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Lobo: “Eu queria falar, mas temia pela integridade de minha familia” TORTURA A memoria do porao Um ex-oficial do Exército rompe o siléncio e revela que Rubens Paiva foi assassinado na PE do Rio ove dias depois de 0 procurador-geral da Justica Militar, Francisco Leite Chaves, ter determinado a reabertura do ca- so Rubens Paiva e quinze anos apds 0 assas sinato do ex-deputado paulista, surgiu na sexta-feira da semana passada a primeira testemunha capaz. de provar que ele morreu, depois de ter sido brutalmente torturado, no ‘quartel da Policia do Exército, na Rua Ba- rio de Mesquita, no Rio de Janeiro. As 20h30 de sexta-feira, a menos de S00 metros do local onde mataram Paiva, 0 ex- segundo-tenente médico do Exército Amil- car Lobo, que servia no quartel da Bardo de Mesquita em 1971, contou o que viu & re- porter Marta Baptista, de VEJA. Seu depoi- mento € 0 primeiro, em 22 anos, no qual um oficial da maquina da repressao dos anos 70 narra sua experiéncia e assume a responsa- bilidade da narrativa. “AQUELE CARA MORREU” — Conta Amilcar Lobo: “Eu nio sei precisar o dia, mas foi no in cio de 1971. Eu dava 4 horas de servigo di rias no quartel da Policia do Exército. Fui chamado as 2 da manha para ir a0 quartel, ‘onde deveria atender um preso. Chamados desse tipo nao eram sistematicos, mas eram comuns. Quando cheguei a0 quartel fui A tltima cela do lado direito do 2 andar, na drea que se chamava presf- dio. Na cela, onde habitualmente fica. ‘vam cinco ou seis pessoa havia um §) - Sépreso, delado sobre uma cama, Sl Babars em Sunioet abdtasen baiggte Ele era uma equimose s6. Estava roxo da ponta dos cabelos & ponta dos pés. Ele havia sido torturado, mas, quando fui examiné-lo, verifiquei que seu abdémen estava endurecido, abdémen de tdbua, co- mo se fala em linguagem médica, Suspeitei que houvesse uma ruptura do figado ou do baco, pois elas provocam uma brutal he- morragia interna. Eu nunca havia presenciado um quadro desse tipo. Aquele homem Jevara uma surra ‘como eu nunca vira. Fiquei na cela com ele durante uns 15 minutos. Durante todo 0 tempo ele esteve deitado. Estava conscien- te, Nao gemia. Disse s6 duas palavras — Rubens Paiva Eu nunca havia ouvido esse nome, no sabia quem era. Ndo 0 esqueci porque a si- tuacdo em que ele estava me impressionou € também porque eu nunca sabia 0 nome dos pesos que atendia. Nunca tomava a iniciati- vva de perguntar quem eram, Comigo na cela havia ainda um oficial. Nao sei se era da PE ou do DOI-CODI. Eu aconselhei para que o preso fosse removido (© mais depressa possivel para um hospital Logo depois, saf. Como médico, eu nao ti- nha permissio para ficar ali no presiio. No dia seguinte, ou melhor, no mesmo dia, quando cheguei ao quartel um oficial me falou: — Olha, aquele cara morre. Eu ainda perguntei — Vocés chegaram a levé-lo para o hos- pital? —Nio, morreu aqui mesmo — foi a res- posta” “BOFETADA? FOI SURRA” — Durante quinze anos Lobo carregou em segredo a ce- nna que vira naquela noite na ‘‘Gltima cela do lado direito do 2.° andar’”. Hi algum tempo essa carga pesava. ““Cheguei mesmo a me aconselhiar com amigos, mas eles considera- ram a atitude prematura. Eu temia pela s de e pela integridade fisica de pessoas da minha familia. Ha uns dez dias, quando vi no telejomal da Globo que 0 caso Rubens Paiva ia ser reaberto, decidi que tinha surgi- do a oportunidade para falar. Estou pronto a dizer no inguérito 0 que acabo de The con- tar”, disse o ex-tenente & repérter. O testemunho de Amilcar Lobo abre duas ‘questées. Numa, atesta que 0 ex-deputado, cassado pela Junta Militar que tomou 0 po- der em 1964, foi assassinado no quartel da PE dias depois de sua prisio, quando of Ciais e agentes a servico da FAB levaram-no de sua casa, no Leblon. Durante quinze anos, a0 longo dos quais a viva, Eunice Paiva, tentou reconstituir as tiltimas. horas de vida de seu marido, chegou a circular a versio segundo a qual ele tivera um colapso cardiaco depois de levar um soco ou um golpe com 0 cano de uma arma. Lobo reba- te essa possibilidade: ““Bofetada? Foi uma surra como nunca vi” A segunda questo, na qual esté embuti- dda uma delingiiéncia que ultrapassa de mui- to.0 restrito espago das salas de quartéis on- de se torturavam € matavam presos politi- cos, comeca pouco depois da saida de Amil- car Lobo da “éltima cela do lado direito do 2. andar”. Quando Rubens Paiva morreu, sem ter sido hoxpitalizado, como o médico recomendara, oficiais da PE ¢ do DOI ini- ciaram uma fraude que sobrevive até hoje sumindo com 0 cadaver. Lobo ndo sabe 0 que foi feito com 0 corpo ¢ as investigagdes da imprensa e da familia de Rubens Paiva nunca foram além de duas hipsteses vagas. ‘Numa, teria sido enterrado com nome falso num cemitério de subtrbio, Noutra teria si- do embarcado num avido da FAB e atirado no oceano. “VI AQUILO E VOMITET” — Para encobrir © assassinato e desaparecimento do cadé- ver, oficiais do Exército que serviam no DOI montaram uma farsa segundo a qual Paiva, a0 ser transportado num Volkswa- gen, foi seqiestrado por terroristas. numa simuosa estrada das montanhas cariocas. Es- sa versdo foi chancelada pelo comando do I Exército e pelo Ministério da Guerra. Além de fraudulenta, a histéria era tola, pois par- tia da premissa de que Paiva, com quase 100 quilos, seria capaz de sair do banco de trés de um Volks ocupado por militares ar- ‘mados e, no meio de um tiroteio, chegar a0 carro de seus supostos seqiiestradores. Ago- ra, com o depoimento de Lobo, verifica-se que ele, prostrado na cama com o abxlémen amebentado, mal conseguia balbuciar seu préprio nome. Patrocinada pelo I Exército ¢ sancionada pelo préprio ministro, essa fraude resistiu por quinze anos, amparada ora pela censura 2 imprensa ora por intervengdes como a do ex-ministro da Justiga, Alfredo Buzaid, que impediu a discusso do caso no Conselho dos Diretos Humanos, ou ainda por detalhes juridicos como 0s utilizados ha tum ano para se impedir a reabertura do caso no Superior Tribunal Militar. O depoimento de Lobo, ue 56 a Justica poderd avaliar na sua corre- 1a profundidade, ndo significa apenas 0 es- clarecimento definitivo do que sucedew a Rubens Paiva nos seus siltimos momentos de vida no quartel da Policia do Exércto. Ele € também o primeiro caso de um cida- dio que, tendo participado da méquina de repressio, resolve falar & Histéria, ‘Nas maos do procurador-geral Leite C1 ves, 0 depoimento de Amilcar Lobo poderd dar a0 caso Rubens Paiva dois cursos. Num, provével, terd um desfecho semelhante 20 da morte do jomalista Vladimir Herzog, as- A trajetéria subterrinea do médico psiquiatra Amilcar Lobo, que 0 levou de um consult6rio convencional para as dependéncias da Policia do Exérci- to, no Rio de Janeiro, é a historia de um envolvimento numa matha crimi- nosa ¢ de um sentimento de impotén- cia para escapar dessa rede em que se meteu. Lobo formou-se em Medicina em 1969, passou por um perfodo de formagao na Sociedade Psicanalitica do Rio de Janeiro e, em seguida, Lobo (set apresentou-se para servir 0 Exército. Escapara ao recrutamento as 18 anos, com base numa norma que auto- riza estudantes a prestar servigo mili- tar depois de formados, como estagid- rios, "*No quartel da Policia do Exér- cito, na Tijuca, trabalhavam dois ou- tros médicos””, lembra. “"Nés trés éra- mos chamados rotineiramente para atender ali a casos como o de Rubens Paiva.”” Como atuasse entre tortura- dores, adequou-se as normas vigentes no circuito. Era chamado, nos pordes da repressio, de “doutor Carneiro” Por tés vezes tentou dar baixa, conforme relata, sempre sem sucesso. “'Seu requerimento esté na sexta se- a0”, avisou-lhe um coronel depois do iltimo pedido de baixa. ‘Mas 0 Exér- cito 86 tem cinco segdes", estranhou Lobo. ““A sexta segao € a cesta do li- xo", cortou o militar. Acabou ficando ‘por quatro anos, durante os quais aten- deu a torturados em jornadas de traba- tho marcadas, de um lado, pela agonia das vitimas e, de outro, pela ferocida- de dos algozes. Finalmente, em 1974, desligado da patente de segundo-te~ nente, estava de volta a psicandlise, ‘num consultério da Avenida Nossa Se- nhora de Copacabana. Doutor Camei- ro, na pele do doutor Lobo, clinicou sem problemas até fins dos anos 70, quando seu nome comegou a surgi em listas de torturadores. ‘*Participei de um quadro de torturadores, mas nunca torturei”’, garante 0 médico. Reconhecido por ex-presos politi- cos que com ele tiveram contato nos pores do regime, Lobo acabou por se ver, em fevereiro de 1981, na cons- ‘constrangedor encontro de 1981 com ex-presos politicos trangedora situago de um psicanalista que em seu consultério tem de expli- car 0 proprio passado a antigos pa- cientes. Lideradas por Inés Etienne Romeu, presa de 1971 a 1979 por ter participado do sequestro do embaixa- dor alemio Ehrenfried Holleben, quinze pessoas invadiram 0 consult6- io de Lobo e exigiram explicagées. “Foi um tumulto”’, lembra 0 médico. “0 senhor costurou minha cabeca a frio, sem anestesia", atacou 0 ex-ter- rorista Cid Queiroz Benjamin, “E preciso acrescentar’’, dizia Lobo na semana passada, “que 0 rapaz havia me implorado de joelhos para que eu no usasse anestesia, com medo de que injetassem alguma coisa nele. E eu fiz porque sabia que, sem aneste- sia, aquela operacdo nao ia doer tanto assim."” Durante quinze anos 0 pro- bblema de Lobo foi com sua conscién- cia e com a ética médica do por agentes do DOI do Il Exér- 1975. A Justica Federal responsa: bilizou a Unido pela morte de Herzog e 0 caso esté hoje & espera de julgamento no Tribunal Federal de Recursos. Nesse ca so, Eunice Paiva e os filhos do ex-deputa do, entre os quais esté o escritor Marcelo Rubens Paiva, receberdo apenas 0 reco- nhecimento da responsabilidade do gover- no no crime, Noutro curso, possivel, os assassinos de Rubens Paiva cairam na ma que montaram para escondé ver e, com ele, o crime. Esses oficiais ma- taram um preso, forjaram um seqiiestro sumiram com um cadaver e, através do Centro de Informagées do Exército, que coordenava os DOls, levaram a propria instituigdo militar a fazer circular no Judi- cidrio uma histéria mentirosa Eu fui designado para o quartel da PE em 1970. Quando tive meu primeiro con tato com um preso torturado, cai numa crise histérica. Era um senhor de uns 60 estava no cho. Eu cheguei para atendé-lo ¢ 0 oficial que estava com ele disse: “Eu ndo sei por que voce veio exa ming-lo. Ele esté muito bem. Antes de vo @ olhd-lo, vamos fazer um teste’. Ele co- Jocou uma espécie de luva de metal e deu um soco nas costas do senhor que nao sei como nao o matou. ‘Esté vendo”, disse me 0 oficial, mandando-me embora. Eu sai da sala e vomitei. Com o tempo a gen te vai se adaptando a essas situagées e no tem um quadro assim sério, mas fo ram anos de tortura para mim. a 0 cada. Buzaid: protetor do porao af Chaves: ordem para apurar Para os dissidentes do regime, também. Lobo trabalhava como médico na PE e era utilizado também para prestar servigos nu: ma casa que 0 DOI mantinha clandestina ‘mente em Petropolis onde eram colocados pesos que dificilmente escapavam da mor te, Nessa casa Lobo lembra-se de ter opera do a pema de uma terrorista, Inés Et Romeu, que mais tarde o reconheceu eo de- nunciou publicamente (veja quadro @ pag 45). L4, 0 ex-tenente conta que atendeu um rmisterioso caso de um esquizofrénico: "Era um jovem de uns 25 anos. Dizia que fazia 0 sol nascer. Era agente duplo, trabalhando com os subversivos ¢ com 0 Exército. Certo dia ele tinha um encontro com outro subver sivo, quando caiu em crise. Chamaram-me dizendo que devia curé-lo a tempo de levé to ao encontro. Expliquei que curar esquizo- frenia em horas é uma coisa um tanto quan- to dificil. Tive dois encontros com esse ra- paz. Depois disseram-me que ele foi morto pelo proprio Exército Num balango do poriio em que viveu, Lobo, que hoje esté no terceiro casamento, com trés filhos e vive numa propriedade no interior do Estado do Rio, ta que ““aquilo era um jogo doente, com pessoas cextremamente doentes"”. Ele esté pronto pa- ra contar 20 procurador Leite Chaves a cena que viu na “‘ltima cela do lado direito do 2." andar”. E faz isso sabendo que corre ris- cos: “Acho que a minha abertura ainda muito precoce, porque a situagdo do Brasil ainda nao estd definida’ Ao final da conversa, a repérter Marta Baptista perguntouthe: — O senhor acha que 0 inguétito ir até a apuracao final da verdade na morte de Ru- bens Paiva? Nio sei, respondeu Amilear Lobo, 0 ex-segundo-tenente médico do quartel da Policia do Exército. e YEIA TNE SETEMBRN 198A

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