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24/01/2017 A 

Indústria Cultural no século XXI – Robert Kurz – Ensaios e textos libertários

Ensaios e textos libertários

EMANCIPACIONISMO

A Indústria Cultural no século XXI – Robert Kurz

(hĀps://arlindenor.files.wordpress.com/2015/05/img_1631.jpg)

Introdução

Há textos que já estão envelhecidos quando vêem a luz do dia. E há textos que mesmo com cem anos
de idade se apresentam frescos e emocionantes. O livro A Dialética do Esclarecimento de Adorno e
Horkheimer, onde se inclui o célebre capítulo sobre a Indústria Cultural, teve a primeira edição em
1944. Poder‑se‑á ainda falar tanto tempo depois da actualidade das ideias aí formuladas?

Para o pensamento pós‑moderno em sentido lato a resposta é clara: não. Este ponto de vista tornado
dominante nas últimas décadas gosta de acusar o conceito de indústria cultural de ser portador de
um “pessimismo cultural” conservador. Que mal poderá haver na industrialização da cultura? Não
se encontrarão aí potenciais de liberdade e progresso que podem ser utilizados por todos os seres
humanos? A esquerda cultural e pop pós‑moderna, na sua experiência mediática para não dizer
snobismo mediático, julgou‑se para lá do pensamento “fora de moda” da teoria crítica. Com isso, no
entanto, apenas demonstrou o seu próprio carácter de simples fenómeno de moda. Entretanto a
empresa pop pós‑moderna já está um pouco entrada nos anos e os seus velhos protagonistas
ganharam uma aura já quase de avô. De repente eles mesmos correm o risco de se tornarem
conservadores em relação ao seu próprio métier de juventude cultural profissional. É precisamente
nesta situação que é de todo o interesse voltar a ver com outros olhos o conceito crítico de indústria
cultural e as acusações pós‑modernas contra ele lançadas.
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cultural e as acusações pós‑modernas contra ele lançadas.
24/01/2017 A Indústria Cultural no século XXI – Robert Kurz – Ensaios e textos libertários

 Da crítica aparente da burguesia intelectual ao culto pós‑moderno da superficialidade

Para começar será preciso esclarecer o que se deve entender por “pessimismo cultural”. No modo de
expressão pós‑moderno, que em todo o caso prefere proceder associativamente, a simples
classificação denunciatória já parece falar por si mesma, sem precisar de mais fundamentação. Aqui
se infiltra de algum modo a referência pejorativa à postura de “burguesia cultural” na argumentação
depreciativa, argumentação essa que permanece igualmente associativa e indeterminada. Na
realidade a “burguesia cultural”, a que corresponde a estrita diferença entre cultura de
entretenimento e cultura séria, é um fenómeno bem especificamente alemão. A literatura, a música
etc. “sérias” ou de “alto nível cultural” não devem ser manchadas por um “entretenimento”
entendido como fundamentalmente baixo, tal como o ensino e a investigação académicas não devem
ser manchadas por uma “ciência popular” aferida pelo entendimento comum.

Se a burguesia cultural clássica, sobretudo na Alemanha, torce o nariz à superficialidade da moderna
cultura comercial, isso não passa de um gesto vazio. Pois tal crítica permanece ela própria superficial,
uma vez que a sua preocupação é toda ela para os modos exteriores de exposição, enquanto o
conteúdo social e o núcleo politico‑económico de tais produções têm de ser ocultados e permanecem
amplamente irreflectidos. Esta espécie de “pessimismo cultural” é uma forma de reacção puramente
intracapitalista. Quanto mais se invoca abstractamente uma “essência interna” indeterminada e
mistificada da alta cultura iluminista burguesa, tanto mais irrelevante se apresenta a cruzada da
burguesia cultural contra a indústria cultural. Atrás disso esconde‑se um penoso estado de coisas. O
entretenimento frívolo e a simplificação popular não passam do reverso do carácter carregado
ideologicamente em alto grau das próprias ciência e arte burguesas “sérias” que assim se torna
reconhecível. O facto de estas não serem compradas apenas porque já antes tinham sido compradas
pelo Estado para efeitos de representação mostra a origem comum em que o dinheiro se valida no
Estado e o Estado no dinheiro. É verdadeiramente a involuntária revelação deste contexto que não
agrada aos críticos da cultura da burguesia cultural na industrialização da cultura, pois com isso a
sua própria vida fica exposta. Para os restos hoje miseráveis e do ponto de vista capitalista
precarizados dos bajuladores burgueses da alta cultura está completamente rompida a distância para
a superficialidade cultural, pelo que a sua atitude só pode ser entendida como sátira real.

É verdade que não se pode absolver sem mais Adorno e Horkheimer do patriotismo do milieuda
“burguesia cultural”. Este, no entanto, encontra‑se mais no modo de exposição do que no conteúdo
crítico. Se a “crítica da crítica” pós‑moderna insiste sobretudo no primeiro, então ela mais uma vez
diz mais sobre si mesma do que sobre o objecto que põe de lado. De facto para o culturalismo pós‑
moderno são sempre mais importantes os trapinhos, os acessórios, o “styling” e a atitude do que
aquilo que neles se exprime. A crítica inverdadeira e ela própria superficial da burguesia cultural à
superficialidade vira‑se num culto pós‑moderno afirmativo da superficialidade. A aparência imediata
ter‑se‑ia emancipado da sua essência. Ao que corresponde o modo de pensar positivista que submete
os conteúdos a um método formal vazio e os condena à indiferença.

A feira explícita da exterioridade, de que a crítica cultural conservadora e a nebulosa invocação de
uma “interioridade” constitui uma mera inversão, naturalmente não é nada de novo. Ela regressa
periodicamente, ainda que na pós‑modernidade tenha experimentado por assim dizer a sua apoteose
de capitalismo tardio e de capitalismo de crise. Heinrich Heine, no seu ensaio crítico sobre A Escola
Romântica (1833), tem em mira de certa maneira uma atitude e um modo de proceder semelhantes
para caracterizar o processo de autodissolução do romantismo: “Entre os imitadores de Fouqué tal
como entre os imitadores de Walter ScoĀ formou‑se tristemente o costume de descrever apenas a
manifestação exterior e o traje em vez de a natureza interna das pessoas e das coisas. Este género
rasteiro e modo leve grassa actualmente tanto na Alemanha como na Inglaterra e em França. Mesmo
se as descrições já não enaltecem o tempo da cavalaria, mas dizem respeito às nossas condições

modernas, mesmo assim mantém‑se o estilo antigo de ver apenas o acidental do fenómeno em vez de
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modernas, mesmo assim mantém‑se o estilo antigo de ver apenas o acidental do fenómeno em vez de
a sua essência. Os nossos novos romancistas, em vez de conhecimento das pessoas exprimem apenas
conhecimento do vestuário, baseando‑se talvez no mote: o hábito faz o monge.

Já foi dito muitas vezes e não foi só do lado conservador que a redução dos objectos à sua
fenomenologia e decididamente à sua fachada, tal como o formalismo tanto estético como epistémico,
constituem marcas ineludíveis de esgotamento cultural e social e de processos de dissolução; seja de
uma formação social, de uma época, de um padrão cultural ou de uma determinada escola. No que
respeita ao nosso objecto, trata‑se não apenas do modelo em fim de linha da pós‑modernidade, mas é
esta que já constitui como tal e no seu conjunto o modelo em fim de linha da modernidade capitalista
sob todos os pontos de vista. O baile de máscaras pós‑moderno não representa senão uma festa de
classe média em tempo de peste, nem sequer particularmente frívola, mas sim aborrecida. De resto
uma metáfora com que Roswitha Scholz caracterizou já nos anos noventa o carnaval histórico da pós‑
modernidade como fuga condenada ao fracasso para o palácio de cristal do capitalismo de casino.
Isso até hoje pouco mudou na consciência ideológica do carácter social pós‑moderno apesar dos
violentos surtos da crise. Quanto mais se invoca a “criatividade”, mais surge ininterruptamente a
apresentação do acidental e do exterior. Não é a criação de algo novo que se exprime com emoção
contra a determinação da essência, mas sim a fuga perante a essência negativa e completamente
miserável da realidade da própria existência.

A hipóstase da capa exterior cultural e metodológica encobre precisamente a causa central da
indiferenciação, ou seja, a forma social geral e sobreposta como conteúdo substancial, à qual também
a indústria cultural já pertence sempre. O que é “burguês” em sentido próprio na esfera cultural
dominante não é um gesto conservador da “cultura” da associação de filólogos, mas sim o carácter de
mercadoria dos seus produtos, que integra estes no reino do “trabalho abstracto” e a si mesmo se
degrada em elemento abstracto na metamorfose do capital, como um móvel de design ou comida de
design. Os protagonistas podem aqui ignorar reciprocamente o carácter de entretenimento ou sério.

Ironicamente a burguesia cultural clássica e as suas actuais figuras decadentes não se ilude de modo
diferente do pós‑modernismo que surfa nos média quanto à essência negativa da cultura capitalista.
Ambos reflectem apenas diferentes estádios do desenvolvimento capitalista do mesmo modo
afirmativo. O pessimismo cultural é conservador e a formação positiva pós‑moderna da indústria
cultural é apenas pseudo‑“progressista” no mesmo continuum capitalista não transcendido por
nenhum dos lados. Por isso a diferença se encontra apenas relativamente às embalagens ou aos
penteados, enquanto a determinação categorial idêntica permanece escondida e não se consegue
sentir o ridículo comum. Quando riem uns dos outros riem sempre apenas de si mesmos.

Crítica cultural elitista ou emancipatória?

O pessimismo cultural conservador é elitista até aos ossos e só a partir deste ponto de vista é pseudo‑
crítico da produção intelectual em série. A cultura há‑de supostamente morrer com o ocidente
porque já não está reservada às classes superiores “cultas” mas assume o carácter de uma cultura de
massas. A crítica da frivolidade, da superficialidade e da vulgaridade da indústria cultural reconduz‑
se assim directamente ao facto de ser produzida para a grande maioria, incluindo as camadas sociais
inferiores consideradas como que “por natureza” intelectualmente menores. Devia conceder‑se‑lhes
com gosto uma espécie de divertimento ingénuo, de modo a terem o seu prazer inofensivo e evitarem
maus pensamentos, desde que a alta cultura elitista mantivesse o seu caracter exclusivo e a coisa
ficasse entre nós.

Na indústria cultural, pelo contrário, sente‑se como ameaçador que ela nivele as pretensões,
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Na indústria cultural, pelo contrário, sente‑se como ameaçador que ela nivele as pretensões,
ultrapasse as fronteiras sociais e desmascare como um disparate a aura de zelo cultural da antiga
burguesia, uma vez que esta há muito perdeu a sua base histórica que só ideologicamente continua
presente. Não é por acaso que Adorno e Horkheimer troçam dos “amigos da educação” que
“idealizam como orgânico o passado pré‑capitalista” imponentemente patriarcal. Por isso a cultura
de massas industrial e comercializada não fica sujeita ao veredicto conservador por ser “o
esclarecimento como mistificação das massas” (como diz o subtítulo do capítulo da Indústria
Cultural), mas sim porque torna reconhecível a falsidade reacionária do auto‑incensamento bucólico
e imitador dos clássicos da consciência de professor efectivo que gostaria de refrescar a sua própria
estupidez social na canonizada “nobre simplicidade e silenciosa grandeza” (Winckelmann) de
heranças culturais irreais.

Inversamente os profetas pop pós‑modernos rejubilam exactamente com a mesma massificação
industrial como se ela fosse per se valiosamente emancipatória. A cultura de massas já seria sempre
boa, independentemente do conteúdo e da forma, e seja ela uma cultura autónoma das próprias
massas ou uma cultura que obedece a imperativos heterónomos e perfeitamente independentes
destinados à consciência estragada das massas. Uma afirmação mais ou menos do mesmo modo que
para a ideologia do movimento de esquerda (de resto completamente marcada em termos pós‑
modernos) qualquer movimento de massas em si já tem de ser essencialmente “autêntico” seja qual o
sentido em que se movimenta. A indústria cultural, independentemente da sua forma de mercadoria
e de capital, enquanto acessibilidade geral e afirmação de massas, é considerada como momento de
libertação no capitalismo de facto já não grandemente tematizado. Esta atitude aponta no entanto
apenas para o brutal interesse próprio de uma determinada personagem na comercialização,
nomeadamente como designer secundário académico e publicista. Essa é a verdadeira razão porque
ela gostaria de colar à teoria crítica o pessimismo cultural elitista conservador como qualidade
determinante. 
Ora o conceito negativo de indústria cultural em Adorno e Horkheimer quer dizer exactamente o
contrário: não é a acessibilidade para todos que é objecto de crítica, mas sim que a indústria cultural,
como eles dizem, “representa o mais sensível instrumento de controle social”. Trata‑se portanto do
conteúdo estruturalmente alienado e objectivadamente autoritário da cultura de massas capitalista e
não do seu alcance para lá das elites. Este conteúdo segundo Adorno e Horkheimer é “barbárie
estética” porque processa a “moral degradada dos livros infantis de ontem” a fim de disponibilizar
para os desaforos sociais os indivíduos cada vez mais infantilizados.

A antítese da indústria cultural seria uma cultura para todos que se opusesse à coerção da mera
repetição e internalização do princípio dominante; portanto nem uma cultura para poucos, que se
mantém como mero ornamento desse princípio, nem uma cultura compensatória de terapia
ocupacional democrática, que não passa de um mecanismo de controle híbrido. É justamente este
carácter essencial da indústria cultural na forma da mercadoria que os ideólogos pop pós‑modernos
não querem reconhecer, embriagando‑se pelo contrário nela. A crítica, se é que ela ainda surge,
reduz‑se a uma mera diferenciação interna que confere arbitrariamente um estatuto de culto pseudo‑
emancipatório a determinadas tendências de massas da indústria cultural, como se a compra e
consumo dos respectivos produtos contrariasse o controle social de modo puramente imanente,
enquanto outras produções são rejeitadas com fundamentação igualmente superficial.

Reducionismo tecnológico

Outro aspecto da crítica cultural genuinamente conservadora consiste no seu reducionismo
tecnológico, que corresponde à atitude elitista de burguesia cultural. A cultura também estaria
condenada à decadência supostamente porque a sua massificação exigiria simultaneamente uma
mecanização tecnológica. É justamente contra esta interpretação que protestam Adorno e
Horkheimer logo no início do capítulo da Indústria Cultural. Aí se diz: “Os interessados adoram
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Horkheimer logo no início do capítulo da Indústria Cultural. Aí se diz: “Os interessados adoram
explicar a indústria cultural em termos tecnológicos. A participação de milhões em tal indústria
imporia métodos de reprodução que, por seu turno, fazem com que inevitavelmente, em numerosos
locais, necessidades iguais sejam satisfeitas com produtos estandardizados. … Ora isso não deve ser
atribuído a uma lei de desenvolvimento da técnica enquanto tal, mas sim à sua função na economia
contemporânea”.

Para os dois autores esta função é dupla: o controle social é eficaz como efeito colateral justamente
porque a cultura foi transformada num objecto imediato da produção para o puro lucro. Ou,
expresso em termos de filosofia social nas palavras de Adorno e Horkheimer: “Tudo só tem valor na
medida em que se pode trocá‑lo, não na medida em que é algo em si mesmo”. Sob o totalitarismo da
economia isto é válido tanto para o mais simples objecto de uso material como para os bens da
produção cultural capitalizada. Tal como um casaco socialmente não é um casaco e o leite não é leite,
mas ambos aparecem igualmente como objectivação de “trabalho abstracto” e portanto como
quantidade abstracta de preço, assim também a qualidade sensível e estética de bens culturais
musicais ou literários e teóricos é degradada pela sua forma abstracta de valor e de certa maneira
morta, porque esta apenas proporciona ao produto o acesso à “validade” e à participação na massa
de substância social do valor, permanecendo o conteúdo específico para si indiferente. Em todo o
caso poder‑se‑á anotar à formulação de Adorno e Horkheimer que não se trata aqui do processo de
uma mera “troca”. Pois a circulação representa apenas a esfera de “realização” da “riqueza abstracta”
como fim em si mesmo (Marx), ou seja, o regresso da substância do valor representada no corpo das
mercadorias à forma do dinheiro que lhe é “própria”.

É em primeiro lugar desta objectividade económica fetichista, com a sua permanente mudança de
forma interna a que o objecto real permanece exterior, que deriva a estandardização mecânica e o
nivelamento dos conteúdos, e não de uma exigência puramente tecnológica. A crítica cultural
conservadora insiste no processo tecnológico de produção em massa justamente porque gostaria de
manter fora da linha de tiro a essência negativa da forma social de mercadoria. O pós‑modernismo
agudiza mesmo essa ignorância, uma vez que já nem sequer recusa a crítica da determinação social
da forma, mas declara‑a desde logo impossível epistémica e logicamente. A oposição à retórica de
decadência dos conservadores consiste então novamente numa mera inversão da sua redução
tecnológica. Seria justamente a tecnologia como tal que desenvolveria efeitos benéficos
independentemente da sua forma capitalista (ou mesmo tornados gentilmente possíveis apenas por
esta). A crença pós‑moderna inversa na libertação cultural através da tecnologia sucumbe também ao
mesmo mal‑entendido. Pessimismo cultural conservador e optimismo cultural pós‑moderno
constituem na sua limitação tecnológica as duas faces da mesma medalha. Ambas escondem
igualmente a dominação da “riqueza abstracta” capitalista sobre os conteúdos e as formas de
exposição dos bens culturais.

Em todo o caso a tecnologia da indústria cultural não está imune à forma económica do fetiche do
capital nem à função de controle social a ela associada. Ela não é de modo nenhum neutra na sua
forma de manifestação concreta, à semelhança dos meios técnicos de produção nas outras indústrias
capitalistas. Mas não se deve confundir causa com efeito. É a forma e a estrutura da tecnologia que
obedece aos imperativos da relação social e não o contrário. Os aparelhos estão geneticamente
impregnados pela forma social. O desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo é sempre
simultaneamente um desenvolvimento de forças destrutivas. Isto é válido não apenas num sentido
superficial e particular, por exemplo para a industrialização da guerra, com a bomba atómica como
ponto culminante da técnica e ultima ratio dos progressos democráticos. Também a linha de
montagem não representa um aumento puro e neutro da produtividade, pelo contrário, na sua
determinação concreta pertence igualmente à miséria do trabalho abstracto a que os produtores estão
subjugados. A indústria cultural não é excepção nesta identidade entre produtividade abstracta e
destruição.

O momento destrutivo do fim em si mesmo económico fetichista atinge, modela e violenta de
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24/01/2017 A Indústria Cultural no século XXI – Robert Kurz – Ensaios e textos libertários

O momento destrutivo do fim em si mesmo económico fetichista atinge, modela e violenta de
múltiplos modos para lá da correspondente orientação das técnicas de produção também os
conteúdos culturais. Tal como no caso das mercadorias para as necessidades do dia‑a‑dia, não se trata
do conteúdo da necessidade, mas sim da sua adaptação também técnica ao conteúdo da valorização.
A inversão capitalista entre meio e fim, entre concreto e abstracto apresenta‑se de modo específico na
produção de bens culturais. De facto pode entender‑se isto também como inversão entre técnica de
produção e conteúdo ou entre inovação técnica e conteúdo: não é um (novo) conteúdo que procura
para si uma técnica adequada, pelo contrário, qualquer conteúdo é adaptado a uma técnica rentável e
a “criatividade” reduz‑se exactamente a isso. Mas também esta relação não deriva de qualquer
relação independente de técnica e conteúdo, mas sim do facto de ambas serem forçadas à cama de
Procrustes do imperativo do valor. Adorno e Horkheimer escrevem a este respeito: “A indústria
cultural se desenvolveu com a primazia dos efeitos,… dos detalhes técnicos sobre a obra, que outrora
trazia a ideia e com essa foi liquidada”.

Deste modo se inverte a relação entre conteúdo e modo de representação. Na indústria cultural este
último parece autonomizar‑se, como se mostra de seguida: “O facto de que suas inovações
características não passem de aperfeiçoamentos da produção em massa não é exterior ao sistema. É
com razão que o interesse de inúmeros consumidores se prende à técnica, não aos conteúdos
teimosamente repetidos, ocos e já em parte abandonados”. Tal como na produção o que está em
causa é apenas o aumento das vendas, também no consumo consequentemente o que está em causa é
apenas a função técnica de brinquedo igualmente indiferente ao conteúdo. Mas se os “detalhes
técnicos” já não são expressão da ideia do conteúdo, dominando pelo contrário acima do conteúdo e
“liquidando” a ideia, esta tendência irresistível é ela própria por sua vez devida à forma geral de
mercadoria tanto do meio de produção como também dos produtos. A formulação aponta justamente
para o facto de que a técnica dos meros efeitos não existe por acaso, mas é expressão daquele
totalitarismo económico que nos tempos pós‑modernos ainda se agravou enormemente em
comparação com meados do século passado.

A publicidade como percepção cultural do mundo e de si mesmo

O efeito tecnológico tem o seu modelo na publicidade omnipresente, na estética das mercadorias do
mercado mundial. A ideia de conteúdo não possui qualquer existência própria; ela está à partida ao
serviço de uma coisa que lhe é exterior e por isso ela é também casual, tornada irreal de modo
formalista e abafada no mero efeito. É justamente para esta dimensão da estética das mercadorias que
Adorno e Horkheimer apontam já em 1944, na fase final da totalização do design publicitário no
mundo da vida: “A cultura é uma mercadoria paradoxal. Ela está tão completamente submetida à lei
da troca que não é mais trocada. Ela se confunde tão cegamente com o uso que não se pode mais usá‑
la. É por isso que ela se funde com a publicidade.… A publicidade é seu elixir da vida. (O seu)
produto … acaba por coincidir com a publicidade de que precisa por ser intragável”.

De notar aqui, como já se assinalou, a redução notória que ocorre em Adorno e Horkheimer à
chamada “troca” que representa uma truncagem na economia, pois no sistema do “trabalho
abstracto” reacoplado a si mesmo não pode falar‑se de “troca” em sentido próprio. Apenas a uma
observação superficial a forma dinheiro corresponde a uma “relação de troca” externa, sendo que
essencialmente faz parte do fim em si autonomizado da “riqueza abstracta” como auto‑relação
interna do capital. Abstraindo disso, é justamente apenas perante este pano de fundo que aquela
autonomização secundária da publicidade se torna possível e acaba por se tornar uma necessidade
que imprime o seu selo em toda a produção cultural, como se diz no capítulo da Indústria Cultural:
“A publicidade converte‑se na arte pura e simples com a qual Goebbels a identificou
premonitoriamente”. Deste modo “uma olhadela rápida mal consegue distinguir texto e imagem
publicitários da parte redaccional”.
A actividade artística é tão pouco livre como na idade média cristã, pois tal como então qualquer
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24/01/2017 A Indústria Cultural no século XXI – Robert Kurz – Ensaios e textos libertários

A actividade artística é tão pouco livre como na idade média cristã, pois tal como então qualquer
representação tinha de repetir sempre a mesma constituição religiosa, também agora ela se
transforma sempre na mesma publicidade, justamente na sua aparentemente fortuita
“multiplicidade” e contingência, publicidade que a si mesma se recomenda e aprecia na figura de
automóveis, bebidas energéticas, telemóveis ou bonés de basebol. Representar o mundo na forma
autonomizada da publicidade significa só conseguir percebê‑lo na forma da mercadoria
autonomizada. Isto afecta também a autopercepção e as relações sociais dos indivíduos. Até na
intimidade, que já não existe, nasce uma distância mediatizada que tem como pressuposto uma
completa ausência de distância em relação aos imperativos sociais. Já não existe qualquer espaço de
tranquilidade social não sobrecarregado com as exigências da dominação. O modelo de identidade
posto em movimento tem de se apresentar sempre e em toda a parte à sentença das “tabelas de
opinião” no eterno carnaval da subjectividade como uma marca de cerveja ou de perfume. O capital
humano ambulante precisa dos produtos da indústria cultural em sentido lato não tanto para uso,
mas mais como sujeito para a teimosa “auto‑representação” em que os portadores do traje estão
secretamente convencidos da sua falta de valor. Os actores para si mesmos nem sequer quando estão
sozinhos podem abandonar o seu papel. A máscara de carácter secundária da indústria cultural do
autovendedor precário está colada à pele.

Dá a impressão quase maçadoramente que também neste aspecto se pode percorrer a
complementaridade polar de pessimismo cultural conservador e optimismo cultural pós‑moderno
crente no progresso. Mais uma vez os suportes da reflexão da burguesia cultural troçam da
publicidade apenas porque gostariam de conseguir uma barreira ideológica contra a infiltração do
económico vulgar na esfera elitista da arte. Eles barram o efeito sem conteúdo apenas para conseguir
parar a comercialização de pretensos “bens mais sagrados” sem quererem tocar minimamente no
capitalismo. Assim, a publicidade vulgar não deve poder ser reconhecida como a face que sorri
trocista no espelho à refinada arte burguesa. Nesse aspecto tal como em qualquer outro a forma social
da relação fetichista devorou o conteúdo. O que resta também na arte oficial para os círculos
superiores, que já só consegue ser elitista no preço em dinheiro, é a comum autovenda pelos artistas
de salão que são “vanguardistas” ao máximo quando com vergonham viram os quadros para a
parede e escurecem os textos.

E mais uma vez o pós‑modernismo apenas vira a crítica aparente do pessimismo cultural e proclama
a publicidade como libertação da arte do toque de museu de um classicismo de mestre‑escola. O
carácter auto‑represivo das mónadas da auto‑representação alimentadas pelo complexo totalitário da
indústria cultural é tão escondido aqui como no caso da contraparte conservadora. A distância
hipocritamente assumida da consciência de burguesia cultural em relação à literal comunidade de
publicidade universal e autopublicidade vira‑se no entanto na divisa pós‑modernista “estar presente
é tudo”. Não só a proximidade formal, mas também a conexão interna entre propaganda populista e
publicidade ou não devem ser mencionadas ou consideram‑se mesmo susceptíveis de carga positiva.
O pós‑modernismo está assim de acordo com Goebbels sem querer saber disso. Cada um apraz‑se em
efeitos sem conteúdo para assim renovar a própria máscara de carácter e deixar qualquer crítica à
partida sem objecto. A consciência do estilo de vida pós‑moderno é já apenas uma espécie de boné de
basebol colectivo ideal que se promove a si mesmo.

A continuação do “trabalho abstracto” e da concorrência por outros meios

A apologia pós‑moderna do predomínio do efeito e do detalhe técnico sobre o conteúdo gosta de
afirmar que isso está associado a um conforto cultural que garante o “prazer sem remorsos”. Que mal
haverá nisso? Uma vez que se dissolveu qualquer critério de conteúdo e a crítica foi declarada uma
impossibilidade, gostaria ainda de se proceder como se a mercadoria da indústria cultural caísse do
céu como uma espécie de maná ou voasse para a boca de cada um como os pombos assados do país
da cocanha. Inversamente a burguesia cultural conservadora, na medida em que ainda sequer existe e
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24/01/2017 A Indústria Cultural no século XXI – Robert Kurz – Ensaios e textos libertários

da cocanha. Inversamente a burguesia cultural conservadora, na medida em que ainda sequer existe e
não tem já de se colocar na forma do passado, vê a indústria cultural como pechincha cultural
deselegante e considera que o consumo dos seus produtos só se faz sem esforço porque se trata de
lixo absolutamente sem pretensões que envenena a mente e a alma. Contra isso são apresentados os
“trabalhos de elevada pretensão” produzidos, os únicos que devem ser válidos para os “verdadeiros
artistas” bem como para os “verdadeiros apreciadores da arte”, como pequena mas refinada
comunidade de um “conhecimento” sem preço.

Também neste aspecto os optimistas pós‑modernos da cultura e os pessimistas conservadores da
cultura estão bem uns para os outros: ambos afirmam por igual a facilidade e o prazer sem esforço do
consumo da indústria cultural, só que este gozo supostamente cómodo é avaliado de maneira oposta.
Adorno e Horkheimer abordam o assunto de modo completamente diferente. De acordo com a sua
origem, de facto, eles não estão imunes ao auto‑incensamento que simplesmente assenta mais na
canonização e na restrição no sentido da alta cultura burguesa do que na primazia do conteúdo. Mas,
independentemente deste condicionamento socio‑histórico, eles não deixam de ver o contexto de
mediação interna entre a indústria cultural e a pressão para a eficiência no trabalho capitalista, entre
“trabalho abstracto” e “gozo do tempo livre” pretensamente sem remorsos. Não se trata aqui
simplesmente da crítica a um simples efeito compensatório, como se uma coisa fosse exterior à outra.

Na realidade, a dialéctica do consumo pop totalmente capitalizado consiste precisamente em que a
coerção social e a liberdade de escolha do objecto, o esgotamento perturbado da energia laboral
protestante e a autocomplacência na exposição não só correspondem, mas transformam‑se uma na
outra e uma manifesta‑se na outra. O trabalho pesado de miséria não é apenas o pressuposto
indispensável, que se gostaria de manter discreto, mas sempre o pressuposto consciente para a
capacidade de compra. Adorno e Horkheimer não invocam o perigo de um gozo demasiado fácil
para a capacidade de trabalho que no entanto seria preciso exigir, mas mostram que aquele cómodo
conforto é em si mesmo ilusório. O que é dado enquanto tal não pode ser separado do seu contrário
no processo de ganhar dinheiro, como eles deixam claro: “A diversão é o prolongamento do trabalho
sob o capitalismo tardio. Ela é procurada pelos que querem se subtrair aos processos de trabalho
mecanizado, para que estejam de novo em condições de enfrentá‑lo. Mas, ao mesmo tempo, a
mecanização adquiriu tanto poder sobre o homem em seu tempo de lazer e sobre sua felicidade,
determinada integralmente pela fabricação dos produtos de divertimento, que ele apenas pode captar
as cópias e as reproduções do próprio processo de trabalho”.

Mais uma vez não é a exigência da técnica de reprodução em si que realiza esta inversão fatal, mas
sim o totalitarismo fetichista da forma geral da mercadoria que tendencialmente transforma todas as
expressões vitais em “trabalho abstracto” ou pelo menos as equipara a ele; mesmo não estando
ligadas a qualquer processo de valorização real. Não há qualquer verdadeiro relaxamento na falsa
concentração e fixação no trabalho do sujeito. Mesmo o deixa‑andar tem de ser instrumentalmente
organizado e profissionalizado para que se transforme no seu exacto contrário. É para isso que
aponta uma das mais frequentemente citadas passagens do capítulo da Indústria Cultural: “O fun
(em inglês no original: gracejo) é um banho medicinal, que a indústria da diversão prescreve
incessantemente”.

Não só a coerção para o trabalho e o delírio do esforço se reproduzem no consumo de mercadorias da
indústria cultural, mas também a monadologia objectiva da esfera da circulação capitalista, ou, como
observam Adorno e Horkheimer, “a dureza da sociedade da concorrência”. O fun também se torna
um banho medicinal porque o “gozo” não é inocente nem cómodo, e nem sequer inteligente, mas,
apesar de toda a camaradagem das festas, torna‑se numa inspecção do design dos corpos, dos trapos
e das personalidades, em que cada simulacro de eu só consegue divertir‑se contra todos os outros e
tem de fazer crer permanentemente a si mesmo que o prazer está nisso. Mesmo a máscara de tempo
livre forçadamente alegre, como se diz no resumo do capítulo da Indústria Cultural “atesta a
tentativa de fazer de si mesmo um aparelho eficiente…”. Em lado nenhum isto se mostra mais
claramente do que nas micro‑empresas pós‑modernas de high‑tech e de publicidade. O “trabalho 8/29
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claramente do que nas micro‑empresas pós‑modernas de high‑tech e de publicidade. O “trabalho
abstracto” e a concorrência só se tornam um jogo e uma festa porque tanto a festa como o jogo há
muito que se transformaram em “trabalho abstracto” e concorrência.

Com isto se revela a indústria cultural também como uma organização com conotação sexual.
Mulheres e homens situam‑se aí de modo diferente apesar de todas as modificações culturais,
exactamente porque se trata de modelos, simulações e formas de reprodução do “trabalho abstracto”.
Pois a forma de sujeito assim determinada, incluindo a da concorrência universal, tem conotação
estruturalmente masculina, como Roswitha Scholz mostrou na sua teoria da dissociação sexual que
pela primeira vez tematizou a relação de género à altura conceptual das categorias capitalistas
fundamentais. Mesmo estando as mulheres cada vez mais integradas na esfera do “trabalho
abstracto” e na esfera pública capitalista elas continuam a ser aí menos apreciadas porque continua a
cair sobre elas a responsabilidade no sentido mais amplo pela oikos dissociada daquela esfera na
medida em que não se pode expressar em dinheiro (gestão da casa, cuidar das crianças e dos idosos
etc.). Esta relação capitalista entre os sexos profundamente ancorada no inconsciente colectivo
atravessa todos os domínios sociais. E assim por maioria de razão se reproduz no “banho medicinal”
da tensa empresa do divertimento. As mulheres entretanto concorrem aí com outros corpos
diferentes dos corpos sexuais aparentemente autodeterminados que se revelam como “mulheres” em
todas as autonomias individualizadas. Também como “capazes de fazer tudo”, que devem ser
igualmente responsáveis pela família e pela profissão, elas não perdem a acentuação específica sexual
– ainda que de forma modificada – e o “ser mãe” continua a matraquear por trás. Isto repercute‑se na
sua auto‑imagem co‑fabricada pela indústria cultural; daí que elas também não sejam realmente
tomadas a sério como sujeitas do fun.

A Internet como novo meio central da indústria cultural

Está na altura, como seria de esperar, de enfrentar a Internet como complexo mais avançado da
indústria cultural. A “Net” constitui sem dúvida a tecnologia pós‑moderna perfeita que não por
acaso é comparada com a descoberta da imprensa no início da modernidade considerando‑se que
terá efeitos igualmente revolucionários. Mas, tal como a impressão de livros e as suas consequências
sociais não se podem entender a partir de si mesmas mas apenas no contexto do processo de
constituição histórica proto‑capitalista, também a Internet não pode ser declarada um
estabelecimento tecnológico autónomo com potencialidade de mudança social, mas apenas como
momento socio‑tecnológico nos limites históricos do capitalismo.

A oposição complementar até aqui esboçada entre o pessimismo cultural da burguesia cultural e o
optimismo cultural pós‑moderno fica quase sem razão de ser neste complexo ultramediático; e de
facto sobretudo porque a alta cultura conservadora e de filologia antiga da burguesia clássica está
pronta a capitular incondicionalmente. A correspondente burguesia cultural no contexto específico
alemão foi por um lado desde sempre uma burguesia de fantasia, um grupo social difuso e
multifacetado, cujos membros pretendiam considerar‑se “algo melhores” justamente no aspecto
cultural. Esta demarcação referia‑se não apenas às qualificações (académicas) superiores, mas a um
cânone cultural tendo por cerne as línguas antigas, a filosofia clássica e a poesia do idealismo alemão.
A pretensão a isto associada de “cultura superior” ia muito para lá dos poucos especialistas no
assunto; abrangia todo o espaço académico e também certamente o pessoal docente e até os que
concluíam o secundário. Por isso a demarcação não era apenas face às “massas incultas”, mas
também contra as elites dos outros países capitalistas. Uma burguesia de fantasia era‑o certamente
também no que diz respeito à competência quanto ao conteúdo daquele cânone cultural que para a
maioria desta classe não passava de superficial e ia perfeitamente de braço dado com os ritos de
vapores de cerveja e a brutalidade nas relações sociais.

Esta velha “barbárie culta” da burguesia académica alemã extinguiu‑se na época das guerras
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24/01/2017 A Indústria Cultural no século XXI – Robert Kurz – Ensaios e textos libertários

Esta velha “barbárie culta” da burguesia académica alemã extinguiu‑se na época das guerras
mundiais e não há que chorar por ela. Na democracia de mercado mundial após 1945 desapareceu
ainda mais o cânone cultural clássico dando cada vez mais lugar a uma mera consciência de elite
funcional. O que restou foi um fraco reflexo da pretensão de resto nunca realmente cumprida e um
resíduo apenas fantasmagórico da falsa consciência de ser “algo melhor”. Na actual ideologia de
classe média este impulso reduz‑se cada vez mais à tentativa de compartimentar a qualificação a
nível do secundário da própria prole contra as novas classes inferiores e os migrantes, ou seja, de
sabotar qualquer ultrapassagem do há muito anacrónico sistema escolar em três graus da RFA.

Quanto aos conteúdos, o império fantasmático da burguesia cultural desapareceu definitivamente
com a terceira revolução industrial. A presunção elitista há muito que já não se refere à capacidade de
conseguir recitar Homero no texto original, mas sim a uma mistura de economia política e
“competência multimédia” que dá o perfil ideal para o indivíduo pós‑moderno de via estreita
enquanto “aparelho de sucesso”; mesmo que seja apenas na nova fantasia do respectivo milieu. A
consciência de elite sem fundamento trocou com muito sofrimento a máscara colada à cara; ela
tornou‑se tão vulgarmente da economia capitalista e tão ordinariamente tecnológica como toda a
organização democrática. Mesmo os professores de latim, cientistas literários e catedráticos de
filosofia vão como aprendizes para junto de jovens e dinâmicos empresários aldrabões e desfazem‑se
em admiração perante maluquinhos de treze anos que gostam de se considerar virtuosos no clique de
rato. A nova elite é notoriamente sem pretensões espirituais e aparelhada para o curso de mercado de
modo tão reducionista que as universidades “de excelência” poderão ser consideradas quando muito
como ironia objectiva. A apoteose do complexo da indústria cultural consiste em que a elite de todos
os sectores está transformada em meras figuras de banda desenhada que se deleitam
extraordinariamente no seu estado porque já não têm qualquer critério de comparação.

Adorno e Horkheimer em 1945 ainda não podiam saber da revolução tecnológica digital nem da sua
aplicação ao desenvolvimento capitalista. Mas estiveram perfeitamente em posição de prognosticar a
tendência geral para a integração mediática no que respeita à indústria cultural, tal como Marx o
tinha feito para a cientificização da indústria capitalista. “A televisão”, escrevem eles, “tende a uma
síntese do rádio e do cinema” e isso irá dar na “realização irónica do sonho wagneriano da obra de
arte total”. Pois a “harmonização entre palavra, imagem e música”, uma vez que já não segue
qualquer lei cultural própria, é apenas “o triunfo do capital investido”.

É fácil de perceber que a Internet se prepara para consumar a síntese da indústria cultural numa
escala ainda maior. As diferentes tecnologias de impressão, telefone, telefonia, rádio, cinema e
televisão são fundidas num único complexo global. No entanto daí não emerge novamente uma
revolução tecnológica enquanto tal, mas é a lógica (que penetra geneticamente todo o sistema) do
“trabalho abstracto”, da forma autonomizada do valor e do controle social por estas regido que
constitui a matriz e simultaneamente o movens desta integração mediática. A força sintética não
resulta de qualquer reflexão consciente e já nem sequer das actividades autónomas dos indivíduos,
mas emana pelo contrário da determinação heterónoma da forma social. Por isso se condensam e
agravam na Internet como novo meio central todas as contradições e deficits que Adorno e
Horkheimer detectaram precocemente na indústria cultural. De facto trata‑se apenas da pressentida
“realização irónica do sonho wagneriano da obra de arte total” num sentido abrangente. O que se
pode assinalar em alguns aspectos essenciais.

A virtualização do mundo da vida

Desde o início que é inerente à indústria cultural a tendência para inverter a relação entre objecto e
representação, entre signo e significado, ou apagar a diferença entre eles. Aqui apenas surge o
“mundo invertido” geral da relação de capital numa dimensão específica da indústria cultural.
Horkheimer e Adorno vêem esta tendência de inversão já no então recente meio do cinema a cores:10/29
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Horkheimer e Adorno vêem esta tendência de inversão já no então recente meio do cinema a cores:
“O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria cultural. A velha experiência do
espectador de cinema, que percebe a rua como um prolongamento do filme que acabou de ver,
porque este pretende ele próprio reproduzir rigorosamente o mundo da percepção quotidiana,
tornou‑se a norma da produção. Quanto maior a perfeição com que suas técnicas duplicam os
objectos empíricos, mais fácil se torna hoje obter a ilusão de que o mundo exterior é o prolongamento
sem ruptura do mundo que se descobre no filme”.

Não se trata de um propósito consciente, por exemplo no sentido de uma “manipulação” deliberada
da consciência (como também em Adorno e Horkheimer parece ser sugerido ocasionalmente mais
tarde), pelo contrário, o momento manipulativo reside na lógica objectiva das relações e na própria
expressão delas na indústria cultural: “A vida não deve mais, tendencialmente, poder se distinguir do
filme sonoro”. Esta formulação no capítulo da Indústria Cultural aponta para um “dever” no sentido
do “sujeito automático” (Marx) da valorização do capital. Os indivíduos manipulam‑se em certa
medida a si mesmos justamente porque são “sujeitos” do imperativo capitalista. Tal como se
consuma uma inversão porque a produção concreta já só é socialmente “válida” como forma de
manifestação do “trabalho abstracto”, tal como a forma das mercadorias se duplica na forma do
dinheiro e tal como a “riqueza concreta” só pode ser forma de representação e de manifestação da
“riqueza abstracta”: também se inverte e duplica a percepção e a representação cultural‑simbólica do
mundo e da própria existência. A autonomização já esboçada do efeito técnico sem conteúdo vai
ainda mais longe e agrega‑se num pseudo‑mundo, uma vez que os objectos concretos tal como os
indivíduos com eles relacionados se tornam meras formas de manifestação do seu próprio modo de
representação e este último desenvolve uma espécie de vida aparente.

Ao que Marx designou por “formas de existência objectivas”, ou seja, à verdadeira vida no
capitalismo marcada pelos imperativos da valorização e da autovalorização é sobreposta uma
segunda realidade virtual: uma encenação e auto‑encenação mediática. Este conceito tornou‑se
inflacionário como semi‑crítico ou directamente afirmativo. Não por acaso se expandem designações
do mundo do teatro como metáforas em todos os domínios da vida. Os indivíduos consideram‑se
cada vez mais como os seus próprios actores no seu próprio teatro. Esta pseudo‑vida virtual não só
tem função compensatória para a miséria das relações sociais reais, mas também é imaginativa e
ideologicamente elevada a “verdadeira” realidade, perante a qual a existência material e social real
surge como mero apêndice e já quase como irreal.

As palavras de Adorno e Horkheimer sobre a indistinguibilidade e mesmo inversão mediáticas entre
o ser social e o parecer produzido pela indústria cultural são proféticas porque já fazem ver no
cinema uma tendência que vai muito para além dele. Para a maioria dos consumidores da indústria
cultural de então o cinema a cores ainda era reconhecível como produto das fábricas de sonhos e a
sala de cinema identificada como um lugar onde uma pessoa não se instala a sério, mas entra
ocasionalmente saindo do mundo do dia‑a‑dia. A Internet, pelo contrário, não em geral mas para um
número elevado e crescente de pessoas em diferentes graus, tornou‑se uma espécie de residência
espiritual e cultural que inversamente se abandona apenas ocasionalmente para uma visita à
realidade social e material. Esta inversão entre aparência mediática e realidade atingiu, com a ajuda
do desenvolvimento tecnológico e a síntese dos aparelhos electrónicos, pelo menos uma nova
dimensão.

Certamente que não devemos cair no erro de levar o cliché demasiado a sério. Abstraindo do facto de
que a maior parte da humanidade não tem acesso ou tem um acesso muito limitado à Internet e que
com a expansão se vão revelando limites de saturação por falta de poder de compra e/ou de
infraestruturas, também para muitos utilizadores habituais a diferença entre o mundo real e o virtual
de modo nenhum desapareceu. O que aliás nem sequer é possível, tal como o valor abstracto de
modo nenhum consegue fazer desaparecer a necessidade de bens de uso materiais na sua maneira de
representação na forma do dinheiro. Se o dinheiro não se pode comer, muito menos downloads.
A hipóstase da virtualidade também não constitui um simples problema geracional como muitas 11/29
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A hipóstase da virtualidade também não constitui um simples problema geracional como muitas
vezes se quer fazer crer. A pretensa “geração Net” de “nativos do digital” é mais uma lenda de
fazedores de opinião interessados. Na realidade não existe grupo etário uniformizado numa
socialização digital específica. Não se deve confundir o consumo talvez mais frequente de meios de
comunicação electrónicos nem com uma maior competência no assunto nem com um movimento da
percepção sem dificuldades. Também entre os teenagers se encontram não poucos indivíduos com
dificuldade em lidar com um ambiente digitalizado; não é apenas entre adultos mais velhos. E o
consumo superficial de brinquedos das tecnologias da informação da indústria cultural não põe em
acção qualquer “soberania”, muito menos se isso assumiu um carácter de vício. Em todas as gerações
há poucos possuidores de uma efectiva competência digital abrangente; e não é certo o sentido em
que a aplicam.

A adaptação pretensamente mais fácil de teens e twens à virtualização tecnológica do mundo da vida
é em parte mera ilusão de especialistas profissionais em juventude, mas em parte também auto‑ilusão
da geração com esses interesses, na sua própria falsa consciência. Ou também uma auto‑ilusão dos
seus pais e avós com uma socialização de burguesia cultural residual que gostariam de atribuir à
própria prole especiais oportunidades de futuro, como capital humano capaz de clicar no rato. O
“darwinismo dos média” frequentemente invocado poderá facilmente ficar para trás. As jovens
competências mediáticas de via reduzida de hoje, que já nem livros lêem, são os perdedores de
amanhã, mesmo do ponto de vista da imanência capitalista.

Os propagandistas da tendência para a virtualização, em todo o caso real, nem coincidem com o
ensino das competências tecnológicas, nem reflectem sobre as contradições insolúveis surgidas nesta
tendência ou sobre o ilusionismo a elas associado. Pelo contrário, estamos perante uma certa parte da
produção de opinião académica e mediática que conseguiu um estatuto hegemónico porque este
confere uma expressão ideológica afirmativa ao desenvolvimento capitalista no princípio do século
XXI. A pressão para a virtualização, na medida em que se generaliza de acordo com a tendência em
todo ocaso paralisante, corresponde antes a uma zelosa adaptação à ideologia hegemónica e assim a
um estado em que as necessidades próprias já não se conseguem distinguir de um conformismo sem
cerimónias. Em todo o caso a fuga para um além simulado digital aponta para a miséria da realidade
capitalista.

O desacoplamento da consciência pós‑moderna do velho cânone cultural burguês de modo nenhum
produz qualquer novo conteúdo, mas transforma em conteúdo a própria “forma vazia”, assim
consumando a ilusão objectiva do capital que gostaria de emancipar a “riqueza abstracta” da matéria
e da natureza. Pertence à essência da ideologia pós‑moderna anti‑essencialista que a relação
referencial entre representação e objecto, modus e conteúdo ou signo e significado tenha de ser
apagada. Se o culturalismo propaga a autonomização dos sistemas de signos e dos modi, ele
sucumbe à abstracção funcional do comprar e vender na esfera de mercado burguesa que já não quer
saber da sua substância fetichista. A síntese de meios da indústria cultural através da Internet parece
fornecer uma base tecnológica para a emancipação ilusória dos signos. O gradual desaparecimento
do mundo em correntes de dados amarra a aparência real fetichista da mercadoria num plano
diferente, como campo de jogos universal mecanicamente produzido, sobre o qual não só os objectos
mas também as pessoas se duplicam e na sua virtualização proporcionam a si mesmas uma vida
aparente que corresponde à sua real nulidade e indignidade. O espaço virtual é assombrado pelos
avatares enquanto espíritos dos mortos vivos que realmente vegetam nos campos de concentração da
valorização do capital e da administração do trabalho.

O virtualismo integrado da indústria cultural penetrou a respectiva tecnologia; mas mais uma vez a
razão não é a tecnologia como tal, pelo contrário, esta assume o seu carácter através do carácter da
forma de sujeito capitalista, que vai bisbilhotando numa dinâmica cega. Por isso também não é por
acaso que a maioria das presenças no campo de jogos virtual são masculinas. Na realidade os homens
e as mulheres individualmente não se encaixam nas suas atribuições socio‑históricas, como foi
demonstrado na teoria da dissociação sexual, mas em média também não podem livrar‑se delas 12/29
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demonstrado na teoria da dissociação sexual, mas em média também não podem livrar‑se delas
enquanto a relação social subjacente não for abolida. A atenção conotada como feminina para com
crianças, idosos e doentes dela necessitados até já nas novelas surge na melhor das hipóteses de
forma idealizada; é de todo impossível encená‑la como “realidade virtual” porque nesta área não é
possível qualquer simulação técnica sob pena de se revelar imediatamente o carácter absurdo desta.
O espaço virtual constitui o império espiritual secundário, duplicado do “trabalho abstracto” também
no sentido do seu devir historicamente irreal; e os avatares que o assombram são sobretudo
fantasmas da masculinidade patriarcal moderna.

Interatividade da Web 2.0 e individualização

À medida que os massmedia electrónicos modernos e a produção da indústria cultural a eles
associada entravam na vida eles eram também calibrados formal e tecnologicamente para a
passividade do seu público. Adorno e Horkheimer vêm aí decididamente uma marca estrutural
essencial da indústria cultural: “A passagem do telefone ao rádio separou claramente os papéis.
Liberal, o telefone permitia que os participantes ainda desempenhassem o papel do sujeito.
Democrático, o rádio transforma‑os a todos igualmente em ouvintes, para entregá‑los
autoritariamente aos programas, iguais uns aos outros, das diferentes estações. Não se desenvolveu
nenhum dispositivo de réplica e as emissões privadas são mantidas na servidão”.

A apologia pós‑moderna do “espectáculo” (Debord) da indústria cultural julga poder intervir
triunfantemente neste lugar para provar o carácter antiquado do pessimismo cultural da teoria
crítica. Pois se a falta de um “dispositivo de réplica” era notória para os média pré‑digitais e mesmo
para o estádio inicial da Internet, entretanto – apressa‑se a concluir o arrasoado pop pós‑moderno – a
velha estrutura autoritária de “emissor e receptor” estaria de facto superada. A palavra‑chave é
“interactividade”. A mutação sem fim da Internet teria conduzido à nova qualidade da Web 2.0
interactiva, é o que não cessa de ser dito tanto nos suplementos culturais como no mundo académico.
Neste nível qualquer “utilizador” pode sempre e em toda a parte ligar‑se e do modo mais
personalizado possível intervir pela palavra (ou pela imagem).

Os passos desta mutação são elucidativos. Vão desde a pseudo‑participação em programas de rádio
com participação telefónica dos ouvintes, jogos de marcar presença com cumprimentos tolos “a todos
os que me conhecem” etc., passando pelo inflacionamento de websites privados, até aos Blogs, às
formas directamente interactivas da “função comentário” nas mailing lists ou nas edições electrónicas
dos média impressos, às redes “de amizade” da Web 2.0 e aos serviços informativos como o
“TwiĀer”. Mas todas estas formas de interacção digital conduziram tão pouco a uma emancipação
mediada de modo puramente tecnológico como todas as formas anteriores da indústria cultural.

O conceito de um mero “dispositivo de réplica” foi talvez escolhido com infelicidade por Adorno e
Horkheimer, porque eles também não podiam entender esta função de modo reduzido à técnica. Mas
trata‑se de algo diferente. A capacidade de réplica é organizada apenas no nível do objecto e do
equipamento e não ao nível social. A expressão “redes sociais” digitais que aparentemente contradiz
esta avalização não passa de um eufemismo. O social refere‑se aqui a um contexto quase
exclusivamente virtual, meramente simulado; trata‑se na maior parte das vezes de amizades irreais
entre avatares. Os verdadeiros indivíduos ficam muitas vezes anónimos, ou tiram a máscara apenas
de modo exibicionista na distância mediaticamente mediada que aparentemente permite uma
proximidade primitiva secundária. À irrealidade corresponde o não compromisso; de resto algo de
essencial da disposição íntima pós‑moderna que foge de qualquer compromisso como o diabo da
cruz. Esta óbvia fenomenologia da Web 2.0 é geralmente conhecida e frequentemente tematizada; não
em último lugar nos mesmos suplementos culturais que gostam de delirar sobre a interactividade
digital. Mas gostam pouco de reflectir sobre os seus pressupostos ou consequências.
O pano de fundo é constituído desde logo não pela pura tecnologia mas sim, como não podia deixar
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O pano de fundo é constituído desde logo não pela pura tecnologia mas sim, como não podia deixar
de ser, pelo desenvolvimento social logicamente corrente e associado à “interpretação” tecnológica. O
dispositivo como tal fornece apenas o termo aliás traiçoeiro da “interactividade” ou “interacção”,
como se se tratasse de uma relação recíproca entre planetas, moléculas, insectos ou componentes
mecânicos. Esta desumanização, já insinuada no termo quase igualmente neutro de “comunicação”,
corresponde ao estatuto desrealizado das pessoas participantes, que se transformaram literalmente
em simples máscaras. Poder‑se‑ia designar como astúcia negativa da razão capitalista o facto de o
“dispositivo de réplica” técnico surgir precisamente no momento em que os sujeitos socialmente
reduzidos ao mínimo e virtualmente desumanizados e tornados reconhecíveis como meros actores já
não têm nada para dizer uns aos outros, pelo contrário, já só conseguem apresentar uns aos outros as
suas máscaras. Portanto não se fala de “diálogo”, de “discussão” nem muito menos de “polémica”,
não por acaso proibida, mas sim de uma “interactividade” vazia e mecânica a que os indivíduos
burgueses se reduziram a si mesmos.

Adorno e Horkheimer pressentiam já em 1944 o estado de decadência da subjectividade capitalista
que Ulrich Beck caracterizou quarenta anos mais tarde como “individualização”. Ao contrário das
hipóteses optimistas de Beck, eles já sabiam antecipadamente que o processo não tinha nada a ver
com a libertação dos indivíduos da coerção social objectivada, mas sim com um novo patamar da sua
interiorização, que se exprime também exteriormente como nova qualidade da mera “libertação” no
sentido de uma universal situação de fora de lei [Vogelfreiheit]. O indivíduo abstracto, desde início o
tipo lógico ideal de sujeito funcional capitalista, ou seja, o contrário de um indivíduo concreto
vivendo conscientemente a sua própria socialidade, após um longo e doloroso processo de
desenvolvimento refinou‑se até à pura forma pós‑moderna, em que surge já apenas como um ponto
ou como uma “unidade”. O capital, o “sujeito automático” da valorização, é agora a auto‑referência
imediata, não filtrada, louca e demoníaca do sujeito: cada um é o seu próprio capitalista, cada um é o
seu próprio trabalhador. O homem isolado já não tem qualquer história, mas, como unidade
abstracta, já é apenas um ponto médio das tendências de mercado, uma máquina de autovalorização,
ou, como se diz premonitoriamente no capítulo da Indústria Cultural: “Cada um é tão‑somente
aquilo mediante o que pode substituir qualquer outro: ele é fungível, um mero exemplar. Ele próprio,
enquanto indivíduo, é o absolutamente substituível, o puro nada”.

Mas já não há aqui qualquer Dialética do Esclarecimento, como Adorno e Horkheimer ainda
pretendiam constatar, se bem que com dúvidas, mas sim o cumprimento da sua promessa. O
esclarecimento nunca tinha prometido outra coisa senão a “felicidade” de cada um poder
transformar‑se a si mesmo num “puro nada”. Este contexto é perfeitamente claro e criticável. Mas o
pós‑modernismo em todas as suas variações não quer esta crítica; os respectivos exemplares
deleitam‑se na sua pura nulidade que eles imaginam como libertação da materialidade e de todas as
relações em geral. Os indivíduos abstractificados até mais não poder ser já não conseguem envolver‑
se com coisa nenhuma, com conteúdo nenhum, porque eles próprios se tornaram um objecto
meramente exterior e coisificado.

Isto já se aplicava de certa maneira à individualidade abstracta ainda não amadurecida que se
exercitava nos primeiros dispositivos da tecnologia de “comunicação” no século XIX; por exemplo e
em primeiro lugar no telefone, então ainda limitado às classes superiores com capacidade de
pagamento. Quando a Adorno e Horkheimer ironizam que os velho “dispositivo de réplica”
telefónico ainda tinha deixado “liberalmente” os participantes “desempenhar” o papel de sujeitos e
que o dispositivo de controle democrático da indústria cultural pelo contrário já nem isso permite, tal
ponto de vista de modo nenhum é desmentido pela “Web 2.0” interactiva. Mesmo que ambos os
autores se tenham expressado talvez ainda no sentido de uma dialéctica positiva, possível mas não
desenvolvida, mesmo assim a sua formulação irónica deixa pressentir que o carácter “liberal” e
simultaneamente de mero dispositivo do telefone reduz a subjectividade a “desempenhar um papel”,
porque por trás está o poder apriorístico do “sujeito automático” que rebaixou o moderno conceito

de “subjectividade” ao conceito de uma simples função. A essência desta subjectividade “interactiva”
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24/01/2017 A Indústria Cultural no século XXI – Robert Kurz – Ensaios e textos libertários

de “subjectividade” ao conceito de uma simples função. A essência desta subjectividade “interactiva”
precoce exprime‑se da melhor maneira naquelas cenas do cinema em que o participante visível afasta
de si o auscultador para não ter de ouvir o palavreado insuportável do parceiro de “interacção” e
depois parla por sua vez para o bocal sem que a interrupção tenha sido notada no outro lado.

Com isto já terá sido dito provavelmente tudo sobre a “interactividade” na pantomina do cinema
mudo. A mania do telemóvel que grassa há mais de uma década trouxe esta situação à sua última
reconhecibilidade, na medida em que lhe confere agora uma mobilidade tecnológica e
simultaneamente um espaço público do exibicionismo “comunicativo”. O que antes era
piedosamente abrigado pela cabine telefónica irrompe agora como verborreia nas ruas, nos cafés e
nos meios de transporte. Poderia ser preferível que os participantes desnudassem de facto
simplesmente as partes sexuais, pois pelo menos os circunstantes seriam poupados à obscenidade
muito pior da sua activa ferramenta bucal. Pois o que é a gabardine aberta do tradicional exibidor do
membro sexual perante e boca aberta de um pseudo‑sujeito pós‑moderno? Nas “comunicações”
compulsivamente ouvidas já não é possível reconhecer qualquer contexto humano; e mesmo as
comunicações profissionais ou comerciais mostram apenas porque é que a economia empresarial tem
de conduzir à catástrofe pessoal e social. O dispositivo telefónico móvel entretanto cruzado com a
Internet faz aparecer o correspondente sistema de “réplica” que vai muito para lá da publicidade
compulsiva acusticamente limitada das presunçosas comunicações quotidianas.

A Web 2.0 oferece a qualquer discutidor de café e a qualquer arruaceiro pubertário pelo menos
formalmente a plataforma para uma publicidade mundial imediata. Mas a possibilidade tecnológica
coincide com a sua irrealidade social. Os indivíduos tornam‑se mediaticamente activos em
expressões para a generalidade social precisamente na forma irreflectida e acriticamente aceite em
que foram comprimidos pelo capitalismo: como pseudo‑individualidades atomizadas, como meros
exemplares do mesmo princípio transcendental. Quando um puro nada interage com outro, trata‑se
apenas da velha conhecida “figura de interacção” por outros meios, a saber, que um possuidor de
mercadorias encontra outro. Só na aparência se trata da “discussão” de conteúdos e problemas reais,
mas de facto trata‑se em primeira linha da auto‑encenação narcisista, que nos meios mais antigos da
indústria cultural pelo menos ainda não estava “interactivamente” ligada, mas permanecia
atributivamente na situação de amigavelmente “muda”, como um equipamento apenas
habitualmente activo ou como uma irradiação acústica unilateral. Continua a ser um segredo dos
apologistas saber porque há‑se ser melhor uma irradiação acústica nos dois sentidos. Adorno e
Horlheimer já tinham reconhecido que a “extravagância bem organizada” constitui o verdadeiro fim
do exercício mediático, e no caso é igual, seja a cena agora ligada “interactivamente” ou não. Na
medida em que os participantes se limitam a apresentar‑se ou ligar‑se reciprocamente, é justamente
através do “dispositivo de réplica” que eles continuam desligados: “Este número não está atribuído”.

A “interacção” limitada à forma e reduzida à técnica é ainda mais difícil que a do processo de canal
unilateral porque sugere uma estrutura dialógica tornada antecipadamente impossível pelo
equipamento do sujeito pós‑moderno, na medida em que este continua a ser afirmado acriticamente.
Isto também se aplica à auto‑satisfação pseudo‑anti‑autoritária dos pequenos bloggers que se
submetem aos imperativos socio‑económicos do “sujeito automático” justamente porque se
transformam a si próprios em marcas de empresa. A relação autoritária não é ultrapassada por deixar
de ser uma relação exterior, mas deslocada para o interior dos indivíduos como auto‑relação
autoritária. Tal como cada um é o seu próprio capitalista e o seu próprio trabalhador, também cada
um é a sua própria estrela, o seu próprio herói e o seu próprio e único fã; e mesmo o seu próprio
clube de fãs, enquanto personalidade múltipla por via da multiplicação virtual. Também se poderia
dizer: cada um é a sua própria indústria cultural caseira e também a maioria das criações se torna
correspondentemente penosa. Mas não faz mal porque na comunidade de tagarelas também já
ninguém nota.

Tal como a virtualização do mundo da vida se apresenta de modo diferente para homens e mulheres,
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Tal como a virtualização do mundo da vida se apresenta de modo diferente para homens e mulheres,
o mesmo acontece também com a virtualização e com o meio “interactivo”. Mais precisamente: o
patriarcado coisificado, a dissociação sexual, reproduz‑se de maneira diferente na “interacção”
mediática individualizada, à semelhança da indústria cultural em geral e desde o início. E tal como o
“trabalho abstracto” é estruturalmente conotado como masculino, mesmo estando as mulheres há
muito tempo também “empregadas” nessa esfera funcional, o mesmo se aplica também ao espaço
virtual das auto‑encenações. Aqui também o sexo pode ser mudado com um clique de rato, sendo
que mais uma vez são sobretudo os homens que também querem ainda deitar a unha a uma
feminilidade virtual para ser realmente “tudo” na sua imaginação. A parte efectiva de mulheres entre
os encenadores da Net será por isso presumivelmente ainda menor do que já parece.

O “puro nada” assinalado por Adorno e Horkheimer é, como reflexo do “trabalho abstracto”,
igualmente estruturado como masculino e, justamente na sua nulidade, disponível para a violência
latente. Pois o puro nada da subjectividade desmiolada e virtualizada só consegue transcender o seu
estado de mónada na configuração de batidas e caças às bruxas. Naturalmente que também raparigas
participam no muito deplorado mobbing digital; mas por regra ele tornou‑se sobretudo um desporto
de jovens masculinos. Isso torna‑se ainda mais claro nos ajuntamentos virtuais de comentários sujos
para adultos. Para o mob digital que periodicamente de forma como “interactividade” masculina, de
resto, as mulheres desagradáveis constituem o objecto favorito. Este carácter fascista latente de tropa
de assalto no espaço virtual pode perfeitamente irromper na realidade social e tornar‑se violência
material imediata. Nisso consiste talvez sobretudo o jeito para o consenso e a “capacidade de
realidade” tecnologicamente “interactivos” dos autofigurantes digitais.

Uma cultura grátis paga cara

A indústria cultural como campo de valorização do capital pressupõe naturalmente o carácter de
mercadoria dos seus produtos, cuja expressão reificada das relações humanas, como é sabido, foi por
Marx animada no seu conceito de fetiche. A objectividade de valor das mercadorias culturais no
espaço de uma produção para o puro lucro exige agora verdadeiramente a retransformação
“realizadora” e a expressão destas mercadorias na forma da “riqueza abstracta”, ou seja, no dinheiro,
através do acto de venda. Aqui entra novamente a apologia pós‑moderna do complexo da indústria
cultural, pelo menos no que respeita à Internet. Os conteúdos de todo o tipo aí oferecidos não custam
nada ou custam muito pouco, ainda que se tente permanentemente introduzir ou estabilizar
limitações de acesso e modos de pagamento digitais. Não significará isto que, pelo menos a indústria
cultural digital, sem querer já está em parte para lá da forma do dinheiro e da mercadoria? Não se
deverá considerar isto como grande potencialidade emancipatória, francamente como o surgimento
de um comunismo do grátis para lá dos “bens pagos”?

O que se passa não é que o capítulo da Indústria Cultural não tenha previsto nada disto apenas
porque ainda não havia Internet em 1944. De facto muitas mercadorias da indústria cultural, por
exemplo, revistas, discos ou CDs, tinham então como têm hoje de ser comprados à boa maneira
tradicional; e também o cinema é um serviço cultural oferecido para ser comprado, tal como um
bilhete para a montanha russa ou uma entrada num cabaret. Mas a rádio e a televisão já não podem
entrar como mercadorias isoladas na valorização e no campo de realização do mercado. Se para o
efeito até agora são cobrados impostos pelo Estado já não se trata aqui de uma metamorfose regular
na produção capitalista de mercadorias, mas em todo o caso de uma determinação da forma daí
derivada. O Estado subvenciona estes sectores socializados da Indústria Cultural como “de direito
público” tal como outras infraestruturas e recupera uma parte destes custos na forma de impostos. O
carácter de mercadoria de toda a organização não é assim minimamente desmentido, mesmo se os
programas devem ser obtidos baratos ou quase grátis. Por maioria de razão isto se aplica às
emissoras privadas surgidas na senda da era neoliberal, financiadas exclusivamente pela publicidade.
Adorno e Horkheimer não se metem muito numa análise politico‑económica do contexto formal da16/29
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Adorno e Horkheimer não se metem muito numa análise politico‑económica do contexto formal da
indústria cultural com as metamorfoses do processo social de valorização, mas reflectem sobre o
carácter quase grátis da rádio e da televisão mais no plano dos símbolos culturais e psicossocial:
“Actualmente, as obras de arte são apresentadas pela indústria cultural como os slogans políticos e,
como eles, inculcadas a um público relutante a preços reduzidos. Elas tornaram‑se tão acessíveis
quanto os parques públicos. Mas isso não significa que, ao perderem o carácter de uma autêntica
mercadoria, estariam preservadas na vida de uma sociedade livre”.

Assim se dá a entender que o consumo tornado mais ou menos grátis de uma parte crescente da
produção da indústria cultural de modo nenhum está “superado” numa ultrapassagem por toda a
sociedade do sistema produtor de mercadorias, mas continua a ser parte integrante deste. Tal como
os meios de propaganda política são inerentes à forma de mercadoria, mesmo se são difundidos
gratuitamente entre o povo, o mesmo se aplica ao consumo mediático dos produtos culturais. Eles
não fogem à forma do dinheiro como “bens pagos”, apenas a mediação com o conjunto do sistema é
outra; seja o financiamento baseado numa cobrança estatal de rendimentos capitalistas, no sistema de
crédito ou numa ligação com a publicidade, como cujo suporte privilegiado a indústria cultural aliás
se apresenta. Na medida em que as preferências testadas dos compradores (por exemplo no
Facebook) mais uma vez dão ocasião a novos anúncios publicitários, os utilizadores supostamente
grátis colaboram involuntariamente no financiamento. Nessa medida apenas no plano da aparência
imediata ou da particularidade para os consumidores se pode falar de “dissolução do genuíno
carácter de mercadoria” destes produtos, porquanto eles permanecem mercadorias de acordo com o
seu caracter social, mercadorias cujo contexto formal apenas nas instâncias de mediação se desmonta.

Este carácter repercute‑se, não só no conteúdo mas também no aspecto social e psicológico, tanto
mais fortemente junto dos indivíduos consumidores quanto mais ele já não é imediatamente
económico para eles como acto de compra, como Adorno e Horkheimer fazem notar criticamente
contra a pseudo‑emancipação da massificação do barato ou mesmo do grátis: “A eliminação do
privilégio da cultura pela venda em liquidação dos bens culturais não introduz as massas nas áreas
de que eram antes excluídas, mas serve, ao contrário, nas condições sociais existentes, justamente
para a decadência da cultura e para o progresso da incoerência bárbara”. Assim dizem Adorno e
Horkheimer involuntariamente que o “privilégio da cultura” burguês era apenas uma ilusão na qual
já residia como verdadeiro movens a tendência para a “venda em liquidação”, para a “decadência” e
para a “incoerência bárbara” que na indústria cultural apenas se torna manifesta. Aquela cultura
burguesa que ainda tinha de custar alguma coisa não era senão o luxo de uma auto‑reflexão
afirmativa firme que nem uma rocha, de que ainda se precisava nos tempos da constituição
capitalista, mas que perdeu os seus momentos excedentários na mesma medida em que mergulhou
no quotidiano das massas como deformação da indústria cultural.

Também aqui mais uma vez é preciso ter em atenção a lógica económica funcional que em Adorno e
Horkheimer permanece mais como pano de fundo sem ser explicitamente nomeada. A
industrialização da educação e da cultura está submetida à mesma lei da concorrência que os outros
sectores do capital. Neste aspecto, no entanto, o determinante é o imperativo económico e não o
tecnológico. A luta pela quota de mercado (mesmo numa área secundária, como a publicidade
enquanto sector económico próprio, para o qual o produto da indústria cultural constitui o plano de
sustentação) exige um embaratecimento que só pode basear‑se na redução dos custos de produção.
Mas se os custos das produções culturais são baixados à bruta a qualidade sofre ainda mais que no
caso das indústrias de produção material. O produto é então sempre “uma carripana” e ainda muito
pior. Pois só é possível “racionalizar” a produção intelectual ou artística como quem racionaliza a
produção de guarda‑lamas ou de cambotas à custa do completo esvaziamento do seu conteúdo. Ela
perde o seu próprio valor de uso com a incorporação directa no sistema do “trabalho abstracto”,
como já Adorno e Horkheimer deixaram claro no caso da reversão ou mesmo indistinguibilidade
entre conteúdo redaccional e publicidade. É o que se vê por exemplo nos jornais publicitários grátis

cujos conteúdos redaccionais, na medida em que estão estreitamente cruzados e mesmo francamente
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24/01/2017 A Indústria Cultural no século XXI – Robert Kurz – Ensaios e textos libertários

cujos conteúdos redaccionais, na medida em que estão estreitamente cruzados e mesmo francamente
misturados com a publicidade, mostram de modo particularmente crasso a “decadência” da reflexão
como expressão cultural e a “incoerência bárbara” da cultura capitalista transmitida gratuitamente.

A Internet tem esta natureza de uma produção capitalista de conteúdo e de cultura que já apenas é
paga monetariamente de modo indirecto e justamente por isso perde o seu “valor de uso”,
transformada numa organização de massas individualizada. Não se trata aqui de modo nenhum de
uma libertação emancipatória da “criatividade”, mas sim de uma espécie de “privatização” neoliberal
da produção em massa normalizada da indústria cultural numa escala nunca vista. Cada um ser a
sua própria indústria cultural já não deve ser entendido apenas como metáfora irónica ou como
definição cultural‑simbólica, mas é para ser tomado à letra com todas as suas implicações. A forma
tecnológica que corresponde ao equipamento do sujeito pós‑moderno provoca uma enchente de
apresentações completamente desqualificadas que já não podem ser avaliadas nem recusadas por
qualquer instância redaccional.

Portanto cada um é o seu próprio meio, a sua própria revista, o seu próprio cinema e programa de
televisão. Ao contrário da produção profissional, aqui de facto já não é necessária qualquer
“racionalização” para rebaixar o objecto com a pré‑formação capitalista até à aptidão para o gratuito.
As descuidadas criações de todo o tipo estão em todo o caso determinadas pela situação dos seus
actores, que não se conseguem envolver com nada e são movidos pela pressão da concorrência, pela
pressa do serviço em abstraccto e por um controle do fundo de tempo, situação que exclui qualquer
concentração nos conteúdos. Quem perante este pano de fundo se “liga” “interactivamente” com
externalizações com as quais à partida não tem quaisquer custos nem pode nem quer ter, nem custos
materiais nem de esforço intelectual, esse também já não precisa de baixar custos. O que foi o
resultado na linha de montagem económica da verdadeira indústria cultural é no caso das auto‑
apresentações individuais já um pressuposto, nomeadamente a indiferença, a fugacidade e a
inutilidade do objecto. Cada um é o seu próprio jornal publicitário gratuito.

O desprezo por todos os critérios e o desdém por todos os conteúdos levam a cultura burguesa à sua
plena reconhecibilidade justamente onde ela se torna aparentemente “grátis”. Já na antecâmara desta
situação Adorno e Horkheimer formularam este “progresso” como descida do valor em dinheiro
para uma desvalorização cínica de todos os conteúdos e não como emancipação da forma da
mercadoria: “Quem, no século dezanove ou no início do século vinte, desembolsava uma certa
quantia para ver uma peça teatral ou para assistir a um concerto dispensava ao espectáculo pelo
menos tanto respeito quanto ao dinheiro gasto”. Na cultura do grátis da Internet já nada nem
ninguém é respeitado. Também já nem se pode falar de respeito próprio. Quem no meio do
capitalismo enaltece o total desvalor das suas produções intelectuais e artísticas com isso admite
também a nulidade do seu conteúdo. Pois um puro nada também só pode produzir um puro nada.

Quando no caso não apenas se é suporte de publicidade mas se é também a própria coisa a publicitar
naturalmente que o financiamento secundário se mantém em limites bastante estreitos. Como seu
próprio jornal publicitário gratuito não se ganha um cêntimo através de terceiros, pois não se tem
senão o conteúdo, que já não é nenhum e do qual também não vem nada. Assim os sujeitos do
gratuito na Internet fiscalizam reciprocamente o respectivo desvalor. Subjectividade desvalorizada
mas não ultrapassada – também este estado de um culturalismo desculturalizado Adorno e
Horkheimer de certa maneira previram: “A arte manteve o burguês dentro de certos limites enquanto
foi cara. Mas isso acabou. Sua proximidade ilimitada, não mais mediatizada pelo dinheiro, às pessoas
expostas a ela consuma a alienação e assimila um ao outro sob o signo de uma triunfal reificação. Na
indústria cultural, desaparecem tanto a crítica quanto o respeito… Para os consumidores nada mais é
caro. Ao mesmo tempo, porém, eles desconfiam que, quanto menos custa uma coisa, menos ela lhes é
dada de presente”.

Um verdadeiro presente teria custado despesas e por isso seria algo em si. Libertar o gasto dos
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24/01/2017 A Indústria Cultural no século XXI – Robert Kurz – Ensaios e textos libertários

Um verdadeiro presente teria custado despesas e por isso seria algo em si. Libertar o gasto dos
recursos não apenas para o caso pessoal particular, mas fundamentalmente libertá‑lo da sua forma
fetichista do valor só funcionaria no entanto para o conjunto da sociedade e para todos os bens e não
teria nada a ver com o carácter individual de um presente, pelo contrário, seria mesmo uma maneira
diferente de reprodução social. A cultura pseudo‑grátis da Internet não é uma coisa nem outra. O
sujeito pós‑moderno da auto‑encenação, armado com a tecnologia da “comunicação” mas
socialmente e quanto aos conteúdos em geral vazio ou indiferente, produz apenas cripto‑mercadorias
em larga medida sem gastos, justamente porque já nenhum gasto lhe é pago e no capitalismo não se
podem aguentar gastos não pagos.

E justamente porque não existe qualquer modus revolucionado de utilização dos recursos a nível de
toda a sociedade, que a existir seria válido também para a produção cultural, os actores do grátis
virtual iludem‑se com os seus pacotes de troca vazios numa “economia da dádiva”. Na medida em
que existiram de facto nas formações pré‑modernas estruturas sociais de reciprocidade traduzidas
como “de dádiva”, estruturas que aqui são apenas toscamente ideologizadas, elas foram em todo o
caso expressão de uma mobilização real de recursos e não tinham nada a ver com coisas aparentes. O
facto de um conteúdo intelectual ou cultural poder ser divulgado “sem custos” através de um clique
de rato de modo nenhum significa que ele também seja produzido sem a aplicação de recursos
intelectuais e materiais; a ser assim ele não passaria de um conteúdo nulo.

Os economistas da dádiva interactiva trocam entre si o puro nada que corresponde ao seu estado
social e intelectual, e na verdade até sabem ou pelo menos pressentem isso, como Adorno e
Horkheimer já constataram. O que acontece aos consumidores‑produtores digitais não é diferente do
que acontecia aos anteriores simples consumidores, cuja atitude o capítulo da Indústria Cultural
descreve: “A dupla desconfiança contra a cultura tradicional enquanto ideologia mescla‑se à
desconfiança contra a cultura industrializada enquanto fraude. Transformadas em simples brindes,
as obras de arte depravadas são secretamente recusadas pelos contemplados juntamente com as
bugigangas a que são assimiladas pelos meios de comunicação. Os espectadores devem se alegrar
com o facto de que há tantas coisas a ver e a ouvir”. Eles participam na externalização de massas
indiferenciada, sem custos, indiferente e recíproca em que ninguém se leva a sério a si mesmo nem
aos outros. Por isso quem tenha tido a má sorte de activar gastos reais e carregar um conteúdo
efectivo tem de ser nivelado sem piedade pelo mesmo nada mediático que é guardado com inveja
pelos seus titulares. Qualquer esforço pelo conteúdo é “depravado” e o seu resultado tornado
parecido com “bugigangas” baratas, e justamente por isso os “contemplados” sabem secretamente
que se estão a enganar reciprocamente e por isso já consideram sempre tudo um logro.

Também não se deve deixar passar em claro que Adorno e Horkheimer, mesmo na crítica radical à
cultura do falso grátis, mantinham em mente como imagem idealizada igualmente falsa os velhos
heróis da cultura plena e superiormente burguesa que ainda vendiam realmente conteúdo autêntico e
simultaneamente se podiam dar ao luxo de desprezar esta relação. Assim se diz poucas páginas
depois no capítulo da Indústria Cultural: “O Beethoven mortalmente doente, que joga longe um
romance de Walter ScoĀ com o grito: ‘Este sujeito escreve para ganhar dinheiro’ e que, ao mesmo
tempo, se mostra na exploração dos últimos quartetos – a mais extremada recusa do mercado – como
um negociante altamente experimentado e obstinado, fornece o exemplo mais grandioso da unidade
dos contrários, mercado e autonomia, na arte burguesa. Os que sucumbem à ideologia são
exactamente os que ocultam a contradição, em vez de acolhê‑la na consciência de sua própria
produção…”.

Não se pode deixar de reconhecer, e tal testemunha da manutenção do carácter social da antiga
burguesia cultural em ambos os autores, que eles pensam ter existido “a unidade dos contrários,
mercado e autonomia, na arte burguesa” cujo “exemplos mais grandiosos” se poderiam reunir
precisamente na capacidade de se revelar como “negociante altamente experimentado e obstinado”.
Se nas condições capitalistas de reprodução não se pode renunciar ao pagamento monetário dos
gastos, na medida em que estes de acordo com o fundo de tempo e os recursos materiais vão para lá
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24/01/2017 A Indústria Cultural no século XXI – Robert Kurz – Ensaios e textos libertários

gastos, na medida em que estes de acordo com o fundo de tempo e os recursos materiais vão para lá
de uma simples relação de hobby até a produção de conteúdos, tão‑pouco se pode fazer passar
inversamente a astúcia do negociante e a esperteza da valorização como reverso da “autonomia”
artística e teórica. Esta última tem de estar sempre em pé de guerra com a primeira; qualquer
habilidade para os negócios é ela própria devoradora no que ao fundo de tempo e aos recursos diz
respeito e constitui portanto inevitavelmente um desvio da concentração na própria coisa. Uma tal
qualificação aponta não para o conteúdo como apesar de tudo “a mais extremada recusa do
mercado”, mas sim em última instância para uma heteronomia que tem de ser inerente a qualquer
valorização, mesmo a dos quartetos.

A nostalgia ideológica de Adorno e Horkheimer pertence ao seu resto de razão burguesa iluminista
na qual mercado e autonomia são idênticos na arte e não só. A crítica e a historicização negativa desta
razão capitalista não são levadas até o fim na Dialética do Esclarecimento, onde os autores de facto
reconhecem a “oposição” de mercado e autonomia, as quais no entanto pretendem fazer surgir como
“unidade” reconciliada ou pelo menos fundamentalmente reconciliável num passado de burguesia
cultural idealizado. Na conservação hesitante da razão burguesa já antes reconhecida como negativa
e destrutiva faz‑se a quadratura do círculo; a apreciada astúcia dos negócios é a da lógica hegeliana
em que as contradições não conduzem à ruptura e à explosão, mas sim à falsa reconciliação
positivamente superadora na forma do eterno sujeito da circulação.

Mas a concepção de Adorno e Horkheimer, apesar deste excurso deficitário, formula ainda uma
crítica consciente do problema contra a cultura do grátis das comunidades de “utilizadores” por
maioria de razão falsa e mentirosa, quando eles fazem notar que “sucumbem à ideologia” justamente
aqueles que “ocultam a contradição, em vez de acolhê‑la na consciência da sua própria produção”.
Não se trata obviamente de uma imaginada unidade entre conteúdos que se fecham à forma do valor,
por um lado, e habilidade para o negócio monetário da circulação, por outro, cuja idealização ela
própria “oculta a contradição”, mas sim e apenas do facto de que surge com toda a nitidez a
irreconciabilidade da contradição e a necessidade da ruptura histórica (em vez da “superação”
positiva) na “consciência da sua própria produção” e de cuja forma da mercadoria ou do dinheiro
como mal necessário sob as condições opressivas se retira aquela interpretação minimizadora ou
mesmo transfiguradora.

O limite interno do capital e a crise económica da indústria cultural

Por muito actual que seja a concepção de indústria cultural também para o início do século XXI, há
hoje uma importante diferença em relação a 1944. Então estava ainda pela frente a grande
prosperidade do pós‑guerra. Na transição da época das guerras mundiais para a curta época histórica
de produção em massa e consumo em massa do fordismo, Adorno e Horkheimer não podiam
perceber a indústria cultural em formação do ponto de vista da crise objectiva ou do limite interno
histórico do processo de valorização. O complexo da indústria cultural que se revelava
nebulosamente nas suas dimensões tinha de lhes parecer uma fatalidade, como forma de controle
total ou autocontrole e de submissão da consciência à máquina do fim em si capitalista.

Hoje, pelo contrário, a indústria cultural desenvolvida está sob o signo de um limite objectivo
amadurecido do capital mundial. A própria Internet é toda ela parte integrante de uma tecnologia de
crise da terceira revolução industrial, cujos potenciais de valorização conduzem ao esvaziamento da
substância do valor. Também neste aspecto não é a tecnologia como tal que autonomamente teria
efeito sobre as relações e seria a verdadeira razão para o seu revolucionamento. A racionalização, que
leva à extinção do fogo do “trabalho abstracto”, segue as mesmas leis que este; a libertação da força
de trabalho supérflua constitui o reverso da sua subsunção ao capital. No sentido do fetichismo
social, “autónomo” é apenas o automovimento solto do “sujeito automático” do qual nasce a
tecnologia de crise em geral que dá expressão à autocontradição interna do sistema. O capitalismo 20/29
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24/01/2017 A Indústria Cultural no século XXI – Robert Kurz – Ensaios e textos libertários

tecnologia de crise em geral que dá expressão à autocontradição interna do sistema. O capitalismo
não esbarra num limite tecnológico dele independente, mas sim no seu próprio limite (económico)
interno. No complexo da indústria cultural este limite geral do capital ergue‑se de uma maneira
específica que aponta simultaneamente para o mecanismo da crise e para as suas formas de
desenvolvimento.

A virtualização culturalista do mundo da vida corresponde à virtualização económica do capital. Os
dois momentos não representam qualquer novo grau de desenvolvimento do modo de produção e
modo de vida capitalista, mas sim um processo da sua desvirtualização e portanto da sua real
autodestruição. A dessubstancialização do capital através da redução desproporcional da força de
trabalho regular, a única de produz valor, criou aquela famigerada economia global de bolhas
financeiras em que o capital passou da acumulação real para uma acumulação meramente
simulativa. Esta representa por assim dizer o seu próprio avatar económico no mundo aparente do
céu financeiro desacoplado. Mas o espaço virtual da Internet não se limita a espelhar em sentido
simbólico‑cultural o capital fictício já sem cobertura de qualquer valorização real, mas pertence
também directamente a esse império económico espiritual.

A Internet, como complexo híbrido da indústria cultural, não produz mercadorias reais, mas apenas
virtuais. Ela nem sequer produz num volume apreciável produtos intelectuais ou artísticos
imateriais, que na forma da mercadoria pudessem ter participado da massa da substância social do
valor, mas apenas divulga electronicamente tais conteúdos associados a gastos objectivos, enquanto
os conteúdos genuínos surgidos directamente na Net, tanto objectiva como economicamente em
grande parte sem valor, nem contribuem para a massa de substância real de valor nem dela
participam, na medida em que permanecem “grátis” desse modo inverídico.

Ora se a publicidade é determinante para a indústria cultural não só como forma de expressão da
estética das mercadorias, mas também como base financeira da economia da Net, então esta
factualidade esclarece o modo do seu encaixe na reprodução capitalista. A publicidade, como sector
secundário por sua vez capitalistamente improdutivo, que não traz qualquer contribuição para a
massa da substância social real do valor, representando pelo contrário uma dedução dela, só pôde
expandir‑se numa dimensão sem precedentes na história do capitalismo na base insuflada da
economia das bolhas financeiras e do endividamento desde os anos de 1980. Só perante este pano de
fundo surgiu o complexo tecnológico‑cultural da Internet daí derivado na sua actual amplitude. Os
serviços, possibilidades de acesso ou de apresentação e conteúdos gratuitos postos à disposição só
podem ser descritos em termos capitalistas como suportes de publicidade. Quanto mais a indústria
cultural se desloca para o espaço virtual, mais precária se torna esta dependência.

Simultaneamente este espaço exige também um poderoso e muito real agregado infraestrutural de
consumo energético, cablagem, baterias de servidores etc. que por sua vez se repercute como factor
de custos. Em grande parte estes equipamentos tecnológicos também têm de ser financiados a partir
da publicidade ou exigem uma parte das suas receitas. Isto também se aplica às redes promovidas ou
postas à disposição pelo Estado cujas receitas também são uma dedução da massa social de valor; tal
como as suas outras funções também esta é cada vez mais financiada a crédito. Sejam quais forem as
mediações, o complexo da indústria cultural virtualizada é essencialmente uma criatura do capital
fictício e das suas diversas formas, que no seu conjunto representam uma antecipação cada vez mais
irreal de futura criação real de valor protelada sempre mais. O limite interno de toda a organização
torna‑se manifesto na mesma medida em que o sistema de crédito demasiado estendido colapsa, as
cadeias de crédito se rompem e se revela a infinanciabilidade social da cultura do grátis virtual. A
total deslocação do problema para o crédito estatal não altera aqui nada.

Quando portanto os pressupostos económicos escondidos caírem a pique revelar‑se‑á que a
mentalidade do grátis do “utilizador” de modo nenhum constitui uma antecipação da abolição da
forma da mercadoria e do dinheiro. Pelo contrário, trata‑se de uma consciência que há muito só vive
do crédito e até só pensa no crédito. Tal como uma reprodução não monetária surge erroneamente 21/29
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do crédito e até só pensa no crédito. Tal como uma reprodução não monetária surge erroneamente
como “sem custos” mesmo dos gastos materiais ou sociais enquanto “desmaterialização” ilusória,
assim também a própria existência virtualizada surge como não paga, cujos custos terão de cair
noutro lado, sobretudo quando não se precisa de saber nada disso. O pós‑modernista ecologicamente
esclarecido é sempre a favor do bom e contra o mau, só que tem de haver corrente eléctrica na
tomada e os artistas da vida têm de ter que comer a um nível aceitável de gourmet, sem que as
condições sociais de um luxo qualitativamente diferente e realmente generalizado se tornem um
problema a sério. O consumo do futuro da substância do valor, a deslocação dos créditos mal
parados e o desaparecimento técnico do dinheiro da realidade do mundo da vida surgem como uma
espécie de “mundo sem dinheiro” que de algum modo se tornou bastante mais barato. A revolução
contra a “riqueza abstracta” não se dá, mas cada um é o seu próprio bad bank. Também do ponto de
vista político‑social surgiram, no lugar de revolucionários, caçadores de pechinchas digitais. Nem é
bom perguntar como reagirá a consciência da indústria cultural ao colapso do seu mundo de ilusão e
auto‑ilusão.

A caminho do esgotamento das reservas culturais

A restrição e impasse económico corresponde à restrição e impasse cultural. Neste contexto a questão
da inovação na indústria cultural e nas suas fontes deve ser posta de lado. Mesmo como sector
secundário e até improdutivo do capital, que no entanto tem de ser economicamente alimentado pela
massa de substância social do valor, a indústria cultural é tão abstracta e em si desqualificada quanto
aos conteúdos como toda a valorização no seu conjunto. A completa indiferença perante qualquer
conteúdo material, porque o seu objecto próprio é o valor abstracto, obriga portanto a liquidar os
recursos culturais que não coincidem imediatamente com o fim em si da “riqueza abstracta”;
precisamente como os recursos naturais, materiais e humanos, aliás, também têm de ser recrutados
para a acumulação abstracta como suportes concretos indiferentes.

No movimento histórico ascendente do capital para a determinação da forma abrangente e planetária
surgiu uma genuína arte e cultura burguesa que em primeiro lugar se tinha formado sobretudo como
oposicionista no terreno das relações apenas meio desenvolvidas enquanto precocemente capitalistas
e proto‑capitalistas. Tal como a filosofia iluminista e a ciência deste período, ela era um produto
capitalista pela estrutura e pelo conteúdo, mas apenas nas suas formas de pensar e representar, como
mobilização ideológica e antecipação ideal, e não ainda propriamente como objecto imediato de
valorização; por isso também como produto de luxo para patronos nas cortes absolutistas ou para
círculos privados e correspondentemente financiada. Também a esfera pública burguesa como
pressuposto para uma transformação da indústria cultural permaneceu nessa medida em primeiro
lugar como protótipo.

Só neste estatuto intermédio “elevado”, que contradiz a sua própria lógica mesmo que apenas
formalmente, pôde a cultura burguesa adquirir a aparência de contexto de reflexão determinado
pelos conteúdos e de capacidade de expressão com os célebres “momentos de excesso”, em que se
reuniu um fundo de verdadeira “objectividade cultural” que era um reflexo da objectividade do valor
mas ainda não esta mesma, a qual ainda só tinha conquistado alguns domínios da reprodução
material. A consciência da burguesia cultural quis sempre manter este estatuto intermédio e ligar‑lhe
a ilusão de arte, ciência etc. “altas”, não corrompidas pelo economismo vil, embora o modo de
pensar, as formas de representação e os conteúdos já afirmassem igualmente aquela lógica que
escarnece da pretensa autonomia da arte ou da cultura e logo haveria de encontrar a sua expressão
simbólica definitiva no “Quadrado Negro” de Malevich.

Ora é evidente que a indústria cultural, apenas incipiente no século XX e só nos limites do
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24/01/2017 A Indústria Cultural no século XXI – Robert Kurz – Ensaios e textos libertários

Ora é evidente que a indústria cultural, apenas incipiente no século XX e só nos limites do
capitalismo no início do século XXI aumentada até à virtualização do mundo da vida, nunca pôde
alimentar‑se de conteúdos a partir de si mesma, mas fê‑lo vampirescamente em primeiro lugar a
partir daquele passado de uma cultura e arte burguesa ainda não possuída pela sua própria lógica. A
aventura da história da imposição do capitalismo, cujas narrativas e criações ainda não entradas elas
próprias na valorização (do classicismo e romantismo burgueses, passando pelo realismo, até à
“modernidade clássica”) criaram a aparência de um conteúdo cultural independente, mas esgotaram‑
se no prazo de poucas décadas. A indústria cultural não conseguiu criar mais nada de novo a partir
de si mesma. A sua criatividade consistiu sempre apenas na adaptação de material pré‑encontrado.

Houve no entanto ainda uma segunda onda a partir da qual a sede vampiresca da indústria cultural
pôde beber. Foram as contraculturas e subculturas dos movimentos sociais e milieus,quese
orientavam subjectivamente contra o capitalismo ou contra as suas formas de manifestação e que
deram expressão intelectual e artística a uma existência marginalizada, a formas de vida
inconformadas ou a desvios sociais. Estas culturas de protesto ou pelo menos subculturas foram o
campo de referência de uma invocada contraposição “não comercial” à indústria cultural. De facto,
porém, eram muito fracas na sua potência subversiva para poderem vir a tornar‑se um opositor sério;
e na verdade sobretudo porque a sua crítica permaneceu não crítica da forma, fenomenologicamente
limitada e socialmente particular, sem conseguir atingir a universalidade social. Tal como a
estatalidade capitalista sempre conseguiu capturar, adaptar, torcer e transformar em recursos
políticos próprios as tendências “políticas” emancipatórias de curto alcance (do velho movimento
operário até à “nova esquerda” de 1968), também as culturas de protesto e subculturas “não
comerciais” foram a curto ou a longo prazo transformadas num recurso da indústria cultural.

O que se apresentava como subversão cultural e contracultura constituía, na verdade, tal como a
antiga alta cultura burguesa de certa maneira ainda externa, uma espécie de reserva natural para o
capital da indústria cultural, reserva que era periodicamente ceifada ou trinchada. Após a segunda
guerra mundial ambos os recursos perderam a sua relativa autonomia; a alta cultura burguesa
simplesmente morreu e já só podia ser utilizada como madeira seca, as subculturas tornaram‑se cada
vez mais viveiros capitalistas. Como na sequência da revolução tecnológica e da globalização todos
os horizontes se reduzem, também se acelera o processo de mutação da indústria cultural, de criações
subcomerciais ou protocomerciais até ao desaparecimento do objecto.

Adorno e Horkheimer descrevem o vampirismo cultural apenas tendo em vista a decadência da
antiga alta cultura burguesa e também com imprecisões; mas o problema das subculturas ficou fora
do seu horizonte ou foi de imediato subsumido ao conceito de indústria cultural. A partir deste
déficit de análise também se esclarece parcialmente o erro do julgamento negativo de Adorno sobre o
jazz, cuja origem e qualidade própria foram ignoradas. Adorno, neste ponto plenamente conduzido
pelas idiossincrasias do “bom gosto” da burguesia cultural clássica, não quis ver o jazz na sua
especificidade própria anterior à indústria cultural, mas apenas como produto genuíno da máquina
cultural capitalista. Ele não viu aqui que esta máquina precisa de um material não inerente a ela
própria porque só consegue despedaçar algo que lhe tenha sido trazido. O seu produto precisa de
matéria‑prima ou semi‑elaborada cultural previamente encontrada. Estes recursos não estavam ainda
completamente esgotados em meados do século XX.

Poder‑se‑á admitir que Adorno só conhecia ou só tinha em vista o jazz já orientado pela indústria
cultural, por exemplo as show bands dos anos de 1940. Neste sentido Adorno de certo modo acaba
por ter razão e sobretudo no que diz respeito ao prognóstico, que no entanto não pode referir‑se
especificamente ao jazz ou à música pop. Trata‑se das criações culturais em geral, seja qual for a
especialidade e o nível artificial. Juntamente com a terceira revolução industrial como tecnologia de
crise universal e com o processo de crise global que se lhe seguiu, também a indústria cultural atingiu
o seu limite histórico. O seu auge, que coincide com a totalização da estética das mercadorias,
coincide também com o esgotamento dos seus recursos externos. De certa maneira pode falar‑se de
uma analogia com o esgotamento das reservas energéticas e com a destruição das bases naturais da23/29
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24/01/2017 A Indústria Cultural no século XXI – Robert Kurz – Ensaios e textos libertários

uma analogia com o esgotamento das reservas energéticas e com a destruição das bases naturais da
vida, bem como com a crise das relações entre os sexos. Também neste sentido o capitalismo destrói
os seus próprios pressupostos. Na mesma medida em que a abstracção do valor segue a sua dinâmica
interna e completa realmente o programa da sua totalização, dissolve não só a sua própria substância
de trabalho, mas também os seus fundamentos naturais, sexuais e culturais, os quais se transformam
de pressupostos mudos em gritantes contradições.

O pós‑modernismo faz notar involuntariamente o limite cultural quando desliga as intenções da
cultura de protesto e da subcultura da sua pretensão ideológica de “não comercial” ou
“anticomercial” e as desloca directamente para a indústria cultural, na medida em que gostaria de
escolher para si momentos pretensamente subversivos literalmente por compra no supermercado ou
por download numa Internet subsidiada. O conteúdo de realidade desta interpretação está em que,
pelo menos nos efeitos sociais, já não se trata muito de criações relativamente autónomas, mas sim
apenas de produtos que são a priori da indústria cultural como objectos de “autovalorização” e da
sua possível procura. A “subversão”, que naturalmente já não é nenhuma, deve ser transferida para o
modus do simples consumo de mercadorias (mesmo que seja de uma mercadoria obviamente
“gratuita”).

De par com esta ideologia de um consumo “criativo” ou mesmo “crítico” vai a completa recusa de
tomar como foco da crítica a forma da mercadoria como tal (com o que o pós‑modernismo no seu
conjunto regride para trás do marxismo do movimento operário, em vez de o transcender). A questão
já não é que a forma da mercadoria como mal necessário se agarre também aos conteúdos da sua
crítica, de modo que esta se possa articular em geral e reproduzir os seus pressupostos materiais, mas
sim que o carácter de mercadoria é aceite ou ignorado e o conteúdo é positivado como conteúdo da
valorização, mesmo que num sentido apenas simbólico.

Mas se a “criatividade” já consiste apenas no tipo e na combinação do consumo de mercadorias,
então isso conduz a uma crise do valor de uso, porque já não há qualquer novo fornecimento de
conteúdos. Após a morte da antiga alta cultura burguesa a subcultura sofre o mesmo destino. Já só há
pseudo‑subculturas, elas próprias já orientadas pela indústria cultural. Mesmo a mais tola banda
escolar já aspira desde o início ao sucesso comercial ou pelo menos ao capital cultural para
“aparecer” nas listas de sucessos, e dá fundamentalmente mais valor à “apresentação” do que ao
conteúdo inovador que não tem. Isto aplica‑se a todo o sector cultural, abstraindo das excepções. Tal
como a substância do valor é apenas simulada, uma vez que ocorre uma reciclagem a partir das
bolhas financeiras, também a indústria cultural vive apenas da reciclagem de velhos conteúdos
sucessivamente adaptados, até que sufoque na sensaboria dos eternos requentados. Esta situação
torna‑se cada vez mais explicitamente naquela barbárie cultural de que fala o capítulo da Indústria
Cultural.

O mundo não é um acessório. Por que é impossível uma “revolução cultural” separada

O círculo da reflexão crítica fecha‑se se regressarmos à complementaridade polar da pseudo‑crítica
elitista culturalmente pessimista e da afirmação pós‑moderna da superficialidade. A superfície é o
mundo dos fenómenos imediatos; cultural é o do outfit, do design, do guarda roupa. Se a burguesia
cultural denuncia publicamente a superficialidade, ela refere‑se apenas o outfit que lhe salta à vista, a
formas de apresentação e manifestação impertinentes ou estranhas. O stock remanescente de
consciência cultural elevada, mesmo se tem um quadro de Kandinsky na parede, num aspecto não
está assim tão longe do filisteu pequeno‑burguês do dinheiro e da cerveja como gosta de expressar
livremente na sua aversão contra a “arte degenerada”, a “música negra” e o movimento pop

“americano”. Trata‑se aqui não do carácter da superfície em si, mas apenas de trapos e sons
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24/01/2017 A Indústria Cultural no século XXI – Robert Kurz – Ensaios e textos libertários

“americano”. Trata‑se aqui não do carácter da superfície em si, mas apenas de trapos e sons
“erróneos”, como metáforas de um design social rejeitado. Por detrás está o medo do estranho, dos
underdogs, dos desviantes ou das “classes perigosas”.

Ainda que o culturalismo pós‑moderno cultive e romantize justamente fenómenos e formas de
expressão abominadas pelos velhos filisteus culturais, mas apenas como acessórios sem conteúdo e
arbitrários, ele pertence à mesma estrutura de percepção e constitui ele próprio uma consciência de
classe média, apenas diferentemente posicionada. O conflito neste campo isolado não passa de
maçador e os intervenientes são demasiado identificáveis na sua identidade. Poderia sem mais
tornar‑se chique pendurar “vanguardisticamente” na parede num golpe de surpresa o famigerado
veado bramante; logo as galerias ficariam repletas deles, desde Nova Iorque até à província de
Berlim. A reciclagem que a indústria cultural faz de todas as formas de expressão nivela como é
sabido também a diferença entre arte e kitsch. No fundo começou já com as apresentações dadaístas
do pechisbeque como objecto artístico; o que foi considerado um escárneo é tratado há muito tempo
com seriedade académica como problema da história da arte.

Com isto não se pretende negar que a “expressão” habitual tem de encontrar uma forma na
sociedade, no universo vital e na cultura quotidiana. Cada formação histórica exprime‑se
artisticamente, mesmo onde não existe uma esfera isolada da arte; as pessoas decoram o espaço vital
e apresentam‑se nas suas vestes etc. Estas múltiplas formas de expressão a diversos níveis nunca são
puramente individuais, mas sim também determinadas através da respectiva sociedade, das suas
contradições e do seu desenvolvimento. Em relação ao modo de produção e de vida capitalista, no
entanto, é preciso ter presente que foram o vazio e indiferença quanto aos conteúdos que são
inerentes aos seus mecanismos, bem como o esgotamento e seca cultural que acabam por ser
realizados pela sua dinâmica específica, que levaram à dominação e autonomização grotescas do
exterior. Tal como a forma abstracta da mercadoria se autonomiza face ao conteúdo concreto e
rebaixa este à sua mera “forma de manifestação”, assim acontece analogamente a já referida inversão
entre conteúdos culturais e intelectuais e a sua “forma de apresentação” exterior.

Isto aplica‑se também à chamada cultura quotidiana, que se desenvolveu até àquilo que já Marx
apontou como “religião do quotidiano”; no entanto muito para lá do carácter ideológico referido por
Marx. Já não se trata de meras “opiniões” e interpretações ideológicas do mundo, mas sim de modos
de expressão e de auto‑interpretações entendidos existencialmente. O “puro nada” tem de se auto‑
apresentar como capa nas relações com os seus semelhantes e tem de armar permanentemente o seu
outfit em sentido lato. A muito invocada pluralização de estilos de vida é completamente uniforme
no que diz respeito ao seu carácter como meio de ganho de distinção, situação em que a pluralidade
se dissolve novamente num “mainstream”; mesmo que este pareça correr em diversas direcções.

A questão decisiva aqui é que mesmo os mais simples trapos em si bastante irrelevantes são
carregados com formalidades arbitrárias e “questões de gosto” com uma importância impertinente.
Que ninguém consiga escapar às tendências sociais neste plano, a não ser à custa da pura comicidade,
não constitui nada de essencial. Assim andamos nós há quarenta anos não de toga, mas de jeans;
ainda que já não nas mesmas, pois o desgaste do material obriga a gastar tempo na compra de calças.
Se as jeans e os cabelos compridos dos jovens ou a música rock já foram considerados como sinal de
uma espécie de protesto juvenil, há muito que está provada a inocuidade e o carácter afirmativo desta
pseudo‑revolta. Isso tornou‑se apenas uma moda geral nas calças, a que mesmo os velhotes tiveram
de sucumbir. Naturalmente que tais fenómenos se repetem em cada geração de algum modo na
puberdade. Mas a novidade é que eles assumam uma relevância social generalizada.

Devo comprar umas calças que possam servir a um elefantezinho, de modo que ninguém veja se eu
tenho rabo? Ou umas calças tão estreitas que perturbem a circulação sanguínea e toda a gente possa
ver que não tenho rabo? Tais alternativas existenciais nos tempos pós‑modernos já não são deixadas
para os jovens abaixo de quinze anos, mas entram na categoria de quase ideologias políticas. Que os
indivíduos desenvolvam preferências no vestuário, na comida e bebida, no sexo, na sensibilidade
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24/01/2017 A Indústria Cultural no século XXI – Robert Kurz – Ensaios e textos libertários

indivíduos desenvolvam preferências no vestuário, na comida e bebida, no sexo, na sensibilidade
corporal ou na decoração da casa já não constitui uma questão natural e inocente. Se tatuagens ou
piercings, comida vegetariana ou vegan e coisas que tais se transformam numa espécie de visão do
mundo, com a qual as pessoas se separam ou se reconhecem de um determinado círculo como antes
com o emblema do partido, então isso aponta para o carácter da ideologia do outfit como
procedimento de substituição, com o qual se pretende substituir o vazio ideal e social.

Tais procedimentos de substituição simbólicos e da cultura quotidiana ganham importância
justamente para a administração da crise e suas ideologias de disciplinamento. As campanhas contra
os fumadores incluindo medidas administrativas de proibição ou a denúncia dos hábitos alimentares
“não saudáveis” das classes inferiores não têm nada a ver com a preocupação com o bem‑estar. Pelo
contrário, o que acontece é que assim se desloca a percepção das disparidades sociais, da pobreza,
dos desaforos sociais e do stress do trabalho para o figurativo, para a “performance” pessoal, como se
o problema fosse apenas de mudanças no plano dos hábitos ou atitudes culturais quotidianas que
não teriam nada a ver com uma relação social coerciva. Tal ideologia da administração de seres
humanos apela segura do objectivo para as almas aparentadas de personalidades de auto‑encenação
vazia que pretendem realizar‑se no culto da superficialidade e que se tornam tanto mais permeáveis
aos mecanismos de disciplinamento quanto estes se apresentam como oferta de design.

O culturalismo pós‑moderno e sua sobreacentuação da aparência já têm antecedente histórico num
duplo aspecto. Filosoficamente trata‑se da corrente irracionalista do pensamento burguês, desde a
viragem anti‑hegeliana no século XIX, passando pela filosofia vitalista, até ao existencialismo. É o
contraprograma burguês formulado por Nietsche e Heidegger contra Marx e Adorno, donde também
a chamada esquerda pós‑moderna retira as suas referências principais. Ligada a ele esteve sempre a
atitude ou modo de percepção conhecida pelo nome de “estetização”. O horror da guerra e da
destruição, o terror da normalidade, o sofrimento e a miséria tornam‑se “belas imagens”, entranhas e
barrigas inchadas pela fome ou feridas ulceradas tornam‑se obras de arte. A “estética do terror”,
desde Walter Benjamin designada por fascismo subjectivo, constitui os antecedentes e é secretamente
parte integrante da viragem culturalista pós‑moderna contra a crítica do capitalismo conteudística,
social e categorial.

A encenação da “entrada em cena”, mostrada por Leni Riefenstahl na estética cinematográfica do
congresso do partido do Reich, com a sua figuração de desfiles de massas, pertence também a esse
programa. A individualização pós‑moderna desse modo de proceder não muda nada da essência da
coisa; e pode a qualquer momento virar em surdos motins colectivos, como prova o mobbing digital.
A indiferença perante o conteúdo na sua agudização pós‑moderna dá lugar a um programa
esteticista ainda mais abrangente que o do início do século XX, que nem sequer é percebido como tal
porque representa um sentido geral da vida.

Esta estetização militante, que agora fez da forma do design publicitário uma matriz totalitária, é
uma arma muito mais eficaz contra a crítica radical do que as simples construções de pensamento da
ideologia. Não se trata da coisa em si, mas do estilo. No lugar da análise crítica surgem tratados do
tipo “como empobrecer com estilo”. O styling não reconhece qualquer outro critério de verdade além
do número de comentários “gosto” na Net. E o que é publicitado é o que é apreciado como outfit. A
objectividade negativa deve ser escondida por um “subjectivismo estético”; no lugar da revolução
social surge a pseudo‑revolução sem dor do “parecer belo” – a estetização da existência de todos e
cada um. É esteticizada não só a guerra e a atrocidade, mas também a crise, a nova pobreza e a
catástrofe ambiental. Trata‑se simultaneamente duma estetização da verdade, que corresponde ao
paradoxal “relativismo absoluto” da pós‑modernidade.

A ideologia da estetização tornada forma de vida real não deve ser confundida com a estética em si.
A questão não é que cada conteúdo encontre a sua adequada forma de expressão ou de exposição,
para o que podem ser desenvolvidos critérios. Em vez disso é a forma estética que se autonomiza
como se viu contra o conteúdo e rebaixa este à sua forma de manifestação acidental e não essencial. É
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24/01/2017 A Indústria Cultural no século XXI – Robert Kurz – Ensaios e textos libertários

como se viu contra o conteúdo e rebaixa este à sua forma de manifestação acidental e não essencial. É
esta inversão, implantada e consumada pela forma totalitária da mercadoria na arte e na cultura, que
constitui o programa da estetização.

Trata‑se de um processo histórico que teve a sua conclusão na estética das mercadorias após a
segunda guerra mundial e que só pode desembocar, como qualidade de mercado mundial da
“incoerência bárbara”, numa nova estetização da política ela própria há muito desrealizada. O terror
é agora tanto mais medonho de outra maneira quanto ele apresenta simultaneamente todos os traços
da tolice. Foi justamente o novo centro, verde, social‑democrata e social‑ecológico, que não só apertou
o torniquete da administração social da crise e pôs em marcha Har� IV, mas simultaneamente
também levou ao auge a sua “venda” democrática como pantomina do design publicitário. Não por
acaso são os quadros e autoproclamados “revolucionários da cultura” da antiga nova esquerda de
1968 que produzem este desenvolvimento. Eles já então assumiram antecipadamente o pós‑
modernismo de esquerda e hoje mostram‑lhe o seu futuro, mesmo que este já não deva conduzir aos
ministérios, mas simplesmente a mandatos pelo “partido dos piratas”. Esta geração de filhos e netos
do “novo centro” já envelhecido nem precisa mais de qualquer passado radical de esquerda para o
design da sua entrada em cena.

A metamorfose das antigas encenações prontas a ser representadas de comunas e de combatentes de
rua em maturidades de homens de Estado mostram involuntariamente que não pode mesmo haver
uma “revolução cultural” autónoma no sentido de simples revolucionamento da atitude, do outfit, da
“conduta do discurso”, do “estilo de pensamento” e do quotidiano, até ao penteado, à cultura de
consumo ou mesmo alimentar etc. Se a geração de 68 politicamente crescida se permite uma
modernização e democratização “cultural revolucionária” da RFA, enquanto fracassou como
revolucionária, prova assim apenas que o pseudo‑radicalismo performativo só serve em culturas de
protesto baratas e superficiais, para ultrapassar a puberdade e também para o “revolucionamento”
do próprio capitalismo e do seu estilo de management. Uma boémia de classe média que se dá por
ser da arte do quotidiano, da experimentação sexual e da rebeldia habitual já desempenhou sempre
este papel. A “revolução cultural” assim limitada da nova esquerda foi no entanto a última da sua
espécie porque já não havia nada para revolucionar em termos económico‑culturais por falta de
substância real de valor e o comboio da esquerda pop pós‑moderna já há muito que estava fora da
linha.

Só haverá uma “revolução cultural” no futuro se for simultaneamente expressão de um movimento
social revolucionário com efectivo poder de intervenção e não performance meramente simbólica.
Um tal movimento não existe actualmente e portanto também não se pode desenvolver qualquer
estética da crítica mas apenas uma crítica da estética dominante, enquanto crítica da indústria
cultural. Não se pode vestir uma roupa sem o corpo para ela. O culto pós‑moderno da
superficialidade, na sua atitude de crítica aparente em que os próprios protagonistas não acreditam, é
tão sem substância como a valorização do capital virtualizada da pós‑modernidade. A condição para
uma nova integração do movimento social com o movimento cultural revolucionário é que penetre
na consciência das massas uma nova crítica radical do contexto da forma fetichista, coisa de que a
esquerda pós‑moderna não quer saber absolutamente para nada.

O que o culturalismo ideológico presentemente ainda consegue ao serviço do capital é única e
exclusivamente o enfraquecimento interno da própria crítica categorial. Pois esta corre o risco de se
transformar num objecto puramente estético através da recepção parcial e aparente justamente da
crítica do “trabalho”, do valor e da dissociação sexual, ou seja, num acessório efémero da auto‑
encenação, assim se tornando completamente sem compromisso. Com a totalização do design
publicitário vai de par a subsunção em geral de todos os conteúdos na corrente cega do espírito do
tempo ou na moda. Não se trata apenas de trapos da moda, mas também de delitos da moda, de
doenças da moda e ideologias da moda, até mesmo de indecências da moda. Justamente a esquerda
pós‑moderna espalha os seus ditos ordinários por todo o lado através do seu lugarejo intelectual de
província. Por isso as personalidades sociais pós‑modernas são por princípio pessoas de pouca
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província. Por isso as personalidades sociais pós‑modernas são por princípio pessoas de pouca
confiança; não podemos lembrar‑nos delas numa posição fixa e com carácter vinculativo, nem sequer
relativamente à crítica categorial, tanto quanto eles supostamente se apropriaram dela.

Tal como o velho patriarca verde de 1968 Joschka Fischer periodicamente alarga e volta a encolher
como um harmónio o perímetro da sua corpulência, transformando‑se de barrigudo em corredor de
maratona e vice‑versa, assim também os estrategas individualizados do outfiĀransformam
periodicamente o seu comportamento, as suas atitudes e convicções sem qualquer conexão interna. Já
se sabe que qualquer conteúdo a que se deita a mão logo terá de ser novamente removido. Períodos
inteiros da vida minguam num Verão ou possivelmente numa tarde; todas as relações se dissolvem já
quase antes de terem começado. Aplica‑se a divisa de Berlusconi que terá dito: “Já fui muitas vezes
sincero”. Uma vez que o puro nada não pode permanecer junto de nada, ele também não aprendeu
nada certo, nem sequer a própria língua materna. O cidadão do mundo pós‑moderno não sabe bem
alemão nem sabe bem inglês; não sabe bem nada, mas já cheirou tudo alguma vez.

Como antídoto para esta situação lamentável recomenda‑se em sentido emancipatório uma ampla
recusa da estetização e da moda sem compromisso, o que implica uma crítica radical do culturalismo
pós‑moderno. O conteúdo tem de ser reposto no seu direito prioritário. Isto aplica‑se tanto à crítica
superficial da superficialidade feita pelo stock remanescente da consciência de burguesia cultural
como ao contrapolo pós‑moderno. O mundo não é um acessório; o culto da superficialidade devia ser
coberto de escárnio e maldizer. A indústria cultural não pode ser iludida por uma hiperafirmação
pós‑moderna de esquerda, mas apenas através da desvalorização militante do mero design em
qualquer sentido. Nas publicações da crítica radical deviam talvez ser fomentados os textos pesados e
no outfit a simplicidade consciente.

Não podemos partir do capítulo da Indústria Cultural da Dialética do Esclarecimento sem rupturas,
mas a recepção crítica da concepção aí desenvolvida permanece indispensável. O pós‑modernismo
que se imaginou para lá dela já não tem nada a dizer no mundo de crise do século XXI. Resta a
esperança de que já esteja prestes a levantar‑se uma geração que diga com toda a simpatia aos
ideólogos pop apaixonados pela própria juventude profissional que eles mesmos são agora os velhos
insuportavelmente chatos de ontem e que vai sendo tempo de fazerem uma interrupção da emissão.

 Fonte: KULTURINDUSTRIE IM 21. JAHRHUNDERT. Zur Aktualität des Konzepts von
Adorno und Horkheimer, In Revista EXIT! Krise und Kritik der Warengesellschaft, 9
(03/2012). Versão em português por Boaventura Antunes (março, 2013), disponível em hĀp://o‑
beco.planetaclix.pt/rkurz406.htm (hĀp://o‑beco.planetaclix.pt/rkurz406.htm)

 Observação: Este ensaio é a versão escrita e alargada de uma comunicação apresentada em
21 de Novembro de 2010 na Alliance Française em São Paulo no âmbito de uma série de
conferências subordinadas ao tema “A Indústria Cultural no Século XXI”.

Fragmentos de uma palestra de Robert Kurz no Brasil onde ele responde a perguntas sobre a
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24/01/2017 A Indústria Cultural no século XXI – Robert Kurz – Ensaios e textos libertários

 Fragmentos de uma palestra de Robert Kurz no Brasil onde ele responde a perguntas sobre a
Indústria Cultural , as teorias de Adorno e a cultura do capitalismo contemporâneo .

A Indústria Cultural no Século XXI Rob...

ARLINDENORSETEMBRO 24, 2014SETEMBRO 28, 2015# CRITICA RADICAL DO VALOR,
# INDUSTRIA CULTURAL, # ROBET KURZ

Um comentário sobre “A Indústria Cultural no século XXI
– Robert Kurz”

arlindenor  disse:
SETEMBRO 29, 2015 ÀS 3:13 AM
1. Republicou isso em Ensaios e textos libertáriose comentado:

Resolvemos reblogar está palestra realizada por Robert Kurz em 2010, em São Paulo , pela sua
absoluta realidade . Kurz , no seu estilo próprio , faz uma profunda abordagem do clássico texto
de Adirno e Max Horkheimer, à luz dos conceitos atuais da Crítica Radical do valor , fazendo
referências a instrumentos de comunicações que esses teóricos não conheceram , como a Internet ,
por exemplo . 
Ao final , postamos para vocês um vídeo de perguntas e respostas feitas ao palestrante naquela
ocasião . Vale a pena ver e comparar as respostas de Kur� cinco anos depois , com a crise do Brics
e a crise no Brasil . 
Arlindenor Pedro

RESPOSTA

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