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PEDRO GALVAO ORGANIZACAO aa OC Y) OC = aa UMA INTRODUCAO POR DISCIPLINAS LOGICA RICARDO SANTOS. METAFISICA DESIDERIO MURCHO EPISTEMOLOGIA CELIA TEIXEIRA ETICA PEDRO GALVAO. FILOSOFIA POLITICA JOAO CARDOSO ROSAS, MATHIAS THALER E INIGO GONZALEZ FILOSOFIA DA RELIGIAO AGNALDO CUOCO PORTUGAL FILOSOFIA DA CIENCIA ANTONIO ZILHAO FILOSOFIA DA LINGUAGEM TERESA MARQUES E MANUEL GARCIA-CARPINTERO. FILOSOFIA DA MENTE SARA BIZARRO FILOSOFIA DA ACGAO SUSANA CADILHA E SOFIA MIGUENS ESTETICA E FILOSOFIA DA ARTE AIRES ALMEIDA Titulo original: ‘Filosofia. Uma Introdugdo por Diseiplinas Preficio: © Pedro Galvao e Edigbes 70, 2012 Logica: © Ricardo Santos e EdigSes 70, 2012 Metafisica: © Desidério Murcho e Edigies 70, 2012 Epistemologia: © Célia Teixeira e Bdigdes 70, 2012 tica: © Pedro Galvao e Edigdes 70, 2012 Filosofia Politica: @ Joao Cardoso Rosas, Mathias Thaler, Iigo Gonzalez ¢ EdigSes 70, 2012 Filosofia da Religito: © Agnaldo Cuoco Portugel e EdigGes 70, 2012 Filosofia da Ciéncia: © Ant6nio Zilhio e Edigdes 70, 2012 Filosofia da Linguagem: © Teresa Marques, Manuel Garcia-Carpintero e Edicdes 70, 2012 Filosofia da Mente: © Sara Bizarro e EdigSes 70, 2012 Filosofia da Acco: © Susana Cadilha, Sofia Miguens e EdicGes 70, 2012 Estética c Filosofia da Arte: © Aires Almeida e Edigdes 70, 2012 Capa: FBA Depésito Legal n® 348242/12 Biblioteca Nacional de Portugal - Catalogagéo na Publicagio FILOSOFIA, Filosofia: uma introdugéo por dsciplinas / Pedro Galvo... [et al - (Extr-coleceao} ISBN 078-972-44-1708-6 1-GALVAO, Pedro cou 101 ‘Paginagao: MA Impressio ¢ acabamento: PENTAEDRO, LDA. para EDIGOES70, LDA. Setembro de 2012 Direitos reservados para todos os paises de lingua portuguesa por Bdig6es 70 EDIGOES 70, Lda. Rusa Luciano Cordeiro, 123 ~ 18 Esq? — 1069-157 Lisboa / Portugal ‘Telefs: 213190240 ~ Fax: 213190249 e-mail: geral@edicoes70.pt www.edicoes70.pt Esta obra esti protegida pela lei. Nao pode ser reproduzida, ‘no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, incluindo forocépia e xerocépia, sem prévia autorizagao do Editor. Qualquer transgressto lei dos Direitos de Autor sera passivel de procedimento judicial i. Estética e Filosofia da Arte AIRES ALMEIDA 1. O conceito do estético «Estética» e «filosofia da arte» so frequentemente tomados como termos alternativos para designar a mesma disciplina filoséfica. Contudo, num sentido teoricamente mais preciso ¢ rigoroso, isso deixa de ser assim. O termo «estética» foi introduzido no vocabulério filoséfico por Alexander Baumgarten, no séc. xvitt. Baumgarten adaptou a Palavra grega aisthesis - que significa «percepao» ou Kant diz tratar-se de uma «finalidade sem fim», em que no ¢ a propria finalidade que conta mas a sua forma. © Que Kant diz serem juizos de aprovacio e que considera terem um caricter pritico. © Que Kant diz serem juizos de gratificagio. Por exemplo, o prazer de comer doces nao é desinteres- sado, na medida em que visa satisfazer um desejo ou inclinagio pessoal. FILOSOFIA UMA INTRODUGAO POR DISCIPLINAS de crengas ou de informagao sobre 0 mundo. Robert Stecker (2005: 37) refere o prazer que temos ao avistar uma bela ave, sendo que parte desse prazer depende de ser acerca de um certo tipo de ser vivo, Certamente a experiéncia que temos, explica Stecker, nao seria a mesma se se tratasse de uma ave imaginaria ou de uma ave artificial vista num espectaculo virtual. E, pois, importante saber que se trata de uma ave real. Talvez s6 no caso de estarmos enganados quanto 4 natureza arti- ficial do passaro, acreditando erradamente que se tratava de um ser natural, fosse possivel termos o mesmo tipo de experiéncia. Isto mostra que os elementos cog- nitivos relativos 4 natureza real do objecto de apreciagao ~ a crenca de que se trata de um pissaro verdadeiro em vez de um artefacto tecnoldgico — nao s6 nao so irrelevantes como, por vezes, sem eles talvez nem sequer houvesse qualquer expe- riéncia aprazivel. Uma terceira critica incide sobre a apreciacio de muitas obras de arte e vem reforgar a anterior, Se for verdade, como diz Kant, que a apreciacao estética é contemplativa — porque completamente centrada nas qualidades fenoménicas imediatas, alheando-se de todos aspectos exteriores a prdpria experiéncia percep- tual -, ento ficamos sem saber por que razao a originalidade de muitas obras de arte é frequentemente a melhor justificagdo dos juizos estéticos que fazemos sobre elas. Ora, tomada isoladamente, nenhuma obra de arte consegue ser original; uma obra sé pode ser original por comparacao com as outras, 0 que implica dispor de informacao adicional, exterior a essa obra. Uma ultima critica tem um cardcter mais geral, pois procura mostrar que a caracterizacio kantiana do juizo estético ndo consegue explicar por que razio temos experiéncias estéticas acerca de umas coisas e nao acerca de outras. Por que raz0 um p6r-do-sol com mar e nuvens proporciona geralmente o género de pra~ zer desinteressado a que se dé o nome de experiencia estética e um céu uniforme- mente cinzento nao costuma proporcionar 0 mesmo tipo de experiéncia? Além disso, também nao dé conta do facto de, para as mesmas pessoas, as mesmas coisas serem umas vezes dignas de apreciacao estética e outras vezes nao. E possivel que esta critica falhe o alvo, dado que Kant nao esta interessado em explicar qual a origem ou causa da experiéncia estética, mas apenas esclarecer em que consiste tal experiéncia. Contudo, foi em parte para debelar esta alegada dificuldade da abordagem kantiana que surgiram as chamadas teorias da atitude estética. 1.2, Atitude estética De acordo com as teorias da atitude estética temos experiéncias estéticas por- que, diante de muitos artefactos e objectos naturais, adoptamos um modo especial de percepgao diferente do normal. Perguntar por que razio temos experiéncias estéticas em relagdo a um dado objecto no é uma questio de identificar as pro- ESTETICA E FILOSOFIA DA ARTE AIRES ALMEIDA priedades desse objecto que supostamente provocam em nés tais experiéncias, mas antes de tomar em relagao a ele uma atitude diferente da atitude pratica. Isto explica por que razio, diante do mesmo artefacto ou objecto natural, tanto pode- mos ter como nfo ter experiéncias estéticas: tanto podemos adoptar uma atitude estética como uma atitude normal em relacdo a cles. A experiéncia estética é, assim, uma questo de atitude, restando apenas esclarecer em que consiste tal atitude. Isso faz-se, segundo alguns proponentes desta abordagem, identificando os facto- res psicoldgicos que nos levam a percepcionar os objectos de modo diferente do habitual. Edward Bullough (1912), um dos primeiros a defender esta perspectiva, recorre 4 nogo de distanciamento psiquico para explicar a atitude estética. E 0 distancia- ‘mento psiquico que permite tornar qualquer objecto percepcionado num objecto estético, levando-nos a suspender todos os aspectos de cardcter pratico que nos ligam aos objectos de apreciacéo. O espectador que assiste tragédia de Orelo ‘nao deixa de pensar no comportamento suspeito da sua prépria mulher é um exem- plo de alguém que nao chega a apreciar esteticamente a pega por falta de distan- ciamento. Em sentido oposto, o espectador que se perde nos detalhes técnicos do ‘cenirio ¢ da iluminagio esta excessivamente distanciado, pelo que também nao adopta uma atitude estética. O exemplo oferecido por Bullough de um caso de distanciamento psiquico € o de alguém que se encontra num barco a observar um ameacador nevoeiro maritimo e que, apesar do perigo que tal situacio possa envol- er para si, consegue apreciar esteticamente o desenvolvimento ¢ as cambiantes de tal cendrio, desprezando o perigo por que esté a passar. O distanciamento é um estado psicolégico inibidor que coloca o «nosso eu pratico ou real» de parte, per- mitindo-nos percepcionar esteticamente o que temos diante de nds". A teoria do distanciamento psfquico parece, contudo, nao acomodar o facto de muitas vezes apreciarmos situages perigosas mas de cujo perigo temos plena consciéncia. Além disso, no consegue explicar por que razio apreciamos esteti- camente obras de arte, cuja apreciagdo depende de aspectos contextuais como a alusio, a citagao e a ironia, as quais sao incompativeis com uma atitude de distan- ciamento. Em muitos casos ¢ 0 préprio contexto social e politico da criagao artistica que desperta o nosso interesse por certas obras de arte. Stephen Davies (2006: 60) di o exemplo do Memorial do Veteranos do Vietname de Maya Lin, na cidade de Washington, cujo significado e interesse seria pouco mais do que nulo caso enca- rissemos aquele muro gigante com quase sessenta mil nomes inscritos como nada mais do que um muro com milhares de nomes inscritos. Neste caso, o efeito inibi- dor do distanciamento psiquico, ao ignorar que aqueles séo os nomes de todas as 1 Aideia de que as questoes de caricter pritico deixam de contar recupera, por intermédio de Scho- ipenhauer, a nogio de desinteresse herdada de Kant. A apreciagao estética, defende Schopenhauer, éatinica forma de nos libertarmos das necessidades e exigéncias da vontade e é, como tal, contemplativa. 391 FILOSOFIA UMA INTRODUCAO POR DISCIPLINAS vitimas americanas da guerra do Vietname, em vez de permitir apreciar verdadei- ramente a obra de Lin, mais facilmente anularia o seu impacto. Alguns filésofos consideram que fenémenos como o do nevoeiro maritimo e outros casos mais comuns de apreciacao estética so antes uma questio de dirigir a nossa aten¢ao para certas caracteristicas em detrimento de outras, sem ser neces- sdrio invocar um estado psicoldgico especial de distanciamento psiquico. E preci- samente isso que defende Jerome Stolnitz (1960), substituindo a nogio de distan- ciamento psiquico pela de atengao desinteressada, naquela que acabou por se tornar a versio mais discutida da teoria da atitude estética”. ‘Uma atitude, explica Stolnitz, «¢ uma maneira de dirigir e controlar a nossa percep¢do», centrando a nossa atengio de forma selectiva numas coisas em vez de outras. A atitude que adoptamos determina, assim, a forma como percepcionamos 0 mundo, Mas a atitude mais habitual nao é estética; é a atitude pratica, que nos leva a encarar as coisas como meios para outros «fins que esto para la da experi- éncia de as percepcionar». Ao passo que a atitude pratica ¢ utilitéria, a atitude estética leva-nos a concentrar a nossa atengio exclusivamente no préprio objecto, excluindo qualquer tipo de interesse pessoal ou outro. E neste sentido que Stolnitz, fala de atengio desinteressada, procurando também mostrar que a experiéncia estética deixa de estar associada & beleza, pois é possivel descrever como estéticas experiéncias acerca de coisas que nao sé nao sao arte como nem sequer sao belas: qualquer coisa se pode tornar um objecto estético e proporcionar experiéncias estéticas, desde que tenhamos uma atitude estética em relagio a cla. As criticas mais contundentes 4 teoria da atitude estética foram apresentadas por George Dickie num famoso artigo de 1964 sugestivamente intitulado «Todas as Teorias da Atitude Estética Falham: O Mito da Atitude Estética». A estratégia de Dickie consiste basicamente em pegar em exemplos que alegadamente ilustram a distingao entre atengio interessada ¢ atengao desinteressada para mostrar que eles ndo mostram 0 que era suposto mostrarem, concluindo que tal distingao nio se justifica. E assim deixa também de haver justificagdo para falar de atitude estética. Dickie dé 0 exemplo de uma estudante do conservatério que ouve atentamente uma dada pega musical com o propésito de se preparar para um exame, Dir-se-ia que, dado haver um propésito ulterior, a sua atengio nio é desinteressada, 20 contrério daquela pessoa que ouye a mesma peca sem qualquer outro propésito. Mas sera que encontramos aqui dois tipos diferentes de atengao? Dickie diz. nao haver qualquer razio para pensar tal coisa, pois ambos podem prestar atengio aos mesmos aspectos ¢ ambos podem reagir da mesma maneira, gostando do que \. Uma versio muito semelhante a esta foi proposta por Eliseo Vivas (1973) que, em ver de referir um modo desinteressado de aten¢io, prefere falar de um modo «intransitivo» de atengfo. Uma defesa um pouco diferente da atitude estética como percepgio imaginativa foi desenvolvida por R. Scruton (1974). ESTETICA E FILOSOFIA DA ARTE AIRES ALMEIDA ouvem ou aborrecendo-se com isso, independentemente dos motivos que os leva- ram a ouvir essa musica. E certo que um pode estar mais atento a certos aspectos do que outro, mas estar mais ou menos atento nao é o mesmo que haver diferentes espécies de atencio, pois a natureza da atengio nao se altera por isso, do mesmo modo que nao estamos perante diferentes espécies de febre quando uma pessoa tem 38” e quando tem 392 de temperatura. Mesmo que o primeiro ouvinte preste atengao a certos pormenores ¢ 0 segundo nfo, isso nio mostra que eles tem um tipo diferente de atencio, pois nao prestar atengao a algo ¢ estar desatento, nao é ter um tipo diferente de atencao. Prestar atengao a umas coisas em detrimento de outras apenas mostra que hé diferentes motivag6es e nao diferentes tipos de aten- io. Assim, quando falamos de interesse desinteresse estamos a falar de motiva- ¢fo e no de atengio. Outro exemplo, referido por Dickie, de suposta atengao nao desinteressada é ode alguém que, numa exposicao de pintura, repara num quadro que Ihe evoca situag6es por que passou, levando-o a deter-se diante dele ao mesmo tempo que recupera memérias antigas. Mais uma vez, ¢ ao contrério do que Stolnitz pensa, nao é correcto concluir que hé aqui uma espécie de atengao interessada. O que hi é desatene’o, pois a atencio deslocou-se do quadro para algo diferente: as memé6- rias por ele despertadas. Deste modo, Stolnitz chama erradamente «atengio inte- ressada» a desatencio. Objeccao diferente, enfatizada por varios fildsofos”, 6a de que ha objectos de arte perceptualmente indiscerniveis de objectos nao artisticos, mas com diferente valor estético. Se a sua apreciacao depender apenas do modo como sio percepcio- nados, nao se compreende por que razao os primeiros hao-de ter um significado e um valor estético diferente dos segundos. ‘Uma defesa da atitude estética diferente da de Stolnitz foi proposta por Virgil ‘Aldrich (1963), baseando-se na reflexio de Wittgenstein sobre as imagens ambi- guas. O exemplo preferido de Wittgenstein ¢ o do desenho do pato-coelho, que ora pode ser visto como a imagem de um pato ora como a imagem de um coelho. Analogamente ao que se passa no exemplo do pato-coelho, Aldrich diz haver dois modos de percepgao distintos perante qualquer objecto, o modo estético ¢ 0 nao estético. Ele nao refere qualquer estado psicolégico especial nem um tipo de aten- Gao diferente. Em vez disso, introduza nogio de ver como. Assim, quando um dada obra de arte é percepcionada de modo nio estético ela ¢ vista como um objecto fisico, ¢ é vista como objecto estético quando percepcionada esteticamente. Mas é, mais uma vez, Dickie a levantar diividas sobre a nogio de ver como. Ele argumenta que ver o desenho como a representagio de um pato ou como a repre- sentagao de um coelho nao mostra que hi dois tipos de percep¢4o, embora se trate 2 Yeja-se, por exemplo, Carroll (1986) e também Davies (2006: Cap. 3) FILOSOFIA UMA INTRODUGAO POR DISCIPLINAS de representagées diferentes. Dizer que se trata de modos diferentes de percepgao 6 to descabido como considerar que ao olhar para dois desenhos diferentes, um representando apenas um pato ¢ outro apenas um coelho, temos dois modos de percepgio diferentes. Isto significa que a analogia com as imagens ambiguas é, afinal, uma falsa analogia. Além disso, hé uma assimetria que o defensor da atitude estética nao consegue explicar: por que razdo podemos optar entre olhar esteticamente ou nao estetica- mente para um objecto qualquer e o mesmo tipo de opgao nao parece tio evidente no caso de muitas obras de arte? Tal assimetria nao seria dificil de explicar para quem considera que ter experiéncias estéticas nao depende da atitude que se adopta, mas das propriedades do objecto de apreciagio. 1.3. Propriedades estéticas Uma forma diferente de dar conta da experiéncia estética consiste em identi- ficar e caracterizar 0 objecto acerca do qual temos tal experiéncia. A apreciacio estética nao 6, pois, uma questo de atitude nem de sentimento, mas de haver certo tipo de propriedades nos objectos, as propriedades estéticas, que provocam em nos experiéncias estéticas. Isso pode até exigir atengio da parte do sujeito. Trata- -se, contudo, de prestar atengio a certo tipo de caracteristicas do objecto, sem as quais nao haveria experiéncia estética, Mas de que falamos exactamente quando falamos de propriedades estéticas? Imagine-se um estudante de literatura que se prepara para um teste sobre poesia’. O estudante consegue detectar num poema de Camées certos recursos estilisticos, como metéforas e alusGes, descrever aspectos como a métrica e a rima, ou identificar o mimero de estrofes e a forma de um soneto. Tudo isto sio carac- teristicas do poema de Camées. Apesar de, eventualmente, saber tudo o que pre- cisa para o teste, o estudante ainda nao foi capaz de detectar qualquer propriedade estética. Mas se, além disso, reconhecer que as metiforas sao graciasas, que as alu- ses so espirituosas e que o ritmo é empolgante, por exemplo, ele jé estaré a identi- ficar propriedades estéticas. De modo idéntico, no estamos a falar de proprieda- des estéticas de um quadro quando dizemos que se trata de uma pintura a dleo sobre madeira, com figuras geométricas triangulares e em tons de vermelho. O ser de madeira e dleo, bem como a triangularidade a vermelhidao das formas repre- sentadas, so propriedades fisicas da pintura; ndo so propriedades estéticas. Frank Sibley, num ensaio seminal intitulado «Conceitos Estéticos» (1959), procura tracar a distingao entre conceitos estéticos ¢ nfo-estéticos, defendendo que aqueles, ao contrario destes, referem propriedades que requerem a faculdade "© Recorre-se aqui a um exemplo adaptadio de Stecker (2005: 53). ESTETICA E FILOSOFIA DA ARTE AIRES ALMEIDA do gosto para serem percepcionadas. E por isso que observadores sem qualquer sentido do gosto ndo véem a graciosidade, a tristeza ou a harmonia, apesar de percepcionarem a triangularidade e a vermelhidao. Assim, é errado pensar que a estética se ocupa apenas do conceito de beleza, sublinha Sibley, havendo muitos outros termos ou conceitos estéticos, como harmonioso, gracioso, sombrio, dinamico, poderoso, delicado, elegante, vivido, frouxo, vigoroso, superficial, tocante, trdgico, unificado, melancélico ou sentimental. Estes so alguns dos termos efectivamente usados pelos criticos de arte e ¢ isso que eles procuram ajudar as pessoas a descobrir nas obras. de arte. Na esteira de Sibley, filésofos como Monroe Beardsley (1973), Alan Goldman (1995) e Nick Zangwill (2001), consideram que as propriedades estéticas sao, além disso, aquelas que contribuem para o seu valor. Uma das propostas de classificagio das propriedades estéticas ¢ avangada por Goldman. Este divide-as em proprieda- des estritamente valorativas (ser bonito, ser feio); propriedades formais (ser har- monioso, ser delicado, ser gracioso); propriedades emotivas (ser triste, ser alegre, ser euférico); propriedades evocativas (ser poderoso, ser aborrecido, ser divertido); propriedades representacionais (ser realista, ser distorcido); propriedades percep- tuais de segunda ordem (as cores serem vividas, 0 tom ser puro); ¢, finalmente, propricdades historicas ou contextuais (ser original, ser ousado). Mas, mais do que a sua classificacao, a propria existéncia de propriedades estéticas nao é de todo pacifica. Dai que a discuss4o acerca das propriedades estéticas se centre sobretudo na resposta a seguinte pergunta complexa: hd realmente propriedades estéticas ¢, em caso afirmativo, qual é a sua natureza? Serdo elas independentes de sujeitos ou, pelo contrério, reactivo-dependentes? No fundo, trata-se de esclarecer se as propriedades estéticas sao intrinsecas € nao relacionais ou se, ao invés, sio propriedades relacionais, no sentido em que relacionam um objecto com um sujeito. Se forem reactivo-dependentes, entao sio relacionais, caso em que a nogio de propriedade estética talvez nfo possa ser com- preendida independentemente da experiéncia estética. Os realistas tendem a res- ponder que as propriedades estéticas sao independentes de sujeitos; os anti-rea- listas consideram que as propriedades estéticas sio reactivo-dependentes e que, portanto, nao tém uma existéncia independente. Um primeiro esbogo do realismo estético encontra-se, mais uma vez, em Sibley. Ele considera que os termos estéticos referem propriedades estéticas genu- inas que existem no mundo, Sao essas propriedades que tornam os juizos estéticos verdadeiros ou falsos, pelo que tais juizos s4o também objectivos. Mas que proprie~ dades sio essas? Sibley sugere que as propriedades estéticas dos objectos como que emergem das suas propriedades fisicas ou nao-estéticas. A ideia é que as pro- priedades estéticas sdo propriedades perceptuais baseadas em outras propriedades perceptuais de um nivel inferior: em vez de as inferirmos, temos experiéncia directa delas, ainda que a sua detecedo exija alguma sensibilidade. FILOSOFIA UMA INTRODUGAO POR DISCIPLINAS E costume designar este tipo de relacao entre as propriedades fisicas ou nao-estéticas ¢ as estéticas como uma relagao de sobreveniéncia™: as estéticas (as propriedades sobrevenientes) emergem ou sobrevém das nao-estéticas (as propriedades fisicas de base, ou subvenientes). Mas isto nao significa que as esté~ ticas, que sdo alegadamente propriedades valorativas, possam ser descritas ou caracterizadas apenas a partir das ndo-estéticas, que séo propriedades estritamente descritivas, pois considera-se que nenhuma afirmagio puramente descritiva implica uma afirmagio valorativa. O que isto significa é que os conceitos estéticos, apesar de dependentes dos nao-estéticos, nao esto sujeitos a condigées. Ou seja, nenhuma regra permite justificar adequadamente a aplicacao de um termo estético aum objecto através de uma descricao do referido objecto em termos niio-estéti- cos: ndo basta descrever uma jarra como tendo esta ou aquela forma, esta ou aquela cor e ser feita deste ou daquele material, etc., para justificar a afirmacao de que ela é delicada, Apesar de ser verdade que a delicadeza da jarra depende da sua forma, core material, etc., nenhum conjunto de qualidades fisicas (nao-estéticas) da jarra, por mais exaustivo que seja, permite concluir que ela tem a qualidade (estética) de ser delicada. Portanto, afirmar que a aplicagao de conceitos estéticos nao esta sujeita a condig6es equivale a dizer que nenhuma regra permite inferir proprieda- des estéticas de propriedades nao-estéticas, sejam estas fisicas, estruturais ou for- mais. E, conversamente, também nao é possivel reduzir as propriedades estéticas a propriedades nao-estéticas. Nenhuma regra permite detectar a delicadeza da jarra a partir das suas caracteristicas fisicas perceptuais, pelo que s6 0 sentido do gosto torna isso possivel. Note-se que o sentido do gosto é necessirio para detectar as propriedades estéticas, nao para a sua existéncia, Assim, nada indica que as propriedades estéticas sejam reactivo-dependentes. ‘A motivagio bisica do realismo é explicar o alargado consenso entre os criticos na apreciacao da maioria das obras de arte paradigmaticas. Outra vantagem ¢ expli- car por que razao tanto podemos ter experiéncias estéticas como nio-estéticas acerca dos mesmos objectos (¢ uma questao de detectar ou no as suas propricda- des estéticas), sem ter de invocar qualquer tipo especial de atitude ou de senti- mento. Diferentes versdes de realismo foram entretanto propostas. Mas, ainda antes de as conhecermos, é oportuno introduzir jé as principais criticas ao realismo de Sibley, as quais vieram a dar corpo a diferentes tipos de anti-realismo. Foi Ted Cohen (1973) quem mais se destacou na critica ao realismo de Sibley. Para melhor compreendermos as criticas de Cohen, € titil destacar as ideias centrais do realismo, que podem ser resumidas no seguinte par de teses: 1) hd uma catego- ria distinta de termos para descrever obras de arte e outros objectos de apreciacio ‘ Sibley nunca chega a usar 0 conceito de sobreveniéncia, embora geralmente se considere que era isso que tinha em mente. ESTETICA E FILOSOFIA DA ARTE AIRES ALMEIDA estética; 2) esses termos referem propriedades reais das obras de arte e de outros objectos. Cohen nio aceita nenhuma destas teses, mas tenta sobretudo mostrar que a tese 1 é falsa, argumentando que a distingao entre estético e nao-estético é inope- racional. O que esta em causa é, pois, o proprio conceito do estético. A estratégia € mostrar que hé conceitos estéticos cuja aplicagéo nao requer a intervengao da misteriosa faculdade do gosto e que, pelo contrario, esto efectivamente sujeitos a condigées, Cohen apresenta varios exemplos comuns em que se aplicam cor- rectamente os conceitos de graciosidade, elegincia, densidade e dinamismo, sem que tal aplicagao tenha algo que ver com questdes de gosto. E antes uma questao de se verificarem certas condigées, Dizer que tal danga de Gene Kelly ¢ dinamica nao é, de modo algum, uma questio de gosto, sendo esta atribuicio estética determinada pela simples observagio dos seus movimentos: a sua velocidade, variedade, fluidez, etc. O realista pode tentar evitar esta dificuldade, insistindo que nao estamos aqui perante uma verdadeira atribuicao estética de um conceito, visto nao se exigir 0 sentido do gosto do sujeito de apreciacao. Mas a ser assim, conclui Cohen, os mes- mos conceitos (dinamismo, graciosidade, elegdncia, densidade) tanto podem referir propriedades estéticas como nao-estéticas, dependendo do seu contexto de apli- cacdo. Ora, esta ambiguidade torna a distingdo intitil: podemos dizer que tal filme & pomposo, mas também 0 comportamento de um advogado no tribunal; que tal peca de teatro ¢ ousada, mas também a proposta de um deputado no parlamento; que tal romance policial é linear, mas também uma dada equagdo matemitica, € assim por diante. De resto, a caracterizagao das propriedades estéticas como aque- as que exigem gosto para serem detectadas é meramente estipulativa e artificiosa, dado que nenhuma justificagao é apresentada nesse sentido a nao ser a de que 0 gosto consiste na sensibilidade as propriedades estéticas. Ora, isto é argumentar de forma circular. Scruton (1974), por sua vez, nega a tese 2. Ele concorda com Cohen que os termos que referem propriedades estéticas, nomeadamente na musica, sio usados também em juizos nao-estéticos. Mas a sua estratégia segue em sentido inverso a0 de Cohen, pois procura mostrar que nem sequer nos juizos estéticos hé verdadeira atribuigao de propriedades estéticas. Scruton alega, nesse sentido, que os juizos estéticos se baseiam numa «transferéncia metaférica» e imaginativa de proprieda- des nao-estéticas, nado havendo efectivamente conceitos estéticos envolvidos. Esta critica inspira-se na ideia kantiana de que 0 juizo estético nao consiste na aplicagio de conceitos a objectos mas sim num livre jogo das faculdades da imaginagao e do entendimento, Mas extrai dai a conclusao de que os contetidos mentais dos sujei tos de tais atribuigGes nao sio crencas como a crenga de que uma dada proposigéo "5 Cohen é acompanhado por Peter Kivy (1973) neste tipo de objeccio ao realismo estético. 398, FILOSOFIA UMA INTRODUGAO POR DISCIPLINAS péverdadeira (por exemplo, que tal objecto tem tais e tais propriedades estéticas), tratando-se antes da expresso de atitudes ou de estados mentais como o de ima- ginar que p, em que p pode ser literalmente falsa. Neste caso, nem sequer se pode dizer que ha verdadeiros juizos. Esta posicao é frequentemente designada como expressivismo ¢ assenta na ideia de que as propriedades estéticas nao existem inde- pendentemente de sujeitos, isto é, que as ditas «propriedades estéticas» sao reac- tivo-dependentes. ‘Uma variante desta posicao ¢ defendida por Simon Blackburn (1984) no domi- nio da ética, mas que também é aplicével ao caso da estética e, em geral, a quaisquer propriedades de valor. A proposta de Blackburn, a que dé o nome de «quase-rea- lismo», é que os termos e conceitos estéticos nfo referem propriedades estéticas. Ao inyés, quando aplicamos tais termos a objectos, limitamo-nos a projectar neles as nossas atitudes emocionais como se fossem propriedades reais desses objectos. Propostas como estas visam explicar dois factos aparentemente inconcilidveis: nao conseguirmos desembaragar-nos do omnipresente conceito do estético, a0 mesmo tempo que os desacordos na sua aplicagao se mostram insuperaveis. Mais recentemente, filésofos como Philip Pettit (1983), Eddy Zemach (1996) e Jerrold Levinson (2001) tém desenvolvido teorias que desdramatizam a ideia de que os desacordos sao inevitaveis, dando um novo folego ao realismo. Pettit recu- pera e afina a ideia de sobreveniéncia, segundo a qual dois objectos que tenham exactamente as mesmas propriedades fisicas concordam na sua descrigo estética =o que é equivalente a tese de que dois objectos esteticamente distintos terao de ser fisicamente distintos. Assim, a indiscernibilidade em termos nfo-estéticos de quaisquer dois objectos implica a sua indiscernibilidade em termos estéticos, e vice-versa. Perante a objecgdo de que ha objectos fisicamente indiscerniveis mas que sio esteticamente distintos - como acontece no caso dos ready-made do artista Marcel Duchamp — Pettit alarga a nocio de sobreveniéncia de modoa incluir entre as propriedades nao-estéticas aspectos de cariicter contextual. Deste modo, as pro- ptiedades nao-estéticas de base (ou subvenientes) tém de ser adequadamente situadas em termos de estilo, género, periodo histérico e intencionalidade"*. Uma boa parte das divergéncias nos juizos estéticos deve-se, pois, a divergéncias quanto A correcta identificagao das qualidades nao-estéticas das obras de arte. Levinson, por sua vez, defende que boa parte dos desacordos acerca de ques- t6es estéticas advém do facto de se encarar erroneamente as propriedadesestéticas como essencialmente valorativas. A ser assim, as atitudes de aprovacdo e de desa- provacio dependeriam fortemente dos gostos e sensibilidades pessoais. Mas, argu- menta Levinson, as atribuigées de propriedades estéticas a obras de arte sio em ° E discutivel que o estilo de uma dada obra de arte seja uma qualidade nao-estética. Levinson, por exemplo, defende que nto. ESTETICA E FILOSOFIA DA ARTE AIRES ALMEIDA. larga medida descritivas. Elas baseiam-se no aspecto ou em «certas impressGes € aparéncias que emergem de propriedades perceptuais de ordem inferior”, que so acessiveis a observadores ideais. Os observadores ideais sao aqueles que dis- péem de informagao para situar correctamente a obra no seu contexto artistico, histérico e cultural. Tais observadores estio em condigdes de descrever este- ticamente as obras de arte com base em aspectos estritamente fenomenoldgicos. Trata-se de descrigées que nao tém um cardcter valorativo nem sequer séo valora~ tivamente subdeterminadas, o que nao impede que haja termos estéticos inequi- vocamente valorativos. Levinson sublinha que, embora possam ter também uma componente valorativa, termos estéticos como «harmonioso», «gracioso», «castico», «delicado», «fragil», «melancélico» e «garrido», sio principalmente descritivos. Do facto de muitas vezes nio conseguirmos separar as componentes descritiva e valorativa nas nossas apreciacées nada se segue, alega Levinson. Sendo essencialmente fenomenolégicas, as propriedades estéticas nao sao, adverte Levin- son, propriedades disposicionais dos objectos, pois a disposigao para causar certos efeitos nao é algo directamente percepcionavel, a0 passo que as propriedades esté- ticas 0 sio. Seguindo um caminho muito diferente, Zemach centra-se numa questao mais geral, procurando descartar o anti-realismo sem entrar na discussio acerca da natu reza das propriedades estéticas. Argumenta que nao podemos estar sistematica~ mente errados quando aplicamos termos estéticos e, consequentemente, que pelo menos algumas propricdades estéticas tém de ser reais, caso contrério esses termos nao teriam qualquer significado. Acontece que o significado de algumas predica- ges estéticas € publico e estavel, pelo que pode ser conhecido por ostensio. Quanto aos desacordos acerca de certas predicagées estéticas, eles verificam-se sobretudo a propésito de novos casos e de casos marginais, em que as condicdes. ‘ou padrées de observacao nao so partilhadas pelos observadores, sendo pouco relevantes quando esto em causa obras de arte paradigmaticas. 2. Oconceito de arte Foi com Platao e Aristételes que surgiram as primeiras teorias da arte. Em bom igor, a questo central nao comegou por ser a da sua natureza, mas sobretudo a io valor da arte. Sucede que ambos os filésofos faziam. depender o valor da arte da ia natureza. Assim, dando como certo que toda a arte era imitagio, Platéo via na a natureza mimética um defeito insanavel, considerando as imitagdes como ilu- 1 Nao se fala aqui de aparéncias no sentido comum de falsas imagens, mas como aquilo que surge rante os nossos sentidos. FILOSOFIA UMA INTRODUGAO POR DISGIPLINAS sdes que nos afastam da verdade. Aristételes, por sua vez, nao sé distingue os varios modos de imitagao que caracterizam as diversas artes, como procura mostrar que tais imitacdes produzem efeitos benéficos nos seres humanos. Em ambos os casos era ponto assente que toda a arte ¢ imitago. Imitar era, pois, uma condicao neces- sdria para algo ser arte, pelo que a imitagio fazia parte da sua natureza. Esta con- cepgio da arte nao foi disputada durante muitos séculos, pois parecia adequar-se razoavelmente a pratica artistica corrente: fazer boas imitagGes tornou-se um canone para os artistas ¢ era isso mesmo que se esperava que eles fizessem. As coisas s6 viriam a alterar-se no século x1x, com a valorizagio da arte como expresso emocional da subjectividade, defendida pelo movimento roméantico, mas também com a invenao da fotografia, cuja capacidade de imitacao esvaziava de algum modo a fungao tradicional da pintura ¢ de outras artes visuais, Foi, contudo, noséc. xx que 0 conceito de arte se tornou.o centro de intensas disputas filoséficas. Perante obras de arte como Fonte, de Marcel Duchamp — um ready-made que nao passava de um simples urinol visualmente indistinguivel de outros urindis, desa- fiando qualquer classificacao -, tornou-se inevitével procurar respostas para per- guntas como «Mas como pode isto ser arte?» ou «Afinal o que é arte?». Dado que as teorias tradicionais sobre a natureza da arte no ofereciam uma solucio satisfa- t6ria, o problema impés-se com enorme vigor, pois era preciso encontrar algum critério que nos permitisse distinguir 0 que é arte do que nao é. Era, pois, neces- sdrio rever as teorias tradicionais de arte, dado serem manifestamente incapazes de proporcionar um critério eficaz de identificagao dos objectos de arte. Mas a que definigoes nos referimos quando falamos de teorias tradicionais? 2.1. Definigées essencialistas As teorias tradicionais da arte costumam também ser designadas como «teorias essencialistas», pois visam definir a arte a partir das suas caracteristicas essenciais, considerando, portanto, que h4 uma esséncia da arte. Essas caracteristicas siio pro- priedades internas dos objectos. Cada uma delas individualmente estabelece con digdes necessérias da arte (as caracteristicas que tudo o que é arte possui), sendo, conjuntamente, também suficientes (as que sé 0 que é arte possui). A ideia é carac~ terizar, através de uma definicao explicita, a natureza ou esséncia da arte. Eo que procuram fazer as teorias da imitacao, da expressao e da forma significante. A teoria da imitagao defende, como se viu, que toda a arte é imitagio de algo. Em rigor, esta teoria néo apresenta uma verdadeira definicao, pois diz apenas que aimitagao é condicao necessiria, mas nao suficiente: defende que toda a arte imita, mas nao que tudo o que imita é arte. Mas sera que a imitagio € mesmo uma condicao necessiria da arte? Se é ver- dade que no séc. xvii se podia ainda exclamar «Que vaidade a da pintura, que atrai ESTETICA E FILOSOFIA DA ARTE AIRES ALMEIDA a admiragio pela semelhanga com as coisas, mas cujos originais nao séo admira- dos»'*, tal acusagio perdeu qualquer sentido a partir do momento em que tantos pintores deixaram de estar interessados em imitar seja o que for. Defender que a arte é imitacao implica deixar de fora muito do que é geralmente classificado como arte ¢, simultaneamente, incluir muita coisa que nao é arte: hi obras de arte que nao imitam e coisas que imitam mas nao sio arte. Mas pode-se afinar a teoria de modo a evitar tal objeccao, substituindo a nogao de imitagao pela nogio mais abrangente de representagao: embora toda a imitagéo seja representacao, nem toda a representacio é imitacao. Poderemos, assim, dizer que, apesar de nao imitar a morte a bater 4 porta, 0s primeiros compassos da 5# Sinfonia de Beethoven representam, como alguns defenderam, a morte a chamar. Isto porque a representacio, diferentemente da imitacdo, pode representar sem ser por semelhanga entre o que representa ¢ 0 que é representado”. Mas nem assim se evita contra-exemplos, visto haver pinturas monocromaticas e musica constitu- ida por padres sonoros minimalistas e repetitivos que no representam sejao que for. O mesmo se passa com Fonte, de Duchamp, obra que dificilmente diriamos representar algo. Contudo, reformulagdes mais recentes da teoria representacio- nalista da arte” procuraram bloquear tais contra-exemplos, alegando que a afir- magio «a obra X representa algo» significa o mesmo que «a obra X pode ser inter- pretada». O problema € que isto torna a nocao de representagio demasiado vaga, pelo que nao é claro que a representagio seja sequer uma condi¢ao necessaria da arte. Uma alternativa tradicional a concepeao da arte como representacdo, éa teoria da expresso, de que temos duas versdes principais: a de Ledo Tolstoi ea de R. G. Collingwood Ambos defendem a ideia de quea arte ¢ essencialmente expresso de sentimentos: em vez de olhar para fora, imitando ou representando o mundo exterior, o artista explora o mundo interior das emogdes atitudes. Tolstoi diz que a arte € transmissao de sentimentos porque 0 artista (o emissor) comunica a0 piiblico (0 receptor) o que realmente sente no acto de criagdo (a mensagem), de modo a que os mesmos sentimentos sejam, através da obra (0 canal de transmis- so), partilhados por todos. Para que haja verdadeira comunicagao, as emogoes do artista nao sé tém de ser auténticas, como as sentidas pelo publico tém de ser as mesmas que ele sentiu. Aversio de Collingwood é mais elaborada. A arte é expresso de emog6es nao exactamente porque procure transmitir sentimentos gerais identificdveis, mas por- ** Blaise Pascal, no aforismo 134 dos seus Pensées, publicados em 1670. © E conhecido o ataque de Nelson Goodman, em Linguagens da Arte, & ideia de representagio por semelhanca. Ele defende que toda a representagio é, como a representacio lingufstica, convencional. ® Uma tentativa nesse sentido veio a ser avangada por Arthur Danto (1981) * Expostas respectivamente em O Que éa Arte? (1898), Os Prindipior da Arte (1938). FILOSOFTA UMA INTRODUCAO POR DISCIPLINAS. que € a clarificagao de sentimentos pessoais, em bruto, do artista. Nao se trata de sentimentos gerais, como a tristeza, a alegria ou a esperanca, mas de sentimentos pessoais ¢ individualizados que o artista comega por nem sequer saber identificar. Por isso é que tém de ser clarificados. Ora, a clarificacao de sentimentos € algo que nao se encontra na falsa arte, nem no mero entretenimento, nem no artesanato (ou oficio), mas apenas na verdadeira arte — a que Collingwood chama «arte propriamente dita». Isto porque, sublinha ele, a clarificagdo de sentimentos individualizados no obedece a qualquer plano - 0 artista comega por nem sequer ter bem consciéncia de que sentimentos se trata -, 0 que contrasta com o que se passa no caso do mero artesao, que se limita a executar um plano. Quer isto dizer que 0 verdadeiro artista nunca sabe de ante- mao onde o pode levar tal processo de clarificacio: tipicamente, mas nao necessa- riamente, matetializa-se na producio de artefactos (pinturas, esculturas, pegas musicais, poemas, etc.); mas consiste essencialmente numa experiéncia imagina- tiva que pode existir apenas na mente do artista. Envolver-se nesse processo € tomar gradualmente consciéncia das emogbes que esto a ser expressas, 0 que tanto vale para o criador como para o observador. Sendo assim, apreciar uma obra de arte nao é algo meramente passivo. O préprio observador participa nessa expe- riéncia imaginativa de clarificagdo emocional. Dai que, em certo sentido, o obser- vador acabe por ser também artista. ‘Um do principais problemas das teorias expressivistas” consiste em excluirem da extensao do conceito de arte muitos objectos geralmente classificados como tal. E 0 caso de algumas obras de arte paradigmaticas que se destinam mais a divertir do que a exprimir emogGes, como é notério em algumas comédias de Shakespeare. De resto, diferentes personagens da mesma peca podem exprimir emog6es nao sé diferentes como até opostas. E também nao se compreende, contra Collingwood, em que sentido obras de arte colectivas ou obras de arte em cuja execucao inter- vyém varios artistas ~ como pecas de teatro, filmes, éperas ~ exprimem sentimen- tos individualizados que sejam, simultaneamente, partilhados por todos os exe- cutantes. Apesar de muita arte ser inegavelmente expressiva, nem sempre ela exprime as emogies que o artista efectivamente teve: uma das obras de Mozart que muitos acham alegre, a Sinfonia N? 40, foi composta num dos periodos mais tristes ¢ dificeis da sua vida. Mas se as definigGes expressivistas fossem verdadeiras, todos estes casos teriam de deixar de ser classificados como arte, 0 que parece inaceitavel. A teoria formalista da arte, impulsionada pela emergéncia da pintura abstracta, visa, mais do que as anteriores, acomodar no conceito de arte qualquer tipo de ® Ef preferivel chamar-Ihes «expressivistass emt vez de «expressionistas», de modo a nao se confundir ‘com a conhecida corrente artistica do expressionismo. ESTETICA E FILOSOFIA DA ARTE AIRES ALMEIDA objectos de arte, incluindo artefactos que exemplifiquem formas de arte ainda por inventar. Clive Bell (1914), 0 seu principal proponente, sustenta que algo é arte se, © 56 se, tiver forma significante. Bell refere que a forma € significante num duplo sentido: 1) o seu significado deve-se exclusivamente & propria forma e 2) amera exibi¢ao da forma nao deixa indiferentes os que lhe sio sensiveis emocionalmente, isto é,a forma é tal que proporciona um tipo peculiar de experiéncia emocional, a que Bell da o nome de «emogio estética». E muito clara a diferenca em relagio as definiges anteriores. Por um lado, Lindica-nos que o facto de uma obra representar ou nio algo é artisticamente irrelevante. O que conta (e.g. numa pintura) é a organizacdo das linhas e formas visuais. Por outro lado, 2 indica-nos que as emoges causadas por obras de arte nao sto emogoes vulgares, mas um tipo especial de emogdo ~ que é sempre a mesma ~¢ independente do artista que criou a obra. O que o artista sentiu, ¢ até a sua inten¢ao, so irrelevantes, pois a emogio estética resulta das caracteristicas formais das obras e de nada mais. Assim, nao ha arte se ndo houver emocio estética e nio ha emogo estética se nao houver forma significante. Tudo o que interessa sao as Propriedades formais intrinsecas das obras e a sua capacidade de nos emocionar esteticamente, independentemente de quaisquer outros significados adicionais ou finalidades, sejam de carcter religioso, politico, moral ou simplesmente represen- tacional. Portanto, qualquer objecto, desde que tenha forma significante, pode causar emogées estéticas e, assim, ser arte. Mas esta definicio também foi incapaz de resistir aos contra-exemplos que a ratica artistica posterior acabou por trazer. E 0 caso dos ready-made e outros objec- tos que se encontram em museus e galerias de arte, mas que s4o visualmente indis- Hnguiveis de objectos comuns. Ora, se dois objectos sao visualmente indistingui- veis, entéo a sua forma é exactamente a mesma. Logo, ou ambos tém forma significante ou nenhum a tem. Teré, pois, de haver outra explicaco, que nio a forma, para um deles ser arte e o outro nao. Outra objecgo - desta vez imanente 4 propria teoria— faz notar a circularidade envolvida na definicao formalista. Assim, se perguntatmos como sabemos que uma dada pintura tem forma significante, o que o formalista nos diz é que sabemos isso Porque sentimos uma emocio estética ao observé-la, Mas se perguntarmos agora em que consiste a emogio estética, o formalista nada mais tem para dizer sento que se trata do que sentimos quando observamos a forma significante. 2.2, Aindefinibilidade da arte O alegado fracasso das definigoes anteriores veio a ser encarado por alguns fil6sofos como uma inevitabilidade. Essas definic6es falharam, argumenta Morris Weitz (1956), porque procuravamalgo que simplesmente nao existe: a esséncia de FILOSOFIA UMA INTRODUGAO POR DISCIPLINAS arte, Nao ha uma esséncia da arte porque nem sequer hé uma propriedade ou conjunto de propriedades comuns a todas as obras de arte, e sé a elas. Isto significa que nem sequer é possivel identificar condigGes necessérias ¢ suficientes para algo ser arte, ou seja, nao € possivel dar uma definicao explicita de arte. Assim, definir explicitamente arte é uma tarefa logicamente impossivel. Weitz explica tal impossibilidade, recorrendo a ideia, sugerida por Wittgens- tein, de que arte é um «conceito aberto». Um conceito aberto é aquele cujas con- digGes de aplicagao sao reajustaveis e corrigiveis. O exemplo dado por Wittgenstein €0 do conceito de jogo: nao 6 nao ha condigdes necessarias para algo ser um jogo (nao hé uma caracteristica ou conjunto de caracteristicas comuns a todos 0s jogos) como o conceito pode vir a ser alargado de modo a incluir casos completamente novos. Contudo, Wittgenstein considera que, apesar de no haver caracteristica alguma comum a todos os jogos, isso nao nos impede de aplicar correctamente 0 conceito de jogo. Aplicar correctamente certos conceitos é uma questéo de compreendermos 0 uso que deles fazemos, em vez de identificarmos caracteristicas comuns a todas as coisas que os instanciam. Ora, defende Weitz, arte é um desses conceitos. E com- preender o seu uso é descobrir que aplicamos 0 conceito a objectos que se asse- melham entre si do mesmo modo que os membros da mesma familia se asseme- Tham entre si: em vez de partilharem exactamente as mesmas caracteristicas, estio ligados através de uma rede variavel de semelhangas de familia. Um novo membro da familia nao tem, pois, de se parecer nos mesmos aspectos com todos os seus membros, visto poder ser, em certos aspectos, semelhante a apenas alguns deles , em outros aspectos, a membros diferentes. Assim, sublinha Weitz, também clas- sificamos um dado objecto como arte porque se assemelha de algum modo com certas obras paradigméticas, as quais se assemelham, por sua vez, com outras obras. de arte em aspectos diferentes, ¢ assim sucessivamente. Fazer depender a aplicagao do conceito de arte de um conjunto fixo de condigoes necessarias é tentar fechar ‘0 que, por natureza, é aberto. Ora, o conceito de arte é aberto porque a arte é, por natureza, criativa, inovadora e mesmo subversiva. O conceito tem, pois, de ser reajustavel na sua aplicagio, de modo a admitir casos inesperados. Em suma, pro curar uma definigao explicita de arte é tentar fechar 0 conceito de arte, o que implica negar a propria natureza aberta e inovadora da arte. Tém sido apontadas varias dificuldades 4 teoria de Weitz. Uma delas é a de, implicitamente, nao excluir a existéncia de uma natureza da arte, acabando mesmo por sugerir algumas das suas caracteristicas: ser criativa, inovadora e subversiva. ‘Mas a critica mais incisiva deve-se a Maurice Mandelbaum (1965). Ele argumenta que Weitz confunde semelhangas de familia com meras semelhangas, acrescen- 2% Paul Ziff (1953) defendeu uma pesspectiva semethante, também cla inspirada em Wittgenstein. ESTETICA E FILOSOFIA DA ARTE AIRES ALMEIDA tando que, se estas fossem o critério para a aplicagao do conceito de arte, entio tal conceito acabaria por ser aplicado a seja o que for, dado que tudo se parece com tudo em algum aspecto. Mandelbaum desenvolveu esta ideia, mostrando que a nogio de semelhanga de familia, tal como é usada por Weitz, nada explica. Faz notar que duas pessoas podem assemelhar-se muito sem que haja entre elas qual- quer semelhanga de familia, pela simples razéo de que no pertencem & mesma familia. Assim, algo diferente, e subjacente a ambos, tem de explicara pertenga.a uma dada familia, pelo que tem de haver alguma caracteristica que ligue de maneira apropriada os membros da mesma familia. No caso das pessoas, 0 que faz. delas membros da mesma familia é algo nao perceptual, mais precisamente o facto de partilharem uma dada heranca genética. Isto significa que as semelhancas de fami- lia estdo, afinal, sujeitas a condicGes. Os urindis que Duchamp deixou na fabrica de loiga sanitaria nao satisfazem as mesmas condic6es que Fonte e ¢ precisamente por isso que eles nao sao arte, apesar de serem semelhantes a Fonte em tudo o resto. Hi ainda a objeccao de que Weitz concluiu, falaciosamente, que a arte é inde- finivel, com base no facto de as definig6es anteriores terem falhado. Mas do falhango das definigGes anteriores nao se segue que todas as definigdes tenham de falhar. Na melhor das hipéteses, o falhanco das definigées anteriores indica-nos que a maneira correcta de definir arte talvez nao seja indicar propriedades internas e perceptualmente acessiveis das obras de arte, pois nao é inconcebivel haver con- digdes necessérias e suficientes constituidas quer por caracteristicas extrinsecas as préprias obras quer por caracteristicas intrinsecas, mas perceptualmente indetec- tiveis. Por ultimo, o critério das semelhancas de familia também nfo consegue justi- ficar a aplicagao do conceito de arte as primeiras obras de arte alguma vez criadas, pois nao havia na altura obras de arte anteriores com as quais se parecessem. Berys Gaut (2000) procura evitar as principais objecgdes & teoria de Weitz, mantendo a sua matriz wittgensteiniana. Assim, em vez de descartar liminarmente as definigées tradicionais, integra-as parcialmente na ideia de arte como conceito agregativo, que consiste basicamente numa lista hipotética de caracteristicas (eg. ser expressiva, ser formalmente complexa, ser 0 resultado da imaginacio criativa, ser intelectualmente estimulante), as quais funcionam como uma definigao disjun- tiva: ndo hd, por um lado, caracteristicas que sejam individualmente necessirias, embora sejam disjuntamente necessérias; por outro lado, é suficiente ter todas ou algumas dessas caracteristicas para algo ser arte. O proprio Gaut sublinha que, em rigor, nao se trata de uma definicio, ja que as condicbes necessirias nao so con- juntamente suficientes. Mas oferece um conjunto de critérios que nos permitem dizer o que é arte, evitando a pergunta subtilmente diferente «O que é a arte?». Esta aponta para uma esséncia da arte, ao passo que a pergunta «O que é arte?» nao. Todavia, a proposta de Gaut enfrenta a objeccéo de que nao satisfaz um cri- tério importante para a elucidacao de qualquer conceito ~ e, consequentemente, FILOSOFIA UMA INTRODUGAO POR DISCIPLINAS para a sua correcta aplicagio -, que é a preservacao da unidade do conceito em causa. ‘Muito antes de Gaut, jé Nelson Goodman (1977) tinha descartado a pergunta «O que é arte?», substituindo-a pela pergunta «Quando ha arte», que ele consi- dera mais adequada. Mais uma vez, 0 que interessa nao ¢ procurar uma suposta esséncia da arte, mas antes saber quando um dado objecto funciona como simbolo estético ~ por isso se diz ser uma teoria funcionalista da arte, por oposigdo as teorias processualistas de que se falard a seguir. Um objecto nao é nem deixa de ser, emsi mesmo, uma obra de arte. Qualquer objecto pode tornar-se uma obra de arte, desde que funcione como simbolo estético. E pode deixar de funcionar como sim- bolo estético, deixando também de ser arte. Ora, para funcionar como simbolo estético, um objecto tem de fazer parte de um sistema simbélico estético, que, como todos os sistemas simbélicos, é uma construcio humana inteiramente con- vencional, considera Goodman. Pode, pois, haver diferentes sistemas simbélicos, sendo a representacao e a exemplificacio os principais mecanismos de simboliza- cao. Toda a representagao, mesmo a figurativa, é, como a linguagem, puramente convencional, defende Goodman. E a exemplificagdo é sempre auto-referencial: sé se exemplifica as propriedades que se possui. Esta perspectiva, que néo oferece qualquer definicao de arte, tem sido atacada pelo seu caracter fortemente relati- vista ¢, em particular, pela ideia de que toda a representagio, mesmo a represen- tagio pictérica, é puramente convencional. 2.3. Definigoes anti-essencialistas ‘Apesar das suas diferengas, as teorias expostas na sec¢ao anterior tem em comum a rejeigo de uma esséncia da arte, o que as leva a excluir toda e qualquer definigéo — quer porque nfo acham isso posstvel (Weitz talvez Gaut) quer porque acham isso inaplicavel (Goodman). Mas ha quem pense que essas teorias acabam por assentar num pressuposto errado, de acordo com o qual definir explicitamente um conceito é uma questo de identificar propriedades essenciais observaveis. Ora, é precisamente isso que os proponentes das teorias institucional ¢ historicista negam, sublinhando que as definigées tradicionais falharam, ndo porquea arte néo pudesse ser definida, mas porque a sua definicdo nao tem de ser essencialista. As teorias institucional ¢ historicista recuperam a ideia de que ha efectivamente condigGes necessérias ¢ suficientes da arte, relancando, nas tiltimas décadas, a pro- cura de uma definicao. O primeiro esbogo de uma teoria institucional da arte surgiu com Arthur Danto (1964). Pergunta ele por que razao Brillo Box, de Andy Warhol - uma réplica exacta, em contraplacado pintado, das embalagens de papelio de uma conhecida marca de detergentes americana — € arte, 20 passo que os vulgares caixotes de ESTETICA E FILOSOFIA DA ARTE AIRES ALMEIDA, detergente nao o sao. A resposta, diz Danto, nao se encontra nas propriedades perceptuais (até porque os originais e a réplica sao visualmente indistinguiveis) nem em quaisquer outras propriedades internas (eg. ser feita de contraplacado em. vez de papelao) da obra de Warhol. O que Ihe confere tal estatuto ¢ algo que lhe € extrinseco e que o olhar nao consegue divisar, a saber, uma certa teoria da arte. E, escreve Danto, «a teoria que a mantém no mundo da arte». Sao, pois, critérios de carécter contextual ¢ institucional - do chamado «mundo da arte» — que per- mitem classificar algo como arte. Mas foi Dickie (1974) que, inspirado na reflexdo de Danto e na critica de Mandelbaum 4s teorias da indefinibilidade, propés uma primeira definicio insti- tucional da arte. A definigdo institucional destaca o processo através do qual um objecto adquire estatuto artistico, ligando-o a um dado contexto social: 0 mundo daarte. O que conta é 0 modo como é conferido o estatuto de arte a algo — por isso diz ser uma definicao processualista, por oposicao as definicdes funcionalistas, como a de Bell e de Collingwood, que destacam 0 propésito que é suposto a arte servir. Assim, Dickie propde a seguinte definicao: uma obra de arte, no sentido classi Lficativo, é 1) um artefacto 2) a que alguém que se move no interior de uma certa institui¢ao social (o mundo da arte) confere o estatuto de candidato a apreciagao. E importante notar que Dickie fala de arte em sentido classificativo e nao normativo ou valorativo. Ele pensa que 0 pecado capital das teorias essencialistas foi o de procurarem definir a arte a partir das caracteristicas que supostamente justificam 0 nosso interesse por ela ~ aquilo que torna as obras de arte dignas da nossa aten¢do - em vez daquelas que simplesmente nos permitem identificar a que coisas 0 conceito de arte se aplica. Confundem, assim, o sentido classificativo com ovalorativo, como se nao houvesse boas e més obras de arte. Outro aspecto impor- tante é que o acto de conferir 0 estatuto de candidato a apreciagao ¢ realizado por alguém que se move no interior da instituicao social a que se da onome de «mundo da arte», o qual ¢ regido por um conjunto de normas e de regras sociais, e do qual fazem parte os criticos historiadores da arte, bem como galerias, museus, ptiblico, escolas de arte, etc., além dos proprios artistas. Um tiltimo aspecto a assinalar é que as propriedades que fazem algo ser arte so, ao contrario do que se passa nas defi- niges tradicionais, propriedades relacionais: ligam um objecto a um dado contexto institucional. A vantagem dbvia desta definicao é que se aplica efectivamente todas as obras de arte e s6 a elas, pois ¢ suficientemente abrangente para incluir obras de todos os tipos, mesmo aquelas que séo perceptualmente indistinguiveis de ‘objectos vulgares. Mas é também suficientemente restritiva para nao incluir estes. % Dickie acabou, dez anos mais tarde, por ever a sua definigio inicial, de modo a evitar algumas das eriticas que entretanto lhe tinham sido apontadas. Contudo, a primeira versio continuou a ser a mais di ccutida, Uma defesa da teoria institucional encontra-se também em Davies (1991). FILOSOFIA UMA INTRODUGAO POR DISCIPLINAS As criticas 4 teoria institucionalista da arte tém sido muitas. Uma delas é que se trata de uma definigio elitista, na medida em que estabelece que sé uns quantos eleitos tem o poder de conferir 0 estatuto de arte a algo, como se essas pessoas tivessem, qual toque de Midas, poderes magicos para transformarem qualquer objecto vulgar numa obra de arte. Mas esta critica revela alguma incompreensio do que Dickie diz, que sempre fez questo de sublinhar que fala de arte em sentido classificativo ¢ nao em sentido valorativo. Assim, dizer que € algo é arte nao é 0 mesmo que dizer que esse algo tem valor. De resto, a acusagio de elitismo teria de ser feita, pelas mesmas razOes, a qualquer outra actividade que exija algum grau de especializagao, de conhecimento apropriado e de experiéncia - nem toda a gente pode entrar no bloco operatério de um hospital e fazer um transplante'de coracao ou entrar num avido para o pilotar. Além disso, o mundo da arte ndo é um mundo fechado, pelo que qualquer pessoa pode vir, observados certos procedi- mentos, a fazer parte dele. ‘Uma critica mais elaborada realga o facto de as instituig6es sociais satisfazerem certos requisitos que nao esto presentes no chamado «mundo da arte». Nao sé as instituigdes sociais (e.g. religiosas, académicas, politicas, militares) se regem geral- mente por normas fixas conhecidas por todos, como as pessoas que actuam em nome dessas instituig6es adquirem normalmente tal estatuto através de actos publicos com cardcter formal. Nada disso se passa no mundo da arte, onde tudo acontece de modo informal e difuso. Assim, nao se compreende em que sentido 0 chamado «mundo da arte» é uma instituigao social e como se pode afirmar que alguém actua em nome de uma instituigao que parece nao existir realmente. Mas ainda que se trate mesmo de uma instituigdo social, argumentam os criti- cos da teoria institucional, nao existia qualquer pratica social relevante que se parega com o mundo da arte quando foram criadas.as primeiras obras de arte. Logo, nio pode haver arte primitiva e nem se compreende como comegou de todo a haver obras de arte**. B, contudo, duvidoso que esta critica deixe em dificuldades teoria institucional, pois o seu defensor pode alegar que 0 estatuto artistico dessas obras Ihes foi conferido retroactivamente pelos criticos ¢ historiadores da arte. Mais interessante ¢ a critica exposta por Richard Wollheim (1992). Este sus- tenta que o institucionalista se encontra perante 0 seguinte dilema: ou aqueles que agem em nome do mundo da arte tém razées para conferir o estatuto de obra de arte a algo, ou nao tém raz6es; se tém raz6es, entio é a explicitagao dessas razdes que constitui a definico de arte; se nao tém quaisquer raz6es, entao 0 acto de conferir o estatuto de arte a algo é completamente arbitrério e extravagante. No primeiro caso, a definigao institucional ¢ enganadora; no segundo, ela é vazia. * Danto (1964) admitiu isso mesmo, tendoeserito que «nunca teria ocorrido aos pintores de Lascaux que estavam a fazer arte naquelas paredes, ans@ser que houvesse cstetas neoliticos». ESTETICA E FILOSOFIA DA ARTE AIRES ALMEIDA O chamado estipulativismo radical, defendido por Kathleen Stock (2003), é uma reacgao a objecgGes como a anterior, A falta de uma esséncia unificadora subja~ cente a aplicagio do conceito de arte, aquilo que as obras de arte tm em comum 6, diz Stock, o serem catalogadas como arte pelos especialistas da drea, com base em razGes nao conclusivas nem suficientes mas, apesar disso, inteligiveis. A objecao mais insistente é, todavia, a de que a definigao institucional é cir- cular, pois o termo «arte» surge tanto no defiriendum como no definiens. O estatuto de obra de arte é conferido por alguém que actua no mundo da arte e o mundo da arte é formado por aqueles que tém o poder de conferir o estatuto de obra de arte aalgo. O préprio Dickie reconhece que hé circularidade, mas alega que a circula- ridade ¢ informativa, na medida em que ficamos a saber que o estatuto artistico de uma obra depende de certos processos de cardcter social e contextual, entre outras coisas. Trata-se, portanto, de um circulo virtuoso, nao de um circulo vicioso: no final do circulo ficamos a saber mais do que tinhamos a partida, argumenta Dickie. ‘Uma alternativa & teoria institucional tem como principal representante Levin- son (1979), que defende a ideia de que a arte pode ser definida historicamente. A definicao histérica proposta por Levinson diz basicamente que algo é arte no presente em fungdo do que tem sido arte no passado, uma vez que a histéria con- creta da arte esté logicamente implicada no modo como o conceito de arte opera. Uma das vantagens das teorias historicistas™ em relagdo as teorias institucio- nais é o desaparecimento da problemética nogéo de mundo da arte. A definicao de Levinson diz o seguinte: algo é arte se, e sé se, hd out houve da parte do seu titular a inten- ao séria de ser encarada como as obras de arte pré-existentes sto ou foram correctamente encaradas, Ha diversos aspectos aqui a realgar. Em primeiro lugar, a intengao é importante porque sem ela a ligagio de uma obra de arte 4s obras de arte do pasado poderia ser meramente acidental. Por isso, Levinson prefere falar de definigao histérico- -intencional quando se refere & sua perspectiva. Em segundo lugar, a intengao tem de ser séria, isto é, tem de ser firme e duradoura, de modo a transparecer e a per- durar na prépria obra. Caso contrério, teriamos de inspeccionar os estados mentais do seu criador, o que seria invidvel. Em terceiro lugar, a intengao diz respeito ape- nas aquele que tem o dircito de propriedade sobre 0 objecto em causa, pois nin- guém iré conseguir que uma coisa que me pertence seja uma obra de arte se eu nao o consentir, ao contrario do que diria o partidario da teoria institucional. Note- ~se ainda que, diferentemente da definicao institucional, a definigéo hist6rica néo envolve qualquer circularidade, ja que o termo «arte» aparece no lado do definien- dum como abreviatura do termo composto «arte-no-presente», a0 passo que no lado do definiens abrevia 0 termo composto «arte-no-passado». 2% Além de Levinson, também Stecker © Carroll defendem versbes diferentes do historicismo. 409, FILOSOFIA UMA INTRODUGAO POR DISCIPLINAS O préprio Levinson listou as objecgdes que entretanto lhe foram dirigidas, a0 mesmo tempo que procurou resposta para elas. Aquela cuja resposta parece menos convincente levanta o seguinte problema: se o que é encarado como arte num dado momento depende do que foi encarado como arte anteriormente, como podemos compreender a existéncia das primeiras de todas as obras de arte? Levinson viu-se na necessidade de expandir a definic&o original, de modo a incluir as obras de arte primitivas, mas fi-lo estipulativamente através de uma defini¢do disjuntiva como: algo é arte se, ¢ sé se, ou a) satisfaz a definigao de partida ou b) é um exemplar de arte primitiva, ‘Uma perspectiva historicista diferente é a de Carroll, que diz ser possivel clas sificar objectos sem ser por meio de definigées. E, sublinha ele, o que fazem fre- quentemente os bidlogos quando seguem a linhagem para determinar a pertenga auma espécie. E é algo andlogo ao que se passa na arte quando se discute a classi- ficacao de casos problematicos. Tais casos esclarecem-se normalmente com expli- cages de cardcter genealégico, através da apresentagao de narrativas histéricas. E com base em narrativas historicas rigorosas sobre a sua linhagem que 0 estatuto de arte é atribuido a novos candidatos. S4o também as narrativas hist6ricas que se conta is pessoas que as leva a convencer-se que vale a pena dispensar algum tempo aapreciar obras de arte particulares, acrescenta Carroll. Mas nada disto exige uma definicdo de arte. 3. O valor da arte A teoria da arte nao trata apenas de distinguir o que é arte do que nao é, Outras, questdes de caracter geral - que se colocam a propésito de qualquer forma de arte € nao exclusivamente acerca de artes particulares, como a pintura, a musica, a literatura ou o cinema ~ sao igualmente importantes. Assim, compete & teoria da arte esclarecer quest6es como: 1) Em que consiste 0 valor da arte? 2) Como avaliar obras de arte? 3) Como interpretar obras de arte? 4) Que tipo de coisa é uma obra de arte? Estas questGes, sobretudo as trés primeiras, sio por vezes encaradas de forma integrada ¢ interdependente, embora abordem problemas teoricamente distintos. ‘A pergunta I coloca o problema do valordaarte em geral, a 2.0 da avaliagito de obras de arte particulares, a3 0 do seu significado e a 4 0 do seu estatuto ontolégico. Assim, o que se pretende com | é justificar o valor da arte qua arte — isto é, 0 seu valor artistico e nao o valor econémico, social, afectivo, terapéutico, etc., que as obras de ESTETICA E FILOSOFIA DA ARTE AIRES ALMEIDA arte possam ter. Em termos mais genéricos, equivale a perguntar por que razio (ou razées) é a arte digna de atencao, Estamos aqui no dominio da teoria do valor. Com 2, pretende-se explicar por que razo (ou raz6es) uma dada obra de arte é boa (ma) ou melhor (pior) do que outra. Aqui estamos no dominio da teoria meta- arttica. Com 3, 0 que se quer é compreender a obra: 0 seu contetido e significado. Neste caso estamos no dominio da teoria da interpretagao. Com 4, 0 que se quer é determinar se as obras de arte (ou quais) sao entidades concertas ou abstractas, universais ou particulares. Esta é uma questao de ontologia da arte. Centrando-nos apenas no problema do valor da arte, é possivel encontrar dois gcupos de teorias: as instrumentalistas e as nao instrumentalistas. As instrumen- talistas defendem que a arte ¢ valiosa por ser um meio para certos fins que consi- deramos importantes e valiosos. O valor é como que transferido dos fins visados pela arte para a propria arte. As no instrumentalistas defendem que a arte tem valor auténomo, isto é, o seu valor é intrinseco, dado ser independente de quais- quer fins”. 3.1. Valor intrinseco Aideia de que a arte tem valor intrinseco € habitualmente associada ao elogio daarte pela arte e ao culto da beleza, tipicos de alguns criticos e artistas romanticos do séc. xtx. «Esteticismo» foi o nome por que ficou conhecida esta perspectiva. O esteticismo inspirou-se na estética kantiana, em particular na ideia de que a apreciacao da arte nao tem qualquer outro propésito a nfo ser a mera contempla- a0 de formas. A arte nao visa, como sustentava Kant, satisfazer quaisquer neces- sidades priticas ou te6ricas. Esta é também uma perspectiva formalista, pois valo- riza exclusivamente as propriedades formais das obras de arte, tendo sido posteriormente desenvolvida e refinada por Eduard Hanslick (1854), a propésito da musica, e por Clive Bell (1914), aplicada a pintura. Em termos gerais, quem defende que o valor da arte é intrinseco alega que, se 0 seu valor fosse instrumental, a arte ndo teria valor qua arte, mas gua outra coisa qualquer (¢.g. mercadoria, documento histérico, terapia, etc.). Ora, o que esta em causa é explicar o valor artistico da arte, nfo‘o seu valor econémico, historiogréfico ou terapéutico. Hanslick argumenta sobretudo negativamente, alegando que, para ter valor instrumental, a musica teria de ser capaz de representar algo extramusical, como objectos fisicos ou emogbes. Ora, acrescenta ele, dado que a mtisica ¢ incapaz de © £ importante notar que algo pode ter simultancamente valor intrinseco e valor instrumental. Con- ceptualmente, estes tipos de valor nao séomuruamente exclusivos. a a2 FILOSOFIA UMA INTRODUCAO POR DISCIPLINAS representar objectos fisicos e emogées%, ela ¢ também incapaz de representar algo extramusical. Portanto, conclui, nao tem valor instrumental. O contetido da misica 6, pois, estritamente musical. Bell, por sua vez, argumenta a favor do valor intrinseco. Considera que, apesar de muitas vezes a pintura representar algo e de frequentemente estar ao servico de fins religiosos, politicos ou outros, isso ¢ esteticamente irrelevante. Isto explica por que razio o valor de uma obra nao se pode reduzir a sua mensagem, quando ela exista. Explica também por que razo somos capazes de apreciar obras de arte cujo contetdo nos é indiferente ou até dificil de aceitar: agradam-nos pelas suas propriedades estéticas e por nada mais. E ainda tem a vantagem de explicar por que raz4o nenhuma descrigao do contetido de uma obra, por mais completa que seja, substitui a experiéncia da sua contemplacao, tornando cada obra de arte insubstituivel, tinica e indispensivel ~ se tivesse valor em fungio dos fins que nos permite alcangar, entao tornar-se-ia dispensavel a partir do momento em que tais fins fossem alcancados. Todavia, a arte conceptual, que trabalha quase s6 com ideias— e cujas proprie- dades estéticas ou formais sao irrelevantes, sendo mesmo inexistentes — deixa 0 formalismo em sérias dificuldades. Ainda mais dificil de explicar ¢ 0 facto inegavel de 0 contetdo de algumas obras prejudicar seriamente o seu valor. Uma defesa mais recente do valor intrinseco da arte foi desenvolvida por Mal- colm Budd (1995). A nogdo de valor intrinseco apresentada por Budd é, contudo, questionavel. Diz ele que a arte qua arte tem valor intrinseco porque proporciona experiéncias com valor intrinseco, Masisto é questiondvel porque, ao situar o valor nos efeitos da arte — nas experiéncias que proporciona ~ e nao na prépria arte, ele acaba por chamar «intrinseco» ao que seria mais correcto chamar «extrinseco». Seja como for, a ideia de Budd é, contrariamente aos formalistas, evitar reduzir a experiéncia proporcionada pelas obras de arte 4 apreciacao das suas propriedades formais. Assim, a mensagem eventualmente veiculada pelas obras de arte pode nio ser irrelevante para a sua apreciagao. Mas, adverte, o que é realmente valioso é a experiéncia para a qual a mensagem contribui ¢ nao a propria mensagem. A van- tagem da teoria de Budd é nao ter de se confrontar com as criticas tipicamente apontadas ao formalismo, sem com isso se comprometer coma ideia de que o valor da arte depende de fins extra-artisticos. Além das diividas apontadas & sua nogio de valor intrinseco, a perspectiva de Budd enfrenta outras objeccées. Uma delas é que ha aspectos que tornam a arte valiosa, como a originalidade ou a inovagio, que s6 so explicdveis se tivermos em conta algo mais do que a experiéncia proporcionada pelas obras de arte (eg. 0 contexto em que as obras so criadas). % Hanslick oferece, como seria de esperar angumentos adicionais para jusificar este passo. ESTETICA E FILOSOFIA DA ARTE AIRES ALMEIDA 3.2. Valor instrumental O hedonismo é provavelmente a resposta mais popular para justificar o valor da arte. De acordo com o hedonismo, a arte é valiosa por proporcionar prazer 4s pes soas que a apreciam. Trata-se, portanto, de uma perspectiva instrumental. Mas, apesar de ser inegdvel que muita arte proporciona prazer e que esse prazer pode mesmo aumentar 0 valor de certas obras, o hedonismo nao é aceite pela generali- dade dos filésofos da arte. Nao sé porque muita arte nem sequer procura agradar, como pode mesmo exigir esforco ¢ estudo aprofundado para ser correctamente apreciada. Além disso, valorizarmos certas obras de arte muito acima do prazer que elas eventualmente nos possam dar. O valor hedénico também no permite distinguir a arte séria do simples divertimento. De resto, hé coisas que do mais prazer do que a arte e nao tém tanto valor como ela. Assim, concluem alguns filé- sofos, 0 prazer pode acrescentar valor & arte mas nao é 0 prazer que justifica o seu valor artistico. O moralismo (ou eticismo) tem sido outra das justificagdes instrumentais do valor da arte. Uma forma extrema de moralismo foi defendida por Tolstoi, que chegou a incluir os seus mais aclamados romances entre as obras de arte falhadas, precisamente por serem moralmente fitteis. Defender que a arte tem valor porque contribui para o crescimento moral de quem a aprecia implica excluir muitas das mais importantes obras da historia da arte, o que é, s6 por si, um fortissimo argu- mento contra o moralismo extremo. Hé, contudo, formas menos radicais, como 0 moralismo moderado de Carroll ou 0 eticismo de Matthew Kieran (1996) ¢ de ‘Martha Nussbaum (1990). A ideia comum a estas teorias é que as obras de arte tipicamente enyolvem intuigées morais elucidativas. Nussbaum defende que o cardcter emocional das grandes obras de arte, em particular da literatura, esconde juizos avaliativos que exprimem de forma complexa - nao proposicional - verdades morais. O principal problema do moralismo moderado e do eticismo nao é tanto o de ser dificil mostrar que a arte pode ser moralmente educativa, mas que isso consti- tui um mérito artistico. Teriam também de mostrar que a insignificancia de uma obra de arte em termos morais acarreta necessariamente o seu falhango estético ou artistic, que parece ser contrariado pela propria historia da arte. Outra das teorias instrumentalistas ¢ 0 instrumentalismo estético. Esta perspec- tiva, associada a Beardsley, est préxima do formalismo, mas distingue-se dele precisamente pelo seu cardcter instrumental. Beardsley considera que a arte tem valor na medida em que produz em nés experiéncias compensadoras: as experién- cias estéticas. Ora, segundo Beardsley, nem todas as experiéncias acerca de obras de arte sio experiéncias estéticas. As experiéncias estéticas esto estritamente focadas nas propriedades percepcionadas nos objectos de apreciagéo, pelo que dependem crucialmente da apreensao de certas propriedades dos proprios objec- 413 FILOSOFIA UMA INTRODUGAO POR DISCIPLINAS tos. A ideia é evitar o subjectivismo e 0 relativismo da experiéncia estética. De acordo com o instrumentalismo estético, nada mais conta para o valor das obras de arte além das experiéncias causadas pelas suas propriedades perceptuais. Ainda que as obras de arte refiram algo, tal referéncia ¢ esteticamente irrelevante, como para o formalista. A dificuldade principal do instrumentalismo estético consiste em explicar por que razao as experiéncias estéticas sio valiosas. Beardsley reconhece que nao chega dizer por que sio gratificantes ¢ compensadoras. O problema é que, aparente- mente, qualquer explicagio acabara por reduzir o valor estético a outro tipo qual- quer de valor. A perspectiva mais defendida nas tiltimas décadas é o cognitivismo, havendo mesmo uma apreciavel variedade de teorias cognitivistas. Muitas das discussGes actuais sobre o valor da arte opdem, alids, defensores de diferentes versoes de cognitivismo. A tese geral é que a arte ¢ valiosa porque proporciona conhecimento. Uma vez que o conhecimento é algo que manifestamente valorizamos, o valor da arte fica assim explicado. Os aspectos mais problemiticos do cognitivismo pren- dem-se, por um lado, com o tipo de conhecimento que a arte proporciona: seri conhecimento proposicional, seré um saber pritico, ou sera antes 0 que por vezes se designa por «conhecimento experiencial»? Por outro lado, prendem-se com os objectos desse conhecimento: tratar-se-4 de conhecimento do mundo em geral, do universo moral, das emog6es, ou seré antes do contetido das proprias obras de arte? As teorias cognitivistas nao enfrentam grandes dificuldades em explicar 0 valor cognitivo de artes como a literatura, o cinema ou a pintura figurativa. O mesmo nio se pode dizer quando se pensa na pintura nao figurativa e na musica instru- mental, por exemplo. Por isso, tem de mostrar como pode a pintura abstracta ¢ especialmente a misica instrumental referir seja o que for, uma yez que a referén- cia é condig&o necesséria para terem contetido cognitivo. Entre as teorias cognitivistas mais discutidas destaca-se a de Goodman”, que encara a arte como parte de uma teoria geral dos simbolos. As artes so modos de obtengio de conhecimento e a estética, ou filosofia da arte, tem como finalidade explicar como se obtém esse conhecimento. A estética é, pois, um ramo da episte- mologia, ou teoria do conhecimento. Assim, as obras de arte nao se destinam a ser contempladas, fruidas ou adoradas, mas a proporcionar compreensio do mundo. E compreender uma obra de arte nfo consiste em aprecié-la nem em ter expe- rigncias estéticas acerca dela nem em descobrir a sua beleza, Compreender uma obra de arte é interpreté-la correctamente. ® Outrasversbes de cognitivismo podem encontrar-se em Kivy (1997), Levinson (1977), Stecker (1997), Graham (1977), Zemach (1997) ¢ Young (2008). ESTETICA E FILOSOFIA DA ARTE AIRES ALMEIDA Um dos principais problemas da teoria de Goodman ¢ que 0 mundo de que a arte nos fala é, na perspectiva dele, um mundo construido pela propria arte, pelo que esta acaba sempre por ser auto-referencial. Assim, aceitar a teoria do valor de Goodman implica aceitar o seu construtivismo. Uma perspectiva cognitivista alternativa é a de Kendall Walton (1990), para quem a arte proporciona conhecimento fenoménico ou experiencial, a0 encarar a arte como um jogo de simulagdes em que as nossas reacgdes ¢ emogdes sao testa- das, ganhando com isso uma compreensdo mais profunda e vivida das nossas res- postas emocionais. Compreensio essa de outro modo inacessivel a nao ser com custos demasiado elevados que nao estamos dispostos a pagar, Esse seria um tipo de conhecimento nao proposicional que a arte, ¢ 86 a arte, estaria em condigdes de nos facultar. © problema maior das teorias cognitivistas é semelhante ao que enfrenta 0 eticismo: nao basta mostrar o qué e como se pode aprender com a arte para justi- ficar 0 seu valor estético, que é o que precisa de ser explicado. 4, Outras questées 4.1. Avaliagao da arte A questao da avaliagao da arte diz respeito aos critérios usados pela critica para classificar uma dada obra como boa ou mi, magnifica ou vulgar, bonita ou feia, etc. Ser4 que hé critérios ou principios criticos universais? Como se adivinha, aqueles que defendem que o valor da arte é instrumental, encontram af o fundamento para um critério geral de avaliagéo. Por exemplo, quem defende o cognitivismo tem como critério geral de avaliacao a maior ou menor capacidade de uma dada obra de arte para nos proporcionar conhecimento. Esta é uma perspectiva univer- salista. Os particularistas, pelo contrério, defendem que nao hé princfpios gerais na justificagio de juizos criticos, Entre os particularistas encontram-se os subjectivis- tas (0s critérios sdo estritamente pessoais), intuicionistas (os termos valorativos bsicos sao indefiniveis e as raz6es para justificar juizos criticos sao desnecessarias), expressivistas (nfo hé prineipios criticos, pois os juizos criticos limitam-se a expri- mir emogGes) e relativistas (hé principios criticos, mas so escolhidos sem que haja razSes que os justifiquem). O singularismo é também uma forma de particularismo que considera quaisquer princtpios irrelevantes, uma vez que cada obra de arte ¢ tinica ¢ incomparavel. Além disso, alega o singularista, a mesma caracteristica pode ser desejavel numa obra e um defeito noutra, pelo que é em v4o que procuramos principios de ava- liagao. FILOSOFIA UMA INTRODUCAO POR DISCIPLINAS 4.2, Interpretagao da arte Os artistas criam obras de arte com algum propésito ou intenc&o, mesmo quando isso nao ¢ imediatamente detectavel. Mas sera que interpretar adequada- mente uma obra de arte implica saber qual a intengao do artista ao crié-la? Serd que a intengio do artista determina o significado da obra? Beardsley, num célebre ensaio escrito em 1954.a meias com W. K. Wimsatt™, defende que as intencdes dos artistas nao esto disponiveis nem sao desejaveis. Assim, nada exterior & prépria obra interessa para a compreensao do seu significado. Esta é a perspectiva anti- -intencionalista, que se opée a perspectiva intencionalista tradicional, segundo a qual até a informagio sobre a prépria biografia do autor contribui para interpretar cor- rectamente a obra de arte. O debate continua entre os defensores do anti-intencionalismo e do intencio- nalismo real (Stecker), hipotético (Levinson) ou moderado (Livingston). 4.3, Ontologia da arte Existe uma 5¢ Sinfonia de Beethoven. Mas existe em que sentido de «existir»? Existe no mesmo sentido em que existe a célebre pintura Mona Lisa? Parece que no, pois sabemos onde esta localizada Mona Lisa, mas nao sabemos onde estao exactamente a 5° Sinfonia de Beethoven, uma peca improvisada de jazz, ou D. Qui- xote, de Cervantes. Mona Lisa é um objecto fisico individual, uma entidade concreta que tem existéncia espacio-temporal. Mas a obra de Beethoven nio é certamente um objecto fisico individual espacio-temporalmente localizado, até porque ouvi-a ontem & noite na sala de concertos mas podia ter ficado em casa a escuté-la no leitor de CD. Ou sera que no é a mesma? Asinfonia também nao é o que esté na partitura, pois a partitura nao é musica; 6 apenas um conjunto de instrugées num papel. Talvez seja um objecto abstracto, como se pensa ser 0 caso dos nuimeros. Talvez seja um tipo exemplificado por miil- tiplos espécimes~as diferentes execucées desse tipo. Talvez seja um tipo de acgao que © compositor realizou. Talvez seja uma entidade mental, que existe apenas na mente do compositor. Talvez seja antes, como pensa o platonista ontoldgico (e.g. Kivy), um padrao formal, eterno e indestrutivel, que Beethoven se limitou a des- cobrir, nao a criar, As questées anteriores dizem respeito ao estatuto ontoldgico das obras de arte. Em termos gerais, queremos apurar se a grande variedade de artes envolve dife- rentes modos de sere quais sao eles. ® ‘Trata-se do célebre ensaio inticulads

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