Você está na página 1de 58
PROVIDENCIAS DE UM CRriTICO LITERARIO NA PERIFERIA DO CAPITALISMO Paulo Eduardo Arantes Ent, em sintese, 0 tema ¢ este: quais as providéncias que toma um escritor na periferia do capitalismo, num lugar adverso, digamos, para se tornar um romancista de mesma importéincia que os maiores de sew tempo. Roberto Schwarz, entrevista a0 JORNAL DO BRASIL, 17/6/1989 Saivo em casos flagrantes de auto-engano deliberado, todo intelectual brasileiro minimamente atento as singularida- des de um quadro social que lhe rouba o félego especulativo sabe 0 quanto pesa a auséncia de linhas evolutivas mais ou menos continuas a que se costuma dar 0 nome de formagio." Que se trata de verdadeira obsessao nacional dé testemunho a insistente recorréncia do termo nos principais titulos da en- satstica de explicagao do caso brasileiro: Formagéio do Brasil con- temporéineo; Formagao politica do Brasil; Formagao econémica do Brasil; Formagito do patronato politico brasileiro etc. — sem con- tar que a mesma palavra emblematica designa igualmente o assunto real dos cldssicos que nao a trazem enfatizada no titulo, como Casa-grande e senzala e Raizes do Brasil. Tamanha proli- feracio de expressdes, titulos ¢ subtitulos aparentados” nao se pode deixar de encarar como a cifra de uma experiéncia inte- lectual basica, em linhas gerais mais ou menos a seguinte: na forma de grandes esquemas interpretativos em que se regis- tram tendéncias reais na sociedade, tendéncias as voltas, nao iT SENTIDO DA FORMACAO, obstante, com uma espécie de atrofia congénita que teima em abortd-las, apanhava-se naquele corpus de ensaios sobretudo o propdsito coletivo de dotar o meio gelatinoso de uma ossatu- ra moderna que lhe sustentasse a evolugao. Noc4o a um tem- po descritiva e normativa, compreende-se além do mais que o horizonte descortinado pela idéia de formagao corresse na di- recao do ideal europeu de civilizagao relativamente integrada — ponto de fuga de todo espirito brasileiro bem formado. Quando em 1959 Antonio Candido finalmente publicou a Formagio da literatura brasileira — caja concepgio original remonta a segunda metade dos anos 40 —, nao houve duvi- das quanto ao lugar que lhe cabia na estante, exatamente ao lado das obras classicas de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr., como ainda recentemente recordou Roberto Schwarz: 4 maneira daqueles mestres do ensaio de interpretagao do Brasil, que haviam repassado a génese de nos- sos irregulares padr6es de sociabilidade e vida econémica, An- tonio Candido, identificando dinamismos especificos da vida cultural brasileira, expunha a constituigao de uma tradi¢ao li- terdria nacional relativamente estavel.* Caberia entdo rever as implicagées daquele estudo verdadeiramente fundador & luz do seu trago fisionémico mais saliente ¢ original, uma certa idéia de formagio, por assim dizer, transcorrida em familia. Ao reconstituir a “histéria dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura”, adotando, alids, com mal disfargada porém nem sempre bem compreendida ironia, o ponto de vista dos nossos primeiros romanticos, “velha concepgao cheia de equi- vocos”, que mesmo assim achara interessante experimentar, An- 12 PROVIDENCIAS DE UM CRITICO LITERARIO tonio Candido parecia sem duvida se alinhar — por historia interposta de um desejo que de fato existiu — com essa aspi- ragao coletiva de construgao nacional. Com uma diferenga cru- cial, ligeira dissondncia a ser resolvida, para a qual o mesmo Roberto Schwarz me chamou a atengio certa vez. Se entendi bem, formularia o problema como segue. Ocorre que, tendo se restringido a formagao de um siste- ma cultural que se completara j4 no século passado, com a entrada em cena de Machado de Assis, 0 autor da Formagio da literatura brasileira nao precisou associar a fortuna do juizo critico acerca daquela linha evolutiva ao sucesso histérico das expectativas sociais que sempre acompanharam as anatomias classicas da malformagao brasileira. Tirante o modernismo retro- verso do primeiro Gilberto Freyre, de costas para o horizonte prdximo do pais real, sabe-se que tais prognésticos favordveis falharam em toda linha: ao invés de extirpd-la, a modernizagio do pais agravou ainda mais a dependéncia herdada do comple- xo colonial. Numa palavra, o Brasil nao dera certo, ia mesmo muito mal, porém sem comprometer a Formagdo de Antonio Candido, pois nosso sistema literario ndo sé se formara como até funcionava razoavelmente bem. Vantagens de uma dimen- sao que goza de relativa independéncia? Sem duivida, e por isso mesmo pats errado e cultura viva podem até certo ponto conviver sem danos muituos irreparaveis. Mas a duvida retorna quando notamos que a realizagao do desejo dos brasileiros de ter uma literatura, caso esta nao se resuma a mais um melho- ramento da vida moderna, em principio nao poderia dispensar inteiramente o desenlace positivo do processo material de for- magao nacional, a que bem ou mal atrelara seu destino — 13 SENTIDO DA FORMAGAO. sendo por certo ébvia para Antonio Candido a continuidade social do vinculo das letras, estreitado pela progressiva articu- lagao do sistema. Se nao for presumir demais, 0 Sentido da Formagéo — obra, ideal e nd social objetivo — emergira em grande parte desse balango. DESCONHECEMOS O SILOGISMO OCIDENTAL Falta-nos um certo aprumo, um certo método de espirito, uma certa ligica. Desconhecemos o silogismo ocidental [...] As melhores idéias, por falta de razao e seguimento, ficam paralisadas em nossos cérebros. ‘Tehadaaev, CARTA FILOSOFICA, 1836. Vem de longe esse sentimento acabrunhador da posig4o em falso de tudo o que concerne @ cultura brasileira, a bem dizer tem a idade de nossa vida mental e com ela se confunde — bem como as metamorfoses do desejo sempre renovado de corrigi-la mediante alguma sublimagao descalibrada. Mas nao sera preciso remontar a dupla fidelidade dos Arcades — nao por acaso identificada e estudada por Antonio Candido —, nem referir a instabilidade de Nabuco — sentimento brasilei- ro, imaginagéo europ¢ia —, que, ao anunciarem a “dialética rarefeita entre o nao-ser ¢ o ser-outro” na qual Paulo Emilio reconheceré a ldgica infeliz da “penosa construgao de ndés mes- mos”, atestam pelo menos a permanéncia variada da sensagao de vida intelectual prejudicada, no caso, justamente pela au- séncia da forga formativa que lhe assegure alguma fibra diante das inevitaveis flutuagdes do malfadado influxo externo, até segunda ordem, predominante. 14 PROVIDENCIAS DE UM CRITICO LITERARIO Basta recuar até o decénio de 70 do século passado, quan- do o famoso “bando de idé¢ias novas” se abateu sobre o pais, prometendo redengao social a golpes de espfrito cientifico ins- tantaneo, para encontrar precisamente no aceleradissimo Sil- vio Romero — sempre com a novissima geragéo — o primei- ro registro por extenso do nosso problema, tingido é certo pelo destempero caracteristico do critico. Assim, num trecho de 1878, ressalta com nitidez o ideal de formag4o enquanto vida cultural coletivamente encadeada, mas sobre o fundo fal- so de uma inversao final de perspectivas. Na histéria do desenvolvimento espiritual do Brasil hé uma Jacuna a considerar: a falta de seriag4o nas idéias, a auséncia de uma genética. Por outros termos: um autor nao procede de outro; um sistema nao é conseqiiéncia de algum que o precedeu. E uma verda- de afirmar que nao temos tradigdes intelectuais no rigoroso sentido. Na histéria espiritual das nagdes cultas cada fendmeno de hoje € um iltimo elo de uma cadeia; a evolucdo é uma lei [...] Neste pais, a0 contrério, os fendmenos mentais seguem outra marcha; o espitito » nao estd ainda criado € muito menos 0 espfrito cientifico. A leitura de um escritor estrangeiro, a predilecio por um livro de fora vem decidir da natureza das opinides de um autor entre nés.* A nota picante estd na velocidade com que o préprio autor dessas linhas clarividentes experimentou todas as esco- las, desbancando hoje a doutrina venerada na véspera. Sendo extranacional a fonte onde se nutriam — prosseguia Silvio Romero —, nenhum lago prende os autores uns aos outros, talvez nem mesmo se conhegam e por certo, assim como as cogitages isoladas de cada um nao descendem umas das ou- tras, nenhum aproveita do antecessor. S40 anomalias do espi- 15 SENTIDO DA FORMAGAO, rito nacional recenseadas apenas para melhor encarecer a condi- ¢4o excepcional de um Tobias Barreto, “fildsofo” entre outras tantas veleidades exercidas com talento e despropdsito, mas nem por isso deixavam de compor um quadro mais amplo dos constrangimentos que deprimiam o homem culto, forgosa ¢ ambiguamente solidario dos “povos sistematicamente atrasados, como 0 nosso”. Deste lado do mundo, curiosidades intelectuais avulsas, sem passado nem futuro, do outro, a “continuagio progressiva” que plasma uma tradigdo: sendo alema a mania do momento, na musica Silvio lembrava que Haydn, Mozart ¢ Beethoven sucediam-se por necessidade do desenvolvimento da arte de compor, assim como no plano da evolugio filos6fi- ca Fichte safra de Kant como Hegel de Schelling etc. Porém, a boa observagao seguia o inevitavel disparate. Nada disso con- figurava um prejuizo, antes uma vantagem. Mas nao um gol- pe de vista novo propiciado por alguma reviravolta do desen- volvimento desigual que nos atribuira um lugar de segunda classe na ordem moderna, mas uma bem-vinda excegao a “lei da agio do meio social”, que no caso era atrasado e sufocante: atropelada a tradi¢ao local, tolhida na sua formagao, os “espi- ritos vivazes” das nag6es toscas € preteridas pelo espirito do mundo, nao se sabe como dando as costas para os “patrios prejuizos” que os oprimiam, poderiam enfim “algar a fronte acima do amesquinhamento geral”, deixando-se entao arreba- tar pelo cosmopolitismo contempordneo. Portanto, um lugar ao sol para si mesmo e para Tobias Barreto. Assegurado, no entanto, as avessas, anulando o vislumbre do problema da mal- formagao nacional: ao invés da desejada organizagao do influ- 16 PROVIDENCIAS DE UM CRITICO LITERARIO xo interno, penhor de autonomia mental, a fuga para a frente, 0 propésito descabido de emancipar-se “sob a tutela” das no- vas idéias, entretanto revogadas nem bem desembarcadas. Acres- ce que, a consciéncia confusa ¢ intermitente do nosso mal su- perior, Silvio Romero também juntou a percepgao de que a falta de “seriagao nas idéias” — noutras palavras, a auséncia de vida cultural organica — devia-se de fato a uma espécie de indiferenciagao social de fundo. Assim como ainda nao havia- mos conseguido “formar [grifo meu] um povo devidamente organizado”, assim como nos faltava o “encadeamento das clas- es”, as cogitages de nossos “espititos vivazes” acabavam se tornando apenas “folhas perdidas no torvelinho de nossa indi- ferenga” — sendo “indiferenca”, ou “indiferentismo”, uma ou- tra expressio de época para designar a sindrome em questo, para a qual se buscava remédio no ideal cumulativo de forma- ¢40, formag4o a um tempo mental e social. Quem contribuis- se para ordenar a primeira também ajudava na construgao da segunda. Essa a 6ptica — nao ¢ dificil adivinhar —, alias, pe- dida pelo objeto, “imagem nervosa do pats”, da justiga que Antonio Candido far4 aos graves erros de julgamento literdrio cometidos por Silvio Romero: “ele tinha a desconfianga per- manente dos que s6 aceitam a palavra literdria quando justifi- cada por um empenho ético, religioso, politico ou disfargado de outra coisa: ciéncia, filosofia, sociologia. Mas quem sabe isso foi até certo ponto condicio para ele compreender tao bem a literatura como fato social e, no caso brasileiro, 0 sew papel na formagio da consciéncia do pais?” (grifo meu).° Em suma, num ambiente social “amorfo e dissolvido”, para falar como o 17 ——— SENTIDO DA FORMACGAO, Tobias Barreto do Discurso em mangas de camisa, tudo conspi- rava para o desinimo dos esp{ritos, uma espécie de enerva- mento ressentido por todos, um convite ao veleitarismo, deriva da curiosidade bruxuleante, tao desfibrada quanto era “mole, ex- cessivamente plastica e diictil” a matéria de um corpo social desconforme. A auséncia da formagao, de que tanto carecia- mos, de fato roubava-nos o félego em todos os sentidos, inclusive no mais drdstico deles, assinalado pelo mesmo Silvio Romero: “o trabalho intelectual no Brasil é um martirio: por isso pouco produ- zimos: cedo nos cansamos, envelhecemos € morremos depressa”.” Quando os modernistas redescobriram o Brasil, passada a libertinagem do mundo sem culpa, da barafunda nacional festejada, reencontraram exposta a mesma fratura. Recém-inau- gurado o decénio construtivo de 30, Mario de Andrade logo atinava com 0 nome pelo qual atenderia o problema nos clas- sicos publicados a partir de entdo. “Nossa formagio nacional nao é natural, nao é espontanea, nao ¢, por assim dizer, légi- ca”, escrevia em 1931.° Eramos uma tal “imundicie de con- trastes” que os fenédmenos culturais, de tio desencontrados, proibiam qualquer sintese interpretativa, pois nada lhe corres- pondia na vida real do espfrito, ainda desconjuntada. Daf as providéncias que passaria a tomar — sendo o nosso problema um problema de formagéo —, no sentido coletivo do “alto nivelamento artesanal” da inteligéncia brasileira em processo de atualizagao acelerada. Balangos de época, poemas meditati- vos, programas de estudos ou instituigdes culturais bem pla- nejadas, tudo convergia, solicitado por uma “formagao” ainda mal resolvida, como parecia demonstrar 0 recomego moder- 18 PROVIDENCIAS DE UM CRITICO LITERARIO nista da capo. Entroncando na tradi¢ao ensaistica classica, An- tonio Candido nao sé respondia a um problema que de fato existira, como também poderia ajudar a desatar um né histdé- rico que ainda nao se desfizera. QUESTAO DE METODO Quando em 1989 a Formagéo da literatura brasileira com- pletou trinta anos, um grupo de ex-alunos ¢ antigos assisten- tes, aos quais se juntaram alguns admiradores avulsos daquela obra classica, reuniu-se na Universidade de Campinas para ou- vir Antonio Candido reconstituir, a pedidos, as circunstincias que o levaram 4 concepgio original do livro. Conforme ja lem- brara no “Prefacio” da primeira edigao, 0 livreiro e editor José de Barros Martins Ihe encomendara uma “histéria da literatu- ra brasileira, das origens aos nossos dias, em dois volumes breves, entre a divulgacao séria e o compéndio”, mas acabou recebendo, com dez anos de atraso, apenas o estudo de dois periodos, verdade que decisivos e apresentados em estreita so- lidariedade, a Arcddia e 0 romantismo. Para uma historia ge- ral, comegava muito tarde e terminava cedo demais — e, de fato, até hoje desconcerta muito leitor de boa-fé, sem falar na confusa teimosia de um ou outro tedrico mais prolixo. Em lugar do panorama esperado, as etapas da formagdo de um siste- ma literdrio no Brasil, percorridas, entretanto, através do exame exclusivo das obras. Estava armado um quadro interpretativo inédito, cujo entrelagamento singular de perspectiva histérica € juizo critico dirigiria os passos de uma gera¢ao (por enquan- 19 SENTIDO DA FORMACAO, to). Ficara no ar, todavia, a legitima curiosidade pelas razGes que ditaram tamanha alteragao no plano inicial do livro, afinal responsdvel por uma radical mudanga de rumo nos estudos liter4rios brasileiros. Contou entao Antonio Candido que a idéia de escrever uma Formagao sé lhe ocorreu depois de um bom tempo de muita anotacgao sem destino certo. Discreta- mente insatisfeito com o destempero dos antecessores, mesmo Os mais ilustres, que antepunham a resenhas histéricas conven- cionais introdugGes metodolégicas mirabolantes, ainda nao sa- bia bem o que pér no lugar. Como lidar com a literatura bra- sileira — “galho secundario da portuguesa, por sua vez ” — de uma arbusto de segunda ordem no jardim das Musas. maneira que satisfizesse inteiramente os requisitos de uma vi- sao histérica € os requisitos de uma visio estética, descartada a saida fécil porém equivocada de uma série de estudos criticos sem vinculo histérico estruturador? Decidida a virada do livro — que nao seria mais uma histdria da literatura brasileira, nem mesmo a maneira esquematica insuperdvel de um Thi- baudet —, passam-se os anos sem que Antonio Candido atine com a chave do quebra-cabega que estava montando. A certa altura — “nao me lembro bem quando nem como” — chegou enfim 4 conclus4o de que um critério interessante seria acom- panhar a articulagao das obras ¢ dos escritores, um campo histérico de influéncias artisticas cruzadas, ao longo do qual se poderia discernir a continuidade de uma tradiga4o, A seu ver dera finalmente com a idéia tedrica fundamental do livro, a de Sistema Literdrio, que exporia na “Introdugio”, prudentemen- te apresentada como dispensdvel, temendo com razao a con- eee 20 PROVIDENCIAS DE UM CRITICO LITERARIO trovérsia arrevesada ¢ bem brasileira do tipo doutrina-contra- doutrina, quando a forga discreta do método deveria irradiar apenas na andlise das obras em seu encadeamento histérico. O depoimento comemorativo trouxera a baila um pu- nhado de episddios significativos relacionados com os tateios do ensafsta estudioso do Brasil 4 procura de um ponto de vista. Passando adiante no balango de contribuicGes ¢ omissdes, depois de lastimar o titulo infeliz que despistava o leitor, An- tonio Candido acabaria, no entanto, deixando passar sem co- mentarios, quem sabe por julgd-lo decorréncia natural do que dissera a respeito da nogao de Sistema Literdrio, o ponto cru- cial daquela virada fundadora, a apropriagio original pelo racio- cinio literdrio da idéia de formagao. Nisso, pelo menos, o titulo do livro era exato. Mesmo assim nao cogitou de passar a or- dem do dia, no caso, aos momentos decisivos da formagao da Formagao. Preferiu, ao contrario, transforma-la numa questao de método, 0 que nao deixa de ser um achado, além do mais igualmente despistador. Ao distinguir entre manifestagoes literdrias avulsas — a cifra mesma da tenuidade brasileira — e literatura propriamente dita, encarada no livro como um sistema de obras ligadas por denominadores comuns que fazem dela um aspecto organico da civilizagao, um fato de cultura que nao surge pronto e aca- bado, antes se configura ao longo de um processo cumulative de articulagéo com a sociedade ¢ adensamento artistico, ao rever nesses termos a constituigdo de uma continuidade literdria no Brasil, Antonio Candido dava enfim forma metddica ao con- tetido basico da experiéncia intelectual brasileira. Mais exata- 21 SENTIDO DA FORMAGAO mente, pondo em evidéncia elementos da assim chamada for- magao nacional, que alimentavam as escolhas estéticas dos es- critores, acabava desentranhando do fato bruto, a que se resu- mia a referida formacao nacional, o fio condutor de uma outra linha de forga formativa, vir-a-ser de um sistema cultural que na sua trajetéria ia aos poucos convertendo surtos desgar- rados em vida literdria efetiva. O livro dava também um outro passo adiante, como a seu tempo veremos: aquela histéria de formagao, que refundia de alto a baixo a interpretacao de nos- so passado literdrio, incorporava-se em termos atuais a um processo intelectual formativo de multiplas dimensdes (do teatro ao cinema, passando pela teoria social — para dar uma idéia de sua abrangéncia), ao qual deu enfim formulagao defi- nitiva, sem duivida por mérito proprio do Autor que primeiro compreendeu o significado do lugar central ocupado pela lite- ratura na reconstrugdo mental do pafs. Noutros termos, cui- dando apenas de literatura, Antonio Candido deu com a equa- ¢a0 geral do problema da formagdo, um apenas que entre nds, durante muito tempo, foi tudo, ilustrando além do mais com matéria local o vinculo moderno entre Formagao e Representagao literdria da realidade. UM PRECURSOR Se ainda fosse necessdrio comprovar 0 modo pelo qual Antonio Candido extraiu o principio da Formagdo do movi- mento mesmo do seu material, reordenando os dados da ex- periéncia brasileira, um unico exemplo bastaria, proveniente, ee 2 PROVIDENCIAS DE UM CRITICO LITERARIO alids, da mesma constelacao em que vimos exposta por Silvio Romero a aspiracdo nacional por uma vida intelectual organi- zada: nos termos da reconstituigaéo empreendida por nosso Autor, a “vontade de fazer literatura brasileira”, definida por ‘a “continuidade ininterrupta de obras ¢ autores, cientes quase sempre de integrarem um processo de formagio literdria”. Na virada do século, pode-se dizer que José Verissimo, batendo na mesma tecla — nao se poderd falar de literatura brasileira na auséncia de um sistema vivo de obras, autores e publico —, e descontada a dose habitual de mal-entendidos quanto 4 real dimens4o das idiossincrasias nacionais, acabara entrevendo o ponto sensivel no qual nossa formagao girava em falso. Mas o que falta entao 4 nossa literatura? Mal formu- jada a pergunta, José Verissimo tomava o cuidado de lembrar que ela continuava “ramo da portuguesa”, ramo no qual se enxertaram outros elementos, “mas nao de modo que 4 pri- meira vista se nao perceba que é a mesma drvore apenas modi- ficada pela transplantagao a outros climas”. Como se sabe, An- tonio Candido aproveitou a deixa — “a nossa literatura é galho secundario da portuguesa...” —, mas para efeito de ducha fria, novamente para ressaltar ¢ prevenir outro vezo de malforma- Gio, a “falta do senso de proporgées”, muito familiarmente reconhecfvel nos que se nutrem apenas delas, sendo a portu- guesa por sua vez, como lembrado ato continuo, “arbusto de segunda ordem no jardim das Musas”. (Tratando-se de adver- téncia com enderego certo, compreende-se que tenha sido biso- nhamente acusado de plagiar José Verissimo, por sobre ser mau brasileiro, denegrindo de quebra as letras da antiga metrdpole.) 23 SENTIDO DA FORMAGAO, Passemos entao a resposta do “precursor” 4 pergunta por ele mesmo formulada: Esta nossa literatura que, como ramo da portuguesa, tem j4 perto de quatro séculos de existéncia, ndo possui a continuidade perfeita, a coesio, a unidade das grandes literaturas [...] Faltou-lhe sempre a comunicabilidade, isto é, os seus escritores [...] ficaram estranhos uns aos outros. E nao me refiro as comunicagées pessoais, de valor secundatio, sendo as intelectuais, estabelecidas pelas obras. As diver- sas influéncias que se podem notar em nossos mais notéveis movi- mentos literdrios sio todas exteriores [...] Como se diz em tatica militar, © contacto jamais se estabelece entre os escritores ou entre 0 seu pensamento. Esta falta de contacto continua ainda hoje [...] Fal- tou sempre 0 elemento transmissor, 0 mediador pléstico do pensa- mento nacional, um povo suficientemente culto [...] Na constituigéo de uma literatura 0 povo tem simultancamente um papel passivo ¢ ativo: é dele que parte ¢ é a ele que volta a inspiragio do poeta ou do 9 pensador, Como se vé, estamos a meio caminho da “seriagao nas idéias” reclamada por Silvio Romero a luz do modelo europeu de cultura integrada — alids, por ele mesmo alegremente des- respeitado na Ansia civilizadora de cumpri-lo —, ¢ da articula- ¢40 do sistema literdrio posta em perspectiva pela idéia de for- mag4o em Antonio Candido. Mesmo tropegando, ou, por outra, sobretudo quando es- correga, José Verissimo nao deixa de dar livre curso 4 obses- s4o com que perseguimos durante mais de século o ideal euro- peu de cultura orginica. Veja-se o que lhe ocorre a propdsito da “coesio”, apandgio das grandes literaturas. Silvio Romero, de tal modo oprimido pelo estado de arremedo permanente em ee ee PROVIDENCIAS DE UM CRETICO LITERARIO que viviamos, chegou a elogiar certa vez os bons tempos colo- niais em que a “habil politica da segregacao, afastando-nos dos estrangeiros, manteve-nos um certo espirito de coesa0” '° José Verissimo beira uma enormidade de mesmo calibre ao encare- cer, em nome das influéncias cruzadas que consolidam a “con- tinuidade perfeita” de uma literatura auto-suficiente, 0 perio- do romantico, a seu ver nosso tinico momento literdrio organico, por existir, selado pelo destino do pais novo ¢ independente, um nexo sentimental entre os escritores e “um publico simpa- tico, que instintivamente sentia na sua obra uma expressao dessa nacionalidade” Entre parénteses: pelo sim, pelo nao, nao custa lembrar que ao dizer certa vez que 0 escritor brasileiro se ha- bituara a produzir para “publicos simpaticos”, Antonio Candi- do tinha em vista justamente 0 efeito contrdério da comunica- bilidade desejada por Verissimo, a saber, o acanhamento daquela simpatia, rodeada por uma esmagadora maioria de iletrados cujo alheamento forgado repercutia na aprovacio incondicional da- queles publicos restritos, contaminados pela mesma indigén- cia cultural que acabou reduzindo as chances de produgio de uma literatura verdadeiramente complexa entre nds. Uma outra falha de formagao, alias, registrada no mesmo espirito das consi- derag6es anteriores por Mario de Andrade, quando, na Elegia de abril, queixava-se da inexisténcia na literatura brasileira de alguma obra em que pudéssemos “seguir uma linha de pensa- mento, muito menos a evolugéo de um corpo orginico de idéias”. Voltando a coesao de José Verissimo, unidade literaria que edifica na dupla acepgao brasileira do termo — tanto su- blimagao estética quanto construcao nacional —, o critico com- Se SENTIDO DA FORMAGAO. pletava o elogio do perfodo romantico observando que, passa- da aquela breve idade de ouro em termos de vida literdria, desnacionalizavamo-nos intelectualmente, 0 verniz cosmopo- lita da hora presente tornava impensdvel um sucesso literario como o da Moreninha. Tudo se passava como se a modern- izagao cultural do publico prejudicasse nossa evolugao literd- ria. Vale a pena reler a explicagao que o critico dava para o paradoxo que observava, quando mais nfo seja pela curiosa semelhanga com as reflexGes que inspirava a Paulo Emilio a situag4o colonial vivida pelo cinema brasileiro, uma harmonia perversa entre os produtores ¢ 0 publico dos filmes brasileiros que prolongavam a tradigao de espetdculos populares — “para ambos, cinema mesmo € o de fora, € outra coisa é aquilo que os primeiros fazem ¢ 0 segundo aprecia”. Veja-se entao o que dizia José Verissimo acerca da pré-histéria da mesma alienagao: Defeituosa ¢ falha, essa cultura foi ainda assim bastante para revelar ao publico ledor a inferioridade dos nossos escritores, nao mais con- trabalanceando esse sentimento pelo ardor patridtico do perfodo de formacao da nacionalidade. £, pois, a deficiéncia da cultura geral de todo o género, no Brasil, uma das falhas de nossa literatura. Nao fazendo sendo repetir servilmente o estrangeiro, sem nenhuma origi- nalidade de pensamento ¢ de forma, sem idéias proprias, com imen- sas lacunas de erudicao, ¢ ndo menores deficiéncias da instrugao co- mum hoje aos homens de mediana cultura nos paises que pretendemos imitar € seguir, nés ndo podemos competir diante dos nossos leitores com 0 gue eles de Id recebem em primeira mao, oferecendo-lhes um produto similar em segunda. Estava delineado o drama da Vera Cruz, prenunciada a dubia valorizacao da chanchada, e, se nado forgamos demais a 26 PROVIDENCIAS DE UM CRITICO LITERARIO nota, demarcado o futuro lugar do Cinema Novo no processo formativo de nossa cultura cinematografica. TRADIGAO E TALENTO INDIVIDUAL Tudo isso nao obstante, é voz corrente entre os discipu- los que a idéia de literatura como sistema em Antonio Candi- do est4 muito préxima da nogio de tradi¢ao em T. S. Eliot, segundo a qual, como é sabido, nao se pode apreciar devida- mente o significado de um escritor a nao ser por comparag4o € contraste, situando-o idealmente entre os autores mortos, de tal sorte que a ordem constituida pelos monumentos literarios se modificaria toda vez que entrasse em cena uma obra verda- deiramente nova." Nao serei eu a dizer que nao. E bem possi- vel que na sala de aula Antonio Candido tenha referido aquela versao célebre da presenga ativa do passado literdrio e da exis- téncia simultanea da literatura de um pats, para ilustragao di- datica e apoio do seu argumento em favor do ponto de vista da “formagao”. Mas essa ultima, que € antes de tudo um pro- cesso, evaporaria nas maos de Eliot, cuja visio é cordata e afirmativa. Sob o aspecto da exigéncia maxima, pois se trata nada menos que de literatura universal apanhada no seu con- junto, ressalta a quase afabilidade mundana de um mestre-de- ceriménias que, para acolher um recém-chegado de mérito re- conhecido, muda a disposigao das personagens ilustres que ornamentam o pantedo das letras: no todo reajustado, reina sempre a harmonia entre o antigo e o novo. A continuidade nunca € de problemas, nem se constréi dando forma aos im- passes histdricos a que se referem — a tradi¢ao é sempre ines- 27 SENTIDO DA FORMAGAO pecffica e de universalidade maxima. E verdade que a imagem de transmissio da tocha entre corredores, utilizada por Anto- nio Candido para evocar a tradigaéo viva sem a qual nao ha literatura como fenédmeno de civilizagdo, contribui para a im- pressao da convergéncia em questao. Seja como for, o mais provavel é que se tenha estendido a Antonio Candido uma observagio de Lucia Miguel-Pereira a respeito da publicagao das Memérias pdstumas de Bras Cubas, um acontecimento de tal modo decisivo no nosso panorama literdrio, exigindo a revisdo de valores, transformando por com- pleto a visao do passado bem como o juizo da atualidade pré- xima, que nao lhe ocorreu melhor maneira de realgar o imen- so alcance daquela irrup¢ao do que ajustd-la ao famoso paradigma de Eliot: “aplicando ao restrito patriménio das letras brasilei- ras a formula empregada num plano muito mais vasto pelo critico inglés, podemos dizer que o aparecimento do Bras Cu- bas modificou a ordem estabelecida: as posigGes de José de Alencar, de Manuel Anténio de Almeida, de Taunay, de Mace- do — até entao os grandes nomes da nossa ficg4o — tiveram que ser sensivelmente alteradas”.”” Convenhamos que a mera especificagao histérica j4 desmente a formula prestigiosa ao reduzi-la 4 sua unica dimensao formal — nisso tao indiscuttvel quanto inaproveitavel. Isso nao é tudo. Afastamo-nos ainda mais da chave apenas formal a que se resume a tradi¢gdo aco- Ihedora de Eliot, se considerarmos agora 0 angulo caracteristi- co segundo o qual Antonio Candido recapitulou aquela mesma redistribuiggo geral de posig6es provocada pelo aparecimento do segundo Machado, cuja maturagao consistiu num modo a 25 PROVIDENCIAS DE UM CRITICO LITERARIO peculiar de fixar e sublimar os achados modestos dos prede- cessores, como diz nosso Autor, numa das formulas definido- ras do sentido da Formacao. Como 0 livro também foi escrito para ser lido como uma introdugao ao estudo de Machado de Assis, cabe a citacao por extenso: Se voltarmos porém as vistas para Machado de Assis, veremos que este mestre admirvel se embebeu meticulosamente da obra dos pre- decessores. A sua linha evolutiva mostra 0 escritor altamente cons- ciente, que compreendeu o que havia de certo, de definitivo, na orienta- a0 de Macedo para a descricgao dos costumes, no realismo sadio ¢ colorido de Manuel AntOnio, na vocagao analitica de José de Alen- car. Ele pressupée a existéncia dos predecessores, ¢ esta € uma das razbes da sua grandeza: numa literatura em que, a cada geracao, os melhores comesam da capo ¢ s6 os medfocres continuam o pasado, ele aplicou 0 seu génio em assimilar, aprofundar, fecundar 0 que havia de certo nas experiéncias anteriores. Este ¢ 0 segredo da sua independéncia em relacio aos contemporincos curopeus, do seu alhea- mento as modas de Portugal ¢ Franca.’* Por onde se vé que o novo inquilino, ao contrario do que presumia Eliot, nao nasce feito, e é a sua “formagao” que alte- ra o sentido da tradicao. Vé-se também, por outro lado, que, mesmo com a férmula de Eliot muito presente, Antonio Can- dido ajustou-se antes de tudo pela lic¢ao de Silvio Romero ¢ José Verissimo, naturalmente revista ¢ corrigida, como se de- preende dessa reconstituigao da carreira de Machado de Assis, que finalmente cumpria o programa de continuidade cultural por canalizagao do influxo interno, ¢ correspondente despro- vincianizagao da consciéncia literdria, tragado pelos dois crit cos nas linhas tortas que se viram. Numa palavra, formado na 29 escola de Machado de Assis, de fato Antonio Candido apren- deu mesmo foi com as falhas de formag3o dos predecessores, cujos achados modestos também soube fixar e sublimar. Pode- ria entdo citar Eliot 4 vontade, quem sabe até para se fazer entender. FORMAGAO E DEPENDENCIA (I) Um estdgio fundamental na superagio da dependéncia é a capacidade de producir obras de primeira ordem, influenciadas, no por modelos estrangeivos imediatos, mas por exemplos nacionais anteriores. Isto significa o estabelecimento do que se poderia chamar um pouco mecanicamente de causalidade interna, que torna. inclusive mais fecundos os empréstimos tomudos ts outras culteras. Antonio Candido, LITERATURA E SUBDESENVOLVIMENTO Isso posto, nao serd demais afirmar que a meditagao so- bre a carreira exemplar de Machado de Assis terd sido decisiva para a virada que deu origem 4 composi¢ao original do livro. Poderemos tomé-la inclusive como um modelo reduzido da idéia de formagao, alids, em tudo o mais exato possivel, pois se trata da trajetéria intelectual bem-sucedida da parte de um escritor que soube cumpri-la a revelia do pas real: um caso muito peculiar de animo construtivo infatig4vel por tédio a controvérsia. Daremos entao mais um passo na demarcagéo de nosso assunto se acompanharmos por um momento o que diz Roberto Schwarz acerca dessa mesma carreira, lembrando de resto que os dois trechos citados hd pouco nao por acaso Ihe servem de mote e epigrafe para a ultima parte do ensaio sobre 0 segundo Machado." 30 ———— PROVIDENCIAS DE UM CRITICO LITERARIO Na recapitulagao que encerra o estudo em questio, desen- volvendo em nova chave o resumo de Machado delineado por Antonio Candido, a formagao que nos concerne vem delimitada no sentido mais tangivel de uma acumulagéo literdria realizada na mais ingrata das situagGes, pois afinal periferia ¢ envergadura intelectual nado costumam andar juntas. Como péde se formar um escritor de verdade em condigGes tao adversas? Esta a per- gunta que interessa a todos, enunciada e respondida por Ro- berto, sem exagero, pela primeira vez. Para comegar, passa a ordenar as providéncias tomadas por Machado de Assis no sen- tido de se tornar o primeiro escritor brasileiro a dispensar a simpatia que lhe seria devida por contribuir também, como seus acanhados antecessores, para a construgdo do novo pais. Nao posso decerto enumera-las todas nem por extenso, muito menos abordar de frente o nticleo em torno do qual gira o argumento, a transformacao, por imitagéo em profundidade de singularidades de nossa Idgica social, da materia literaria da primeira fase acomodaticia em procedimento narrativo, uma traigao de classe que no mesmo golpe conseguia conferir al- cance mundial, nao a generalidades catadas no lixo ideoldgico internacional, mas ao ponto de vista prejudicado da periferia. Numa palavra, um estudo enfim conclusivo da curva literdria ascendente de Machado de Assis veio revelar a “matriz prati- ca” — na qual se entroncam, se alteram e confirmam mutua- mente experiéncia social, material estético e esforgo de estru- turagao — da linha intelectual evolutiva a que estamos dando o nome de formagao, no caso, um arco abrangendo meio sé- culo de acertos e despropésitos da confusa consciéncia literd- oe SENTIDO DA FORMAGAO ‘ ria nacional. Para encurtar, digamos que a principal providén- cia formativa tomada por Machado de Assis — registrada por Antonio Candido ¢ explorada por Roberto Schwarz na dire- ¢4o assinalada — tenha sido a um tempo comparatista (por assim dizer) e cumulativa. Tratou assim, em primeiro lugar, de contornar os dilemas da dupla fidelidade nos quais sempre se debateu todo escritor brasileiro, por exemplo e principalmen- te: atualizar-se a ponto de perder de vista a implantagao local € girar no vazio como um europeu postigo, ou alinhar com a posigao em falso do pats, porém a unica real, e dar as costas ao mundo contemporaneo? Machado simplesmente submeteu & critica reciproca € sem resto os termos da comparagao, que, alids, sempre nos foi desfavordvel. Juntando os dois pdlos, re- lativizava-os € assim acabou mostrando que era possivel opi- nar sobre os grandes assuntos ao chamar pelo nome as contra- digdes locais, ao mesmo tempo em que especificava a hora histérica daqueles mesmos assuntos ditos universais. Encarada desse modo com independéncia a norma européia indescartd- vel, péde dar vez, sem a correspondente perda de tensao, a “causalidade interna”, tornando possivel 4 experiéncia intelec- tual brasileira finalmente formar-se, na acep¢ao especifica que se estd dando ao termo: pela primeira vez um escritor conse- guia escapar 4 danacao do recomeco solitario, 4 mercé das escolas literdrias sem continuidade com os resultados acumu- lados pela experimentagio literéria no pats, realgando-lhe in- clusive a dimensio coletiva da produgao. Ocorre ainda (para adiantar uma observagio a ser reto- mada adiante) que, ao tirar as devidas conseqiiéncias do rotei- 32 PROVIDENCIAS DE UM CRITICO LITERARIO ro tragado por Antonio Candido, reapresentando o problema da formagao como uma questdéo material de acumulagao da experiéncia intelectual nas condigées francamente proibitivas da dependéncia, Roberto Schwarz nao sé Ihe deu formulagao geral como indicou-lhe o horizonte no Brasil contemporaneo, © que a seu tempo Antonio Candido também fizera, e mais para a frente veremos como. Refiro entao a observagao am- pliada aos dias de hoje para devolver a idéia de formagao a sua dimens4o mais polémica. Estudando nao faz muito o atual eclipse da mais arraigada de nossas sensagGes, 0 permanente sentimento de inadequag4o que desde a origem vem alimen- tando o mal-estar definidor de nosso trato enviesado com as idéias, desafogo apoiado na énfase da dimensao internacional da cultura (tao mitolégica quanto a autarquia nacional de an- tes), Roberto volta a ponderar, como nos tempos da Forma- ao, Os estragos provocados pela pretericao do vinculo local, o fenédmeno familiar, porém nao por acaso negligenciado pelos ptincipais interessados, de que no Brasil a cada geragao a vida intelectual parece recomecar de zero. O que significa o desin- teresse pelo trabalho da geragdo anterior e o que se segue da conseqiiente descontinuidade da reflexao que o apetite des- controlado pela producao metropolitana recente traz consigo? Nao € preciso ser adepto da tradigéo, muito menos nacionalis- ta, responde Roberto Schwarz, para reconhecer os inconvenientes desta praxe, a que falta néo s6 a conviccao das teorias, logo trocadas, mas também de suas implicagdes menos préximas, de sua relagio com 0 movimento social conjunto, ¢ ao fim ¢ a0 cabo, da relevancia do préprio trabalho ¢ dos assuntos estudados. Percepgdes teses nottveis a respeito da cultura do pais 33 SENTIDO DA FORMAGAO, sao decapitadas periodicamente, ¢ problemas a muito custo identifi- cados € assumidos ficam sem o desdobramento que lhes poderia corresponder {...] Nao se trata da continuidade pela continuidade, mas da constituiggo de um campo de problemas reais, particulares, com inser¢do e duragdo histérica prdprias, que recolha as forcas em presenga ¢ solicite o paso adiante.'® Como se acabou de ver, foi assim com Machado de Assis, a0 qual nao faltou “informagao e abertura para a atualidade” e que, entretanto, soube “retomar criticamente ¢ em larga escala o tra- balho dos predecessores, entendido nao como peso morto, mas como elemento dinamico e irresolvido, subjacente as contradigdes contemporaneas”. Também € este 0 caso, mais proximo de nds, de Antonio Candido, como, alids, recorda o mesmo Roberto Schwarz. Desnecessdrio acrescentar que a id¢ia de Formacio re- tira sua forga justamente da pertindcia na constituicéo do campo de problemas referido linhas acima, que sua indole caracteristica se define pelo antidoto correndo na via contraria dos prejuizos causados pela mencionada preteri¢gao do influxo interno — para nos atermos ainda a terminologia especifica com que Roberto Schwarz nomeou de vez esses impasses atavicos. CAPITULO DAS PROVIDENCIAS Se tudo isso € fato, como acreditamos, poderemos dizer que o sentido da Formagao, exemplarmente estabelecido por Antonio Candido, especifica-se em primeiro lugar numa série de providéncias destinadas antes de tudo a ampliar a nogdo corrente de Critica. Mais exatamente, quem dispuser de ele- mentos para enumerar e coordenar um conjunto significativo 34 PROVIDENCIAS DE UM CRITICO LITERARIO delas, estara em condigGes de finalmente retragar a formagio da Formagéo, e tudo mais que dai segue no plano da organiza- ao da cultura num pais dependente. Nem de longe é 0 caso do autor da presente aproximacao. Como também se trata aqui de um Mestre na periferia do capitalismo, com o qual precisa- mos ¢ queremos aprender, nao custa arriscar algumas observa- Ges, no intuito de atinar com a natureza muito bem construi- da de um até hoje inigualado sexto sentido para tudo o que respeita a “formagio” de um intelectual na atmosfera opressiva do subdesenvolvimento, barreira afinal transposta na forma de problema e ponto de vista. Teovia pela porta dos fundos Ja topamos, alids, com um desses cuidados formativos em ato, por ocasiao da virada de concepgao que deu origem ao livro conclusivo que est4 nos servindo de apoio e referén- cia. O caminho critico que levava a histéria dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura era o mesmo que permitia contornar a mania metodoldgica nacional — e a recepgao tor- ta do livro confirmava 0 nosso mundo letrado desconforme, onde ainda se falava mais da maneira de fazer critica do que propriamente se cuidava de fazé-la. Retrocedendo a tese de 1945, O método critico de Silvio Romero, reencontraremos o pri- meiro grande exemplo da estratégia formativa discreta porém calculadamente adotada desde entao. Fazia alguns anos que Antonio Candido exercia a atividade de critico, e nao sé de literatura, primeiro na revista Clima, depois também nos ro- —— 35 SENTIDO DA FoRMAGAO, dapés semanais de dois jornais paulistanos. No passo seguinte, dado na forma de uma tese universitaria, embora oportuna- mente académico na composi¢a4o do argumento, procedia de fato a um primeiro balango da publicistica em curso, apanhan- do-a pelo ambito mais geral das relagGes entre configuragao estética ¢ processo social.'° Acompanharemos mais uma vez a ligdo de Roberto Schwarz: em lugar de debater a alternativa abstrata entre os estudos de contex- to€ de forma, diretamente nos termos da discussio ¢ da bibliografia internacional a respeito, Antonio Candido prefere colher 0 problema na sua feigao local, exposta nos impasses metodolégicos do predeces- sor. Deste angulo, a versdo universalista da questéo pareceria acadé- mica no mau sentido, deixando escapar os tépicos relevantes, sempre ligados a uma histéria particular. [...] Ao insistir na relevancia do trabalho de Silvio Romero, mas sem lhe desconhecer © aspecto re- barbativo, Antonio Candido assume como condi¢ao propria, que cum- pre reconhecer ¢ superar, 0 desequilibrio ¢ a precariedade de nossa heranga cultural. Para escrever a respeito, 0 critico desenvolve um estilo que combina a seriedade ¢ 0 senso amistoso do ridiculo, estilo que registra ¢ reequilibra nos termos devidos a importancia que tem para nés — nao hd como saltar por sobre a propria sombra — a nossa formacao cultural defeituosa.”” Reconhegamos nesse aproveitamento “moderno” dos acer- tos e desacertos da tradigao critica brasileira mais uma providén- cia formativa gue viria dar igualmente numa outra iniciativa de mesmo teor, a saber, 0 projeto de um conjunto de estudos sobre a critica literdria brasileira, planejado por Antonio Can- dido no Ambito da disciplina de teoria literaria da Universida- de de Sao Paulo, uma outra histéria dos brasileiros cultivados de, no seu desejo de ter uma critica literaria, também contri- ——— 36 PROVIDENCIAS DE UM CRITICO LITERARIO buir para formar a cultura nacional — e assim como havia lugar para o “substantivo e vulnerdvel” Silvio Romero, haveria igualmente para quantos “justos ¢ ingénuos” Nestor Vitor se pudessem apurar.’* Voltando. No preceito formativo segundo o qual se deve comegar colhendo um problema na sua feigao local, esta clara- mente pressuposta a convicca4o de que se pode alcangar a real universalidade do problema em questo (por isso mesmo sem- pre determinada) mediante o aprofundamento das sugestées locais, que sao parte da evolucéo mundial do conjunto. Como se ha de recordar, convicc4o pratica da prosa machadiana, apon- tada por Antonio Candido ¢ desenvolvida em termos préprios por Roberto Schwarz, nos quais englobou 0 nexo formativo de particularidade local e alcance geral articulado pelo autor da Formagao — lembremos, para retomar mais tarde esse pon- to capital, muito conhecido ¢ pouco estudado (salvo pelo mes- mo Roberto Schwarz que estamos acompanhando), que 0 pro- cesso formativo em questao foi exposto também como uma “sintese de tendéncias universalistas e particularistas”. Convic- ao na qual se exprime por sua vez o sentimento da ameaga do passo em falso que paira sobre todos, sentimento de impli- cagao que vimos ha pouco Roberto destacar na hora exata da sua primeira e€ muito indireta formulacgao (de acordo, alids, com a urbanidade intelectual do Autor) e evocado em mais de uma ocasido pelo préprio Antonio Candido, para governo dos compatriotas recalcitrantes. Por exemplo, quando em 1969, discutindo as relagGes entre literatura e subdesenvolvimento, relembra 0 quanto a pentria cultural caracteristica do nosso 37 ———— SENTIDO DA FORMAGAO “atraso” nao faz excegdes e de fato produz uma debilidade muito mais penetrante e insidiosa do que pensam nossos letrados bem envernizados. Estrear na Teoria entrando pela porta dos fundos, reven- do, no caso, o método critico de Silvio Romero, configurava entao um ato de independéncia, um modo de reavaliar posi- ¢Oes em contraponto com a prata da casa, e portanto a manei- ra mais produtiva de purgar a miragem que se viu, ilusdo com- pensatoria do brasileiro cultivado porém “deprimido pelos patrios prejuizos”. Em suma, como nao hd mesmo como saltar por sobre a propria sombra, melhor comegar estudando os atrope- los de um Brasil errado mas vivo (como Cruz Costa se referiu certa vez a figura desconjuntada de Tobias Barreto) do que bisonhamente reexportar poéticas confeccionadas com as so- bras de uma cultura de enclave, alids, remontadas reprisando justamente o lado mais desfrutavel do velho critico, do qual fazemos pouco simplesmente porque continuamos a substituir um decalque por outro. Podemos entao incluir nesse plano das providéncias formativas a notéria aversao de Antonio Can- dido pela Teoria, em particular pelo que no Brasil passa por teoria, a rigor tudo o que é acessério em literatura.!? Nosso Autor sempre alegou os acasos de um curso universitario ain- da sem grandes especializag6es, a ascendéncia de alguns pro- fessores que puxavam um pouco para o ensaismo, ou pelo menos no o censuravam, mais a primeira distribuigio de ta- refas na revista Clima, sem falar no senso da assim chamada realidade brasileira, despertado pelos modernistas, apurado pelas exigéncias do dia a partir de 30 e educado pela nova disciplina 90) caaeecuacaan PROVIDENCIAS DE UM CRITICO LITERARIO representada pela iniciacao nas ciéncias sociais propiciada pela recém-fundada Faculdade de Filosofia — fatores que o teriam confirmado de vez na vocagao exclusiva de critico. O que é fato, sem, contudo, anular o lado obliquamente polémico da mencionada alergia, uma deliberada quebra de énfase especu- lativa, uma inequivoca maneira de denunciar em tom menor um certo modo muito superlativo de dar aparéncia monu- mental a idéias inexistentes. Por isso, nunca temeu a teoria, temia apenas o ridiculo local de confundi-la com resenha bib- liografica (boa divulgacéo no melhor dos casos) e a habitual colcha de citagGes a esmo, no conjunto, involuntariamente pa- rédica. Nessa mesma linha é bom notar que as exposigGes ostensivamente “tedricas” do Autor costumam ter cunho dida- tico ou aparentado, no que também costuma ser exemplar, sobretudo por prevenir o impeto teorizante dos mais jovens. Ha sem diivida convicgGes em jogo nisso tudo (com perdio da lapalissada), porém dificeis de explicitar, além de configura- rem © tdpico basico (pela negativa) da plataforma de uma geragao, para nao falar em razGes intrinsecas quanto ao mo- mento histérico da convergéncia entre raciocinio estético € teo- ria social no Brasil. Seja como for, nao sera demais continuar sublinhando o viés formativo. Um exemplo. Quando a maré estruturalista inundava nos- sos departamentos de letras, Antonio Candido, como sempre em sala de aula, apresentava cordialmente 0 novo método, ao lado dos demais, antigos e recém-chegados a serem testados, de certo modo designando polidamente o lugar que lhe cabia entre as especialidades académicas, ao passo que reservava a 39 SENTIDO DA FORMAGAO sondagem da cultura viva a reflexdo auténoma do ensaio criti- co, do qual, por principio, estariam banidas questées de méto- do tratadas em separado. Nao que faltasse ao género praticado por Antonio Candido complexidade teérica, pelo contrario, porém raramente visivel a olho nu, salvo na excegao notavel do ensaio sobre 0 Cortigo, didaticamente apresentado como uma contribuicdo para o estudo das mediag6es na anilise lite- raria, € com razao considerado por muitos 0 momento mais alto da “teoria” literaria no Brasil. Se juntarmos a esse escrito 0 estudo sobre 0 Sargento de milicias (cujos pressupostos fo- ram analisados por Roberto Schwarz), depararemos a seguin- te situagao da “teoria”: mais uma vez colhida em sua feigdo local, a discussao é conduzida em surdina, culminando num retrato original do Brasil. Segundo Roberto Schwarz, os dois ensaios, de caso pensado ou nio, poderiam ser considerados os primeiros capitulos de uma histéria da representagao da realidade na literatura brasileira, tomando-se o tempo Darstel- lung na acep¢ao enriquecida que Ihe deu Auerbach, isto é, no sentido de exposi¢do, descoberta e apropriagao, ao qual nosso Autor teria acrescentado a fungio estruturadora da forma, pre- sente naturalmente no ambito da configuragao artistica, cuja generalidade se poderia, entretanto, alcangar gracas aquela mes- ma estruturagao atuante no sistema das mediagGes sociais, tram- polim paradoxal para a andlise interna, na medida em que tais mediagdes podem ser tratadas como se fossem categorias ex- plicativas desentranhadas da propria obra. Observemos por fim que este cendrio, no qual a “teoria” volta a fazer sentido na exata medida em que se constréi 0 alcance geral da rebaixada realidade 40 ————_ PROVIDENCIAS DE UM CRITICO LITERARIO brasileira, obedeceria inteiramente 4 ldgica da Formagao, a co- megar pelo seu trago mais saliente, a figuragdo paulatina de uma sociedade deprimida pela propria imagem. Formagiio da rotina Uma outra providéncia decisiva concerne a formagao da rotina. Com este titulo Antonio Candido consagrou-lhe um capitulo 'primoroso do livro, em que trata, nele e também nos dois seguintes, dos efeitos duradouros, por um perfodo que se estende de fins dos setecentos até a consagracao da sensibili- dade romntica, da aceitagao e consolidagao da disciplina arca- dica no gosto médio, em cuja esfera por certo se degrada, porém estabilizada com félego suficiente para sobreviver sécu- lo afora nao sé no ambito estagnado da subliteratura, mas na subconsciéncia dos bons autores, que deslizam para aquela vala comum sempre que a inspiragao lhes falece. Para nosso Autor, tal fase de estabelecimento da rotina importa, sob varios as- pectos, como ele mesmo o diz, em “sugestiva dubiedade”, que se pode igualmente resumir nos seguintes termos: “vista lite- rariamente, a formagao de uma rotina ¢ um descenso. No que interessa 0 conjunto do processo cultural, todavia, ela tem méri- tos”, € o menor deles nao foi certamente a constituigao dos “primeiros publicos regulares no pais e com eles um primeiro momento organico de vida literdria’”””, - Nio é€ dificil, portanto, atinar com a principal raz4o do aprego de Antonio Candido por momentos como este, cuja primeira manifestagao deve mos ao perfodo em questo. E que a consolidagio da media- nia que tal estabilizagao do gosto consagra, os habitos mentais eee SENTIDO DA FORMAGAO que num certo sentido cultiva e se tornam tradi¢ao, fazem da rotina um dos raros atalhos de que dispomos para alcangar algo semelhante a organicidade da cultura, até segunda ordem um ideal civilizatério que um coragéo bem posto nao pode desprezar. Uma comparagao ajudard a medir o alcance dessa valori- zagio da rotina, entendida como uma mediania de carater co- letivo, providencial no sentido da formagio. E possivel que tal compreensao, moderna e esclarecida, da rotina lhe tenha sido sugerida em parte pelo argumento sociolégico de Max Weber acerca da “rotinizacg4o” do carisma, ao qual se refere de passa- gem num balango das relagdes entre cultura e sociedade no decénio de 30, de cuja atmosfera de fervor estético-social nos- so Autor se considera produto e agora recapitula sob o signo formativo da rotina bem entendida, no seu aspecto de sociali- zag4o do gosto e equipamentos culturais afins, coletivizagao por certo muito restrita numa sociedade tao dividida e espo- liadora como a nossa. Quem viveu nos anos 30, recorda An- tonio Candido, sabe que eles representam “um eixo em torno do qual girou de certo modo a cultura brasileira, catalisando elementos dispersos para dispé-los numa configuracao nova”. Boa parte desses elementos — “aspiraces, inovagGes, pressen- timentos” — foram liberados no decénio anterior pelo degelo modernista. As novas condigées do perfodo que se abria sim- bolicamente com o movimento de outubro acabarao normali- zando, na acepgao sugerida acima, 0 gosto modernista, antes visto com desconfianga pela maioria da opiniao. Reconhega- mos entao nessa “rotinizacao” da cultura moderna a fisiono- mia familiar de um momento formativo. O que havia antes de 42 PROVIDENCIAS DE UM CRITICO LITERARIO 30? Fenédmenos avulsos, manifestagGes aparentemente arbitra- rias, desprovidas de necessidade real. Depois, 0 que parecia “folha morta no torvelinho da nossa indiferenga”, para voltar a falar como Silvio Romero, o que era pensamento de poucos foi se convertendo em estado de espirito coletivo.”" Onde ha- via dispersdo, achados decisivos e muita veleidade, a sombra de uma reviravolta social muito desigual nos seus efeitos (qua- se nulos, lembra Antonio Candido, se pensarmos no “povo pobre”, significativos, se pensarmos nas camadas intermedia- rias e nas chamadas elites, tendo-se em vista 0 estado de extre- ma privacao cultural do pais), uma nova rotina vai aos poucos integrando, unificando. Aproveitemos para assinalar de passa- gem a presenga da peculiaridade que distingue 0 raciocinio da Formagdo, tanto o livro quanto a concepgdo da marcha das idéias no Brasil, como apontado na introdugao do presente estudo: evidentemente sem nenhuma ilusao quanto ao arranjo oligdrquico em curso, servindo, contudo, de agente catalisador nao programado, Antonio Candido limita-se a anotar 0 novo passo na direcao do funcionamento da cultura moderna no pais. Acresce, todavia — para dar mais uma volta em nosso problema —, que datam precisamente desse entrecruzamento dos anos 30 os grandes ensaios de interpretacdo do caso brasi- leiro que constituem a familia da obra classica do Autor. Segundo escalito Antes de prosseguir no rol das providéncias, convém no- tar que uma rotina nao se forma se nao for tocada pelo talento médio. Deverfamos, portanto, incluir neste capitulo a notéria 43 SENTIDO DA FORMAGAO simpatia do Autor pelo segundo escalao, simpatia esclarecida na qual se revela o olho clinico para os meandros de um ciclo coletivo que nao se completaria sem o concurso decisivo dos menores, dos émulos descoloridos, dos epigonos vacilantes. Salvo engano, este 0 espirito que paira na galeria de pequenos estudos € retratos verdadeiramente notdveis expostos ao longo da Formagao. Passamos entao a reconhecer as virtudes media- nas de um Evaristo da Veiga, a0 mesmo tempo em que somos polidamente convidados a evitar o riso muito facil do moder- nista Alcdntara Machado diante de um Gongalves de Magalhies, sem divida modestissimo rastilho que se tomou por um co- meta, lembra nosso Autor, mas que de fato — é bom nao esquecer quando se cuida de organizar a cultura num pais tao mal-acabado como o Brasil — “durante pelo menos dez anos (foi a literatura brasileira”. Eis uma amostra desse espfrito da Formagio, no fundo também uma chamada 4 ordem de mes- mo teor que a estréia na Teoria pelo seu lado mais desfrutavel ¢ desconfortavelmente proximo — Silvio Romero —, contra- veneno para governo da aristocracia do nada descrita mais tar- de por Paulo Emilio. Bigodes venerdveis, cabelos arrumados, dculos de aro de ouro, pose de escritério. Homens de ordem e moderacao, medianos na maioria, que viviam paradoxalmente o inicio da grande aventura ro- mantica{...] Foi, portanto, um grupo respeitiével que conduziu o Ro- mantismo inicial para 0 conformismo, 0 decoro, a accitacéo piblica. Nada revolucionério de temperamento ou de intengo, além do mais sem qualquer eventual antagonismo por parte dos mais velhos, pou- cos ¢ decadentes, 0 seu principal trabalho foi oficializar a reforma, Amparados pelo Instituto Histdrico, instalados nas trés revistas mencio- nadas [Niterdi; Minerva Brasiliense; Guanabara), deram-lhe visibilidade, —— 4 PROVIDENCIAS DE UM CRITICO LITERARIO aproximando-a do piiblico € dos figurdes, aos quais se articularam em bem montadas cligues, nelas escudando a sua obra ¢ a sua pessoa. Era grande a comunidade de interesses entre os brasileiros cultos de toda idade ¢ orientagao, voltados para 0 progresso intelectual como forma de desdobramento da Independéncia. Por isso, toda produgio do espirito era bem-vinda ¢ a Minerva Brasiliense publica tanto as poesias de Dutra € Melo quanto as odes de Alves Branco; acolhe 0 poema tumular de Cadalso ¢ um impagével ditirambo de Montezuma. Sobre o terreno comum do nacionalismo, abragavam-se as boas vontades. Este o retrato da primeira geragao romantica — linha mé- dia da coabitagao brasileira de ‘Tempestade-e-impeto de unhas aparadas ¢ empenho patridtico em simbiose com a edificagao das familias. Contudo, sem a aplicagéo com que os menores entronizaram a reforma do gosto, nao se poderia compreen- der o primeiro grande exemplo de romantismo entre nds, a fusao de assunto, estilo e concepgao de vida realizada por Gon- galves Dias. Entre os mineiros ¢ 0 romantismo, um pequeno exército de escritores secundarios, representando, todavia, o seu papel, onde o gosto amornado serve de contrapeso a ma- nifestagGes que, extravasando o campo das belas-letras, reve- lam alguma ousadia, naqueles momentos de transi¢ao ¢ tran- sag4o, no ambito mais empenhado do jornalismo e do ensaio politico-social. Dai o paradoxo muito apreciado pelo Autor de uma Formagao ¢ que vem a ser o fato estranho de essas “gerag6- es esteticamente apagadas, rotineiras ou vacilantes, serem as mesmas que, no terreno politico ¢ cientifico, mostraram decisao ¢ senso atual da vida”.”? Noutras palavras, em tais fases de nor- malizagao dos passos isolados dos antecessores sio requeridos outros méritos, raramente encarados como tais, e do observador, uma certa largueza de espirito ainda muito mais rara (como esta- 45

Você também pode gostar