Você está na página 1de 106
Caio Fernando Abreu Triangulo das Aguas Noturnos 4 EDTORA NOVA FRONTERA © 1985 by Caio Fernando Abreu Direitos adguiridos para a Mngua portuguesa pela EDITORA NOVA FRONTEIRA §/A Rua Maria Angélica, 168 — Lagoa — CEP 22.461 — Tel. 286-7822 Endereso Telogrifica:, NEOFRONT Rio de Janeiro — RJ Revisto “Luis Aucusto Mesqurra ‘Mania'dB Farmica Binvoss PAULO. Contocaxo CIP-Brasil. Catalogagonafonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Abteu, Caio Fernando. AUst ‘Tringulo das dguas / Caio Fernando Abreu. — Rio de Janeiro + Nova Frontera, 1985, 1. Contos brasileiros I. Titulo CDD — 869.9501 85.0507 COU — 869.0(81)34 A meméria de Emma Costet de Mascheville (Dona Emy) que nos iniciou nas estrelas Para Jacqueline Cantore (Jackie) com quem viajei nas estrelas “At the end we preferred to travel at night, Sleeping in snatches, With the voices singing in our ears, saying That this was all folly.” (T. S. Eliot: Journey of the Magi) “0 amor, ah 0 amor: eu quero porque quero da vida, (Oswald de Andrade: A Morta) “Somos, todos nds, criaturas das estrelas e das suas forcas, elas nos fazem, nds as fazemos, somos parte de uma coreografia da qual, de modo nenhura, nunca, podemos pensar em nos separar.”” (Doris Lessing: Shikasta) SUMARIO Dodecaedro it O Marinheiro . 59 Pela Noite 0.0... cesses es eeeeeeeee eee 99 Remissivo, indice ............0ss0e eee 2i1 Dodecaedro (Possivel coreografia verbal para “KéIn Concert”, de Keith Jarrett) Para José Maria Carvalho e Ana Cristina Cesar “quando soltaram os cachorros loucos eu estava fazendo ché de ervas do campo e de repente o espanto tremendo a chaleira e bombeando medo larguei as ervas e danado precipitei-me a janela de onde vi enormes matilhas com olhos cheios de negra espuma @ espuma invadia a rua e abragava postes, que caiam cheios de dleo e néusea engolia as pessoas que alucinadas enchiam o ar de berros depois os cachorros foram embora eu voltei ao meu ché e ld fora a solidao e uma flor quase despercebida”” (Henrique do Valle: Uma Flor num Buraco de Caleada) “ * ” PRIMEIRO FRAGMENTO DA DECIMA TERCEIRA VOZ O tom, o problema é 0 tom. A tua mao esta débil. Parece que ndo ousas. Espera um pouco, certa pacién- cia, Quem sabe se eu explicasse como me veio, ajuda- ria? Mas ajudaria a quem, a qué? Nao me pergunta ainda, 86 depois talvez quase saberei. 8 que o tom, eu te falava do tom. Sei, mas Id o tom, maldigéo, era exata- mente esse. Mas assim. . .‘diluido? Assim contido? Es- Pera: havia o rio, depois 0 mato. Foi entre o rio e 0 mato que me yeio. Da casa chegavam urs acordes obses- sivos de piano. E da meméria, juntos, me brotaram uns versos falando nos cies, Nao éramos doze, aquelas pes- soas nio me interessavam. Eu nao as amaria, elas nunca ‘me amariam, a ndo ser estonteadamente, por levezas, distragées, Eram outras. Era carnaval, pleno carnaval. Eu precisava voltar, elas queriam nascer, eu no as co. nhecia. Sabia apenas que estavam cercadas, que eram doze, que havia um rio, um mato, um piano tocando sem parar, dentro da casa branca, no intsio da noite, no tim do vero. 7 I, RAUL Alectim, artemisia, absinto, boldo, manjericao, yer- bena, camomila: eu estava na cozinha fazendo ché de ervas do campo quando soltaram os cachorros loucos. Gostava de misturé-las assim, as ervas, um pouco ao acaso, deixando a égua esquentar enquanto as macerava devagar no pote de cerdmica. Tinha comegado a anoi- tecer, mas ninguém lembrara ainda de acender as luzes. Talvez porque ficasse tudo mais calmo assim, mais bo- nito, quase perfeito: aquela meia penumbra averme- thada, 0 som do piano vindo da sala, as vozes caladas, as ervas verdes sobre a madeira da mesa. Agora, horas depois, minhas méos continuam a guardat o cheito fres- co do capim cidré que Marilia colheu pela manha, to- miando cuidado para que a Iémina afiada das folhas néo the cortasse os dedos. Se ficar bem atento, conseguirei localizar sob as unhas remotos vestigios do perfume da hortelA, do funcho, misturados ao cheito ardido da ar- ruda‘no galhinho colocado atrés da orelha para afugen- tar maus espiritos. Rindo de exorcismos, galhos, pedras, velas, incensos: ‘0s maus espititos esto soltos, imunes aos axés, ¢ néo consigo ficar atento a nada mais além dos passos e dos uiivos dos efes roadando a casa. A todo instante lembro de quando ainda estava tudo em aparente paz: as ervas sobre a mesa, a chaleira de ferro no fogo, o bule esmal- tado de branco com as doze xicaras de cores diferentes dispostas em volta. Eu acompanhava com a cabeca a miisica vinda da sala, a0 mesmo tempo em que esma- Bava as ervas pata jogé-las dentro do bule. Esperando a dgua chiar, determinava com cuidado, e para sempre, a cot da xicara de cada um de nés, colocando-as em cit- culo ao redor do bule. Assi 18 Escolhi a vermelha para Arthur, 0 que dé ordens, prega pregos, corta fios esem parar faz coisas pela casa. Separei a azul-celeste pera Isis, azul no tom exato de sua yor aguda, quando canta, cristal retinindo na luz. Determinei que a verde mais clara pertenceria a Jtlio, que se enreda em palavras, movimentos, e me parece — pelo menos agora, em plena noite — que o movimento tem exatamente essa cor, sobretudo as trés horas das tardes de sol quente. Hesitei um pouco até encontrar minha prdpria cor, mas acabei escolhendo o branco, nao 86 porque assim me visto sempre, mas também porque é meu oficio fazer coisas brancas, preparar os chés, as- sar os pies, lavar a louga. Para Ricardo, cujos cabelos louros as vezes brilham, ouro, com uma inspiragio se- parei certeiro a amarela, Nao tive diividas ao destinar a Martha, que tira a pocira da casa ¢ lava o chio, a xicara verde-escura. Para Linda, por sua danca de meneios har- moniosos, mansas curvaturas, separei a cor-de-rosa, Quando pensei nas sobrancelhas cerradas de Marcelo, imediatamente tomei a cor de vinho tinto, paixdes, in- tensidades, Pedro, 0 que nos faz rir quando nfo esté Jendo ou caminhando sozinho pelo mato com seus Ox6s- sis, ficard com a laranja, Por gostar da terra, por nunca usar cores, Marilia ganhou a marrom, Restavam duas: a azul-marinho, cor do céu notumo, seria de Virginia, para ajudéla a decifrar as estrelas quando se embaga- tem nas quadraturas. A roxa pertenceria a Anais: sio dessa cor os sonhos, as premonigdes que costuma ter, 0s licores que prepara, o esmalte de suas unhas, os Panos que a cercam. Como um pequeno zodiaco, as doze xicatas em volta do bule, Pensei em repetir palavras mégicas, para con- centrar energia em cada uma delas, mas nenhuma me ocorreu, abracadabras, shazams, Talvez nfo fossem ne: cessiias, porque eu estava carregado de amor por nés 19 —falo banalidades, mas amor € magia, condo, pedra de toque —, embora o pressentimento da teia escura se armando sobre nossas cabegas. Seria quem sabe 0 ver- melho vivo do poente, tudo perado, nenhum yento na copa das rvores, a-noite chegando do outro lado do mundo, o vero no fim, Sem que eu quisesse, meu: pen- samento voltava-se insistente para a xicara cor de vinho tinto, As notas do piano enleavam meu corpo em fios sonolentos. Eu ia rir, ou bocejar, suspenso a beira do sono, quando Isis gritou ao longe, a chaleira ferveu e Marcelo entrou. Ele colocou a mao no meu ombro, aper- tou forte e disse que tinham soltado os cachorros loucos. SEGUNDO FRAGMENTO DA DECIMA TERCEIRA VOZ Talvez ndo consiga. Ela acaba de chamar outra vez, pedindo que eu v4. Ela ainda nao aprendeu a ser sozi- nha uma pessoa. Estou esperando por ele, eu disse. Eu nao o conheco. Estou contando a hist6ria deles, como te disse naquela tarde, quando me convidaste para ir ao cinema, Preciso ter cuidado com seu nascimento, expli- quei. Como uma cadela prenhe, sao fetos delicados. Mas 86 sabias danear, pouco entendes dessas histOrias inven- tadas. Requintadas, talvez banais. Espera, esté ficando ainda mais obscuro. Tenta de outro jeito. Cronoldgico, quem sabe? Pode ser, pode ser. Tento: a casa, 0 rio, 0 Piano, estd bem assim? Porque eles queriam nascer, eu voltei na manha seguinte para-a Grande Cidade Vazia, co cimento das avenidas da Grande Cidaile Vazia cheio somenie de serpentinas, restos de confete, preservativos esporrados, trapos de cetim, flores de pldstico, garrafas quebradas, mascaras partidas, pontas de cigarro, latas de 20 cerveja, Fomos avangando pelo meio do lixo da alegric Era de manhd. Ele me deixou na porta, Entdo comecei. II, MARCELO Acabei de me masturbar. Nao lavo as mios para co- megar a escrever: o esperma vai marchando a folha, misturado as gotas de suor que escorrem dos pélos de meu peito, Queria saber ficar trangiiilo como. Linda, que limitou-se a sorrir dos ces, aumentando o volume do som para erguer uma das pernas no ar, lentamente, trazendo o brago direito estendido até a frente do tron- co. Queria poder espatifar copos no cho da cozinha, feito Arthur. Quem sabe apenas levantar uma das so- brancelhas, como Martha, pedindo irdnica a ele que pelo menos evite quebrar também portes e janelas, para que os ces nfo entrem na casa. Nada me vem pela har- monia, pela violéncia ou pela razdo: com o sexo é que sinto, Decidi que me masturbaria no momento em que Jiilio entrou correndo para avisar que alguém havia soltado os ces. Poderia ter procurado Anafs, que sem- pre deixa de lado suas cartas, seus biizios, pedras e dra- g6es para me abrir as pernas. Um pouco distraida, as vezes meio bébada, como se niio fosse eu, como se pou- co importasse, tira sem pressa minha roupa; passa as méos‘nas minhas costas, fecha os olhos, as vezes lambe meu: pau, escancara as coxas para que eu. a penetre com vontade cada vez maior de machucé-la, de fazé-la torcer-se e gritar de dor no meio do prazer. Nunca grita, Apenas suspira, no sei se gozo ou desgosto, quando ejaculo e volta a fumar, a beber, a preparar feitigos, a cantar cangdes vadias. Talvez por tudo isso, também 2k porque sabia de’ Anafs atras de mim, tenha corrido’& cozinha para contar a Raul. Sentado num banco, quase no escuro, ele estava de- brugado sobre a mesa como se escothesse feijées. Pare- cia rezar, a mao direita pousada sobre uma dessas es- quisitas xfcaras coloridas que Martha comprou na ci- dade. Antes de acender a luz, por cima de seu ombro, por baixo da camisa desabotoada, eu podia ver um pe- dago da carne tio branca que quase brilhava na penum- bra. Qitis entio encostar nele, para que nao gritasse, para que sentisse, como uma protego, o calor de meu corpo colado as suas costas. Depois, enquanto deixasse acabeca tombar para trés, apoiando-a contra minha bar- riga, eu faria com que minha mio invadisse 0 pano fino para beliscar-The o mamilo até que gemesse baixinho, repetindo meu nome. E s6 mais tarde, talvez, contaria dos cfes, quando j4 estivéssemos inteiramente nus, en- rolados um no outro sobre os ladrilhos frios. Tudo.es- tava preparado: 0 que aconteceria j4 estava desenhado no ar da cozinha, bastava que eu fizesse o primeiro ges- to, acompanhando o esbogo de um desenho pronto. Foi quando uma voz que me pareceu a de Isis gritou 20 onge e, sem planejar, meu dedo apertou o botdo da luz. Coloquei a mio no ombro dele, Apertei forte. E repeti exatamente © que Jilio me dissera h4 pouco: soltaram 6s cachorros loucos. Nao queria acsusté-lo. Mas Raul ergueu-se brusco, derrubando © banco, olhando para mim como se nao acreditasse. Com aquela luz dura derramada sobre a cara dele, eu via suas pupilas crescendo para invadir 0 azul desbotado da iris. Talvez porque meus olhos esti- vessem acostumados & sombra, como num desses tru- ques de parque de diversGes onde mulheres se transfor- mam pouco a’pouco em feras, de repente vi nossos doze rostos, um’a um, sobrepondo-se ao rosto dele, inclusive aa a © meu, Quando seus ossos um tanto arredondados ga- nharam os contornos vagos do rosto de Anais, estendi a méo ¢ puxei-o para mim. Tinha cheiro de ervas verdes. O cheito de ervas verdes do corpo de Raul misturouse ao cheiro de suor do meu prdprio corpo. Eu tinha estado © dia inteiro na horta, sem camisa, embaixo do sol. Eu trazia no bolso o primeiro tomate maduro. Com uma das maos, forcei-o a ficar de frente para mim, muito préximo. Com a outra, tirei do bolso o tomate maduro. Ele me olhava sem compreender. Ouvi um dos cAes uivando, perto do pogo, pensei, e antes que o uivo ter- minasse e outro co comegasse entdo a uivar, entre tal- vez 0 primeiro ¢ 0 segundo uivos, mordi muitas vezes a boca dele, interrompendo-me apenas para repetir que estévamos perdidos. Entdo senti uma presenga macia As nossas costas. Me voltei répido, ainda a tempo de perceber as fitas das san- dalias de Anais afastanco-se leves para nfo serem vis- tas, Empurrei Raul contra a mesa. Corti para 0 quarto. Foi tudo s6frego, urgente. Tentei me concentrar somen- te em um corpo, em um rosto, em um sexo, mas os doze sobrepunham-se, inclusive o meu, sem ordem, no ritmo do gesto, sem controle. Agora sinto os pélos melados en- tre as coxas, na barriga, oleite branco no umbigo. Provo esse meu gosto espesso, meio adocicado. Depois misturo com nojo, com alegria, com fome também, aos graos maduros do tomate que acabo de morder. TERCEIRO FRAGMENTO DA DECIMA TERCEIRA VOZ Naquelé tempo a escada ainda nao era amarela. Ela me ajudava. Quando as contragdes se tornavam insu- 23 portéveis, eu descia pela escada que ainda nao era ama- rela para repetir o disco. Isso me acalmava, molhar plantas, abrir livros ao acaso. Foi numa dessas vezes que encontrei os versos falando da maldiedo. Sé entiio entendi que aquele era 0 momento exato do Abandono dos Deuses: quando Medéia perde os poderes, por amor @ Jasio, Exu se ausenta, Mas tudo isso é necessdrio? Tudo isso, 0 qué? As explicagées, as. memérias, os mi- tos, Nao sei, nao sei, néo consigo de outro jeito. Conti- tuo esperando uma nitidez vinda de fora. Por enquan- to, nesta outra cidade, ougo e vejo apenas o vento mise turando terras, polens, papéis, sementes, miasmas, fo- Ihas e historias. Sopra mais forte na minha esquina so- bre o abismo. Curva das Tormentas, eu a chamei. A en- fermeira disse que por isso esto todos hoje mais agita- dos. Recuso a injec&o para esquecer: quero voar com o vento para o centro da Curva das Tormentas, Me ajuda, pai, meu pai — meu pai Ogum, senhor das estradas. TIL, MARILIA Eu a vi atravessar rapido 0 corredor. Parecia chorar, Nunca sabemos ao certo quando Anafs chora realmente ou se est apenas um pouco embriagada por seus licores acucarados, pelas drogas que costuma comprar nos dias em que vai & cidade, quase sempre as sextas. Logo de- pois ouvi os passos pesados de Marcelo saindo da co- zinha para bater com forga a porta do quarto. Nao tive tempo de compreender. De repente havia um excesso de rufdos no ar, aquele disco de piano de que Linda tan- to gosta, muito alto, um grito estridente de [sis, os uivos dos cies, Ricardo parado no. meio da sala dizendo que 24 precisévamos fazer alguma coisa, Arthur trancando to- das as portas enquanto Jiilio caminhave de um lado ata outro, fumando sem parar. Na mesa, Pedro, Virgf- nia, Martha e eu. Martha parecia concentrada, fazendo contas na calculadora, anotando néimeros no pequeno loco, detendo-se as vezes para levantar os éculos re- dondos que freqiientemente escorregam por seu nariz comprido. Virginia terminava um mapa, tragando riscos retos, azuis out vermelhos, com quadrados ou tridgulos, entre os planetas. Pedro lia, Espiei por cima de seu om- bro no momento em que sublinhava uns versos assim: “Ai, da terra trevosa e do Tértaro nevoento e do mar infecundo e do céu constelado, de todos, esto contiguos as fontes e confins, torturantes e bolorentos, odeiam-nos os deuses.”" Eu olhava minhas unhas sujas de terra, sem conseguir estender as méos para apanhar aquele bordado com ramos de trigo nos quatro cantos, que pro- ‘meti a Raul terminar hoje. Estendia as mos mas, antes de apanhar o pano, via a terra das unhas, ento Jembrava de Raul, da promessa feita. Acho que de repente fiquei espantada por estar exatamente aqui, entre todas essas pessoss, ¢ devo ter me perguntado vagamente por que tudo em minha vida teria me conduzido para este momento, esa mesa, esses cdes uivando 14 fora. Nao estava preocupada. Tudo que precisévamos eta economizar o que restava de comida, cigartos, papel, todas essas coisas. Mas Isis, comendo bombons sem parar, enquanto Julio fumava e Martha escrevia, parecia nao compreender que ignordvamos até quando os cfes permaneceriam soltos. Da sensagao de estranheza e também de irritago que me veio de todos eles, emergiu lenta a figura de Raul. Sabia que prepara- va o ché das ervas que eu colhera pela menha, quando 1 Hesfodo: Teogonia. 25 Marcelo foi até a cozinha contar a ele, Mas agora, de- pois de todos os ruidos silenciados, somente o som do piano vibrando no ar, entrecortado pelos uivos dos ces, era como se nao nos importdssemos com ele. Vou ver Raul, eu disse, eme afastei da mesa com o bordado ina- cabado nas miios. No corredor, ouvi gemidos vindos do quarto de Anais, e qualquer coisa como um resfolegar de bicho no quar‘o de Marcelo, Mas nfo sabia se nfo se- iam talvez os uivos dos cfes, os acordes do piano ou os passos de Jiilio. Raul estava deitado no chao da cozinha, Ele sempre me lembrava um lago. Quieto feito um lago, o branco da roupa destacado contra-os ladrilhos escuros. Olhava para o teto, como se néio houvesse teto, Apontou o bule branco com as doze xicaras coloridas em volta, pedindo que nfo deixasse ninguém quebré-las. Correm perigo, disse, Para trangiilizé-lo, sentei a seu lado. Ele tremia. Pensei em colocar a cabeca dele no meu colo, tomar suas mfos, cantar, fazer carinhos. Mas s6 conseeui ficar muito proxima, De alguma forma, eu queria dizer que ‘tudo aquilo importava pouco: se soubéssemos controlar ‘a nds mesmos, ao nosso terror, e poupar o gasto exage- rado de tudo que tinhamos ermazenado, nada acontece- ria, Aman, depois, dentro de uma semana, um més, 0 cies morreriam ¢ poderiamos novamente abrir a casa, sair para o,sol. Lera, um dia, em algum lugar, que a rai- va vai corroendo aos pouccs 0 cérebro deles. Nao re- sistem muito. Queria dizer a Raul que pensasse no tem- po que fatalmente passaria, como sempre passa. O que hoie é drama, sempre, amanha estard quieto na memé- tia, A casa, ele disse, a casa, E em seguida: 0 que vai ser de nés? Esté tudo bem, tentei dizer, tudo bem, Mas com um martelo na mao Arthur segurou meu braco, for- gando-me a levantar com tanta violéncia que o pano bordado caiu sobre 0 rosto de Rau. 26 QUARTO FRAGMENTO. DA DECIMA TERCEIRA VOZ Me perdoa, nao sei se conseguirei. Disse a ela: é ne- cessério 0 escuro porque dele brota a luz. Como uma larva, no interior visguento da crisélida, sem supor que a borboleta serd seu proximo momento. Tao biblico, ai, ido edificante: tonia cuidado, sentio daqui a pouco es- ‘covers qute viste iima pombiriha branca cruzando man- samente 08 céus, talvez uses até o plural (niio te atreve- rias a dizer “firmamento”, nao?), e era sexta-feira, di- rias, dia de Oxald. Foi exatamente 0 que vi, mas es- quece: tudo isso é um engano. Tenho vontade de traze- a para cd, para cima do morro. Ela néo suportaria, nao suporta estar desperta e ter emogdes, O ar & muito puro 14, chega a doer nos pulmdes, eu disse quando ele espa- tifou as doze xicaras. Nenhum de nés poderia voltar atrds, Nem avangar ou parar de contar. Eu era 0 décimo terceiro. E estava mudc. Tudo isso comecou faz tanto tempo, Obligitidades, transparéncias. Reflexos sinuosos, ninguém compreenderia. Néo estds sofrendo: estés at sente da dor, tudo é branco. A escolha joi tua, Tem um preco: este. IV. ARTHUR Gosto do cheiro do corpo dela. Ao entardecer, quan- do se banha, deixando a pele libertar aquele perfume como o da terra molhada apés as primeiras gotas de chuva. Gosto de seu rosto sem pintura alguma, do ar se- vero, das marcas sob os olhos, os cabelos escuros, parti- 27 dos ao meio em bandés, presos na nuca por uma fita spera, juta, sarja. Se mais tarde alguém me perguntasse por qué, s6 poderia responder que quero Marflia — soube disso pela primeira vez ne momento exato em que a vi levantar-se da mesa com 0 bordado nas maos. Como se a pata de um desses ces que andam lé fora se aba- tesse sobre a minha cabeca, e entre a dor, a tontura, quem sabe também algum medo, localizasse um fogo me incendiando por dentro. Sem soltar as tébuas, o martelo € 0s pregos, segui atrés dela pelo corredor, desviando- me do movimento que Linda fez com os bragos para tentar me impedir. Nao, ninguém perguntaria nada. Ba- tem-se todos pela casa fechada, mais loucos que os cdes 4 fora. Sei ainda que somente eu, cabega, principio, mantenho qualquer coisa como uma lucidez, poderosa © suficiente para que nenhum celes se atreva a cobrar © que fiz, Uma bofetada em pleno rosto, vé-la ali sentada, & bei- ra daquela ridicula Piet, a cabeca de Raul prestes a desabar em seu colo. Nao decidi nada. Como se nio fosse eu, ouvi o rufdo das tébues caindo nos ladrilhos, uum momento depois de jé ter feito o gesto. Sem largar © martelo, torci o brago de Marflia até ergué-la do chao. pano bordado escorregou sobre o rosto de Raul, como um desses lengos que cobrem a face dos cadveres. Qua- se morto assim, face encoberta: maté-lo seria apenas consumar 0 que jé estava feito. Com o braco livre, Ma- rilia interrompeu meu impulso no instante de baixar o martelo com forga sobre os ossos dele. As unhas curtas, cheias de terra, cravadas no met brago, um pedido nos olhos escuros, Eu disse que sim, que o pouparia se ela fugisse comigo. Pela clarabéia ro teto do banheiro, se empilharmos alguns méveis poderemos abri-la para al- cangar o telhado, de 14 saltar para um dos galhos da 28 figueira ao lado da casa ¢ entdo, como macacos, através das drvores, chegar até'0 rio, passando para 0 outro lado. Os cées hidréfobos nao se atreverao a cruzar aque- Ja dgua, Disse todas essas coisas, cercandoa em volta’ da mesa, Percebi que tentava proteger alguma coisa com o corpo. Agora consigo dar certa ordem a tudo que ia acontecendo. Lembro da grande mesa de madeira e do vestido preto de Marflia encobrindo algo sobre a mesa. Néio quero fugir, cla disse. Nao daqui. Nao com voc. Foi quando tentou alcangar a porta que liga a cozinha a0 corredor € 0 corredor A sala que vi um bule branco cercado por doze xicaras coloridas. De repente soube que o martelo permanecera entre meus dedos exatamen- te para esse préximo gesto. Muito tempo anies, ele jé estava pronto. Creio que foi nesse momento que Marilia fugiu, Os cdes uivavam, cada vez mais préximos, Espatifei primeiro 0. bule, depois, uma a uma, as xicaras colori- das. Lembto dos cacos roxos de uma delas e de como, por alguma razo obscura e absurda, tentei proteger de meus préprios golpes a xicara vermelha, Mas meu gesto nao respondia & minha vontade. Guardei apenas um dos cacos, que trouxe comigo para o bankeiro. Os outros comegatam a correr para a cozinha, Ao passar, esbarrei no corpo redondo de fsis. Martha falou alguma coisa que nao entendi, Acho que escutei Raul repetir cho- rando que agora nada mais podia ser feito, que esté- vamos perdidos. Talvez estejam, eles. Nao eu. Quando ‘meu coragio parar de bater tao forte, colocarei a ca- deira sobre a privada, forcarei a clarakéia com 0 mar- telo para alcangar 0 telhado, a figueira, 0 rio, o outro lado, Talvez tenha 0 cuidado maligno de abrir por den- tro a porta do banheiro, antes de fugir. Nao seria im- 29 possivel, nem muito dificil, que um dos cies alcangasse o.telhado. Ele gostaria de atravessar o corredor rangen- do os dentes, a espuma negra na boca, para encontrée os como se nada tivesse acontecido, reunidos feito uma familia na sala de jantar. QUINTO FRAGMENTO DA DECIMA TERCEIRA VOZ Tanto-sangue-dentro-do-meu-derramado-coragao, era assim? Talvez fosse, mas nao se trata disso. Lamtiria insuportdvel, 6 corpo, esse que se arrasta com suas ca- réncias. Nao precisa pressa, calma Ié. A-porteira-estd- aberta-para-quert-quiser-passar, era isso? J te disse que nao responderei: quero saber, e depois? Passaram-se meses, ele voltou. Foi longo. Doia. Continua doendo. ‘Ainda nao acabou. Passa, passard, As vezes ficdvamos deitados na minha cama enquanto eu tentava decifrar o sei destino, Marte, Ossanha: gostava das folhas, das pedras. De peixes, também. Ele ensinou: as pedras eram vivas. Desde entdo eu as mantenko imersas em copos cheios d'égua, para que crescam. Sao muitas. Agora espero ouitro. Que, como ele, nao serd mais do que Uma Nova Metdfora do Encontro. Por enquanto, espio as pombas nas cumeeiras. Quando nao hé ma Sica, canto. Quando paro de cantar, como magiis. Os talos esto jogados pelo quarto, entre os lencéis. Apo- drecem como meus sentimentos, jogados na Via-Ldc- tea, Esfrego a lémpada, mas 0 génio se foi. Talvez me bata outra vez contra as grades da janela, até me leva- rem paraa mesa de choques. 30 ; Vv. Isis Fiquei olhando os bombons cafdos no cho, mistura- dos aos cacos coloridos. Martha e Marilia repetiam tan- to que precis4vamos economizar que me curvei para apanhé-los. Jélio esbarrou em mim, cravei um dos ca- cos na palma da mao esquerda. Quando consegui arran- célo, percebi que era de um azul muito claro, cor do céu nas tardes de vera. Lambi o sangue que nfo estan- cava, manchando os bombons, os outros cacos, Ia enxu- gar o sangue na barra da saia quando vi o pano branco no cho, mas s6 depois de té-lo enrolado nos dedos que Marflia gritou e percebi que era o seu bordado. Aquele, inacabado, dos ramos de trigo, dos quatro can- tos, Tarde demais, pensei. E sem querer pensei junto que, com as manchas de sangue, o trigo pareceria ter brotado num campo de papoulas. Lembrei em seguida da papoulas que Linda e eu costumiivamos comprar no final da primavera. Desejei que hoje fosse outra vez como uma manhé de novembro, vero novo no ar, para que pudéssemos colocé-las, sobretudo as vermelhas, as papoulas por todos os cartos da casa, em vasos brancos, Tive vontade de chorar quando pensei que o verdo esta- va quase no fim, tive pena de mim mesma, assim gorda, inicios de margo, os cachorros loucos em volta da casa, jogada ali no chao da cozinha, entre bombons esmaga- dos, tébuas, pregos, cacos coloridos, sangue, Marcelo ‘Anais trancados nos quartos. Arthur no banheiro, Mari- lia muito pélida & minha frente, bragos cruzados sobre © peito, olhos fixos no pano que o sangue de minha mao encharcava cada vez mais —o trigo, as papoulas, 0 bordado. Para nfo chorar, por ter pensado na noite de marco descendo clara sobre os telhados, pelos bombons esma- 31 gados, principalmente por meu medo, acho, para calar a fome de agticar no fundo da garganta, foi que comecei cantar. Devia estar patética e porca e triste jogada no chilo, mas, como se aprovasse o que eu ainda no come- gara a fazer, Linda sorriu quando abri a boca. Sem que eu escolhesse, a cangdo foi nascendo, summertime’, eu repeti, summertime and the living is easy. A vor a prin- cipio fraca, desafinada, perseguindo uma melodia que escorregava entre os acordes repetidos do piano vin- dos da sala, mas aos poucos mais forte, nitida, para meu proprio espanto, fish are jumping and the cotton is high, sufocando todos os outros sons. Pouco a pouco Marilia, Raul, Jtlio, Linda, Ricardo, Pedro, Martha, Virginia sentaram-se & minha volta enquanto a noite descia, e quem sabe para trangiiilizé-los eu repetia e repetia one of these mornings e Marilia fechou os olhos T will gonna rise up singing e Raul sorriu you're gonna spread ¢ Jilio apagou 0 cigarro your wings.e Ricardo distendeu os miisculos do rosto and you'll take to the sky e Pedro fechou o livro but till that morning e Mar- tha tirou os dculos there’s nothing can harm you e Vir- ginia olhou para cima como se visse 0 céu with your mammy and daddy standing by e Linda entio abriu devagarinho os bragos comegando a dangar enquanto todos batiam palmas ritmadamente ¢ eu retomava a pri- meira parte da letra e todos cantavamos juntos tio alto e claro summertime summertime summertime tio com pletamente confiantes na manha de sol préxima que no havia mais cies soltos nem xfcaras quebradas nem bombons estagados pelo chao. Minha voz era maior que eu e mais forte que todos os deménios soltos pela casa. Para manter eterno o ve- rao atrés da janela, eu cantaria até o amanhecer, canta- ria cada vez mais alto até que Marcelo, Anais e Arthur 2D; Heyward ¢ G. Gershwin: Summertime, 32 viessem se reunir a nés, como antigamente, € como anti- gamente Linda me abragaria entrelagando papoulas douradas nos meus cabelos, pedindo que cantasse mais. Como se estivesse gravida de um tempo novo, eu canta- va, Mas tudo mudou. Linda comegou a girar cada vez mais depressa, o que costumava ser doce em sua danga foise transformando numa espécie de furia que fazia os outros baterem palmas cada vez mais rapidamente até que, dissociados, havia quatro planos, distintos, so- noros, dentro da cozinha: os wivos dos cfes, o piano na sala, 0s movimentos de Linda e minha cangdo cada vez mais esfartapada, Comecei a cantar mais baixo. Até ca- lar, E volteu a fome de agticar. O sangue escorria da palma da mao, Levantei com dificuldade para procurar nos armérios fechados outra caixa de bombons. SEXTO FRAGMENTO . DA DECIMA TERCEIRA VOZ Ele sabia dangar. Era bonito dangando, Mandavam sempre. que repetissemos, talvez para que os outros aprendessem a beleza. Ou mais cruéis: para que ele ‘mesmo percebesse como eu jd nao conseguia dissimalar 0 desejo de tocé-lo. Um dia, toquei. Mas sem cuida fo. Como niuma pirueta errada, Sem sentir, voce calcula mal alguma coisa no passo e, ao invés do v6o, ver a queda, O ridiculo é que sé no chio vocé percebe que caiu, Entdo é tarde demais, Mas havia um esboco de prazer quando nos tocévamos, na danga. E 0 proprio prazer, aquela noite: os gritos de goz0, mordidas, pélos melados da porra do outro. Disse a ele que conhecia 0 gosto. Quando me permitem descer a ladeira, as pessoas 33 olham com suspeita minha cabeca raspada, porque as sicatrizes expostas denunciam que estive 14. Nao. hd como escondé-las, as marcas de Obaluaé. Por ter estado ld, quem sabe, um Quase Encontro merece punigio? Me explica, que as vezes tenho medo. Deixo de ter, como agora, quando o vento cessa eo sol volta a bater nos verdes. Mesmo sem compreender, quero continuar aqui, onde estd constantemente amanhecendo. VI. LINDA Como um gatinho que se estende ao sol, as pernas ctuzadas, curvei para dentro os ombros, abrindo lenta- mente os bracos. O movimento brotava’ das omoplatas para descer pelos ombros, atingindo primeiro os ante- bragos, depcis os cotovelos, até chegar aos pulsos, e en- tao escorregar pelas mfos, avangar sobre um por um dos dez dedos, saindo pelas pontas, jatos de luz. Das minhas unhes jorravam raios iluminados pelas paredes da cozinha, orientados pela cangio de Isis. Refletidos has paredes, voltavam a iluminar 0 rosto dos outros, fachos de lur que eu conduzia para destacar as palpe. bras fechadas de Marflia, os cabelos de Ricardo, os olhos de Virginia, azul, dourado. Junto com meus mo- vimentos, a voz de [sis silenciava os cfiese 0 terror solto em volta da casa, & procura de qualquer coisa como uma gota de sol cafda no centro da cozinha suja. Meus movimentos e a voz dela limpavam o lixo da cozinha, © eu os queria assim, todos concentrados unicamente em arrancar beleza, um espinho cravado naquele momento escuro que comecara a se instalar dentro da casa. Como bailarina de circo, uma das pernas equilibra- da no fio do arame, a outra alongada no ar, as mios 34 inesperadamente donas do poder de iluminar as coisas, as pessoas, Nao sei precisar 0 momento em que o fio tremeu, abalando meu corpo inteiro, e o poder fugiu. De repente precisei me movimentar mais répido, para ndo cait no espago vazio sem rede, me arrebentando so- bre os cacos coloridos espalhados no chiio. Os gestos brotavam agora de todos os membros, j4 nfo eta um gatinho novo ao sol da manha, mas um animal ferido, contraindo-se entre a dor das feridas ¢ a tentativa de manter um equilibrio qualquer ou captar um sopto ca- paz de evitar o desabamento da morte, de loucura e do 6dio sobre cada uma das nossas cabecas. [sis parou de cantar, imune a meu poder que retornava, embora eu ja no soubesse se com ele mobilizava luz ou treva. Mas dominava ainda outros, que acompanhavam minha firia batendo palmas violentamente. Suada, contorcida, eu nao conseguia parar. Enquanto Isis procurava alguma coisa pelos armérios, urn a um os outros levantaram-se para dancar comigo. Jtilio apagou a luz. No escuro, nao nos importivamos de pisar nos cacos, procurando pelo espaco os membros suados dos outros. Uma lingua mo- Ihada, quem sabe a de Martha, entrou pela minha boca, ao mesmo tempo em que eu sentia os pélos molhados de um peito de homem, talvez o de Pedro, colado as mi- nnhas costas. Eram da bacia que os movimentos surgiam, subindo pelo ventre, erigando os bicos de meus peitos para alcangar 0 pescogc que cu jogava para tras, afas- tando da testa os cabelos suados. Precisava de um peso de homem sobre meu corpo, ptecisava de um membro duro de homem para umedecer nas minhas entranhas esse vazio déspero que me faz sempre dancar e dangar, como possuida por alguma forga estranha que reage sem cessar & imobilidade da morte, E no entanto, toda a ferocidade que eu provocava sem querer continuava sendo beleza ¢ equilibrio, porque talvez nada mais nos restasse naquela casa cercada por cachorros loucos se- 35, nfio amar uns aos outros. Mesmo como animais. Da selvageria, entdo, aos invés da dogura, arrancarfamos nossa gota dourada de sol. Deitada na mesa, coxas es- cancaradas, puxei Pedro sobre mim. Como uma balanga desequilibrada que pende de re- pente para um dos lados, Ricardo acendeu a luz. Vi primeiro Isis, os enormes seios nus derramados sobre uma caixa vazia de bombons, a mao estendida para mim. O coragdo de Pedro batia forte contra o meu. Voltei a ouvir os sons do piano no disco que ett colo- cara na sala e, nfo sei por que, olhando o chao repleto de cacos de louga coloridos, pedacos sujos de chocolate, gotas de sangue, pecas suadas de roupa, percebi que a noite tinha descido completamente. Um cao uivou Ionge. Entre os bicos de meus peitos e os pélos do peito de Pedro, uni cuidadosamente as pontas dos dez dedos, ‘uma mio contra a outra. Como se circundasse uma de- licada esfera de cristal. Como se procurasse, de alguma forma intensa e inttil, recuperar certa espécie de equi- Iibrio ou beleza para sempre perdidos. SETIMO FRAGMENTO DA DECIMA TERCEIRA VOZ A pedra morna de sol sob as minhas costas. Os garis limpam os restos da feira. Encosto a cabega no tronco da drvore, Fecho os othos, ofuscado pelo excesso de luz. Diffcil conciliar a manha de fora com a treva de dentro. Respirar é feito uma oragdo que nada pede, Obd humit- de, Continua, jd ultrapassaste o meio, ndo tens mais 0 que temer. Repara: agora é como o centro escuro da noite. O préximo movimento s6 pode ser em diregiio & luz, Ele brilhava, ele era claro, ele era feito de sol. To- 36 dos queriam nao estar ali, Nao se deve, nao se pode querer estar em outro lugar além do que se estd. Eles desejam coisas que nao existem. Eles née conhecem a paixo, nem tu. A tudo isso eu chamo de tontura, ndio de prazer. Evita a vertigem. Resseca, desbasta: o limite a nudez do osso. Além dele, se avangares, hd somente a poeira. Mas cuidado, exigent-se os denies fortes que Nand perdeu, Descobre, desvenda, Ha sempre mais, por rds. Que nao te baste nunca uma aparéncia do real. Como te atreves a supor que carregas O Facho de Luz? Sei bem quanto britha, mas te digo que seria incapaz de vencer as Iansas do vento. VIL, RICARDO Nao sei se tive medo — dos ces, da noite, dos cor- pos — ow se apenas queria que me vissem. De alguma forma, pensava confuso que jogando luz sobre a cozi- nha outra vez. nos olhariamos nos olhos. Parecia impor- tante saber se a mio no meu cabelo pertencia a Pedro ou a Virginia, se a boca contra a minha era de Jiilio ou de Martha’e assim, pensei, também cs outros. Para que soubéssemos, acho, da exata medida.e intengfo de cada toque em cada membro, foi que acendi a luz. Assim como um filme que de repente péra, todos me otharam imobilizados no que faziam, Ex era o centro mével do que comegaria a acontecer no préximo mo- mento. Marilia me olhou como se procitasse censura nos meus olhos. Mas eu queria a festa, nao a dor. Ca- minhei para o armério, apanhei trés garrafas de vinho tinto, coloquei-as sobre a mesa. Pedro abriv-as, en- quanto Martha dispunha os célices. O disco parou. Em siléncio, eu & cabeceira da mesa, brindamos a qualquer 37 coisa que ainda nfo viera. A nossa: sobrevivéncia, talvez. Mas, embora o vinho, a festa tinha acabado. E nfo nos olhévamos nos olhos, apesar da luz. Os cies jé nao uiyavam, Nao havia mais a danga de Linda nem a can- go de Isis. O siléncio tornow-se tio denso que cada movimento precisava ser feito devagar, como se 0 ar pesasse & nossa volta, dificultando os gestos. Quis pensar entéo na minha vida antiga, mesmo uma nem muito remota, que fosse pelo menos até pouco antes do por- do-sol quando, ao voltar para casa, do caminho cercado de hibiscos que liga 0 porto de entrada & varanda, en- xerguei Virginia ajustando a luneta para observar acho que Vénus. Nao consegui lembrar mais nada, Eu nfo tinha pasado, Acho que pensei que nao tivesse talvez também futuro. Como no centro de um paleo, na cabe- ceira da mesa, a luz batendo direta no meu rosto, 0 brago esquerdo cafdo ao longo do corpo, o direito segu- rando um célice de vinho. Alonguei lentamente a colu- na. Entao olhei-os. ramos nove: eremitas. Na cabeceira oposta da mesa, Raul olhava como se me tivesse transferido em segredo, em siléncio, o cetro de algum poder que eu sequer adi- vinhava o valor. Eu preparei o ché, ele disse, vocé pre- parou o vinho: um outro e novo movimento se inicia agora. Desejei que alguém colocasse outro disco na sala, que os ces recomecassem a uivar, que cafsse de repente ‘uma dessas tempestades violentas de vero. Nada acon- tecia, A tdcita solenidade disposta entre nds comegou a pesar tanto que, como um professor ou um psicanalista, tive um impulso de olhar o reldgio para dizer qualquer coisa como bem, por hoje é s6. Eu nfo conseguia dizer nada, Desviei meus olhos dos de Raul para fixd-los num quadro pouco acima da cabeca dele: a Santa Ceia des- botada de onde Tiago Menor parecia me-olhar direto 38 nos olhos. Outra vez me voltou & memétia o caminho de hibiscos, Tirei do bolso o quadrado de papel vegetal. Ergui-o como uma héstia, as duas mos unidas, até que a luz batesse justamente sobre ele, Através do papel, os gros mitidos brilhavam feito pequenos sis. Uma correnite de energia percorreu os outros. Jtilio apressou-se a trazer o espelho. Pedro titou da cintura o punhal marroquino. Marflia acendeu a vela. Depositei na mesa o copo de vinho. Com a mo direita, abri de- vagar o papel sobre a palma da mao esquerda. Antes que alguém pudesse dizer ou fazer qualquer coisa, soprei fortemente 0 p6, Flutuou por instantes no ar, depois espalhou-se sobre os méveis, pelos cantos, pelas quinas. Dissipar a névoa, sim, talvez fosse esse o meu sentido Mas, se era realmente essim, ndo compreendia por que, como a noite, entdo, uma grande tristeza, neblina, co- megou a descer sobre mim. Eu nfo tinha passado algum antes do caminho de hibiscos, os ces recomecaram a uuivar, eu s6 queria iluminé-los, a cozinha estava muito suja, nao havia futuro. Minha vida me dofa fundo, san- grada, sem saida, Tudo que eu precisava era o sol quen- te da manha seguinte, que nfo viria, aquecendo minha cabeca confusa. Cobri o rosto com as mos e comecei a chorar. OITAVO FRAGMENTO DA DECIMA TERCEIRA VOZ Sempre vird. A solidio nao existe. Nem o amor. Nem 0 nojo. Odeio quando te enganas assim, girando entre as panelas, A vida'é agora: aprende. Ainda outra vez to- caro teus seios, lamberao teus pélos, provardo teus gos- tos, F outra mais, outre vez ainda. Até esqueceres faces, 39

Você também pode gostar