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“atdlia’’: 0 Volkswagen da VP! que José Roberto Rezende reconheceu nas fotos dos jornais Desfazendo a trama Ex-militante reconhece 0 carro usado para explicar a morte do deputado Rubens Paiva A versio oficial do desaparecimento do deputado Rubens Paiva, dada pelo Ministério do Exército em’ sindicdncia ivulgada em 13 de fevereiro de 1971, de que ele foi seqiestrado ca mao do DO! por tum comando terrorista e desapareceu,teve sua credibilidade abalada pela segunda vez, nos iltimos quinze dias. Com o depo mento do ex-tenente médico Amil Lobo, ficou dificil imaginar Rubens Paiva, coberto de hematomas e com he- morragias internas, fugindo do banco de trds de um Volkswagen em meio a um ti- roteio, O ex-militante da Vanguarda Po- pular Revolucionaria (VPR) José Ro- berto Rezende, ouvido por ISTOE na se- mana passada, afirmou que 0 carro foto- grafado pelo Exército, identificado como Ge propriedade do DOI e que se teria in- cendiado durante 0 tiroteio no Alto da Boa Vista, era “Natdlia”, 0 Fusea que a VPR usara na libertago do embaixador alemdo Ehrenfried von Holleben, em 15 de junho de 1970, e que fora queimado, meses depois, pelo proprio Jose Roberto Rezende, em uma rua deserta do Horto, no Rio, bem antes da morte de Rubens Paiva. “Foi um impacto”, afirma Rezende, hoje com 41 anos e advogando em Belo Horizonte, “Eu ¢ Alfredo Syrkis estiva- mos conversando num bar da Zona Norte do Rio quando vimos *Natilia’ no 6 jornal. Nés dois logo reconhecemos o carro, inclusive por uma série de deta- thes, algumas batidas que ele tinha, A morte do Rubens Paiva pode ter sido por qualquer motivo, menos com a utiliza- gio da ‘Natilia’’ Seria impossivel.” Re zende também duvida da fuga de Ru- bens Paiva, da forma como foi relatada pelo Exército, “porque quando eles te le vavam para algum lugar era algemado e com talas nas pernas, feitas com faixas Lobo: ouviu falar da Rio-Santos de pano e pedagos de pau, para que nio se tivesse a menor chance de correr Durante 0 seqiiestro do embaixador alemao, conforme Alfredo Syrkis relatou no seu livro de memorias Os Carbonérios, a VPR teve muita. dificul dade em encontrar um carro para 0 mo: mento da libertacdo. Depois de uma longa espera, finalmente, o embaixador Yon Holleben foi levado no Fusca, com- prado em nome de Alex Polari,para a es- quina das ruas Bardo de Mesquita e De- putado Soares Filho, na Tijuca, a $00 metros do quartel da PE, onde estava instalado © DOL. Por varias vezes a organizagio pen- sara em se desfazer daquele carro, bati zado com o nome da namorada de Leon Trotski, “O velho Fusca azul devia ter sido abandonado ou destruido logo apés a entrega do embaixador, para evitar pis tas", contou José Roberto Rezende. “Primero pensamos em jogé-lo no mar, por um dos trechos da avenida Nie- meyer, mas isso poderia levantar suspei- tas. Entio decidimos abandoné-lo numa rua deserta e incendid-lo, para dar a im- pressio de que era um carro de trafican- te.” Rezende era coordenador de transporte da VPR e, por isso, foi encar- regado de sumir com o carro, Marcou encontro com Syrkis e Mauricio Gui therme da Silveira, outro militante que morreu logo depois, num bar da Zona Norte © veio dirigindo “Natilia” até a Zona Sul, seguido por outro carro que foi usado na fuga. “Entramos pela rua Jardim Botdnico e virei em uma rua de- serta que subia e terminava numa pe- quena praca, com morro de um lado e ri- banceira de outro. Mauricio parou a uns 200 metros de distincia. Eu apaguei os ISTO 17/9/1986 niimetos do chassi e do motor, deixei o tanque pela metade, 0 capo aber- to e jornais embebidos em dleo, inclu- sive no banco de tris, Fizemos uma trilha com gasolina no’ chao, tocamos fogo e fugimos no outro carro”, relem- bra José Roberto Rezende, que ainda viu as chamas iluminando a rua, mas no ouviu nenhuma explosdo, © grupo havia esquecido “Natalia”, acreditando que a policia “engolira” que era um carro de quadrilha, até que as fo- tos com a historia de Rubens Paiva fo- ram publicadas, “Nao tivemos divida nenhuma, Mas ndo tinhamos como contestar, como dizer que aquele carro nio poderia andar, Hoje posso vir a pt blico e dizer isso”, concluiu José Ro- berto Rezende. ‘Os caminhos que podem levar ao es- clarecimento da morte do deputado Ru- bens Paiva, porém, nem sempre trilham como as de Amilcar§ Lobo ou José Ro-8 berto Rezende. Ouf| ainda a clareza do de-§] poimento dado na Policia Federal, nai semana passada, pela professora Cecilia veiros de Castro, que afirmou ter visto 0 deputado em 20 de janeiro de 1971, “en- sangiientado, em dk alinho, com as mios amarradas ¢ 0s olhos esbugalhados”, quan: transferidos do quartel da 3* Zona Aérea para o DOL. Sere eae Se Rubend Paiva is Tjuca: cemitério clandestino vezes desaguaram ‘em dguas bastante turvas. Como a ver- sio oficial nunca chegasse a ser aceita, ha pelo menos trés outras versdes sobre © paradeiro da ossada do deputado: em algum ponto da Rio-Santos; no cemi- tério da Cacuia, na Ilha do Governador: eno Alto da Boa Vista. A rota da Rio-Santos, sido vasculhada em 1973, ids, j& havia ‘Lembro que naquele tempo ouvia falar que os corpos de presos politicos eram enterrados ali, quando a estrada estava em constru- 40”, confirmou_Amilear Lobo, na se- mana passada, De fato, naquele ano, dois eriinios, costelas e Outros ossos fo: ram encontfados no Recreio dos Ban- deirantes. O médico legista Jorge Fon- toura, ex-diretor do Setor de Radiologia do IML-RJ, examinou os ossos. “Havia eas’ a possibilidade de serem de Rubens Paiva, mas ndo fiz uma andlise deta- hada, Mesmo assim, percebi que havia uma fratura j4 consolidada no osso do tornozelo difeito", afirmou ele, ressal- vando que ndo péde fazer uma analise mais detalhada porque “as presso eram grandes e omaterial desaparece! Hoje, recuperar e analisar essas ossadas de paradeiro desconhecido é, segundo ele, uma tarefa “dificil, mas ndo impossi- vel”, ‘Outras vezes, porém, a procura dos res- tos mortais do deputado esbarrou em historias que, na verdade, nada mais eram que brincadeiras de mau gosto en- tre agentes do prprio aparelho repres- sivo. Como a que foi relatada em deta- Ihes por Fernando Gargalione, ex-chefe do Setor de Recursos Especiais da Se- cretaria de Seguranga do Rio, encarre- gado de agir em casos de seqiiestros e as- Rubens Patva, antes da cassagao Gargatione: ossadas de cachorro saltos a bancos. “Tudo comegou com uma brincadeira”, conta hoje o detetive inspetor Gargalione, 49 anos, 25 de poli- cia, que aproveita uma licenga médica para cuidar de seu sitio, criando porcos ¢ plantando milho. “O problema é que existia 0 capitio Ronald Leo, chefe do servigo secreto da PE, que era metido a sabichiio. A gente chegava com uma in- formacao e ele dizia que jd sabia de tudo. Uma noite encostou ali perto um carro e dois homens largaram uma coisa pare cida com um corpo. Um gaiato gritou: Vé ld, estdo largando 0 corpo do Ru- bens Paiva’. Nés corremos para o carro, gue arrancou, e achamos 0 corpo de um doberman. Resolvemos espalhar que era 0 Rubens Paiva, Peguei o cachorro e en- terrei na estrada da Vista Chinesa. No dia seguinte o Ledo quis saber onde es- tava o corpo do Rubens Paiva e cu 0 le- vei para outro local, que ele marcou com, gumas cascas de A. insélita historia que Gargalione atri- Zbui_a_uma_brinca deira, porém, deixa Bfuros. Numa época de intensa repressio, difcilmente alguém iria jogar um cio moro perto de uma unidade _policial Além disso, apesar de estar a menos de I quilometro de onde teria havido 0 encon- tro de Rubens Paiva com 0 grupo que 0 } resgatou, Gargalione J sb soube do fato muito tempo depois io ouviu tiros nem | foi acionado, apesar ‘4 equipe de fog. AS brinca- deiras de gosto duvi oso em tomo da morte de Rubens Paiva, porém, se ndo levam a uma conclusio no minimo consoladora para os familiares que 0 procuram hé quinze anos, indicam que enterrar presos politicos era um habito corriqueiro e sem nenhuma preo- cupagio quanto a problemas com futu- ras buscas provocados por conflitos de consciéncia, como o que atacou om dico Amilear Lobo. Ele acha que hoje impossivel descobrir 0 que realmente aconteceu a Rubens Paiva, mas o fato é (que, para que a brincadeira de Gargalione Livesse credibilidade, 0 local escolhido para enterrar a ossada do cachorro teria que Bo- zar de alguma fama sinistra entre 08 agen- tes da repressio. Apesar do siglo, as his- Arias sempre acabavam por circular de boca em boc a rs 4

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