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IDEIAS CAS O diva pelo avesso Numa assembléia apaixonada, os psicanalistas filiados & Sociedade Psi- canalitica do Rio de Janeiro (SPRJ} decidiram, na iltima tercafeira, 7, ‘manter-se em assembléia permanente até que apareca toda a verdade sobre 0 envolvimento do ex-candidato a psica- nalista Amilcar Lobo com a tortura nos anos 70. A assembléia foi polari- zada, de um lado, por Ledo Cabernite, ex-presidente da SPRJ ¢ ex-analista didata de Lobo; de outro, por Hélio Pellegrino, o primeiro psicanalista a denunciar Amilcar Lobo. Na reuniéo, Leo Cabernite nao poupou criticas é participagdo da imprensa nas questdes internas da instituigdo psicanalitica ‘A imprensa esté cheia de contradi- des”. argumentou. Pellegrino reagiu com veeméncia: "A imprensa pode ter suas contradigdes, mas a instituicdo psicanalitica também tem as_ suas” Neste artigo, Wilson de Lyra Chebabi, 54 anos, titular da SPRJ, mostra que 0 caso Lobo nao pode ser tratado mera- mente como um episédio policial, por- que 0 que ele pae em questao, de fato, @ prépria prética psicanalitica Hid uma tendéncia nos meios psicanali- ticos de considerar que a imprensa € um poder estranho aos meandros da institu Glo psicanalitica, A intromissdo da im- prensa nas questes que envolvem a psi- tanadlise seria sempre negativa. Ao con- tririo do que pensa a grande maioria dos ‘meus colegas, nio ereio que a revelagio do avesso.e dos bastidores do oficio de psicanalista prejudique mais os clientes Go que a existéncia de dramas que sd0 tecidos na obscuridade e que nio sio as sumidos. Ao contrério, o que vem a luz permite um ajuizamento muito mais ver- Gadeiro do processo analitico do que to- das as mitificagSes que tendem a se gerar em tomo dessa personagem: "0 analita”™ Esas mitificagdes levam o processo anal tico a regredir ao que se fazia antes da psi candlse: a hipnose. E na hipnose,e nfo na Psicanlise, ue a melhora que os pacientes (btém resulta da manutengfo de seus ane litas numa posicdo inacessivel e inquestio- nivel, quase diva, ‘O importante agora, diante do caso 16 ___Ocaso Amilcar Lobo nao pode ser tratado como mero episédio policial a ‘O autor Wilson de Lyra Chebabi, paraense, 54 anos, é psicanalista e titular da Soctedade Psicanaittica do Rio de Janetro Amilcar Lobo, é fugir das polarizagdes para tentar refletir sobre 0 que a pre- senca de um torturador nos quadros de uma instituigdo analitica representa para a psicanalise, Nao se pode levar & frente essa reflexdo sem um mergulho na histéria. O que retorna atrav desse episédio Amilear Lobo ¢ 0 re- calcado na histéria da psicandlise. Logo apés a II Guerra, um grupo de psiquiatras brasileiros interessados nas idéias de Freud convidou dois grandes psicanalistas europeus para uma tem- porada entre nés: o dr. Burke, analista inglés influenciado pelo pensamento pragmatico e pelas teorias de Melaine Klein; e o dr. Werner Kemper, da es- cola alema, formado na tradi¢ao filo- Séfica e das ciéncias humanas. Apesar do dr. Kemper ter sido o fundador da primeira escola, a Sociedade Psicanal tica do Rio de Janeiro (PRI), foi a ten- déncia inglesa que vingou, anos depois, rializada na Sociedade Brasileira de Paicandlise do Rio de Janeiro (SBPRJ). Os anos 60 assistiram ao apogeu da escola inglesa de psicandlise, a qual chegou a tratar as obras de Freud como uma reliquia histérica, que pre- cisava ser revisada a luz de'uma tée- nica que garantisse resultados priticos ¢ efetivos. Caracteristico deste sistema €o conceito de que a psicandlise trata unicamente da realidade interna, e os fatos do mundo cotidiano s4o sempre tratados como fantasias. Isso € peri- g080 porque tudo o que o analisando diz, € me desagrada, depde contra mim, desestabiliza a minha postura de sumo pontifice, eu posso interpretar na transferéncia como agressdo, como ataque a mim. A andlise fica, entio, reduzida ao setting analitico (relagao analista-analisando), € tudo se con- verte em condicionamento e doutr nagdo. Nesse sentido, os acontec mentos da propria instituigdo psica- nalitica podem ser ardilosamente ig- (STNG 1801001088 norados em favor da hegemonia de um poder, o poder dos encarregados pela transmissdo do saber psicanali chamados analistas didatas. ais propicio para a hip- nose do que a assim chamada anilise didatica. Estas andlises, que comegam jd com 0 objetivo de obter uma profis- so e seus honordrios corresponden- tes, algam o analista ao lugar transfe- rencial de “senhor da vida de seus pa- cientes”. Sob influéncia da escola in- glesa, a psicandlise tornou-se um tra- balho feito exclusivamente no aqui ¢ agora, Nao 4 toa que, nos argumen: tos que aparecem nos jornais, se fala dos “ataques”” psicanilise, ou'a umde seus representantes, A estratégia sim. pldria do bom éxito de uma “andlise” dessas costuma ser a expiacio e a puri ficagdo pelas “agressdes” cometidas contra o analista e contra a instituigao. Nada mais eficaz para atrofiar 0 pen- samento e a critica, Nada mais precisa ser estudado além da técnica, e tudo se ‘eduz a algumas formulas eficazes de levar as pessoas a se sentirem culpadas pelos seus questionamentos, Com isso se tem multiplicado as certezas ¢ os consumidores de psicanilise. Os fato- Fes politicos, as questdes epistemoldgi- cas, os determinantes histéricos po- 18 tico, dem ser esquecidos, ¢ uma enorme amnésia tem podido embalar analistas € pacientes num sono hipnotico e ma O proceso de “britanizagio” da psicandlise brasileira tomou’ conta com 0 boom dos anos 60, também da SPRJ, que passou a desejar o mesmo Prestigio e a mesma imagem de efi cigncia que a SBPRI tinha conse- guido. Acentuou-se, entdo, toda uma tendéneia a “esquecer” o acervo his- térico, filoséfico, sociolégico do le gado alemio. E 0 dr. Ledo Cabernite foi um destacado testa-de-ferro dessa ““modernizagiio” da sociedade fun- dada pelo dr. Kemper. Mas o destino do recalcado € retornar. Os conflitos entre 05 dois analistas estrangeiros que fizeram a formagao dos primeiros psi canalistas brasileiros voltam, mais uma ver, cena. Por que o dr. Hélio Pelle grino causa hoje tanto incémodo? Por. que ele representa a memoria daquilo Que a SPRI foi no passado e “esque Apesar de presencas como a do dr. Hélio, predominou na SPRJ ~ e é isso que 0 episédio Amilear Lobo pi em questo - uma visdo da psicandlise restrita a “realidade interna”, a0 setting analitico, & transferéncia, Nela hoje © mundo real é tratado como fantasia. Quando 0 paciente diz que foi tortu- rado, o importante para esse analista fascinado pela técnica é saber se o pa ciente esta vivendo a relagdo analitica como uma tortura - € ndo saber se houve tortura de fato. $6 uma psica nélise tomada pelo pragmatismo, que bane o real, pode analisar um tortura: dor, conduzi-lo pela via da analise di ditica, sem querer saber se de fato ele praticou ou ndo tortura O que estd em questo hoje, com 0 caso Amilear Lobo, nio ¢ a condena- Gio desse ou daquele psicanalista, mas Uma interrogagio profunda sobre a pratica psicanalitica. Diz-se que essa exposi¢ao do passado pode servir & re- sisténcia contra a psicandlise. Mas 0 que € psicandlise sendo expor-se a re- visio de seus préprios esquemas de so: brevivéncia? Nao pode, portanto, ha ver psicanalise sem resisténcia. A’ pri- meira reacio natural de quem comeca uma andlise é ter medo de morrer e de enlouquecer, Quem & que pode analisar-se sem resistit? Essa_espe- ranga de que diminuam as resisténcias psicandlise é uma esperanca que valida a propria psicandlise, ¢ a pre- tensdo de que a andlise deixe de ser anilise a ISTOE 15/10/1986

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