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Ocomenenteencnntra de um adolescents atalma atormentada de um area Para o meron, 3 ‘eslumbeadora reveacso do m oem iverpeetaco da vid através dit OMEU AMIGO PINTOR foi teats por Ly Bojungae lead cena pot Bis Leta, atebatanl os dls as importantes {ea pare ieterane do prémio ALMA. peémio qac yp destigoa para maatce fordacio cu Poi MEU AMIGO PINTOR 6 Digiaizado com Camscanner LYGIA BOJUNGA O MEU AMIGO PINTOR ustrages de Vilma Pasqualini 24 Edigio 10° reimpressio Rio de Janeiro robes 2015 Digtatzado com Camscanner COPYRIGHT © 1987 de ya Bojunes Tab on dicton reservados [Edzora CASA LYGIA BOJUNGA LTDA. Raa hoes Vicoee 421/425 Santa Teresa 3251-290 Ran de rio RY Jas@) 20M Fer QD 22226007 ma Bopanen sreaaimbommcnbe PrendieBeiimpeeso 0 Beast Soaps ps demo et pein cam a de trode ‘ou proces srt fm quae forma O8 mei Sem § perma da detent do ya me Orem ‘Oes Are Pau gs Bong: res Wa Pag jin iter = Hae coe Boe, 38 Eves one Lene Beda, Pega Vil IT Sora By-y Doles Digtatzado com Camscanner O MEU AMIGO PINTOR depois essas trés cores iam se misturando pra formar uma porgio nuns desenhos que as vezes eu gostava ¢ outras vezes nio, © meu amigo me disse que quanto mais a gente prestava atencio numa cor, mais coisa saia de dentro dela. Eu fiquei olhando pra cara dele sem entender. Nio entendi mesmo aquela histéria de tanta coisa ir saindo de dentro de uma cor. Mas hoje teve uma hora que eu nio estava a fim de olhar pra cara de ninguém. Entio abri o album que ele tinha me dado. Sé pra poder ficar olhando pra cada cor ¢ mais nada, Olhei, olhei, toca a olhar. E de repente eu entendi direitinho o que que ele tinha falado! Me deu uma vontade danada de ir li em cima dizer: “Saquei o que vocé me disse naquele dia! estou entendendo demais esse preto; te juro que me deu um estalo ¢ eu estou entendendo 0 jeito que esse amarelo pegou.” S6 que nio deu pra falar com o meu amigo pinto: cle morreu. Hoje esti fazendo ts dias que ele morreu. Digtatzado com Camscanner Lyc noyuscn (O meu amigo mora, quer dizer, morava, no apartamento aqui em cima. Eu ia Li jogar gamio com cle, a gente conversava, ele tinha um religio de parede que batia hora ¢ meia hora também. O meu pai ca mina mie reclamavam “6, mas que coisa mais enjoada esa bategiot”e a minha rm me perguntara “seri que teu amigo nunca vai se esquecer de dar corda no relogio, nio?". Mas cada um & de um jeito, nio & « eu gostara demais de ouvie 0 reldgio batendo. De noite ainda io eras6 porque ele batia bonito. Nem era s6 porque eu acho legal viver ouvindo que horas sio. Era porque, cada vez que ele baia, eu pensava: 0 ‘meu amigo tI. Pra mim, ouvir o relogio batendo era que nem ‘ouvir 0 meu amigo andando. Ox falando. Ou rindo. ‘Seri que di pra entender o que eu quero dizet? Porque cle era um cara quieto demais,tinha mania de 36 fazer 2 lovey asnco mston «coisa que nio faz barulho: fumar cachimbo, pensar, pinta; x nio fosseo relogio batendo, pura vida! ia até parecer que ele nem viva Ii. Mas nio era isso que eu queria contar. Eu queria cera dizer que na terga-fera, quando cheguei da escola, ‘x fiquei sabendo que ele tinha morrido. Fui i. Nio aguentei olhar pra ele assim morto:virei a eara pra pparede ¢ dei de cara com um quadro que ele tinka pintado: uma mulher amarela, (Um dia ele me disse «que ela estava assim toda amarela porque el tna acordado contente, © eu ~ que ainda nlo sacava nada de cor ~ fiquei achando que era birutice de pintor.) io deu pa fear Ii em cima voltei correndo pro meu quarto. De repente, comecei a me sentir todo escuro por dentro, Tio escuro, que nio dava pra energar mais sada dentro de mim. Mas nessa hora 0 relogio comesou a bater. A besa. Porque era meionda.E se alguém perguntar que cor que tinha a batida, eu respondo correndo, amarela!! a Digtatzado com Camscanner LYGIA PORN E que eu fiquei igualzinho 20 meu amigo pintor: dei pra achar que amarelo é uma cor contente. E era tio bom ouvir aquele meio-diateada batida que o regio batendo diva mais 3 impressio que todo mundo tha se enganado ¢ que o meu amigo continuava vivinho Wemcima. E3i, tinha 0 aniversério da minha prima. Mas ex Bio fi. ‘Tinha um bate-bola na escola. Mas eu niio fui. “Tinka um livro que ex estava gostando. Mas eu em quis mais ler ‘Sé pra ficar aqui. Escutando o relégio bater. E dle batew. No principio, amarelo forte, Mas depois 0 amarelo foi ficando mais fraco: cada vez suis fraco. O relégio estava perdendo corda e era por iso que a bata se arrstara com aquele amarelo cada vez mais desanimado, cada vez mais esbranquicado. ‘Hoje ficou tudo branco: 0 relégio no bareu (Que vontade! que vontade de i i dar cord nee. A porta esti trancada. = Quem € que ficou com a chave? Anal Clarice. — Masa corda do religio acabou. = Ela levou a chave. = Maso relgiou. = Hla diz que volta aqui. = Mase o religio? De noite, quando fui dormir, fiqueiesperando, cexperando, Nada. $6 aquele branco todo. Eu munca pense ue silincio fosse assim tio branco. E ai, sim, eu vi ‘mesmo que o meu amigo tinha morrido e que branco doia mais que preto: amarelo, nem se fala! doia mais que qualquer cor. Digtatzado com Camscanner Digtalizado com amcanner PR mim, vermelho é cor de coisa que eu ‘queria entender, Umma vez (isso foi no ano retrasado, eu ainda ia fazer nove anos), a minha prima veio aqui com uma ccolega que se chama Janaina ¢ que tava toda vestida de vermelho. O vestido tinha manga grande, era muito mais comprido que o vestido que a minha imi ea minha prima usavam, e sem nada de outra cor: $6 aquele vermelhio que todo mundo na sala ficou olhando. E aqui na testa, feito jogador de ténis, a Janaina botou ‘uma tira do vestido que ela estava usando. Aieu fui e me apaixonei por ela. E de noite eu falei no jantar: — Eu estou apaixonado pela Janaina. 18 et angco nasrow “Todo mundo achou que eu estava fazendo grasa: a minha ind disse que a Janaina tinha quinze anos. ~ E dai? por que que eu nio posso me apaixonar por uma mulher mais velha? = Imaginat—¢ todo mundo tiv ES Achei melhor no dizer mais nada. Mas continuei apainonada, Quer dizer, eu acho que era paixio; eu nio tinha bem eerteza, mas cada vez que eu pensava na Janaina (e eu pensava nela 0 tempo todo) eu sentia dentro de mim uma coisa diferente que eu nio entendia © que que era, mas que era vermetha, porque € elaro que eu sé pensava na Janaina vestida naquele vermethio todo. Um dia, a minha prima veio outra vez a Perrépolis com 2 Janaina. Meu coragio quasesaiu pela boca quando eu ouvi a minha mie falando: = Oli, Janaina. (Conti pra sal. Nem deu pra acreditar: 2 Janaina cestava de calga amu e blusa banca! E na testa, em vez da tira, uma franja. 8 Digtazado com Camscanner LYGIA ROU Quanto mais eu olhava pra Janaina mais eu ia me desapaixonando. Quando ela sai, eu fi i em ‘cima € contei pro meu Amigo Pintor (acho que é me- Ihor escrever © meu amigo com letra maiscula) rado gue tinha acontecido, Ele acendeu o cachimbo, ficou olhando pela janela feito coisa que nio ia mais parar de olhar, depois falou: = Vermelho é mesmo uma cor complicada. E pronto, Porque ele era assim: nio gostava de falar se ele no tinha vontade. Mas, quando tinh, a coisa que ele mais curtia era falar de arte. Entre wma partida e outra de gamo (uma ver ele disse pra minha me que jogar gamo comigo fazia bem pra cuca dele) cle me mostrava livro de pintura, contava caso de artista, ¢ muitas vezes eu no entendia a pintura que dle mostrava, — Mas gostou? — ele perguntava. — Gostei. ~Entio, pronto. Mais tarde voct entende, Ou aio, ony anno mnstow Nessas horas ew olhava pro meu Amigo € 50 7256 2 pintura que ele estava mostrando que eu no centendia: eu no entendia era ele também. Acho que é por isso que eu olho tanto pro vermelho que ele pintou aqui no album. Pra ver se et entendo. Pra ver se eu entendo. ra verse eu entendo por que que tem gente que seman. So depois que o relogio parou de bater¢ ficou esse branco todo ai em cima onde o meu Amigo morava, 56 depois que eu chorei a bega de ver 0 corpo dele passando ai no corredor do prédio, ¢ da minha me dizendo que crianga nio precisa ira enterro nenhur, eu no indo, é que uma garota que mora no térreo chegou perto de mim ¢ falou: =O teu Amigo Pintor foi pro inferno. en Digtatzado com Camscanner OMLU AMIGO PINTOR Empurrei o diabo da garota longe ¢ vim membora. Mas hoje, sem estar esperando nem nada, aconteceu uma coisa que mudou o jeito vermelho que ew estava sentindo dentro de mim. & que et esbarrei na porta do elevador com a Dona Clarice. Ela ia saindo ew ia entrando. Fiquei tio afobado que, em vez de dizer bom dia, eu perguntei: —Ele explica na carta por que que ele se matou? Pura vida! cu nunca pensei que uma pergunta assim tio horrivel podia sair sem a gente ter tempo de segurar, Mas sai. E a Dona Clarice ficou parada, de porta do elevador aberta na mio ¢ de olho arrepalado pra mim. Eu fiquei tio sem jeito que eu quis sumir, Ainda bem que tocaram a campainha do elevador: a Dona Clarice feito que acordou; largow a Digtatzado com Camscanner LYGANOLNGS. porta ¢ passou a milo pela testa com um jeito nerves, De repente fez cara de quem lembrava de uma coisa cme estendew umm embrulho que estava debaixo do ‘braco. O meu Amigo Pintor tinha escrito assim no embrulho: “Para 0 meu parceiro de gamio.” ~ Eu ia pedir pro porteiro entregar isso a voce la fou, Ai ela ficou olhando pro chio e depois disse baixinho: — Ele ndo se matou, no. Ele morrew aque nem...que nem todo mundo um dia morre. ~ E disse tchau e saiu depressa. Ex fiquei olhando pra letra do meu Amigo ‘po papel do embrulho. Mas depois lembrei do relégio «sa correndo: pura! se ela tinha 2 chave do apartamento bem que ela podia voltar e dar corda no relogio. ‘Mas ela ji tinha sumido na rua. ‘Abr o embrulho. Era o tabuleizo de gamio (cle dobra no meio e fecha que nem eaiza pra guardar pedra e dado dentro). Achei tio bom © meu Amigo ter mandado ele pra mim. Mas, melhor, muito melhor seco piston que 0 tabulciro, foi o que a Dona Clarice falou othando pro chio, Pra mim, morte também € coisa vermelha, coisa dificil de entender. Mas se ela vem feito ela vem pra tanta gente todo dia ai fica mais Ficil um pouco de sear, Entio eu vim pra casa com aquela frase voltando sempre na minha eabesa: ele morreu que nem todo mundo um dia morre. E af aconteceu uma coisa que eu achei bem legal: foi nascendo um amarelo li dentro do meu vermelho. Digtatzado com Camscanner Digtatzado com Camscanner OMPU AMIGO PINTOR sindico tinha ido na policia dizer que o meu Amigo estava morando aqui no prédio, Tipo do cara que no saca nada de cada um na sua, no €? E ainda por cima, sempre que esse sindico aparece aqui em casa, ou é pra fazer queixa de alguém do edificio, ou é pra arrastar o meu pai ¢ a minha mie pra reuniio de condominio (que eles detestam). Entio eu achei melhor ficar bem quieto aqui no meu quarto, Mas Li pelas tantas eu ouvi o nome do meu Amigo ¢ comecei a prestar atengao na conversa da sala. Tive que abrir a porta pra escutar 0 meu pai: ele estava falando de suicidio, ¢ cada vez que ele ea minha mie falam nisso eles baixam a voz. O sindico no: ele tem um vozeirio que, nossa senhoral, até o cochicho dele é um cochichio que a gente ouve Ii da esquina. E entio ele foi cochich3ozando que o meu Amigo tinha ficado marcado por causa das ideias politicas dele (eu no entendi nada do que isso queria 29 Digtatzado com Camscanner Lyctapoyunce dizer) e, quem sabe, ele tinha se matado por causa disso? Seri que ele achava que ia ser preso de novo? =a minha mle perguntou. E.ai comegote politica pra e3, politica pra [Nio aguentei mais fiear quietor fui Ii na salae falei: ADona Clarice disse que o met Amigo -morreu feito todo mundo um dia morre. Nio foi de propesito, nio! ~ Ela tinha que dizer isso, nio tinha? —0 sindico falou. Respondi olhando pro meu pai: Ela conhecia ele melhor que ninguém, ¢ela ime garantiu que no foi de propésio. — Ela tisha que dizer isso ~ 0 voztirio falou de ‘novo ~ pra ninguém ficar pensando que foi por causa dela que ele se matou. Eu nio parava de olhar pro meu paiz€ 0 mew pai nfo parava de olhar pra mim. = Mas por que que ele ia fazer isso? — — Porque ele estava doente, met filho. = Doente? A gente jogou gamio na véspera. THE partidas. Uma atras da outra, E ele nio tinha nada! —Doente aii ~o meu pai bateu na cabega -i #6 uma pessoa que esti muito doente aqui faz © que ele fe — Mas voce quer, por favor, me explicar direito tudo que aconteceu? ‘Aia minha mie disse que eles ji esavam atrasados pra reuniio de condominio. Eu fiquei nerwosor = Mas ele era meu amigo! © sindico levantou: = Vamos indo? — Amigo pra valer! Ele mesmo falou que idade nio contava pra gente ser amigo sincero. E eu ‘vou ficar sem saber se foi mesmo de propésito que ele ‘A minha mie me abragou: a Digtatzado com Camscanner Hycraronca Vocé nio tem mais que ficar pensando nso, {> Cliudio, Na sua idade a gente tem que pensar éma vids endo na morte. Voeé tem outros amigos = Que eu no gosto feito eu gostava delet = .woed tem tanta coisa pra estudar, pra brincar, pra inventar, para de ficar pensando no que aconteceu com ele ¢ toca 2 vida pra frente, mew filho! ~ Foi saindo cx figuei E Fiquci no ar ainda por cima. Voltei pro quarto. Achei que o meu pai estava com mais cara de verdade do que a Dona Clarice. Nao € porque ele era ‘meu pai, no: era pelo jeto dele olhar tanto no meu lho dela olhar tanto pro chio. ‘Mas certeza eu nio tenho. E fico pensando: seri que foi mesmo? E se foi mesmo, foi por qué? Ele gostva tanto de pintar, de jogar gamio, de ‘comer, de pensar, ele gostava do relégio tocando se via uma flor Ii embaizo logo debrugava na janela pra sme dizer, olha que coisa bonita. E dle vai e acaba com tudo isso que era tio bom? ‘Sena hora de debrugar pra ver a flor ele caia da janela: se na hora de comer ele se engasgava ¢ sufocava: couse ele entio tivesse ficado bem velho; mas, assem? esolvendo ele mesmo? eu vou me acabar é agora? Por que, por que. por quit © tabuleiro de gamio estava aberto (hoje era dia da gente jogar); €0 illum que ele tinha me dado também aberto numa aquarela que mostrava um barco amarelo afundando num mar cor de.. que cor era aqueli? Nio era bege. Nem era marrom fraquinho, Quase que podia ser uma cor que © meu Amigo ‘gostava e que ele chamava de siena. Mas também no io tinha cor de rosa nem de laranja, 0 que que era entio? Ai eu inventei que era cor-de-saudade € pronto. Na pigina do lado, pra mostrar como é que as ‘cores mudam, 0 meu Amigo desenhou outra aquarela: a Digtatzado com Camscanner LYGIA BOUNGA depois de afundar no mar cor-de-saudade 0 barco aparece de novo, mas ai, com aquele banho, 0 amarelo dele ficou diferente, esquisito, com uma cara que cu nto gosto nada e que eu vou até chamar de amarelo-sindico. Quanto mais eu olhava pr'aquele barco, mais eu achava que a Dona Clarice tinha mentido pea mim. E quanto mais eu achava, mais o meu amarelo também ia ficando com cara de sindico, ¢ mais eu ia me sentinds feito 0 barco: todo rodeado de cor-de-saudade. ‘Uma cor-de-saudade que ia até se avermelhando de tanto que eu estava achando tudo dificil de entender. ‘Quer dizer entio que a Dona Clarice tinha smentido pra mim (mas por qué). Ento tinha sido mesmo uma morte de propésito. Mas por qué?” E por que que quando é assim todo mundo fz mistéio? E fila bai? E fica até parecendo que é palavra feito palaveio; por qué2! LO.MEU ANGGO PITOR ‘Se um cara vai preso porque matou, porque soubou, gente assim da minha idade fica sempre pot dentro; por que entio, se dizem “ele é um preso politico”, gente da minha idade nunca entende direito ‘0 que que isso quer dizer, por qué? E quanto mais por-que-por-que ia aparecendo, mais de sindico 0 meu amarelo ficava, ¢ mais corde-saudade crescendo! On SMOG Também, com esse branco todo do relogio que no bate, ¢ com esse tabuleiro de gamio aqui parado, sme olhando com cara de que hoje era dia da gente jogar,é claro que a saudade 56 tem que aumentar. Se continua assim crescendo, eu nem sei no que que vai dar. Reso MoLit og Digtatzado com Camscanner N. ‘meu Slum tem uma pincura que & toda cor-de-saudade, ena frente tem tr pessoas: uma branca duas azuis, A cara delasé meio apagada, ¢ quantas vezes ¢u fiquei pensando se era cara de homem ou de mulher, Bem que eu queria saber o que que © meu Amigo estava pensando quando pintou essastrés figuras Queria saber pra comparar. Porque ontem eu sonhei com elas. Mas acordei atrasado e sai correndo (a gente sth ensaiando uma pega de teatro i na escola etinha censaio de manh3),* E quando o ensaio acabou eu tinha © Depois que eu aceite fazer parte da pega eu me arrependi eu lo quero ser ator: eu sou meio envergonad; o que eu quero se pintor. ory axed pee me esquecido do sonho. Sé me lembrava das cores € «das trés figuras, mas nio sabia mais o que que tinha acontecido. isa esquisita que € sony ‘com aquele montio de coisa acontecida dentro da gente elogo depois, pul exquece. Resolvi esperar pra ver se lembrava de novo, ‘Mas nio lembrei. De tanto eu querer lembrar, esta noite eu sonhel outra vez da mesma cor e com as trés. Agora eu fico sem saber se é repeti¢io ou nio do primeiro sonho. Paciéncia, deixa eu contar logo o segundo antes dele sumir também. A comtna era cor-de-saudade. Eu estava no teatro olhando pra ela, e quando ela abrit paleo ‘estava vazio, nfo tinha cenirio, nem cadeira, nem nada Digtatzado com Camscanner a Mas 0 palco era todo da cor da cortina € quem, sentava na plateia ficava entSo 56 olhando pra sadade mais nada. relogio comesou a bater bonito. Contei doze pancadas. Nao dava pra saber se era meio-dia ou meia-noite 21 cor nio ficou nem mais de noite nem mas de dia. E depois que o religio parou de bater as trés figuras entraram no paleo. Do mesmo tamanko, 3s tris andando bem junto, uma branca ¢ dus amis: € foi s6 olhar pra branca que et vi logo que era 0 meu ‘Ammigo( Pinto fazendo 0 papel de fantasma. E sabe, fiquei aflto. ‘As outras duas figuras eu nio sabia que papel els iam fazer. Mas elas eram azul tio vivo, to forte, ue jogavam um brilho no paleo efaziam a cor da saudade ficar mais forte. E mais forte dentro de mim também. Ai, olhando pro meu Amigo vrado fantasms, ce sentindo e vendo aquea saudade-fore, eu nio aguenteis desatei achorze. Um choro alto toda a vida. Todo mundo na plates comesou a fazer: — Paint tiiu. ~ E ew chorando cada vez mais ako, Nossa que vexame. (© meu Amigo tinha ficado parado no paleo. Ele ¢ as outras duas. Sem se mexer nem dizer nada. piblico foi perdendo a paciéncia, comesou a bater palma, a bater pé, assobiou, E nada da representacio comesar. Eu fui achando aquilo to esquisito que parei de chorar. Olhei pro meu Amigo. Ele tirou a mio do bolso (eu estava sentado bem atris, mas dew [pra ver que a mio era mesmo dele: estava suja de tinta e segurando um pincel) € me chamou com 0 pincel. A plateia parou de bater pé, de assobiar; me colhou. Eu levanteie fui indo pro paleo. A minha pera ‘tremia tanto que mal dava pra andar. Nio sei se era “a Digatzado com Camscanner LYGIARO[UNGA vergorha de ver todo mundo ali me olhando ou se era medo de chegar perto do meus Amigo assim tio virado fantasma. Mas chegue. E ai ele cochichou pra ~E agora, Cliudio? — Agora 0 qué? — Eu ni sei representar fantasma, 0 que que eu faso? eu nfo sei o que que eu digo. ‘© meu coragio pulou. Cochichei superbaixo: —Mas voc? nio ensaiou a pega? Ele fez que no. =Nio decorou 0 papel? —Nio deu tempo. Eles me botaram nessa ‘roupa, me empurraram aqui pro palco, disseram agora, vocé é um fantasma, e pronto. Xi ( publico desatou de nove a bater pé. — Diz pra eas representarem — eu cochichei. ~ Quem? — Bssas duas ai do teu lado. LOMEU Aago PISTOR, = Jidisse. Ela falaram que sio coro. Soo qué? =O papel delas €comentar a minha historia Se ceando conto a minha historia elas nio tém nada pra coment. = Nossa! —E agora, Cliudio? 0 que que eu digo, o que aque x fago? ola, 18 todo mundo esperando, 0 comegando a vaia — Vai embora! diz que voeé nio quer ser fancasma. —Nio posso. —Por quit! —Té preso: costuraram a minha roupa na rou- padeas, Fai pra tris do meu Amigo pra verse descosturava o branco do azul sem ninguém percebet. Quem diz? —Nio é costura! — eu falei. -E pintura. Ah, entio no vai dar pra separ. Digializado com Camscanner ~~ byensrowncs ‘Comesou uma reclamagio danad na plates; ‘uma porgio de gente gritando “coro € es peya omega ou nio comega?”. (O men nervoso ficou de um jeito que eu comecei a chorar de novo. © meu Amigo s¢ apavorox: —Nio é hora de chorar, ¢ hora de me ajuda Me ajuda, me ajuda! Eu tinha que inventar uma coisa correndo pra salvar o meu Amigo. Respirei fundo feito a gente faz quando mergulha, fui pra frente do palco...e comecei 2 cantar o hino nacional pibblico parou de grtar. Comegou a cantar junto, Enquanto iso, ia dando tempo pra pensar 0 ‘que que eu ia dizer. O hino acabou. Todo mundo batew palma, Ea fale: = Distinto pblico, ateng3o: eu vou contar pra ‘words a histéria deste fantasma. & uma histéria curta porque cle € um fancasma recém-morrido. Ele virou fantasma pelo seguinte: ele se enganou de tempo de ONL AMIGO MINTO _ porter. Bu nunca pensei que isso pudesse acontecet. Mas aconteceu. Era pra ele morrer s6 quando ele fosse sethissimo, mas ele era um artista, era um pintor (olha «So pincel na mio dele), tinha a mania de viver pensando «em cor. Acordava ¢, em vez de dizer feito todo mundo, cu estou triste, eu estou contente, ele falava: bajo estou roxo oj ex fique tio amare! baje ew avorde meio rox, mas fui amarelando li pro fim da tarde. ra cle, coisa que tinha mais cor-de-morte era nevoeiro. As vezes, quando fazia céu azul de manhi ‘mas de tarde comesava uma névoa, ele dizi: Ioje fee vide de man, mas agora td fazendo su pouco de vortade de more. Digiaizado com Camscanner dia desses, fez um a ‘oda a vida, Pintor espava pela jane do spore." pra 26 via auc nevocrotapando rade gu Eo ito costumava fila: hoje téfazendo un pony de vontade de morrer. Nevotiro assim forte quase sempre pasa ogo, Mas dessa vez ndo passou: era um nevoeiro comprid, que durou a tarde toda ¢ a noite inteirinha também. A toda hora o Pintor espiava na janels. E nada da vontade de morrer acabar. Foi por isto que le se nganou: achou que a vontade nunca mas ia passare entio resolveu matar a vontade. E entio, um ‘Tipo do engano sem jeito: no dia seguinte Religare ‘Mas ai o Pintor ji tinha virado fantasma, Foi 6 acabar a historia do fantasma que eu virei disfargado pra azul mais perto e cochichei: Lowey asco cron — Pronto, a historia tai. Comenta. Fala. Diz qualquer coisa. Pra qui! As duas me olharam danadas da vida € 2 azul mas forte cochichou: ~ A gente nio se engana feito ele no a gente decora papel ensaia pega. sabe tintim por tintim do aque tem que dizer. ~Entlo diz! — Mas o que a gente decorou pra comentar nio ‘em nada que ver com essa histria que voc? contou! — E ficaram supertrombudas e supersem abrir a boca. © pubblico desatou a reclamar de novo. (Um cara levantou e perguncou: — Quer fazer 0 favor de explicar 0 que que esses atores esto fazendo ai parados, que no representam nem nada? Me deu um estalo ¢eu respond — Eles tdo representando um quadro vivo. E isso! Seri que © senhor nto percebeu, nlo? Eles vieram aqui ‘mostrar um quadro desse Pinto. E quadro é pra gente Digtatzado com Camscanner char e io pra escutar.~ quando eu ia feando alvin chato me pergunton: = Entdo por que que voe? cont fantasma? a histria do [Nio dew outro estalo:empaquc © mew Amigo me sopeon: = Diz que € porque ti fazendo um nevorco muito forte e que é pa eles tomarem cuidao enh xe enganarem feito eu. ~£ porque ti fazendo um nevoeiro muito forte ¢ 4 pra voets tomate euidado e no seenganatem feito ce, quer dae, Feito ee. eu conde. “Tals, com aquele car ali me apertndo ¢ todo mundo me olbando, no dava mais pra aguenta 6 6@e@00 GADKOXROAOX Digtatzado com Camscanner E. tenho um colega na escola, sabe, ea gene € amigo. $5 que nio é amigo toda a vids, do jeito que cx era do mew Amigo Pintor (tem dias que eu fico pensando se di pra ter mais de um amigo toda a vida), ‘contem. no recreio, a gente conversou de coragio. Tudo comecou porque eu estava desenhando tum coragio; x8 que, em vez do coragio ser vermelho, cle era marrom. ¢,em vez de ser feito coragio que a gente conhece, ele era todo achatado assim pro lado « acabara de repente, deixando a gente sem saber que firm ele levava. Quando termine’ o desenho, eu mostrei ele pro sme colega — Que que éss02 ~ ele perguntou. = Or. tai. = Taio que? = Mas nfo di pra ver 0 que que & = Nie. = Entio adivinha, ué. Sei li. —O meu coragio. Ele olhow ¢ othou. —Ainda no ti vendo nia? — eu quis saber. Eu, nio! Pra comesar, coragio é vermelho. — Bom, mas esse é o mew coracio. —E dai? porque é teu nio é vermelho? — Nio é isso. E que eu ando chateado ¢ entio ‘0 meu coragio ti assim desse jeito, parecendo que levou uum soco € se achatou todo pro lado. Soo? ~E coragio vermelho € corag3o de todo dia. (O meu nio esti que nem todo dia, ele ti todo diferentes entSo tem que ser de outra cor. Tem ou no tem? (© mex colega olhou pro papel. Olhou pra mim: st Digtatzado com Camscanner pyaaronssc = Nio pode. Tem que ser vermelho. E tem que ser pontudo embaixo, Me di aqui o papel pra eu te mostrar como é que é = Pera ai, voc? no td me entenddendo, Acontece que = Me di o papel, deixa eu desenar isso dircto, = Quer fier 0 favor de escutar 0 que eu estou te explicindo? Se o meu coragio ts diferente, todo ruim, todo chateado, eu nio vou desenhar ele feito aquele comisto que toso mundo desenha pra namorads, nlo Pera a no pasa ‘Mas ele purou: Etirou do bolso uma caneta vermelha ¢ foi mudando toda a cor do meu coras3o. E fer de embaino bem pontudo. E ainda por cima Iembrou: ~ Coragio tem que ter seta! ‘Tacou uma seta no meio. Foi corigindo de um Indo, corrgindo do outro, ndo deixou mais © mew ‘coxago ficar nem um tiquinho esborrachado, e eu, de bbarto, sinds quis explicar! ous a ceduendo ee jas eu e593 chateasio- : sa! _gorracion de OST chateado, diz logos 7° ~ Pods: sO Uocreveus “Estou esborrac * — Pronto! agora | rodo mundo porn OE me deu o corasso de volta. nse” pao agente € disse, pra que que et 14679 2 eai ele falou, porcaria é aquele negocio Pot) desenout ¢ ai ele viu a Denise (uma garota w ele acha © maximo); arrancou © coragio da minha seconde tinha escrito “ew estou bateado” ele tora dois pontos ¢ rabiscou bem grande: VOCE NAO OLHAPRA MIM! Saiu correndo, deu o meu cora¢30 pra Denise e foi jogar bola. Ah ‘Melhor. (© que que eu ia fazer mesmo com um coragio _que ji nio tinha nada que ver com om os Digtatzado com Camscanner de eshorrachar € amarronzar cor34i0. CDECOGVODOS pOMOnNeS CPOGOSGDEQOE Digtalizado com amcanner D. Amigo, tem Por qué. tudo que eu conversava como mey das coisas que eu lembro mais. Nia xe A primeira é um papo que a gente teve rum domingo. Tava chovendo. A gente tinha acabado de jogar. O meu Amigo levantou, acendeu 0 cachimbo, omesou a preparar umas tintas e entlo conversou de amor. ‘Amor de trabalhar. De pintar, Amor de homem e de muther, de pai, de mie, amor de idade-de-pais-e-de-mundo onde a gente mora, amor de filho, de amigo. — Amor assim feito a gente tem um pelo outro — de falou. O meu corasio pulou. Toda a vida eu gostei do meu Amigo assim. assim bem grande: mas eu sempre pensei que ele {oravamenor de mim. NSo sei se porque eu era eranga «cle nlo: ou se porque cle era um artista € eu no: 58 si que quando ele falou de amor 0 meu enragio pulow aquele ito: seré que entio a gente se gostara igual Quis logo verse era mesmo: Como ¢ que vocé gosta de mim? —Depende. Tem dias que eu gosto feito pai Fico com pena de voct nio ser meu filho, de nio poder dizer fui eu que fiz esse garoto legal!~ Meio que rs. Depois ficou séro, sentou em frente do cxvalete€ ccomecou a pintar. ~ Mas ai no outro dia, eu n30 tenho rrenhuma vontade de ser teu pa: quero 55 ser tex ago € pronto. — Pintou mais um boeado.— As veres eu posto de voc? porque voeé & 0 meu parceiro de gamto; ‘outras vezes porque eu tinha vontade de ser voe8. quer dizer, de ser crianga de novo. Ent € isso: cada dia eu gosto de voct de um jeito. Ese a gente junta tudo que € jeito, wt que gota hem grande, 8 que amor, Digtatzado com Camscanner aa rornca aroun, Achei tio bom ele falando de gostar assim de ‘mim que fiquei ali parado sem dizer mais nada, 56 olhando ele pintar. Mas li pelas tantas eu no resists = Voct acha que a gente é parecido? — De cara, nio; de jei Jeito de ficar quiet, jeito de espirrar sem estar gripado, jeito de olhar pras coisas. Tive muito amigo grande, mas nenhum de jeito tio parecido comigo feito voce. —E, mas com amigo grande vocé pode conversar coisa que no conversa comigo. Por exemplo? Eu estava doido pra dizer que ele no conversava da Dona Clarice comigo. Mas achei que ia ficar chato. Sé sacudi 0 ombro e fiquei olhando pro pincel. Era um canto da sala que ele estava pintando. Cadeira, Mesa, Limpads, Mas ai cle comegot a pintar um pedago de mulher. Eu digo um pedaco porque ele resolveu pintar a mulher bem no lugar onde a tela acaba. Fiquei grilado com aquela mulher tio s6 com ‘uma perma s6, tima tripinha de vestido e um pouco de cabelo (o resto dela sumia pra fora do quadro). Eu sei que pintor gosta de pintar coisa diferente. eat tinha aprendido que pinta bem nlo precisa ser jintar wid certinho feito fotografia mostra. Entio no {Giperpirs muller sia do aks que gt Fe ‘porque, mesmo com to pouguinho dela aparecendo, cla tinha © mesmo jeito de tudo que é mulher que 0 meu Amigo pintava, Asala estava cheia de quados que ele ia pintando ¢ pendurando; uma porgio com mulher. Sai cothando cada uma. Sé pra ter certeza do que eu estava pensando, E era mesmo! a mulher podia ser gorda, ‘magra, preta, branca; podia ter oho e nariz ¢ boca. € podia ter sé wma mancha na cara como ele gostaa de pintar, mas tinha sempre o mesmo jeito,¢ tinha sempre ‘um pedaco amarelo também. Por que que tudo que é mulher que voce pinta ‘tem um jeito igual? Digtatzado com Camscanner LyGia nays, Ele continou pintando; custou pra respond. = Tem uma mulher que mora no meu pensamento, sabe; eu nem vejo quando ela sai da minha cabega ¢ entra na minha pintura. Eu perguntei sem nem pensar: —E.a Dona Clarice? — E ele respondeu na hor -éE = Mas ai ele parou de pintar. Levantou. Ficou olhando pra um quadro; pra outro. Acabou dizendo: ~ Mas no era pra sair assim sempre igual. O amarelo, sim, eu fago de propésito. Amarelo pra mim é também cor-de-Clarice, ¢ eu gosto de botar um pouquinho dela em tudo que eu fago. Um pouguinho 56? otha essa aqui: ela € toda amarela. —E que essa era a Clarice mesmo (num dia de alegria). Mas essa outras aqui, no. Se eu fosse um bom pintor, mesmo com a Clarice morando no met pensamento, eu pintava cada mulher do jeito que ela é, € no assim sempre igual OMEU ANnGo prNTTOR = Mas vot é um bom pintoe! =Nio! nfo, eu nio sou. Ex sei muito bem ‘como é que se pinta; eu tenho técnica; trabalho € ‘trabalho pra ver se dou vida aos meus quadros. Mas, slo adianta: so telas mortas. — Foi apontando com 0 pincel:— Otha. Othat Oth! no di pra ver! ndo di prasentir que a minha pintura no tem vida? — E ai dle jogou o pincel na mesa com um jeito meio, sei li, um jeito desesperado que, francamente, eu nunca tinha visto ele ter, Eu fico lembrando dessa cena e fico pensando tuma coisa: seri que um artista pode amar tanto 0 trabalho dele que...deiza eu ver como & que ew explico isso... pode amar tanto o trabalho dele que, se ele acha que o trabalho nio tem vida, ele também nio quer mais ter? Digtalizado com CamScanner LyGiA ropa A outra lembranga que fica vindo na minha cabega é a de um passcio que a gente fez logo depois de resolver que ele ia me ensinar a pintar. Fazia sol. Ainda era férias. A gente saiu pra fora da cidade, levando tinta, pincel e papel Parou perto cde uma floresta. A minha mie preparou sanduiche, No chio tinha um matinho novo, bem curto. A gente sentou nele ¢ comeu (no o mato: 0 sanduiche), Em volta era tudo verde. O meu Amigo entio falou de verde: fore, fraco, verde de tudo que é tom. Mostrou tinta, mostrou mato. Comparando. A gente pintou. Deitou no chio. Othou pra nuvem. Ele dormi, roncou, sonhou. Acordou e disse: sonhei com a Clarice, Fiquei espantado dele falar assim nela. Falou feito sonhando; olhando pro céu; 0 brago assim pra tris, frzendo de travesseiro. ‘Contou dos dois se namorando, Ela foi a primeira namorada dele e ele dela. Brotinho ainda. Que vontade que ees tinham de ver logo o tempo passando pra poder cast! Custou a pasar. E 0s dois oMEU Aco prstoR ssperando, Até que um dia passou, Mas ai ninguém casou: eles comegaram a brigar: ela reclamava que “desitha se apisonade pela politica, que em vez de gosar sh dels, ce tinha dado pra gosta de rudo que é ‘Fes igual. que, em vez de ficar namorando ela, ele ‘ara comici, ra reunifo, pro norte, pro sul de tanto Sadar pel Bai. um dia le tsi: prendeam ele a pergunte: — Como é que é a gent se apaizonar por polities? asim feito a gente se apaixonar por uma garoe? ~Benioé —E em vez de me explicar ele continaou contando o que ele estavafalando, que ficou preso muito tempo “escrevi sempre pra Clarice, mas cla nunea recebeu carta nenhuma”. Ea ela pensou que le tinha se esquecido dela. Um dia, de tanto cansar de esperar, ela acabou casando com outro. E tee flho ce tudo. E36 no ano passado eles se encontraram de novo. De repente, puf, um esbarrio na rua Ficaram se olhando sem nem acreditar, Vendo que tinha pasado tanto tempo. E que eles continuavam se gostando a Digtatzado com Camscanner LYGIA RORNGA, igualzinho. Ai eles quiseram de novo se namorat, mas 3j ‘o meu Amigo ficou de olho fechado ¢ eu pensei que ele tinha dormido outra vez. Eu gosto de ficar lembrando disso. Era tio bbom a gente ali deitado junto da flores, conversando aquela conversa de homem, Olhei pra minha mio ‘enquanto ele ficava ali de olho fechado: estava suja de tinta que nem a dele. Achei bom também ter mo igual Fiquei esperando. E ele acabou contando 0 resto da historia: = Depois, cada vez que a Clarice vinha me visita, cu pedia tanto pra ela largar tudo e ficar comigo. Mas cla sempre dizendo que nio. Sabe 0 que que ela falava? {que eu era um homem dividido em ers paixdes: paixto por ela, pela pinturae pela politica. - Me olhou: — Mas nto era por causa disso que ela no ficava comigo, nlo; era por eausa do filho dela, eu sci. LOMPU ANco preTOR Mas quando eu vejo politico falando na tdlesisio eu acho aquele negécio tio complicado, t30 chato: como € que pode virar paixio? Ele sentout Acendeu o eachimbo na calma. Eu sentei também pra escutar. Mas ele acabou 56 dizendo: — Politica é mesmo uma coisa complicada — E pronto. Igualzinho como aquele dia que eu contei pra ee ahistéria do vestido vermelho da Janaina. E ai cle comesou a me ensinar outra vez tom de verde, € no resto do passeio todo a gente sé falou de tinta € pranchetae pincel. Digtatzado com Camscanner Digtazado com Camscanner E.. noite as trés voltaram. As tis as figuras do sonho, Eu fico até pensando se daqui pra frente eas vio moar no meu sono, e cada vez que eu quisersonhar elas resolvem me visitar. ‘As trés chegaram que nem da outra ver: juntinho, Mas desta vee estavam de roupa verde. (Um verde igualzinho 20 blusio verde que o meu Amigo ‘usava pea pinta.) Mas nesse sonho, sabe, em vez de uma ser fantasma e 2s outras coro, elas eram as trés pairdes do meu Amigo Pinto. ont aco NTO __ Cumprimentaram, sentaram ¢ comegarain 2 conversar. Tinham voz. igual. Tudo que uma falava, as outras gostavam. E riam trés, eu fiquei sem saber qual era a¢Dona Clari qual ra a Pintura'e qual era’ Politica ‘Quanto mais elas riam, mais iam se espremendo ‘uma na outra, Pareciam até uma sé ali sentadas no sofa. Que era estampado. De repente, eu resolvi perguntar se uma no tinh ciime da outra vendo o meu Amigo gostar das trés a0 mesmo tempo. [Uma caiu na gargalhada: a outra se cspantour: masa terceira fez cara de Dona Clarice c explicoue —No principio eu queria que ele gostasse 56 de mim. Eu tinha ciime dela ~ apontou quando ele ficava pintando em vez de me namorar, xi! eu ficava danada da vida, ae Digtatzado com Camscanner MIGO PINTOR —E ait pofl, o meu citime acabou. —Poft —Poft E cada vez que uma dizia pof, abragava a outra. Uma coisa tio engragadal eu até comecei a rir. Mas elas ficaram bem sérias; e falaram assim pra mim: — Com a gente amiga e junta dentro dele, 0 teu Amigo vai poder viver em paz. —E toma nota: ele agora vai ser feliz. — Feliz para sempre! Eu achei tio boa essa noticia, que me espremi no sofa pra bater papo mais de perto, Mas ai elas falaram: — Agente nio pode ficar: tem que namorar. —Etrabalhar. —E politicar. Se levantaram dizendo um tchau igual; e foi s6 elas sairem que o meu sonho achou que tinha ficado muito vazio, ¢ pronto: acabou. Que pena! tava tio bom sentar ali, sabendo que agora o meu Amigo vai ser feliz. 7 Digtatzado com Camscanner Digatzado com Camscanner Quen eu vinha voltando da escola 4 Rosili ‘osilia disse que a amiga do meu Amigo estava Ii A Rosilia a filha do sindico; a amiga é3 Dona Clarice: e ld ¢ 0 apartamento do meu Amigo Pintor. Eu disse ab &? com cara de quem nio estava ligando, mas meu corag3o tava pulando: ex vi logo que eu tinha que falar com a Dona Clarice ¢ perguntar pra ela 0 que eu andava querendo saber. Entrei no elevador ensaiando depressa na cabe- 2.um jeito legal de falar. Teve que ser depressa porque © elevador chegou logo ¢ eu achei que era chato ficar parado na frente da porta do meu Amigo sem aper- tar a campainha nem nada. Apertei. A Dona Clarice 1 ddemorou pra abr a porta e entio deu tempo de ensaiar de novo. Ela abriaa porta. eu abr a boca € @ regio tocou. Tipo da coisa que nio tava ensaiada esa feito tivease€ et; que tinha ensaiado t3o bem a minka fala, cempaque. E incrivel como aquela barida ~ uma 36, era ura meia hora = me deixou assim. sei li. Primeiro ex fiquei contente: 0 religio batendo era banulho certo do mew Amigo, parecia até que ele tinha voltado. Mas ‘em seguida eu pensei nele como naqueleikimo dia ‘eu tinha visto: morto pra sempre. E ai aquela batids do reldgio ficou batendo dentro de mim de um jeito _zsim tho vermelho, to dificil de entender que — quem diz que eu me lembrava do que eu tinka que dizes? Anda mais que a Dona Clarice estava ali me olhando € vuaando um vestide corade-saudade fortisima. En olhara pro vestido e pra dentro da sala. Pro vestida € pro religio, Pro vestidoe pra cadeira que © ‘mca Amigo sentava. Ai a Dona Charice penguntour Digtatzado com Camscanner queria saber por: Pra mim. — (Tudo diferente do one A gente se olhou. Eu expliqueiz —E que... vocé disse que ele tinha morrido feito todo mundo um dia morre. Mas todo mundo nio resolve morrer de propésito, resolve? = Vocé niio quer entrar? IE qe VE eng, cu tinha emssiaday) Entrei s6 um pouco. E como ela continuava sem falar, eu acabei dizendo: — Eu precisava saber direito 0 que que aconteceu com ele. —Por que que voc’ diz que eu menti? —Entio no mentiu? entio a noticia jf nfo se espalhou ¢ agora todo mundo ji nio std sabendo que ele se matou? Ela foi indo pro fundo da sala. Parou junto dx janela. Ficou espiando pra fora. Gozado: 0 meu Amigo também pensava assim de pé, com jeito de quem esti s6 olhando pra rua. —Foi porque voed acha que eu sou crianga? — cx falei (depois que eu achei que ela no ia mais responder), — Li em casa eles acham que esse assunto indo € coisa de crianga. — Ela me othou. ~ Vocé tam= bem € assim? foi por isso que voc? mentiu pra mim? — Nio. Eu tenho um fitho da sua idade € eu convene tudo com ele. —E de suicidio? vocés também filam? Eh fee que sim. = Vocé disse pra ele que 0 meu. que © seu que 0 nosso Amigo se. —Disse. por que que nio disse pra mim? Ela virou pra janela. E como nio desvirava, nem falava mais nada, eu acabei desabafando: Pra eu nio ficar achando também que foi por sua causa que ele fez isso? — Ela olhou depressa pra mim ¢ eu fiquei assim... como é que eu vou explicit? assim metade sem jeito e metade com raiva. Pra ser franco, esse pedago da raiva eu venho sentindo todo Digtatzado com Camscanner « > #Sindico fo; 15 or fi Liem Oca de que foi Por causa dela que. SE ~ Também achando que tudo ~Estio, —E vocé acredita? Fiquci queto (ea também nto fcr) oan Pros quadros que o meu Amigo pintava. Eli veio pra perto de mim e me olhow fundo no olho: — Eu nio sei por que que ele fez isso. Eu sinha achando ele triste; um dia desses eu perguntei se cle andava assim por eausa da politica ou do trabalho, e foi ai que cle me disse que nunca ia ser um grande pinto «quanto mais ele trabalhava, mais ele via como era diffe transmitic numa tela o que ele queria dizer. Vocé, que era também amigo dele, voc’ também no achava ee triste? Fiquei pensando. As vezes eu achava sim. Outras vezes eu pensava que nio era tristeza: era 360 jcito quieto que ele tinha, Por qué? — ela perguntou, —. isso aconteceu por minhs cans El nio esperou eu responder; continuou: queria que eu deixasse a minha familia pra casar com ele, Mas eu andava sem coragem- Ea gente entio combinou de esperar. Eu penso nisso tudo, smus continuo sem saber por que que ele fez isso. — [Nessa hora eu achei que ela ia chorar. Mas ela ilo: A gente era assim, 6 — juntou dois dedos. Na Slkima vee que eu estive com ele. a gente combinow tuma porsdo de coisas: um filme que ia ver. um passeio aque ia fazer. combinou de ficar sempre assim — mostrou de novo os dois dedos juntos, eeu vi que a milo dela estava tremendo: a fala também: saia toda tremida ¢ cada vez mais bairo, — Quando eu voli cle tinha se matado, Na earta que ele me deizou ee 6 pintou um buqué de flor. Margarida e crave, que ele sabia que eu gostava. E embaixo, em vez de uma cexplicacio, 36 tinka um pedido de desculpa: uma coisa. tio esquisita, tio curtinha...s6 assim: “desculpa, sim?”. Mais nada.— Voltou pra jane ¢ ficou de costas pra mim. Digtatzado com Camscanner LAIN VAIN ®® 600 muito df viver com uma lembranga que agente no Seas NIZA NZ A gente se beijou ¢eu vim membora. Conic Digtatzado com Camscanner A conn Passou toda de um j No gostei nada, mito Pelo seguinte: cada vez que en lembrava do meu Amigo ele vinha imo depen a Por qué? Tipo do pensamento ruin! ta E ainda por cima fez um tempo horzivel, (Chuva, chuva. Chuva e aquele nevociro que 3 gente ‘no vé nada Li fora quando espia da janela, e que js disseram que nevoeiro pior que em Petrépolis x6 ‘mesmo na Inglaterra. Entio eu fiquei na fossa. Achei que nunca mais ia parar de chover e que munca mais eu ia poder lembrar do meu Amigo sem achar tio ‘Ai na quinta-feira de manhi, na escola, ea figuei colhando pro meu cademno aberto e pensei: pura, sas onary aren resTon

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