem: só se pode acreditar nele, até
mesmo identificar-se com ele, ou não. No discurso do trauma, portanto, o sujeito é a um
só tempo evacuado e elevado47.

O trecho acima se refere às vítimas de experiências extremas, mas pode-se


construir uma analogia com o trabalho das fitas históricas. Quando a civilização
tupinambá antropofágica foi narrada como uma forma perdida de civilização vencida
pela história em Como era gostoso o meu francês (1971), ou quando a cidade histórica
tornou-se parte do episódio da falência da civilização brasileira em Os Inconfidentes
(1972) percebe-se que o ocaso da nação foi deslocado para antes (ou para o começo)
dos tempos do Brasil. Na retomada da memória cultural, portanto, a colonização
torna-se “traumática” porque um segundo choque – aquele que permite a

45
MITCHELL, W. T. J. What do pictures want? The lives and loves of images. Chicago: University of
Chicago, 2005.
46
FOSTER, Hal. O Retorno do Real: a vanguarda no final do século XX. Cosac Naify, 2014.
47
FOSTER, Hal. Op. Cit. p. 158.
134

elaboração de alegorias do presente inclusive – acionou a possibilidade do passado


emergir como fundo de sofrimento, como experiência do sofrimento da coletividade
que sobreviveu na memória. Este “segundo choque” convencionalmente, os
analistas têm chamado de ditadura civil-militar, termo que define tanto o golpe de
1964, o A.I. n. 5 de 1968, a instauração processual de um estado autoritário e o
período como um todo. Na verdade trata-se de um complexo ou estrutura sócio-
política que designa costumeiramente um bloco de acontecimentos
contemporâneos. As inúmeras alegorias da repressão, as metáforas para burlar a
censura surgiram neste mesmo cenário, mas, nos casos aqui tratados, nas
representações do passado nos filmes, a metáfora de defesa do presente transforma
também o passado em fonte de transtorno.
A diferença fundamental está no fato de que a experiência traumática não está
recalcada na memória recente, mas na memória do passado histórico longínquo. O
segundo choque (a ditadura civil-militar) permitiria a elaboração a posteriori de um
primeiro choque (a colonização) que não fora vivido pelos agentes do campo
cinematográfico. Evidentemente não se pode minimizar o regime civil-militar como
mero acionador, mas tentar localizar melhor o que seria a crise que permite uma
reconfiguração do passado histórico como um momento de catástrofe.
O principal fator do trauma exercita-se nos filmes pela repetição que sobrepõe
passado e presente, mas que ao classificar a colonização como catástrofe permite
tanto a sobreposição temporal como o distanciamento do passado em relação ao
presente. Por um lado, as películas posicionavam os sujeitos no presente de uma crise
e, por outro, permitiam sua significação, pois os esforços interpretativos dos eventos
históricos demonstram um investimento similar ao da elaboração traumática.
Retomando a Mitchell48 parece prudente supor que o choque histórico da
ditadura existe por causa do choque estético dos filmes que criam miradas do
passado. A ideia de que a imagem fílmica funciona como um choque público que
acionou a possibilidade de interpretação do passado colonial como trauma ou
catástrofe é interessante porque evidencia o aspecto subversivo das formas fílmicas

48
MITCHELL, W. T. J. Op. cit.
135

e da quebra da expectativa que elas possibilitam. Os filmes “queriam” produzir um


choque num cenário de “crise” política. Suas imagens encontraram os artefatos do
passado (relatos de viajantes, documentos históricos, cenários, objetos) mediados
pelos mitos modernistas de visão do período colonial (antropofagia e patrimônio)
para elaborar narrativas históricas. Nos cenários de Paraty e de Ouro Preto
apresentaram-se choques acionadores do passado como diferença do presente.
Como uma forma sobrevivente desde tempos longínquos, as imagens e tropos
modernistas atualizaram os fantasmas coloniais como sinais de uma catástrofe,
ruínas que permitem compreender melhor a tragédia (política) contemporânea.

Considerações finais

Demasiada distante no tempo, a colônia só pôde ser abordada por meio da


organização do passado contido na memória cultural, pela consciência histórica que
a reconstruiu para ocupar algo próximo de parte de uma narrativa mítica de origem.
O modernismo brasileiro criou várias miradas do passado, organizando complexos de
discursos, imagens e objetos do passado colonial. Este texto abordou apenas os
mitos aplicados ao redor dos tropos antropofágicos e patrimoniais.
Os realizadores e críticos do cinema novo transformaram o modernismo em
tradição: Graciliano Ramos, Heitor Villa-Lobos, Mario de Andrade, Oswald de Andrade
e tantos viraram memória. Os modernismos brasileiros tornaram-se um acervo
canônico ao qual se poderia recorrer. Ao mesmo tempo, suas produções (os tropos
e imagens) viraram também um arquivo que poderia ser reorganizado para encontrar
materiais de rearticulação dos mitos do passado. Estes cânone e arquivo 49
funcionaram como potencialidades, complexos de tropos /imagens que permitiam
múltiplos usos e subversões.
No início deste texto, afirmou-se a presença da noção da catástrofe em
narrativas históricas entre 1968 e 1984, as quais evidenciam a repetição do motivo da

49
ASSMANN, Aleida. Canon and archive. In: ERL, Astrid; NÜNNING, Ansgar (orgs.). A Companion to
Cultural Memory Studies. London: The Gruyter, 2010, p. 97-108.
136

catástrofe naquela conjuntura. As calamidades do passado tornaram-se cenas


originais após sua ressignificação cultural por um encontro causado por cenas
secundárias (os lugares patrimoniais, o momento político e os próprios filmes). Mais
importante do que saber se as películas foram ou não traumas em elaboração, é
entender que a figuração do passado como catástrofe foi uma significação possível
por meio do encontro e da mediação pelas marcas do passado histórico previamente
construídas pela abordagem antropofágica e pela cenarização patrimonial.
Neste sentido, foi à recorrência aos mitos fundacionais modernistas, em seus
parâmetros antropofágicos e patrimoniais, os quais determinaram os “fatos
notáveis” e os “lugares” de destaque, que permitiu o afastamento do passado
glorioso e do telos da civilização brasileira e vislumbrar no passado o aborto de certa
história. Tratava-se de desleituras, giros no sentido original do tropo da antropofagia
por meio de sua tematização histórica/etnológica; desvios da comemoração
pedagógica do cenário patrimonial de Ouro Preto, agora palco de notáveis fracassos.
Catastrófica (ou traumática), a colonização histórica foi subvertida nas películas
como memória de irrealizações de projetos civilizacionais no início dos anos 1970.
As narrativas fílmicas aqui tratadas apontam para a colonização como
experiência catastrófica dos subalternos do presente (indígenas, negros e brancos
pobres), fazendo aparecer, por meio da antropofagia e do patrimônio, as perdas
históricas “reais” de soberania e projetos políticos falidos. O legado da desigualdade
é o maior traço de sobrevivência do passado colonial cujas origens catastróficas as
fitas tentaram localizar.
Neste sentido, os filmes apontados, motivados num quadro da subalternidade,
avivaram pelo olhar os elementos do passado distante, mostrando suas
sobrevivências por meio de índices que são reclassificados. As fitas, neste caso,
propuseram um deslocamento da cultura histórica ao recorrer às imagens
modernistas. Só se pode observar isso ao abordarmos as películas pela “ficção
constitutiva das imagens como seres ‘animados’, quase-agentes, pessoas fingidas”50

50
MITCHELL, W. T. J. Op. cit. p. 46: “Assent to the constitutive fiction of pictures as ‘animated’ beings,
quasi-agents, mock persons”. A difícil tradução de “mock persons” empregado por Mitchell, é melhor
compreendida como “fingir/zombar ser uma pessoa”. A solução adotada aqui foi pela tradução que
137

que desloca o (sentido do) passado (para longe do presente) e fazem-no sobreviver
como elemento constitutivo delas (das imagens) e da cultura histórica
compartilhada.
Restabelecer o equilíbrio rompido, depois de cinco séculos, como afirma
Callado, só é possível numa narrativa/imagem da história que se proponha violenta e
capaz de causar novo choque, para fazer emergir algo do estupor. Essa subversão
fez-se pela imagem de quando o mundo (o Brasil) era novo e as regras frustraram os
destinos.

articula a imagem como personagem ou pessoa fingida. São imagens-pessoas sem sê-lo, incorporam a
qualidade vivente de maneira fantasmática, algo entre o jogo (lúdico) e o real.
138

Suspender o tempo, reencantar a cidade: “O grito do povo”, uma


história gráfica da Comuna de Paris

Clóvis Gruner

O Poeta irá tomar o pranto dos Infames,


Os ódios do Forçado, as queixas dos Malditos;
E as Mulheres serão flageladas de amor.
Seus versos saltarão: Ei-los! ei-los! bandidos!

- Sociedade, está tudo em ordem: - as orgias


Estertoram de novo em velhos lupanares:
E, delirante, o gás nos muros encarnados
Arde sinistramente à palidez dos céus!

Rimbaud – A orgia parisiense ou Paris se repovoa

(...) mas que potente vanguarda que, durante mais de dois meses,
manteve na expectativa todas as forças coligadas das classes
governantes; que imortais soldados os que, nos mortais postos
avançados, respondiam ao versalhês: “Estamos aqui pela
Humanidade!”

Prosper-Olivier Lissagaray – História da Comuna de 1871

No dia 15 de maio de 1871, uma declaração assinada pelo Delegado para as


Relações Exteriores da Comuna de Paris, Paschal Grousset, conclamava os franceses
das principais províncias francesas a acorrer em defesa de Paris. Intitulado “Apelo às
grandes cidades”, o texto pedia aos cidadãos livres da França que protegessem a
Comuna das “balas envenenadas de Versalhes”:

Após dois meses de uma batalha de todas as horas, Paris não se acha cansada, nem
dividida.
Paris luta sempre, sem trégua e sem repouso, infatigável, heróica, invicta.
139

Paris fez um pacto com a morte. Por trás de seus fortes, ela em os muros; por trás de seus
muros, as barricadas; por trás de suas barricadas, as casas, que seria preciso arrancar-lhe,
uma a uma, e que ela faria saltar, se necessário, antes de se entregar à misericórdia 1.

Aquelas alturas é bastante provável que os communards já pressentissem o seu


fim trágico. Transcorridos mais de dois meses desde a sua proclamação, em 18 de
março, e de resistência a um cerco impiedoso e violento, a Comuna aos poucos
sucumbia ante a superioridade das tropas de Versailles. Com a ajuda de seus espiões
infiltrados na cidade, Thiers já mapeara os pontos mais vulneráveis a serem forçados
no momento da invasão. Contribuía para a fragilidade dos revoltosos as inúmeras
distensões internas, as disputas ideológicas e sua precária estrutura e organização
militar. Além disso, o apelo às cidades veio tarde: tentativas insurrecionais em Lyon,
Marselha e Grenoble haviam sido abortadas, em parte devido à ameaça de repressão.
Dois congressos republicanos, em Bordeux e Lyon, foram inviabilizados: o primeiro
proibido de ser realizado por Thiers e pelo seu ministro Ernest Picard; o segundo
suspenso e seus delegados, presos e levados a Versailles pelos militares.
Seus estertores, a Comuna viveria sozinha e sitiada. Entre os dias 21 e 23 de maio
as tropas legalistas invadem Paris, derrotando uma após a outra as pálidas frentes de
resistência que tentavam, inutilmente, barrar seu avanço. No dia 24 de maio o Comitê
Central abandona o Hotel de Ville, incendiado, enquanto o Cemitério Père Lachaise
se transforma no palco das derradeiras batalhas. Em 28 de maio a capital está
retomada e restituída à França, e a Comuna, esmagada. Sob o pretexto de que “Paris
não assinou a Convenção de Genebra e, portanto, não há porque respeitá-la”, Thiers
autoriza seus comandados a romperem com os acordos bélicos internacionalmente
estabelecidos poucos anos antes: atiram em ambulâncias e feridos, ferem e matam a
população civil, fuzilam sem julgamento. O saldo: 10 mil mortos e outros 20 mil
fuzilados sumariamente. A repressão, impessoal e burocraticamente organizada, só
cessou pelo temor de que os corpos, insepultos e espalhados pelas ruas, gerassem
focos epidêmicos a colocar em risco a salubridade da capital, já debilitada pelos

1
Apelo às grandes cidades. In.: LUQUET, P. (org.). A Comuna de Paris. Rio de Janeiro: Laemmert, 1969,
p. 97-99.
140

confrontos. Livrados da morte, outros 35 mil communards foram presos ou


deportados.2
Entre os exilados está Prosper-Olivier Lissagaray, o primeiro historiador da
Comuna, “um combate de vanguarda em que o povo, comprimido em uma luta
militar estudada, não pôde desenvolver suas idéias, nem suas legiões”, mas que deu
“aos trabalhadores consciência de sua força, traçou a linha bem nítida entre eles e a
classe devoradora, esclareceu as relações de classe com um tal brilho que a história
da Revolução Francesa iluminou-se e deve ser retomada pela base.”3

***

A derrota militar da Comuna de Paris não implicou seu esquecimento. Seu


legado tem sido objeto de reflexões e disputas, especialmente entre anarquistas e
marxistas, que reivindicam seu imaginário, sua herança e atualidade. 4 Os muitos fios
que a conectam aos eventos do último século onde sua memória se faz presente (a
ação dos anarquistas na Guerra Civil Espanhola ou o Maio de 68, por exemplo), se
reafirmam sua inquietante pertinência e contemporaneidade, reatam igualmente
aqueles pouco mais de 70 dias à temporalidade que a gestou e lhe fez o parto: o
século XIX.
Em um dos fragmentos das “Passagens”, Walter Benjamin afirma ser o
oitocentos um “espaço de tempo [Zeitraum]” e “(um sonho de tempo [Zeit-traum])

2
A historiografia sobre a Comuna de Paris é escassa no Brasil e desde o pequeno grande livro de
Horacio Gonzales pouca coisa foi produzida. Como não é minha intenção falar dela de um ponto de
vista factual nem, tampouco, fazer um balanço historiográfico, remeto aos textos de que me servi para
esse breve relato: GONZALES, Horacio. A Comuna de Paris: os assaltantes do céu. São Paulo: Brasiliense,
1989; BOITO JR., Armando (org.). A Comuna de Paris na história. São Paulo: Xamã, 2001; BARSOTTI,
Paulo; ORSO, P. J. (orgs.). A Comuna de Paris de 1871: história e atualidade. São Paulo: Ícone, 2002. Além
desses, recomendo particularmente o trabalho de Alexandre Samis, talvez o mais completo estudo
escrito por um historiador brasileiro: SAMIS, Alexandre. Negras tormentas: o federalismo e o
internacionalismo na Comuna de Paris. São Paulo: Hedra, 2011.
3
LISSAGARAY, Prosper-Olivier. História da Comuna de 1871. São Paulo: Editora Ensaio, 1991, p. 363.
4
Uma coletânea de textos sobre a Comuna, assinados por autores contemporâneos ou
imediatamente posteriores a ela, entre eles Marx e Bakunin, pode ser encontrada em: COGGIOLA,
Osvaldo (org.). Escritos sobre a Comuna de Paris. São Paulo: Xamã, 2002. Uma análise da produção do
imaginário e das disputas em torno à sua herança pode ser lida em: ROSS, Kristin. Communal luxury:
the political imaginary of the Paris Commune. New York: Verso, 2015.
141

no qual a consciência individual se mantém cada vez mais na reflexão, enquanto a


consciência coletiva mergulha em um sonho cada vez mais profundo”.5 Para o
pensador alemão, o apelo à razão e a ciência, a crença no progresso e a ampliação
das possibilidades advindas com o desenvolvimento tecnológico, se característicos
do período, não são suficientes para compreendê-lo. Porque se trata também de
seguir as “visões oníricas” que deram conteúdo e forma às experiências constitutivas
da modernidade oitocentista. E não para, de acordo ainda com Benjamin, reafirmar a
“oposição categórica entre sono e vigília”, mas justamente reconhecer a
indissociabilidade, em um mesmo regime de temporalidade, de dois registros apenas
aparentemente distintos da realidade. A perspectiva benjaminiana é, neste sentido,
basilar para compreendermos o caráter descontínuo das muitas insurgências que
escreveram parte da narrativa política do XIX. Século de revoluções que pretenderam
reorganizar o mundo politico, imprimindo outras e por vezes inusitadas direções às
instituições e práticas democráticas, o oitocentos foi também o período de desejos e
projetos utópicos que forneceram o seu combustível e ajudaram a moldar suas
feições.
Mas há algo de singular na Comuna de Paris. Herdeira tanto do pensamento e
das sensibilidades utópicas oitocentistas, especialmente aquelas gestadas em solo
francês (como o anarquismo de inspiração proudhoniana), quanto das experiências
revolucionárias que a antecederam (1789, 1830 e, principalmente, 1848), ela se
distingue particularmente destas últimas ao propor e experienciar uma forma de
política que pressupunha a destruição da própria política. Dito diferentemente, ao
propor outra forma de apropriação e gestão da polis, fundamentada na organização
social municipalista e autônoma e na possibilidade de superação do Estado pela
autogestão da produção social, a Comuna opõe, ao sentido burguês, um
entendimento de política como um lugar de radicalidade democrática e de gestão das
liberdades.

5
BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG/São Paulo: Imprensa Oficial, 2006, p.
434.
142

Em um pequeno texto escrito em 1950, Hannah Arendt define a política como


um lugar de aparecimento de rostos, multiplicidades, diferenças e intervalos.6 Rostos
porque a política não é feita de abstrações, mas de corpos que falam e agem.
Multiplicidades porque não se trata de homogeneizar os sujeitos políticos, mas de
fazer explodir singularidades – movimentos, desejos, ações singulares. A
multiplicidade faz aparecer as diferenças e os intervalos: a política faz-se também na
reciprocidade entre os diversos, que constituem relações naqueles interstícios – nos
intervalos ou nos “espaços entre os homens” – que os aproximam sem, por isso,
anular-lhes a diferença. “A política baseia-se no fato da pluralidade dos homens"; ela
deve organizar e regular o convívio de e entre diferentes, não de iguais. Razão
porque, para Arendt, o “sentido da política é a liberdade”. Poucos acontecimentos
podem reivindicar esse sentido de política ou aproximar-se dele. A Comuna
certamente sim.

Do romance gráfico a uma história gráfica

Adaptado do romance homônimo de Jean Vautrin e publicado originalmente


em quatro volumes, a graphic novel “Le cri du peuple”, com roteiro e arte de Jacques
Tardi, aparece na França entre os anos de 2001 e 2004. No Brasil, “O grito do povo”
foi editado em dois tomos no primeiro e segundo semestre de 2005,
respectivamente.7 Pouco familiar entre os leitores brasileiros, Tardi é um artista
conhecido e reconhecido em seu país de origem desde praticamente sua estreia no
universo das bandes dessinées, ainda na primeira metade dos anos 70 do século
passado. O sucesso consolidou-se com a série “Les aventures extraordinaires d’Adèle
Blanc-Sec”, publicada a partir de 1976.
Temas e acontecimentos históricos são uma constante em sua obra, mais
visíveis naqueles títulos, por exemplo, que tratam da Grande Guerra (1914-1918), tais
como “Putain de guerre” (com roteiro de Jean-Pierre Verney) ou “C’était la guerre

6
ARENDT, Hannah. O que é política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p. 12.
7
VAUTRIN, Jean e TARDI, Jacques. O Grito do Povo – os canhões de 18 de março (tomo 1) e O Grito do
Povo – o testemunho das ruínas (tomo 2). São Paulo, Conrad Editora do Brasil, 2005.
143

des tranchées”8, de 1993 e 2009, respectivamente. Mas mesmo em Adèle Blanc-Sec


a história é o pano de fundo em narrativas que exploram, visualmente, elementos da
cultura, da sociedade e da arquitetura principalmente parisiense entre o fim da belle
époque e o início dos “anos loucos” – as aventuras de Adèle se passam 1911 e 1922. As
histórias que Tardi nos conta se caracterizam, entre outros elementos, pela
cuidadosa atenção aos detalhes (datas, lugares, ruas, coisas) e a presença, em cena,
de rostos e nomes comuns e anônimos, alçados não raro à condição de
protagonistas. Nas narrativas sobre a Grande Guerra somos levados às trincheiras,
onde semblantes amedrontados, cansados e traumatizados, e corpos impotentes e
fragilizados, quando não mutilados pela guerra, reinscrevem no presente, em um
jogo de escalas que aproxima e afasta o olhar do leitor, o horror e a barbárie das
batalhas.
Esse equilíbrio entre a autonomia do traço e a importância da composição
mimética, esse “trabalho de artesanato das palavras e das imagens”, Tardi o constrói
em um esforço paciente e meticuloso de investigação documental. 9 Se de suas
páginas emergem figuras impregnadas de uma ambientação histórica
cuidadosamente reconstituída, tal reconstituição é fruto de uma imaginação
poderosa informada pela coleta e o exame atento de uma documentação vasta e
diversa – croquis, fotografias, antigos atlas e mapas de Paris, jornais de época,
cartazes publicitários... Seu traço e escrita, tornados e tomados como referências
icônicas de tempos pretéritos, são mediados por representações já existentes desse
mesmo passado, uma “operação gráfica” que abre novas chaves de leitura e
compreensão das experiências e acontecimentos históricos.
Não é diferente em seu trabalho sobre a Comuna. Parte significativa das
imagens de “O grito do povo” recriam o ambiente das ruas, assembleias, reuniões e
batalhas a partir de uma rica documentação produzida pela própria Comuna. Neste
sentido, Tardi foi auxiliado pelos próprios communards, pródigos na produção de sua

8
Apenas a segunda tem uma edição brasileira: TARDI, Jacques. Era a guerra de trincheiras – 1914-1918.
Belo Horizonte: Nemo, 2012.
9
ALARY, Viviane. Tardi, sa marque, son souffle. MEI, nº 26 (Poétiques de la bande dessinée), 2007, p. 71-
88.
144

memória a partir de registros, visuais e escritos, daqueles tempestuosos dias.


Durante os pouco mais de dois meses da Comuna, cerca de 400 cartazes foram
impressos, em tiragens que ultrapassaram, alguns deles, 6 mil exemplares. A
quantidade distribuída e o conteúdo impresso variavam de acordo com a destinação,
que levava em conta grupos e categorias profissionais com quem o Comitê Central
pretendia comunicar-se, além da divisão administrativa (arrondissement) e os bairros
onde eles seriam fixados, já que nestes a recepção e a interação com a Comuna
variavam do engajamento militante e entusiasmado à franca e aberta hostilidade.10
A Comuna pretendeu igualmente uma radical transformação na produção
estética. Animada principalmente pela liderança de Gustave Courbet, a Federação
dos Artistas almejava assegurar a integridade do patrimônio artístico parisiense e,
articulando-o ao presente, fazer nascer uma arte engajada coerente à ordem
revolucionária. Para tanto, propunha a gestão da arte pelos próprios artistas, além
de desenvolver ações que colocassem museus, bibliotecas, espaços e eventos
artísticos à serviço da população, ocupando e utilizando lugares públicos tais como
praças, parques e jardins para a realização de exposições, recitais, peças de teatro e
concertos musicais.11 A brevidade da Comuna e as urgências políticas e militares de
seus derradeiros dias, principalmente, limitaram não apenas a consolidação das ideias
da Federação, mas também a produção de seus artistas, especialmente aqueles
ligados às linguagens plásticas, aparentemente mais empenhados em discutir a “arte
política” e uma “política para a arte” que, necessariamente, produzi-la.12 Em que pese
a presença de nomes expressivos entre os pintores engajados ou simpatizantes da
Comuna – além de Courbet, fizeram parte da Federação dos Artistas, entre outros,

10
ARTIÈRES, Philippe. La police de l’écriture: l’invention de la délinquance graphique (1852-1945). Paris:
La Découverte, 2013, p. 33-37.
11
SAMIS, Alexandre. Negras tormentas..., p. 298-302.
12
O historiador Bertrand Tillier defende que, além do pouco tempo e das demandas políticas de
emergência, a mobilizar a energia e a atenção dos artistas, outras razões corroboram para a escassez
da produção plástica sobre a Comuna produzida a partir e no interior dela. Para Tillier, que a define
como um “não-objeto artístico”, os artistas falharam ao representar o evento, uma falta que boa parte
da historiografia reproduziu. De acordo com ele, tão fundamental para entender tal lapso, foram a
censura institucional e a autocensura dos próprios artistas; o esquecimento da Comuna como
condição para a anistia aos communards em 1881; e a a museificação de sua memória por parte da
esquerda francesa. Cf.: TILLIER, Bertrand. La Commune de Paris, révolution sans images? Politique et
représentations dans la France républicaine (1871-1914). Paris: Champ Vallon, 2004.
145

Armand Gautier, Honoré Daumier e Edouard Manet –, a produção pictórica é escassa


frente a outros registros visuais, tais como desenhos, caricaturas e fotografias.

***

Sob esta perspectiva, portanto, o empreendimento de construção de um


imaginário sobre a Comuna foi principalmente verbal. “O grito do povo” ocupa, nesta
tradição, um lugar singular. Adaptado de um romance, de quem preserva elementos
da narrativa e o nome, ao transpor a linguagem literária para os quadrinhos, Tardi não
apenas adapta o texto original, inventa outro. Vale-se para tanto da confluência entre
imagem e palavra, uma das características centrais da “arte sequencial”; de um hábil
uso dos códigos ideogramáticos dos quadrinhos (diferentes planos e
enquadramentos; desenhos simbólicos que representam movimentos, sons e
reações emocionais; etc...), recurso que permite inúmeras combinações e arranjos
narrativos; bem como criativas disposições dos quadros na página. Muitas das
sequências foram criadas por Tardi a partir de imagens de época, como o mapa de
Paris que identifica os lugares onde ocorreram as principais batalhas da Comuna; a
recriação das ruas, parques e praças da capital; ou ainda alguns quadros de
ajuntamento popular claramente retirados dos registros fotográficos da Comuna.
Outros recriam figurativamente acontecimentos emblemáticos da Comuna:
ainda no primeiro volume, a panorâmica de Montmartre, com os canhões dos
communards alinhados “vigiando” a cidade do alto. Uma visão ampla do Hotel de Ville
nos é oferecida em três momentos, e funcionam também como um recurso para
marcar narrativamente mudanças significativas na trama: no primeiro volume, em
página inteira, antes de adentramos suas salas e corredores e esbarrarmos no vai-e-
vem de personagens que circulam por elas; no segundo, em página dupla, cercado
pela multidão, no dia 28 de março, data em que a Comuna é oficialmente
proclamada.13 O mesmo recurso é utilizado logo no começo do quarto e último

13
Respectivamente em: TARDI, Jacques. Os canhões do 18 de Março (vol. 1), p. 70; A esperança
assassinada (vol. 2), p. 116-117.
146

volume, que se abre para a cena a um só tempo trágica e espetacular de uma Paris
em chamas, com o Hotel de Ville em primeiro plano a prenunciar a derrocada final da
Comuna.14 Esta é figurada em sequências onde o leitor tem, paulatinamente, o olhar
sitiado pelas tropas de Versalles até a batalha final, nos muros do Père Lachaise, onde
tombaram fuzilados os últimos revoltosos.
Sem prejuízo à narrativa de reconstituição histórica, Tardi coloca lado a lado
personagens ficcionais e lideranças da Comuna, participando uns e outros da
efervescência política, dos debates e enfrentamentos públicos, lutando, resistindo e
morrendo nas batalhas. Assim, ao mesmo tempo em que acompanhamos,
cronologicamente, a sequência de eventos que vão da proclamação da Comuna ao
seu aniquilamento, ou vemos saltar das páginas uma reconstituição precisa das ruas
e barricadas, das movimentações e agitações políticas, das quase sempre
tumultuadas assembleias, dos cartazes e comunicados fixados nos muros da cidade,
das chamas que consumiram o Hotel de Ville e das sangrentas batalhas de maio,
somos apresentados a um conjunto de personagens – o inspetor Hippolyte
Barthélemy; o subchefe de polícia Horace Grondin; o serralheiro e arrombador Fio de
Ferro; o militar Antoine Tarpagnan; a prostituta Gabriella Pucci, a Caf’Conc’ – e suas
intrigas folhetinescas de amores inconclusos, crimes, traições e vinganças. As suas
trajetórias se cruzam com as de Gustave Courbet, Jules Vallès ou Louise Michel, por
exemplo. A referência a acontecimentos e pessoas reais é parte constitutiva
fundamental do universo ficcional de “O grito do povo”. Um exemplo, entre outros:
a prostituta Gabriella é a modelo de Courbet para “A origem do mundo”, exibida pelo
artista a dois amigos – o fotógrafo Théophile Mirecourt e Tarpagnan – como se
pintada nos dias inaugurais da Comuna. 15 A organização dos acontecimentos e
personagens, segundo Éric Fournier, aproximam Tardi das correntes historiográficas
mais contemporâneas. Ainda que de maneira não intencional, ele constrói um enredo
a partir de perspectivas muito próximas às da micro história, da história das

14
TARDI, Jacques. O testamento das ruínas (vol. 4), p. 92-93.

15
TARDI, Jacques. Os canhões do 18 de Março (vol. 1), p. 57. O quadro, parte do acervo do Musée
D’Orsay, em Paris, foi pintado em 1866. Apesar de algumas especulações, não se sabe ao certo quem
serviu de modelo a Courbet.
147

representações ou da “história vista de baixo” de inspiração anglo-saxã, ao


reconstituir atenta e cuidadosamente, junto com os eventos políticos e as cenas de
batalhas, as paisagens sensíveis e as práticas cotidianas dos parisienses insurrectos.16
De um ponto de vista mais especificamente literário, Tardi forja uma trama
intertextual ao brincar com diferentes gêneros, e o zelo quase obsessivo com a
facticidade histórica é emoldurado em uma narrativa que flerta abertamente com o
romance folhetim e os fait divers. A graphic novel inicia com uma cena noturna,
datada de 17 de março: a retirada, do Sena, do corpo de uma jovem assassinada dá
início a uma intriga policialesca que permeia toda a obra. Mas é também uma espécie
de prólogo à história da Comuna, que se inicia algumas páginas depois, com um
simples registro (“18 de março de 1871, 2 horas da manhã”) que antecede o quadro
em que um parisiense anuncia, aos gritos, que “Os soldados invadem a colina!”.
Algumas horas depois, o Comitê Central declara Paris em estado de sítio e convoca
os cidadãos às eleições comunais. 17 Na última página de cada capítulo, Tardi reprisa
elementos da história, endereçando ao leitor uma série de questões que anunciam
seus desdobramentos sem, no entanto, revelar seu conteúdo – outra estratégia
narrativa tipicamente folhetinesca que, ao colocar o leitor em compasso de espera
(“Você saberá lendo a segunda parte desta história” ou “Você saberá tudo isso lendo
o segundo volume da história”), incita a continuidade da leitura e permite ao artista
desenvolver sua escrita a partir de um “vasto campo de possibilidades e acidentes,
de interrupções e imprevistos, de inflexões e bifurcações”. 18
Ao aproximar o “histórico” e o “ficcional” até a dissolução de suas fronteiras,
Tardi realiza uma operação de seleção e combinação de elementos do passado que
não pretendem apenas sua representação (no sentido de re-apresentar, de

16
FOURNIER, Éric. Tardi et la Commune de 1871 à travers Le Cri du peuple: roman graphique ou histoire
graphique?, Sociétés & Représentations 2010/1 (n° 29), p. 51-64.
17
A vitória de 18 de Março. In: LUQUET, P. (org.). A Comuna de Paris..., p. 57-58.
18
TILLIER, Bertrand. Tardi, de l'Histoire au feuilleton. Sociétés & Représentations, 2010/1 (n° 29), p. 7-
24. Na apresentação que escreve à obra de Tardi, Jean Vautrin, autor do romance, faz referência
indireta ao gênero folhetim ao afirmar, sobre sua intenção ao escrever “O grito do povo”: “Eu quis
embarcar o leitor no labirinto das ruas daquele 18 de março de 1871 e fazê-lo circular numa Paris
misteriosa como a de Victor Hugo, social como a de Eugène Sue e fervilhante como a Londres de
Charles Dickens”.
148

presentificar uma ausência por um símbolo que a representa e substitui). Sua arte
intenciona (e tensiona) a repetição da realidade como um “ato de fingimento”, na
definição de Wolfgang Iser: “como a irrealização do real e a realização do
imaginário”.19 Isto significa, entre outras coisas, o deslocamento da “ficção como
representação para a ficção como intervenção”20, permitindo ver dados do mundo
empírico por uma ótica outra, de forma diversa do que é; um “ato de transgressão”,
ainda segundo Iser. No caso de “O grito do povo”, tal ato – o de atribuir aparência de
realidade ao mundo, penetrando e agindo nele –, é duplamente transgressor. De um
lado, ao “fingir” a realidade, repetindo-a, revela possibilidades que servem à
produção de outros mundos possíveis, ao fazer aparecer finalidades que não
pertencem a realidade repetida. E o faz com o recurso a uma forma narrativa, a dos
quadrinhos, que embora não prescinda inteiramente da linguagem verbal é,
fundamentalmente, imagética. A intenção não é oferecer da Comuna, a exemplo da
historiografia acadêmica, uma narrativa “realista”. Mas pela imagem oferecer, ao
leitor, uma narrativa que não sendo real, ainda assim existiu ou pode ter existido no
real.21

Tempo e espaço da revolta

Mas a obra de Tardi é transgressora também ao ficcionalizar o passado por


meio de uma narrativa tida ainda como menor, os quadrinhos, mesmo que em um de
seus gêneros considerado artística e narrativamente mais complexo, a graphic novel.

19
ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Rio de Janeiro:
Eduerj, 2013, p. 34.
20
ISER, Wolfgang, O fictício e o imaginário..., p. 223.
21
Ainda que essa discussão deva muito a uma teoria do ficcional derivada de Iser, me sirvo também da
distinção proposta por Jacques Aumont entre “efeito de realidade” e “efeito do real”. Segundo
Aumont, o “efeito de realidade designa, pois, o efeito produzido no espectador pelo conjunto de
índices de analogia em uma imagem representativa (quadro, foto ou filme, indiferentemente). (...) O
efeito de realidade será mais ou menos completo, mais ou menos garantido, conforme a imagem
respeito convenções de natureza plenamente histórica”. Já o “efeito do real (...) designa assim o fato
de que, na base de um efeito de realidade suposto suficientemente forte, o espectador induz um
“julgamento de existência” sobre as figuras de representação e atribui-lhes um referente no real. Ou
seja, o espectador acredita, não que o que vê é o real propriamente, mas, que o que vê existiu, ou pode
existir, no real”. Cf.: AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas: Papirus, 1993, p. 112-113.
149

Arte que incorpora e reinventa criativamente elementos da literatura, do cinema, da


pintura, da fotografia e do design, entre outros, as histórias em quadrinhos se
caracterizam também pelo seu caráter de “massa”. Os quadrinhos pertencem à
cultura industrial, e em grande medida esse pertencimento – esse “pecado original”,
nas palavras de Santiago García – é condição fundamental para compreender seu
funcionamento e alcance principalmente nas sociedades urbanas contemporâneas.
Embora seu surgimento e popularização remontem ao século XIX, é com o
aparecimento das primeiras revistas, já nos de 1930, que as narrativas gráficas se
consolidam principalmente entre o público leitor mais jovem. O desenvolvimento de
uma produção serializada e a consolidação de um “mercado de quadrinhos”, no
entanto, coincide com o pós-guerra e a solidificação de uma indústria cultural que
criou novos e mais diversificados mecanismos de circulação de seus produtos. Nesse
mercado, os quadrinhos gozam de uma condição privilegiada, pois sua circulação é
facilitada pela multiplicidade de linguagens e formatos com que se apresenta, lhe
permitindo circular igualmente por meios e suportes tão distintos como as páginas
dos jornais e a web, editoras mainstream como Marvel e DC e produções alternativas
e undergrounds.
À expansão mercadológica correspondeu outra, a narrativa. Embora o termo
graphic novel tenha se difundido principalmente a partir dos anos de 1970, seu
aparecimento é anterior, remontando pelo menos às duas décadas precedentes,
embora em sentido distinto daquele que se popularizou, principalmente, com o
trabalho de Will Eisner, nos Estados Unidos. A sua repercussão e consolidação
mobilizou inclusive as duas grandes editoras americanas, DC e Marvel, que ao longo
dos anos de 1980 lançaram séries ou histórias com seus principais personagens –
Batman e X-Men, por exemplo – em formatos e com conteúdos diferenciados.22 Além
de uma maior complexidade visual os “romances gráficos” se diferenciam dos

22
GARCÍA, Santiago. A novela gráfica. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 17-38. Os pesquisadores
brasileiros Paulo Ramos e Diego Figueira problematizam o uso do termo graphic novel, segundo eles
imerso em uma “aparente zona nebulosa sobre do que realmente se trata: uma forma moderna de
como produzir quadrinhos, um gênero destes ou ainda algo mais?”. Cf.: RAMOS, Paulo; FIGUEIRA,
Diego. Graphic novel, narrativa gráfica, novela gráfica ou romance gráfico? Terminologias distintas
para um mesmo rótulo. In: RAMOS, Paulo; VERGUEIRO, Waldomiro; FIGUEIRA, Diego. Quadrinhos e
literatura: diálogos possíveis. São Paulo: Criativo, 2014, p. 185-207.
150

formatos mais tradicionais, também, por uma nova e singular relação com o tempo,
segundo Català Domènech. Para o pesquisador espanhol, em um processo
comparável às mudanças na narrativa cinematográfica com a passagem dos rolos de
curta para os médias e longas metragens, novos experimentos formais e uma maior
densidade narrativa foram incrementados com a consolidação das graphic novels: ao
ampliarem o tempo da narração, elas permitiram igualmente uma maior
complexidade temática, denotada pelo acúmulo narrativo. De acordo com
Domènech: “Para que exista acumulação, densidade, é necessário poder pensar de
antemão um tempo amplo. (...) Isso só acontece quando há espaço para agrupar as
cenas e criar sequências. O espaço da sequência é o do tempo complexo, e portanto
o da formação complexa das ideias e emoções”.23
Particularmente no caso de “O grito do povo”, essa relação com o tempo se
constrói de diferentes maneiras. Primeiramente, a própria extensão da obra, que se
desenvolve ao longo de quatro tomos – dois, na edição brasileira –, duas centenas de
páginas e dezenas de personagens e acontecimentos, reais e fictícios – a
proclamação da Comuna, as primeiras eleições, a queda da Coluna de Vendôme –,
que se cruzam ao longo da trama. Há ainda a facticidade da Comuna, a delimitar sua
abordagem episódica. Sobre ela, e como para melhor balizá-la, Tardi introduz,
principalmente na parte final de seu romance – na edição brasileira, o segundo
volume – uma série de signos que pontuam temporalmente o seu avanço em direção
ao desfecho trágico da Comuna (“Sábado, 20 de maio”; “Quarta-feira, 24 de maio, 3h
da manhã”; “Sexta-feira, 26 de maio”), com a derrota militar para as tropas de
Versalles.

***

Em seu ensaio sobre a insurreição spartakista na Alemanha do começo do


século XX, Furio Jesi estabelece uma distinção entre as experiências da revolução e

23
DOMÈNECH, Josep M. Català. A forma do real: introdução aos estudos visuais. São Paulo: Summus,
2011, p. 232.
151

da revolta. Segundo o pensador italiano, ela não se encontra em seus fins – uma e
outra podem ter como objetivo a tomada do poder, por exemplo. O que as distingue,
para Jesi, são diferentes experiências de tempo. Se a revolução está “entera y
deliberadamente inmersa en el tiempo histórico”, a revolta “suspende el tiempo
histórico e instaura de golpe un tiempo en el cual todo lo que se cumple vale por sí
mismo, independentemente de sus consecuencias y de sus relaciones com el
complejo de transitoriedade o de perennidad en el que consiste la história”. 24 Se a
revolução é um complexo estratégico de movimentos coordenados, orientados para
o longo prazo e com objetivos finais claros e definidos, com a revolta comprometem-
se deliberadamente homens e mulheres que desconhecem inteiramente as
estratégias em jogo, bem como as consequências de suas ações. Não há um inimigo,
mas adversários convertidos em inimigos a serem combatidos com “el fusil, el bastón
o la cadena de bicicleta”. E toda vitória, por momentânea e parcial, se converte em
um “acto justo y bueno para la defensa de la libertad, la defensa de la propia clase, la
hegemonía de la propria clase”.
Sem renunciar a sua individualidade, anulando-se no todo homogêneo que
compõem as massas revolucionárias, os insurrectos constroem ao longo das batalhas
novos sentidos de comunidade. Não apenas porque compartilham armas, obstáculo
e inimigos, mas também porque partilham os símbolos de sua revolta, tais como o
tempo, e o fazem imersos em uma espacialidade igualmente específica e comum.
Assim como com o tempo histórico, em sua relação principalmente com o espaço da
cidade, a revolta constrói uma relação singular: no gesto insurrecional, nela inscreve-
se o sentido de algo que é a um só tempo próprio (porque a cidade pertence a quem
nela vive) e comum (porque ela também pertence aos “outros” que a habitam). Se
“a la hora de la revuelta, dejamos de estar solos en la ciudad”, é nas batalhas, ainda
segundo Jesi, que tal sentido é tecido. Ao eleger o espaço urbano como locus
privilegiado, os revoltosos dele se apropriam “huyendo o avanzando en la alternancia

24
JESI, Furio. Spartakus: simbologia de la revuelta. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2014, p. 63.
152

de los ataques”, uma experiência de reconhecimento que é também a de partilha da


cidade.25
Apesar do debate em torno à Comuna insistir, não sem certa razão, em sua
inserção na longa e rica tradição revolucionária do século XIX, “O grito do povo” não
hesita em figura-la como uma revolta. Nesse sentido, a própria disposição
cronológica dos acontecimentos, o desenrolar da trama marcado pelo registro dos
dias e meses (e às vezes também horas) no canto superior da página, não cumpre
uma função exatamente objetiva. Mesmo quando anotação de eventos significativos
na construção da experiência comunarda, tal registro circunscreve a Comuna em uma
temporalidade específica, uma historicidade própria em sua relação seja com o
passado ou o futuro, um e outro atravessados pela emergência do presente. Nessas
ocasiões quem fala é uma voz onipresente, mas não onisciente: o narrador partilha
com os communards suas alegrias e expectativas, suas ansiedades e temores. As duas
páginas que narram, em quatro quadros, a eleição e instalação da Comuna em 26 de
março, por exemplo, registram em sucintas vinhetas sobrepostas às imagens da
multidão que desfila pelas ruas de Paris, que

O povo votou. Os Parisienses, agentes do triunfo de suas ideias, exprimiram nas urnas
seu desejo de uma mudança banhada de luz. Tudo corria bem com a Comuna. Ela tinha
as cores da liberdade e desabrochava no respeito aos mais necessitados. Ela se exprimia
pela boca da classe operária, que se tornava adulta. E, já que tudo devia ser reaprendido,
ela produziria um novo cidadão. Um juiz. Um resistente. Um agende sua própria força. A
instalação da Comuna em 26 de março não se deu conforme a cerimônia e o fausto de
um Antigo Regime. Ela foi republicana. Valente. Espontânea. Sedutora como uma risada
feliz. Não havia divisão em seu interior. Era uma explosão vermelha. A Comuna era o
agrupamento dos infelizes, dos banidos pela especulação, dos explorados das fábricas,
dos habitantes da periferia e da grande massa dos pobres26.

Nenhuma menção à ofensiva dos exércitos francês e prussiano que, dali a


algumas semanas, aniquilará a resistência parisiense e que, naqueles dias, já estava a
ser gestada por Thiers. As primeiras referências às batalhas entre communards e as
tropas de Versalles só aparecem no começo do terceiro volume, quando o traço de

25
Idem, p. 70-73.
26
TARDI, Jacques. A esperança assassinada (vol. 2), p. 112-113.
153

Tardi ilustra as primeiras e violentas baixas nas fileiras rebeldes. Sobrepondo as


narrativas verbal e visual, lançando mão de documentos e registros históricos, ao
mesmo tempo em que dá continuidade à trama folhetinesca que atravessa todo o
romance, ele introduz o tema da derrocada final da Comuna por meio da reprodução
de um comunicado do Comitê de Salvação Pública datado de 22 de maio, onde se lê:
“Que todos os bons cidadãos se levantem! Às barricadas! O inimigo está em nossos
muros! Sem hesitação! Avante pela República, pela Comuna e pela Liberdade! ÀS
ARMAS!”.27 E embora nós, leitores, saibamos que esse será o início do fim, a narrativa
mantém em suspenso o desfecho: os communards não sabem, não podem saber, que
ao final os aguarda a derrota, a morte, a prisão e o exílio.
É a da história a voz que narra o processo de construção da Comuna, segundo
Viviane Alary.28 À medida, no entanto, que a Comuna se aproxima de seu fim, ela á
paulatinamente substituída pela presença e a voz de personagens comuns; ao
contarem sua trajetória pelos escombros de uma Paris tornada ruínas, dão
testemunho do fim trágico da própria Comuna. 29 Como já ficou claro, a presença da
“gente comum” não se restringe às páginas e episódios derradeiros de “O grito do
povo”. Rostos, anônimos ou não, de personagens fictícios estão presentes em toda
a trama, dividindo suas páginas – como mencionado anteriormente – com os de
Louise Michel, Vallès e Courbet, entre outros, circulando pelas ruas da capital tornada
comuna, se apropriando de seus espaços e devolvendo à cidade seu caráter livre e
profano.30 A multidão e a cidade ocupam lugar central na trama, ambas retratadas
em tons que captam sua potência libertária: o olhar que Tardi lança sobre a Comuna
de Paris, não esqueçamos, é informado pela solidariedade e o reconhecimento de sua
pertinência passada e sua incômoda atualidade presente. Por isso a estética e a

27
TARDI, Jacques. As horas sangrentas (vol. 3), p. 45.
28
ALARY, Viviane. Tardi, sa marque, son souffle..., p. 85.
29
É o personagem Ziquet quem afirma a Lili, em diálogo travado no interior de um dos mausoléus do
Père Lachaise, que a “Comuna está acabada”. Cf. TARDI, Jacques. O testamento das ruínas (vol. 4), p.
158.
30
De acordo com Andrea Cavalletti, a partir de uma das notas de Benjamin nas “Passagens” – mas que
repercute também o conceito de revolta já presente em Jesi –, se “a classe e suas lutas exigem uma
ordem temporal completamente nova”, este novo tempo “muda também completamente o espaço”.
Cf.: CAVALLETTI, Andrea. Classe: uma ideia política sob o signo de Walter Benjamin. Lisboa: Antígona,
2010, p. 127-128.
154

história, ainda que assentadas sobre bases relativamente “realistas”, não


preconizam o distanciamento “objetivo” de seus personagens. Ele não pretende, em
relação ao passado, tomá-lo como coisa morta para simplesmente explicá-lo. A
intenção é fazer aparecer as potências libertárias de uma experiência única como a
da Comuna, desenclausurar e liberar aquilo que nela ainda nos é contemporâneo,
notadamente a urgência da revolta contra toda forma de opressão.
Analisando as fotografias dos communards mortos e ainda insepultos, expostos
em seus caixões logo após a retomada de Paris pelas forças da ordem, Didi-Huberman
nos chama a atenção para o risco de nos enganarmos com essas imagens se as
tomarmos a partir da intenção primeira que tiveram, as autoridades francesas, ao
registrá-las. Se o objetivo era, com elas, tornar perene a impotência da Comuna ao
enfrentar o Estado e seu aparato bélico, o historiador francês afirma, a partir delas,
que “su potencia no cesa cuando fracasa su acceso al poder. Es lo que les pasa a los
comuneros muertos em 1871: su revolución fracasó, sin duda, pero su comunidad
sigue afirmándose con vigor hasta en la reunión – indeleble en nuestra memoria – de
esos doce ataúdes encuadrados por el fotógrafo”.31 O último quadro de “O grito do
povo” reitera essa potência. Nele, braços erguidos, Lili e Ziquet, sobreviventes das
batalhas e do massacre comandado por Thiers, respondem à “pacificação” de Paris
e a vitória da repressão estatal: “Você sabe o que disse Blanqui?” “NEM DEUS! NEM
MESTRE!”.

31
DIDI-HUBERMAN, Georges. Pueblos expuestos, pueblos figurantes. Buenos Aires: Manantial, 2014, p.
101.
155

POÉTICAS DA ARTE E DO PENSAMENTO


156

Incorporação: corpo e política nos anos 60/701

Celso Favaretto

As figurações e efeitos de um imaginário corporal que adquiriram visibilidade


nas atividades artísticas brasileiras a partir do anos finais da década de 60,
estendendo-se aos anos 702, realizaram uma necessidade implícita nos
desenvolvimentos da vanguarda brasileira. Esta necessidade se cumpriu no âmbito
da exigência, imperativa, desses desenvolvimentos: a invenção de novos modos de
explicitação da dimensão política nas artes, distintos daqueles que foram prioritários,
antes e depois do golpe de 64, que implicavam os modos de entendimento da
fundamental categoria de “participação” – a categoria ética-estética com destaque
no período. De um lado, a participação enfatizava o envolvimento do espectador,
interessando na eficácia imediata de ações que resultassem em conscientização; de
outro a explicitação indireta do político como efeito das necessidades experimentais.
No primeiro caso, tais ações, disparadas pela conjugação dos efeitos de
denúncia e exortação, às vezes com algum distanciamento, visavam à consecução da
utopia de emancipação social; proximamente, da resistência à ditadura. É o caso da
chamada canção de protesto e de encenações, como as do Teatro de Arena, em que
o corpo impõe-se, em postura hierática, na linha do teatro “sempre de pé”, de apelo
à conscientização e à ação. Por outro lado, a desconfiança nestas ações imediatas
originaram proposições táticas, típicas da arte de guerrilha , como encenações do
Teatro Oficina em que a conjugação de forma artística e crítica social compunham
relações ambivalentes entre efeitos de distanciamento e imersão nos rituais do
corpo, explorando assim outras modalidades de participação, que despertassem o

1
Texto apresentado no II Simpósio de História e Arte – “Narrativa e Subversão”, UFPR, Curitiba, em
28 maio 2015
2
cf. CÁMARA, Mario. Corpos pagãos: usos e figurações na cultura brasileira (1960-1980), trad. Luciana di
Leone. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014, p. 9.
157

público adormecido, em que o político viria como efeito de uma crítica que corroía as
representações constituídas, polarizadoras, quando não maniqueístas.
Ao se rastrear acontecimentos artístico-culturais surgidas entre 1965 e 68 –
que, exemplares, mobilizaram imagens cheias de paixão, fervor e radicalidade, na
efetivação do imbricamento de experimentação e política, cujos efeitos se
estenderam até meados dos anos 70 –, tem-se em vista apreender a reconfiguração
das posições artísticas que tensionaram o período com valor de sintoma; isto é: que
dando forma à irrupção cultural em curso, manifestaram os sinais que, diferencias,
de-semantizavam os discursos instituídos, visando, voluntariamente ou não, o
levantamento dos recalques históricos e estéticos, fazendo a travessia das forças
excêntricas em conflito – um vento, uma brisa que varria o espaço das
representações político-culturais operantes naquela situação.
Nesses acontecimentos, o corpo vira personagem conceitual, como sintoma de
uma nova experiência que estava vindo. Nas artes, na política e nos comportamentos
esta nova experiência teve nos anos 1967-68 o seu ponto de definição, e nos anos
seguintes adquiriu outras figurações, inclusive com desdobramentos originais a partir
de 1969, como os que surgiram sob o signo da experiência contracultural, da “nova
consciência” ou da “nova sensibilidade” em que as palavras-signos “desbunde” e
“curtição” funcionavam como imagens emblemáticas de uma vida liberada sob o
signo da disponibilidade e do prazer, livre das constrições da razão ocidental, na
política, na cultura, nos comportamentos . Estas, foram adquirindo espaço nos
rastros dos acontecimentos anteriores, amplificada pela circulação de informações
que chegavam ao país, referidas às experiências contraculturais do underground
norte-americano e pela divulgação de autores erigidos em referência dos novos
comportamentos, como Marcuse, Reich, Norman Brown e no Brasil Luiz Carlos
Maciel. Também, tais desdobramentos vieram nos rastros dos desenvolvimentos
recentes no Brasil da psicanálise, de variadas terapias e modalidades de expressão
corporal, no imbricadas em algumas na vertente de terapias corporais; a
disseminação das drogas, do rock, da renovação dos costumes e práticas das relações
pessoais, do feminismo e da sexualidade aberta.
158

O núcleo dessas transformações esteve na explicitação, no Brasil e em toda


parte, da conjugação de arte e vida, processo que vinha informando as artes desde o
romantismo, emblematizado no desregramento de todos os sentidos, de Rimbaud.
Walter Benjamin, como se sabe, ao pensar o sentido político do surrealismo,
considerou que esta conjugação aparecia como a exigência de capturar as forças do
êxtase para a revolução, ideia muito apropriada para se entender algumas das
propostas artísticas no Brasil daquele tempo, especificamente segundo a
consideração de que o corpo aparecia como desviante político.
Nos anos 1967-68 ocorreu, como já foi bastante estudado, um afluxo de
propostas, experiências e talentos, responsáveis pela configuração de uma ampla
atividade de vanguarda, com a convergência de projetos e tendências em
desenvolvimento nas diversas áreas artísticas desde o início da década – mais
precisamente, desde o final de 1964 e inícios de 65, quando os artistas, depois do
choque e da retração provocados pelo golpe de 1964, voltaram a “opinar”, artística
e politicamente, compondo a renovação das linguagens, em que o corpo aparece
pela primeira vez explicitamente na composição das imagens alusivas ao contexto
sócio-político.
Essas atividades confluíam na necessidade, que se impunha, de fazer a crítica
da “realidade brasileira” e de articular a resistência política face às restrições do
regime militar. Mas, antes de tudo, tratava-se de levar adiante o trabalho de
renovação que vinha impulsionando o desejo de modernidade artístico-cultural,
desde a década de 1950. Em 1967-68 apareceram: o filme Terra em Transe, de Glauber
Rocha, as encenações de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade e de Roda Viva, Chico
Buarque de Holanda, por José Celso Martinez Corrêa no Teatro Oficina, o projeto
ambiental Tropicália, de Hélio Oiticica, instalado na exposição Nova Objetividade
Brasileira, a música tropicalista do Grupo Baiano e a “epopeia” PanAmérica, de José
Agrippino de Paula. Em outra direção, não menos importante, as atividades do Teatro
de Arena, com as encenações de Augusto Boal, especialmente Arena conta
Tiradentes, diretamente comprometida com a participação política imediata,
159

tematizando a participação do povo, entidade histórica emblemática da arte


engajada, como, aliás, a canção de protesto.
É importante acentuar que se havia uma espécie de unanimidade quanto à
compreensão da necessidade de resistência à ditadura, as propostas e ações
distinguiam-se quanto aos modos de articular a significação política, nas estratégias
específica que articulavam experimentação e participação, engajamento e
desmistificação das ilusões quanto aos poderes da arte. No amplo espectro dessas
atividades, alguns artistas – Nelson Leirner, Marcelo Nitsche, Rubens Gerchman,
Antonio Dias, Carlos Vergara, Roberto Magalhães, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Lygia
Pape, Antonio Manuel, etc. –, efetuaram de modos diversos a passagem da obra ao
objeto, às ambientações, acontecimentos, ressaltando com ênfase crescente a
corporeidade como elemento intrínseco à tônica processual e conceitual em
evidência em toda a arte contemporânea. Neste processo de incorporação importa
também assinalar o crescente surgimento de obras de mulheres-artistas, com a
marca da produção de gênero sob a perspectiva do feminismo, como é o caso, não
só de trabalhos das Lygias, também de Anna Maria Maiolino, Regina Vater, Iole de
Freitas, Sonia Andrade, Wanda Pimentel, Thereza Simões, por exemplo.
No teatro, especialmente em O rei da vela e Roda viva e mais tarde, como “Na
selva da cidade”, com maior radicalidade, com Gracias Senõr, – a violência da arte, a
destrutividade, articulam táticas visando a mudanças na eficácia política do teatro,
rompendo as ligações costumeiras com o público, violentando-o: um teatro da
crueldade e da agressão, do absurdo brasileiro; teatro anárquico, cruel, da grossura;
das sensações, do prazer e da dor. Fato também patente nas encenações posteriores
de Fernando Arrabal no Teatro Ruth Escobar – Cemitério de automóveis, do próprio
Arrabal e O Balcão, de Jean Genet.
Na literatura, destacou-se o singular livro de José Agrippino de Paula,
PanAmérica – uma epopeia em que circulam as fantasmagorias da sociedade do
espetáculo, os estilhaços da cultura de consumo e da dominação do imaginário, pela
corrosão das identidades, encenação da obsessão erótica e da pornografia, em que
se observa a volatização do simbólico e reificação do desejo. O que também aparecia
160

com a mesma radicalidade em Rito do amor selvagem, de 1969, e no filme Tarzan, 3º


mundo.
Ao mesmo tempo, as canções tropicalistas, incorporaram voluntariamente,
nos temas, nas formas, procedimentos e linguagens, ritualização, gestualidade,
corpo e teatralidade – cuja expressão mais contundente esteve nos programas de TV
Divino maravilhoso – compondo uma atitude que articulava “o conceitual e o
fenômeno vivo”, na formulação de Hélio Oiticica”; renovação técnica e de
comportamento, em que o político não estava ausente, frequentemente de modo
indireto, explorando ou induzindo a novas formas de subjetividade.
Não é descabido se dizer que nessas produções pela primeira vez se evidencia
efeitos de um regime estético que salientando o processo de “incorporação”,
produzia imagens daquela descolonização visada nos projetos de resistência. Um
processo, aliás, que estendeu-se até meados de 70, no âmbito das experiências
contraculturais ou alternativas. Nelas, a oposição à situação instalada pelo regime
militar não se fazia explicitamente, antes no gesto subversivo, mescla de candidez e
insolência, de aposta na eficácia do gesto articulado à atitude básica de
desestetização da arte, e de frequentemente de estetização da vida, vale dizer, dos
comportamentos. Basta lembrar filmes de Rogério Sganzerla, Neville de Almeida,
Andrea Tonacci, Júlio Bressane; textos de Torquato Neto, Jorge Mautner, Rogério
Duarte, Waly Salomão, Caetano Veloso, Hélio Oiticica, Gramiro de Matos (Urubu Rei);
o teatro de Consuelo de Castro (À flor da pele), José Vicente (O assalto-1969, Hoje é
dia de rock-1970), Leilah Assunção (Fala baixo senão eu grito), Isabel Câmara (As
moças), Antonio Bivar (Abre a janela e deixa entrar o ar puro e o sol da manhã), Plínio
Marcos.
Para o que mais interessa aqui – evidenciar a “incorporação” na arte daquele
tempo – vamos nos cingir, porque exemplares quanto aos efeitos de incorporação,
às ideias de Hélio Oiticica, ao livro PanAmérica e à encenação Rito do amor selvagem
de José Agrippino de Paula.
161

Oiticica entendeu que a emergência do corpo, materializado nas proposições


ambientais desencadeados com o parangolé até as proposições ambientais e
pensadas nos escritos e projetos até o final, fundamentalmente referia-se ao
interesse dele e outros artistas de “transformar os processos de arte em sensações
de vida”. Suas posições quanto a isto são exemplares para a elaboração do que está
aqui em questão: a incorporação. Desata, com a “descoberto do corpo” no
parangolé, o “estado de invenção” efetivado com o deslizamento da imanência
expressiva da obra e do objeto para a “imanência do ato corporal expressivo”,
configurando uma poética do instante e do gesto, da ação e do comportamento,
abrindo assim o campo de um “além da arte”. Observe-se a abrangência do corpo
para ele:

O corpo é como o BRANCO NO BRANCO


uma etapa-estado necessário para a chegada
ao NOVO DIA DO INVENTOR.
As experiências e a invocação experimental
envolvendo o corpo sempre hão de aparecer
e reaparecer de novos modos: tantos
quantos seriam os indivíduos a experimentá-las.3

Proposição exemplar e radicalizante do deslocamento operado nas artes da


modernidade, é uma consequência da inscrição do corpo na arte, da vida como
processo criador, com que se acede a uma outra ordem do simbólico. Nesta arte, o
corpo não é mero protagonista, como fonte de sensorialidade, antes uma estrutura-
comportamento que redimensiona o sensível da arte. A consequente requalificação
estética, que rompe a demarcação entre arte e vida, decorre da percepção do corpo
humano na vida cotidiana, assim como do seu poder de afetar, constituindo-se a
partir de então em condição indispensável da experiência artística4. Com isto, como
se sabe, Oiticica articulou-se às pesquisas de pintores e músicos que na modernidade
conjugam o corpo à cor e ao som. Na sua teoria do desenvolvimento nuclear da cor,

3
OITICICA, Hélio. “Ondas do corpo”. In: Cesar Oiticica Filho e Ingrid Vieira(org.) Encontros: Hélio
Oiticica. Rio de Janeiro: Azougue, 2009, p. 199.
4
cf. JEUDY, H.-P. O corpo como objeto de arte. trad. Tereza Lourenço. São Paulo: Estação Liberdade,
2002, p. 13.
162

em que busca o sentido e do corpo na cor, repercutem os ecos da kandinskyana


sonoridade da cor, das pesquisas de Klee e da gestualidade da abstração cromática.
Pois este artistas exaltam indeterminações nas cores e sonoridades, nas vibrações,
timbres, alturas e frequências, além das nuanças. Assim, cor, som e dança implicam
incorporação.
A descoberta do corpo ressalta as vivências, intensidades e afetos, liberados no
processo de abertura estrutural, com que se desloca o sujeito das obras aos
comportamentos privilegiando a exploração das sinestesias, dos estímulos que
atingem simultaneamente a vista e o ouvido, todo o corpo, situando-se no vasto
campo das analogias entre imagens sensoriais, cromáticas e sonoras.
Particularmente, este processo, ao mesmo tempo vivencial e cultural, ratifica o fato
de que em muitos artistas modernos a variação intensiva dos afetos é atividade
constitutiva do sujeito. Na dança, no voz e na fala, como música ou ruído, na escuta
ou no silêncio, o que entra pelo corpo materializa uma relação de linguagem e cultura
que tem na arte o lugar de resistência à simples dispersão cotidiana. Aí situa-se
também a resistência dessa arte, em que ela é política: pela circulação, mobilidade,
fuga, difusão de comportamento singulares – o contrário da “tomada de
consciência”5
A ênfase na proposição vivencial não se confundia, entretanto, ressalvou
Oiticica, com certas proposições de simples expressão corporal, então em voga, onde
frequentemente se observava, em terapias corporais, mitologização do corpo e do
cotidiano, a disjunção entre arte e vida. Pois não se tratava de apenas introduzir o
corpo em situações, como procedimento, digamos, anti-intelectualista, mas de
pensar a relação entre o corpo e a arte como passagem do real ao imaginário. Quanto
a isto, como se sabe, o mais significativo é quando o corpo vira signo em situação. De
modo que os rituais do desejo, por mais crus que possam ter sido não desmentiam o
fato de que, nestes casos, tudo se passa entre, nada de representação de um suposto
real. Esse entre é índice de indeterminação, espaço contingente onde nasce toda
relação, assim implicando o processo de tranvaloração da arte, de modo que o que

5
Cf. PELBART, P.P. Vida capital: ensaio de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 142.
163

resulta não é mais nem a arte nem a vida empiricamente vivida, as vivências, mas
outra coisa, talvez um além da arte. O entre é o lugar do intempestivo, pois “o
interessante nunca é maneira pela qual alguém começa ou termina. O interessante é
o meio, o que se passa no meio (...). É no meio que há o devir, o movimento, a
velocidade, o turbilhão”6, como diz Deleuze.
Signo de transformabilidade, é a experiência da dança, irrompe naquele
momento como modalidade específica ou conjugada ao teatro e à música,
explicitando a abertura estrutural e a incorporação do som, cor e movimento, a
transmutação do sentido de construção que comandava as proposta artísticas mais
virulentas, implicando a ressemantização do corpo. A dança, dizia Oiticica, institui um
espaço intercorporal gerando comportamentos em que se atualizam relações
mutáveis entre corpo e estrutura. Pois, dizia, a dança integra ritmo, corpo e estrutura;
enfatiza a embriaguez dionisíaca que provém da vivência plena do presente como
“lucidez expressiva da imanência do ato”.7 Para ele, a dança, primeiro o samba e
depois o rock, como “busca do ato expressivo direto”, que respondeu à
“necessidade vital de desintelectualização, de desinibição intelectual, à necessidade
de uma livre expressão”8 – referindo-se certamente à distinção entre a linguagem do
corpo e a das palavras e que a manifestação de sentido no movimento é anterior à
produção do significado 9 –, ressaltando assim o vivencial, implícito já nas
proposições artísticas modernas em que o estrutural era ainda determinante.
Inicialmente o samba, depois com mais ênfase o rock, lhe possibilitaram “uma
imersão do ritmo, uma identificação vital completa do gesto, do ato com o ritmo”.
Porque, ele disse, “as imagens são móveis, rápidas, inapreensíveis – são o oposto do
ícone, estático e característico das artes ditas plásticas – em verdade a dança, o ritmo,
são o próprio ato plástico na sua crueza essencial – está aí apontada a direção da

6
DELEUZE, Gilles. Sobre o teatro: um manifesto a menos. Trad. Fátima Saadi. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2010, p. 34-35.
7
cf. OITICICA, Hélio. “A dança na minha experiência”. Aspiro ao grande labirinto. Org. Luciano
Figueiredo, Lygia Pape e Waly Salomão. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 72-75.
8
Idem, Ibidem.
9
cf. H.-P. Jeudy, Op. cit., p. 69.
164

descoberta da imanência. Esse ato, a imersão no ritmo, é um puro ato criador, uma
arte – é a criação do próprio ato, da continuidade”10.
As práticas que advém dessas ideias, incidem sobre as potências do corpo,
que tanto implicam reflexão sobre o cotidiano e as vivências como expõem
ambiguidades e contradições sociais; repensam a condição dos homens lançados ao
destino e aos debates culturais; anelam pelas utopias de renovação da vida.
Complexas, elaboram-se como pulsação dos ritmos, da linguagem e do corpo;
fortemente iconográfica e gestual, tende sempre a exibir os caracteres daquilo que
denota, suscitando no ouvinte reações imediatas; participa da dança e do espetáculo,
realçando não só a voz como o corpo dos participantes 11.
A antiarte de Oiticica incluiu-se no processo em curso de transformação radical
da concepção de artista – que se tornou um motivador para a criação. Criar, advertiu
Oiticica, citando Yoko Ono, “não é tarefa do artista, sua tarefa é a de mudar o valor
das coisas”12. Oiticica apontava assim para uma nova inscrição do estético: a arte
como intervenção cultural, em que o campo de ação é a atividade coletiva que
intercepta subjetividade e significação social. Está assim associado a muitas
atividades e artistas marcantes: surrealistas, dadá, Duchamp, Warhol, Beuys, etc que
mobilizaram uma investigação com caráter reflexivo sobre a trajetória que vai da
arte à antiarte, em que o corpo foi posto à prova, isto é, quando o corpo foi posto
em jogo13.
Mas o que poderia significar hoje essa proposição de Oiticica sobre a “tarefa do
artista”? Como sempre, que a arte é inscrição da e na experiência. Mudar o valor das
coisas é uma ação cultural, contextualizada. Hoje, que poder teria a arte, que política
seria esta que não se dedicaria, como antes, a mudar o valor das coisas mas a tentar,

10
Idem, Ibidem, p. 73.
11
BERIO,Luciano . “Commentaires au rock”. Musique em Jeu, n° 2, Paris: Seuil, 1971, p. 56; MORIN, E.
“Não se conhece a canção”. VVAA. Linguagem da cultura de massas. Petrópolis: Vozes, 1973, p. 146 e
ss.
12
OITICICA, Hélio. “Experimentar o experimental”. Navilouca. Torquato Neto e Waly Salomão (org.)
Rio de Janeiro: Edições Gernasa, 1974.
13
Cf. GALARD, Jean. “Ao lado da política: poderes e impoderes da arte”. In: Fernando Pessoa e Katia
Canton. Sentidos e arte contemporânea. Seminários Internacionais Museu Vale do Rio Doce, Vila Velha,
ES, 2007, p. 51
165

desesperadamente, fazer o valor da arte valer? Pois, é interessante pensar que,


enquanto nas vanguardas “as noções correlatas de obra e de autor perdiam sua
consistência, a de artista conservava a sua e talvez mesmo a reforçava”, atualmente
“ao invés da extinção da noção de artista, ao mesmo tempo que a de obra, produziu-
se uma exacerbação do estatuto moral e social do artista, uma supervalorização do
ser artista”14.
As obras de José Agrippino de Paiva também permitem um entendimento
significativo da incorporação, da situação em que com procedimentos diversos o
corpo aparecia como personagem conceitual, politicamente configurado. No
prefácio da reedição, em 2001, de PanAmérica, Caetano Veloso lembra o impacto do
livro antes do aparecimento de suas canções tropicalistas - uma informação
importante, pois esclarece ainda mais a concomitância do procedimento de
incorporação nas produções que foram identificadas como tropicalistas, na música,
no teatro e na literatura e, um pouco depois, no cinema dito marginal e no horizonte
das experiências contraculturais, na experiência da “curtição” . Com efeito, é
evidente a sintonia entre o modo de enunciação em muitas dessas canções, a
narrativa de Agrippino, as imagens visuais de artistas da Nova Figuração,
particularmente de Antonio Dias, e a “Tropicália” de Oiticica. As semelhanças são
estruturais, de linguagem e operação de descentramento cultural. Construtivistas e
dessacralizadoras, elas recolocam as relações entre fruição estética e crítica social
fora dos parâmetros fixados pela oposição entre experimentalismo e participação,
enfatizando não os temas, mas os processos e procedimentos.
Já em 1965 o aparecimento de Lugar Público, o primeiro romance de Agrippino,
foi surpreendente. No contexto de uma literatura marcada pela temática da
participação política, seja pela via da instrumentalização da linguagem, seja pela
alegorização da revolução, o livro de Agrippino destoava pela forma com que tais
temas apareciam, digamos pintando a paisagem cultural e afetiva muito em que se
nota ressonâncias da literatura existencialista e ecos da beat generation, do cinema

14
GALARD, Jean. “L’art sans oeuvre”. In: GALARD, J. et al (org.). L’oeuvre d’art totale”. Paris:
Galimard/Musée du Louvre, 2003, p. 168-169.
166

americano e italiano em circulação nos meios intelectuais e artísticos sintonizados


com o desejo de modernidade. Destoava também de algumas poucas tentativas
experimentais na ficção, que não se consolidaram, de fazer o que se fazia na poesia
experimental desde os anos 50. O livro mostra assimilação singular dos processos
básicos das invenções literárias do século 20. A narrativa flui ininterruptamente, sem
divisão de capítulos e seccionamento de lugar ou tempo, como assinalou, com seu
apurado faro para os talentos que surgiam, o crítico Nogueira Moutinho:
“tecnicamente um romance sem assunto, (...) escrito sem luvas, sem assepsia, sem
desinfecções prévias, romance em estado bruto, no qual se dá transmutação da
realidade em linguagem”.
Neste romance aparece a representação da realidade moderna, mais
precisamente da banalidade cotidiana, como um cenário da vida moderna na cidade
de São Paulo. Insipidez, maquinismo, velocidade, multidões, anúncios, cinema,
mitologias da cultura de massa - índices da vida urbana da sociedade industrial que
reapareceriam em PanAmérica-, compõem uma narrativa sem história. Os objetos e
os acontecimentos carecem de presença, pois o excesso de visibilidade desvaloriza
os objetos e suas imagens. Entretanto, se Lugar Público é um romance em que ainda
se reconhecem elementos da profundidade, embora não psicológica, da narrativa
moderna, pois enfatiza a reflexão sobre a banalização da experiência e o
esvaziamento da consciência, PanAmérica já não é um romance. Classificado por
Agrippino como “epopeia”, pode ser considerado um caso particular das maleáveis
formas ficcionais que, articulando várias tendências experimentais abriram o campo
da escrita.
Em PanAmérica notam-se as características destacadas pelas atividades e
vanguarda, com destaque para o tropicalismo, como uma solução até então não
conhecida na literatura de vanguarda do Brasil, cuja contundência provém em grande
parte de ter dado à mistura de referências culturais um corpo sensível tão
emblemático quanto o das canções tropicalistas e o de artistas plásticos como
Oiticica, Antônio Dias, Gerchman, Roberto Magalhães, Claudio Tozzi, Aguilar, Wesley
Duke Lee, por exemplo. Não é à toa que a capa da primeira edição é de Antônio Dias,
167

ilustrada com uma imagem dos violentos quadros narrativos, plasticamente brutais,
da Nova Figuração, como “The American Death”; em que o imaginário que circula na
sociedade de massas está conectada à denúncia da dominação.
Texto delirante que finge um efeito de real, a epopeia de Agrippino funciona
como uma alucinação, uma fantasmagoria toda feita de cacos, de “estilhaços da
cultura”15. Blocos narrativos descontínuos se sucedem, construindo hipérboles de
aspectos das mitologias contemporâneas: sexualidade, luta política, astros
cinematográficos, personagens dos esportes, da política, são agenciados numa
narrativa despsicologizada e descentrada, irredutível a um painel ou a uma imagem
totalizadora. São designados e hiperacentuados aspectos da cultura,
simultaneamente satirizados, pois a linguagem que os pressupõe simbólicos é
desconstruída. Procedendo por via expositiva, indiciada pelo uso reiterado da
conjunção, o campo onde a narrativa se institui é fragmentário e lacunar. As
referências e fragmentos da cultura são articulados em ritmo cinematográfico, com
cortes e fusões.
Escrita tóxica, violenta, com o excesso de imagens e reiteração dos mesmos
elementos, induz o leitor à desvalorização dos objetos designados, com que se dá a
destruição da própria imagem. Assim, pulverizando os códigos de produção e
recepção, reiterando o visível, hiperbolizando a representação, o texto desmobiliza
as expectativas do leitor que nele procuraria um sentido, uma significação profunda,
uma crítica como a da alegorização abstratizante do contexto político-cultural
brasileiro, que então era corrente na produção cultural do período 1965-69.
Exterioridade pura, a narrativa corrói o sujeito da representação. O eu reiterado que
o narrador dissemina no texto não fixa nenhuma identidade, antes a pulveriza. Não
sendo posição de um sujeito, o eu é apenas um efeito enunciativo submetido a um
regime técnico, homólogo ao da narrativa cinematográfica. Máquina histérica, a
enunciação é ritmada pela repetição, o que pode ser associado à forma industrial da
produção cinematográfica.

15
Cf. HOISEL, Evelina. Supercaos, os estilhaços da cultura em PanAmérica e Nações Unidas. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
168

Epopeia contemporânea do império americano, como disse Mário Schenberg


na apresentação da primeira edição, o livro tematiza mitologias da cultura da
sociedade industrial. Nesta narrativa ciclópica, os tipos gerados pela indústria
cinematográfica de Hollywood são apresentados como naturais, quando são, na
verdade, convencionais. Astros e estrelas, intercalados pela aparição de políticos,
esportistas e outros personagens, entram na cena e dela saem, sem nada que
justifique ou requeira propriamente uma ação. Os atos e gestos que desenvolvem são
típicos, indiciando emblemas do imaginário imperialista. O narrador, nem herói, nem
anti-herói, vaga por entre camas e outros cenários cinematográficos, às vezes como
um herói, logo desmentido, que quer destruir o império, destruindo o gigante Joe Di
Maggio e conquistando a bela Afrodite, Marylin Monroe, personagem-ícone de
Agrippino. Tomando a forma de uma superprodução hollywoodiana, como Os Dez
Mandamentos de Cecil B. de Mille, outro ícone, reconstruindo detalhes das filmagens,
cenários, processos e técnicas, expõe a produção da ilusão, como se fosse o
desenvolvimento de uma construção romanesca, que configurasse a epopeia de
conquista e destruição do grande império do norte.
Mas as encenações cinematográficas com as constelações do império são
alternadas com outras encenações, como que abastardando as referências: são as
cenas da outra América, que não se submete aos planos de uma operação
panamericana, referência clara à política norte-americana de intervenção em alguns
países, sob a capa de uma operação pela paz, na verdade de dominação, disfarçada
de luta contra a propalada influência comunista. Na epopeia, a única possibilidade de
resistência é a guerrilha, pois forma política atópica, desterritorializada, a única que
age, não com a força, mas com astúcia.
A referência à situação histórica brasileira é óbvia, alegoricamente tratada. O
golpe de 1964, as passeatas, a repressão do governo militar, o aparecimento da
guerrilha urbana, o clima de terror, a identificação da resistência ao regime com o
Partido Comunista, são alguns dos índices. Mas há outros, culturais, como o índio
brasileiro, na vitrine de uma cidade americana, nu, enfeitado de penas e com o
enorme e mole pênis que caía até o joelho, portanto exangue, desenergizado à custa
169

da exploração. Este objeto exótico, imagem brasileira pronta para exportação e


consumo, é um raro signo motivado da narrativa, a única manifestação, salvo engano,
de um sujeito historicamente afirmado: “eu sofria internamente, (...) gritei de ódio”.
Acoplado às referências brasileiras, percebe-se que, intencionalmente, a guerrilha
estende-se para toda a América do Sul e Central, indiciando-se nisto o despertar da
solidariedade latinoamericana, significada principalmente na figura exemplar de Che
Guevara.
Fundindo a “imagerie” que procede da pop art, onirismo e técnica expositiva
do novo romance francês, o texto explora o distanciamento de qualquer realidade,
representando a representação. Assim, a obsessão erótica não se fixa como
finalidade, portanto em exploração da pornografia, pois a sexualidade é aí apenas um
objeto dessublimado, pronto para a circulação no regime do capital; mais uma das
imagens reprodutíveis e permutáveis que o sistema do espetáculo agencia. Os
acontecimentos são narrados para um olhar de fora, com uma objetividade técnica,
excluindo-se qualquer envolvimento afetivo. Como um dos seus efeitos críticos,
evidencia a alienação que informa a produção da espetacularização da cultura, pois
ao levar a representação até o ponto em que a consciência racha, institui os objetos
como algo já conhecido, destituídos de presença.
Puro heteróclito que resulta da montagem de referências culturais disponíveis
na sociedade de consumo, em que sobressaem as imagens visuais, o romance opera
um realismo espectral em que a história é desapropriada de suas significações, pois a
cultura, naturalizada, é reduzida a fatos, à pura objetividade dos acontecimentos
virados notícias. Entretanto, por efeito da encenação, a história reaparece com
brutalidade neste realismo delirante.
Na apresentação de Rito do Amor Selvagem – encenação multimídia inovadora,
concebidas por ele e Maria Esther Stokler, a partir de alguns fragmentos da peça
Nações Unidas, escrita em 1966 mas ainda inédita – Agrippino caracteriza o processo
de composição do texto e da encenação como mixagem, por analogia com o que no
cinema é a mistura de várias faixas de som, diálogos, ruídos e música; nele a mistura
dos meios, de diversas mídias, articulam informações, fragmentos, na
170

simultaneidade. A falta de fé no poder da palavra, diz ele, levou-o ao que denominou


“texto de desgaste”, todo calcado nos estereótipos, restos e cacos da cultura de
consumo, significantes-objetos industriais prontos para a circulação, em que o desejo
é reificado. É o mesmo processo da composição de PanAmérica, em que uma
ritualização sem fundo fixa como realidade a simples aparência, substituindo os
valores simbólicos da cultura e a profundidade da experiência interior das tramas
romanescas em pura exterioridade de acontecimentos que viram ícones ou
emblemas.
A fabricação artificiosa que o texto evidencia é efeito da repetição dos mesmos
significados, típico processo inerente aos períodos de saturação cultural. O vazio de
realidade é a sensação que fica ao final da leitura. Mais propriamente, a volatilização
do simbólico na narrativa, com que não se tem mais um romance, mas uma ficção
objetiva em que a história é desarticulada, por efeito da técnica narrativa, e reduzida
a acúmulo de clichês, objetos, materiais e comportamentos industrializados que,
segundo Agrippino, têm uma “presença superior”. Daí o seu fascínio.
Assim, a atitude configurada nestas produções exemplares, além de conjugar a
reversão artística e o interesse político, enfim as dimensões ética e estética, as
transformações da arte, a renovação da sensibilidade e a participação coletiva,
implicava o redimensionamento cultural dos protagonistas das ações. As proposições
visavam a liberar as atividades do ilusionismo, para que as ações funcionassem como
intervenção nos debates daquele tempo. De modo que, o campo de ação das
atividades não se reduzia à crítica do sistema da arte: inscrevia-se como uma atividade
coletiva, visionária, em que se interceptavam a produção de novas subjetividades e a
significação social das ações. Neste sentido, é relevante acentuar que as proposições
vivenciais, enquanto investigação do cotidiano e intervenção cultural, ultrapassavam
o sentido usual de vivência, Erlebnis, aproximando-se do sentido de experiência,
Erfahrung, na concepção que está tanto em Nietzsche como em Benjamin 16.

16
Cf. GIACOIA JUNIOR, “Teses sobre Nietzsche e o budismo”. In LOPARIC, Zeljko (org.). A escola de
Kyoto e o perigo da técnica. São Paulo: DWW Editorial, 2009, p. 68-69 e GAGNEBIN, Jeanne Marie.
História e narração em Walter. Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994, p. 65-66.
171

A extensão da arte na vida, a proposta de uma criatividade generalizada,


liberada pela conquista do “espaço real” – âmbitos para comportamentos em que a
tônica sensorial desliga os efeitos imediatistas –, relativizam a ênfase no conceitual e
no procedimental exigidas para a efetivação da diluição do estrutural e instauração
da arte “nos fios do vivencial”, nos “exercícios imaginativos” surgidos do
tensionamento entre o conceitual e o “fenômeno vivo”.17 Portanto, a desestetização
processada nesses âmbitos para comportamentos não significava uma valorização
simples das sensações e dos afetos como oposição ao suposto e genérico
racionalismo atribuído aos modos de compreender as significações assumidas na arte
no Ocidente moderno. Visava, antes, ao devir da experiência, em que a totalização
do vivido levaria necessariamente à transmutação das relações entre arte e vida e,
portanto, dos indivíduos, através da transformação da arte em atividade cultural, por
efeito da multiplicação e da “expansão celular”. Aí, nos acontecimentos da vida
“como manifestação criadora”, brilharia o esplendor do sentido, encarnado em
situações, indivíduos, processos e comportamentos que desbordariam das regras
institucionadas do viver-em-sociedade, em favor de um viver-coletivo. Conceituais e
sensoriais, esses acontecimentos materializariam uma imagem do pensamento e da
existência que valorizariam situações instáveis e indeterminadas, de fim impreciso,
típicas das experiências exemplares, simbólicas, nas quais coexistem intensidade de
sentido, convicção e violência: transformabilidade.
Essa poética, muito gestual, não visava aos simbolismos da arte e suas imagens,
mas à simbólica dos estados de transformação, um “além das imagens”. Assim
entendidas, as ideias e proposições de Oiticica encontrariam nas décadas seguintes
plena atualidade e inúmeras atualizações. Esses espaços gerariam, lembrando
algumas ideias de Roland Barthes, um “viver-junto” como fato espacial onde é
possível uma “comunidade idílica, utópica: espaço sem recalque, como o sonhado no
crelazer de Oiticica, espaço em que a vida se reinventa, circunscrição ideal da

17
Cf. “Brasil Diarreia” In: GULLAR, Ferreira (org.). Arte brasileira hoje. Rio de Janeiro: paz e terra, 1973.
172

comunidade, do viver-junto.18 É o que se pode viver em vários filmes em Super-8 de a


Agrippino, em especial em Sol sobre água.
A arte “nos fios do vivencial” substituía a experiência das obras de arte pela
experiência dos comportamentos. A ênfase no vivencial era sintoma de que na
cultura moderna a perda de uma certa modalidade de experiência postulava outras
temporalidades. Experimentalismo, nova sensibilidade e marginalidade são os signos
das então imaginadas transformações radicais das relações entre arte e vida, em que
o corpo aparece ao mesmo tempo como conceito operacional e ativador das
mudanças19.

18
Cf. BARTHES, Roland. Como viver junto. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2003,
p. 11 e 157.
19
Cf. a propósito nosso texto “60/70: viver a arte, inventar a vida”. In: Lisette Lagnado (org.). 27ª.
Bienal de São Paulo: Seminários. Rio de Janeiro: Cobogó, 2008, p. 240-249.
173

Hélio Oiticica: O Q Faço é Música1

Michael Asbury

“Cinema Novo” de Caetano Veloso e Gilberto Gil, do álbum “Tropicália 2” de 1993,


comemora os 25 anos do lançamento do LP “Tropicália ou Panis et Circensis”, o qual foi, sem
dúvida, um marco importantíssimo da música popular brasileira. Encontramos ali Caetano e
Gil traçando a história do Cinema Novo, através da música e poesia: em suma, trata-se de uma
música que procura caracterizar a Tropicália como imagem. Poderíamos entender tal
estratégia como uma analogia da quebra de divisões sociais nas temáticas da arte, trazendo
a cultura popular para dentro da arte erudita. Neste sentido, os versos de abertura da canção
são reveladores:

O filme quis dizer “Eu sou o samba”


A voz do morro rasgou a tela do cinema
E começaram a se configurar
Visões das coisas grandes e pequenas
Que nos formaram e continuam a nos formar

A cena invocada não poderia ser mais clara: os créditos de abertura daquele que
é considerado o filme inaugural do Cinema Novo, “Rio, 40 Graus”, de Nelson Pereira
dos Santos (lançado em 1955). Acompanhado pelo samba de Zé Keti "A Voz do
Morro" (1955), a câmera sobrevoa a Zona Sul do Rio do Janeiro (no sentido do Pão
de Açúcar para o Leblon) até atravessar as nuvens (rasgando a tela branca, como a
própria música insinua) e chegar à Zona Norte numa quebrada de favela.
Ao associar samba e cinema, os tropicalistas relembram seus próprios anos de
formação, suas influências: a Bossa Nova, a Poesia Concreta, o Pop, a cultura popular
e a contracultura dos anos 1960. Não que esta associação entre música e cinema seja
fruto de uma visão em retrospecto. Já em 1967 (e este foi um ano importante, como
veremos), Augusto de Campos enfatiza o caráter cinematográfico das canções de
Gilberto Gil e Caetano Veloso citando seu colega, o poeta concreto Décio Pignatari:

1
Uma versão inicial deste texto foi traduzida do inglês para o português por Vanessa Rosa Machado.
174

Mas, como me observou Décio Pignatari, enquanto a letra de Gil lembra as montagens
eisenstenianas, com seus closes e suas “fusões” [...], a de Caetano Veloso é uma “letra-
câmera-na-mão”, mais ao modo aberto e informal de um Godard, colhendo a realidade
casual “por entre fotos e nomes”2.

A junção Eisenstein-Godard não é casual. Encontramos Pignatari e, por


extensão, Augusto de Campos, construindo um quadro teórico que posicionaria a
Tropicália como radicalmente inovadora mediante sua abertura às tendências e
correntes internacionais, associando-a vigorosamente à esquerda política e
mantendo um compromisso profundo com a história cultural brasileira. Não é difícil
ver como, na época, estas pareciam ser, em relação a Tropicália, características
irreconciliáveis.
Como Celso Favaretto argumentou, até 1968 a música popular brasileira ainda
não sofria grande repressão pela Ditadura (ainda que isso tenha se tornado um fato
após o AI-5).3 Vista como um território para a afirmação identitária nacional, tanto
pela direita quanto pela esquerda, respectivamente como expressão nacionalista ou
anti-imperialista, a música popular foi submetida a diversas controvérsias. Assim
sendo, as autodeclaradas classes médias esclarecidas, a submetiam, em especial
aquela apresentada nos festivais, a critérios rigorosos que exigiam um engajamento
político e uma filiação às tradições populares nacionais, muitas vezes essas vertentes
assumidas como sinônimos.
Não nos surpreende, portanto, ver Augusto de Campos, no calor da hora,
assumir uma posição que tentasse fazer sentido da estética eclética tropicalista à luz
do engajamento ambíguo de Caetano e Gil frente à política e ao nacionalismo ou, para
usar a expressão de Homi Bhabha, sua ambivalência relativa à “nação e narração”. 4

2
CAMPOS, Augusto, ed. (1974), O Balanço da Bossa e outras Bossas. São Paulo: Editora Perspectiva,
(1968, 5th ed. 1993) p. 283-4.1968, p. 153
3
FAVARETTO, Celso. Tropicalia - Alegoria, Alegria. São Paulo Ateliê Editorial, 1996.
4
BHABHA, H. K., ed. Nation and Narration. London, New York: Routledge, 1990.
Seria, por sinal, justamente por apresentarem esse caráter ambivalente, que Roberto Schwartz viria,
mais tarde, criticar os músicos tropicalistas. Schwarz, R. (1987) Tradição/Contradição. Rio de Janeiro:
Zahar / Funarte, p. 91-110.
175

Augusto de Campos, em 1966, escreve sobre os tropicalistas na esteira do


Opinião, espetáculo musical de caráter altamente politizado, que colocou músicos
como Zé Keti (autor, como vimos, da música que acompanha os créditos de abertura
de “Rio, 40 graus”), João do Vale (um compositor de Bossa Nova) e a cantora Nara
Leão sob a direção de Augusto Boal (que mais tarde iria desenvolver o conceito do
Teatro do Oprimido). Tal fato explicaria talvez a dimensão política dada à música de
Caetano e Gil ao citar nada menos que Marx e Engels para argumentar que a
intercomunicabilidade da comunicação de massa implica na impossibilidade de
estreitos cânones nacionais. 5 Em outras palavras, Augusto de Campos argumenta
que o engajamento político demanda perspectivas transnacionais no interior da
produção cultural. Ou seja, interligação entre distintos meios de comunicação se deu
naquele momento, de acordo com o poeta, através de um mapeamento dos
territórios culturais que visava, ao menos num plano retórico, promover a
contaminação múltipla, como uma estratégia de minar rígidos cânones nacionalistas.
Augusto de Campos situa a Bossa Nova como o primeiro passo de um processo
que iria liberar a música de sua carga folclórica em favor de uma participação ativa
com a poesia, as artes visuais e a arquitetura.6 Poderíamos ver, aqui, um dos primeiros
exemplos da construção histórica que viria predominar na produção e interpretação
da arte contemporânea no Brasil. Infelizmente, o caráter nacional é muitas vezes
enfatizado dentro destas narrativas em detrimento da natureza transmidiática das
produções culturais da época. Citando Augusto de Campos mais uma vez:

A modernidade dos textos de Caetano e Gil [note que aqui é a música como escrita que
interessa a Augusto] tem feito com que muitos os aproximem dos poetas concretos [...].
Um ponto de conexão entre os dois grupos é, sem dúvida, Oswald de Andrade. [...] Em
vez da “macumba para turistas” dos nacionalóides que Oswald condenava, parece que
os baianos resolveram criar uma “batmacumba para futuristas”.7

Augusto de Campos identifica uma relação estética-teórica entre músicos e


poetas, a qual, vista em retrospecto, muitas vezes se constrói dentro das narrativas

5
CAMPOS, Augusto de. O Balanço da Bossa, Op. cit. p. 142.
6
Ibid. p. 286.
7
Ibidem, p. 286-287
176

históricas de uma estrutura cronológica que raramente dá a devida importância à


práxis das vanguardas. Note, por exemplo, a forma da letra de um clássico da
Tropicália, Batmacumba, em relação à visualidade da poesia concreta:

Batmakumbayêyê batmakumbabaobá
Batmakumbayêyê batmakumbabao
Batmakumbayêyê batmakumba
Batmakumbayêyê batmakum
Batmakumbayêyê batma
Batmakumbayêyê bat
Batmakumbayêyê ba
Batmakumbayêyê
Batmakumbayê
Batmakumba
Batmakum
Batma
Bat
Ba
Bat
Batma
Batmakum
Batmakumba
Batmakumbayê
Batmakumbayêyê
Batmakumbayêyê ba
Batmakumbayêyê bat
Batmakumbayêyê batma
Batmakumbayêyê batmakum
Batmakumbayêyê batmakumba
Batmakumbayêyê batmakumbabao
Batmakumbayêyê batmakumbabaobá

Encontramos, portanto, referências à cultura Pop norte-americana e à religião


afro-brasileira, bem como evocações da história da arte, do modernismo brasileiro e
do futurismo italiano.
A associação com Oswald de Andrade também remete à própria origem do
nome Tropicália, que não surgiu na música, mas na arte, a partir do encontro entre o
barraco da favela e a comunicação de massa no ambiente/instalação que Hélio
Oiticica exibiu na exposição Nova Objetividade Brasileira, no Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro em 1967. No catálogo da exposição, Oiticica é o autor de um ensaio
intitulado “Esquema Geral da Nova Objetividade”, no qual declara ter invocado
"Oswald de Andrade e o significado da ‘Antropofagia’ [...] como um elemento
177

importante na tentativa de uma caracterização nacional". 8 Tal associação tende, no


entanto, a sobrepor-se à heroica tentativa do artista de mapear o campo da produção
cultural naquele momento. Meu argumento é o de que não somente pode-se, mas
deve-se entender a relevância da Antropofagia Oswaldiana para aquela geração de
artistas além da simples caracterização do nacional como essencialmente
apropriativa da cultura estrangeira, operação que se submete e, portanto, se limita a
uma retórica da legitimação da arte através de premissas que estão exteriores a ela
mesma. Ou seja, tal visão se limita à querela política entre as ortodoxias de esquerda
e direita da época, submetendo a qualidade da arte ao seu teor retórico contra a
ditadura. A significância Oswaldiana me parece mais fértil quando aplicada à
translação entre mídias e às diversas formas perceptivas. Neste sentido, me parecem
mais reveladores os comentários do artista sobre sua própria instalação:

O ambiente criado era obviamente tropical, como que num fundo de chácara, e, o mais
importante, havia a sensação de que se estaria de novo pisando a terra. Esta sensação
sentia-a eu anteriormente ao caminhar pelos morros, pela favela, e mesmo o percurso
de entrar, sair, dobrar “pelas quebradas” da Tropicália, lembram muito as caminhadas
pelo morro. [...] o participador entra em contato com uma multiplicidade de experiências
que se referem à imagem: a táctil, fornecida por elementos dados para manipulação, a
lúdica, a puramente visual [...] até chegar ao fim do labirinto, no escuro, onde um
aparelho de televisão (receptor) encontra-se ligado permanentemente: é a imagem que
absorve o participador na sucessão informativa, global. 9

Enquanto que em “Rio, 40 graus” a câmera sobrevoa a cidade do Rio de Janeiro


para terminar na quebrada da favela, Oiticica oferece aos espectadores a
possibilidade de se perderem numa estrutura labiríntica, reminiscente de um barraco,
para, ao final, serem confrontados com um aparelho de televisão. A estética
neorrealista do Cinema Novo é transformada de forma um tanto brutal na meta-
realidade da instalação. Para Oiticica não era o caso de representar a favela, mas sim
de transpor a experiência em outra mídia.

8
OITICICA, Hélio. Esquema Geral da Nova Objetividade. In: Nova Objetividade Brasileira, Museu de Arte
Moderna, 1967.
9
“Entrevista a Mário Barata”. Rio de Janeiro, 15 maio 1967. In: CATALOGUE RAISONNÉ HÉLIO OITICICA.
(Versão preliminar). Rio de Janeiro: Projeto Hélio Oiticica, 2004. Documentos 0320.67-p02 e 0320.67-
p03.
178

Dois anos mais tarde, em 1969, Edward Pope – que conheceu Oiticica em
Londres durante a exposição do artista brasileiro intitulada “Whitechapel
Experience”, na Whitechapel Gallery – discutiu os happenings contemporâneos do
grupo “Exploding Galaxy” como formas de transmídia, afirmando que:

Enquanto que os eventos psicodélicos no UFO Club, se autodenominavam multimídia,


nos quais eram projetados alguns shows de luzes tipo Mark-Boyle sobre as bandas Pink
Floyd ou Soft Machine, a ideia de transmídia é que um meio aja sobre, ou torne-se uma
metáfora deste. Assim, por exemplo, você não pensaria em escrever um poema apenas
em preto e branco - você imediatamente pensaria, “ele é feito de letras, que são
construções visuais, e o som teria um tom, e assim por diante".10

Retomando a questão da adoção do nome Tropicália por Caetano Veloso: isso


não teria parecido uma coisa tão escandalosa na época. O nome Opinião foi tomado,
afinal, de um espetáculo teatral para se converter no título de uma série de
exposições organizadas no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Na primeira
delas, Opinião 65, houve a famosa inauguração dos Parangolés de Oiticica, seu
primeiro trabalho “transmedia”, poderia-se dizer.11 O nome Opinião imediatamente
forneceu um contexto politizado para a exposição, dada sua associação com o
espetáculo teatral. As críticas sobre a mostra enfatizaram tal posicionamento.
Segundo o crítico de arte Mário Pedrosa:

A ideia foi um achado naquele instante. Por quê? Porque se inspirava no teatro, no teatro
popular tão próximo, por sua própria natureza, ao clima social, à atmosfera política da
época. Pode-se dizer que o grupo de teatro Arena, com sua Opinião, foi o grande
respiradouro dos cidadãos abafados pelo clima de terror e opressão cultural de regime
militar implantado em 1964 [...]. Desse contexto geral e opressor surgiu uma formidável
criação revolucionaria e simbólica que foi ‘Carcará’, de João do Vale. Pouca gente ouvia
então aquele canto, expressando a realidade implacavelmente feia, malvada e egoística
da miséria natural e social do Nordeste, sem ser sacudido por dentro e sem lágrimas nos
olhos. Desde então, ‘Carcará’ é um hino da revolução camponesa nordestina […]. 12

10
POPE, Edward. Statement, in: Oiticica in London, Tate Publishing, p. 47-8.
11
O Projeto Cães de Caça, que incorporaria obras de seus companheiros neoconcretos, teria sido o
primeiro, caso fosse realizado.
12
PEDROSA, Mário. in: AMARAL, Aracy (org.). Mário Pedrosa: Mundo, Homem, Arte em Crise. Série
Debates, São Paulo: Perspectiva (1975, 2nd ed. 1986), p. 99-100.
179

Ferreira Gullar – que, apesar de ter sido porta-voz do grupo neoconcreto, na


altura de 1965 já estava desvinculado de qualquer ideal de vanguarda – argumenta
que a exposição:

revela que algo de novo se passa no domínio das artes plásticas, e esse carácter novo se
pronuncia no próprio título da mostra: os pintores voltam a opinar! Isto é fundamental.13

É revelador o uso que Gullar faz da categoria ‘pintores’ em conjunção ao verbo


‘voltar’. Fica implícita, portanto, sua atitude frente à expulsão dos Parangolés de Oiticica,
inaugurados na abertura da exposição, quando moradores da Favela da Mangueira, que
haviam sido convidados pelo artista, foram retirados à força do Museu por funcionários.
Vemos aqui a semente da problemática que viria confrontar os historiadores da Tropicália:
como avaliar a dicotomia entre o político relativo ao local e o estético relativo à não-
especificidade do meio?
Seguindo à Opinião 66, a edição de 1967 foi intitulada Nova Objetividade
Brasileira que, pela própria mudança de nome, associava ainda mais a opinião política
à questão identitária nacional. Foi desta exposição que Caetano Veloso tomou o
nome Tropicália do ambiente/instalação de Oiticica, portanto, talvez seja apropriado
que os músicos tropicalistas tivessem mais tarde escolhido uma mídia que não fosse
a música para lembrar e comemorar de seus anos de formação. O cinema, como o
teatro, fornece todos os ingredientes narrativos para tal mapeamento, conectando
estética, história, política e, sobretudo, a representação de territórios, sejam estes
espaciais, sociais ou culturais. A arte toma emprestado do teatro musical apenas para
que a música tome de volta aquilo que emprestara à arte. Tudo isso retomado pela
evocação de uma outra mídia, ou, talvez, o que na época poderia parecer para muitos
artistas a síntese de todas elas, o cinema.
Outro precedente dentro desta proposta onde um approach transmidiático
atuou como força motriz na produção cultural da década de 1960, seria a conferência
realizada durante a primeira Exposição Nacional de Arte Concreta em 1957, quando
os poetas Haroldo de Campos e Ferreira Gullar discordaram sobre a natureza (visual)
da poesia concreta.

13
GULLAR, Ferreira. Opinião 65, Revista Civilização Brasileira, n. 4, Setembro de 1965. Reprinted in: Arte
em Revista: Anos 60, Ano 1, no.2, 1979, Rio de Janeiro: Kairos, p. 22-24.
180

O evento foi divulgado em “O Cruzeiro” como o “Rock'n'Roll da poesia”, no


qual o jovem Hélio pode ser identificado numa das fotografias ouvindo atentamente,
embora com um olhar um tanto perplexo, ao acalorado debate que se seguiu.
No que se refere a Oiticica, o artigo agora parece um tanto profético, dadas
suas incursões no final dos anos 1960 na prosa como uma forma de arte, às quais ele
chamou de autos e contos, o encontro de seus interesses durante a década de 1970
enquanto vivia em Nova York, com o Rock'n'Roll e a música experimental (que vão
desde os Rolling Stones e Jimmy Hendrix a John Cage), e como essas diversas fontes,
que o levaram ao conceito de quasi-cinema, tinham sido estimuladas por sua amizade
e correspondência com vários músicos, artistas, intelectuais, cineastas e poetas
brasileiros, incluindo, é claro, os irmãos Campos.
Em seu ensaio “Na selva branca”, Gonzalo Aguilar explora como Oiticica e os
irmãos Campos superaram, ao longo dos anos 1970, os desentendimentos entre o
Concretismo e o Neoconcretismo através, entre outras razões, de seus laços comuns
de amizade com os músicos tropicalistas e pelo resgate do poema narrativo de
Joaquim de Sousândrade "O Guesa Errante" de 1877. 14 Este último os irmãos Campos
haviam tirado da obscuridade nos anos 1960, especialmente em relação ao Canto 10,
denominado por eles como "O Inferno de Wall Street", visto como um exemplo de
poesia proto-modernista.15 O entusiasmo de Oiticica com a figura de Sousândrade e
suas incursões pela Nova York do século XIX, é incontestável. O artista tentou
identificar os lugares descritos pelo poeta16 através de um estudo sobre a história da
cidade que sua amiga Dore Ashton havia realizado 17. Este projeto tornou-se para ele
uma forma de mapeamento transcultural e trans-histórico da cidade.

14
AGUILAR, Gonzalo. Na Selva Branca: O Diálogo velado entre Hélio Oiticica e Augusto e Haroldo de
Campos, in: BRAGA, Paula (org.). Hélio Oiticica: Fios Soltos do Experimental. São Paulo: Perspectiva.
2008, p. 237-249.
15 Talvez haja aqui ainda outra referência à literatura modernista brasileira através da associação com
o nomadismo trans-histórico do personagem Macunaíma, do romance de Mário de Andrade, que traça
de forma irreverente a formação político-étnica do Brasil.
16 Depois de ter estudado em Paris na Sorbonne, Joaquim Sousa Andrade (1833-1902) mais tarde, em
1870, mudou-se para Nova York onde publicou (em Português) o periódico "O Novo Mundo". Sua obra
literária foi de modo geral ignorada até os irmãos Campos a "redescobrirem" nos anos 1960. Veja:
www.secrel.com.br/jpoesia/soua.html
17 Entrevista do autor com Dore Ashton, appendix 2, ASBURY, Michael. Hélio Oiticica: Politics and
Ambivalence in Brazilian 20th Century Art, unpublished PhD, UAL, London.
181

A Nova York do século XIX de Sousândrade, “Un Coup de Dés” de Mallarmé, o


artista brasileiro Antônio Dias e Mario Montez travestido de Carmen Miranda, se
reúnem no filme inacabado de Oiticica “Agripina é Roma-Manhattan” como a síntese
de poesia, literatura, arte e cultura popular. Acima de tudo, ele demonstra como o
artista reconsiderou sua relação com o lugar, uma vez que, naquele contexto, fazer
referência à favela dificilmente sustentaria sua reivindicação de relacionar a arte com
a vida. Imagem, música e teatro convertem-se em instrumentos úteis neste processo
de relação e reavaliação com o ‘local’ do artista.
Haroldo de Campos teria, de fato, uma profunda influência na reavaliação de
Oiticica sobre sua própria prática nos seus últimos anos de vida, durante e após seus
sete anos de autoexílio em Nova York. Recém-chegado em Manhattan, em 1971,
Oiticica entrevistou Haroldo de Campos, iniciando o que se tornaria uma prática
recorrente, a gravação de conversas com amigos que se encontravam de passagem
por New York, as quais Haroldo desde o início intitulou de Heliotapes. Esta primeira
gravação registra Haroldo de Campos falando dos “Ninhos” de Hélio.18 Haroldo, na
gravação, associou os “Ninhos” com a peça “Hagoromo” do teatro Nô japonês. De
acordo com Haroldo de Campos:

eu estava pensando naquela coisa que nós vimos no seu atelier noutro dia, os ninhos, eu
saí de lá e comecei a pensar numa série de coisas que me interessavam nesse mesmo
tipo de idéia sua, e eu tava me lembrando da, de uma peça do teatro japonês nô,
“hagoromo”, (o manto de plumas), que é uma das peças que o ezra pound traduziu para
o inglês, uma peça curta, lindíssima, e onde justamente que a coisa que é o centro da
peça é este manto de plumas que ao mesmo tempo tem uma cor lindíssima e tem uma
fragrância, um perfume maravilhoso que naquela altura já é um problema de sinestesia,
de correspondência de sons, de cores [...].19

Na peça, o Hagoromo, o manto de plumas, é deixado em cima de uma árvore,


como o mais lindo ninho. Depois de ter sido momentaneamente abandonado pelo

18 Cujo conceito se originou durante sua residência na Universidade de Sussex, em Brighton, 1969,
tendo sido exibido posteriormente na mostra de 1970 “Information” no MoMA e, finalmente,
integrando seu próprio ambiente de moradia em seus lofts onde Oiticica se instalou em Nova York,
rebatizado “Babilonests”.
19
“Transcrição de entrevista com Haroldo de Campos”. Nova York, 27-28 maio 1971. In: CATALOGUE
RAISONNÉ HÉLIO OITICICA. (Versão preliminar). Rio de Janeiro: Projeto Hélio Oiticica, 2004.
Documento 0396, p. 71.
182

anjo, ele é encontrado por um pescador, que exige do anjo uma dança, a dança da
lua. Após realizar a dança, o anjo se dissolve no céu, nas palavras de Haroldo, “se
dissolve no branco do céu: como o ninho, branco no mais branco dos brancos”. Não
há dúvida de que essa associação feita pelo poeta teve um grande impacto sobre o
artista, principalmente pela referência a Malevitch, artista muito admirado por
Oiticica já na época do neoconcretismo. Evidência que pode ser encontrada em
diversas notas e textos datilografados produzidos por Oiticica durante o período em
que morou em New York e que ele intitulou “Aglomerado”.20 Num destes textos,
chamado “Bodywise”, de setembro de 1973 (dois anos depois da gravação inicial),
encontramos Oiticica voltando às observações de Haroldo e discorrendo sobre elas.
No início Oiticica já afirma:

a vista o perde [o anjo], em performance visual-sensorial: Haroldo me deu este


fragmento traduzido como referência que ele estabeleceu com o efeito dos NINHOS em
N. York (BABILONESTS): o MANTO DE PLUMAS, performer plumado já sensorial dissolve-
se no céu do céu branco no branco para além do alcance da vista: limite-performance:
branco no branco atmosférico, onde a situação do corpo só se pode referir a si mesmo
não mais à visão edênica do MANTO: O MANTO É OBJETO E CORPO AO MESMO
TEMPO.21

E mais adiante:

O MANTO-objeto se dissolve em MANTO-espaço isto é o espaço-ambiente.22

Na segunda página do mesmo documento, Oiticica evoca um incidente ocorrido


com um fã num show dos Rolling Stones. Na terceira página é com o Parangolé que
o Hagoromo é associado. A página 4 analisa a relação entre manto, espaço e
vestimenta no contexto do show de rock usando Mick Jagger como um exemplo de
corpo-ambiente. Enquanto que, na página 5, o conceito de Capa (ou manto)-roupa é
definido como: “Corpo-clímax”, “Bodywise”, “wise como o Rock”. Na página 6, o

20
Veja: COELHO, Frederico. Livro ou Livro-me: os Escritos Babilônicos de Hélio Oiticica 1971-1978, Rio
de Janeiro: EDUERJ, 2010.
21
“Apontamentos para citação em publicação VRT”. Nova York, 22 jun. 1973. In: CATALOGUE
RAISONNÉ HÉLIO OITICICA. (Versão preliminar). Rio de Janeiro: Projeto Hélio Oiticica, 2004.
Documentos 0189.73, p .1 e 0189.73, p. 2.
22
Idem. Documento 0189.73-p.2.
183

artista encontra um precedente na Nostalgia do Corpo, de Lygia Clark. Finalmente, as


páginas 7 e 8 referem-se à peça de Vito Acconti como um corpo-performance através
do qual o corpo é apresentado na performance-evento: uma performance que
incorpora o tempo-duração, de acordo com Oiticica.
O documento, ao estabelecer amplas relações entre o Hagoromo, a produção
prévia de Oiticica, bem como a de seus contemporâneos como Lygia Clark e Vito
Acconti e, ainda, seu entusiasmo pelo Rock e sua cultura, revela uma vontade de
construir associações intermidiáticas entre interesses e ambientes imediatos e sua
trajetória criativa anterior. O recurso à noção de tempo-duração é talvez a mais óbvia
confirmação desta hipótese. Tempo-duração refere-se, certamente, às reflexões
iniciais de Oiticica sobre como seus Penetráveis que, segundo o artista, responderiam
à noção bergsoniana de duração como uma forma de apreensão da cor. 23
Apesar do estilo de escrita como fluxo de consciência, ou talvez precisamente
por conta disso, surge à mente o personagem de Sousândrade, “O Guesa Errante”,
atravessando o espaço e o tempo junto à imagem sinestética invocada pelo
Hagomoro.
Naquele mesmo ano, Silviano Santiago descreveu o caráter performático de
Caetano Veloso como a "síntese do que estava sendo apresentado pela arte de
Glauber [Rocha] ou Zé Celso, de Hélio Oiticica ou Rubens Gerchman", concluindo que
Caetano “desejava que seu corpo, a plasticidade dele, capturasse o público de modo
que aquela fosse a imagem viva da sua mensagem artística”.24
Curiosamente, a ideia de síntese emerge na própria reavaliação de Oiticica a
respeito do Parangolé durante os anos 1970. Não de qualquer Parangolé, mas
justamente aquele dedicado a Haroldo de Campos e inspirado no Hagoromo. Nele, a
noção de lugar também é importante, pois Oiticica parece particularmente
preocupado com a relação que este novo Parangolé, este Parangolé-síntese,
estabelece com o tecido urbano, com Nova York, com talvez até Wall Street.

23 Ver: ASBURY, Michael. O Hélio não tinha ginga, in: Paula Braga (org.) Hélio Oiticica: Fios Soltos do
Experimental, Op. cit.
24 SANTIAGO, Silviano. Caetano Veloso, os 365 dias de carnaval, in: Cadernos de jornalismo e
comunicação, ed. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, nº 40, jan./fev. 1973, p. 52-53.
184

Se voltarmos à gravação inicial de Haroldo de Campos no Heliotape nº 1, ele fala sobre


sinestesia, a troca de experiência entre visão e olfato. Meu argumento é que a noção de
Oiticica da experiência da cor como música, ou da música como uma entidade tátil-espacial,
emerge deste encontro com o Hagoromo, como consolidação de um projeto em transmídia
que data da primeira experiência com o Parangolé.
Em 1977, ainda em Nova York, encontramos Oiticica fazendo uma declaração
bastante significativa: a de que todo o seu trabalho anterior fora apenas um prelúdio
para o que estava por vir.
Esta reavaliação crítica de sua trajetória abrangeria suas experiências da década
de 1960, desde os Penetráveis, do Parangolé à Tropicália, junto com a influência
adquirida por sua proximidade aos irmãos Campos durante os anos 1970, até o
cinema experimental (de Jack Smith às suas Cosmococas, seu quasi-cinema) e o seu
entusiasmo pelo Rock (The Rolling Stones e Jimmy Hendrix, em particular). A
conjunção desses fatores estaria, a meu ver, por trás da sua declaração um tanto
misteriosa de que “O Q FAÇO É MÚSICA”.
A declaração é geralmente creditada por estudiosos a um artigo datado de 1979
em que Oiticica afirma:

descobri q o q faço é MÚSICA e q MÚSICA não é “uma das artes” mas a síntese da
consequência da descoberta do corpo: porisso o Rock p.ex.se tornou o mais importante
para a minha posta em cheque [sic] dos problemas chave da criação (o samba em que
me iniciei veio junto com essa descoberta do corpo no início dos anos 60: PARANGOLÉ e
DANÇA nasceram juntos e é impossível separar um do outro): o ROCK é a síntese
planetário-fenomenal dessa descoberta do corpo […]25

Uma menção anterior, porém, existe, e é talvez ainda mais reveladora:

começo este pequeno notebook a 7 agosto 1978 – aniversário de CAETANO e dedico-o


portanto a ele THE POET
4:50 ao som dos STONES no ESTEREO [...] dou nome ao penetrável PN (?) MAGIC
SQUARE 3 q estou terminando  BROWN SUGAR
o q faço é música este PENETRÁVEL é o meu ROCK do dia  não é q o q faço ou este
PENETRÁVEL tenha o “espírito do Rock” ou seja musical [...] 

ELE É ROCK 
A INVENÇÃO DA COR É ROCK e tem mais! 

25
“De Hélio Oiticica para Biscoitos Finos”. Rio de Janeiro, 11 nov. 1979 In: CATALOGUE RAISONNÉ
HÉLIO OITICICA. (Versão preliminar). Rio de Janeiro: Projeto Hélio Oiticica, 2004. Documento 0057.79,
p. 2.
185

O ROCK É IMPORTANTE PORQUE O ROCK É SEMPRE A INVENÇÃO DO ROCK  assim


como o q faço É MÚSICA e nunca a obra acabada de arte 
a INVENÇÃO DA COR é INVENÇÃO
É MÚSICA
BROWN SUGAR MAGIC SQUARE 3 é ROCK assim como a FUGA DE BACH é a INVENÇÃO
DA ARTE.26

Pode-se entender o retorno de Oiticica à investigação da cor no espaço na série


Magic Square, como a síntese de seus interesses na noção bergsoniana de duração e
de sua reavaliação do sentido da relação entre o Parangolé e a dança, agora
desmitificado de suas conotações ditas (pelo próprio artista na época) como
primitivistas, que haviam sido tão invocadas por Oiticica através da associação com a
favela. Isto se tornaria possível através da imagem sinestésica do Hagoromo, que
integra espaço, tato e olfato através da noção sinestética de corpo e música.
Durante os anos neoconcretos, no início dos anos 1960, Oiticica escreveu sobre
os Penetráveis como prioritariamente focados na questão da cor. Baseando-se em
Bergson, ele fixou seu interesse no silêncio emanando do interior do trabalho, e uma
vez que o silêncio só pode ser percebido como tempo, o trabalho de arte tornava-se
inescapavelmente associado com a duração: em sua opinião, ele é duração.27
Nos últimos projetos de Penetráveis dos anos 1970, com o artista agora distante
do laboratório estético do neoconcretismo (como Ronaldo Brito definiu o
movimento28) e com o subsequente choque brutal da favela com os meios de
comunicação de massa, para Oiticica, o New Yorker (ou Newyorkaise - um título que
ele deu aos seus primeiros projetos de Penetráveis produzidos em New York por
volta de 1971), a noção de duração se tornara barulho, música. O silêncio é assim
substituído pelo Rock'n'Roll.
Durante sua vida, essas obras permaneceram como projetos, maquetes a serem
um dia construídas em praças públicas, no tecido urbano da cidade. Dois, na verdade

26
“ho rio CG”. Rio de Janeiro, 7 ago. 1978. In: CATALOGUE RAISONNÉ HÉLIO OITICICA. (Versão
preliminar). Rio de Janeiro: Projeto Hélio Oiticica, 2004. Documentos 0118.78-p.1 a 0118.78, p. 4.
27
Ver: ASBURY, O Hélio não tinha ginga, Op. cit.
28
BRITO, Ronaldo. (1975) Neoconcretismo: Vértice e Ruptura do Projeto Construtivo Brasileiro. Rio de
Janeiro: Marcos Marcondes, 1975. Republished: BRITO, Ronaldo, Neoconcretismo: Vértice e Ruptura do
Projeto Construtivo Brasileiro. São Paulo: Edições Cosac & Naify, 1999.
186

duas versões do mesmo Magic Square nº5, foram construídas após sua morte. Uma
no Museu do Açude no Parque da Tijuca no Rio de Janeiro, e outra no Instituto
Inhotim, em Brumadinho, Minas Gerais, a resposta do bilionário do setor de
mineração Bernardo Paz à filantropia norte-americana e aos modelos europeus de
financiamentos público/privados para as artes.
O suposto boom econômico no Brasil durante os anos 1970, o assim chamado
Milagre Brasileiro, trouxe a apropriação comercial pela indústria da música, que
transformou a Tropicália na marca Tropicalismo. Este fenômeno um tanto paradoxal,
visto que o regime havia perseguido os músicos, propagava slogans como “Brasil,
ame-o ou deixe-o”, levaram Oiticica a escrever um texto em 1970 intitulado “Brasil
Diarréia”.29 Me pergunto, portanto: como ele responderia a este segundo milagre
brasileiro de que nós ouvimos falar nos dias atuais e o que ele acharia da incorporação
de seu próprio trabalho no efervescente mundo da arte contemporânea?
Qualquer que seja o caso, seja ele lentamente incorporado ao entorno tropical
ou meticulosamente preservado no Inhotim, esta vitrine do poder do colecionismo
que passou a dominar o mundo da arte contemporânea, os penetráveis parecem ter
voltado ao silêncio.

29
OITICICA, Hélio. Brasil Diarreia. In: Arte Brasileira Hoje. Rio de Janeiro, 1973.
187

O caleidoscópio ou a subversão da cidade

Artur Freitas

Ao longo dos anos 1960 e 1970, no contexto das novas vanguardas, a


revalidação ideológica da “morte da arte”, com suas promessas de conquista da vida
pela dimensão estética, incluía a apropriação crítica de uma outra forma de vida,
muito mais universal e implacável, porque inexoravelmente vinculada à racionalidade
tecnológica. No âmbito do imaginário da época, a relação entre vanguarda e
capitalismo derivava, em boa medida, da contraposição entre contracultura e
tecnocracia.
Do lado dos artistas, tratava-se de uma apropriação reativa, mas contraditória:
uma tentativa, no plano poético e discursivo, da arte se apoderar justamente do seu
oposto. Todavia, embora carnalizada em obras e discursos, a principal figura de
oposição das vanguardas não deixava de ser uma fantasmagoria: algo como uma
diáfana mas quase onipresente temporalidade, de cunho linear e progressista,
marcada pelo télos científico da razão. De acordo com o filósofo Herbert Marcuse, a
regulação desse dispositivo temporal, tão caprichoso quanto deliberado, baseou-se,
para além do princípio de autoridade, no desejo de dominação, ou seja, numa
estratégia de controle hierárquico voltado à manutenção e à consolidação de
determinados privilégios, fossem eles administrativos, políticos, econômicos ou
simbólicos1. Por outras palavras, trata-se da conhecida hipótese marcusiana de que
há, no contexto do capitalismo avançado, uma modalidade opressiva adicional,
denominada de mais-repressão.
Em certa medida, tanto a temporalidade progressista quanto o racionalismo
administrativo não passariam de contrafaces da própria lógica de dominação
moderna que, juntas, ensejariam o fenômeno social a que o historiador Theodore

1
MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. São Paulo: Círculo do Livro, 1982 [1955], p. 45 e ss.
188

Roszak nomeou de sociedade tecnocrática2. Na definição categórica do autor,


tecnocracia corresponderia àquela “sociedade na qual os governantes justificam-se
invocando especialistas técnicos, que, por sua vez, justificam-se invocando formas
científicas de conhecimento. E além da autoridade da ciência não cabe recurso
algum”3.
Nesses termos, a oposição a tal sociedade, traduzida na Grande Recusa
marcusiana, seria o principal denominador do movimento contracultural, aqui
entendido como um movimento jovem e urbano que, no contexto dos anos 1960 e
1970, privilegiou a imaginação e o prazer, o elogio à loucura e à marginalidade, a
quebra de linguagem e a liberdade criativa. Por outras palavras, as diversas formas
de manifestação da contracultura estariam, por definição, em conflito tanto com os
pressupostos de uma temporalidade totalizante, teleológica e progressista, quanto
com os variados modos de dominação mais-repressiva, ali incluídos o planejamento
tecnocrático, a regulação racional da vida social, a moral classe-média e o controle
público da existência privada.
No âmbito artístico, a rejeição das formas autônomas e a estetização do próprio
comportamento estavam no centro da subversão contracultural, em tudo contrária
às linguagens tradicionais e hierarquizadas. Em linhas gerais, tal dinâmica acabaria
implicando na negação dos espaços tradicionalmente consagrados à experiência
estética, como a casa de teatro, a sala de concerto, o museu ou a galeria. Na chave
da contracultura, em resumo, as novas vanguardas assumiriam uma posição crítica
diante das instituições culturais estabelecidas, privilegiando em seu lugar uma série
de operações alternativas e marginais, como nos casos notáveis do teatro de rua, das
ações performáticas e das intervenções urbanas4.
Partindo desse contexto mais amplo, pretendo aqui analisar a relação entre
tecnocracia e vanguarda por meio de uma conjuntura pontual, a saber: o embate
entre o caráter fragmentário da obra urbana Vexations, de Jocy de Oliveira, de um

2
ROSZAK, Theodore. A contracultura: reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição juvenil.
Petrópolis: Vozes, 1972 [1968], p. 19 e ss.
3
Idem, ibidem, p. 21.
4
VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002 [1985], p. 41-43.
189

lado, e o saber técnico vigente no urbanismo do prefeito Jaime Lerner, de outro. A


ideia central, em síntese, consiste em caracterizar as formas de subversão estética
inerentes à obra de Jocy, sobretudo quando contrapostas às estratégias racionalistas
do pensamento tecnocrático, cuja conjuntura lernista – ocorrida em plena ditadura
militar, durante o chamado “milagre econômico brasileiro”, no início dos anos 1970 –
foi um dos seus casos mais célebres.
Para tanto, iniciarei o texto com rápidos apontamentos acerca da primeira
gestão do prefeito Jaime Lerner, enfatizando o urbanismo tecnocrático e o conceito
de “cidade orgânica” implícitos na implantação do Plano Diretor de Curitiba.
Contraditoriamente, veremos em seguida como os eventos culturais intitulados
Encontros de Arte Moderna acabaram viabilizando, em pleno governo lernista, uma
poética do dissenso urbano, de caráter contracultural. Na sequência, apresentarei a
multiartista curitibana Jocy de Oliveira. Convidada em 1974 para participar do VI
Encontro de Arte Moderna, Jocy terá sua trajetória internacional analisada em função
das novas vanguardas dos anos 1960, com destaque para a figura de John Cage, sua
referência assumida. Em seguida, descreverei a inusitada apresentação de Vexations
em Curitiba, interpretando suas conexões com o espaço urbano, bem como as
polêmicas reações do público local. Ao final do texto, retomarei o embate entre
sociedade tecnocrática e vanguarda, concluindo com algumas considerações
teóricas acerca do caráter caleidoscópico de Vexations, agora entendido como uma
forma exemplar de subversão estética frente ao saber técnico.

A cidade orgânica e o triunfo da estética tecnocrática

Durante o regime militar, os governos locais de Curitiba e do Paraná deram


preferência ao exercício da competência técnica. Baseada num modelo autoritário de
desenvolvimento, a rápida modernização política do Paraná de fins dos anos 1960 e
início dos 1970 representava um verdadeiro “triunfo da tecnoburocracia” 5. Em
âmbito municipal, as reformas administrativas da capital paranaense indicavam uma

5
MAGALHÃES, Marion Brepohl. Paraná: política e governo. Curitiba: SEED, 2001, p. 80 e ss.
190

renovação no quadro político, que se baseava sobretudo na parceria técnica e


ideológica entre jovens urbanistas e o empresariado local. Para demarcar essa
mudança, os planejadores urbanos da cidade opuseram-se de saída às diretrizes do
Plano Agache, dos anos 1940, que até então previa uma cidade radial e orientada pelo
trânsito dos automóveis. Na contramão do Plano Agache, um novo plano diretor,
batizado simplesmente de Plano Diretor de Curitiba, foi aprovado em 1965 pela
Câmara. Detalhado pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba
(IPPUC), o novo Plano foi posto em prática a partir do início dos anos 1970, durante o
primeiro governo do arquiteto e urbanista Jaime Lerner (1971-1974). Dali em diante, a
generalização da imagem de competência urbanística das prefeituras curitibanas
logo se transformou na principal arma do marketing político municipal, dando origem
ao mito da Curitiba “cidade modelo”6. De acordo com o historiador Dennison de
Oliveira, todavia, a imagem de sucesso do planejamento urbano de Curitiba não se
devia à originalidade de seu Plano Diretor, mas sim à sua efetiva implantação 7. Como
se sabe, a execução de um plano dessa ordem demandava muito tempo e volumosos
recursos, o que via de regra entrava em conflito com a previsível alternância
partidária dos governos municipais. Nesses termos, a peculiaridade do “caso de
Curitiba” teria residido na longa continuidade de prefeituras identificadas com um
mesmo projeto urbanístico: entre 1971 e 1983, os governos sequenciais de Lerner,
Saul Raiz e novamente Lerner foram responsáveis pela implantação do Plano Diretor
de Curitiba, gerando um caso ímpar no cenário político nacional 8.
Estabelecido durante o primeiro governo Lerner, o corpo central do Plano
Diretor englobou, entre outras ações, o protagonismo do transporte coletivo, a
pedestrianização do centro da cidade e a criação de novos setores urbanos, como a
Cidade Industrial, as vias estruturais, várias novas áreas verdes e o Setor Histórico 9.
Dentre todas as ações políticas do governo Lerner, a transformação da Rua XV de

6
OLIVEIRA, Dennison. A política do planejamento urbano: o caso de Curitiba. Tese (Doutorado em
Ciência Política), Unicamp, Campinas, 1995, p. 113-117. Uma versão revista desta tese foi publicada como
livro: OLIVEIRA, Dennison. Curitiba e o mito da cidade modelo. Curitiba: Ed. UFPR, 2000.
7
Idem, ibidem, p. 34.
8
Idem, ibidem, p. 117-124.
9
Idem, ibidem, p. 77.
191

Novembro em “calçadão” ou Rua das Flores foi o maior emblema “do início das
grandes intervenções urbanas da década de 1970” 10. Em linhas gerais, a revitalização
do centro de Curitiba pela via da pedestrianização foi uma aposta arrojada que,
baseada na ideia de uma cidade voltada para o encontro de pessoas e não de
automóveis, acabou por colocar a capital paranaense na vanguarda urbanística
nacional11. A partir de então, os cidadãos curitibanos, agora imersos nos efeitos
urbanos de um processo decisório externo e verticalizado, poderiam contemplar a
cidade moderna como os "figurantes de um grande anúncio de griffe urbanística"12.
Do “calçadão” à implantação da Fundação Cultural de Curitiba, passando pela
revitalização do Setor Histórico, a agenda política de Jaime Lerner valeu-se de um
modelo urbanístico tecnocrático para destacar, no campo discursivo, uma
abordagem “humanística” e “cultural” da cidade, promovendo assim a imagem do
centro de Curitiba, e particularmente da Rua XV, como uma espécie de “sala de visitas
ao ar livre”, o que, conforme a arquiteta Fernanda Garcia, acabaria implicando na
elaboração de todo um “mobiliário urbano para compor o cenário” 13.

Das luminárias aos quiosques, passando pelas cabines telefônicas moduladas, bancos,
floreiras, elementos articulados por uma comunicação visual que costura o discurso
espacial. O mobiliário urbano é todo ele especialmente projetado, com um "design" de
linhas modernistas orientado à ressemantização do espaço em questão. Transformado
em símbolo, qualquer elemento do mobiliário urbano da Rua das Flores é hoje
imediatamente associado a uma determinada imagem deste espaço14.

De acordo com o cientista político Nelson Rosário de Souza, o planejamento


urbano de Curitiba realizado nos anos 1960 e 1970 baseou-se em alguns evidentes
princípios do chamado urbanismo modernista. No seu entendimento, o zoneamento
do espaço urbano, a existência de um sistema viário hierarquizado, o privilégio às
avenidas e a compreensão da cidade “como todo orgânico a ser equilibrado”, entre
outros fatores, seriam “procedimentos típicos do urbanismo modernista adotados

10
GARCIA, Fernanda Sánchez. Da cidade modelo à cidade virtual: lastros da cultura urbana de uma
Curitiba emblemática, Anais do V Seminário de história da cidade e do urbanismo, PUC, Campinas,
1998, p. 05.
11
Idem, ibidem, p. 05-06.
12
GARCIA, Fernanda Sánchez. Cidade espetáculo. Curitiba: Palavra, 1997, p. 44.
13
GARCIA, Fernanda Sánchez. Da cidade modelo à cidade virtual. Op. cit, p. 05.
14
Idem, ibidem.
192

pelos planejadores da capital paranaense”15. Orientada pelo saber técnico e


instrumental, a implementação do Plano Diretor teria se sustentado numa pretensão
contraditória, tipicamente tecnocrática: elevar a racionalidade à ordem da
necessidade. Impedindo o conflito com o diferente, o urbanismo modernista alojava
o “sujeito humano” no coração das ações políticas, satisfazendo suas necessidades
aparentemente “naturais”, mas só para em seguida negar-lhe a autonomia subjetiva,
sujeitando-o à ordem indiscutível de critérios “racionais”, planejados por
“especialistas”.

O sucesso desta operação coloca o saber técnico como fonte legítima e exclusiva da
solução dos conflitos e o urbanista como juiz incontestável da nova ordem. Nesse jogo,
a técnica aparece apenas como meio que viabilizaria a realização das necessidades e da
felicidade numa sociedade perfeita porque de espaço racionalmente planejado.
Concretamente, a construção da cidade como todo orgânico coloca em marcha a
engrenagem que combina saberes e práticas, promovendo a legitimidade de uma
partilha urbana desigual e a normalização do comportamento de sujeitos sujeitados16.

Como símbolo da eficiência tecnocrática dos governos locais em tempos de


“milagre brasileiro”, o urbanismo lernista pressupôs a integração “humanista” do
espaço público como um projeto totalizante – a cidade tratada como um “todo
orgânico”, ou seja, como um espaço racionalmente planejado cuja “homogeneidade
e uniformidade territorial pareciam uma opção perfeitamente válida em nome de
uma modernidade emergente”17. Por outro lado, a reestruturação urbanística da
capital paranaense não se limitou a conceber a racionalidade técnica como um fim
em si mesmo. Mais do que uma simples expressão da burocracia especializada em
tempos autoritários, a implementação do Plano Diretor de Curitiba, sem equivalente
no contexto nacional, assentou-se na própria estetização dos equipamentos
urbanos, o que permitiu, ainda que pela via do discurso e do imaginário, que a cidade
gozasse, já nos anos 1970, de uma imagem aparentemente triunfante. Ao cabo de
poucos anos, entre 1971 e 1974, o primeiro mandato de Jaime Lerner apresentou um
evidente “incremento nos equipamentos artísticos e culturais públicos da cidade”,

15
SOUZA, Nelson Rosário de. Planejamento urbano em Curitiba: saber técnico, classificação dos
citadinos e partilha da cidade, Revista de Sociologia Política, Curitiba, n. 16, jun. 2001, p. 108.
16
Idem, ibidem, p. 110.
17
GARCIA, Fernanda. Da cidade modelo à cidade virtual. Op. cit, p. 05.
193

com destaque para a Fundação Cultural, o Teatro Paiol, a Camerata Antiqua, a Casa
Romário Martins, o Centro de Criatividade, entre outros18.
Daquele corpo orgânico e harmonioso, cujo cérebro seria certamente o Estado,
o coração corresponderia à região central recentemente pedestrianizada. Acessível
apenas aos pedestres, o Setor Histórico, com seus edifícios tombados, seria a
contrapartida memorial de um outro setor ainda mais pulsante, o “calçadão” da Rua
XV, a verdadeira artéria aorta de Curitiba: um espaço, em resumo, voltado não apenas
à festa do consumo classe-média, mas sobretudo à convivência estética cordial e
apaziguadora. Planejado para funcionar como uma “sala de visitas ao ar livre”, o
centro da cidade despontava, no contexto do urbanismo lernista, como um lugar que,
não obstante a “partilha desigual do espaço urbano” 19, baseava-se na ideia de
animação cultural, ali entendida como um "novo combustível sem o qual a coalizão
não fabrica os consensos de que necessita”20.

Os Encontros de Arte Moderna e o dissenso urbano

Como se vê, o processo de implantação efetiva do Plano Diretor de Curitiba


podia ser visto não apenas como uma expressão local do “milagre brasileiro”, mas
sobretudo como um sintoma de um regime de poder de tipo específico, baseado na
administração racionalista e no pragmatismo técnico dos especialistas, tal como
descrito por Theodore Roszak.
Todavia, cumpre notar que a mesma Curitiba lernista, que se baseava na lógica
do consenso estético, foi palco de uma série de ações artísticas orientadas, em boa
medida, para a subversão tanto do espaço urbano quanto de seus recentes
equipamentos culturais. Realizadas em paralelo ao processo de implantação do Plano
Diretor, tais ações ocorreram sobretudo no âmbito dos chamados Encontros de Arte
Moderna. Organizados pelos estudantes do Diretório Acadêmico Guido Viaro da

18
MORAES, Ulisses Quadros de. Modernidade em construção. São Paulo: Annablume, 2009, p. 31-40.
19
SOUZA, Nelson Rosário de. Op. cit, p. 110.
20
ARANTES, O.; VAINER, C. B.; MARICATO, E. A cidade do pensamento único: desmanchando
consensos. São Paulo: Vozes, 2002, p. 29.
194

Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP), os Encontros consistiram numa


série de eventos desenvolvidos anualmente em Curitiba entre 1969 e 1974. Contando
com a presença de importantes artistas nacionais como Artur Barrio, Ana Bella
Geiger, Pietrina Checcacci, Frederico Nasser, José Rezende, Pedro Escosteguy e
Josely Carvalho, além de críticos como Frederico Morais, Roberto Pontual, Mário
Barata e Walmir Ayala, os Encontros de Arte Moderna comportaram palestras,
lançamentos de livros, cursos práticos e manifestações artísticas radicais. Centrados
na discussão sobre os eventuais limites estéticos e políticos da vanguarda brasileira,
os eventos canalizaram pequenos gestos de rebeldia festiva, aproximando-se assim
do imaginário contracultural.
Ao longo dos primeiros anos da década de 1970, as principais ações artísticas
realizadas durante os Encontros tenderam a problematizar a imagem orgânica e
apaziguadora da “cidade modelo”, o que ocorreu em pelo menos duas frentes: de
um lado, a perturbação estética do espaço urbano, e de outro, a subversão direta dos
equipamentos culturais. Bom exemplo da primeira frente foi o happening coletivo
Sábado da Criação, coordenado pelo crítico de arte Frederico Morais durante o III
Encontro de Arte Moderna, em 1971. Na ocasião, dezenas de artistas e estudantes de
artes, instigados pelas transformações recentes do cenário urbano, ocuparam o
canteiro de obras da Rodoferroviária de Curitiba, dando início a uma série de
experiências estéticas inusuais, de teor efêmero e performático. Quanto à segunda
frente, por sua vez, basta mencionar a polêmica obra Ambiente porcoral, de João
Ricardo Moderno, em que o artista, convidado para participar do IV Encontro, em
1972, optou por subverter os princípios expositivos ao expor um porco vivo nas
dependências do recém-inaugurado Museu de Arte Contemporânea do Paraná,
suscitando a indignação de parte do público curitibano 21.
Realizado em 1974, o VI Encontro de Arte Moderna acabou desdobrando as
duas frentes acima mencionadas, com especial destaque para a questão urbana.

21
Para uma análise mais detida dessas duas frentes de ação, sugiro dois textos meus: FREITAS, Artur.
Corpo em festa: Frederico Morais e o Sábado da Criação, Revista VIS, UnB, Brasília, v. 13, 2014; e
FREITAS, Artur. Perturbações do olhar: um porco no museu. In: KNAUSS, Paulo; MALTA, Marize (Org.).
Objetos do olhar: história e arte. Florianópolis: Ed. Rafael Copetti, 2015.
195

Convidada pelo Diretório Acadêmico Guido Viaro para planejar o evento, a artista
plástica e arquiteta Josely Carvalho optou por dividir parte da coordenação do VI
Encontro com sua irmã, a artista multimídia Jocy de Oliveira. Em linhas gerais, a
programação cultural proposta durou dez dias e englobou duas ações principais,
ambas voltadas à exploração poética dos espaços urbanos da capital paranaense. A
primeira ação, adaptada de um evento urbano realizado na Cidade México e
intitulada Gincana Ambiental, consistiu num conjunto de atividades de sensibilização
coletiva realizadas por grupos em diversos locais da cidade. Ao longo de um final de
semana, os membros de cada grupo percorreram uma série de locais
predeterminados de Curitiba, onde, a partir de algumas “instruções abertas”,
realizaram experiências sensoriais insólitas, tais como descrever “graficamente os
sons”, imaginar “o local com ou sem movimento”, analisar “o som em geral”,
descrever “o contorno do local” e assim por diante. Muito mais complexa, a segunda
ação, por sua vez, consistiu numa série de propostas igualmente coletivas que foram
cumpridas ao longo de um único sábado, dia 31 de agosto. Intitulada Homenagem a
Duchamp, a ação englobou projeções de filmes, instalações, leituras de manifestos, a
apresentação de documentos dadaístas, a construção de uma cabine pornográfica, a
execução da Peça Pão, em que os transeuntes foram convidados a moldar e comer
suas próprias esculturas, além da polêmica apresentação musical e performática da
obra Vexations, composta por Erik Satie. Para os limites deste texto, analisarei
exclusivamente a interpretação de Vexations: uma ação coletiva que, como veremos,
entraria em conflito com a experiência urbanística tecnocrática.

Contatos imediatos: Jocy de Oliveira e John Cage

Vistos em conjunto, os eventos de Homenagem a Duchamp formavam uma rede


intermidiática que, na confluência entre happening, música e visualidade, refletia o
recente hibridismo poético das trajetórias de Josely Carvalho e sobretudo de Jocy de
Oliveira. Mais que uma homenagem exclusiva a Marcel Duchamp, a ação era um
tributo às linguagens impuras, uma reverência cosmopolita à história das
196

vanguardas, com ênfase na ponte Paris-Nova York. Além de Duchamp, as fontes


manifestas da obra eram os compositores Erik Satie e John Cage. Em certa medida,
ao combinar elementos de tempos e espaços distintos mas identificáveis, a obra-
homenagem reverberava a própria formação artística e musical de Jocy de Oliveira.
Transitando entre a Europa, os Estados Unidos e o Brasil durante as décadas de
1950 e 1960, Jocy de Oliveira pôde habituar-se, em seus anos de formação, com a
extensa experimentação estética das novas vanguardas, de alcance transnacional.
Para a historiadora da música Danièle Pistone, o “universo francófono” teve um
papel central na formação de Jocy, que, por meio da interpretação de obras de
Messiaen e Xenakis, por exemplo, teria demonstrado “suas poderosas ligações com
a França”22. Dessas ligações decorreriam certamente as referências diretas às obras
dos franceses Erik Satie e Marcel Duchamp. Por outro lado, é preciso ter em mente
que tais referências estavam mais distantes de uma filiação francófona estrita do que
propriamente do modo com que as vanguardas norte-americanas traduziram a
cultura moderna francesa durante o pós-segunda guerra.
Na prática, a grande figura por trás de Homenagem a Duchamp – e por extensão
de Vexations – era o compositor norte-americano John Cage. Admirador confesso de
Duchamp e Satie, Cage foi um artista multimídia radicalmente insubordinado que,
desde o final dos anos 1930, no contexto da Black Mountain College, na Carolina do
Norte, já fazia experimentos musicais com ruídos e sons cotidianos. Propondo a fusão
de teatro, poesia, pintura, dança e música, o compositor foi um dos pioneiros não
apenas da música aleatória, mas da própria ideia de happening23. Lecionando na Black
Mountain e, depois, na New School for Social Research, em Nova York, exerceu
grande influência sobre futuros artistas performáticos como Allan Kaprow e George
Brecht, além de alguns ativistas do grupo Fluxus. Como anarquista estudioso da
filosofia oriental, do I Ching e do budismo zen, enfatizou em suas obras e palestras o

22
PISTONE, Danièle. Jocy de oliveira no espelho de suas cartas. www.academia.org.br, p. 199-201.
23
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 1987 [1980], p. 23-26.
197

uso do acaso como elemento poético, opondo-se ao que entendia como o


racionalismo arrogante da arte dos museus24.
No período em que residiu em Saint Louis, entre 1963 e 1968, Jocy de Oliveira
teve a oportunidade de se aproximar da obra e do pensamento de John Cage. Nessa
época, num antigo show boat realizado no rio Mississipi, a pianista participou da
execução de Winter Music, de Cage, que contou com dez pianos espalhados em vários
locais de um barco. Pouco tempo depois, numa enorme estrebaria situada nos
arredores da cidade de Urbana, John Cage, Jocy de Oliveira, David Tudor, Merce
Cunningham e alguns outros participaram juntos da montagem de Music Circus,
também de Cage25. Aos poucos, os contatos pessoais foram se estreitando.
Convidados em 1968 para se apresentar no Brasil, John Cage, David Tudor, Merce
Cunningham e sua equipe foram recebidos com um jantar no apartamento de Jocy
de Oliveira no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro26. Na ocasião, Cage aproveitou sua
passagem pela capital fluminense para ministrar uma palestra sobre o anarquismo de
Thoreau, dando origem a um conhecido episódio que culminaria, em outubro de
1969, em plena vigência do Ato Institucional número 5, não apenas na prisão de
dezesseis anarquistas no Rio de Janeiro, mas no próprio fichamento político de John
Cage no Brasil27. Dois anos depois, em 1971, Jocy de Oliveira se apresentou como
solista na primeira audição mundial de Cheap Imitation, famosa e polêmica peça de
John Cage para piano solo que, baseada na indeterminação, inspirava-se no I Ching e
em Erik Satie28.
Como se vê, havia uma afinidade artística significativa entre John Cage e Jocy
de Oliveira no momento em que esta foi convidada para coordenar, junto com Josely
Carvalho, o VI Encontro de Arte Moderna. Desde os anos 1960, os interesses pela

24
RUSH, Michael. Novas mídias na arte contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2006 [1999], p. 17-
19.
25
NEIVA, Tania Mello. Cinco mulheres compositoras na música erudita brasileira contemporânea.
Dissertação (Mestrado em Música), Unicamp, Campinas, 2006, p. 162.
26
FERRUA, Pietro. John Cage: anarquista fichado no Brasil, Verve, PUC-SP, São Paulo, n. 04, 2003, p.
22.
27
Idem, ibidem. Sobre o assunto, cf. também: FERRUA, Pietro. O “testamento anarquista” de John
Cage, Verve, PUC-SP, São Paulo, n. 05, 2004.
28
NEIVA, Tania Mello. Op. cit, p. 166; NATALI, João Batista. Crítica: pianista Jocy de Oliveira compõe
retratos pessoais de músicos, Folha de São Paulo, 06 ago. 2014.
198

abordagem multimidiática, processual e colaborativa haviam aproximado Jocy do


universo poético do consagrado compositor norte-americano, o que reverberaria
diretamente, como veremos adiante, no modo com que a artista problematizaria o
espaço urbano de Curitiba.

Repetição e monotonia: o antecedente de John Cage

Convidada por sua irmã Josely Carvalho para participar do VI Encontro de Arte
Moderna, Jocy de Oliveira teve uma passagem tão rápida quanto intensa por Curitiba.
Depois de treze anos sem visitar a capital paranaense 29, onde residia Jandyra
Carvalho de Oliveira, mãe das duas artistas, a pianista chegou a Curitiba numa quinta-
feira, dia 29 de agosto de 197430. Ao longo da sexta-feira, dia 30, Jocy passou “todo o
dia tratando de detalhes do concerto-happening”, previsto para o dia seguinte31.
Como parte de Homenagem a Duchamp, o tal concerto ocorreu durante o dia 31 de
agosto. No dia seguinte, domingo, 1º de setembro, Jocy de Oliveira retornou para o
Rio de Janeiro32, deixando para trás uma ação que marcaria o VI Encontro.
Na ocasião, Jocy propôs e coordenou a interpretação coletiva de uma pequena
peça musical para piano intitulada Vexations, de Erik Satie. Embora composta por um
francês em 1893, a obra demarca um momento seminal na história das vanguardas
norte-americanas do século XX33. Em linhas gerais, trata-se de uma peça curtíssima de
apenas treze compassos com execução de pouco mais de um minuto, que no entanto
deve ser executada 840 vezes seguidas, conforme instruções do próprio autor34. Já
na origem, Vexations é uma composição inusitada que, abrindo mão dos cânones da

29
Pianistas se revezam na peça-homenagem, Diário do Paraná, Curitiba, 31 ago. 1974.
30
MILLARCH, Aramis. As mulheres e o que fazem, Estado do Paraná, Curitiba, 30 ago. 1974; JUNG,
Carlos. Sem título, Coluna Jornal de Carlos Jung, Estado do Paraná, Curitiba, 30 ago. 1974. A matéria
publicada no Diário do Paraná se equivoca ao afirmar que Jocy Oliveira havia chegado em Curitiba na
sexta, dia 30 de agosto. Pianistas se revezam na peça-homenagem. Op. cit.
31
MILLARCH, Aramis. As mulheres e o que fazem. Op. cit.
32
Pianistas se revezam na peça-homenagem. Op. cit.
33
MENDEZ, Matthew. History, homeopathy and the spiritual impulse in the post-war reception of
Satie: Cage, Higgins, Beuys. In: POTTER, Caroline (org). Erik Satie: music, art and literature. Farnham:
Ashgate, 2013, p. 209.
34
SHAW-MILLER, Simon. The only musician with eyes: Erik Satie and visual art. In: POTTER, Caroline
(org). Op. cit, p. 93-95.
199

música tonal, baseia-se numa espécie de “cromatismo total”35. Suas notas espaçadas
e imprevisíveis, de ritmo estranho, aliadas a um andamento lento e melancólico,
criam um ambiente sonoro ligeiramente misterioso, quase sombrio. Na contramão
de qualquer virtuosismo técnico ou complexidade barroca, a simplicidade radical da
peça chegou a ser associada a uma necessidade de esvaziamento do ego, como se
diante dela fôssemos obrigados a encarar nossa própria “pobreza de espírito”. Em
certa medida, contudo, essa privação simbólica é deliberada e fundamental. Nas
palavras do crítico musical Matthew Mendez, a “falta quase total de diferenciação
temática, harmônica e tímbrica” de Vexations seria a prova de que a música de Erik
Satie “é demasiadamente simples para os ouvidos acostumados a sons muito
condimentados”36.
Além disso, a obsessiva repetição da peça, somada à “falta de força
gravitacional em direção à tônica e à dominante”37, tem o efeito de expandir o
ascetismo poético da composição. Como uma cobra infinita que não para de engolir
o próprio rabo, o protocolo do looping acaba criando uma rotina anestésica,
entorpecente, quase hipnótica. Depois de horas de execução, a audiência precisa
lutar contra a “dormência paralisante do tédio”38. De acordo com o musicólogo
Robert Orledge, o procedimento cíclico e por isso mesmo monótono de Vexations
antecipou em algumas décadas o serialismo característico de parte da música de
vanguarda do século XX39.
No caso de Jocy de Oliveira, todavia, a apropriação da obra de Erik Satie era
mais localizada, pois passava pelo filtro da vanguarda norte-americana do pós-guerra,
mais especificamente pela obra de John Cage. De acordo com um depoimento da
própria pianista, a interpretação de Vexations em Curitiba seria a terceira
apresentação pública da peça, sendo que a segunda havia sido realizada por ela

35
ORLEDGE, Robert. Satie’s personal and musical logic. In: POTTER, Caroline (org). Op. cit, p. 07.
36
Tradução livre do inglês: “Vexations, with its near-total lack of thematic, harmonic and timbral
differentiation, in its own way proves that the music of Monsieur le pauvre [Erik Satie] is too simple for
ears accustomed to highly spiced sounds”. MENDEZ, Matthew. Op. cit, p. 220.
37
No original: “The lack of gravitational pull towards the tonic and dominant”. GATES, Grace Wai Kwan.
Satie’s rose-croix piano works. In: POTTER, Caroline (org). Op. cit, p. 57.
38
MENDEZ, Matthew. Op. cit, p. 221.
39
ORLEDGE, Robert. Op. cit, p. 11.
200

mesma no Festival de Campos de Jordão, em 1973, e a primeira pelo próprio John


Cage, anos antes, nos Estados Unidos40.
Como se sabe, John Cage descobriu o manuscrito de Vexations em 1949, numa
viagem a Paris. Embora tenha reconhecido desde o início seu interesse pelas
repetições sugeridas na partitura de Satie, o músico norte-americano encontrou
grandes dificuldades logísticas quando, em 1951, pretendeu apresentar a obra na
íntegra. Ressabiados com a execução de uma peça que deveria ser repetida nada
menos que 840 vezes, os proprietários de espaços de audição simplesmente se
recusaram a aceitar um concerto que durasse uma noite inteira 41. Ambicioso, o
projeto de Cage precisou aguardar uma conjuntura mais aberta ao experimentalismo
das novas vanguardas. Assim, foi somente em 1963, setenta anos depois de ter sido
composta, que Vexations pôde finalmente estrear. Coordenada por John Cage, a
apresentação inaugural ocorreu em Nova York, no Pocket Theater, um teatro
decadente outrora dedicado aos vaudevilles. Para executar as 840 repetições da
peça, dez pianistas revezaram-se ininterruptamente por cerca de 18 horas e 40
minutos, na passagem do dia 8 para o dia 9 de setembro42. Na ocasião, uma série de
figuras do mundo underground nova-iorquino compareceu à longuíssima audição,
incluindo o próprio Andy Warhol. O sucesso do evento foi instantâneo. Contando
com uma ampla cobertura da mídia nacional e internacional, a interpretação coletiva
de Vexations chegou a ser tema de um popular programa de televisão logo na semana
seguinte43.
Na prática, por mais refinado que fosse o apuro técnico dos pianistas, era
impossível que as repetidas interpretações de Vexations fossem realmente idênticas
entre si. A cada execução, e a cada novo intérprete que se apresentava, ocorriam
ligeiras mas perceptíveis modificações de acento, ritmo ou andamento. Para
Matthew Mendez, mais do que uma preocupação pragmática voltada à resistência
física dos executantes, o uso de vários pianistas foi “uma estratégia deliberada” de

40
Jocy de Oliveira apud Das seis da manhã à madrugada: loucura de arte na praça, Diário do Paraná,
Curitiba, 31 ago. 1974.
41
MENDEZ, Matthew. Op. cit, p. 210-211.
42
Idem, ibidem, p. 209-210.
43
Idem, ibidem, p. 210.
201

John Cage “para amplificar estes efeitos”44. Com a inevitável variação perceptiva
derivada da longa execução, o conteúdo emocional de Vexations ia se alterando com
o tempo, gerando novos sentidos. De acordo com o próprio Cage, a ideia era que “as
pessoas percebessem que elas próprias estavam fazendo a sua experiência” 45. E de
fato, passados apenas dez minutos de apresentação, um ouvinte chegou a
abandonar o evento, alegando que a música induzia a sentimentos de “ansiedade,
medo e apreensão”46. Como bem definiu a escritora Ornella Volta, a experiência de
Vexations assemelhava-se a uma “espécie de autoflagelação derivada das penitências
dos monges medievais”47.

Vexations em Curitiba

Passados onze anos, Jocy de Oliveira pretendeu repetir a experiência em


Curitiba, com a diferença de que agora o cenário, projetado pelo célebre urbanismo
lernista, seria o próprio coração da “cidade modelo”. Partindo do inusitado confronto
entre a abordagem libertária de John Cage com as diretrizes do Plano Diretor local, a
ideia era fazer de Vexations um ponto de convergência entre música, performance e
arte pública.
A realização da proposta dependia de “um piano de armário ou meia cauda”,
conforme previsto no projeto de Josely Carvalho para o VI Encontro de Arte
Moderna48. Embora uma reportagem da época afirmasse que um piano “Essenfelder
de cauda” tenha sido emprestado para a execução da peça, as fotos do evento

44
Tradução livre do inglês: “The use of multiple pianists, if partly motivated by the pragmatic concern
of stamina among the executants, was therefore also justified ex post facto as a deliberate strategy
for amplifying these effects”. Idem, ibidem, p. 215.
45
Tradução livre: “I try to get it so that people realize that they themselves are doing their experience
and that it’s not being done to them”. John Cage apud KOSTELANETZ, Richard. Conversing with Cage,
2ª ed. New York: Routledge, 2003, p. 109.
46
Tradução livre: “an audience member at the original Pocket Theater performance had to leave after
10 minutes, claiming the music immediately induced feelings of ‘anxiety, fear and apprehension’”.
MENDEZ, Matthew. Op. cit, p. 220.
47
Tradução livre: Vexations, this “sort of self-flagellation reminiscent of the medieval monk’s
penances”. Ornella Volta apud CICCOLINI, Aldo. Erik Satie: L’oeuvre pour piano. Vol. 02, 1987, p. 06.
48
CARVALHO, Josely. Projeto de criatividade: educação através da arte, texto datilog, 10 páginas
numeradas, ago. 1974, p. 09 (Curitiba, 05 dez. 2002).
202

confirmam que se tratava na verdade de um piano de armário, de tipo vertical.


Convergindo com a proposta de arte urbana do VI Encontro, Vexations foi projetada
para intervir diretamente no espaço da cidade, fazendo dos transeuntes o público
alvo da ação. Para tanto, o piano foi instalado no interior de um quiosque comercial,
uma espécie de módulo de acrílico transparente que se situava na Boca Maldita, logo
à frente da Confeitaria Iguaçu, há poucos metros do Edifício Arthur Hauer, na Rua
Voluntários da Pátria, 368, quase na esquina na Avenida Luiz Xavier49. De acordo com
o jornalista Aramis Millarch e o artista Elvo Damo, o quiosque foi cedido
pessoalmente pelo comerciante João Jacob Mehl, proprietário da Confeitaria
Iguaçu50. Com vistas ao alargamento público da experiência, o piano foi conectado a
um sistema de amplificação sonora composto de diversos alto-falantes fixados em
alguns pontos da Boca Maldita, em meio ao trânsito intenso de pedestres do centro
de Curitiba51.
A escolha do local da ação era repleta de sentidos. Situada no centro
pedestrianizado de Curitiba, logo no início da Rua XV, nas imediações da Praça Osório,
a Boca Maldita era um local à céu aberto sem espaço definido, um verdadeiro ponto
de encontro voltado às conversas de roda. Em poucas palavras, tratava-se do
exemplo máximo da ideia, essencial na primeira gestão de Jaime Lerner, de que o
centro da cidade, uma vez pedestrianizado, consistia numa autêntica “sala de visitas
ao ar livre”. Inserida no início do “calçadão” e incrementada pelo recém-inaugurado
mobiliário urbano, a região era o cerne da “cidade modelo”, e como tal se abria à
convivência estética cordial, já mencionada. Mais do que um espaço, aliás, a Boca
Maldita era uma instituição dotada de certo prestígio. Criada em 1957 e
institucionalizada em 1966, a entidade consistia originalmente numa agremiação

49
MILLARCH, Aramis. A cidade & a música, Estado do Paraná, Curitiba, 03 set. 1974; BOGUSZEWSKI,
José Humberto. Edifício Paraná, JHB Design, blog, nov. 2014. Disponível em:
www.jhbdesign.com.br/edificio-parana; DAMO, Elvo Benito. Entrevista a Artur Freitas, Centro de
Criatividade da Fundação Cultural de Curitiba, Parque São Lourenço, Curitiba, 14 fev. 2013.
50
MILLARCH, Aramis. A cidade & a música. Op. cit; DAMO, Elvo Benito. Entrevista a Artur Freitas. Op.
cit.
51
OLIVEIRA, Jocy de. Dias e caminhos: seus mapas e partituras. Rio de Janeiro: Imprinta, 1983, p. 69;
BOGUSZEWSKI, José Humberto. Edifício Paraná. Op. cit; DAMO, Elvo Benito. Entrevista a Artur Freitas.
Op. cit.
203

machista que pretendia atuar como uma espécie de tribuna livre para homens
notáveis52. Em meados dos anos 1970, parte da força de seus integrantes derivava de
uma lenda urbana ainda bastante recente, segundo a qual o ex-Governador do
Paraná Haroldo Leon Peres, acusado de improbidade, teria renunciado, em 1971,
graças à oposição política de membros da Boca Maldita. Na prática, contudo, a Boca
consistia num cenário urbano aberto à partilha da experiência sensível: uma
movimentada região da Rua XV repleta de lojas e cafés de toda sorte.
No projeto original, Vexations deveria ser executada por um “número x de
pianistas voluntários”, previamente inscritos53. Ditadas por Jocy de Oliveira, as
instruções de interpretação eram bastante rigorosas. Com início previsto para às seis
horas da manhã do dia 31 de agosto, a execução ininterrupta deveria durar o mesmo
tempo do célebre concerto inaugural de John Cage, 18 horas e 40 minutos,
concluindo-se às zero horas e quarenta minutos da madrugada do dia seguinte. Nesse
meio tempo, cada pianista seria responsável por tocar a peça durante 20 minutos,
executando quinze vezes a partitura, sendo que cada repetição deveria durar 1
minuto e 20 segundos. Finalizado o primeiro bloco, um novo instrumentista assumiria
o piano, tocando mais 20 minutos, e assim sucessivamente. Além disso, “para
concentrar-se e observar o andamento da execução anterior”, o “ritual da peça”
exigia que os pianistas organizassem “um horário, chegando 20 minutos antes de sua
vez”. No término da apresentação, portanto, cada bloco de 20 minutos teria sido
executado cinquenta e seis vezes54.
Para guiar os intérpretes durante a execução da peça, Jocy de Oliveira escreveu
à mão uma partitura de Vexations. No corpo do manuscrito, algumas anotações da
pianista reforçavam as instruções iniciais: “Esta peça deve ser executada como
ritornello em 1 minuto e 20 segundos”, sendo repetida “15 vezes em 20 minutos”. Ao

52
VIEIRA, Flavia. Espaços públicos de lazer no centro de Curitiba. Dissertação (Mestrado em Educação
Física), UFPR, Curitiba, 2010, p. 45.
53
CARVALHO, Josely. Projeto de criatividade. Op. cit, p. 07.
54
CARVALHO, Josely; OLIVEIRA. Jocy de. Slides y Montagem Josely Carvalho Piano Tapes Jocy de
Oliveira, duas folhas, datilog, 1974, p. 01 (MAC-PR)
204

final da partitura, um lembrete concluído com três exclamações dava o tom de


seriedade do evento: “É absolutamente necessário MANTER O TEMPO!!!” 55.
No início do sábado, dia da apresentação, João Jacob Mehl, proprietário da
Confeitaria Iguaçu, acordou às cinco horas da manhã para pouco depois abrir o
quiosque e receber Jocy de Oliveira56. Já na sexta, vários pianistas da cidade, oriundos
sobretudo da EMBAP57, haviam se voluntariado para tomar parte do evento. O
número efetivo de participantes, todavia, é incerto. Num livro memorialista, Jocy
mencionou um total de vinte pianistas 58. Três dias depois do evento, entretanto,
Aramis Millarch afirmou, numa reportagem, que na ocasião teriam comparecido
“quinze jovens voluntários”59; em outra situação, aliás, o próprio Aramis havia
mencionado que, apesar dos planos iniciais, “não apareceram pianistas voluntários
em número suficiente que justificasse esse tour-de-force”60. Em contrapartida, ao
menos duas testemunhas da época disseram que seriam na verdade quatorze, e não
quinze os participantes que compareceram61. Seja como for, ao menos onze pianistas,
todas mulheres, parecem ter efetivamente integrado a proposta: Ana Feijó, Belkias
Cardoso, Denise Bremer, Jandira de Oliveira, Jocy de Oliveira, Lucia Helena Bezerra,
Moema Cardoso, Regina Gomes, Salete Chiamulera, Sandra Burgo Tacahashi e Priscila
Cardoso62.
Na véspera do evento, Aramis Millarch afirmou que, por conta da redução do
número de voluntários, a interpretação de Vexations teria seu tempo de duração
abreviado para “seis horas e quarenta minutos de execução repetida”63. Por outro
lado, algumas testemunhas, incluindo a própria Jocy, sustentaram que a execução da

55
CARVALHO, Jocy. Partitura musical de Vexation, folha única, manuscrito com anotações, s.d. (MAC-
PR).
56
MILLARCH, Aramis. A cidade & a música. Op. cit.
57
BOGUSZEWSKI, José Humberto. Edifício Paraná. Op. cit.
58
OLIVEIRA, Jocy de. Dias e caminhos. Op. cit, p. 69.
59
MILLARCH, Aramis. A cidade & a música. Op. cit.
60
MILLARCH, Aramis. As mulheres e o que fazem. Op. cit.
61
[BEDA]. 6º Encontro, texto manuscrito e assinado, duas folhas, s.d. [1974] (MAC-PR); O som
hipnótico, o barro, o xadrez, etc: a nova arte moderna, Estado do Paraná, Curitiba, 1º set. 1974.
62
A Boca vai ouvir muito piano, [sem indicação de jornal], Curitiba, 31 ago. 1974; GOMES, Regina. Sem
título, texto manuscrito e assinado, folha única, s.d. [1974] (MAC-PR).
63
MILLARCH, Aramis. As mulheres e o que fazem. Op. cit.
205

peça teria durado o tempo inicialmente previsto de 18 horas e 40 minutos64. Em


qualquer dos casos, contudo, a apresentação parece ter se estendido de fato por
muitas horas, perdurando, no mínimo, por toda a manhã e parte da tarde do mesmo
sábado.
Como proposta geral, a execução musical rigorosa, sucessiva e coletiva exigia
das intérpretes de Vexations a supressão de traços estilísticos pessoais, de fundo
autoral, em favor de uma tonalidade emocional distanciada e pretensamente neutra.
Em depoimento publicado no dia do evento, Jocy afirmou que as “pianistas deveriam
observar a maior seriedade e respeito, colaborando numa experiência de conjunto,
abdicando [do] individualismo”65. Passados alguns anos, o elogio ao refreamento
autoral das intérpretes parecia ainda se manter: “Com esta peça”, afirmou a artista,
“o culto da personalidade do virtuose é desmistificado, já que todos os pianistas
partilham o mesmo piano durante uma mesma parcela de tempo, e numa quase
completa anonimidade”66.
Às seis da manhã do fatídico dia 31 de agosto de 1974, Jocy sentou-se ao piano
e deu início à apresentação, tocando a peça por 20 minutos, como previsto67. Logo
em seguida, a pianista Regina Gomes assumiu o posto, às seis e vinte, sendo em
seguida substituída por outra pianista, e assim por diante 68. Desde o início, Vexations
foi pensada para ocupar o centro de Homenagem a Duchamp, conduzindo, de forma
sincronizada e simultânea, o ritmo e o andamento das demais atividades. Por meio
do sistema de alto-falantes espalhados pelas ruas, o som contínuo da peça unificou o
espaço das ações, na ocasião restrito às poucas quadras que separavam o Museu de
Arte Contemporânea do Paraná da Boca Maldita, no centro da cidade, criando assim
um evento integrado que se baseava em um único “tempo-estrutura de 18 horas e 40
minutos”69, ou enquanto durasse a execução. Simultaneamente, o Museu de Arte

64
OLIVEIRA, Jocy de. Dias e caminhos. Op. cit, p. 71; [BEDA]. 6º Encontro. Op. cit; BOGUSZEWSKI, José
Humberto. Edifício Paraná. Op. cit; DAMO, Elvo Benito. Entrevista a Artur Freitas. Op. cit.
65
Jocy de Oliveira apud Das seis da manhã à madrugada: loucura de arte na praça, Diário do Paraná,
Curitiba, 31 ago. 1974.
66
OLIVEIRA, Jocy de. Dias e caminhos. Op. cit, p. 69.
67
A Boca vai ouvir muito piano. Op. cit.
68
GOMES, Regina. Op. cit.
69
Programa – VI Encontro de Arte Moderna, duas folhas, datilog, 1974, p. 01 (MAC-PR)
206

Contemporânea abriu suas portas à visitação de um ambiente multimídia realizado


em tributo ao pensamento dadaísta e poéticas afins. De acordo com o artista Elvo
Damo, presidente do Diretório Acadêmico Guido Viaro, “tudo ocorria ao mesmo
tempo”70. Em paralelo à visitação do museu e à execução pública de Vexations, o
público percorreu o itinerário sugerido, indo da Peça pão, realizada ao lado do MAC-
PR, para o quiosque da Boca Maldita, onde estavam as pianistas, para depois voltar
ao museu e assim sucessivamente. Nas suas palavras, “o pessoal pegava o pão lá [na
Peça pão], saía com a massa na mão e ia até o quiosque pra conversar, ver o pessoal
tocando piano, ficava escutando, voltava, pegava o pão assado, comia. E esse era o
trabalho todo”71.

Jogar por música: o torneio espontâneo de xadrez

Paralelamente, o público passante foi convidado a participar de um “torneio


espontâneo de xadrez”, a ser realizado em alguns espaços públicos centrais de
Curitiba, como a Praça Generoso Marques, o Passeio Público, a Rua das Flores e o
MAC-PR72. No contexto de uma obra-homenagem como aquela, o xadrez foi
escolhido por se tratar de um “jogo que fascinava a Marcel Duchamp” 73. A partir de
meados dos anos 1920, como se sabe, Duchamp dedicou parte considerável de sua
vida para a prática do xadrez, inclusive em nível profissional. Em 1932, o artista
chegou a publicar um livro sobre o tema em parceria com o enxadrista franco-
ucraniano Vital Halberstadt74.
De acordo com Jocy de Oliveira, “a maior parte das partidas foi realizada na rua
principal, dentro do módulo de acrílico, com um balcão para cafezinho e o piano”75.

70
DAMO, Elvo Benito. Entrevista a Artur Freitas. Op. cit.
71
Idem, ibidem.
72
Programa – VI Encontro de Arte Moderna. Op. cit, p. 02; 6º Encontro de Arte Moderna, folder do
Programa, Curitiba, 22 ago. a 02 set. 1974.
73
Programa – VI Encontro de Arte Moderna. Op. cit, p. 02.
74
NAUMANN, Francis. Marcel Duchamp: a reconciliation of opposites. In: KUENZLI, Rudolf;
NAUMANN, Francis (org). Marcel Duchamp: artist of the century. 4ª ed. Cambridge: MIT Press, 1996
[1990], p. 33.
75
OLIVEIRA, Jocy de. Dias e caminhos. Op. cit, p. 70.
207

Nas poucas fotos disponíveis, vemos que algumas mesas encimadas por tabuleiros e
peças de xadrez foram de fato dispostas no interior do quiosque. Divididos entre os
lances da partida e as notas repetitivas de Vexations, os jogadores ficavam a poucos
metros do piano, sentados aos pares, às costas da pianista da vez. Enquanto isso, ao
que parece, “as outras partidas [que integravam Homenagem a Duchamp] foram
jogadas ao ar livre, num tabuleiro gigante desenhado no chão de uma praça pública,
além de partidas em diferentes locais da cidade, onde os jogadores se comunicavam
através de rádio”76.
As partidas de xadrez e a interpretação curitibana da peça de Erik Satie
formaram um bloco poético fracionado. Como no caso da execução criteriosa de
Vexations, que dependia da atenção a normas de interpretação bastante precisas,
cada partida de xadrez baseou-se em um conjunto de instruções previamente
definidas. Além das evidentes regras do próprio xadrez, subentendidas para a prática
do jogo, cada enxadrista precisou conhecer e cumprir um determinado roteiro de
procedimentos que vinculava cada lance da partida à música que se ouvia. No projeto
original, o torneio de xadrez deveria durar o mesmo tempo da execução de
Vexations, ou seja, 18 horas e 40 minutos. Mas além disso, Jocy e Jocely elaboraram
diretrizes mais minuciosas, fazendo com que o próprio torneio, em convergência com
a interpretação musical, fosse entendido como um único jogo. Na prática, a ideia era
a seguinte:

Observando a mesma estrutura temporal de 18h e 40m, jogadores de xadrez participam


de partidas numa ação contínua sem interrupção. Como regra de jogo e baseada na
duração de cada repetição da partitura de Satie, cada lance durante os jogos de xadrez
deverá ter a duração de 1’20’’. Os jogadores organizam um horário aproximado de
revezamento, pois as partidas deverão ser recomeçadas sem interrupção77.

Desde o final do século XIX, torneios de xadrez baseados no controle rigoroso


do tempo de cada lance eram uma prática comum no meio enxadrístico. A diferença
agora seria que a duração de cada movimento de peça estaria determinada não pelo

76
Idem, ibidem. Infelizmente, não foi encontrada nenhuma outra fonte documental que aborde o
tabuleiro gigante ou as partidas via rádio.
77
CARVALHO, Josely; OLIVEIRA, Jocy de, Slides y Montagem... Op. cit, p. 01. O mesmo texto relativo às
regras de execução do xadrez no contexto de Homenagem a Duchamp foi também publicado em: Das
seis da manhã à madrugada. Op. cit.
208

tempo objetivo de um relógio duplo, daqueles usados nas partidas de xadrez, mas
pelo tempo, certamente mais subjetivo, de cada execução integral da peça de Satie.
Como um autêntico jogo, uma partida de xadrez pode durar um tempo
evidentemente indeterminado, mesmo nas situações em que há um controle prévio
da duração de cada lance ou partida. Em nenhum caso é possível determinar de
antemão quando um jogo de xadrez chegará ao fim: pode ser num xeque-mate, num
empate por repetição, na aceitação mútua de um empate ou numa imprevista
desistência de um dos jogadores – definitivamente não temos como saber. Em
termos matemáticos, seria possível, embora pouco provável, que no contexto de
Homenagem a Duchamp uma única partida se estendesse por todas as 18 horas e 40
minutos, totalizando 840 movimentos de peça, em convergência com o número
exato de execuções inicialmente previstas para cada looping de Vexations. Para Jocy
e Josely, todavia, “vencer não terá a menor importância e sim a ação em si, a
experiência de verificar quantas partidas foram jogadas no final das 18h 40min” 78.
Dispersos no centro da capital paranaense, enxadristas e pianistas integraram
juntos a mesma estrutura poética, partilhando inclusive de alguns problemas
comuns, voltados à prática de ações coletivas. “Assim como representa uma
dificuldade para o pianista abdicar de seu individualismo mantendo sempre o mesmo
tempo de execução”, afirmaram Jocy e Josely, também “representa para o jogador
um problema de estabelecer o mesmo tempo de raciocínio para mentes
diferentes”79. Todavia, embora música e jogo estivessem intimamente conectados, é
certo que houve uma precedência da primeira sobre o segundo. Diante do aspecto
silencioso e abertamente cognitivo de uma partida de xadrez, foi o caráter invasivo
de uma interpretação musical amplificada como aquela o que afinal motivou não
apenas as ações de cada enxadrista, mas, como veremos a seguir, as mais variadas
reações do público passante.

78
CARVALHO, Josely; OLIVEIRA, Jocy de, Slides y Montagem... Op. cit, p. 01.
79
Idem, ibidem.
209

O público de Vexations

Os múltiplos sentidos de Vexations não cabem na partitura, sequer numa


interpretação isolada da peça. Previstas já na origem por Erik Satie, as 840 execuções
consecutivas transcendem, pela própria repetição, qualquer análise estritamente
musicológica. Prolongada por horas a fio, a audição integral da obra exige tenacidade
e resistência. Como proposta poética, aliás, Vexations é mais do que uma obra: é uma
autêntica experiência, e como tal pressupõe, no plano psicológico, prováveis
alterações dos estados de consciência. Para além do domínio da audição tradicional,
que presume a separação ordinária entre palco e plateia, a repetição exaustiva de
uma peça em si mesma repetitiva parece induzir a reações inusuais, como se o
ouvinte, provocado por uma exposição superlativa, fosse convocado, sem qualquer
euforia dançante, a abandonar a quietude contemplativa. Quando despertadas, a
incompreensão e mesmo a irritação diante da longa execução não surgem de pronto:
formam-se aos poucos, grão após grão, na exata medida em que se vai percebendo
que não, não há nem haverá ali nenhum desfecho ou mudança de padrão. Como no
curso da própria vida, é só no meio do caminho que se percebe, afinal, que a moral
da história não existe, assim como também não existe nenhuma espécie de télos
redentor.
Vista com inteireza, Vexations baseia-se, entre outras coisas, na ideia do
choque, pois é mesmo chocante admitir a falta de sentido do devir. Nesses termos,
não admira que seu interesse tenha reflorescido justamente no contexto das novas
vanguardas, quando o resgate do épater le bourgeois dadaísta esteve na linha de
frente de certas ações culturais de teor transgressivo. A partir sobretudo dos anos
1960, não faltaram exemplos de estratégias poéticas transnacionais centradas
justamente na crítica à experiência estética convencional. Entre o palco e a plateia,
ou se quisermos, entre o intérprete sonoro e o público silencioso, a performance e
todas as variações das artes corporais despontaram como formas de questionar a
validade dessas dicotomias. Nesse contexto, John Cage talvez tenha sido um dos
210

primeiros a perceber as potencialidades também performáticas de Vexations. Logo


na primeira interpretação da peça, em 1963, no Pocket Theater, parece ter ficado
claro que a composição de Satie, quando executada integralmente, fazia da audição
concreta um verdadeiro campo de experiências, fossem elas físicas, cognitivas ou
emocionais. Por outro lado, é preciso ter em mente que tal experiência foi realizada
num teatro convencional diante de alguns conhecidos personagens do mundo
underground de Nova York, entre os quais Andy Warhol.
Desse modo, quando Jocy de Oliveira planejou a interpretação integral e
amplificada de Vexations em pleno centro de Curitiba, logo ficou evidente que, não
obstante a assumida influência de John Cage, a proposta da pianista alargava o
campo de experiências, incluindo agora as imprevisíveis disposições do espaço
urbano, com seu público aleatório e via de regra não especializado. O conflito com a
dimensão estética apaziguadora implícita no recente planejamento urbanístico de
Curitiba era evidente. Em pouco tempo, o caráter performático da execução induziu
às mais variadas reações dos passantes. Somado ao torneio de xadrez e à invasiva
amplificação eletroacústica, o revezamento ritualístico das pianistas no interior de
um quiosque transparente funcionou como uma espécie de ímã simbólico, atraindo
com força magnética o interesse e os corpos do público anônimo. No coração da
“cidade modelo”, as pessoas passavam, paravam, comentavam e seguiam seu rumo.
Algumas retornavam, curiosas. Repetitivo e dilatado pelos alto-falantes, o som se
ouvia de longe, dispersando o ponto de origem. Mais que todos, lojistas, garçons e
trabalhadores diversos das proximidades se viram expostos aos efeitos daquela
experiência estética e comportamental. Como uma correnteza irreversível, a
enchente sonora invadiu todos os espaços, escalando andares e atravessando
paredes, sem respeitar dique de qualquer tipo. Nas palavras de Jocy de Oliveira,

Todo o evento foi observado por psicólogos, assistido por comerciantes, trabalhadores,
envolvendo estudantes e presenciado pelos pedestres que passavam. As reações foram
controvertidas. Alguns próximos da histeria não puderam suportar tanta estimulação.
Outros aceitaram pacificamente a repetição hipnótica da melodia de Satie80.

80
OLIVEIRA, Jocy de. Dias e caminhos. Op. cit.
211

Provocativa e amplamente divulgada, a interpretação da peça atraiu um público


tão grande quanto diversificado. De acordo com a pianista Regina Gomes, envolvida
na ação, estiveram presentes “poetas, críticos, médicos”, além do próprio prefeito
Jaime Jaimer, que “também veio nos prestigiar”81. Aluno da Escola de Música e Belas
Artes do Paraná e uma das testemunhas do evento, José Humberto Boguszewski foi
enfático: “de todas as atividades realizadas durante o Encontro, a mais marcante e
polêmica foi, sem dúvida, a execução da peça Vexations de Erik Satie”82. Por conta da
circunscrição pública e controversa, a performance contou com uma abrangente
cobertura da imprensa. Além disso, como parte das atividades do VI Encontro de Arte
Moderna, um grupo de estudantes da EMBAP foi destacado para registrar as opiniões
do público83. Perambulando pelos arredores da Boca Maldita, os alunos travaram
deliciosos diálogos com os entrevistados, que precisavam responder a perguntas
como “o que você está achando da música?”, “você está ouvindo esta música desde
que horas?” ou “o senhor sabe o que é dadaísmo?”84.
Como a interpretação era ouvida por alto-falantes, nem todos os passantes
sabiam onde exatamente estavam as pianistas, sequer se se tratava de uma música
gravada ou ao vivo. “À primeira vista”, de acordo com uma reportagem, os acordes
“aparentavam ser inofensivos sons oriundos de uma loja de discos”. No entanto,
prosseguiu o texto, “a continuidade dos sons acabou retendo a atenção – talvez
inconsciente – daqueles que permaneceram expostos à execução durante algum
tempo”85.

Tédio e irritação: tom-tom-tom-tom

81
GOMES, Regina. Op. cit.
82
BOGUSZEWSKI, José Humberto. Edifício Paraná. Op. cit
83
O som hipnótico, o barro, o xadrez, etc. Op. cit; A terapia da música, Diário do Paraná, Curitiba, 1º set.
1974.
84
Posteriormente, o resultado dessas entrevistas foi transcrito à mão no seguinte documento:
Semana de Arte Moderna, texto manuscrito, cinco folhas com frente e verso, sem paginação, s.d. [31
ago. 1974] (MAC-PR). Não há indicação dos nomes dos entrevistados.
85
A terapia da música. Op. cit.
212

À exceção de umas poucas vozes, a grande maioria dos entrevistados pareceu


contrariada com a apresentação, tendendo a expressar opiniões negativas ou quase,
que variavam do tédio à fúria, passando pela indignação e pela melancolia. De acordo
com o jornalista Aramis Millarch, a execução inédita da peça era um teste para “os
provincianos ouvidos da população”86. Perguntado pelos alunos da EMBAP acerca da
sensação pessoal diante de Vexations, um dos entrevistados foi direto: essa música
“não transmite nada para mim, não. É uma monotonia total”. Ao que parece, a
experiência da peça evocava um problema de fundo, mais geral, uma espécie de
constatação melancólica. Para ele, a ausência de emoções ali implícita seria um indício
do processo de desumanização causado pela sociedade industrial. O caráter tedioso
dessa música, concluiu, “significa que cada vez mais a gente está ligado na
máquina”87.
Na linha do tédio, há ainda um outro depoimento relevante. Andando pela Boca
Maldita na manhã daquele sábado, um professor afirmou que havia começado a dar
aula nas redondezas já muito cedo, às 7h15m, como de costume. Em pouco tempo,
contudo, a música intermitente foi invadindo a sala de aula lotada, contagiando os
seus duzentos alunos, que logo deixaram a escola e dirigiram-se para a rua, rumo à
apresentação. Conforme a avaliação do professor, “o que trouxe os alunos foi sono.
Não sei se porque era a primeira aula” ou se foi porque “os alunos não estavam ainda
habituados” com aquele tipo de som. Pois nós, em Curitiba, “temos uma loja de disco
aqui em frente e eles estão habituados com aquele ritmo da música. Agora, esse, eles
estranharam”. Aliás, confessou, “não entendo até agora o que vem a ser essa
música”, qual “o motivo da música”88.
Tédio, sono e melancolia foram palavras recorrentes naquele dia. Entrevistado,
um dos duzentos alunos gazeteiros afirmou que estava achando a música “muito
melancólica”. “Inclusive”, prosseguiu, eu “estava falando com meus colegas. E o que
eles acharam, não sei. O pessoal está prestando atenção na música, sem ligar muito”.
No seu entendimento, a “tradição” da música popular, ou seja, o padrão musical ao

86
MILLARCH, Aramis. As mulheres e o que fazem. Op. cit.
87
Semana de Arte Moderna. Op. cit.
88
Idem, ibidem.
213

qual aqueles alunos estavam habituados, era de tipo “alegre e jovial, e essa música
não condiz com isso”89. Essa música, completou alguém, “não tem ritmo” “não tem
coisa nenhuma. Se isso é cultura, a gente não entende”90.
Mesmo entre músicos, a incompreensão era generalizada. “Eu estou
procurando entender, porque entendo um pouco de música. Sou músico. E gostaria
de saber qual a razão dessa situação e qual a sua finalidade”. Longe dos padrões
tanto da música popular quanto da música erudita tonal, a repetição incessante de
Vexations parecia não ter nenhum propósito. Para outro músico, essa aparente
ausência de função não era prejudicial em si mesma, mas pelos seus efeitos
concretos, na medida em que afastava o público: “Eu estudei música. Não está muito
bom, não. Não dá muita atração. O público não está gostando. Ninguém gostou dessa
música hoje. Eu acho horrível isso. Esse negócio aí, essa música. Todo mundo foi
embora”91.
Ao longo dos anos 1970, com a inauguração do Teatro Paiol e as ações públicas
da recém criada Fundação Cultural de Curitiba, propagou-se o mito enviesado de que
o público curitibano seria mais exigente, nos campos do teatro e da música, que a
média do público nacional. Partilhando dessa ideia, que confundia frieza e
acanhamento com requinte estético, um dos entrevistados chegou a acusar os
organizadores do VI Encontro de falta de pesquisa e planejamento. Na sua opinião,
os curitibanos “têm informação” e conhecimento “pró-música”, e para adequar-se a
esse público, seria necessário saber “como as pessoas de Curitiba reagem às coisas”.
Por outras palavras, “vocês deviam ter feito alguma pesquisa”, e “a partir desses
dados vocês não deveriam colocar [essa música] como foi colocado”. Do modo como
foi feito, “as reações serão piores”, concluiu, sem no entanto explicar se afinal
Vexations estaria aquém ou além dos “exigentes” ouvidos curitibanos 92.
Seja como for, o fato é que boa parte do público de Vexations se sentiu
realmente incomodada diante do “eficiente e às vezes odiado sistema de alto-

89
Idem, ibidem.
90
Idem, ibidem.
91
Idem, ibidem.
92
Semana de Arte Moderna. Op. cit.
214

falantes distribuídos pela área central” 93. Para um dos entrevistados, a performance
“está provocando um impacto. Algumas pessoas estão um pouquinho chocadas”.
Para outra, uma senhora, “a cidade nunca esteve tão perturbada como nesses
últimos dias, mas isto já é demais”94. Mais que a repetição, era a própria estranheza
da composição repetida que garantia o enfado de muitos. “Se tocada das 6 horas à
meia noite”, confessou alguém, “a gente enjoa da música”. “Agora, tem exceção”,
ponderou. “Por exemplo, se você tocar uma música suave, daquela mais romântica,
isso vai ajudar”. O padrão cromático e quase indiferenciado de Vexations, com suas
notas marcadamente espaçadas, parecia magoar o espírito daqueles que,
submetidos a muitas horas de execução contínua, não tinham como se afastar da
Boca Maldita. “Eu estou trabalhando”, enfatizou um entrevistado, “e aquela música
tom-tom-tom-tom”95.
Exposto à interpretação “desde as 9 horas” da manhã, um depoente,
identificado como coordenador de curso da Fundação Teatro Guaíra, deu sua opinião
sincera: “Não acho bom, não, porque é tudo a mesma coisa. É de encher a medida.
Aquela música batendo o dia todo ali. Vou dizer uma coisa: é uma dor de barriga
certa”. Depois de algum tempo, o acúmulo excessivo de notas insuficientemente
diferenciadas – “tom-tom-tom-tom” – funcionava como um protocolo monótono,
algo como uma torneira mal fechada cujos pingos não tardariam a transbordar nas
emoções dos ouvintes. “O que eu estou achando”, respondeu um entrevistado
furioso, “é que o que vocês estão conseguindo é encher o saco do pessoal” 96. “Nós
ficamos dezoito ou vinte e quatro horas” ouvindo a mesma música, exagerou o
artista Elvo Damo, reforçando o efeito do excesso de repetição. “Então foi aquela
merda: tim tom-tom, tim tom-tom-tom-tom, lá no fundo. Foi uma encheção de saco.
O pessoal não gostou, criticou. O pessoal foi lá pedir pra parar. Gente reclamando,
pessoal de loja reclamando. Foi uma reclamação geral”97.

93
A terapia da música. Op. cit.
94
Apud O som hipnótico, o barro, o xadrez, etc. Op. cit.
95
Semana de Arte Moderna. Op. cit.
96
Idem, ibidem.
97
DAMO, Elvo Benito. Entrevista a Artur Freitas. Op. cit.
215

“Uma verdadeira porcaria”, acrescentou alguém. “Esta música não é música: é


bater no teclado”. Na sua compreensão, a recepção negativa a Vexations derivava de
uma escolha equivocada de repertório, pois até mesmo um leigo saberia escolher
músicas que agradassem ao grande público: “Eu boto uma escola de samba aqui que
faz mais sucesso do que essa música aí”, sentenciou. “Minha cabeça está estourando
já”, disse outra pessoa. “O que está tocando? Está horrível isso aí, meu deus do céu.
Não aguento”98. Um pouco mais compreensivo, um entrevistado reconheceu que “a
monotonia também é uma forma de arte, que aceitamos. Mas agredir o povão não
dá”. Para ele, a agressividade implícita na arte de vanguarda só faria sentido se fosse
precedida de uma pedagogia estética realmente eficaz: “O povão tem de ser
educado. Para um dia poder ser agredido também”99. Para alguns, aliás, a situação
era tão insólita e abusiva, tão desesperadoramente aflitiva, que só a violência seria
capaz de interromper aquela música. Dá vontade de “jogar uma pedra no cara”,
alguém esbravejou100.

Comerciantes em fúria

Por outro lado, é significativo perceber que as reações mais enfurecidas não
partiram dos transeuntes, mas sim de alguns comerciantes que trabalhavam nas
proximidades do evento. E isso por dois motivos. Primeiro, porque os lojistas da
região ficaram muito tempo expostos aos efeitos da execução contínua de Vexations,
ao contrário dos simples passantes, que podiam escolher se ficavam por perto ou se
iam embora. Mas além disso, a questão central era que, com a partida de muitos
clientes potenciais, o movimento comercial das redondezas acabou sendo
negativamente afetado. De acordo com uma reportagem, a apresentação musical
“não agradou alguns dos que mantêm estabelecimentos comerciais na zona central,
principalmente bares e lanchonetes da Boca Maldita, que, segundo as garçonetes,

98
Semana de Arte Moderna. Op. cit.
99
[Sem título], texto manuscrito, folha única, s.d. [1974] (MAC-PR).
100
Semana de Arte Moderna. Op. cit.
216

estiveram vazios”101. “A Boca Maldita”, em resumo, “teve seu movimento caído” ao


longo do sábado, o que evidentemente desagradou diversos lojistas 102.
Entrevistada por uma aluna da Belas Artes, uma florista não escondeu sua
irritação: “Ora minha filha, o pessoal vinha comprar flor na hora do movimento, entre
11 horas e meio dia”, e então, “o cara entrava ali”, na loja de flores, e “não aguentava
esperar por causa da música, se arrancava. Ficava 5 minutos e ia embora. Quer dizer,
prejuízo pra mim. Enquanto os músicos se divertem, eu tomo na cabeça”. Diante de
um sorriso da entrevistadora, a florista explodiu: “Você dá risada porque não é você
que estava lá. Começa a dar risada que eu vou partir pra violência”103. Afirmando “não
suportar mais ouvir a mesma música”, a florista “não teve dúvidas: apanhou um
alicate” e se preparou “para cortar o fio” de um dos alto-falantes104. O tumulto estava
armado. Próxima à cena nesse momento,

A arquiteta Josely Carvalho, coordenadora do projeto de criatividade que incluía aquela


unidade musical, foi dialogar com a florista, que entretanto não se convenceu. Aos seus
gritos somou-se o insulto de um amigo que ficou ainda mais irritado quando a arquiteta
fotografou, com sua [câmera] Minolta, sua expressão de cólera. E se não fosse a
intervenção de um guarda, o cidadão teria destruído a câmara e agredido Josely” 105.

Apesar da intervenção de Josely, alguns fios dos alto-falantes acabaram


cortados, interrompendo parte da amplificação da música106. Perto dali, o proprietário
da Confeitaria Iguaçu João Jacob Mehl “não escondia sua irritação”. Responsável
pelo quiosque onde o piano estava instalado, o lojista foi repreendido por outros
empresários da região. Como um castelo de carta em ruínas, a insatisfação dos
clientes vizinhos acabou gerando um efeito em cadeia: “até às 10 horas da manhã,
Jacob recebeu dezenas de reclamações – principalmente dos hotéis vizinhos, cujos
hóspedes irritaram-se com a repetição constante do mesmo tema”107. Submetidos a
uma música estranha, volumosa e repetitiva desde às seis da manhã de sábado,

101
A terapia da música. Op. cit.
102
O som hipnótico, o barro, o xadrez, etc. Op. cit.
103
Semana de Arte Moderna. Op. cit.
104
MILLARCH, Aramis. A cidade & a música, Estado do Paraná, Curitiba, 03 set. 1974
105
Idem, ibidem.
106
[BEDA]. 6º Encontro, texto manuscrito e assinado, duas folhas, s.d. [1974] (MAC-PR).
107
MILLARCH, Aramis. A cidade & a música. Op. cit.
217

alguns hóspedes das redondezas acabaram se revoltando. Conforme André Fatuch,


então proprietário do Hotel Del Rey, “dois turistas chegaram a pedir a conta”, sendo
que “o mesmo aconteceu com hóspedes do Hotel Plaza” 108. O próprio João Jacob
Mehl, aliás, teve seu negócio prejudicado: depois de algumas horas de música, o
garçom que atendia o quiosque das pianistas pediu demissão do cargo, “pois não
aguentava mais aquelas notas”109.

Experiência e hipnose: o caso Wagner

Curiosamente, todavia, a continuidade da apresentação acabou gerando novos


efeitos nos ouvintes. “No começo”, comentou o crítico de arte Fernando Bini, “o
pessoal ficou meio revoltado, deram bronca, chamaram a polícia. Mas na medida que
a coisa foi evoluindo, todo mundo se acalmou, e começaram a achar a música
interessante”110. Dentre todos as impressões coletadas pelos estudantes da EMBAP
ou publicadas nos jornais, merece destaque o longo depoimento de Wagner,
professor de ciências do Colégio Estadual do Paraná. De acordo com uma das
reportagens da época, seu comentário “foi avaliado como opinião-padrão”111. Depois
de duas horas consecutivas ouvindo Vexations, o professor assim resumiu sua
experiência pessoal:

Não entendo nada de música, apesar de chamar-me Wagner. Não sei os objetivos deste
experimento que homenageia Duchamp, mas exponho minhas impressões, após duas
horas de audição. Nos primeiros quinze minutos, a música, para mim, que me encontrava
no centro da cidade, estava simplesmente irritante e insuportável. Manifestei protesto a
alguns amigos. Uma hora depois, senti uma sensação de indiferença – não mais me
incomodei. Uma hora e trinta minutos depois, comecei a gostar. Duas horas depois: a)
encontro-me calmo, em lugares distantes – talvez em outros lugares, b) esqueço dos
problemas do dia a dia, c) apresento vontade de me comunicar, d) gosto da música e
sentiria muito se ela parasse112.

108
O som hipnótico, o barro, o xadrez, etc. Op. cit.
109
Idem, ibidem.
110
BINI, Fernando. Entrevista a Artur Freitas, Curitiba, 05 dez. 2002.
111
A terapia da música. Op. cit.
112
WAGNER. Texto manuscrito, sem título, folha única, s.d. [1974] (MAC-PR). Com ligeiras alterações,
o depoimento de Wagner foi transcrito nas seguintes reportagens: A terapia da música. Op. cit; O som
hipnótico, o barro, o xadrez, etc. Op. cit.
218

Depois da irritação inicial e de um estágio subsequente de indiferença, Wagner


finalmente acalmou-se, assumindo uma plácida postura meditativa. A crer no seu
relato, o material vivenciado parece ter feito um percurso completo, integrando, num
mesmo fluxo, as imprevisíveis disposições da performance com o reconhecimento
interno de um complexo processo emocional. De acordo com o filósofo John Dewey,
só temos uma “experiência singular” do mundo quando os fenômenos vivenciados
realizam um percurso integral em nosso ser, gerando um sentimento de inteireza e
completude. Nas suas palavras, “fazer uma refeição, jogar uma partida de xadrez,
conduzir uma conversa, escrever um livro ou participar de uma campanha política”
são eventos completos, ensimesmados e transbordantes, que começam, acabam e
por fim alteram nosso fluxo existencial. Em cada um desses casos, afirma Dewey, não
estamos diante da experiência em geral, mas sim de uma experiência particular113.
Assim, embora não tenha presenciado todas as 840 repetições de Vexations, Wagner
parece ter se envolvido com a interpretação o tempo necessário para realizar, no
plano interno de sua psiquê, o movimento completo de uma experiência.
Ao cabo de certo tempo, o professor sentiu-se transportado para outros
lugares, afastando-se assim dos problemas cotidianos. Percebendo-se com vontade
de se comunicar, Wagner aproximou-se do “local de execução da música”. Ao
contrário do caso do garçom que se demitira, o professor deparou-se com um outro
garçom, que, na sua lembrança, encontrava-se igualmente feliz e comunicativo: era
para ele “sair mais cedo, mas preferiu continuar o serviço” 114. Docente na área de
ciências, Wagner comparou a experiência de Vexations – da qual admitiu desconhecer
os objetivos – com as pesquisas comportamentais da psicologia behaviorista. Citando
pontualmente o pioneirismo do psicólogo norte-americano Burrhus Frederic Skinner,
o professor afirmou que “o sistema nervoso adapta-se através da repetição”. Dessa
forma, explicou, a relação “estímulo-resposta”, implícita naquela música, faria
sentido no campo da “teoria da aprendizagem, propiciando condicionamentos
operantes”115. Por comparação,

113
DEWEY, John. Arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010 [1925-1953], p. 109-110.
114
WAGNER. Op. cit.
115
Idem, ibidem.
219

No caso deste experimento, o resultado é o estimular o gosto pela música e a sensação


de bem-estar, paz de espírito, bom humor e necessidade de comunicação. Para outros,
a reação pode ser diferente, como são diferentes os temperamentos. Seja qual for a
reação, esta sempre será benéfica e construtiva. Parabéns aos organizadores e muito
obrigado pelas horas agradáveis que desfrutei116.

Entrevistado pelos alunos da EMBAP, Wagner reiterou sua avaliação pessoal de


Vexations, dizendo que, com o correr do tempo, havia passado a apreciar a música.
Confirmando o efeito hipnótico da interpretação, já previsto por Jocy de Oliveira, o
professor considerou que o aspecto ruidoso daquela música não deixava de ser uma
metáfora amplificada do próprio caos urbano. “É o problema da hipnose”, disse com
todas as letras. “As pessoas não aguentam toda essa [geração] de sons, porque é
sempre a mesma coisa. Mas eu disse, você vive na cidade, onde tem uma porção de
ruídos que se repetem o dia inteiro. Só que aqui”, concluiu, “a irritação é mais real”117.

Caleidoscópio: a montagem como subversão da cidade

Na contramão da sociedade tecnocrática, as diversas formas de manifestação


da contracultura não se expressaram apenas no plano comportamental, como, em
muitos casos, aproximaram-se das rupturas de linguagem propostas pelo imaginário
de vanguarda, com especial destaque para as ações poéticas que se baseavam na
combinação de signos heterogêneos. De acordo com o filósofo Theodor Adorno, dois
mundos foram simultaneamente contraditos pelo princípio da montagem,
característico de boa parte da produção artística moderna. De um lado, tal princípio
se contrapôs à obra de arte tradicional, ao abandonar o ideal de “unidade orgânica”
em favor de uma linguagem fragmentada e heterogênea. E de outro, ao propor
situações poéticas instáveis e voltadas à comunicação entre o estético e o extra-
estético, a montagem parece também ter afrontado os sentidos pretensamente
homogêneos e totalizantes do capitalismo avançado. Nas suas palavras, uma obra
baseada nesse princípio

116
Idem, ibidem.
117
Wagner apud Semana de Arte Moderna. Op. cit.
220

introduz em si as ruínas literais e não fictícias da empiria heterogênea, reconhece a rotura


e a transforma em efeito estético. A arte quer confessar a sua impotência perante a
totalidade do capitalismo tardio e inaugurar a sua supressão. A montagem é a
capitulação intra-estética da arte perante o que lhe é heterogêneo118.

Para Adorno, a montagem teria sido “descoberta na colagem dos cortes de


jornal e coisas semelhantes, nos anos heróicos do cubismo”, quando artistas como
Picasso e Braque, na contramão da pintura pura, anexaram papéis cortados e
embalagens comerciais em seus quadros119. No entendimento do sociólogo Peter
Bürger, a ideia de montagem implícita na colagem cubista estava na origem da
própria concepção de vanguarda. “Uma teoria da vanguarda”, afirmou,

deve partir do conceito de montagem sugerido pelas colagens cubistas. O que as


diferencia das técnicas de composição pictórica desenvolvidas desde o Renascimento é
a inserção, no quadro, de fragmentos da realidade, isto é, de materiais que não foram
elaborados pelo próprio artista. Desta forma, é destruída a unidade do quadro, como um
todo marcado em todas as partes pela subjetividade do artista. O cesto de vime que
Picasso cola num quadro, por mais que possa ter sido escolhido em nome de uma
intenção composicional, continua a ser um pedaço da realidade que, tel quel, sem
experimentar transformações essenciais, é inserido no quadro120.

Das vanguardas históricas dos anos 1910 e 1920 às novas vanguardas dos anos
1960 e 1970, a combinação de signos heterogêneos tornou-se um dos traços
determinantes da produção artística experimental. Nesse meio tempo, o princípio da
montagem se generalizou, assumindo diversas formas, que, não obstante a própria
diversidade, tenderam a se concentrar em pelo menos quatro modos básicos.
Constituído de montagens simultâneas realizadas no espaço bidimensional, o
primeiro modo é perceptível tanto nos papiers collés cubistas, quanto nas
fotomontagens de artistas como John Heartfield. Já o segundo modo diz respeito às
montagens simultâneas no espaço tridimensional, como no caso das assemblages em
geral e dos objets trouvé surrealistas, assim como dos environments e demais
procedimentos instalacionais. Marcado pela alternância linear de imagens ou gestos,
o terceiro modo, por sua vez, consiste em montagens sequenciais no tempo,
exemplificadas na filmografia de vanguarda e na videoarte, bem como em certas

118
ADORNO, Theodor. Teoria estética. São Paulo: Martins Fontes, 1982 [1970], p. 177.
119
Idem, ibidem.
120
BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. São Paulo: Cosac Naify, 2012 [1974], p. 137-138.
221

ações performáticas que se baseiam na progressão temporal de um único evento.


Dentre todos esses expedientes, todavia, é o quarto e último modo que aqui
realmente nos interessa. Difundido no contexto das novas vanguardas e entendido
como uma espécie de amálgama dos procedimentos anteriores, este modo concerne
às montagens que, como em Vexations, são simultâneas no tempo, e que como tais
implicam na realização, em espaços distintos, de dois ou mais eventos
concomitantes, mas ainda assim interligados.
Nesses termos, se o princípio da montagem, como diz Adorno, foi uma espécie
de reação estética contrária às pretensões totalizantes do capitalismo avançado, ali
incluída a tecnocracia, então não admira que a radicalização dessas mesmas reações,
implícita no quarto modo, tenha ocorrido em paralelo à maturação da sociedade
tecnocrática, a partir do segundo pós-guerra. Afetadas pela racionalidade
tecnológica da comunicação de massa, as novas vanguardas resgataram mas
também aprofundaram os modos básicos da montagem moderna. Ampliada a partir
dos anos 1960, a montagem passou a considerar não apenas a instalação de obras
em espaços ampliados e heterogêneos, com privilégio ao espaço urbano, como, em
certos casos, também se valeu de um raciocínio temporalmente simultâneo, como se
o quarto e último modo de montagem acima referido fosse, na soma dos modos
anteriores, uma das formas mais caóticas, fragmentadas e dispersivas – mas por isso
mesmo expansivas – da própria ideia de montagem.
Como vimos, Vexations foi uma colagem de ações realizadas simultaneamente
em espaços urbanos próximos mas distintos, na região central de Curitiba. Mais do
que a referência a Marcel Duchamp, foi a duração da interpretação que consistiu no
material aglutinante da proposta. Ao longo de 18 horas e 40 minutos, ou enquanto
durasse a execução da peça, o público foi confrontado, em múltiplos pontos da Boca
Maldita e arredores, com estímulos diversos, pianistas, partidas de xadrez, alto-
falantes, reações imprevistas, comerciantes coléricos, gente entorpecida, inquieta,
mas também feliz. Além disso, embora as ações tenham se valido de diretrizes
bastante rigorosas, como no caso da interpretação de Vexations ou das estranhas
regras complementares das partidas de xadrez, o fato é que o efeito das propostas
222

sobre o público foi fundamentalmente imprevisível. Resgatando o épater le bourgeois


do dadaísmo e de John Cage, Vexations baseou-se na ideia do choque, e com ela
apostou no caráter aleatório das reações emocionais dos espectadores, que variaram
da introspecção à histeria. Por outras palavras, face à imagem “orgânica” da “cidade
modelo”, cuja matriz tecnocrática se baseava em concepções estéticas
pretensamente totalizantes e consensuais, percebe-se, em resumo, que a
intervenção poética de Jocy acabou por perturbar as subjetividades cotidianas,
revelando assim, à revelia do cenário planejado, a sua própria face subversiva.
Valendo-se da recente diluição entre os meios expressivos, que a partir dos anos
1960 aproximaram diversos campos artísticos, Jocy de Oliveira entendia as artes
performáticas, e especialmente os happenings, como modos de montagem e
combinação. Entrevistada por um jornal curitibano no dia anterior à Vexations, a
pianista afirmou-se fascinada com “as possibilidades de uma forma móvel, ou melhor,
aberta”, que fizesse convergir “suas dimensões sonoras, teatrais, literárias ou
ambientais”121. Na sua concepção, o público de uma obra de forma móvel “teria um
papel na improvisação”. Além disso, prosseguiu, assim como no contexto dadaísta,
parte considerável das “obras de hoje” também empregam “o uso intencional do
elemento de chance”, ou seja, de acaso e indeterminação. Bem informada e disposta
a estabelecer sua própria filiação poética, Jocy afirmou que “o histórico dos
happenings e intermedia” havia começado já na década de 1950, com John Cage, e
prosseguido com o Grupo Gutai e Allan Kaprow, para em seguida desdobrar-se na
ideia de performance. Para sintetizar seu posicionamento e elucidar alguns princípios
gerais de Vexations, a artista afirmou que compreendia a criação estética como “um
processo consciente e inconsciente”, ou melhor, como uma metáfora vertiginosa
que se resumia na figura de “um caleidoscópio”. Para explicar sua visada metafórica,
Jocy se perguntou: “O que será então o sentido de um caleidoscópio?”. Nas suas
palavras, tratava-se de “uma ideia fragmentada de constante mutabilidade, uma anti-

121
Jocy de Oliveira apud Jocy faz a história, Diário do Paraná, Curitiba, 31 ago. 1974.
223

sequência ou anti-forma ou talvez o fim que se transforma em começo. Este é o


eterno mecanismo da procura: não uma mensagem, apenas uma pergunta”122.
Com o filósofo Walter Benjamin, aprendemos a compreender a metáfora do
caleidoscópio como uma espécie de antídoto dialético à experiência opressora mas
também construtiva da modernidade. Como na repressão capitalista de Adorno ou
na dominação mais-repressiva de Marcuse, a fragmentação da própria sociedade
industrial desponta, em Benjamin, como uma possibilidade de positivação da
subjetividade moderna, ela mesma fragmentada. Nas suas palavras,

O curso da história, tal como se apresenta sob o conceito de catástrofe, não pode dar ao
pensador mais ocupação que o caleidoscópio nas mãos de uma criança, para a qual, a
cada giro, toda ordenação sucumbe ante uma nova ordem. Essa imagem tem uma bem
fundada razão de ser. Os conceitos dos dominantes foram sempre o espelho graças ao
qual se realizava a imagem de uma “ordem”123.

De acordo com o historiador da arte Georges Didi-Huberman, Walter Benjamin


conhecia bem o caleidoscópio124. Inventado por Alphonse Giroux em 1817, o artefato,
que logo se tornou um dos mais populares aparelhos óticos da cultura visual do
século XIX, consistia num tubo cilíndrico espelhado recheado de pequenos pedaços
de vidro colorido e outros materiais. A cada giro, o dispositivo formava uma nova
imagem complexa, fragmentada e colorida, sempre diferente da imagem anterior, e
que, com um novo movimento, seria inteiramente destruída, dando lugar a uma outra
imagem, igualmente inédita, e assim sucessivamente. Para Didi-Huberman, a
estrutura caleidoscópica da modernidade interrogaria a estrutura do tempo,
consistindo-se assim numa metáfora da experiência moderna: “Em Benjamin”,
resumiu, “o caleidoscópio, é um paradigma, um modelo teórico”125.
Numa instigante analogia poética, a historiadora da arte Rosângela Cherem
chegou a sugerir que os procedimentos artísticos caleidoscópicos, baseados no
“movimento constante” e no “re-embaralhamento infinito das formas”, implicavam
numa oposição direta à “materialidade irrepetível da pintura”, ela mesma “repleta

122
Idem, ibidem.
123
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 154.
124
DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2011 [2000], p.
186.
125
Idem, ibidem, p. 204.
224

de simbologias partilhadas através de um repertório erudito e inscrita numa longa


tradição referenciada pela noção de beleza, juízo estético, gosto e estilo” 126.
Implícitos na ideia benjaminiana de história como catástrofe, os conceitos
dominantes, situados na base da dominação capitalista, traduziam-se de modo
indireto na “imagem de uma ‘ordem’”, ou ainda – se quisermos retomar os termos
de Adorno –, no ideal de “unidade orgânica” da pintura e da escultura tradicionais,
cujo análogo urbanista seria justamente a concepção de “cidade orgânica”. Por
outras palavras, a estrutura perturbadora e caleidoscópica de parte das obras
combinatórias, que de acordo com Peter Bürger teriam viabilizado uma “teoria da
vanguarda”, coincidiria, em linhas gerais, com a própria ideia de montagem. Em
termos subjetivos, a evocação poética dessa metáfora não deixaria de refletir, de
acordo com uma analogia proposta por Didi-Huberman, a experiência do
“desmoronamento interior” – mas um desmoronamento, poderíamos acrescentar,
que se enraiza na exata medida em que a subjetividade moderna se generaliza. De
acordo com o autor, “os motivos da montagem e do caleidoscópio convocam
indefectivelmente, em Benjamin, a figura do quebra-cabeças”127. E de fato, dos
papiers collés aos happenings, o que está em questão, na contramão de uma
linguagem e de uma sociedade totalizantes, é a possibilidade mesma de validar,
enquanto expressões do desmoronamento interior, obras de arte que, como quebra-
cabeças subjetivos, são feitas de cacos e escombros, ou seja, feitas de estilhaços de
uma experiência em si mesma estilhaçada.
Por outro lado, foi somente a partir dos anos 1960, com a difusão no campo da
arte de colagens simultâneas no tempo e no espaço, que o princípio da montagem,
convergindo todos os modos anteriores num mesmo gesto, pôde se tornar
radicalmente caleidoscópico. De Kaprow à Cage, e destes a Jocy de Oliveira, a
oposição à teleologia progressista e ao racionalismo tecnocrático levou ao
fracionamento estético não apenas da linguagem, mas do próprio cenário urbano,
gerando, em alguns casos exemplares, situações aleatórias e simultâneas, ou como

126
CHEREM, Rosângela; KIELWAGEN, Jefferson. Renitências da imagem, XVIII Seminário de Iniciação
Científica da UDESC, UDESC, Florianópolis, 2008, p. 04-05.
127
DIDI-HUBERMAN, Georges. Op. cit, p. 211.
225

prefiro, subversivas. Assim, para o curitibano médio de 1974, não admira a


multiplicidade de reações díspares que surgiram diante de um evento igualmente
múltiplo, caótico e, por isso, mesmo imprevisível. No grande quebra-cabeças feito de
ações em si mesmas fragmentadas, Vexations parece ter feito da própria cidade de
Curitiba o seu caleidoscópio particular.
226

Limiar da visualidade: artes visuais e a crise da aids

Paulo Reis

A opacidade das coisas e os olhos serem só dois.


Paulo Henriques Britto – Fisiologia da composição

I’m a prisoner of language that doesn’t have a letter or a sign or


gesture that approximates what I´m sensing.
David Wojnarowicz – Post-cards from America: X-rays from Hell

No início da década de 1980 a crise da aids desencadeou também uma crise no


mundo da arte e da cultura. Segundo apontou Marcelo Secron Bessa, no contexto
dos textos publicados na mídia escrita, houve uma “epidemia discursiva” 1 ligada aos
novos temas e às novas questões sobre a aids e seus modos de representação. A
primeira reportagem sobre a epidemia foi publicada no jornal New York Times em 3
de julho de 1981 e um mês depois saiu no Jornal do Brasil a primeira matéria na
imprensa nacional. O número de reportagens cresceria exponencialmente até o final
da década de 1990. No esteio de tal fluxo informacional, o corpo afetado pela aids e
todos os corpos, de maneira geral, tornaram-se vulneráveis aos múltiplos discursos
que a ele(s) eram impostos, desde novos discursos médicos e psicológicos, até
discursos jurídicos, moralistas e políticos.
Juntamente com a “epidemia discursiva” midiática, colocou-se uma importante
frente de discussão crítica constituída por determinada produção artística. Artistas
visuais, dançarinos, escritores, músicos, atores, dramaturgos, cineastas e performers,
entre outros, construíram um conjunto de reflexões sobre a epidemia em suas
pesquisas artísticas experimentais e responderam de maneira radical à crise da aids
levantando discussões no plano da linguagem e em seus posicionamentos éticos e

1
BESSA, M. S. Os perigosos: autobiografias e AIDS. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002, p. 10.
227

políticos. Neste ensaio2, será focada uma discussão pontual gerada pela produção de
artes visuais ligada à epidemia, primeiramente no contexto estadunidense,
envolvendo suas diferentes representações, e posteriormente trazendo uma
discussão mais específica de linguagem em algumas propostas dos artistas brasileiros
Rafael França e Leonilson. Passados mais de trinta anos das primeiras notícias da
epidemia, certas pesquisas artísticas nos ajudam a compreender de maneira mais
profunda uma época. Essas pesquisas persistem na atualidade em decorrência de
seus debates reflexivos mais amplos sobre a arte contemporânea, nas múltiplas
pesquisas de linguagem e nas relações entre a arte e a sociedade.
As fotografias foram algumas das primeiras representações que deram uma
visibilidade pública mais geral à crise da aids e às pessoas por ela afetadas. Em 1988,
foi mostrada no Museu de Arte Moderna de Nova York a exposição intitulada Nicholas
Nixon: pictures of people (Nicholas Nixon: retratos de pessoas), realizada pelo
fotógrafo Nicholas Nixon, com textos e pesquisa de Bebe Nixon. A exposição era
constituída por cinco segmentos, sendo um deles parte de uma pesquisa in progress
do fotógrafo intitulada People with AIDS (Pessoas com aids). A exposição foi a
primeira a mostrar em uma das instituições mais influentes da arte a questão da aids
por meio do olhar foto-jornalístico de Nicholas Nixon ao focar, em um de seus
segmentos, pessoas afetadas pela doença. A exposição gerou um grande impacto
junto ao público e à crítica por sua contundência e, com isso, sofreu críticas, em
grande medida partindo do grupo norte-americano de luta e conscientização da aids
ACT-UP3. A maior crítica realizada por esse grupo devia-se ao fato da exposição
apresentar apenas um lado da epidemia, ou seja, os aspectos ligados a seu
sofrimento, debilidade física, estado de abandono das pessoas afetadas e,

2
A elaboração deste texto remonta a outros textos de minha autoria: ao capítulo final da dissertação
de mestrado A construção do desenho – sujeito, temporalidade e cartografias em Leonilson (1998), ao
texto Imagens soropositivas, publicado no jornal Gazeta do Povo (1998), e a um artigo para um
catálogo nunca publicado (2011).
3
O ACT-UP (AIDS Coalition to Unleash Power) é um grupo civil formado em 1987 inicialmente sediado
em Nova York e criado pelo ativista Larry Kramer na Era Reagan para lutar politicamente pelas
condições de tratamento, prevenção e atendimento a pessoas com AIDS.
228

principalmente, por não apresentar uma discussão ligada ao “contexto social” 4 no


qual a epidemia estava inserida nos Estados Unidos (lembrando o fato de que a crise
da aids no referido contexto e em seu momento inicial foi quase completamente
ignorada pelas políticas públicas de saúde da Era Reagan). A escritora e ativista Jan
Zita Grover fez uma crítica a certo olhar midiático ao afirmar que os fotojornalistas
capturavam imagens de pessoas com aids de maneira a “reforçar a sabedoria popular
de que um diagnóstico de AIDS separaria radicalmente os doentes da vida”5. Estava
assim lançado um primeiro grande debate sobre visualidade e aids.
No ano seguinte à exposição de Nicolas Nixon ser apresentada no Museu de
Arte Moderna de Nova York, foi mostrada no Artist’s Space, espaço independente e
experimental de pesquisa artística também sediado em Nova York, a exposição
Witnesses: against our vanishing (Testemunhas: contra nosso desaparecimento). Com
organização e curadoria da artista Nan Goldin, a premissa da exposição era a de
refletir sobre uma outra visualidade para a aids como epidemia, sobre os artistas
soropositivos e, em especial, sobre as novas questões estéticas e de linguagem então
trazidas6. Seu traço mais relevante deveu-se ao fato dela não estabelecer uma visão
distanciada, mas construída no interior de sua comunidade mais afetada e estar
diretamente envolvida com um grupo específico de artistas, muitos deles
soropositivos. Nan Goldin, em seu texto de curadoria, afirmou que a elaboração da
mostra partiu de uma demanda feita “aos artistas para selecionar obras que
representassem suas respostas pessoais à AIDS”7. Algumas das pesquisas de
linguagem vistas nas propostas artísticas expostas eram constituídas por questões
ligadas a uma afirmação do desejo, memórias, amizade, amor, morte e luto, a
afirmação de uma estética homossexual e um viés ativista da arte. Como a exposição
de Nixon, esta também teve uma reação contrária, mas dessa vez foi o próprio órgão
de fomento público de arte nos Estados Unidos, o NEA – National Endowment for

4
ATKINS, R.; SOKOLOWSKI, T. W. From media to metaphor. Nova York: Independente Curators
Incorporated, 1991, p. 50.
5
GOTT, T. (org.). Don't leave me this way: art in the age of aids. Canberra: National Gallery of Australia,
1994, p. 215.
6
REID, C. Beyond mourning. Art in America. Nova York, vol. 78, nº 4, april, 1990, p. 50-57.
7
GOLDIN, N. Witnesses: against our vanishing. Nova York: Artists Space, 1989, p. 5.
229

Arts, que censurou a exposição ao negar as verbas já aprovadas anteriormente para


sua produção.
Essas duas exposições colocaram uma discussão inicial sobre a visualidade no
campo da arte no contexto estadunidense do aparecimento da aids. A exposição de
Nicholas Nixon, fundada em um olhar foto-jornalístico, foi questionada justamente
por seu pretenso distanciamento em mostrar o que se entende como “fatos” e ao
obliterar outros aspectos da situação social da epidemia. A reação do grupo ACT-UP
inseriu-se em um questionamento sobre a tomada de responsabilidade sobre a
construção da imagem dos afetados pela doença e discutir publicamente não uma
fórmula, mas uma postura mais complexa e não unilateral junto ao grande público.
Acresce-se o fato da exposição acontecer em um museu de arte e assim inscrever-se
indelevelmente em um discurso mais geral da arte. Já a exposição organizada por
Nan Goldin no Artists Space trazia a discussão da aids tramada nos processos poéticos
de uma série de artistas, alguns deles já falecidos. Nesse sentido, a exposição
Witnesses: against our vanishing colocou-se em posição delicada e ao mesmo tempo
corajosa, pois trazia a público um tipo de produção em desarmonia com a política
oficial (que minimizava a extensão da epidemia) e que não se enquadrava nas
diretrizes culturais do NEA, haja visto que o órgão de fomento cultural encontrava-se
na época sob forte ingerência de alas conservadoras ligadas à política e à religião.
Começava, nesse momento, um debate de produção de sentidos no qual
poética e política, comunicação e arte, espaço privado e reflexão, ativismo e
subjetividade, história e memória entremeavam-se nas produções visuais ligadas à
epidemia da aids e, nessa direção, construíam novos olhares para a produção de artes
visuais. A memória representou uma grande preocupação na poética dos artistas e
em determinadas exposições, pois, como afirmou Simon Watney,

(...) as questões de ver e lembrar adquirem uma significância especial em relação à AIDS,
uma vez que muitos daqueles que morreram eram de alguma maneira, invisíveis em suas
vidas, vistas na perspectiva da ordem normativa da sociedade heterossexual8.

8
GOTT, T. (org.). p. 57.
230

Os artistas David Wojnarowicz, que escreveu em 1988 o contundente manifesto


Post-cards from America: X-Rays from Hell publicado no catálogo da exposição
Witnesses: against our vanishing, e Robert Mapplethorpe foram apontados pela
crítica Alisa Tager9 como as primeiras contribuições efetivas para modificar a retórica
da epidemia, fazendo-a passar do discurso da informação para uma dimensão crítica
e sensível da linguagem das artes visuais. Além destes artistas, Ross Bleckner, Derek
Jarman, Felix González-Torres, Frank Moore e o coletivo Grand Fury, entre outros,
constituíram modos diversos de tramar as questões trazidas pela aids em suas
pesquisas artísticas.
As artes visuais representam uma importante frente de reflexão sobre o
comprometimento10 da arte contemporânea com questões prementes do mundo
social. No Brasil, as pesquisas dos artistas Rafael França (1957-1991) e José Leonilson
(1957-1993), entre outras, estabeleceram algumas discussões pontuais sobre
linguagem pertinentes ao contexto de produção artística ligada à crise da aids. A
trajetória de Rafael França foi atravessada por pesquisas diversas que envolveram
experimentações com gravura, xerografia, intervenções de cunho crítico no espaço
público junto ao Grupo 3NÓS311, além de vídeos e videoinstalações12. No ano de seu
falecimento, em 1991, o artista realizou o vídeo Prelude to an announced death
(Prelúdio para uma morte anunciada), na cidade de Chicago, na qual estudara e
lecionava, e que se constitui em uma obra na qual sentidos múltiplos são tramados
em sua narrativa diretamente remetida à aids, mesmo sem nominá-la.
O vídeo de Rafael inicia em silêncio mostrando dois homens trocando carícias
e, em primeiríssimo plano, aparecem a textura da pele de ambos, bocas, beijos,

9
TAGER, A. La abstracción del sida. Revista Poliester, vol. 3, nº. 9, Mexico, verano 1994, p. 9-19.
10
Usa-se o conceito de comprometimento da arte para sublinhar a multiplicidade de relações críticas
possíveis entre as artes visuais e o contexto social e político, ao invés do conceito histórico de
engajamento da arte. Este último, mais fechado em termos de uma estética tradicional marxista, não
prevê a experimentação da própria linguagem. Também opta-se pelo conceito de comprometimento
pelo fato de que num dos livros sobre o engajamento da arte (“O que é a literatura?” de Jean-Paul
Sartre), nem a linguagem da música ou das artes visuais são previstas como manifestações artísticas
passíveis de um posicionamento crítico político, cabendo apenas à literatura tal papel.
11
O grupo 3NÓS3, formado por Mario Ramiro, Hudinilson Jr. e Rafael França, realizou uma série de
ações urbanas na cidade de São Paulo no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, que eram
denominadas de “interversões”.
12
COSTA, H. (org.). Sem medo da vertigem. São Paulo: Marca d´Água, 1997.
231

barbas cortadas e os relógios no pulso dos dois amantes, que são Rafael França e seu
companheiro, Geraldo Rivello13. Ao começar a música, uma ária do terceiro ato da
ópera La Traviata de Giuseppe Verdi cantada por Bydu Saião14, deixa-se evidente o
drama que envolvia os dois homens. Nesse momento, o preto e branco das imagens
dá lugar ao colorido. Em seguida, sobrepostos aos dois amantes, passam pela tela
diversos nomes de homens que, mesmo não sendo informado, sabe-se que
morreram em decorrência da aids, entre eles, o do ator e diretor de teatro Luiz
Roberto Galizia (1954-1985). Terminada a ária, aparece em uma tela negra a frase
“above all they had no fear of vertigo” (acima de tudo, eles não tinham medo da
vertigem). Após essa afirmação, o vídeo finaliza com a imagem de Rafael ao som da
potente guitarra da canção Day of the eagle, do cantor Robin Trower, e a passagem
dos créditos.
Rafael França sobrepôs, no vídeo Prelude to an announced death, o drama
pessoal ao drama coletivo. O procedimento da colagem de linguagens, música,
imagens e palavras sublinhou o vídeo como uma alegoria à aids. Fundiu-se o que era
da ordem do privado, o afeto entre os amantes e a proximidade da morte, ao que é
público, “os nomes de todos os amigos brasileiros e norte-americanos que foram
vitimados pela AIDS”15. O artista David Wojnarowicz afirmara que, ao ser informado
que contraíra o vírus, “não demorou muito para dar-me conta que eu contraíra uma
doença social”16. E dessa forma o atravessamento entre o íntimo e o público, ou
social, caracterizou fortemente a poética dos artistas envolvidos com uma produção
artística comprometida com a epidemia. Rafael França, cuja pesquisa artística já
estivera ligada à ocupação do espaço público urbano em um momento de
redemocratização do país, tramou conceitualmente esse vídeo como um testamento
de caráter pessoal e ao mesmo tempo coletivo. O afeto entre os amantes descolava-
se do estritamente subjetivo ao fundir-se ao drama literário-musical dos amantes da

13
COSTA, H. (org.), p. 78.
14
A ária Addio del passato apresenta o lamento da personagem Violetta, doente e debilitada, portando
a carta de arrependimento, já tardia, do pai de seu amante Alfredo. Violetta e Alfredo formam o par
romântico da história, baseada no romance “A Dama das Camélias” de Alexandre Dumas.
15
COSTA, H. (org.), p. 78.
16
GOLDIN, N., p. 7.
232

ópera La Traviata. A lista de nomes que percorre a superfície da imagem dos dois
homens trocando carícias, tendo ao fundo a ária cantada por Bidu Sayão, não se
constituía em um obituário factual, mas em um memorial pungente de uma geração,
da qual fazia parte Rafael. Essa geração enfrentou o impacto de suas vidas
transformadas e produziu artisticamente afirmações sensíveis fundadas no
comprometimento estético-político.
A obra do artista José Leonilson funda-se, entre tantas leituras possíveis,
também numa poética fundada por um trânsito entre o que é da ordem do privado e
do público, na fricção entre sujeito e mundo, estabelecida em uma relação quase
sempre mediada pelo desejo amoroso, ora difuso, ora pontual, que se move entre a
potência de realizar-se e o voltar-se a si. E, de forma geral, pode-se afirmar que
praticamente toda a discussão de visualidade proposta pelo artista em seus últimos
trabalhos configurou-se também como uma reflexão complexa sobre o olhar, uma
resposta veemente à crise da aids, à sua condição de soropositivo e à vida nacional 17.
Já no ano de 1985, a obra “Sem título” (desenho e pintura sobre página dupla do
Jornal da Tarde – SP) anunciava uma preocupação do artista com o aparecimento da
aids. Em uma folha de jornal que anunciava em sua manchete “AIDS – a doença
mortal que assusta o mundo”, havia um posicionamento sobre a cadeia midiática
sensacionalista de informações a respeito da epidemia. O desafio da vertigem foi
aposta desde cedo em Leonilson e Rafael.
Um prosaico espelho vendido em camelôs, com a moldura de madeira na cor
laranja e recoberto com um tecido listrado, constitui um dos mais importantes
trabalhos da trajetória de Leonilson. A obra em questão é o autorretrato El Puerto
(bordado sobre tecido sobre espelho, 23x18cm, 1992, col. Família Bezerra Dias) e se
apresenta em um espelho velado por uma pequena cortina de tecido de listras verdes
bordada com o nome do artista, a idade, o peso, a altura e o título da obra. No título
do trabalho, está a indicação de um lugar, o porto, e sobre ele discorreu Leonilson:

17
Um olhar concernente com a crise ética-social do Brasil alinhavou os desenhos realizados para a
coluna da jornalista Barbara Gancia no jornal Folha de São Paulo e publicados entre os anos de 1991 e
1993.
233

O porto recebe. O Leo com 35 anos, 60 quilos e 1,79 metro é um porto que fica
recebendo. Acho que hoje eu recebo muito mais do que dou, porque preciso canalizar
minhas energias para minha intimidade. É isso, simplesmente. Precisava fazer um objeto
com estas características para mim18.

Mas também podem-se trazer outras reverberações simbólicas para a palavra


“porto”. Primeiramente, ele é um local seguro de chegada ou de saída, é também
região da indefinição da espera. Ele faz a fronteira entre mar e terra, é território de
eterna passagem, reino da transitoriedade, espaço do impulso da viagem e da
contemplação. O porto, visto como referência ao corpo, é espaço de trânsito e
trocas.
Velando a prata do espelho, a pequena cortina de tecido listrado, oblitera a
possibilidade da imagem do observador e do artista. O corpo do artista tem seus
traços físicos transformados em curtos espaços de tempo devido a mudanças
decorrentes do estado de saúde e sua medida é dada sem sua imagem. O corpo sem
limites fixos, apenas referido a medidas de altura e peso, remete aos desenhos de
mapas produzidos pelo artista que se apresentavam sem fronteiras ou demarcações
geográficas, apenas acidentes – rios, cidades e cadeias de montanhas. Como nos
mapas sem fronteiras, o corpo é constelação de sinais – nome, idade, peso e altura –
indicados por seus vestígios. O corpo, a partir de suas medidas, estende-se como
mapa vivo do mundo. O espectador é induzido a abrir a cortina e se ver, mas não se
pode abri-la impunemente. Esse trabalho pede um acordo com o espectador, pois é
por meio dos olhos dele que se construirá a significação da obra. Talvez o espelho
blindado e cego seja o lugar da imagem não para ser vista, mas para ser tocada,
ouvida, pensada, imaginada, intuída ou sonhada.
Em 1989, uma revista mensal de informação optou pelo sensacionalismo
associado a uma “ética mercantil” da exposição de personalidades públicas ao
produzir uma das imagens mais desrespeitosas de uma pessoa com aids no país. Em
sua capa, apareceu estampada uma fotografia do cantor Cazuza, visivelmente
debilitado, e tendo como manchete a frase “Uma vítima da AIDS agoniza em praça

18
LAGNADO, L. Leonilson: são tantas as verdades. São Paulo: Projeto Leonilson/SESI, 1995. p. 99-100.
234

pública”19. Tomando como um fato a capa da revista, o espelho coberto de Leonilson,


nesse sentido, opunha-se à lógica de uma imagem que se quer real, factual ou
sensacionalista, em direção a uma imagem invisível, espessa e reflexiva. No limiar da
visualidade, entre uma ética das imagens e o estabelecimento de um compromisso
obra-espectador, a obra do artista repropõe discussões basilares da arte brasileira.
Problematizações trazidas pelas obras Espelho cego (madeira, borracha, texto
invertido gravado em metal, 49x36x18cm, 1970), de Cildo Meireles, Black mirror
(laminado plástico sobre madeira, 30x22x5cm, 1968), de Antonio Dias, ou Você é cego
(madeira, tecido, vidro e metal, 61x27x27cm, 1974), de Waltércio Caldas, reatualizam-
se nas inquietações do olhar contemporâneo. O que está no limite do visível, busca
um novo acordo do olhar e assim no trabalho de Meireles apresenta-se uma imagem
que recusa a pura reflexão e pede um compromisso ético do espectador em sua
significação, no espelho negro de Dias a imagem refletida nega a mera duplicação da
realidade ao mostrar-se em seu revés negativo e, finalmente, no pequeno objeto de
Caldas propõe-se uma reflexão sobre a construção histórica do olhar.
Produzidas em um contexto de experimentação conceitual de fins dos anos
1960 e início dos anos 1970, estas propostas levantam questões para a
contemporaneidade. Tendo assimilado as discussões do olhar expandido do
concretismo e do neoconcretismo e das proposições mais radicais da vanguarda
brasileira, estes artistas inquiriam o olhar e a visualidade: o que é ver, afinal de
contas? O olhar saturado em que se está mergulhado na época da desvalorização da
imagem não está pedindo algo mais? Pode-se esquecer dados extravisuais, como
biografias, contexto e história, sejam as do artista ou as do espectador, na leitura de
obras de arte? Como tornar visível a fragilidade de si como potência poética? Como
afirmar a crise e mesmo assim propor um projeto sensível e transformador?
Uma parte da produção de arte de fim dos anos 1980 e início dos anos 1990
nasceu da necessidade da contrainformação, da construção poética urgente, do
comprometimento político, da intersecção entre o espaço privado e o espaço público
e de uma radical experimentação de linguagem. Nasceu também dentro de um

19
Revista Veja, n. 1.077, 26 abr. 1986 (Editora Abril).
235

regime de disputas, em meio a uma política conservadora, ao moralismo


generalizado, à censura oficial e uma outra disciplinarização dos corpos. Alguns
artistas visuais elaboraram suas poéticas artísticas em um regime da mais absoluta
premência e adversidade. Mas, por mais obstinada que seja a opacidade do mundo,
dois olhos propiciam muitas interrogações.
236

As mil faces do inspetor

Rosane Kaminski

O curta-metragem O Inspetor (Arthur Omar, 1988) é um instrumento poético


com, no mínimo, dupla função referencial. Por meio de uma narrativa não-linear e
provocativa, ele apresenta o ambiente de trabalho de um detetive da polícia do Rio
de Janeiro e remete à violência urbana no Brasil dos anos 1980. Ao mesmo tempo,
volta-se criticamente à estrutura da linguagem cinematográfica e às delimitações
conceituais sobre seus gêneros. Quaisquer distinções entre documentário, ficção e
experimentação são problematizadas neste filme.
O Inspetor será avaliado, aqui, como desdobramento da obra fílmica que Arthur
Omar vinha construindo desde o início dos anos 1970 e, ao mesmo tempo, como uma
forma de inserção do artista nas discussões estéticas e políticas do Brasil em seu
tempo de produção. Sabe-se que um filme, tal qual um livro ou uma exposição, com
suas invenções no âmbito da linguagem e deslocamentos de sentido, pode nos
ensinar a “notar melhor a vida”1. Nesse sentido, o abalo das percepções já assentadas
parece ser um propósito consciente de Omar. Numa entrevista em 2001, ele disse que
“cinema é provocar reações fortes. Provocar reações, e não exatamente emoções.
Reações deslocam o espectador do lugar. Emoções afundam” 2.
O cinema de Omar, desde cedo, caracterizou-se pelo questionamento3. Por um
lado, o questionamento às formas assentadas e padronizadas da linguagem fílmica,

1 WOOD, James. Como funciona a ficção. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 63. O caráter de
exemplaridade das experiências estéticas diante da vida é assunto amplamente discutido pelo filósofo
francês Jacques Rancière, em obras como: A partilha do sensível; O inconsciente estético; e O Espectador
Emancipado.
2 L.C.O. O provocador das palavras e das imagens. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30.07.2001, p. 4
3 Em 1971, Arthur Omar realizou seus primeiros curtas-metragens em 35 mm, Serafim Ponte Grande e
Sumidades Carnavalescas. Em 1972, realizou o curta O Congo, e em 1974 o longa Triste trópico, filmes
que se destacaram pelo experimentalismo de linguagem. Nos anos seguintes, produziu: O anno de 1798
(1975), Tesouro da Juventude (1977), Vocês (1979), Música Barroca Mineira (1981), O Som ou tratado da
harmonia (1984). Nesse ano se aproximou do vídeo e produziu nessa bitola: Tony Cragg in/no Rio (1984)
e O nervo de prata (1987). Em 1988 produziu os curtas O Inspetor e Ressurreição, ambos em 35mm.
Depois disso, dedicou-se ao vídeo, à videoinstalação, fotografia, instalações sonoras, entre outros
237

em especial a do documentário; por outro, aos assuntos que discute em cada uma de
suas obras. Nesse sentido, quanto ao conjunto de seus filmes, e de um modo amplo,
percebe-se que o cineasta maneja uma série de elementos referentes às ideias de
brasilidade, cultura brasileira, identidade, sempre de uma forma pouco usual, ou seja,
subvertendo estereótipos e sem traçar considerações explicativas. Suas obras são
construções caleidoscópicas que misturam fragmentos “capturados” do cotidiano
com elementos narrativos ficcionais, trabalhados num tipo de montagem
perturbadora, opaca e densa.
A atitude fílmica de Arthur Omar é coerente com a observação de Silvio Da-Rin
de que desde os anos 1970, ao menos, alguns autores “vêm identificando no
documentário uma tendência a adotar estratégias anti-ilusionistas, mostrando a obra
como produto, remetendo a uma instância produtora e desnudando seu processo de
produção”4, engajando-se num “metacomentário sobre os mecanismos que dão
forma” ao argumento desenvolvido num filme. Da-rin destaca o caráter auto
reflexivo desse tipo de filme, no sentido já apontado por Bill Nichols quanto a um
“modo reflexivo de representação”, que “assimila os mais diversos recursos
retóricos desenvolvidos ao longo da história do documentário e produz uma inflexão
deles sobre si mesmos, problematizando suas limitações”5.
Vários estudiosos sobre o cinema brasileiro já destacaram características
provocativas nos filmes de Arthur Omar. No texto “A voz do outro”, publicado por
Jean-Claude Bernardet em 1979, ao apontar atitudes de ruptura no documentário
brasileiro a partir de filmes que o “perturbaram e modificaram” nos anos 1970, o
autor enfatizou o curta-metragem O Congo, feito por Arthur Omar em 1972. Bernardet
considerou o filme O Congo “paradoxal por não fornecer ao espectador o que ele
anuncia”6. Omar aborda um assunto recorrente no cinema de curta-metragem,
referente à cultura popular, mas sem apresentar nenhuma imagem sobre a temática

tipos de obras multimidiáticas. É artista e cineasta atuante até hoje, e também escreve ensaios
estéticos e poéticos.
4
DA-RIN, Sílvio. Auto-reflexividade no documentário. Cinemais nº7, Rio de Janeiro: set/out. 1997, p. 73.
5
Ibidem, p. 74
6
BERNARDET, Jean-Claude. A voz do outro. In: AVELLAR, José Carlos; BERNARDET, Jean-Claude;
MONTEIRO, Ronald. Anos 70. Cinema. Rio de Janeiro, Europa, 1979, p. 7.
238

anunciada pelo título. “Filme de sonegação”, disse Bernardet sobre isso, em


comparação aos documentários que oferecem abundantes imagens sobre os temas
que representam. Ele também observou que Arthur Omar problematiza a própria
possibilidade de se fazer um filme sobre aquilo que chamamos de cultura popular. O
cineasta “nega radicalmente um tipo de cinema sociologizante que pretende falar
sobre o outro tomado como objeto, que se recusa a reduzir o outro a ser falado”7.
Juntamente com outros documentaristas comentados por Bernardet naquele texto,
o filme de Omar se destacaria por não tentar representar a realidade “achatada por
uma compreensão unívoca”8.
Num sentido parecido, Ismail Xavier, em 1985, ao estabelecer um retrospecto
sobre o cinema brasileiro produzido entre 1964 e 1984 e apontar uma visão de
conjunto sobre as tendências criativas daquele período de vinte anos, entre as quais
estaria o “metacinema”, afirmou que Omar, nos seus primeiros curtas, “discute a
própria possibilidade de o cinema falar sobre a experiência vivencial, histórica” 9. E
João Luiz Vieira, uma década depois, ao falar dos caminhos experimentais do curta-
metragem brasileiro, também disse que com O Congo “o realizador já interrogava,
com muita clareza, a (im)possibilidade do cinema registrar, sem distorção, qualquer
experiência cultural estranha ao realizador”10.

7
Ibidem, p.10.
8
Jean-Claude Bernardet mencionou também outros autores que apontavam para a multiplicidade da
realidade ao longo dos anos 1970 por meio de seus filmes, ainda que com propostas bem distintas
entre si. Por exemplo: Antônio Manuel, Glauber Rocha, Juana dos Santos, Aluísio Raulino, João Batista
de Andrade e Vladimir de Carvalho. Além desse texto, há outros em que Bernardet fallou do caráter
de “pesquisa radical” nos documentários de Omar, como: BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e
imagens do povo. São Paulo: Brasiliense, 1985; e ainda “A pornochanchada contra a cultura ‘culta’”,
publicado originalmente em 1974 no jornal Opinião, sob pseudônimo, e atualmente disponível em:
Cinema Brasileiro: propostas para uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 210-215.
9
XAVIER, Ismail. Do golpe militar à abertura: a resposta do cinema de autor. In: O desafio do cinema: a
política do Estado e a política dos autores. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 34. Ao falar de um
“metacinema”, Xavier referiu-se ao trabalho experimental e consciente de alguns cineastas sobre as
“experiências já empilhadas”, tornando mais explícito o diálogo com o repertório cinematográfico, e
“discutindo o cinema dentro do cinema”. Mencionou filmes de Júlio Bressane, Glauber Rocha, Arthur
Omar e Rogério Sganzerla, entre outros.
10
VIEIRA, João Luiz. A reflexividade na tela. Cinemais, Rio de Janeiro, n. 30, jul-ago 2001. “Este ensaio
foi originalmente publicado no catálogo da Quarta Mostra Curta Cinema, realizada no Rio de Janeiro,
Centro Cultural Banco do Brasil, e Niterói, Cine Arte-Uff, de 6 a 11 de dezembro de 1994. Escrito nesse
ano, propunha uma prática comum na crítica brasileira ao desenvolver um panorama e um balanço da
produção de curtas-metragens na década de 80, mapeando os diversos caminhos tomados pelo
239

Já Sílvio Da-rin, em 199711, afirmou que o trabalho de Omar “não é facilmente


classificável”, e que “desde os seus primeiros filmes, no início dos anos 1970, Omar
optara por um complexo trabalho no âmbito da linguagem, provocando imediato
espanto entre os documentaristas”, que atuavam num ambiente formalmente pouco
inovador. Sua proposta seria a de produzir objetos estéticos que se opusessem aos
esquemas tradicionais.
Tais considerações feitas sobre O Congo e demais documentários produzidos
nos anos 1970 podem ser estendidas a vários outros filmes de Omar: ele enfatiza a
multiplicidade dos aspectos da realidade, que não são excludentes, mas que
articulam-se entre si de forma complexa e sem obviedade. Nesse questionamento
constante das formas de fazer cinema e de se relacionar com a realidade brasileira,
atitude do cineasta que persistiu ao longo dos anos 1980, reside o meu interesse
sobre os seus filmes.
Quanto à relação de Arthur Omar com o cinema documentário durante os anos
de 1970-80, a pesquisadora Guiomar Ramos observou algumas variações de
posicionamento do cineasta, uma vez que ele parte da problematização sobre a
linguagem do documentário para construir o seu próprio cinema. Ramos apontou
três diferentes momentos nessa relação, que vão desde uma postura negativa de
Omar em relação ao modelo de documentário padrão, passando por uma fase de
“ausência de tema”, quando o cineasta aprofundou as relações entre sons e imagens
de forma mais abstrata, desembocando num estágio de “compreensão bem maior”,
em que se nota a “produção de sentido numa relação positiva com o tema
proposto”12. Noutro momento, a pesquisadora esboçou uma definição para

cinema reflexivo ‘de citação’, marca incontestável de uma época e de uma geração de jovens
realizadores”. Texto completo disponível em: www.vivacine.org.br/site/textos/ver/?id=8
11
DA-RIN, Sílvio. Op. cit., p. 75-76.
12
RAMOS, Guiomar. O espaço fílmico sonoro em Arthur Omar. Dissertação de Mestrado. SP: USP, 1995,
p. 23-24. A autora identifica um primeiro momento de “negação do documentário padrão” (filmes de
1972 até 1975), em que a estrutura do documentário padrão está presente, mas de forma desconexa,
nonsense e constantemente ironizada; seguida de um segundo momento de composição fílmica mais
abstrata, sem referência a um tema, e nos quais não se observa mais o confronto com a estrutura do
cinema documental (filmes de 1977 a 1979). As experiências de desconstrução dos documentários no
primeiro momento e o aprofundamento das relações entre sons e imagens nos filmes que se seguiram,
conduzem, de acordo com Ramos, a um terceiro momento da obra de Omar, marcado pela busca de
produção de sentido numa relação positiva com o tema proposto (filmes de 1981 e 1984). Nota-se,
240

“documentário experimental”13 e, para construir sua argumentação, deu destaque à


atuação experimental de Arthur Omar tanto em seus filmes quanto na publicação,
em 1978, de um ensaio sobre “o antidocumentário”. Neste texto, quase um
manifesto, redigido a partir da experiência de realização de O Congo, Omar criticava
o documentário tradicional e sua “função-espetáculo” para chamar a atenção sobre
a “função do cinema dentro do real”14.
Mais recentemente, Mariana Pimentel buscou situar duas fases na obra
imagética de Omar: a primeira seria constituída pelos filmes da década de 1970 e
também pelos O Som ou tratado da harmonia (1984) O Inspetor e Ressurreição (ambos
de 1988); a segunda englobaria a produção videográfica (iniciada nos anos 1980,
como discutiremos mais adiante) e fotográfica 15. Dentro da primeira fase, Pimentel
distinguiu os antidocumentários ou “filmes-denúncia”, como ela se referiu aos filmes
de 1970 já estudados por Guiomar Ramos e denominados por Omar como
“antidocumentários”, dos “filme-experiência”, que seriam, na sua opinião, O Som, O
Inspetor e Ressurreição: “Produzidos nos anos 80, tais filmes aparecem como
herdeiros daquela desarticulação, daquela primeira crítica ao documentário
tradicional, crítica através da qual ele já constrói uma nova linguagem no âmbito
destes três últimos filmes da primeira fase”16.

nesse momento, uma presença “modificada” do documentário. Guiomar Ramos realiza uma análise
detalhada dos filmes que compõem esses três momentos da produção fílmica de Arthur Omar, que
pode ser lida nas páginas 29 a 53 de sua dissertação de mestrado. Também publicou uma boa síntese
desse assunto em: RAMOS, Guiomar. O documentário como fonte para o experimental no cinema de
Arthur Omar. In: TEIXEIRA, Francisco E. (org.). Documentário no Brasil: tradição e transformação. São
Paulo: Summus, 2004.
13
RAMOS, Guiomar. Documentários experimentais? In: MACHADO, R. Jr.; SOARES, R. de L.; ARAÚJO,
L. C. (orgs.) Estudos de Cinema SOCINE VII. São Paulo: Annablume, Socine, 2006, p.265-271. A autora
discute “o momento em que o formato experimental se interliga ao formato documentário” e o
exemplifica a partir de quatro filmes feitos na década de 1970, entre os quais está O Congo.
14
OMAR, Arthur. O antidocumentário, provisoriamente. Cinemais, nº7, Rio de Janeiro: set/out. 1997, p.
202. Obs: Este texto foi publicado pela primeira vez em 1978 na Revista Vozes nº 72, p. 405-418.
15
PIMENTEL, M. Arthur Omar: corpo, tempo e experiência. Dissertação de Mestrado em História Social
da Cultura. PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2004, p. 11.
16
Ibidem, p. 14. A autora argumenta que a diferença de uma fase para outra implica “na maneira pela
qual o cineasta vai articular a problemática do falso em seus filmes, problemática ontológica decerto,
que vai influir diretamente na forma como o tempo vai ser trabalhado em seus filmes. Se num primeiro
momento o falso será articulado a partir de um embate entre ficção e realidade, fazendo com que
esses dois planos apareçam sempre embaralhados e indiscerníveis, onde o mesmo é pensado em
oposição à identidade como não identidade - temporalidade crônica -, num segundo momento essa
241

No entanto, apesar desta divisão em fases feita por Pimentel, considero que ao
produzir o filme O Inspetor a relação de Arthur Omar com o documentário
estabelecia-se ainda naquela dinâmica positiva observada por Guiomar, dentro da
qual o tema pôde ser desenvolvido, mesmo que observemos um confronto entre os
elementos fílmicos representativos do universo temático, dispostos em múltiplas
ramificações de significados possíveis através de uma narrativa estranha e de uma
montagem perturbadora. Ao mesmo tempo, pode-se dizer – se aceitarmos as fases
propostas por Pimentel – que este filme, juntamente com o Ressurreição, marcou um
momento de transição e de desdobramento na trajetória autoral de Omar, indo do
cinema para outros suportes, embora sem abandonar sua postura questionadora
quanto ao caráter paradoxal de incompletude e de complexidade sígnica do
audiovisual.

Algumas facetas do curta O Inspetor

O curta-metragem O Inspetor foi produzido por Arthur Omar em 1987 e exibido


a partir de 198817. Tem como centro a figura do detetive carioca Jamil Warwar que é,
ao mesmo tempo, o assunto do filme, o depoente que fala diante da câmera como
num documentário, e o ator que representa a si mesmo.
Quanto ao filme como um todo, destaca-se a mescla de elementos da
linguagem do documentário padrão (a voz do narrador que é o próprio Omar; as falas
do detetive Warwar sobre o seu universo de trabalho; excertos de um depoimento
do suposto irmão de uma vítima de assassinato; fotografias documentais; cenas em
que a câmera acompanha uma batida policial na periferia do Rio de Janeiro; trechos

dicotomia se desfaz em favor de uma terceira instância, a fabulação, de modo que o falso desponta
como potência criadora - imagem-tempo”. Ibidem, p. 18.
17
No banco de dados da Cinemateca Brasileira, aparecem as seguintes informações sobre o filme: O
Inspetor, 1987. 11 minutos, 35 mm. Argumento, roteiro, narração, trilha musical, som direto: Arthur
Omar. Elenco: Jamil Warwar. Direção de Fotografia: Walter Carvalho. Assistência de fotografia: Carlos
Azambuja. Montagem: Aída Marques. Efeitos Sonoros: Geraldo José. Produtora: Melopeia/Cortex. Co-
produtora: Embrafilme. No entanto, como a exibição do filme começou a ocorrer em 1988, e como o
material de divulgação sobre o filme que acessei até este momento atribui essa data à produção do
filme, assumo-a aqui.
242

de entrevistas com travestis) com elementos da linguagem ficcional (imagens de


fotonovela, aparência de encenação de algumas cenas em que o Warwar representa
a si mesmo em momentos de investigação) e experimental (montagem fragmentária
de elementos visuais e sonoros que geram estranhamento).
A referência à linguagem da mídia e à violência urbana evoca aspectos estéticos
do cinema marginal do final da década de 1960. Essa conexão pode ser pensada,
inicialmente, a partir da montagem fragmentária e das remissões à mídia, mas
também pela questão identitária vinculada à relação “polícia e bandido”: o Bandido
da Luz Vermelha (1968) de Rogério Sganzerla, por exemplo, perguntava-se desde a
abertura do filme “quem sou eu?” e espelhava-se no que a mídia dizia sobre ele,
colecionando recortes de jornal numa valise cujo interior continha a inscrição “eu”18.
No filme de Omar, o assunto não é a identidade do bandido, e sim a do detetive, que
coleciona matérias sobre os crimes que solucionou e demonstra prazer em falar
sobre suas técnicas de trabalho.
Entretanto, a questão problematizada do início ao final do filme é a
impossibilidade de se fixar uma imagem identitária “real” para o detetive, que
trabalha mergulhado em disfarces. Quanto a essas conexões, já na ocasião de
lançamento do filme, o crítico Ahmed disse que “talvez O Inspetor seja um
documentário de ficção. Como a história”, que consiste na “outra face da moeda de
O Bandido da Luz Vermelha, a obra prima de Rogério Sganzerla” 19. Já para Mariana
Pimentel, neste filme Omar explora “o problema da identidade versus o disfarce”.
Para esta autora, “o disfarce é a chave para compreendermos esse filme, pois, em si
mesmo, ele também é um disfarce: seria ele um documentário disfarçado de ficção
ou uma ficção disfarçada de documentário?”20. De qualquer modo, o curta escancara
a impossibilidade mesma de se cercar quaisquer identidades, seja a do bandido, seja
a do policial, seja a do cinema, seja a da nação, e isso é problematizado do início ao
final do filme, conforme será aqui discutido.

18
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 124-184.
19
AHMED, Flávio Villela. Dois curtas de Omar. Cine Imaginário nº 35, outubro de 1988, p. 7.
20
PIMENTEL, Mariana. Op. cit., p. 29.
243

Realizado em película de 35 mm, O Inspetor possui 11 minutos de duração e é


composto de cerca de 150 planos, organizados numa montagem rápida e sem
compor uma narrativa linear. Pode ser dividido em quatro momentos: 1) uma
apresentação inicial sobre o “universo temático” do filme, com duração aproximada
de dois minutos; 2) a apresentação que o detetive Jamil Warwar faz de si mesmo e
de suas técnicas de trabalho, alternada com trechos de depoimentos, cenas
aparentemente documentais de uma batida policial na favela e algumas inserções
verbais do narrador, tudo em cerca de seis minutos; 3) a atuação de Warwar como
ator de fotonovelas da Editora Bloch e as relações entre o trabalho do policial e o
trabalho do artista, em que se problematiza “a relação com a verdade” na construção
de sentidos, em cerca de dois minutos; e 4) a conclusão, no último minuto de filme,
com ar de carnavalização, numa montagem caleidoscópica com cenas de travestis, o
detetive Warwar disfarçado de empresário, armas do exército, imagem de
fotonovela, ao som de música orquestral, de efeitos sonoros do tipo “filme de ação”
e um grito apavorado como arremate antes da palavra “fim”. As quatro partes não
são estanques, visto que a montagem não é linear, e vários elementos anunciados
numa parte são melhor evidenciados em outra. Em todo o filme, há pontuações feitas
pela voz masculina de um narrador (Omar), de caráter mais reflexivo do que
informativo.

Primeiras cenas de O Inspetor (Arthur Omar, 1988).


244

Na primeira cena, após a exibição do Certificado de reserva de mercado 21, som


e imagem entram juntos, de supetão. O som instrumental é parecido com o de
“filmes de ação”. No plano inicial, de dois segundos, se vê o rosto de um homem
negro que aponta uma arma para a câmera. A arma está mais nítida e é agressiva,
enquanto o rosto do homem, em segundo plano, fica levemente desfocado. Logo em
seguida, apresenta-se o letreiro em vermelho sobre fundo preto, com o título do
filme, rapidamente substituída pela imagem de um fusca da polícia civil em
movimento na rua. O narrador declama: “Qualquer filme sobre ele era uma maneira
de falsear sua identidade”. Essa voz já alerta para o meio discursivo (o filme que
estamos vendo) e a impossibilidade de qualquer filme ser um equivalente ao assunto
sobre o qual discursa. Neste caso, a “verdadeira face” do inspetor. A seguir,
juntamente com o som brusco de uma freada, aparece a legenda: “com Jamil
Warwar”, indicando que ele é a estrela do filme22.
Desde o instante inicial, o som de filme de ação pontua o ritmo da montagem,
som que se estenderá por um minuto e meio, mesclado a outros elementos sonoros:
voz do narrador, gritos, sons de automóveis, um rádio em que se busca sintonizar
alguma transmissão, e a expressão radiofônica “Brasil-il-il”, entonada da forma como
os locutores de futebol exclamavam no momento em que a seleção brasileira
marcava um gol. A montagem rápida de vários planos em pormenor mostra uma
sucessão de desvendamentos de esconderijos utilizados no tráfico de drogas:
papeletas de maconha e de cocaína dentro de objetos tão inusitados quanto uma
bisnaga de creme dental ou um radinho de pilhas. Após enunciar algumas frases de
efeito, o narrador diz, enigmaticamente: “O teatrólogo alemão Bertold Brecht teve
muitos discípulos no Brasil. O Inspetor foi talvez o mais original deles”. A partir daí,

21 Certificado de Reserva de Mercado No. CRM/052-01-35mm/137/87, de 19 de agosto de 1988. Refere-


se à “Lei do Curta” ou seja, a Lei 6.281 de 9/12/1975, que foi sendo complementada por várias
resoluções até 1984, e garantia uma reserva de mercado ao curta-metragem.
22 Vale a pena lembrar que, apesar da impressão de nome artístico, e até de um aparente trocadilho
com a repetição da palavra “war”, esse era o nome utilizado pelo policial já nos anos 1970, quando
atuava na polícia do Rio de Janeiro, como pode ser observado em reportagens referentes às
investigações das quais ele participou. Ver, por exemplo: “Uma história sem mistérios, 24 horas depois
da descoberta do corpo”. O Globo: Matutina. Rio de Janeiro, 4 set. 1977, p. 20; e “Morte de Cláudia:
polícia apressa inquérito”. O Globo: Matutina. Rio de Janeiro, 6 set. 1977, p. 15.
245

iniciará a segunda parte do filme, em que o detetive Jamil Warwar aparecerá


pessoalmente em seu ambiente de trabalho.

Desvelamento de esconderijos para tráfico de drogas. O Inspetor (Arthur Omar, 1988)

Todos os elementos que foram descritos até aqui apontam para a temática do
filme: violência, tráfico, Brasil, universo da ação policial, e o próprio detetive Jamil
Warwar. Mas também para o universo do filme em si e da encenação: um universo de
“falseamento de identidade”, que condiz com o perfil do detetive, conhecido por
usar disfarces.
O tema primário, pode-se dizer, é a atuação do detetive Jamil Warwar na polícia
do Rio de Janeiro, no combate ao tráfico e desvendamento de casos de homicídios.
Mas envolve outras questões, como a relação entre real e ficção tanto na atuação do
detetive (que também foi ator de fotonovelas, como anunciado na terceira parte do
filme), quanto na edificação de um documentário experimental. O primeiro ponto
que remete a essa questão, é a presença de Jamil Warwar “representando a si
mesmo”. Não se trata de apresentar fragmentos de entrevistas feitos pelo diretor
com o detetive, como se esperaria de um documentário convencional. Mas de vê-lo
travestindo-se diante da câmera, ou encenando a própria ação de refletir sobre os
indícios que tinha ao seu alcance num determinado caso a solucionar ou, ainda, lendo
um trecho do livro escrito por ele mesmo, para remeter à violência policial e a
“opinião pública iludida”. Um segundo ponto, é a insistência em estabelecer
comparações entre o trabalho do inspetor e o trabalho de um artista. Isso é feito pela
voz do narrador, naquela remissão aos seguidores de Brecht, e pela voz off de
246

Warwar, quando ele mesmo diz que “O policial tem que ter um pouco de artista nas
suas encenações para poder penetrar no mundo do crime sem levantar suspeita” 23.
E um terceiro ponto referente a essa questão, é a forma de insinuar a condição
inapreensível da verdade, bem como a impossibilidade de imprimir uma única face
para o Inspetor. A ambiguidade na construção de sentidos, o caráter fugidio das
noções de verdade e autenticidade, as múltiplas tinturas entre o bem e o mal, a
opinião pública iludida, são ideias que pontuam o filme desde a primeira frase até o
final do curta-metragem.

Primeira aparição de Jamil Warwar no filme O Inspetor (Arthur Omar, 1988)

Quando Warwar aparece em imagem pela primeira vez, está ao lado de uma
viatura policial com a sirene ligada, vestindo uma jaqueta. Ele despreza a presença da
câmera, enquanto o narrador afirma: “O inspetor tinha mil faces mas nenhuma delas
se imprimia no espelho”. Nova cena, e Warwar está fantasiado de padre, numa praça,
dando milho aos pombos. Agora é sua voz que ouvimos, falando em primeira pessoa:

23
Sobre isso, sugiro a leitura do artigo: GUÉRON, Rodrigo. “O Inspetor” de Arthur Omar: fabulação e
gestus. Estudos da Língua(gem). Vitória da Conquista v. 12, n. 1 p. 157-173 junho de 2014. Guéron diz que
“Jamil se tornou um personagem midiático: um personagem criador de personagens que virou,
exatamente por isso, um personagem também” (p. 158). Diz ainda: “De fato, um detetive de polícia é
já um “papel” que se assume: um personagem. Warwar, como sabemos, é um detetive criador de
personagens – os disfarces –, e que pelas suas performances como policial se torna ele mesmo um
personagem midiático frequente nas manchetes de jornais a ponto, inclusive, de ser convidado a
participar como ator em fotonovelas onde ele protagoniza um personagem de um policial: o
“inspetor” propriamente dito. São as múltiplas fabulações de Warwar que jogam o próprio Omar em
suas múltiplas fabulações” (p. 167).
247

“Desde garoto eu sempre tive o ideal de ser policial”. Mas será de frente para a
câmera que ele se apresentará objetivamente, na sequência seguinte: “Meu nome é
Jamil Warwar. Estou na polícia desde 1963”. O ambiente é um suposto “salão de
processos” extremamente precário, com letreiro escrito à mão, o que insinua as
condições toscas de trabalho da Polícia num país de tantos contrastes.

Jamil Warwar no filme O Inspetor (Arthur Omar, 1988)

Para se identificar, ele menciona o caso de assassinato de Cláudia Lessin


Rodrigues: “Já trabalhei em muitos casos de repercussão, entre os quais o crime de
Cláudia Rodrigues, que apurei em três dias”. De fato, Warwar ficou famoso pela sua
participação no desvendamento desse crime ocorrido em julho de 1977, quando
descobriu o nome do principal suspeito de assassinato a partir da placa de um
automóvel que fora visto no local de despejo do corpo da vítima, nas pedras ao lado
da Avenida Niemeyer no Rio de Janeiro24. No entanto, ao indicar como suspeito do
crime o nome de Michel Frank, filho de um industrial milionário e envolvido com o
tráfico de cocaína, Warwar foi afastado e removido para o interior do Rio de Janeiro.

24
Cláudia Lessin Rodrigues, 21 anos, foi morta em 24 de julho de 1977. Seu corpo foi encontrado dois
dias depois, nas pedras do Chapéu dos Pescadores, na Avenida Niemeyer. Ela estava nua e tinha um
saco cheio de pedras amarrado ao pescoço. Pela indicação de uma placa de carro, a polícia chegou aos
nomes de dois suspeitos que estavam com ela em uma festa na noite de seu desaparecimento: George
Khour e Michel Frank. Este fugiu para a Suíça e nunca foi julgado. O caso teve ampla repercussão na
mídia, e o inquérito se estendeu por vários anos. O afastamento “suspeito” de Jamil Warwar do caso
é mencionado no Programa do Globo Repórter que foi ao ar em 25 de julho de 1988, disponível em:
http://memoriaglobo.globo.com/programas/jornalismo/coberturas/claudia-lessin-morte/claudia-
lessin-morte-a-historia.htm
248

Esse caso, amplamente difundido pela mídia, nunca foi completamente esclarecido,
pois Michel Frank fugiu para a Suíça poucos dias após a morte de Cláudia. Os
depoimentos dos demais envolvidos eram confusos e vários deles “desapareceram”.
Dez anos depois, em 1987, o jornal carioca O Globo anunciava que os acusados ainda
não haviam sido julgados, estavam livres25. Nesse mesmo ano Arthur Omar iniciou a
produção do seu filme O Inspetor, com o qual trouxe novamente à tona a participação
de Warwar no desvendamento do crime, inicialmente pela própria verbalização do
investigador, mas também através de outros elementos.

Imagens que remetem ao “Caso Cláudia”. O Inspetor (Arthur Omar, 1988)

Uma das cenas que remete ao caso do assassinato de Cláudia é aquela em que
vemos Warwar andando de um lado para o outro diante de uma espécie de fachada
de uma loja, sobre a qual vê-se um enorme letreiro em vermelho com o nome
“Claudia”. Ele mostra-se pensativo, com a mão no queixo, como se estivesse
concentrado tentando resolver um enigma. Representa a si mesmo em plena
atividade mental. Tais imagens são alternadas com fotografias documentais em
preto e branco, que mostram um homem abrindo, com as próprias mãos, a boca de
uma mulher deitada, como se fosse segurar a sua língua. Isso se relaciona com o
depoimento de Michel Frank em 1977, quando afirmou que Cláudia havia sofrido uma
overdose e que ele próprio tentara salvá-la puxando sua língua, pois “estava
enrolada, a ponta voltada para dentro, tapando-lhe a garganta”26. Logo em seguida,

25
Após dez anos, acusados ainda não foram julgados. O Globo. Matutina. Rio de Janeiro, 12 de julho de
1987, p. 27. Ver também: Estão livres acusados da morte de Cláudia. O Globo. Matutina. Rio de Janeiro,
31 de julho de 1987, p. 26.
26
Depoimento publicado em: O mistério vai acabar? Revista Veja, São Paulo, 7.09.1977, p. 31.
249

no filme, aparece uma legenda mencionando a remoção de Warwar para o interior


do estado por ordem do governador do Rio de Janeiro, sugerindo uma articulação de
interesses entre o tráfico de cocaína e o poder político. A legenda vai aparecendo
como se fosse um telegrama sendo datilografado: “Inspetor soluciona caso Cláudia.
Verdade prejudicará nossos amigos. Afastem o Inspetor do caso. Transfiram-no para
o interior.”
Aí se dá a passagem para um terceiro momento do filme, em que Warwar conta
sobre sua experiência como ator de fotonovelas brasileiras, e vemos páginas dessas
revistas publicadas pela Editora Bloch nos anos 1970, como é o caso da “Sétimo
céu”27. Nesse trecho, se ouve a voz do inspetor comentando a sua atuação
simultânea como ator e como investigador, enfatizando as inter-relações entre tais
atividades. Enquanto ele fala, são exibidas páginas de fotonovelas com Warwar
encarnando um personagem que também é investigador. Essa parte me parece ser
um dos pontos centrais do curta-metragem, pois problematiza as ações de
“documentar” e “ficcionalizar”. Arthur Omar documenta a atuação do detetive
nesses dois âmbitos profissionais, aponta para os limites tênues entre eles, e
aproxima o personagem de si mesmo, enquanto artista, na sua tarefa constante de
investigar assuntos para suas obras 28. Para Guéron, “o personagem é um notável
falsário, um extraordinário fabulador, que transita num mundo que se constitui de
cruzamentos de inventividades e ficções múltiplas, mesmo que algumas delas
ganhem tintas (por vezes caricatas) dos regimes de verdades mais efetivos de nossa

27
Um exemplo de fotonovela com a participação de Warwar é “Destino Fatal”, In: Sétimo Céu nº 264,
Editora Bloch, 1978. De acordo com Raquel de Barros Pinto Miguel, a “grande maioria das fotonovelas
publicadas nas revistas brasileiras era italiana ou francesa. A produção de uma fotonovela era bastante
onerosa, por este motivo as editoras brasileiras preferiam importá-las a produzi-las. Apenas a editora
Bloch produzia com regularidade suas próprias fotonovelas. Para tornar tal empreendimento
economicamente viável, a revista contava com a participação de ídolos da televisão em suas histórias,
assim como utilizava hotéis e restaurantes como cenário, fazendo merchandising, mesmo que
discreto, destes”. In: MIGUEL, Raquel de B. P. Fotonovelas e leitoras: um romance. AlcarSul 2014: Anais
do 5º Encontro Regional sul de História da Mídia. Florianópolis, UFSC, 2014.
28
Essa aproximação entre o inspetor e o cineasta é sugerida por Marcelo Leitão, que diz: “Ele próprio,
Arthur Omar, assim como o inspetor, utiliza disfarces (melhor: fantasias) menos para frequentar locais
indevassáveis do que para apurar os crimes cometidos entre fotógrafos, cineastas, videastas...”
LEITÃO, Marcelo Magalhães. Modulações em fuga: movimentos acerca de Arthur Omar. Dissertação em
Letras, PUC-RIO, 2003, p. 22.
250

‘civilização’”29. Warwar traz consigo, imiscuídos, signos herdados de filmes de ficção


e de séries televisivas sobre policiais, com o discurso sobre o desvendamento da
“verdade” por meio da investigação policial, misturado ao discurso falacioso de
“apresentação da realidade” nos jornais televisivos. Em certa ocasião, ao falar do
filme, Omar chegou a afirmar que “a história de Warwar é uma metáfora do artista
como herói popular”30.

Jamil Warwar como ator de fotonovelas. Imagens de O Inspetor (Arthur Omar, 1988)

No último minuto de filme, à guisa de conclusão, os assuntos e elementos


semânticos se misturam: a câmera revela o corpo de uma travesti na rua, à noite, com
os seios à mostra. Vemos Warwar conversando com ela, mas na faixa sonora ouvimo-
lo dizer que: “Fui designado para apurar o travesti que foi assassinado em Mesquita.
Então, fazendo-me passar como empresário de show de travesti, consegui contactar
com vários travestis que batalhavam em Mesquita e me deram o serviço – coisa que
eu não conseguiria se me identificasse como policial”. A travesti declara (a quem? Ao
detetive? Ou a nós, espectadores?): “Eu quero estar sempre autêntica como eu sou”,
enquanto a câmera mostra corpos de travestis dançando ao som de um hino militar.
Qual autenticidade Omar quer discutir por meio dessa inserção? Aqui vale lembrar
que, num momento anterior do filme, já havíamos assistido ao próprio Warwar se

29
GUÉRON, Rodrigo. Op. cit., p. 159.
30
KLEIN, Cristian. Trópicos no MOMA. Jornal do Brasil, 17/9/1999. Nessa matéria, afirma-se que Warwar
desvendou mais de 2 mil homicídios ao longo de sua carreira.
251

travestir, enquanto ele explicava os métodos de disfarce que costumava usar em suas
investigações.
Em seguida, são apresentadas imagens de armas de fogo em vários
enquadramentos rápidos, entre eles um close num revólver com o Selo Nacional e a
legenda “Exército Brasileiro”. A montagem sonora é complexa: a execução
instrumental de um hino, sons de tiros, efeitos de filmes de ação. Ao final, ouve-se a
exclamação “Até breve, inspetor!”, seguida de um grito, enquanto a câmera se
aproxima de um quadro numa fotonovela, em que Warwar beija a mocinha.

Arma do exército. Cenas finais de O Inspetor (Arthur Omar, 1988).

Após essa breve descrição do caráter geral do filme e de suas partes, pretendo
ainda situá-lo em relação ao seu contexto de produção, ou seja, os anos 1980 no
Brasil. Para tanto, ao estabelecer um percurso de reflexão, nas próximas páginas
serão destacados dois aspectos referentes àquela década: 1) O cenário
cinematográfico nacional, em especial no que tange à produção de curtas-
metragens; 2) As questões referentes à ampliação da violência, um dos mais
candentes problemas urbanos do período, que se articulava ao momento de crise e
à projeção de uma imagem negativa do Brasil.

O lugar do curta-metragem brasileiro nos anos 1980


252

Quanto ao primeiro aspecto, é evidente que o filme O Inspetor não se trata de


caso isolado, nem na obra de Omar, nem no campo cinematográfico brasileiro. Na
virada dos anos 1980 para os 90, num momento crítico para a produção de cinema de
longa-metragem no Brasil – uma crise que se articulava aos problemas econômicos
do país e à desmobilização do projeto cultural do Estado 31 –, muito se estimulou a
produção e a valorização de curtas-metragens, com a ampliação do número de
mostras e festivais dedicados a esse formato. Segundo Francisco Cesar Filho e Rafael
Sampaio, curadores da mostra Anos 80: cinema e vídeo, realizada pelo CCBB em 2010,
a década de 1980 assistiu a uma “explosão de prestígio do cinema de curta
duração”32. Até então, o curta brasileiro não havia tido grande repercussão. No
entanto, com a sua presença constante na mídia, com os elogios em festivais e
mesmo com sua circulação nas salas comerciais graças à “Lei do Curta” (Lei 6.281 de
9/12/1975), observar-se-ia uma “exuberante produção”, revelando nomes como Jorge
Furtado, Tata Amaral, Betto Brandt, Anna Muylaert e Cao Hamburger, entre outros 33.
Apesar de nenhum filme de Omar constar na programação dessa mostra Anos
80: cinema e vídeo, no final daquela década destacou-se a participação dos seus filmes
em eventos nacionais e internacionais. O Inspetor foi bastante premiado, e convidado
para participar do New York Film Festival de setembro de 1989 como o único
representante da América Latina, entre longas e curtas34. Em 1993, O Inspetor teve
lugar especial no IV Festival Internacional de Curtas Metragens promovido pelo Museu

31
Segundo Tonico Amâncio, “Durante os anos 1980 a Embrafilme enfrentou a crise econômica e a
reorganização e redemocratização da sociedade civil (com a Anistia e as Diretas-Já) reduzindo o
número de filmes produzidos”, além disso “O aumento galopante da inflação fez com que os
orçamentos se tornassem problemáticos, exigindo reajustes constantes.” AMÂNCIO, Tonico. Pacto
cinema-Estado: os anos Embrafilme. Alceu, v. 8, n. 15, jul./dez. 2007, p. 180.
32
CESAR FILHO, Francisco e SAMPAIO, Rafael. Anos 80: cinema e vídeo. Catálogo. Centro Cultural Banco
do Brasil. São Paulo, 19 de fevereiro a 7 de março de 2010, p. 5.
33
Ibidem. Na mostra Anos 80: cinema e vídeo não foram incluídos filmes de Omar. No entanto, foram
exibidos diversos curtas em 35 mm que são contemporâneos ao O Inspetor, entre os quais: Queremos
as ondas do ar! (Tata Amaral e Francisco Cesar Filho, 1987, 11 min); História familiar (Tata Amaral, 1988,
11 min); Rock paulista (Anna Muylaert, 1988, 11 min); Caramujo-flor (Joel Pizzini, 1988, 21 min); A mulher
do atirador de facas (Nilson Villas Bôas, 1988, 11 min); Ilha das flores (Jorge Furtado, 1989, 12 min); e Pós-
modernidade (Mirella Martinelli, 15 min).
34
O Inspetor foi contemplado com os seguintes prêmios: Melhor montagem no Festival de Brasília em
1988; Prêmio Leon Hirzman, da Fidalc, no FestRio, 1988; Prêmio Joaquim Pedro de Andrade do
Governo do Estado do Rio de Janeiro de Melhor Curta de 1988; Troféu Muiraquitã de Melhor Curta
Metragem de 1988.
253

da Imagem e do Som de São Paulo, com curadoria de João Luiz Vieira e Amir Labaki35.
Já desde alguns anos antes desse festival no MIS de São Paulo, João Luiz Vieira vinha
assumindo papel importante na construção da visibilidade internacional dos filmes
de Omar, intermediando, enquanto diretor da Cinemateca do MAM do Rio de Janeiro,
a participação do cineasta numa mostra em Toronto e outra no Museu de Arte
Moderna (MoMA) de Nova York36.
Em 1994, num texto escrito para o catálogo da Quarta Mostra Curta Cinema,
realizada no Rio de Janeiro e em Niterói, Vieira comentou essa visibilidade que o
curta-metragem experimental conquistara ao longo dos anos 1980, em meio à crise
do cinema brasileiro que, segundo ele, vinha se delineando “quando os governos
Figueiredo e Sarney iniciaram a retirada gradual do apoio do Estado à cultura,
radicalizada, no caso do cinema, a partir da omissão federal frente ao vazio criado
com a falência do modelo Embrafilme”37, apesar da criação de um Ministério da
Cultura em 1985 e da Lei Sarney em 198638.
Além disso, nos anos 1980 também foi constatado um afastamento do público
das salas de cinema (geralmente atribuído à concorrência da televisão e à crise

35
CARVALHOSA, Zita. Sem título. In: IV São Paulo Internacional Short Film Festival. Museu da Imagem e
do Som, São Paulo. 19 a 29 de agosto de 1993. Catálogo do festival.
36
“Levado pelo curador do Brasil no Congresso, o diretor da Cinemateca do Museu de Arte Moderna
do Rio, João Luiz Vieira, a mostra com onze curtas, quatro vídeos e um longa-metragem do cineasta
[Arthur Omar] foi a única que, divulgada pela imprensa e pelo ‘boca a boca’ local, mereceu um bis da
selecionadíssima plateia, que incluía desde o cineasta Stan Drakhage ao crítico do The New York Times,
Noel Carol.” REGO, Alita Sá. Cinema rolando quente. Última Hora. Rio de Janeiro, 06.07.1989. Ver
também: VIEIRA, João Luiz. Toronto/Nova York. Letras & Artes, Rio de Janeiro, ano IV, no 10, setembro
de 1990, p. 9; e MOCARZEL, Evaldo. Omar, um artista de múltiplas artes. Folha da tarde, 21.12.1989. Dez
anos depois, em 1999, Arthur Omar realizaria uma retrospectiva completa de seus trabalhos em
cinema e vídeo no MoMA, “tendo sido o primeiro latino-americano a receber esse convite”.
COCCHIARALE, Fernando. Sobre filmes de artista. In: Filmes de artista. Brasil 1965-80. Rio de Janeiro:
Contracapa / Metropolis, 2007. Catálogo da exposição realizada no Oi Futuro, Rio de Janeiro, de 1º de
maio a 17 de junho de 2007, com a curadoria de Fernando Cocchiarale, p. 72.
37
VIEIRA, João Luiz. A reflexividade na tela. Op. cit. A Quarta Mostra Curta Cinema aconteceu no Rio de
Janeiro, no Centro Cultural Banco do Brasil, e em Niterói, no Cine Arte-Uff, de 6 a 11 de dezembro de
1994.
38
Contraditoriamente, na gestão do presidente José Sarney se disfarçou esse desinteresse do governo
através do estabelecimento de um Ministério da Cultura, criado por meio do Decreto nº 91.144 em
15/3/1985 com o argumento de que “os assuntos da cultura nunca haviam sido objeto de uma política
consistente”. Entre os órgãos que compunham o novo ministério, figuravam o Conselho Nacional de
Cinema (Concine) e a Empresa Brasileira de filmes S.A (Embrafilme). Já a Lei Sarney (Lei 7.505, de
2/7/1986) foi criada na gestão do Ministro da Cultura Celso Furtado e concedia benefícios fiscais na
área do imposto de renda para operações de caráter artístico-cultural. Cf: CALEBRE, Lia. Políticas
culturais no Brasil: dos anos 1930 ao século XXI. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009, p. 99-101.
254

econômica). Uma matéria da revista Filme Cultura em 1986 comentava a “redução de


67% do público nos últimos 10 anos”, provocando o fechamento de 1.848 salas de
cinema no Brasil. “Entre 1975 e 1985 as salas de cinema perderam 184 milhões de
espectadores”39. A mesma matéria anunciava a iminente construção de salas de
cinema menores, em shoppings centers, uma vez que “as taxas de ocupação
insignificantes tornaram anacrônicos os palácios de cinema característicos do apogeu
da indústria cinematográfica”.
No entanto, como antes dito, nesse mesmo contexto observava-se o
fortalecimento do curta-metragem. Dizia João Luiz vieira: “mais que uma resposta e
forma de resistência à crise, os curtas recentes assumiram a vanguarda da produção
cinematográfica brasileira e mostraram, principalmente na segunda metade dos anos
80, a face mais dinâmica de nossa produção”40.
Vários fatores estiveram envolvidos naquele rico período de amadurecimento
técnico e estético do curta-metragem. Um deles, que teve implicações positivas e
negativas, foi a política de incentivo à produção e exibição de curtas imposta pela já
mencionada “Lei do Curta”. À margem dos oportunismos atrelados a ela, a Lei
dinamizou a produção do curta-metragem brasileiro. O Inspetor foi beneficiado,
como se vê pelo certificado que aparece nos segundos iniciais do filme.
Mas a grande questão destacada por Vieira foi a tendência à experimentação
de estratégias reflexivas “tanto narrativas – temas, conteúdos, histórias – quanto no
próprio processo de narração, ou seja, na forma específica de construção dos
filmes”41. Eram traços que estavam em sintonia com um cinema internacional
contemporâneo, mas também tinham como referência o cinema mais experimental
feito no Brasil dos anos 1960-70, como era o caso da “colagem de materiais díspares”
no cinema marginal e a carnavalização da “tradicional arte erudita”, estratégias que
seriam assimiladas pelos curtas vinte anos depois, ainda que com intenções diversas,

39
1986: mais público para novos cinemas. Filme Cultura nº 47, agosto, 1986, p. 128. A Filme Cultura era
uma revista publicada pela Embrafilme. Parou na edição nº 48, que seria publicada apenas em
novembro de 1988. Ou seja: a própria interrupção da revista já é parte da crise vivenciada pelo meio
cinematográfico brasileiro naquele momento.
40
VIEIRA, João Luiz. Op. cit.
41
Ibidem.
255

quando os cineastas “potencializariam ao máximo a crítica paródica, não só como


forma de autocrítica mesmo, como, principalmente, tentando provocar uma
compreensão mais profunda das complexas relações entre a tradição
cinematográfica e a consciência”42.
Num bordão parecido, Ivana Bentes afirma que “a experimentação mais radical
no cinema encontra no curta-metragem um espaço privilegiado”43, e Guiomar Ramos
reitera a tendência reflexiva desse tipo de cinema quando esboça sua definição para
“documentário experimental”. Segundo Ramos, esses filmes “propõem uma
reflexão do mundo real a partir de uma visão subjetiva” 44.
Para Ivana Bentes, a ideia de um “documental transcendido” em que a
subjetividade do diretor e do espectador se dissolvem com o “objeto” do
documentário – ideia presente no conceito omariano de antidocumentário – marcaria
tanto a produção dos curtas-metragens do artista nas décadas de 1970 e 1980, quanto
a de seus trabalhos mais recentes em vídeo45. Isso aponta para outro diálogo
estabelecido em suas obras, que diz respeito à experimentação de suportes variados.
O vídeo entrou com força na produção audiovisual brasileira dos anos 1980 46.
Muitos realizadores começam “a usar o vídeo como meio, orientados, no entanto,
por conceitos formulados mais no cinema experimental que na incipiente esfera de
produção de arte eletrônica no Brasil” 47. Omar, no caso, começou a trabalhar com
vídeo em 1984, com o média-metragem Tony Cragg in/no Rio. Em 1987 realizou O nervo
de prata, sobre o artista plástico Tunga, produção praticamente simultânea ao O
Inspetor. Em 1989, numa entrevista ao Jornal do Brasil referente à sua participação no

42
Ibidem.
43
BENTES, Ivana. Vídeo e cinema: rupturas, reações e hibridismo. In: MACHADO, Arlindo (org.). Made
in Brasil: três décadas de vídeo brasileiro. São Paulo: Iluminuras/Itaú Cultural, 2007, p. 119.
44
RAMOS, Guiomar. Documentários experimentais? Op. cit, p. 265-271. A autora aponta a produção de
documentários como uma das tendências observáveis no cinema brasileiro entre 1985-2005. Mas
questiona: que tipo de característica experimental há nesse tipo de cinema? Trabalha a questão
discutindo alguns filmes dos anos 1970, nos quais observa o formato experimental se interligando ao
formato documentário, conforme dito antes.
45
BENTES, Ivana. Op. cit., p. 115.
46
Os sistemas portáteis de gravação de vídeo só se tornaram disponíveis no Brasil entre 1979-80. O
videocassete de uso doméstico e suas pequenas câmeras com gravadores-reprodutores chega em
1982. Cf: FECHINE, Yara. O vídeo como um projeto utópico de televisão. In: MACHADO, Arlindo (org.).
Made in Brasil: três décadas de vídeo brasileiro. São Paulo: Iluminuras/Itaú Cultural, 2007, p. 87-88.
47
Ibidem, p. 95.
256

Festival de Cinema e Vídeo do Canadá (ocasião em que expôs onze curtas, quatro
vídeos e um longa-metragem), disse que o vídeo “revolucionou o ato de ver” 48.
Noutra matéria, se declarou “um apaixonado pelo vídeo, já que a mídia eletrônica
tem uma linguagem mais quente e mais febril, principalmente na hora da edição”, e
também afirmou a importância de “um cinema que fale sobre a realidade, o aqui-e-
agora com impacto e contemporaneidade, aguçando a sensibilidade do
telespectador sempre pelo excesso”49. Ao falar de “telespectador” na mesma frase
em que remetia ao tipo de cinema que aspirava, já denunciou a mescla de meios que
caracterizaria seus trabalhos posteriores, compostos de videoinstalações,
fotografias, instalações sonoras, etc. Para Christine Mello, Omar possui “papel
fundamental nos caminhos de hibridização na arte ao entrecruzar as linguagens da
fotografia, do cinema e do vídeo e tem um trabalho considerado dos mais densos na
potencialização dos sentidos da imagem”50.
Enfim, em diálogo com os debates estéticos envolvendo cinema e vídeo no
Brasil, sua postura questionadora sobre a linguagem e sobre a “função do cinema
dentro do real” é candente no curta-metragem O Inspetor. Pouco tempo após a
exibição deste curta em festivais, José Guimarães afirmou que “em O Inspetor Arthur
Omar aproveita alguns de seus achados em vídeo moldando-os segundo a métrica do
curta-metragem”; e que neste filme Omar “faz, desfaz e refaz o documentário em
forma de prosa-poética”, sendo capaz de “revelar o documentário pelo avesso;
mostrá-lo na sua essência como ficção pura e simples”51.
As observações do crítico demonstram coerência entre o produto fílmico e
aquele desejo enunciado por Omar de provocar reações e deslocamentos de sentidos
através de suas obras, desejo ao qual já me referi no início deste texto. Em O Inspetor
nota-se uma forma de remissão ao mundo fatual e próximo, ao escancaramento da
violência urbana, mas não por uma retórica expositiva ou descritiva, e sim por meio

48
PÉROLAS na mediocridade. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: 18.08.1989.
49
REGO, Alita Sá. Cinema rolando quente. Última Hora. Rio de Janeiro, 06.07.1989.
50
MELLO, Christine. Arte nas extremidades. In: MACHADO, Arlindo (org.). Made in Brasil: três décadas
de vídeo brasileiro. São Paulo: Iluminuras/Itaú Cultural, 2007, p. 155.
51
GUIMARÃES, José Claudio. As pernas cabeludas do polícia. Caderno de Crítica, n. 6, maio de 1989. p.
74-75.
257

da linguagem, do sensorial e do rítmico. Omar não propõe um ponto de vista objetivo


ou afirmativo no filme, ele oferece os signos ao espectador para que tire suas
próprias conclusões sobre o que está vendo, sobre os assuntos aos quais imagens e
sons remetem e sobre a realidade material do filme que sempre será, antes de tudo,
um filme, e não aquilo a que ele se refere. Assim, “verdade e mentira se misturam no
intuito [...] de instruir o espectador sobre a natureza de qualquer representação e
sobre o significado da obsessão pela verdade” 52. Ele nos dá subsídios para pensar o
curta como um instrumento poético.

Um universo de violências

O curta experimental é, então, um instrumento poético, mas sua elaboração se


dá “em cima de realidades concretas como imagens de assassinatos na Baixada
Fluminense (no curta Ressurreição), a vida de um inspetor de Polícia (Inspetor)”53.
Não é preciso grande esforço para perceber que esses dois curtas produzidos
por Omar entre 1987-88 apresentam uma conexão forte com seu entorno imediato,
em especial com a violência urbana. Diversos estudos acadêmicos constatam que no
Brasil dos anos 1980 aumentaram os indicadores associados à violência na sociedade,
como “a mortalidade por causas externas, crimes violentos e homicídios”54. Basta um
passeio pelas matérias de jornais e revistas publicadas naquela década para
estabelecer contato com os temas referentes à violência por homicídios, corrupção
no interior do aparato policial, chacinas e tráfico de drogas. Eram assuntos
constantes. O próprio interesse acadêmico sobre o tema eclodiu naquele período,
com estudos pioneiros que discutiam a relação entre a pobreza e o aumento de
criminalidade que vinha sendo observada desde fins dos anos 1970. Esse interesse,
segundo a antropóloga Alba Zaluar 55, pode ser associado à comoção pública e ao

52
VIEIRA, João Luiz. Op. cit.
53
Declaração de Arthur Omar para o jornal Última Hora. In: REGO, Alita Sá. Op. cit.
54
DELLASOPPA, Emilio; BERCOVICH, Alicia; ARRIAGA, Eduardo. Violência, direitos civis e democracia
no Brasil na década de 1980: o caso da Área Metropolitana do Rio de Janeiro. Revista Brasileira de
Ciências Sociais, Vol. 14 nº 39, fevereiro/1999, p. 156.
55
ZALUAR, Alba. Um debate disperso: violência e crime no Brasil da redemocratização. São Paulo em
Perspectiva, n. 13 (3), 1999, p. 9. Ver também a nota n. 7, p. 14. A autora afirma que no contexto urbano
258

destaque na mídia que o aumento da criminalidade provocou a partir da década de


1980. São questões que perpassam O Inspetor.
O tema “violência” ganhava tal corpo que, aos poucos, passou a ser tratado
como assunto social de amplitude nacional não apenas no sentido jurídico, mas como
caso de saúde pública, mobilizando o interesse de intelectuais que trabalhavam nas
universidades e em organizações não-governamentais, além de entrar na pauta das
grandes preocupações do governo federal56. No final da década se tornou um dos
assuntos que mais ocupava o debate público na grande imprensa, como também o
debate acadêmico em seminários e congressos57. Poucos anos depois, estudos
estatísticos comprovam a violência crescente, enfatizando a necessidade de
compreender as articulações deste fenômeno com fatores socioeconômicos e com o
crescimento da desigualdade58.
Num âmbito amplo, em termos políticos os anos 1980 constituíram, para o
Brasil, um período de importantes transformações. Experimentava-se um complexo
e lento processo de transição democrática, pontuado por muitas tensões, sendo que
entre 1985 e 1989, espaço de tempo considerado por Kinzo como “terceira fase” do
processo de transição 59, a economia brasileira tropeçava num “caminho de pedras e

“os pobres figuraram simultaneamente como protagonistas principais dos crimes violentos cometidos
e como vítimas preferenciais deles”. Ver p. 3.
56
Ibidem, p. 9. Ver também: SOUZA, Edinilsa Ramos. Homicídios no Brasil: O Grande Vilão da Saúde
Pública na Década de 80. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (supl. 1): 45-60, 1994; e SOUZA, Edinilsa
Ramos. Mortalidade por homicídios na década de 80: Brasil e capitais de regiões metropolitanas. Rio
de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1998.
57
ZALUAR, Alba. Para não dizer que não falei de samba, os enigmas da violência no Brasil. In:
SCHWARCZ, Lilia. (Org.). História da Vida Privada no Brasil, vol. IV. São Paulo: Companhia das Letras,
1998, p. 246.
58
De acordo com Minayo, “de 2% no total da mortalidade geral em 1930 (Prata, 1992), a violência subiu
para 10,5% em 1980; 12,3% em 1988 (Minayo & Souza, 1993); e 15,3% em 1989 (Souza & Minayo, 1994),
correspondendo, no final da década, à segunda causa de óbitos no país, abaixo apenas das doenças
cardiovasculares”. MINAYO, M. C. S. A violência social sob a perspectiva da saúde pública. Cad. Saúde
Públ. 10, Rio de Janeiro, 1994, p. 10 [grifos meus].
59
Maria D’Alva Kinzo diz que o processo de transição da ditadura militar para a democratização
brasileira foi o mais longo da América Latina: 11 anos para que os civis retomassem o poder e mais 5
anos para que o presidente da República fosse eleito por voto popular. A autora aponta três fases
nesse processo: 1) o período de 1974 a 1982, com as estratégias de transição totalmente conduzidas
pelo governo militar; 2) o período entre 1982 e 1985, marcado pelas eleições de 1982 e sucessão
presidencial, os novos partidos e a volta de políticos que haviam perdido seus direitos no início dos
anos 1960; e 3) o período entre 1985 e 1989, quando uma “nova República” nascia sob circunstâncias
frágeis”, com a morte de Tancredo e o início do governo Sarney, vulnerável a todos os tipos de
259

espinhos”. Segundo sua análise do processo de democratização, a sucessão de


fracassos nas medidas econômicas propostas pelo governo e agravamento da crise
comprometeram a capacidade do Estado de governar60. Todavia, apesar da grave
crise econômica e social, essa autora observa que se intensificava a democratização
que culminaria na elaboração da Constituição de 1988. Nesse ambiente, os debates
sobre direitos humanos e civis que pautavam as discussões sobre reforma
constitucional foram associados ao combate à violência e à insegurança pública.
Ainda antes da formação de uma Assembleia Constituinte que contaria com a
participação de grupos sociais organizados, os discursos antiviolência já se faziam
ouvir, vindos de várias direções e com interesses díspares.
Em 1983 a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lançara a
Campanha da Fraternidade com o lema: “Fraternidade sim, Violência não”. Poucos
anos depois, em 1986, outra iniciativa viera do próprio governo federal, durante o
tempo de governo de José Sarney. Tratava-se da campanha do Ministro da Justiça
Paulo Brossard, denominada “Vamos viver sem violência”, com logotipo e slogan
criados por Ziraldo e utilizados amplamente em diversas mídias, desde propagandas
educativas na Rede Globo até estampas em carroceiras de caminhões.61 Vale lembrar
a atuação paradoxal de Brossard, que naquele momento foi o responsável pela
censura de diversos filmes violentos, argumentando que a televisão (e o cinema) não
deveriam ser instrumentos de difusão da violência.

pressão. KINZO, Maria D’Alva G. A democratização brasileira: um balanço do processo político desde
a transição. São Paulo em Perspectiva, nº 15, 2001, p. 5-9.
60
“Entre 1986 e 1994 o país mudou quatro vezes de moeda e teve seis experimentos em estabilização
econômica”. Ibidem, p. 8.
61
Sem violência. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 17.09.1986, p. 6.
260

Arte de Ziraldo para a campanha do governo contra a violência.


Exibida em comercial na Rede Globo, abril de 1987

Entretanto, apesar das campanhas oficiais e da tentativa de evitar a violência


na programação ficcional, os eventos envolvendo mortes, crimes e suas
repercussões na mídia se intensificavam. Os tipos de violência eram vários, incluindo
desde acidentes de trânsito, homicídios grotescos nas periferias das grandes cidades,
torturas praticadas pela polícia, até o envolvimento de policiais em práticas ilegais de
extermínio, extorsão, corrupção e repetida violação dos direitos humanos ou civis
dos cidadãos, e isso, muitas vezes, com apoio popular62. Nesse contexto, enquanto o
famoso Esquadrão da Morte praticava a justiça ao seu modo, caçando e executando
supostos “marginais”63, no espaço público debatia-se, por exemplo, a legitimidade
da pena de morte. As opiniões por parte dos representantes políticos variavam. Em
entrevista ao vivo ao programa Roda Viva de 29/9/1986, o ministro Brossard declarou-
se contrário à pena de morte, dizendo que não acreditava em uso da violência para
“solucionar a violência”64. À mesma época, uma campanha de Paulo Maluf veiculada
na televisão se pautou na ideia de combate à violência e à insegurança pública de uma
forma agressiva, afirmando que “lugar de bandido é na cadeia”. Tais assuntos eram

62
Zaluar aponta que os estudos sobre o medo e sobre o apoio dado pela sociedade a políticas
despóticas ou extremamente repressivas devido à crise dos anos 1980, conduziram alguns autores a
“qualificar a sociedade brasileira como antônimo da cordialidade e cooperação: a inversão da teoria
do homem cordial brasileiro”. ZALUAR, Alba. Um debate disperso... Op. cit., p. 5.
63
“Com origem policial, o Esquadrão da Morte surgiu fundado em um discurso moralista de defesa da
sociedade contra os elementos indesejáveis e de manutenção da ordem pública. Mas, desde o seu
início [nos anos 1950], ele esteve ligado com corrupção, venda de proteção para traficantes de drogas,
associação com grupos de criminosos”. Para maiores detalhes, sugiro: COSTA, Marcia Regina. São
Paulo e Rio de Janeiro: A Constituição do Esquadrão da Morte. Anais do XXII Encontro anual da Anpocs.
Caxambu, Minas Gerais, 1998.
64
Disponível em: www.rodaviva.fapesp.br/materia/834/entrevistados/paulo_brossard_1986.htm
261

de grande interesse popular, o que é perceptível pela quantidade de notícias que


focalizavam a violência cometida pelos policiais contra criminosos comuns e, aos
poucos, a “incapacidade do Estado de controlar a violência e suas causas foi
percebida e condenada por todos os setores sociais”65.
Vários aspectos dessas questões aparecem ou são insinuadas em O Inspetor. Lá
pela metade do filme, após ouvirmos Jamil Warwar falar sobre suas técnicas de
trabalho envolvendo disfarces e assistirmos o detetive maquiando-se e vestindo-se
de mulher, há uma cena num ambiente de penumbra em que o mesmo aparece lendo
um trecho de livro de sua autoria, o Répto à morte, no qual menciona o Esquadrão da
morte.

Warwar lendo o seu próprio livro, e o “jurista” que declara-se favorável à pena de morte.
Cenas de O Inspetor (Arthur Omar, 1988).

Sentado numa sala obscura, com uma réstia de luz que entra por uma janela e
o ilumina parcialmente, Warwar lê dramaticamente enquanto a câmera se aproxima
dele. Durante toda a cena, ouve-se uma música melodramática que evoca algum filme
épico em momento de grande heroísmo, o que carrega a cena de uma tonalidade
kitsch, reforçada pelas frases lidas em rima:

Mais um bandido que surge deitado com diversos tiros no matagal.


Um crânio sobre dois ossos desenhado num papelão está em cima do marginal.
Esquadrão da morte age: horrorizado exclama em grande manchete o jornal.
O bandido que sucumbiu, coitado, só tinha dez crimes mas não era mau.
E a opinião pública então é iludida, pois policial arrisca sempre a vida e para não morrer
tem que ter sorte.
Não há policiais que matam sem piedade, o que há são policiais, eis a verdade, que o
esquadrão desafia à morte.

65
DELLASOPPA, Emilio; BERCOVICH, Alicia; ARRIAGA, Eduardo. Op. cit., p. 154.
262

Em seguida, há um plano sequência no qual ouvimos uma declaração em defesa


à pena de morte. Em plano americano, um cidadão (talvez um oficial de justiça, talvez
um ator) está numa sala em que se veem pilhas e pilhas de processos ao fundo, o que
sugere que ele trabalha num ambiente penal. Está com um dos processos aberto em
suas mãos, mas olha para a câmera e assume uma atitude explicativa, em clara
remissão ao formato dos documentários tradicionais. Diz pausadamente que é
favorável à pena de morte, “desde que seja a decretação dessa pena precedida de
um parecer de um assistente social que teria por escopo principal verificar se o
criminoso, até a prática do crime, tenha tido ou não oportunidade de ser útil a
sociedade”. Nesta cena não há música ou outros efeitos sonoros, o que diminui a
impressão de ficção e amplia o efeito documental. Assim como o cenário, o
vocabulário do cidadão também evoca o universo jurídico. Mas não há nenhuma
legenda que o identifique, como é usual nos documentários que trabalham com
entrevistas, e ele também não se identifica. Sendo assim, pode-se pensar que seja um
charlatão, ou simplesmente um ator representando esse discurso jurídico.
Na cena a seguir, acompanhada do som melancólico de um piano, vemos um
grupo de homens à paisana que pegam armas num armário. São policiais, que no
instante seguinte aparecem numa favela numa batida policial, agora acompanhados
por efeitos sonoros de filme de ação. Até que ponto essa batida policial é uma
encenação feita para o filme de Omar? Sobre esse trecho, Guerón aponta para uma
aproximação com Bertold Brecht, autor citado logo no início do filme.

A mise en scène dos policiais pegando as armas, um depois do outro, para sair numa
“operação”; a cena desta operação numa favela miserável, com a radicalização do
distanciamento na frase cômica e ácida de Omar narrador, “O Inspetor sentiu a certeza
de não estar em Paris”; a cena dos policiais alinhados de perfil e atirando contra um
terreno baldio numa clara performance para a câmera, e o policial que coloca a arma
“estilosamente” na cintura e dá uma olhada para a câmera revelando a sua
representação são exemplos claros da descoberta do gestus brechtiniano à maneira de
Omar66.

66
GUÉRON, Rodrigo. Op. cit., p. 171
263

Há um outro recurso presente em O Inspetor que, senão “agressivo”, evoca um


engodo ou outra forma de subversão narrativa: começamos acompanhando o
discurso de um investigador policial que descreve suas técnicas de trabalho, e
terminamos por vê-lo enquanto farsante (entendido, aqui, no sentido de ator ou
profissional de farsas, pequenas peças cômicas), investigador fictício estampado em
páginas de fotonovela. Sobre isso, concordo com Pimentel quando diz que nos filmes
de Omar “o falso será articulado a partir de um embate entre ficção e realidade,
fazendo com que esses dois planos apareçam sempre embaralhados e indiscerníveis”
67. Trata-se também de um modo de problematizar a nossa constante suscetibilidade
às imagens da mídia, aos discursos oficiais, aos boatos, enfim, a tudo o que nos chega
enquanto informação elaborada por uma linguagem que se quer fazer crer
transparente e isenta. Neste filme, em especial, Omar escancara a não isenção da
linguagem e declara, no papel de narrador, que “o bem e o mal são pequenos
distúrbios tingindo a informação”.
Apesar de aparentemente evidentes, essas conexões do filme O Inspetor com
as facetas da realidade social do seu tempo de produção não são literais ou óbvias,
nem no sentido de espetacularizar a violência – expediente que se tornará recorrente
na mídia e no cinema de ficção a partir dos anos 199068 –, nem em tentar transformar
o assunto em melodrama. Se há agressão no filme de Omar, ela é, sobretudo,
simbólica, resultante da montagem fragmentária e disjuntiva, bem como da
apropriação e combinação de elementos visuais e sonoros pertencentes a diversos
discursos. Isso também é um modo de violência, se admitirmos, como Renato Ortiz,
que existe “uma distância entre a violência como realidade e a violência como
metáfora”69. Os anos 1960, no Brasil, contém diversos exemplos dessa transmutação
da violência em propostas estéticas violentas, geralmente estruturadas em
estratégias de subversões de linguagem. Era isso que Glauber Rocha fazia quando

67
PIMENTEL, Mariana. Op. cit., p. 18.
68
Quanto à espetacularização da violência na mídia, Zaluar comentava, em 1998, que “as notícias de
violência tornaram-se mercadoria”, e que “o próprio conceito de violência tem sido usado de maneira
abusiva para encobrir qualquer acontecimento ou problema visto como socialmente ruim ou
ideologicamente condenável”. ZALUAR, Alba. Para não dizer... Op. cit, p. 247.
69
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 62.
264

propunha uma “estética da fome” para o cinema brasileiro: ele convocava a violência
para o plano simbólico, e o fazia sobre os moldes da convocação a uma violência real,
segundo os termos de Franz Fanon em Os condenados da terra70. E, como disse João
Luiz Vieira, a inspiração no cinema experimental dos anos 1960-70 teria dado origem
a um tipo de “método-matriz” observável nos curtas experimentais dos anos 1980.
Isso fez com que ampliassem sua potência política de provocar reações e
deslocamentos perceptivos. Compreendo, enfim, que em filmes desse teor
coexistem a convição poética e a violência. São produtos com os quais se pretende
uma intervenção na sociedade ou, ao menos, constituem uma forma pela qual o
cineasta pode posicionar-se, enquanto formador de opinião, entre aqueles que
discutem e problematizam o seu entorno histórico, político e cultural.

Gotas distópicas

Por fim, gostaria ainda de pontuar algumas remissões à ideia de Brasil e às


cicatrizes do passado autoritário presentes em O Inspetor, como um tema secundário
mas coerente com a crise identitária que se espraiava e com o pessimismo referente
ao país71. Tais remissões aparecem como respingos, como sinais rápidos que
poderiam até passar desapercebidos, mas gritam quando vistos à luz do contexto.
Por exemplo, as cores da bandeira nacional nas imagens em que uma embalagem
amarela de creme dental Kollynos aparece em close sobre um fundo verde. Num
primeiro momento, a bisnaga é aberta e simplesmente usada para colocar creme
sobre uma escova de dentes também amarela. Em seguida, é colocada
diagonalmente sobre uma superfície verde-escura e tem o seu fundo aberto. Dali são
retirados papelotes com cocaína, droga que estava “na moda” entre a elite carioca
desde fins dos anos 1970, e a posição diagonal da bisnaga somada à composição

70
Sobre a violência simbólica no cinema de Glauber e suas relações com Franz Fanon, sugiro: XAVIER,
Ismail. Considerações sobre a estética da violência. In: Sertão mar. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 183-
184.
71
No Brasil dos anos 1980 “as dúvidas quanto às possibilidades de construir uma sociedade
efetivamente moderna tendem a crescer e o pessimismo ganha, pouco a pouco, intensidade”. MELLO,
J.M. e NOVAIS, F. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. In: SCHWARCZ, Lilia. (Org.). História da
Vida Privada no Brasil, vol. IV. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 560 [grifos meus].
265

cromática da cena remetem claramente à bandeira do Brasil. Uma contradição


importante sobre a ampliação do consumo de cocaína no país, e que perpassa a
questão da corrupção no interior do aparato policial, atesta-se com a leitura de uma
matéria publicada na revista Veja em 197772: a cocaína ganhava espaço, por um lado,
nos hábitos de consumo de uma elite milionária; por outro lado, aparecia como vilã
no discurso de combate necessário ao tráfico de drogas – assunto, aliás, que “abre”
o filme O Inspetor, no momento de desvelamento dos esconderijos para papeletas de
entorpecentes e reaparece na apresentação verbal que o detetive faz de si mesmo.
Os lugares sociais, no entanto, não eram tão bem delimitados no que diz respeito à
relação entre policiais e traficantes: de acordo com a antropóloga Marcia Costa, “era
comum que policiais desonestos vendessem proteção aos traficantes, matassem os
seus concorrentes e até compradores que não pagassem suas dívidas” 73.
Outro elemento irônico em relação imagem nacional distópica é aquela voz
radiofônica que entoa um Brasil-il-il no momento em que são encontradas drogas no
interior de um radinho de pilha. Trata-se do único momento do filme em que aparece
o nome do país, festejado pelo locutor como se houvesse sido marcado um gol, e isso
é simultâneo ao desvelamento do tráfico. Era essa a cara do Brasil? A pergunta é
retórica, claro, pois o filme não é nada literal. Mas essa impressão dúbia poderia ser
uma, ao menos, dentre as tantas faces possíveis daquele Brasil ressentido e
desarticulado em que viviam Jamil Warwar e Arthur Omar em fins do anos 1980.
Há, ainda, o Selo Nacional e a inscrição do Exército Brasileiro na arma que
aparece em close nos segundos finais do filme, ao mesmo tempo em que o narrador
exclama: “Este filme só terá sentido para ele se funcionar como Ressurreição”.
Se a primeira imagem do filme era ambígua, aquela de um homem que
apontava uma arma para a câmera (afinal, era um policial à paisana ou um
“bandido”?), nos segundos finais do filme não há dúvida alguma de que a arma de
fogo que nos é mostrada pertence ao exército. E a exclamação do narrador instiga a
uma nova pergunta, talvez menos retórica: quem é o ele a que se refere a frase?

72
A ascensão da cocaína. Revista Veja. São Paulo, 7.09.1977, p. 32-38.
73
COSTA, Marcia Regina. Op. cit., p. 29-30.
266

Poderia, sem dúvida, ser simplesmente o personagem/assunto/depoente Warwar,


afastado desarrazoadamente do seu local de trabalho dez anos antes da realização
do filme, considerando que o filme recuperaria sua dignidade. Aos meus olhos, no
entanto, entre inúmeras outras interpretações, poderia ser justamente o país “Brasil”
(ou a probabilidade de uma nação) que soava, naquele momento, tão indigno e tão
pouco promissor perante a opinião pública.
O Inspetor, no final das contas, não traz respostas, mas suscita muitas questões
que nos levam a pensar, ao mesmo tempo, o cinema e a história à qual pertence. É
isso que nos convida a voltar repetidamente ao filme sem, no entanto, esgotá-lo.
267

Nos rastros de nossa estupidez: ou da literatura

Vinícius Nicastro Honesko

... o estudo é em si interminável. Quem quer que tenha conhecido as


longas horas de vagabundagem entre os livros, quando qualquer
fragmento, qualquer código, qualquer inicial parece abrir um novo
caminho, logo abandonado por um novo encontro, ou quem quer
que tenha provado a labiríntica e ilusória “lei da boa vizinhança” a
que Warburg havia submetido a organização da sua biblioteca, sabe
que o estudo não apenas não pode ter fim, mas nem mesmo deseja
tê-lo. Aqui a etimologia do termo studium faz-se transparente. Ela
remonta a uma raiz, st- ou sp-, que indica os embates, os choques.
Estudar e espantar-se são, nesse sentido, aparentados: quem estuda
está nas condições de quem se espantou e permanece estupefato
diante daquilo que o chocou, sem disso conseguir sair e, ao mesmo
tempo, impotente para disso se liberar. O estudioso é também,
portanto, sempre um estúpido. Mas se por um lado ele fica assim
perplexo e absorto, se o estudo é essencialmente sofrimento e
paixão, por outro a herança messiânica que ele carrega consigo
incita-o incessantemente à conclusão. Esta festina lente, esta
alternância de estupor e lucidez, de descoberta e de perda, de paixão
e de ação é o ritmo do estudo.

Giorgio Agamben – Ideia do estudo

A certa altura de Os detetives selvagens, de Roberto Bolaño, em um dos trechos


em que as diversas vozes outras que compõem o livro aparecem, uma discussão
sobre a dimensão compositiva da literatura aparece. Aí, as concepções de obra,
leitura e crítica dão as notas do debate que, em certa medida, traz consigo os
problemas do trágico e do cômico como horizonte das artes. No primeiro discurso,
dado à voz do crítico Iñaki Echavarne, certa ironia trágica irrompe em meio da
incessante busca da poeta Cesárea Tinajero:

Iñaki Echavarne, bar Giardinetto, rua Granada del Penedés, Barcelona, julho de 1994. Por
algum tempo, a Crítica acompanha a Obra, depois a Crítica se desvanece e são os leitores
que a acompanham. A viagem pode ser comprida ou curta. Depois os leitores morrem
um a um, e a Obra segue sozinha, muito embora outra Crítica e outros Leitores pouco a
pouco se ajustem à sua singradura. Depois a Crítica morre outra vez, os Leitores morrem
268

outra vez, e sobre esse rastro de ossos a Obra segue sua viagem rumo à solidão.
Aproximar-se dela, navegar em sua esteira é um sinal inequívoco de morte segura, mas
outra Crítica e outros Leitores dela se aproximam, incansáveis e implacáveis, e o tempo
e a velocidade os devoram. Finalmente a Obra viaja irremediavelmente sozinha na
Imensidão. E um dia a Obra morre, como morrem todas as coisas, como se extinguirá o
Sol e a Terra, o Sistema Solar e a Galáxia, e a mais recôndita memória dos homens. Tudo
que começa como comédia acaba como tragédia.1

A Obra que viaja irremediavelmente sozinha na Imensidão e morre como


todas as coisas, como um dia morrerá até mesmo a mais recôndita memória dos
homens. No discurso de Echavarne a morte domina o horizonte da literatura e não
há leitores ou críticos que façam com que ela, a literatura, não seja devorada pelo
tempo voraz. Essa dimensão saturnina, em que o desaparecimento dá um tom
sombreado à Obra, toma a literatura de assalto. O livro se constitui como um
monólito à espera da leitura. Esta, por sua vez, será um sussurro aos ventos (que,
como disse Ruy Belo, têm nas folhas – das árvores ou aquelas que destinamos numa
missiva – as definidoras de seu sentido) que, também por sua vez, será extinto como
a mais recôndita memória dos homens. É diante dessa constante perda, desse
caminho inexorável à morte, que Maurice Blanchot, ao escavar o espaço literário,
lança os livros ao encontro de uma leitura.

A leitura faz do livro o que o mar e o vento fazem da obra modelada pelos homens: uma
pedra mais lisa, o fragmento caído do céu, sem passado, sem futuro, sobre o qual não se
indaga enquanto é visto. A leitura confere ao livro a existência abrupta que a estátua
“parece” reter do cinzel: esse isolamento que a furta aos olhos que a vêem, essa
distância altaneira, essa sabedoria órfã, que dispensa tanto o escultor quanto o olhar que
gostaria de voltar a esculpi-la. O livro tem, de certo modo, necessidade do leitor para
tornar-se estátua, necessidade do leitor para afirmar-se coisa sem autor, e também sem
leitor.2

O livro – poderíamos dizer, a literatura – se faz pela liberdade do jogo


biunívoco da leitura/escritura. Continua Blanchot: “A leitura nada faz, nada
acrescenta; ela deixa ser o que é; ela é liberdade, não liberdade que dá o ser ou o
prende, mas liberdade que acolhe, consente, diz sim, não pode dizer senão sim e, no

1
BOLAÑO, Roberto. Os detetives selvagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Trad.: Eduardo
Brandão. p. 497.
2
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. Trad.: Álvaro Cabral. p. 194.
269

espaço aberto por esse sim, deixa afirmar-se a decisão desconcertante da obra, a
afirmação de que ela é – e nada mais.”3 Como, no âmbito da atividade dos homens
(nessa via de mão dupla da constituição do livro: escritura/leitura), pensar esse
“deixar ser o que é”, no gesto de leitura, com a afirmação desconcertante da obra,
que nada exige da leitura senão esse espaço de afirmação de existência? Podemos
propor, a princípio, uma leitura dessa liberdade a partir do ponto em que, por fim, a
memória dos homens, a Obra, o Sistema Solar, as Galáxias – o Uni-verso – encontram
seu destino: o caos informe, o silêncio de antes do cosmos, por assim dizer.
Em Diálogos do começo, Yann Kassile – que no livro assume o nome de Jean
D’Istria – vai ao Japão e tem uma série de, justamente, diálogos com pensadores
japoneses contemporâneos. Em uma dessas conversas, com Uno Kuniichi, antes de
entrar nas diferenças de compreensões (Japão/Europa, grosso modo) a respeito das
noções de literatura, filosofia e pensamento, o assunto tem como ponto de início o
caos. D’Istria pensa uma necessidade de se defender do caos para evitar certa loucura
e, diante dessa afirmativa, Kuniichi, numa associação interessante entre caos e
liberdade, diz:

Acredito que temos necessidade do caos. Para mim, o que me deixa louco, o que me
deprime, não é o caos, mas muita ordem. Muita ordem me deixa louco, no sentido que
isso me deprime. Temos necessidade de nos proteger do caos, mas, ao mesmo tempo,
também temos necessidade do caos como forma de liberdade. O caos é um perigo, é
algo terrível, mas é uma forma de liberdade, de viagem. Para que algo se crie é preciso
deixar certas ordens, é preciso se lançar no caos. 4

O professor japonês, então, toca o tema da composição, do que podemos


chamar de ato poético (no sentido do verbo grego poiein; isto é, produção, e, no que
diz respeito ao contexto artístico, de criação):

Quando escrevemos, quando pensamos, quando descobrimos algo, claro, isso é sair do
caos, mas é também usufruir do caos. Assim, o problema é agora saber como definir,
como classificar o que vemos no caos e como viver o caos. Para mim, pensar, escrever,

3
Idem.
4
KASSILE, Yann. Penseurs japonais. Dialogues du commencement. Paris: Éditions de l’éclat, 2006. p. 86.
[Todas as citações em outras línguas foram traduzidas pelo autor].
270

escrever para pensar, pensar para escrever, sempre estou com o caos. O caos me agita,
me abala, o caos me estimula.5

Trata-se de uma constante guerra de quem se coloca no movimento poético,


de quem lida com a extração de sentidos no mundo. De certa maneira, usufruir do
caos é mantê-lo sempre à mão, próximo, em intimidade. Esse absolutamente outro,
uma espécie de voz que vem de fora, coloca aos homens o desespero diante do sem
sentido do existir (e, no diálogo Europa/Japão, o tópico acerca do caos surge com a
chamada da proposição de abertura do Tractatus Logico-Philosophicus de
Wittgenstein “o mundo é tudo o que ocorre”6) e, assim, abre-se a porta à construção
dos sentidos. “Alguém põe-se a escrever, determinado pelo desespero. Mas o
desespero nada pode determinar”7, diz Maurice Blanchot ainda nas escavações do
espaço literário. Aliás, os sentidos – como lembra, num gesto de liberdade, um leitor-
interlocutor de Blanchot: Jean-Luc Nancy – que um dia cruzaram os céus cheios dos
deuses que guiavam os caminhos dos homens, decaíram ou, de outra maneira,
ausentaram-se deixando uma abertura do mundo ao caos:

Já não há mais mundo: nem mundus, nem cosmos, nem ordenação composta e completa
no interior ou desde o interior da qual encontrar lugar, abrigo e os sinais de uma
orientação. Mais ainda, já não contamos com o ‘aqui embaixo’ de um mundo que
caminharia para um mais além do mundo ou para um outro mundo. Não há mais Espírito
do mundo, nem história para conduzir diante de seu tribunal. Dito de outro modo, não
há mais sentido do mundo.8

O mundo, um palimpsesto envelhecido que coordena sentidos acaba por


escapar aos homens. Mas os desejos, os anseios e o desespero que esse contato com
o caos do apagamento do mundo gera são, para Kuniichi, os únicos modos possíveis
para a criação: “Todos os materiais de início se me mostram como caos. E se, por fim,
encontro, talvez, crio, certa ordem, aí tenho o sentimento de que lido bem com o

5
Idem.
6
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Companhia Editorial Nacional;
EdUSP, 1968. Trad.: José Arthur Giannotti. p. 55.
7
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. Trad.: Álvaro Cabral. p. 50.
8
NANCY, Jean-Luc. El sentido del mundo. Buenos Aires: La Marca, 2003. Trad.: Jorge Manuel Casas. p.
17.
271

caos (...). Sou amigo do caos.”9 Não é esse caos o início informe do mundo que se
construiu e caminhou inexoravelmente para seu fim. O caos é o que sempre já está
no mundo, é o que se mostra como impossível. É também Maurice Blanchot a abrir
esse campo do impossível à angústia da criação, do ato poético. Lendo Artaud, ele
percebe que “ser é não ser, é essa falta do ser, falta viva que torna a vida
desfalecente, inacessível e inexprimível, exceto pelo grito de uma feroz
abstinência”10.
Esse grito, que para Gilles Deleuze é a declaração de existência de um Idêntico11,
de um absolutamente singular, da conjugação de um ateísmo com a escritura (o
nome de Deus, um nome sem conceito, que apenas é chamado), é o clamor dessa
“feroz abstinência”, dessa ausência e afastamento ou ausentamento, como diz Jean-
Luc Nancy, do sentido. Aliás, lembra o próprio Nancy a respeito de Blanchot:

Na conjunção do ateísmo e da escritura Blanchot reúne, no mesmo texto e no mesmo


título, aquela do humanismo e do grito. O humanismo do grito seria o humanismo que
abandona toda idolatria do homem e toda antropoteologia. Se não é exatamente no
registro da escritura, também não é naquele do discurso – mas no do grito.
Precisamente, “ele grita no deserto”, escreve Blanchot. Não é por acaso que ele retoma
uma fórmula insigne do profetismo bíblico.12

A exasperação de um sentido que se ausenta, a borda da e que é a linguagem,


uma experiência patética (e mesmo ética) em que o pathos impossibilita ao eu-
sujeito13 uma materialização inerte e ilusoriamente soberana.

9
KASSILE, Yann. Penseurs japonais… p. 87
10
Idem. p. 53.
11
Em seu estudo sobre Leibniz, Deleuze pensa o grito de maneira correlata aos princípios de identidade
e de contradição no filósofo barroco. Diz que tal como um grito, “cada um [cada princípio] assinala a
presença de uma classe de seres, seres que lançam o grito e se fazem reconhecer por esse grito (...)
faz com que conheçamos uma classe de seres, a dos Idênticos, que são seres completos. O princípio
de identidade, ou sobretudo de contradição, é somente o grito dos Idênticos e não pode ser abstrato.
É um sinal. Os idênticos são indefiníveis em si e talvez incognoscíveis para nós; nem por isso deixam
de ter um critério que o princípio nos permite conhecer ou ouvir.” Cf. DELEUZE, Gilles. A Dobra. Leibniz
e o Barroco. Campinas: Papirus, 1991. Trad.: Luiz B. L. Orlandi. p. 80.
12
NANCY, Jean-Luc. O Nome de Deus em Blanchot. In.: Outra Travessia. n. 18. 2ºSem/2014. Florianópolis:
UFSC, Trad.: Carlos E. S. Capela e Vinícius N. Honesko. p. 84.
13
Cf. BLANCHOT, Maurice. La escritura del desastre. Caracas: Monte Avila Editores, 1987. Trad.: Pierre
de Place. p. 32. “La renuncia al yo sujeto no es una renuncia voluntaria, por tanto tampoco es una
abdicación involuntaria; cuando el sujeto se torna ausencia, la ausencia de sujeto o el morir como sujeto
272

Trata-se, mais do que do estado paroxístico em que o eu grita e se desgarra, de um


sofrimento como indiferente, e não sofrido, e neutro (um fantasma de sofrimento), se
aquele que está exposto a ele permanece despojado, justamente pelo sofrimento, desse
“Eu” pelo qual padeceria. Assim é como o vemos: a marca de semelhante movimento
consiste em que, pelo fato de o experimentarmos, escapa de nosso poder de
experimentá-lo, e não é o que fica fora de experimentação, mas sim este algo de cuja
experimentação já não podemos escapar. Experiência que alguém representará como
estranha e, inclusive, como a experiência do estranhamento, porém, caso assim seja,
reconhecemos que não o é, por estar muito distanciada: ao contrário do que está tão
perto que toda distância em relação a ela está proibida – estranha na própria
proximidade.14

Essa distância, essa relação de experiência da linguagem, do fora, do exterior15,


disso que, de alguma maneira, denominamos aqui caos, acontece nesse
estranhamento: distância e proximidade que sufocam uma reflexão interior, um
humanismo da palavra meditada, e o lançamento ao risco (ex periri: experiência
sempre como exposição ao risco, à morte), ao grito que clama desde o deserto. E,
aqui, o deserto é também o caos do qual podemos usufruir. De certa forma, a
possibilidade de experimentarmos o caos acontece por não estarmos, uma vez neste
“tudo que ocorre”, inexoravelmente adstritos a uma propriedade, a uma
autenticidade (“se entre todas as palavras há uma palavra inautêntica, sem dúvidas
é a palavra ‘autêntico’.”16). O caos não só nos rodeia como é também nosso íntimo e
sua ordenação não é uma propriedade dos viventes humanos: não há, para nós,

subvierte toda la frase de la existencia, saca el tiempo de su orden, abre la vida a la pasividad,
exponiéndolo a lo desconocido de la amistad que nunca se declara.”
14
BLANCHOT, Maurice. El Diálogo Inconcluso. Caracas: Monte Avila Editores, 1993. Trad.: Pierre de
Place. p. 88-89.
15
É fundamental, a respeito da ideia de exterior, lembrar o texto de Michel Foucault sobre Blanchot –
O Pensamento do exterior – no qual uma concepção da linguagem enquanto brilho do exterior aparece
de modo fundamental. Cf.: FOUCAULT, Michel. O Pensamento do Exterior. In.: Ditos e Escritos. Vol. III
Estética: Literatura e Pintura; Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. Org.: Manoel
Barros da Motta. Trad.: Inês Autran Dourado Barbosa. p. 223. “A partir do momento, efetivamente, em
que o discurso para de seguir a tendência de um pensamento que se interioriza e, dirigindo-se ao próprio
ser da linguagem, devolve o pensamento para o exterior, ele é também e de uma só vez: narrativa
meticulosa de experiência, de encontros de signos improváveis – linguagem sobre o exterior de qualquer
linguagem, falas na vertente invisível das palavras; e atenção para o que da linguagem já existe, já foi dito,
impresso, manifesto – escuta não tanto do que se pronunciou nele, mas do vazio que circula entre suas
palavras, do murmúrio que não cessa de desfazê-lo, discurso sobre o não-discurso de qualquer linguagem,
ficção do espaço invisível em que ele aparece.”
16
BLANCHOT, Maurice. La escritura del desastre… p. 56.
273

nenhuma maneira de fazer, de imediato (como se fosse uma natureza, um produto


do cosmo), do caos ordem.
Diante dessa experiência do caos, Blanchot percebe com estranheza perguntas
como “para onde vai a literatura?”. Estranheza porque todos sabem que a literatura
– suas obras – acompanha o destino dos homens e, na imensidão do universo, será
aniquilada como os traços (os rastros) que um dia ousamos deixar como marca de
nossa existência. Em outros termos – ao reafirmar o caráter espantoso da pergunta
– Blanchot diz: “se há uma resposta, esta é fácil: a literatura vai em direção a ela
mesma, em direção à sua essência, que é o desaparecimento.” 17
Por outro lado, a resposta geral pode ser remetida à ideia hegeliana (em
palavras pronunciadas de modo audaz diante de Goethe, diz Blanchot) de que a arte
é coisa do passado. Ainda que as obras persistam, para Hegel elas não cumprirão mais
nenhuma destinação aos homens. Essa é a notória crítica da arte dentro do espectro
da modernidade, sobretudo no que diz respeito à impossibilidade da arte responder
ao caráter racionalista, como teria sido na antiguidade clássica: e, em certa medida,
para Hegel a arte sobreviveria sob a insígnia da insignificância (da inutilidade; a arte
seria impotente à conformação de um comum ao seu redor. Isto é, já não cumpriria
um papel fundamental na formação política, da possibilidade da chamada vida feliz).
Essa mutação no estatuto do que chamamos obra de arte na modernidade, que
já é salientada por Walter Benjamin, 18 acaba por exibir, também, certa noção de que
a arte, tal qual pensada até a estética hegeliana, explodiu em fragmentos (uma
suposta arte ligada fundamentalmente à mimesis – o que Jacques Rancière irá
analisar como dissolução do nó górdio entre natureza produtiva, natureza sensível e
natureza legisladora da constituição da arte 19; além disso, é interessante pensar que
essa explosão da arte coincide, por assim dizer, com o nascimento próprio disso a que
usamos chamar literatura). Qualquer tentativa de resgate, de reestruturação,
portanto, de um sentido em comum (do mundo, das instituições, da própria história)

17
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Trad.: Leyla Perrone-Moyses.
p. 285.
18
Cf. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. In.: BENJAMIN, Walter.
Obras Escolhidas I. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1994. Trad.: Sérgio Paulo Rouanet.
19
RANCIÈRE, Jacques. Malaise dans l’esthétique. Paris: Galilée, 2004. p. 16.
274

a partir da arte é apostar que seu papel subsidiário, uma vez levantada sua limitação
estética (sensorial, aquém de qualquer pretensão política – em sentido de
estruturação de sentido ao em comum, tal qual Hegel sugeriria para a arte clássica),
possa ser retomado – numa epifania redentorista, reveladora e misteriosa ao mesmo
tempo – como uma possibilidade política. Ou seja, no jogo já findo entre o
encantamento, que dava à arte sua aura capaz de aglutinar um em comum, e o puro
prazer estético, que Hegel via como a impotência da arte no que tangia à realização
do Estado20, a arte parece encontrar um limite (e as vanguardas artísticas – com
adágio dadaísta “arte é merda” soando em alto e bom som – do início do século XX,
com suas incessantes tentativas de ruptura com o discurso esvaziado da estética, são
uma faceta das tentativas de resgate – ou construção – de um sentido em comum para
a arte).
Mas não podemos dizer que a arte – as obras de arte – tiveram fim juntamente
com o anúncio de seu fim preconizado por Hegel, uma vez que esse fim é apenas um
fim relacionado à tentativa inexorável de realização da história e, por isso, é o fim que
proporciona a fragmentação de uma unidade de sentido a ser cumprido. Se há algo a
que chamamos arte (e, também, literatura), mesmo que de todo diverso das
compreensões que a antecedem, se há algo que impacta e que ainda nos toca os
sentidos, podemos vislumbrar que seu lugar é ilegítimo (e, como nos lembra o breve
século XX, esse algo é relegado ao caráter de, por vezes, mercadoria, produto de um
sistema de produção econômico-cultural).
O artista (o escritor) constrange-se por ser ainda alguma coisa num mundo onde
ele se vê injustificado e, via de consequência, a literatura expõe sua ilegitimidade no
mundo, sua força fraca, por assim dizer. “A arte age mal e age pouco”, diz Blanchot

20
Lembro a interessante análise de Eduardo Pellejero em texto – cujo título é Perder por perder –
gentilmente cedido pelo autor: “a arte (...) já não constitui uma manifestação dos interesses substanciais
da comunidade, do que conta e vale como lei para os homens, do que contribui para a atualização da
nossa liberdade. A arte deixou de ser – como fora no mundo grego – uma mediação efetiva para os
homens. Logo, segundo Hegel, é inútil na necessária reconciliação do indivíduo com as instituições do
mundo moderno (reconciliação que só terá lugar ao nível duma reflexão capaz de satisfazer as demandas
da racionalidade crítica, demandas que a arte não pode satisfazer). A poética da política moderna volta
assim a expulsar da cidade, ou a relegar nas suas margens esquecidas, qualquer possível política da
poética.”
275

(e Marx, caso tivesse escrito belos romances em vez do Capital “teria encantado o
mundo mas não o teria abalado”21). Poderíamos dizer que já a expulsão dos poetas
da cidade (a antiga contenda platônica) é o que irá gravar com a insígnia da frustração
– o lugar de um perda eternizada no tempo dos homens – o lugar da arte e de seus
feitores. Em dois momentos diferentes Blanchot nos lembra dessa caráter amargo,
por assim dizer, da arte. Em 1955, em O Espaço Literário, nos diz:

A atividade artística, para aquele mesmo que a escolheu, revela-se insuficiente nas horas
decisivas, essas horas que soam a cada hora, em que ‘o poeta deve completar sua
mensagem pela recusa de si’. A arte pôde conciliar-se outrora com outras exigências
absolutas, a pintura serviu os deuses, a poesia fê-los falar; é que essas potências não
eram deste mundo e, reinando fora do tempo, não mediam o valor dos serviços que lhes
eram prestados para sua eficácia temporal. A arte também esteve a serviço da política,
mas a política não estava então a serviço exclusivo da ação, e a ação ainda não tomara
consciência de si mesma como exigência universal. Enquanto o mundo não é realmente
o mundo, a arte pode, sem dúvida, ter aí sua reserva. Mas essa reserva, é o próprio artista
que a condena, se, tendo reconhecido na obra a essência da arte, reconhece desse modo
o primado da obra humana em geral. A reserva permite-lhe agir em sua obra. Mas a obra
nada mais é, então, do que a ação dessa reserva, ação puramente reservada, inatuante,
pura e simples reticência em relação à tarefa histórica, ativa e ordenada, na ação geral. 22

Quatro anos depois, em O livro por vir, nos diz:

A arte é poderosamente voltada para a obra, e a obra de arte, a obra que tem sua origem
na arte, mostra-se como uma afirmação completamente diversa das obras que se
medem pelo trabalho, os valores e as trocas, diversa mas não contrária: a arte não nega
o mundo moderno, nem o da técnica, nem o esforço de libertação e de transformação
que se apóia nessa técnica, mas exprime, e talvez realize, relações que precedem toda
realização objetiva e técnica.

Busca obscura, difícil e atormentada. Experiência essencialmente arriscada em que a


arte, a obra, a verdade e a essência da linguagem são questionadas e se põem em risco.
É por isso que, ao mesmo tempo, a literatura se deprecia, se estende sobre a roda de
Ixion, e o poeta se torna inimigo amargo da figura do poeta. Em aparência, essa crise e
essa crítica lembram apenas, ao artista, a incerteza de sua condição na civilização
poderosa em que ele tem pouca participação. Crise e crítica parecem vir do mundo, da
realidade política e social, parecem submeter a literatura a um julgamento que a humilha
em nome da história: é a história que critica a literatura, e que empurra o poeta para um
canto, colocando em seu lugar o publicitário, cuja tarefa está a serviço dos dias. 23

21
BLANCHOT, Maurice. O Espaço literário… p. 213.
22
Idem. pp. 213-214.
23
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir… p. 288-289
276

O poeta, o escritor, como inimigo da figura do poeta. Imagem forte que marca
a literatura nos seus trajetos periclitantes que, talvez, seriam formas de inventariar a
infâmia ou de historiar a eternidade (e, claro, o jogo borgeano é aqui fundamental;
aliás, é o modo com o qual os escritores tentam suas vinganças). Jogados pela
história num canto inútil, humilhados, os escritores enveredam-se por caminhos onde
suas vidas estão em jogo numa aventura incomensurável, ou na aventura24.
O catalão Enrique Vila-Matas no seu constante jogo de perdas, indefinições,
cruzamentos híbridos entre biografia do autor (que pretende desaparecer – e, nesse
sentido, lembremos de Dr. Pasavento) e ficção, sabe que seu canto inútil está
garantido. Na coluna que mantém no diário El País a angústia do sinal trocado (leitor
que é escritor, escritor que é leitor) transparece com toda sua força, e a literatura é,
então, uma vingança que é dada ao leitor que é escritor em toda réplica possível (toda
resposta que é a da literatura para a vida):

Realmente, a literatura parece uma atividade em contato com um material menos vivo
que a vida e, ademais, tem algo da imensa conjunção de frustrados, todos com um
retardado talento para a réplica. Por certo, ainda me recordo dos dias em que persegui
obsessivamente um indivíduo para tentar com ele recriar uma situação já vivida e poder,
assim, por fim – fracassei no meu intento –, dar-lhe minha resposta a umas palavras que,
em certo momento, haviam me deixado mudo e humilhado.25

Mudo e humilhado por palavras na vida, o escritor procura respostas nas


palavras que a ele se dispõem sempre como literatura. Frustrado e retardado,

24
Num recente opúsculo, Giorgio Agamben trabalha a noção de aventura de um modo que, para nosso
intuito, é bastante pertinente. Cf.: AGAMBEN, Giorgio. L’Avventura. Roma: Nottetempo, 2015. Cito aqui
o trecho final do segundo capítulo do livro, Aventure (pp. 34-35): “Aventure (âventiure) è un termine
tecnico essenziale del vocabolario poetico medievale. Come tale esso è stato riconosciuto dagli studiosi
moderni, che hanno sottolineato il significato poetologico che il vocabolo acquista in Hartmann von Aue
(ma era già implicito in Chrétien de Troyes – Mertens, p. 339), e il carattere performativo che il testo
poetico acquisisce, nella misura in cui atto del raccontare e contenuto del racconto tendono a identificarsi
(Strohschneider, pp. 379-380). Dell’avventura ci interessa, però, qui anche un altro aspetto. In quanto
esprime l’unità inscindibile di evento e racconto, cosa e parola, essa non può non avere, al di là del suo
valore poetologico, un significato propriamente ontologico. Se l’essere è la dimensione che si apre agli
uomini nell’evento antropogenetico del linguaggio, se l’essere è sempre, nelle parole di Aristotele,
qualcosa che “si dice”, allora l’avventura ha certamente a che fare con una determinata esperienza
dell’essere.”
25
VILA-MATAS, Enrique. El espíritu de la escalera. Documento eletrônico disponível em:
http://elpais.com/diario/2011/12/13/cultura/1323730805_850215.html (acesso: 02/10/2015).
277

fracassa em suas respostas à vida, mas continua a recriar as situações; ou melhor, a


literatura é a cria, é o descolamento das situações que conformam a vida do homem
de letras. O contato com esse material menos vivo que a vida, que Vila-Matas propõe
como a “aparência” da literatura, parece ser o confronto (uma luta en retard, sempre
em atraso e que deixa ao escritor a sorte de ser golpeado de modo inexorável até a
morte) com os emissários do nada, contra os quais o escritor passa a vida a desferir
seus golpes na escrita. Assim, a aparência da literatura, este algo menos vivo que a
vida (que, em certo sentido, também poderia ser lida como Gleichnis: a aparência, a
semelhança, que, como lembra Giorgio Agamben, tem parentesco com o mesmo [das
Gleiche] da proposição do eterno retorno nietzschiano e cuja etimologia pode ser
ligada à noção de Leiche, o cadáver, a aparência do vivo26), é a imagem dessa luta
contra tais emissários. A imagem da literatura é a da luta, a luta entre samurais, como
disse Bolaño em uma entrevista, uma luta de um samurai contra um monstro, esse
“semivivo”, essa aparência, que irá sempre vencer:

A literatura se parece muito com uma luta de samurais, mas um samurai não luta contra
outro samurai: luta contra um monstro. Geralmente sabe, ademais, que vai ser
derrotado. Manter o valor, sabendo previamente que vai ser derrotado, e sair para a luta:
isso é a literatura.27

Saber-se derrotado e ainda insistir, apesar de tudo. A literatura como um


impossível (nos traços de Bataille) e cuja interdição está desde sempre lançada. Uma
espécie de luta de despedida, tal como uma carta de suicídio, e, aqui, exemplar é um
trecho da última carta de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa (citação que
encerra Suicídios exemplares, de Vila-Matas):

Mas não façamos literatura. Pelo mesmo correio (ou amanhã) registadamente enviarei
o meu caderno de versos que você guardará e de que você pode dispor para todos os

26
Cf. AGAMBEN, Giorgio. L’Image Immémoriale. In.: AGAMBEN, Giorgio. Image et Mémoire. Paris:
Hoëbeke, 1998, p. 78.
27
BOLAÑO, Roberto. Hay que mantener la ficción en favor de la conjetura. Entrevista a Roberto Bolaño.
Documento eletrônico disponível em: http://critica.cl/literatura/entrevista-a-roberto-bolano-hay-que-
mantener-la-ficcion-en-favor-de-la-conjetura (acesso: 02/10/2015).
278

fins como se fosse seu. (...) Adeus. Se não conseguir arranjar amanhã a estricnina em
dose suficiente, deito-me para debaixo do “metro”... Não se zangue comigo.28

Um caderno de versos para Pessoa e que, como se fosse dele, é também


tomado pelos outros nomes do poeta. Eis o delirante e diletante percurso infinito do
impossível que é a literatura e que, no caso de Vila-Matas, pode se condensar numa
breve história da literatura portátil ou se estender pelas inúmeras curvas das
referências à literatura e aos autores pelos quais o catalão nutre sua estima. A
literatura opera essa simulação do Outro (um caderno de notas guardado como se
fosse seu) nesse jogo das horas incertas em que atravessamos a vida para nada, ainda
que não em pura perda.
A literatura enquanto desperdício (ou, para lembrar Blanchot, como a parte
do fogo) pode encontrar sua radicalidade diante de sua humilhação. Não pretende
seu espaço legítimo, posto que este já está ocupado pelos publicitários, a serviço dos
dias para o cumprimento das obras humanas. Sua ilegitimidade é a insígnia que marca
toda obra (todo monumento-livro) com a abertura às possibilidades, isto é, que
garante ao escritor (ao poeta) a potência de continuar na luta com o monstro que,
em certa medida, é a contemplação da própria potência de escrever. Lembra-nos,
mais uma vez, Blanchot:

Parece justo ver, na preocupação que anima os artistas e os escritores, não seu próprio
interesse, mas uma preocupação que exige ser expressa em obras. As obras deveriam,
pois, ser o mais importante. Mas será assim? De modo algum. O que atrai o escritor, o
que impulsiona o artista não é diretamente a obra, é sua busca, o movimento que conduz
a ela, a aproximação que torna a obra possível: a arte, a literatura e o que essas duas
palavras dissimulam. Por isso um pintor, a um quadro, prefere os diversos estados desse
quadro. E o escritor, frequentemente, não deseja acabar quase nada, deixando em
estado de fragmentos cem narrativas que tiveram a função de conduzi-lo a determinado
ponto, e que ele deve abandonar para tentar ir além desse ponto.29

A literatura é um exercício infinito (uma conversa infinita) que sempre retoma


a si mesma e convoca a sua prática: isto é, como parte maldita desse real que a

28
Mário de Sá-Carneiro em carta a Fernando Pessoa, 31/03/1916. In.: VILA-MATAS, Enrique. Suicídios
exemplares. São Paulo: Cosac Naify, 2009. Trad.: Carla Branco, p. 205.
29
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir… p. 291.
279

expulsa e humilha, a literatura é uma constante convocação à ilegitimidade. Entendo


aqui esse lugar da literatura justamente como a ruptura com os estamentos que
procuram um lugar de direito às artes nos espaços sociais (na política, por assim
dizer). Dito de outro modo, às proposições que postulam uma realização (um
Destino, uma História) para as atividades humanas (no sentido de Blanchot),
incluindo a arte, essa postulação outra da arte responde com uma força que quer não
a cristalização de grandes obras (hoje possivelmente nas mãos dos publicitários), mas
a contemplação, em cada obra, daquilo que nela é sua potência. Tomando essas
ideias – em flagrante contraste com as postulações heideggerianas, na conferência
sobre a origem da obra de arte 30, que veem uma vinculação destinal dos homens às
obras de arte – Giorgio Agamben atrela, sim, vida e obra; mas o faz justamente para
pensar o inacabado, o potente, que é a impropriedade mais própria (e, lembremos
mais uma vez o fragmento blanchotiano – que, não por acaso, também é uma
confrontação a Heidegger: se há uma palavra inautêntica, essa palavra é a
autenticidade) da vida dos viventes falantes. Diz o filósofo:

Por certo a contemplação de uma potência só se dá numa obra; mas, na contemplação,


a obra é desativada e tornada inoperosa e, desse modo, restituída à possibilidade, aberta
a um novo uso possível. Verdadeiramente poética é a forma de vida que, na própria obra,
contempla a própria potência de fazer e de não fazer e nesta encontra paz. Um vivente
jamais pode ser definido por sua obra, mas apenas por sua inoperosidade, isto é, pelo
modo em que, mantendo-se, em uma obra, em relação com uma pura potência,
constitui-se como forma-de-vida, na qual em questão não estão mais nem a vida nem a
obra, mas a felicidade. A forma-de-vida é o ponto em que o trabalho tem uma obra e o
trabalho sobre si coincidem perfeitamente. O pintor, o poeta, o pensador – e, em geral,
quem quer que pratique uma “arte” e uma “atividade” – não são os sujeitos soberanos
titulares de uma operação criadora e de uma obra; são, antes, viventes anônimos que,
contemplando e tornando a cada vez inoperosas as obras da linguagem, da visão e dos
corpos, procuram fazer experiência de si e manter-se em relação com uma potência, isto
é, constituir sua vida como forma-de-vida.31

A vida feliz – o motivo da política aristotélica – como busca da atividade dos


homens não enquanto realização em obra (num ergon, num destino autêntico para

30
Cf.: HEIDEGGER, Martin. El Origen de la Obra de Arte. In.: HEIDEGGER, Martin. Caminos de Bosque.
Madrid: Alianza Editorial, 2010. Traducción: Helena Cortés y Arturo Leyte. p. 11-62.
31
AGAMBEN, Giorgio. Il fuoco e il racconto. Roma: Nottetempo, 2014, p. 141-142.
280

os homens), mas como possibilidade infinita (nos termos de Agamben), como


rechaço absoluto a um lugar legítimo (nos termos de Blanchot), como a luta
constante e votada à derrota com um monstro (nos termos de Bolaño), como
atividade em contato com um material menos que vivo que a vida (nos termos de
Vila-Matas), e a proliferação poderia ser ainda maior – e, poderia dizer, interminável.
Jean-Luc Nancy, numa entrevista publicada recentemente em que fala sobre os
papeis da filosofia e da literatura, também nos lembra:

A literatura não se interroga sobre a verdade: podemos dizer que ela está dentro ou
mesmo que faz a verdade. Lendo Proust, Shakespeare, Thomas Mann ou Roberto
Bolaño, você não dirá que é “literatura” no sentido que queremos indicar que é fictício,
ilusório e inconstante (“irreal”). Certamente de maneira alguma não é indiferente que a
palavra “literatura” tenha tomado esse sentido do que não tem solidez, massiva certeza
das coisas tangíveis. Pois há muitas produções escritas, filmadas ou cantadas que só
buscam divertir com um elemento de sonho ou de magia. Mas penso que aquelas e
aqueles que gostam disso (e todos nós fazemos mais ou menos parte) sabem muito bem
que estão numa trilha de evasão.

Por outro lado, escritores como aqueles que tomei como exemplo estão engajados
numa tarefa completamente outra. Trata-se de fazer ou de deixar falar (a diferença aqui
é impalpável) o que justamente está aquém ou além das significações. Proust abre a
Recherche com a frase: “Longtemps je me suis couché de bonne heure” [Durante muito
tempo costumava me deitar cedo]. Como informação, essa frase é pobre e não interessa
a ninguém. Mas não a leio para me informar; aliás, não sei quem é esse “eu” que fala.
Ainda menos porque ele escreve na primeira pessoa. Por outro lado, eis-me aqui preso
na frase, na sua aparência: ela começa por “longtemps”. Esse advérbio imprime uma
cadência lenta que deixa o longo tempo suspenso numa imprecisão manifesta, assim
como “de bonne heure” permanece pouco determinado. Quem fala aí? Por que diz isso?
Não sou eu quem, de pronto, é remetido às vezes que me deitava na infância ou na
adolescência? Mas também: esse narrador fala no passado, fala do passado: qual? Por
quê?

Como para a filosofia, paro porque isso seria interminável. Mas não da mesma maneira.
Não se trata aqui de uma fuga, mas de um retorno infinito: essa frase e todo o livro que
ela abre são feitos evidentemente para ser retomados, relidos, mas, sobretudo, revistos,
re-escutados, apreciados e apalpados de todas as maneiras possíveis. Não digo
“interpretar”, o que por certo é possível e desejável, mas provar, recitar, sentir, deixar-
se tocar pela verdade própria, singular e, no entanto, muito bem comunicável,
contagiosa, que faz falar aqui a vida de uma voz inimitável. Sim, é a vida – real, a verdade
– que se manifesta por ela própria (ao mesmo tempo que particular, datada, situada
etc.).32

32
NANCY, Jean-Luc. Vouloir un sens unique ouvre sur une violence: le meurtre des autres sens. Entretien
réalisé par Nicolas Dutent. In.: L’Humanité. Documento eletrônico disponível em:
281

Num texto publicado na sua coluna no diário El País, em 24 de janeiro de 2012,


Vila-Matas compara três posturas que um escritor pode ter diante da vida a partir de
três figuras: Wittgenstein, Montaigne e Rimbaud. Nos três, diz que é possível
observar as seguintes atitudes diante da vida, respectivamente: o isolamento de
contato e dedicação integral à leitura e ao próprio mundo interior, a abertura para
uma vida de amizades e a cumplicidade com o silêncio (a morte) ao qual tudo se
encaminha. Diante da última, a de Rimbaud, Vila-Matas termina o texto com uma
espécie de exclamação:

Essa atitude resume muito bem Adeus, o poema no qual Rimbaud conta que ardeu
demasiado depressa e, portanto, já busca seu próprio outono e o silêncio. “Procurei
inventar flores novas, astros novos, carnes novas, idiomas novos. Acreditei adquirir
poderes sobrenaturais. E então, devo sepultar minha imaginação e minhas lembranças!”,
nos diz, e parece já nos dar às costas, como se quisesse fechar a mala com a qual viajará
para a Abissínia. Não muito depois, completaria com estas palavras sua despedida:
“Maintenant je puis dire que l’art est une sottise” (Agora posso dizer que a arte é uma
estupidez). Oh, claro, querido Rimbaud, é claro que a literatura, como toda forma de arte
é uma estupidez. Ainda que sem a arte a vida não teria muito sabor, ou mesmo nem
sequer sentido. Ademais, a estupidez da arte não é mais do que a sensível demonstração
de que a vida não basta. E por isso seguimos falando dela, às vezes só para dialogar sobre
a melhor forma de vivê-la.33

A estupidez da literatura como uma lembrança de que a vida não basta, de que
a vida – e é o Iñaki Echavarne de Bolaño a nos dizer – como toda Obra e toda Crítica,
e tudo o que ronda o mundo dos homens, encaminha-se para o silêncio, mas nem por
isso deixamos de falar, nem por isso deixamos de escrever justamente sobre esse fim.
E, assim, com essa explosão e fragmentação (suposta ou evidente) da literatura (mas
não só: também das várias artes, da história, das religiões e da política) ainda nos
resta a possibilidade de, apesar de tudo, seguirmos nosso caminho para o silêncio
lançando nossas cartas com os traços de nossa estupidez.

www.humanite.fr/jean-luc-nancy-vouloir-un-sens-unique-ouvre-sur-une-violence-le-meurtre-des-
autres-sens-585496 (acesso: 02/10/2015).
33
VILA-MATAS, Enrique. Cómo vivir. In.: El País. Documento eletrônico disponível em:
http://elpais.com/diario/2012/01/24/cultura/1327359606_850215.html (acesso: 02/10/2015)
282

Autores

Ana Maria Mauad é doutora em História (UFF), pós-doutora pelo Museu Paulista
(USP), professora do Departamento de História e coordenadora do Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH/UFF), Bolsista do
CNPq e autora de Poses e flagrantes: ensaios sobre história e fotografias (Eduff, 2008)
e Sob o signo da imagem (LABHOI/UFF, 2002).

Artur Freitas é doutor em História (UFPR), professor da Universidade Estadual do


Paraná (UNESPAR), professor do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Paraná (PPGHIS/UFPR) e autor de Arte de guerrilha (Edusp,
2013), Arte e contestação (Medusa, 2013) e Arte e política no Brasil (Org. Perspectiva,
2014).

Celso Favaretto é doutor em Filosofia (USP), livre-docente pela Faculdade de


Educação da Universidade de São Paulo, professor efetivo aposentado da
Universidade de São Paulo e autor, entre outros, de Tropicália: alegoria alegria (4ª
edição, Ateliê Editorial, 2007), A invenção de Hélio Oiticica (2ª edição, Edusp, 2000) e
Filosofia, linguagem, arte (Org. Educ, 1985).

Clóvis Gruner é doutor em História (UFPR), professor do Departamento de História e


do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná
(PPGHIS/UFPR) e autor de Leituras matutinas (Aos Quatro Ventos, 2003) e Nas tramas
da ficção: história, literatura e leitura (Org. Ateliê Editorial, 2008).

Francisco Santiago Júnior é doutor em História (UFF), professor do Departamento


de História e coordenador do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Rio Grande Norte (PPGH/UFRN), atuando principalmente
nas áreas história e teoria das imagens e história do cinema brasileiro.
283

Maria Lúcia Bastos Kern é doutora em História da Arte (Université de Paris I), pós-
doutora pela Université de Paris I e pela École des Hautes Études en Sciences Sociales,
professora titular do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Bolsista 1A do CNPq e autora,
entre outros, de Arte argentina (EDIPUCRS, 1996) e Imagem e conhecimento (Org,
Edusp, 2006).

Michael Asbury é PhD pelo London Institute (atualmente UAL), professor assistente
no Research Centre for Transnational Art, Identity and Nation (TrAIN) na University
of the Arts London (UAL) e, como pesquisador, tem experiência em arte moderna e
contemporânea brasileira, com vários artigos, capítulos e textos de catálogo
publicados sobre o tema.

Paulo Reis é doutor em História (UFPR), professor do Departamento de Artes Visuais


da Universidade Federal do Paraná (DEARTES/UFPR), autor de Arte de vanguarda no
Brasil (Zahar, 2006) e pesquisador em história da arte brasileira, atuando
principalmente nas áreas de curadoria, arte contemporânea, crítica e exposição.

Raul Antelo é doutor em Literatura Brasileira (USP), professor do Departamento de


Língua e Literatura Vernáculas e do Programa de Pós-graduação em Literatura da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Bolsista 1A do CNPq e autor, entre
outros, de Maria com Marcel (Ed. UFMG, 2010), Algaravia (Ed. UFSC, 2ª ed, 2010),
Crítica acéfala (Grumo, 2008), Potências da imagem (Argos, 2004) e Literatura em
revista (Ática, 1984).

Roberto Conduru é doutor em História (UFF), professor dos cursos de graduação em


História da Arte e em Artes Visuais e do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGArtes/UERJ), Bolsista do CNPq e
autor, entre outros, de Pérolas negras (Eduerj, 2013), Willys de Castro (Itaú Cultural,
2013), Arte afro-brasileira (C/Arte, 2007) e Jorge Guinle (Barléu, 2009).
284

Rosane Kaminski é doutora em História (UFPR), professora do Departamento de


História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do
Paraná (PPGHIS/UFPR) e autora de Arte e política no Brasil: modernidades (Org.
Perspectiva, 2014) e História e arte: encontros disciplinares (Org. Intermeios, 2013).

Vicente Sánchez-Biosca é doutor pela Facultat de Filologia da Universitat de València


(UV), professor catedrático na Universitat de València, diretor da revista Archivos de
la Filmoteca, professor visitante de diversas universidades internacionais e autor,
entre outros, de Cine de historia, cine de memoria (Cátedra, 2006), Cine y vanguardias
artísticas (Paidós, 2004), El montaje cinematográfico (2ª edição, Paidós, 1993) e Cine y
guerra civil: del mito a la memoria (Alianza, 2006).

Vinícius Nicastro Honesko é doutor em Literatura (UFSC), pós-doutor pela


Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor do Departamento de
História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do
Paraná (PPGHIS/UFPR) e autor de O paradigma do tempo (Ed. Vida e Consciência,
2009).

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