Você está na página 1de 25
5, Ondas, torrentes e barricadas Georges Didi-Huberman A historia e a arte ensinam que a revolta costuma nascer do luto e se propaga num turbilhao que mistura lamentos pessoais e coletivos, o préximo e o distante, numa extraordinaria emocao coletiva Portodos os lados, as pes : poténcias. Mas por todos os lados, também, constroem barragens: poderes, Ou, entio, protegem-se no topo das falésias, de onde acreditam poder dominar o mar. As barragens ¢ as falésias parecem ter sido erguidas para conter o movimento de algo que se levanta a partir de baixo e ameaca a ordem das coisas no alto. Assim, os levantes se pareceriam com as ondas do oceano, cada uma delas contribuindo para que um dia, subitamente, a barragem afunde ou a falésia desmorone. Nesse meio-tempo, alguma coisa vai se transformando, mesmo que de modo impercepti- Robert Longo vel, conformeas ondas vém. £ “imperceptivel” do futuro. E Spanish Blood (Lion's Gate), 2005 ee ie Cinesiadeattituedaglenavtetro 2 Poténcia da onda ~ em todos os sentidos da palavra “potéi Pictures, Nova York cia’ -, imesistivel mas latente, que passa despercebida até o ‘momento em que faz.com que tudo exploda, f exatamente isso que os poemas, ‘08 romances, 0s livros de hist6ria ou de filosofia, as obras de arte sabem regis~ trar, amplificando as coisas, dramatizando sob a forma de ficcdes, utopias, vi- sdes, imagens de todos os géneros. Imagens-sintomas nas quais estaria inscrito, pormeio de rastros, de catastrofes morfologicas, que a barragem oua falésia ja nao so exatamente as mesmas depois da passagem de uma onda aqui, outra acola, e assim por diante. Imagens-desejos, tal como Ernst Bloch nomeou tao bem, que surgem ou se levantam com toda a poténcia para dar forma ao nosso desejo de ultrapassar, de atravessar uma fronteira, saltar a barreira. Nao € por acaso que frequentemente se usa a expresso “onda de protestos”, “onda de revoltas” ou “onda de greves fora de controle”. Assim, nao € por acaso que Victor Hugo tenha feito uma longa descrigdo da insurreicao parisiense de 1832 usando termos como “efervescéncia” climatica, tempestades que levan- tam ondas enormes e agitam toda a atmosfera: “Havia no ar um tipo de vio- léncia desconhecida, [uma explosio] de agitacdes que revolviam o fundo...”. Nao € por acaso, afinal, que O encouracado Potemkin, de Eisenstein, filme sobre olevante por exceléncia, tenha inicio com a imagem de um mar agitado por ondas que vao, com toda a forga, fazer afundar uma barragem. Na restauragio do filme, em 2005, Enno Patalas descobriu que a citagao de Lénin que aparece no intertitulo logo apés a cena do mar substituiu, nas versdes oficiais usadas pelo stalinismo, um intertitulo original que trazia, na verdade, uma citagio de ‘Trétski tirada de seu grande livro sobre a revolucdo de 1905: CO espirito de revolta pairava sobre a Ruissia. Uma transformagio imensa e misteriosa acontecia em intimeros coragdes, os entraves criados pelo medo se dilufam: 0 indivi- duo que mal tivera tempo para tomar consciéncia de si mesmo agora se dissolvia na ‘massa, toda a massa se juntava num mesmo ela. Libertada das erencas hereditarias de obstaculos imaginarios, essa massa ndo podia e nio queria ver os obstaculos reais, Era isso que constituia sua fraqueza e sua forga. Ela seguia adiante como uma ‘onda imensa criada pela tempestade. Cada dia chegava a um novo limite e engen- Arava novas possibilidades, como se uma forga desmesurada revolvesse a sociedade até o fundo. |.] Alternavam-se greves de operarios, reunides interminaveis, mani- festacdes nas ruas, destruigio das propriedades, greves de policiais e de cavalaricos, até que, finalmente, os problemas e as revoltas chegaram até os marinheiros e os soldados, Foi a dissolucdo total, foi o caos. Nessas linhas, Trétski reconhecia que a “poténcia” ou o dynamis da revolta pre- cedia qualquer tomada de “poder” segundo a lei ou o nomos da revolucio teo- rizada por Lénin, Por isso, seu texto se onganiza todo ao redor desta imagem da onda—“como uma onda imensa criada pela tempestade |..., como se uma forca desmesurada revolvesse a sociedade até o fundo” -, imagem que Eisenstein tomaria ao pé da letra, por assim dizer, Ora, o processo de levante descrito por ‘Trétski, com todas as implicagdes trazidas, como a “dissolugio total” eo “caos”, énomeado aqui por meio de dois substantivos cheios de sentido: o primeiro é “ela” (poriv), o segundo é “espirito” (dukh), presente na expresso “espirito de revolta”, Certamente, isso nao parece corresponder a visio puramente estraté- gica adotada por Lénin. £, contudo, trata-se de um vocabulirio que remonta is préprias origens do comunismo, na medida em que a palavra dukh era usada para traduzir em russo a nogio de “espectro” (Gespenst), na conhecida formula de abertura do Manifesto comunista de Marx e Engels: “Um espectro ronda a Europa, 6 0 espectro do comunismo...”. Ha algo lucreciano nessas imagens de ondas, els ou espiritos migraté- rios que sabem se aproveitar do nosso desejo de emancipagio. Comecamos a compreender, assim, que os fendmenos de levantes reagem a auténticas morfologias dindmicas, do tipo que encontramos justamente no interesse precoce de Karl Marx pelos materialismos da Antiguidade ou no trabalho pos- terior de Friedrich Engels para a sua Dialética da natureza. Antes deles, Goethe tinha construido a fascinante nogio de “fenémeno originirio” (Urphdnomen), que Walter Benjamin, como bom materialista que era, levou para o campo do pensamento hist6rico e politico. Seriam os levantes, portanto, fendmenos ori- gindrios de um determinado tipo de situaco concernente a vida historica das sociedades humanas? Nao sio eles fenémenos da poténcia, ondas de energia social? Ou entao elas do desejo, dispersao de coisas estabelecidas, forca resul- tante da ressaca fluida capaz de destruir barragens e falésias ~ isto é, institui- Ges - aparentemente tao s6lidas? E por isso que, por todos os lados, as pessoas se sublevam. As ondas—ondas dos nossos desejos de emancipacio — surgem Id do fundo e chegam para, aqui e ali, sem légica aparente, levantar as superticies. Talvez seja preciso compreen- der 0 famoso slogan de maio de1968 (“debaixo dos paralelepipedos, a praia!”) pormeio da imagem de uma onda de paralelepipedos quebrando sobre a areia da praia e agitando, como em Victor Hugo, toda a atmosfera até o alto do céu. Nao nos deixemos iludir pelo cardter “romantico” dessas imagens: justamente aatencio dedicada as morfologias afetivas —célera com tempestade, desejo com onda - é 0 que confere pertinéncia ao carter lucreciano de Victor Hugo ou a0 “fen6meno originario” de Goethe. Foi uma verdadeira andlise morfol6gica que levou André Gorz, por exemplo, a ver o capitalismo se debatendo com sua propria decomposicao e, desse modo, a desejar demais dos levantes futuros. Se por todos os lados as pessoas se sublevam, nao seria, hoje mais do que nunca, gracas a um imenso fenémeno morfogenético —_que a geometria dina- mica denomina encadeamento ou deseneadeamento de catdstrofes — ligado a0 proprio destino, econdmico, social e politico, das formas de opressio atual- mente “globalizadas”? Foi o que Yann Moulier Boutang observou, em 2012, no niimero da revista Multitudes dedicado aos levantes: “A partir de agora”, escreveu ele, “os levantes resultam dos 30 anos de globalizagio, de unificagao 8 europeia; os levantes vém a partir de dentro, Eles esto contra algo, mas vém de dentro. Definitivamente de dentro. £ um fendmeno global, ou seja, mun- dialista. E é isso que deve nos tornar extremamente otimistas.” Cabe lembrar 0s 8.528 levantes recenseados por Jean Nicolas: entre 1661 € 1789, eles vio, obs- tinadamente, rachar o edificio monarquico até fazé-lo desmoronar. Hoje em dia podemos consultar a Bibliotheque des émeutes e, sobretudo, a empreitada importantissima que representa a International Encyclopedia of Revolution and Protest, de Immanuel Ness, em que estdo reunidas a historia e a cartografia dos incontaveis levantes ocorridos desde o século 16 até os nossos dias. Também existem intimeras antologias sobre os grandes protagonistas da rebelio e al- guns albuns iconograficos dos levantes, tal como a obra Protest!, publicada em 2011 com organizacao de John Simpson. Existe até um recente “manual alter- nativo da historia contempordnea” chamado Les Mondes insurgés. Mas de que maneira se desencadeia e se desenvolve uma tal “morfogénese” dos levantes? De que maneira a onda se forma e desenvolve sua poténcia intrinseca? Se ha uma lei para tal fenémeno, ela s6 poderia ser, obviamente, sobredeterminada: a cada vez —e a cada vez de forma diferente — ocorre um jogo de causas muiltiplas, heterogéneas na teoria mas reunidas de fato, que da origem A poténcia dos levantes. Ela costuma ter inicio - como vemos em Oencouracado Potemkin, entre mil outros exemplos possiveis— no sentimento doloroso causado por uma perda e na possibilidade oferecida as pessoas de manifestar essa dor: de expor o que sentem, no duplo sentido do termo, tanto ‘como expresso visivel (expor seu sofrimento aos olhos de todos) quanto no sentido de assumir o risco (se expor ao perigo da repressio e, portanto, a um novo sofrimento). Eassim que, frequentemente, os levantes partem de simples doléncias, pa- lavra ligada ao luto e a dor e que exprime um lamento, sobretudo no caso de uma queixa publica: trata-se, portanto, de reclamar de uma afronta vivida, de uma injustica, de uma situagao sentida como intoleravel. As doléncias nada tém de agressivo: no Antigo Regime, elas se enderecavam a autoridade do se- nhor ou do governo, eram apresentadas ao rei sob a forma daqueles famosos “cadernos de queixas”, Eram uma possibilidade simbolica oferecida aos mais necessitados de expressar publicamente suas dificuldades. Como mostrou, entre outros, o historiador Yves-Marie Bercé, em sua grande obra Révoltes et révolutions dans 'Europe moderne, com frequéncia tudo comecava com 0 “re- gistro das doléncias”, com “queixas” ou “pedidos” por meio dos quais os indi- viduos mais humildes usavam seu direito secular de se dirigir a um soberano na condicao de “justiceiro supremo”. Mas esse direito habitual - solicitacao legitima de todos os individuos ao seu senhor - poderia ser recebido, por parte do governo, como uma prerrogativa insolente, e até mesmo como manifesto insurrecional, e desencadear, por consequéncia, um ciclo de perseguicdes ju- dicidvias, prisdes e repressdes de todos os tipos. .Aexpressiose refer a revoltas populares contra aumentos de mpostos ‘ude pregos como os levantes, recorrentes na Franga do século 7, provocadas pela alta do trigo ede seus derivades. |v. do] 119 £justamente nesse ponto que a onda se forma. Trata-se de uma composicao de forcas: a injustica inscrita na doléncia se sobrepée & injustica ou dor ligadas ao pedido ignorado. Uma nova dor por cima de uma dor antiga: o resultado é uma excla- magdio de afetos por cima da reclamacao formal registrada no caderno de queixas. O resultado é a célera. Depois, as cdleras se juntam ¢ dai surge uma série de proclamagdes— um modo autonomo de se exprimir —, clamores e manifestos: Bercé ob- serva, entio, que os “discursos e os escritos se multiplicam [em] uma espécie de explosio do imaginario sociopolitico”, e logo sero seguidos por atos, explosoes da tempestade insurre- cional como tal. Ora, para a tempestade existir, é preciso que as forcas se transmitam, que se somem as outras, até que se dispersem, assim como as ondas do oceano. Bercé lembra que ‘o grande ciclo das revoltas e revolugées da Europa moderna a partir dos anos 1520-1530 - ¢ que foram chamadas, entio, na esfera politico-religiosa, de Reforma — nao teria podido se propagar com tanta forca sem a reproducdo dos textos e ima- gens permitida pela invencao da imprensa e sem a difusio de panfletos com gravuras estampadas (que Aby Warburg estudou com paixio no ambito do que ele chamou de uma Geistespolitik, ou “politica do espirito”). £ por causa da recusa ao pedido legitimo de doléncias —le- gitimado por uma longa tradicao, uma memoria atestada pela relaco secular dos criados com seus senhores -, é por essa recusa por parte dos dirigentes que o pedido se transforma em recusa da autoridade e necessidade de autonomia. Assim, ele se torna “resisténcia ao tirano”. Sem ter sido planejado inicialmente, o pedido desagua num auténtico “projeto po- itico” baseado no direito de recusa e na reivindicacdo de um direito mais fundamental estruturado (que obvio!) na nogio de igualdade perante o direito. Se os levantes nao sao provo- cados por situagées isoladas de epidemia, fome ou “inquie- taco frumentaria”’, como dizem os historiadores, ¢ porque seu impulso se situa num espaco da relacio entre o pathos (da dor vivida) e 0 logos (do direito exercido): é justamente por isso que a queixa nao atendida leva ao ato de dar queixa. Em outras palavras, de pedir justica em nome de um direito que as autoridades usam de modo indevido, justamente por causa da impunidade de seu estatuto. E ¢ a partir do movi- mento contraditério entre pathos ¢ logos que se desencadeia a praxis dos levantes. m2 Untitled (eltion), 2011 £ uma historia sem fim. Como afirma Sophie Wahnich acerca da Revolugio Francesa, é a histéria da “imensa pacién- cia das pessoas” ou desse interminavel ciclo de softer e agir que caracteriza, a longo prazo, o fluxo € o refluxo das ondas de levantes. Se tomarmos como exemplo apenas as revoltas camponesas, podem-se ver as lutas contra as barragens im- postas pelo poder senhorial do fim do século 13 até 0 século 18, como mostram obras como Fureurs paysannes, de Roland Mousnier, de 1967 (que tratava do caso francés, mas também Tusso e chinés), Croquants et nu-pieds, de Yves-Marie Bercé, de 1974, ou Les Révoltes paysannes en Europe, de Hugues Neveux, de 1997 (em que se pode constatar que cada ano dessa longa historia traz uma nova onda insurrecional). £ uma historia sem fim, ja que ela atravessa oceanos também épocas: saindo do anarquismo andaluz dos campesinos (desde os anos 1870 até o fim da guerra civil), ressurgindo na revolugdo agraria mexicana (nos anos 1920), depois voltando a Europa, por exemplo, nos momentos magnificos registrados em Portugal por Thomas Harlan, em 1975, logo apés a Revolugdo dos Cravos. Trata-se, assim, de um movimento de ida y vuelta, um extraordinério ir e vir das ondas de levantes camponeses, en- treas quais a do zapatismo mexicano, que encarna, ainda hoje, toda poténcia e inventividade politicas. Nao me surpreende em nada que o “subcomandante insurgente Marcos”, em seu Calendario da resistencia, em 2003, tenha tido vontade de rela- tar, por meio da fala do “Velho Anténio”, uma lenda indigena que evoca estranhamente a historia de Atlas: trata-se da *hist6- tia do homem que sustentava o céu” (0 céu comparado a uma lona de tenda fixada de qualquer jeito e que, por isso, no cessa de se esticar e se soltar, de envergar e se levantar), enquanto “ensinava os homens e mulheres a falar e escrever..”. também. ahistoria de uma recusa que assume toda a gravedad: a historia de um desejo constante de dancar a histéria reinventando to- talmente a danga -e, assim, a historia —a cada passo dado. Bom, conhecemos bem o efeito (a propagacao de ondas imensas) de tamanha invencio: de insurreigio local (indigena), a rebeliio Zapatista vai dar forma e forea a uma espécie de resistencia mundial (planetaria), como Jéréme Baschet analisa em seus li- ros por meio do movimento dialético de uma construgdo de “autonomia” e de uma “multiplicidade de mundos”. Assim como as ondas que, com sua forea, erodem qualquer falesia, assim como o movimento infinito que, com sua forca, 123 supera as coisas iméveis, essa dinamica transformou os levantes da América La- tina numa experiéneia ao mesmo tempo singular e mundial, na altura em que 05 protestos sociais nas cidades mais afastadas de Chiapas assumiram a dimen- sao de uma revolta universal personificada naquilo que, na época, passou a ser chamado de altermundialismo. Essa foia “grande revolta indigena” estudada por ‘Yvon Le Bot ou Alain Touraine - em todo o continente americano ~e por ou- tros historiadores, socidlogos ou militantes que buscam, constantemente, fazer um inventario dos lugares da globalizacdo das resisténcias, segundo as palavras de Samir Amin ¢ Francois Houtart. Ora, o que caracteriza uma onda nao seria justamente ela ser formada por uma dinamica de fluidos cuja forga que a parti- culariza se expande e muda de escala, mantendo-se ativa e em movimento na ‘mesma regio? Assim como o vento, por exemplo — que nao podemos determi- nar onde termina -, nfo seria a onda constituida por tal dinamica,em que omo- vimento se realiza e se transmite em toda a sua poténcia intrinseca, formando uma sucessio de ondas? Nao é de admirar que Georges Lapierre, testemunha dos levantes de Chiapas, Guerrero e Oaxaca, tenha escolhido a frase excepcional usada pelos indios em luta: “Vamos formar um furacio!”. “A dimensao geopolitica dos movimentos contemporaneos é inegivel, ela se apoia em trocas intensas, em novas relagdes transnacionais, em imaginarios de protesto de alcance mundial, [ao mesmo tempo que] os protagonistas sao lo- cais..” Na introdugao ao volume da revista Socio chamado Revolutions, contes- tations, indignations, Michel Wieviorka, Pénélope Larzilligre e Boris Petrie nao deixaram de destacar que uma “onda” desse tipo trazia consigo certos para- doxos: nao € preciso assumir uma “narrativa grandiosa” ~seja a vitoria final do proletariado no estilo Lenin ou a sustentagdo mitica do céu no estilo Marcos ~ para que a forea dos levantes seja passada adiante; nao € preciso se organizar em partidos centralizados para que aconteca uma “mudanga geral com relacio 4 politica” - mudanca que permitiria, segundo os autores, despertar um novo interesse pela politica gracas a sua dinamica mais do que ao seu valor prescritivo. ‘Uma mudanca na qual, segundo um estranho paradoxo, os “devires minorité- rios” se multiplicam e, assim, fazem pressdo, progridem, crescem, se fortalecem aqui quando perdem forga ali, tornam a subir até a superficie e acabam agindo ou surgindo um pouco por todo lado. Ahist6ria é um mar: forma de dizer que, nela, a agitagdo nunea tem fim. Ou melhor, que ela é,incessantemente, agitacdo. Ha cielos e laténcias. Enfim, movi mentos. Ha maréalta e maré baixa, tempestades e periodos de calmaria, Ao inti- tularseu livro La France conteste, Charles Tilly indica que o tempo presente tem, de fato, uma duragio bastante extensa: pasado, presente e futuro esto inclui- dos. Ao escrever o livro Why Men Rebel, discorrendo sobre os modelos fundamen- tais da rebelido, os persisting patterns, Ted R. Gurt escolhe se expressar de acordo com 0 conceito dinaimico do impetus. Ao sintetizara historia dos levantes ~seja no comeco da era moderna ou no periodo contemporineo -, Jack Goldstone 4 ‘usa espontaneamenteo termo “ondas periddicas” (periodic waves). E: Mark Katz acabaré publicando, em 1997, uma obra intitulada Revolutions and Revolution ary Waves. Em suma, a propria historia seria uma historia de ondas, com uma estrutura de retornos periddicos (0 primeiro sentido da palavra “revolugao”) ‘com rupturas no equilibrio, suas catdstrofes transitorias (o segundo sentido da palavra “revoluca0”). £ preciso reconhecer, na historia politica e social, uma ver- dadeira “tradigdo revolucionéria’, cadenciada pelo fluxo de vozes que bradame pelo refluxo de siléncios contidos, de situacdes que se tornam alleie crises que se tornam a excecdo. Certamente nao ¢ simples compreender esses fenémenos, e menos ainda conseguir prevé-los. Alguns sociélogos - como Michel Dobry em 1992 ~ se ques- tionaram sobre as dindmicas inerentes is crises politicas, as mobilizacées sociais © aos levantes. E, usando um termo também presente nos modelos matemiti- cos de processos morfogenéticos em geral, descobriram que ocorrem bifuurcagées, que ha fenémenos de amplificac2o continua, depois “estados criticos”, turning points que explodem produzindo rupturas, nas quais, de repente, passam a reinar 0 descontinuo e o imprevisivel... Como comentou com preciséo Sophie Wahnich acerca do “tempo revolucionatio”, existe uma espécie de abertura do tempo-na diregdo do futuro, é claro, partir do proprio amago do presente, mas também na direcio de um passado que é subitamente reconfigurado por aquilo que o desejo “faz” com a meméria, ou da meméria. Tal abertura, segundo ela, ocorre no “precipitado” do momento de crise ou de levante. Precipitado é um termo emprestado de Jacques Derrida. $6 de pronunciar a palavra, ja podemos sentir que ela traz todo o paradoxo de um tempo breve, critico ou explosivo, que ocorre no intervalo de um tempo longo, de um tempo em que a meméria se deposita para que, enfim, o desejo exploda. £ imensa a meméria que temos dos levantes, Ela de fato esta depositada em 1n6s ~embora a tinica coisa que conte, na urgéncia eno estado de coisas intolera- veis que nos oprimem, voltard no levante que vem adiante. Mas, para que possa- ‘mos pensar “no que vem adiante” sem ser adivinho nem nada, devemos, como sugere acertadamente Derrida, pensar no ritmo que vai dar lugar aos fluxos e refluxos das ondas da histéria: Pensar no que vem adiante significa ganhar tempo bem onde o tempo ganha ¢ ganha de 16s, pois ele ganha de nds quandoa histéria, isso que ainda chamamos com a palavra mais instavel e mais enigmitica de todas, a histdria, nos ultrapassa, vemn antes de nés na experiéncia inelutivel do tempo que vem adiante, mas que vem para fazer falta A categoria do ritmo (e, portanto, a de transicdo e/ou de revolugao) deveria ser vista com novos olhos nas andlises hist6rico-politicas. 15 O tempo seria constituido pelo ritmo das ondas e suas explosdes? O que acontece num levante? De repente chega o tempo em que o tempo vem ou- tra vez, em que o tempo de stbito revém. Entio, a onda quebra e as barreiras afundam. Fluxo de puro presente, refluxo de memoria, e de novo 0 fluxo, 0 fluxo jé presente de poténcias que esto por vir. O tempo “que vem para fazer falta”, escreveu acertadamente Jacques Derrida. Trata-se de uma perda seguida de um levante: a pior das perdas e um levante urgente. O tempo s6 chega de verdade quando nao temos mais tempo para nada: quando a onda carregou tudo. E essa a historia que O encouracado Potemkin, de Kisenstein, entre muitos outros exemplos possiveis, conta logo no inicio, na cena do luto seguida pela grande onda insurrecional que vem depois de um lamento co- letivo. Ora, na prosa ocednica e incessantemente pulsante de suas Memérias, Eisenstein deu destaque ao papel crucial de suas precoces leituras sobre as revolugées francesas: “Desde muito jovem me apaixonei pelas revolucdes, especialmente pelas revolugdes francesas. E isso foi gracas ao seu roman- tismo essencial.” £ claro que no topo dessas leituras esta Os miserdveis, de Victor Hugo, com o “romantismo dos combates das barricadas”, como escre- veuocineasta. Perda e levante: em Os miserdveis, num capitulo chamado “Um enterro: ocasiao para renascer”, Victor Hugo de fato conta como, no inicio de junho de 1832, a morte de Jean Maximilien Lamarque — voluntario na Revolucio Francesa aos 19 anos, combatente de Wagram que virou general do exército e, depois, deputado popular ~ desencadeou uma grande onda de levantes que teve inicio no préprio cortejo funerario de Lamarque pelos bulevares, seguido pela “multiddo numerosa, agitada, estranha” de parisienses, “Essa morte foi motivo de luto geral”, escreveu Hugo. “Como tudo 0 que é amargo, 0 luto pode se transformar em revolta. Foi o que aconteceu.” Em outro lu- gar, escreveu: “As vezes, a insurreicdo € ressurreigdo”. Como na importante cena de luto em Odessa, dirigida por Eisenstein anos mais tarde, Victor Hugo descreve as ligrimas dos parisienses em 1832 chamando aatengao paraa sua forca intrinseca de propagacdo: elas invadem, por assim dizer, o espaco in- teiro, como uma torrente de tristeza na qual comeca a borbulhar a‘célera. Poderemos compreender a imagem se precisarmos 0 contexto: desde mar¢o de 1832, uma epidemia de célera estava matando até mil pessoas por dia em Paris, mas os moradores dos bairros proletarios constatavam, indignados, que eles eram incomparavelmente mais afetados do que os burgueses das zonas ricas. Tudo explode no dia 5 de junho de 1832: (O que se via no semblante da maior parte dos presentes era um entusiasmo mis- turadoa uma certa prostragao. Aqui e ali também apareciam, na multidao tomada Por tantas emogées violentas mas nobres, verdadeiros rostos de malfeitores e bo- cas ignobeis que diziam: vamos saquear tudo! Certas agitagdes revolvem o fundo Bs Untitled (Thunder Road x1), 2009 dos pantanos, fazendo subir 8 superficie das aguas nuvens de Jama. [.] Nesse momento, os soldados da cavalaria ea multidao se tocavam. As mulheres comecavama fugir assustadas. © que tinha acontecido naquele minuto fatal? Ninguém conseguiria explicar, Eo instante tenebroso em que duas nuvens se encontram. |. Entio acontece; a tempestade se desdobra, chovem pedras, a fuzilaria comeca, as pessoas se precipitam para as margens do Sena, atravessando um pequeno canal hoje aterrado; os canteiros da ilha Louvier, esta verdadeira cidadela, enchem-se de comba- tentes; arrancam-se as estacadas, ouver-se tiros de pistolas, es- boca-se uma barricada, os jovens atacados passam na maior pressa pela ponte de Austerlitz carregando o carro fiinebre e investem contra a guarda municipal, os carabineiros correm, os soldados atacam, a multidao se dispersa em todas as diregdes, pelos qua- tro cantos de Paris circula um rumor de guerra com os gritos: as armas! Todos correm, caem, fogem, resistem. A cdlera espalha a revolta como o vento espalha o fogo. E assim as lagrimas de cada um se tornam uma torrente ou uma onda coletiva que vai arrastar tudo. A onda nio é “pura”, longe disso: suas origens séo multiplas e sua agua mistu- rada com escombros (ou seu fogo, se é que ele é um fogo, mis- turado com esc6ria). Ha tristezas e uma célera legitima, mas também ha vinganga de malfeitores, todas essas “nuvens de lama” que, no movimento geral, sobem 4 superficie. Seja como for, o que impressiona o leitor na descrigio feita por Vic~ tor Hugo dos levantes de 1832 é que o movimento da onda insurrecional nao respeita nenhuma dimensio, nenhuma fronteira: dos recénditos do mundo visceral ou psiquico até 08 horizontes mais afastados do mundo fisico ou sideral. Em cada um, 0 movimento toca lé no fundo do coracao; em to- dos, ele desencadeia uma extraordinaria emogio coletiva. E, por fim ~ como exige o cédigo romantico, ou a heranca lu- creciana -, assume as dimens6es infinitas da geografia urbana, doar que respiramos e dos proprios fenémenos atmosférico: De que sio feitas as revoltas? De tudo e de nada. Da eletricidade que se libera pouco a pouco, de uma chama que subitamente se reacendeu, de uma forca errante, de um sopro que passa. Esse so- pro encontra cabecas pensantes, eérebros sonhadores, almas em sofrimento, paixdes ardentes, misérias desesperadas, ¢ as leva embora consigo. 129 Para onde? Ao acaso. Sem respeitar o Estado, nem as leis, nem a prosperidade ou a insoléncia dos outros. Qualquer um que tenha na alma uma revolta secreta contra um fato qualquer do Estado, da vida ou do destino ja esta a beira da revolta e, assim que ela aparece, se sente impelido e levado pelo turbilhao. Arevolta 6 uma espécie de enxurrada da atmosfera social que se forma brusca- mente em certas condigdes de temperatura, e que, em seu redemoinho, sobe, cor- re, estoura, arranca, arrasa, esmaga, destr6i, extirpa, levando consigo os grandes espititos ¢ os mesquinhos, o homem forte e o fraco, 0 tronco da érvore e o peda- cinho de palha. Pobre de quem é arrastado ou ferido por ela! Ela faz.com que os dois se choquem um contra o outro, A revolta infunde aos que esto com ela uma espécie de poténcia extraordindria, Ela entorna por cima do que encontra pela frente toda a forga dos acontecimentos, transformando tudo em projéteis. |.) Perguntava-se: como isso tudo vai acabar? E, rapidamente, a medida que a noite ceaia, Paris parecia se colorir lugubremente com o flamejar terrivel da revolta. Quer tenha o aspecto de fogo ou de tempestade aos olhos de seus contem- Pordneos, a revolta social se presta bem as alegorizacdes ligadas a propaga- fo e destruicao no campo da natureza. Essa tradigao de leitura remonta a 1789 e afeta todos os tipos de imagens, as eruditas ou as populares, como se pode ver, por exemplo, na obra recente de Rolf Reichardt e Hubertus Kole Viswalizing the Revolution. Se em 1790 a nobreza pega fogo, em 1834 a burgue- sia recebera em cheio a “torrente revolucionaria” do povo que no pode ser contida por nenhuma barragem —imagem esta que saiu publicada na revista Le Charivari. Antes de ser uma “classe”, o povo é elemento, como observam com preciso Victor Hugo, em Os miserdveis, ou Jules Michelet, em 0 povo. Por mais que o historiador tente evitar o lirismo do poeta (o levante como tempestade), ele nao consegue se furtar a situar a narrativa da insurrei¢ao de Paris do dia 12 de julho de 1789 - como se lé no comeco de sua Historia da Revolugdo Francesa ~ sob um “estado atmosférico tempestuoso”. Dai brota, espontaneamente, a metafora psicol6gico-atmosférica da “tormenta tempes- tuosa” pensada como tormento: “O clima estava tempestuoso, pesado, escuro, como um sonho agitado e dificil, cheio de ilusdes e problemas...”. 0 circulo se fecha quando Michelet descreve as tempestades do mar (em La Mer) como “espasmos” viscerais, e os espasmos da mulher (em La Femme) como ondas prodigiosas que vio dar origem a vida. Seremos levados a querer reduzir essas ondas de imagens ~ ou erupcoes, clardes de imagens ~ ao simples estatuto de procedimentos liricos, que, no fim das contas, sao pouco sensiveis & “historia verdadeira” das insurreicdes 130 politicas. O romantismo s6 comove de fato quando sua liberdade lirica al- canga a verdade morfoldgica mais profunda, a do “fendmeno original”, de acordo com Goethe, ou do materialismo lucreciano, de acordo com Victor Hugo. Certamente a imagem do pequeno Gavroche, que morre cantando no meio da barricada, é bastante lirica, Mas a descrie&o que Victor Hugo faz, dessa cena se torna uma verdadeira poética material da barricada, que se es- tendeu até a época de Rosa Luxemburgo, como mostram Michael Lowy Robert Sayre nos excelentes trabalhos sobre o “romantismo revolucionario”, E depois? Pode parecer Obvio, por contraste, que a era da fotografia (“rea- lista”) tenha chegado para dar um fim a essa poetizacio (“romantica”) dos levantes politicos. Mas, na verdade, nada é mais incerto do que isso. As primeiras imagens fotograficas feitas de um levante foram os daguer- reotipos de Thibault tirados de cima das barricadas parisienses da rua Saint- -Maur, antes e depois do ataque das tropas comandadas pelo general Lamori- ire, nos dias 25 e 26 de junho de 1848. Como ocorre com quase todos os daguerrestipos dessa época, nossa visio é ofuscada tanto pela superficie bri- Ihante do metal quanto pelas zonas desfocadas devido a exigéncia de uma exposicdo prolongada. Na primeira imagem - tirada na manha do dia 25 de junho as 7hgo -, veem-se claramente as duas barricadas feitas com montes de paralelepipedos e charretes derrubadas. f possivel distinguir os insur- gentes de costas na segunda barricada, ao fundo. O aspecto de no man’s land €impressionante, as tropas do general Lamoriciére ainda nfo estavam em acio com suas violentas investidas. Todas as janelas nas fachadas vizinhas estao fechadas. Na imagem do dia seguinte, depois do ataque, vé-se vaga- mente quea primeira barricada foi aberta na lateral direita. A rua esta cheia de soldados e de espectadores, As janelas foram abertas. Nao é possivel ver os cadaveres, embora a repressio de junho de 1848 tenha atingido dimensdes de um verdadeiro massacre em massa. A imagem fotografica mostra aqui seu cardter de vestigio, tanto na “forca” quanto na “fraqueza” que todo vestigio supe: a0 mesmo tempo produtora de evidéncias materiais (como poténcia de registro) e de indecisdes formais. (sujeita que esta aos miiltiplos acasos da quimica sensivel, do tempo de ex- posicdo, daluz e sombra ete,, de todos os elementos que, no comeco de julho de 1848, os graficos do jornal L'llustration devem ter desejado corrigir ou “clarear”, como lembrou Thierry Gervais, no inicio de sua historia da infor- magao visual, a propésito das imagens ¢ do proprio tempo, retrabalhados). Por fim, o que se vé na superficie prateada dos daguerredtipos de Thibault ndo so os fantasmas da histéria ~mas seus fantasmas irrefutaveis, que sem- pre podem voltar para assombrar nossa consciéncia hist6rica. Fantasmas no sentido do poriv,o “ela” misterioso da revolucao segundo Trotski, ou, antes dele, do Gespenst — esse “espectro que ronda a Europa” —no sentido usado por Marx ¢ Engels no Manifesto comunista. 131 Assim como 0 “espectro do comunismo” que Marx e Engels invocam nesse mesmo ano de 1848, as barricadas que vemos vagamente nas imagens de Thi- bault parecem ser, em suma, ondas: ondas espectrais de um levante que, no instante em que fracassa ~ em que termina, em que morte - jé comeca a se Propagar, a sobreviver para assombrar, em seu proprio luto, todos os desejos de levantes que o futuro for capaz de engendrar. Sei perfeitamente que uma barricada é um tipo de barragem, um dispositivo improvisado as pressas com o objetivo de se defender, de deter o avanco da policia ou do exército. Mas ela também é uma onda, uma forea em movimento. fo que sugere Eric Hazan, alias, no inicio do livro La Barricade: (Ouso das ruas como campos de batalha talvez.seja um habito tio antigo quanto.as Proprias cidades. E provavelmente ja nos primeiros combates urbanos buscou-se uum abrigo empilhando qualquer coisa que estivesse ao alcance das maos, tibuas, edras ou charretes. Porém, a barricada nfo é uma fortaleza qualquer. Constituida Por um monte de objetos disparatados, reunidos no calor da hora, ela tem uma espécie de virtude, que consiste em se: ‘espalhar... A barricada, como uma onda de fato, engue-se, levanta-se e volta a cair dis- Persando-se em espuma: ela se forma subitamente e com toda a forca, de- saparece num canto para se formar outra vez. em outro. Nesse sentido, ela é fluxo e refluxo, ela percorre todo 0 espaco, e acaba desconstruindo, a partir de dentro, toda a grade urbana. Ela é, portanto, ofensiva ¢ no apenas pro- tetora; é maquina de guerra e nao apenas barreira, Eric Hazan destaca que a barricada foi um objeto revoluciondrio por exceléncia. Mas sua forca vem justamente do fato de a barricada nao ser um objeto no sentido corrente do termo: em vez disso, ela é uma montagem constante de objetos heterdclitos formando dispositivos que, por sua vez, sao eles mesmos sempre passiveis de alteracao. Forma-se, assim, um verdadeiro organismo de levante, A pro- pria etimologia da palavra significa mais “amontoado de bars (barriques|" ebricabraque provisério do que um fortalecimento territorial permanente. As barricadas acompanharam 0 povo parisiense ao longo de todo 0 século 19, sendo tdo necessarias a ele quanto os cafés ou cabarés, como mostrou Miriam Simon ao tratar, particularmente, das inesgotaveis colecoes do Mu- seu Carnavalet. As barricadas foram, assim, para as ruas parisienses, aquilo que as ondas de mau tempo seriam para qualquer porto inundado pela torrente. Para di- zer de outro modo, tomando as palavras de Mark Traugott no estudo The Insurgent Barricade, a funcao das barricadas foi essencial — tanto no plano imaginario quanto no pratico — para toda a vida politica e cultural do povo Parisiense ¢ dos levantes ciclicos, Nao surpreende que, 20 anos depois dos levantes de 1905 na Russia, Eisenstein continuasse apaixonado pelas 1B4 Untitled Gunior’s Wave), 2011 grandes obras iconograficas de Armand Dayot publicadas pela Flammarion no fim do século 19: as Journées révolu- tionnaires [de] 1830 @j 1848 e L'Invasion, le siege, la Commune [en] 1870-1871. Nesses grandes albuns de formato oblongado, todas as fontes figurativas - pinturas, desenhos, fotografias, caricaturas de jornal, medalhas, autégrafos, objetos da vida cotidiana... ~ foram utilizadas para dar uma imagem historica multiforme dos grandes levantes parisienses, para além dos modelos iconograficos ilustres de Delacroix, Courbet, Dau- mier, Meissonier ou até Manet. O que impressiona naquelas imagens é justamente o seu aspecto tumultuoso ou tempes- tuoso. Por exemplo, quando a fumaca dos bombardeios in- vade todo 0 espaco como numa tormenta, ou quando uma porgdo de objetos de todo tipo chove sobre as brigadas poli- ciais, com o eventual comentario satirico — numa caricatura digna de Hogarth ~ “tropas suigas marchando num dia de mau tempo”. Num levante, é 0 espago como um todo que se subleva e causa um desgaste ao que poderiamos chamar, pen- sando a partir de agora como um fenémeno meteorolégico, as “forgas da ordem”. B surpreendente que, no contexto da revolugao de 1848 — antes de as barricadas serem fotografadas por Thibault -, 0 jor- nal politico Le Salut Public tenha misturado, nos ntimeros de 27 de fevereiro e 1° de mar¢o, o realismo e 0 romantismo nas figuras de Gustave Courbet ¢ de Charles Baudelaire. 0 gesto do jornal é bastante claro e se mostra livre do conformismo da época aos géneros artisticos. Courbet desenha o frontispi- cio que sera gravado, segundo alguns, por Antoine Fauchery, ¢, segundo outros, por Rodolphe Bresdin: uma cena de bar- ricada, que poderia ser uma variante de A liberdade guiando 0 povo, de Delacroix. O personagem que ergue a bandeira eo fuzil por cima da barricada pode ser interpretado como uma espécie de compromisso politico: operario por causa do jaleco, mas burgués pelo chapéu (partindo desse simples as- pecto revelado pela imagem, Timothy J. Clark analisara todas as tenses politicas estéticas da época nos seus dois estudos classicos Image of the People e The Absolute Bourgeois, sendo que, nesse segundo livro, o primeiro capitulo se chamava jus- tamente “A pintura das barricadas”), Baudelaire ~ que nao tinha nem 27 anos naquela época — vailanar o grito: “Viva a Repiblica!”. Entusiasmado, dirige-se a.um interlocutor: “Povo! Vocé esta aqui, sempre presente...” 135 Ele manifesta sua confianga “nos lideres do governo provisorio”. Como nao Podia deixar de ser, invoca o amor: “[O povo] adora aqueles que o adoram. Por- tanto, ndo ha nada a temer.” Ele se insurge contra a destruicao das prensas mecinicas por parte de alguns “itmaos perturbados”: “Toda mecanica é tio sa~ Srada como um objeto artistico”. Ele admite derrubar os signos do poder, mas lamenta o vandalismo contra aquilo que nomeia de “produtos da inteligéncia". Pois o levante, para ele, ndo pode ser pura e simples tébula rasa: Baudelaire sabe melhor do que ninguém a relagio entre o desejo - e especificamente o desejo de liberdade~e ameméria. Ele também presta homenagem aos “pintores [que] corajosamente se lan- garam na revolucao”, Mas esclarece que a “beleza do povo”, que ele vé na rna tomada pela efusdo insurrecional, esta além de qualquer cinone estético: ou- tra vez, “um homem livre, qualquer homem livre, é mais bonito do queomér- more...” De abril a junho de 1848, Baudelaire fard longos textos para La Tri- bune Nationale, orgao dos interesses de todos os cidadiios, com destaque para um programa chamado “Propostas para melhorar a situagao do trabalhador” Que estranho poder parecer, a0 lado desse apelo, o cruel poema em prosa do Spleen de Paris chamado “Espanquemos os pobres!”... Mas s6 send estranho para um leitor desavisado: se ha desespero e violencia nesse poema mais tar- dio, tal fato se deve, antes de mais nada, a decepgao com os livros de politicos Profissionais, “que tratam da arte de fazer as pessoas felizes, inteligentes e ricas em 24 horas”. Se o poeta encena 0 ato imoral de se espancar um mendigo, é pela “satisfacao” ele ousa dizer de ser espancado ele proprio, estabelecendo, dessa maneira, um verdadeiro principio de igualdade, mas também uma espé. cie de ética da liberdade que vai se colocar, para sempre, acima das relacdes so- ciais existentes: “$6 é digno de liberdade aquele que sabe conquisté-la”. Talvez seja preciso reler todo o Spleen de Paris a luz dessa crueldade politica ilustrada perfeitamente por um projeto de poema em prosa sobre a guerra civil: (Para a guerra civil) Ocanhio solta um estrondo... voam os membros... ouvem-se os gemidos das vitimas © 0s gritos dos sacrificadores... Ea Humanidade em busca da felicidade. Se considerarmos o forte impacto dos acontecimentos de 1848 sobre Baude- laire ~e aqui me refiro ao campo ético e politico, jé que o autor de Spleen de Paris parecia “se destacar” da massa justo onde Hugo ou Michelet julgavam se misturar -, sera possivel compreender melhor o que, no poeta, tera fascinado Walter Benjamin. Entre os intimeros trabalhos sobre o assunto - como o de Jules Mouquet, Baudelaire en 1848, ou, bem mais recentemente, o Politiques de Baudelaire, de Pierre Laforgue — os estudos de Dolf Ochler desdobram exem- plarmente a anilise benjaminiana de reconhecimento das imagens dialéticas da historia e, sobretudo, de compreensio do “spleen” como meméria do politico ¢ 136 ndo como esquecimento dele. “O massacre dos insurgentes parisienses de 1848”, escreveu Oehler, “alterou profundamente o destino da Franca e da Europa”, ¢ “alembranca que se tem dele, porém, se perde em meio aos milhares de textos”, E contra esse esquecimento que o litismo baudelairiano vai, até mesmo em sua intrinseca crueldade, reabrir a histéria por um efeito de “retorno do recalcado”, Nas Coisas vistas, de Victor Hugo, ha, justo na data fatidica de 25 de junho de1848, uma “cena de barricada” tao inacreditavel, tao inverossimil gue nunca podera encontrar, seja nos Miserdveis ou em outro canto (se me lembro bem), um lugar romanesco adequado. Ela desafia a propria fic¢ao. Somente um louco, ou um psicanalista, poderia Ihe conferir valor aleg6rico. Bla é tao extrema, tao atroz~ especialmente na relago descrita entre o sexo € a morte -, que por ora Permaneceré gravada a sua condicao de testemunho. O que Thibault nao con- seguiu realizar, com seus dispositivos de tomada fotografica e plano geral, foi lum enquadramento fechado das barricadas de 1848. Coisas vistas: aquilo que Victor Hugo viu naquele dia, mesmo a uma distancia impossivel de imaginar - assim como Goya, 35 anos antes, pode escrever na margem de um ou dois de seus Desastres: yo lo vi, “eu vi isso” —, o que Victor Hugo viu foram duas mulhe- es que ousavam, na barricada, desafiar o exército mostrando simplesmente a barriga nua e 0 sexo. A poténcia do desejo contra o poder de matar. Mas clas ‘serio assassinadas: Desde o primeiro dia, a revolta dejunho jé apresentava feigdes estranhas. De repente, ela mostrou, para uma sociedade apavorada, formas monstruosas e desconhecidas, A primeira barricada foi erguida na manha de quinta-feira,23 {de junho|, na porta de Saint-Denis; no mesmo dia, ela foi atacada. A guarda nacional apareceu decidida. Fo- ram batalhes da primeira e da segunda legides. Quando os agressores, que vinham Pelo bulevar, ficaram ao aleance, a barricada investiu contra eles energicamente, co- brindo o chao de guardas nacionais. A guarda nacional, mais irritada do que intimi- dada, se atirou para cima da barricada a toda a velocidade. Nese momento, uma mulher surgiu no alto da barticada, uma mulher jovem, bela, deseabelada, assombrosa. Essa mulher, que era uma prostituta, levantow o vestido até a cintura e gritou para os guardas nacionais naquele terrivel linguajar de bordel ue somos obrigados a traduzir:“Seus frouxos, se tiverem coragem, atirem no ventre de uma mulher”. Foi quando a situacao ficou pavorosa. A guarda nacional ndo hesitou nem um ins- tante. Um fogo de pelotao atravessou a miseravel, Ela cain soltando um grito alto. Fez- Se um siléncio aterrorizante na barricada e em meio a0 agressores, De sibito, apareceu uma segunda mulher. Ela era mais jovem e ainda mais bela; era 4uase uma erianga, mal tinha 17 anos. Que tristeza absurda! Ela também era prosti- tuta, Levantou o vestido, mostrou o ventre e ritou: “Atirem, seus bandidos!”. Eles atiraram. Ela caiu, esburacada de balas, por cima do corpo da primeira mulher. Foi assim que a guerra comegou. / 137 Esse texto constitui certamente um ponto de limite. A questao de “realismo” ou “romantismo” nem chega a se colocar. Mas, por outro lado, tudo se passa como sea liberdade poética diante da histéria apresentasse, no que diz respeito a pro- pria liberdade politica, um modo de sobreyivéncia para além dos infortunios —e fracassos — dos levantes de 1830, 1848 ou 1871. E € aqui que a barricada surge, mais do que nunca, como um divisor de dguas imagindrio, e nao apenas tatico, dos levantes urbanos. Uma narrativa da revolucdo de 1848 poderia ser feita a partir unicamente da descri¢ao dos movimentos de barricadas, como num pe- queno fasciculo anénimo de 29 paginas, intitulado Les Barricades de juin 1848, ou ento na descrig&o que Mark Traugott vai fazer dos mesmos combates no livro Armies of the Poor. Mas Victor Hugo, com Os miserdveis, ou Heinrich Heine, com De la France ~ que buscou descrever, também, o “trovoar” do levante de- sencadeado pelos funerais do general Lamarque em 1832 -,vao inaugurar uma tradicdo “poético-historica” fundamental que poderd ser vista em toda sua in- candescéncia na Comuna de Paris. Em 1848, tivemos Gustave Courbet e Charles Baudelaire. Em 1871, sero Edouard Manet — com algumas imagens surpreendentes de barricadas, sem contar os testemunhos preciosos de sua correspondéncia - e Arthur Rimbaud. Em Rimbaud, 0 “Eu é um outro” vai junto com uma afirmacio~ que aparece na mesma e famosa “Carta do vidente” a Georges Izambard, de 13 de maio de 1871- acerca de uma causa comum em afinidade esponténea com a insurreicio pari- siense e coma ideia de uma poesia que no s6 daria “ritmo a aco”, mas também. se posicionaria “a frente” dela... Mesmo 0 aristocrata catélico que foi Villiers de I'Isle-Adam vai percorrer maravilhado, transtornado, as barricadas da Comuna. So ocasides para todos esses testemunhos se sentirem transportados pela tor- rente da histdria: ocasides para experimentar o levante de emocdes que vai sobre- viver, no fim, ao fracasso militar e politico da Comuna, como Kristin Ross bem observou em seus livros sobre Rimbaud e L'Imaginaire de la Commune. F como se houvesse, nessa época, um movimento de atracdo reciproco e continuo entre lirismo e politica, impulsos potticos e priticas de levante. De um lado, Rimbaud querendo ir “para frente da acdo”. Mas, ao mesmo tempo, Prosper-Olivier Lissagaray, um dos protagonistas dos acontecimentos de 1871, lancando fagulhas liricas na cronica que escreveu sobre a sua participaco na “torrente revolucionria”. Como Victor Hugo antes dele, ou Eisenstein depois, cle comega sondando as relagdes misteriosas entre o luto ea revolta, a perda eo levante: Para dar aos adeptos da Comuna funerais dignos desse nome, convocaram o povo. No dia 6 [de abril de 1871), 4s duas horas, uma multido se reuniu no hospital Beaujon, onde 0s mortos estavam expostos com 0 rosto & mostra. As mies, esposas, curvadas sobre os cadaveres, gritavam com faria e laneavam promessas de vinganca. Trés ca tafalcos contendo cada um 35 caixdes, cobertos com véus pretos e enfeitados com 140 Untitled (Gotterdammerung/vo joo), 2005 bandeiras vermelhas, eram levados por oito cavalos e avanca- vam lentamente na diregdo dos grandes bulevares, anunciados pelos clarins e pelos Vingadores de Paris. Delescluze e mais cinco membros da Comuna, de echarpe vermelha ¢ sem chapéu, en- cabecavam o luto, Atras deles, os parentes das vitimas, as vitivas de hoje apoiadas pelas de amanha. Milhares e milhares, com ‘uma flor na lapela e silenciosos, marchavam ao ritmo de tambo- res abafados. Uma misica surda eclodia em alguns momentos como a explosio involuntaria de uma dor contida demais. Havia 200 mil nos grandes bulevares, dos quais 100 mil rostos pilidos olhando para os crucificados. As mulheres solugavam: muitas desfaleciam. Esta via-sacra da Revolucao, leito de tantas dores ede tantos festejos, poucas vezes testemunhou semelhante fo- gueira de emogies. A Histoire de la Commune se apresenta, portanto, a0 mesmo tempo como uma crdnica detalhada e como uma montagem cadtica de vis6es—ou de “planos” -, que revelam muita coisa sobre o assunto a partir mesmo do seu surgimento, inten- sidade, crueldade, incongruéncia. Assim coma o cavalo que hesita no filme Outubro, de Eisenstein, o de Adolphe Assi, no livro de Lissagaray, “se recusa a ir em frente: ele acabou de escorregar nas enormes pocas de sangue”. Assim como a moga da mesma cena de Outubro, “uma jovem de 19 anos, corada e charmosa, com eabelos pretos cacheados, passa 0 dia inteiro na batalha, Uma bala na testa mata o seu sonho.’ Lissagaray lanca um olhar terno ao modo como “os defenso- res das barricadas dormem sobre os paralelepipedos da rua”. No cruzamento dos bulevares Voltaire e Richard-Lenoir, ele vai observar o caos eficaz. de uma barricada “feita de barris, paralelepipedos ¢ grandes bolas de papel”. Na place Blanche, vai fazer um elogio entusiasmado da “barricada de mulhe- res”, dando a mesma atengao & coragem delas que Eisenstein daria, bem mais tarde, as suas “carpideiras de Odessa”, Quando esse tom tragico comecar a ditar o ritmo da cro- nologia no relato factual e na anilise politica, é como se um novo género literario estivesse nascendo: um lirismo jorna listico que vai perdurar pelo menos até a Guerra Civil Espa- nhola, Por enquanto, é Jules Valles, jornalista “comprome- tido” com a Comuna ~ estudado no grande livro de Roger Bellet Jules Valles journaliste -, que da o tom ao narrar os ar- redores das barricadas: ‘2."Quand|a foule aujourd"hui muette, ‘Comme LOoéan grondera, Qu’a mourir elle sera préte/ La Commune selevera/ Nous reviendrons foulesans nombre/ ‘Nous viendrons partous les chemins, Spectres vengeurssortant deombre” O membro da Comuna esti de pé, apoiado num canto da bar- ricada, A testa dele chega a ultrapassar as pedras, e as balas de- senham uma auréola ao redor dele que fica cada vez menor: [| ‘Temos uma pega de artitharia usada por artilheiros silenciosos € corajosos, Um deles nao tem mais de 20 anos, cabelos claros, olhos azulados. Ele enrubesce quando elogiam o seu tiro. |. ‘Ohomem louro responsavel pela artilharia solta um grito. Uma bala atingiu sua testa e deixou uma espécie de olho negro entre seus dois olhos azuis, —Estamos perdidos! Salve-se quem puder! Jé Louise Michel, presa na noite da Comuna e depois depor- tada para a Nova Caledénia por uns dez anos, mistura suas proprias “lembrancas” & grande “histéria” num livro excep- cional que comeca com 0 poema “Chanson des prisons”, composto por ela em maio de 1871: Quando a multidio calada se disser “pronta para morrer”, como uma onda pesada, a Comuna vai se erguer. Uma multidao avanga Vem por todos os caminhos, Sio os espectros da vinganca* La Commune, de Louise Michel, é um livro atravessado por grandes perdas e grandes levantes. Trata-se de tempestades ora libertadoras ora fatais: “efltivios”, “ciclones”, “tormen- tas revolucionarias”... No enterro de Victor Noir ~bem como, antes dele, no do general Lamarque e como, depois, no do marinheiro Vakulinchuk -, Louise Michel vai ver “a morte passando no ar” e, a0 mesmo tempo, o desejo surgindo in- dependentemente das perdas: “Ali ja era possivel ver a re- publica triunfante”, diz. ela no meio da multidao enlutada. Aesperanca trazida pelos “espectros da vinganca”, evocada no poema anarquista, sera descrita por Louise Michel como uma onda imensa quebrando na arrebentacio: “Uma tor- rente de pessoas se erguia de todos os cantos, chegava & parte rasa do mar em toda a costa do Velho Mundo, de perto dava para ouvir seus bramidos, mas também de longe era possivel escuté-lo”. E 0 movimento seguia até 0 ponto tio esperado de uma internacional de levantes, num capitulo que ‘2."Quand|a foule aujourd"hui muette, ‘Comme LOoéan grondera, Qu’a mourir elle sera préte/ La Commune selevera/ Nous reviendrons foulesans nombre/ ‘Nous viendrons partous les chemins, Spectres vengeurssortant deombre” O membro da Comuna esti de pé, apoiado num canto da bar- ricada, A testa dele chega a ultrapassar as pedras, e as balas de- senham uma auréola ao redor dele que fica cada vez menor: [| ‘Temos uma pega de artitharia usada por artilheiros silenciosos € corajosos, Um deles nao tem mais de 20 anos, cabelos claros, olhos azulados. Ele enrubesce quando elogiam o seu tiro. |. ‘Ohomem louro responsavel pela artilharia solta um grito. Uma bala atingiu sua testa e deixou uma espécie de olho negro entre seus dois olhos azuis, —Estamos perdidos! Salve-se quem puder! Jé Louise Michel, presa na noite da Comuna e depois depor- tada para a Nova Caledénia por uns dez anos, mistura suas proprias “lembrancas” & grande “histéria” num livro excep- cional que comeca com 0 poema “Chanson des prisons”, composto por ela em maio de 1871: Quando a multidio calada se disser “pronta para morrer”, como uma onda pesada, a Comuna vai se erguer. Uma multidao avanga Vem por todos os caminhos, Sio os espectros da vinganca* La Commune, de Louise Michel, é um livro atravessado por grandes perdas e grandes levantes. Trata-se de tempestades ora libertadoras ora fatais: “efltivios”, “ciclones”, “tormen- tas revolucionarias”... No enterro de Victor Noir ~bem como, antes dele, no do general Lamarque e como, depois, no do marinheiro Vakulinchuk -, Louise Michel vai ver “a morte passando no ar” e, a0 mesmo tempo, o desejo surgindo in- dependentemente das perdas: “Ali ja era possivel ver a re- publica triunfante”, diz. ela no meio da multidao enlutada. Aesperanca trazida pelos “espectros da vinganca”, evocada no poema anarquista, sera descrita por Louise Michel como uma onda imensa quebrando na arrebentacio: “Uma tor- rente de pessoas se erguia de todos os cantos, chegava & parte rasa do mar em toda a costa do Velho Mundo, de perto dava para ouvir seus bramidos, mas também de longe era possivel escuté-lo”. E 0 movimento seguia até 0 ponto tio esperado de uma internacional de levantes, num capitulo que Louise Michel gostaria de ter chamado “Levantes pela liberdade ao redor do mundo”, texto que ecoa evidentemente o espirito de Bakunin, mas sob a égide poética de Victor Hugo: Toquem, toquem sempre, clarins do pensamento. (Victor Hugo) Em 71, ocorreram grandes levantes de ideias ao redor do mundo. Elas foram semeadas por um sopro de tempestade e ramificaram-se, cresceram a sombra e através dos enforcamentos, hoje floresceram; em breve, os frutos virio. Por volta de 70, antes, depois, sempre, até que se complete a transformagio do ‘mundo, o fascinio pelo verdadeiro ideal segue adiante. Mesmo destruindo todas as florestas do mundo, ser que podemos impedira che- ‘gada da primavera? Por volta de 70, Cuba, Grécia e Espanha reivindicavam sua liberdade: em todos os lugares, os escravos se livravam de suas correntes, a india se revoltou em nome da liberdade, Os coracdes se ergueram, avidos por um ideal; enquanto os mestres mais implaci- veis preparavam suas matilhas inconscientes conduzindo-as para a caga humana, sempre afogada no sangue, a revolta renascia constantemente; por todos os lados, ‘amaré subia na diregao de uma nova etapa, cada ver mais alta, sempre a vista, mas ainda nao aleangada. Seria cmodo, do ponto de vista do bom senso filos6fico, zombar do ideal invocado na formula “até que se complete a transformacao do mundo”... Nio se supée que a transformacao do mundo seja eterna e, por isso, sempre ina- cabada? Sera que Louise Michel nao sabe melhor do que qualquer um, na €poca em que escreve essas linhas, que a Comuna de 1871, como tantos ou- tros levantes, chegou ao fim com uma repressio sangrenta e um massacreem massa? Sim, os partidarios da Comuna perderam:o levante (oi derrotado. Mas a energia presente nesse texto nos diz mais uma coisa: que a perda é, ainda, levante. Que o luto ja é movimento, considerando que nele brilha ainda — como barulho surdo ou ruido ~ 0 desejo de liberdade, do qual esse texto seria (mesmo se escrito sob o signo do nao poder) a onda ea poténcia. Como se as barticadas desfeitas nas ruas de Paris se erguessem de novo na imaginacioe no desejo do leitor ao qual Louise Michel se dirige. Assim, cada pagina desse livro seria capaz de formar uma mintiscula bar- ricada — bastante fragil, ¢ verdade, mas tio profusa e sempre multiplicdvel até se tornar realmente espessa —que vai, por sua vez, convocar as barricadas do futuro: as dos espartaquistas de Berlim, em 1919 (as fotografias de Willy Romer mostram que algumas delas eram compostas de papel-jornal), as dos anarquistas em Barcelona em 1936 e 1937 (admiravelmente documentadas, inclusive no jornal produzido por eles, por Agusti Centelles), ou ainda as dos 143 estudantes em Paris em 1968... Hoje em dia, sao pracas inteiras - Tahrir no Cairo, Maidan em Kiev — que funcionam como imensas barricadas, sendo a0 mesmo tempo conexdes entre os adeptos do levante e bloqueio das forcas de ordem. Assim como os tratores dos camponeses nas estradas, ou ainda as estratégias desenvolvidas pelos hackers para bloquear aquilo que segue um fluxo obrigatério e, por outro lado, desbloquear o que esta fechado para deixar jorrar a onda de informagées censuradas. Filosofo e historiador da arte, Georges Didi-Huberman (1953) 6 professor da Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Desde os anos 1980, desenvolve em livros como O que vemos, 0 que ‘nos olha e Diante da imagem (ambos pela Editora 34), Atlas ou o gai saber inquieto e Remontagens do tempo sofrido (estes pela UrMG) uma reflexdo original sobre as relagdes entre arte e politica. ‘Os dois ensaios aqui publicados, “Esprit de révolte’ es vagues se forment et se propaguent” e “Torrents et barricades”, fazem parte de Désirer désobéir Ce qui nous souléve, r,publicado em 2019 pelas Editions de Minuit. Do autor, a serrate #13 publicom “Cascas”, ‘Tradugio de Marilia Garcia ‘Nascido em Nova York, Robert Longo (19353) éautor de obras que transitam por vérias linguagens, do cinema a performance, da escultura a pintura, Desde os anos 1980, notabilizou-se pelos dese hos realistas de grandes proporgdes, geralmente usando carvo, como nas séries Men n the Cities © Freud Cycle, das quaisa serrote #8 publicow alguns trabalhos, ¢ Monsters, aqui reunida em parte.

Você também pode gostar