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A

Bíblia hebraica pode ser considerada um documento para Fome, insegurança a


sustentabilidade
escrever a história do antigo Israel ou para analisar outros (https://jornal.usp.br
fenômenos históricos, como a formação do monoteísmo ou a inseguranca-alimenta
sustentabilidade/)
figura divina de Yahweh? 14/12/2022
(https://jornal.usp.br
Por Alexandre Cláudio
/artigos/fome- Delbem, professor do I
Marcelo Rede – A indagação é parte de uma questão maior, sobre a presença da inseguranca- Ciências Matemáticas
Foto: Arquivo Bíblia no ambiente acadêmico e universitário. Do ponto de vista alimentar-e- Computação (ICMC) d
pessoal sustentabilidade/) Antonio Mauro Saraiva
institucional e curricular, o panorama é diversificado. Instituto de Estudos Av
e da Escola Politécnica
  O debate já é antigo nos centros universitários norte-americanos ou
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europeus. Entre nós, é ainda incipiente. No Brasil, a Bíblia penetrou (https://jornal.usp.br/editorias/artigos/)
na academia pela via dos estudos literários, que privilegiaram a \\ MAIS LIDAS
análise de seus diversos gêneros e a interpretação linguística. Na
(https://jornal.usp.br/atualidades/
arqueologia, a situação é ambígua: embora a arqueologia bíblica pensamento-acelerado-pode-ser-
seja popular nos meios de comunicação, ela jamais se estabeleceu sintoma-de-transtorno-mental/)
Pensamento acelerado pode ser
como disciplina por aqui, antes de ter praticamente desaparecido das
sintoma de transtorno mental
universidades em todo o mundo para dar lugar a uma arqueologia do (https://jornal.usp.br/atualidades/pensamento-
Oriente-Próximo ou Siro-Palestina. Naturalmente, nos cursos de acelerado-pode-ser-sintoma-de-transtorno-mental/)

teologia (quase totalmente de orientação cristã), a Bíblia hebraica, (https://jornal.usp.br/universidade


juntamente com o Novo Testamento, está no centro da reflexão, sob /quer-usar-a-nota-do-enem-para-
entrar-na-usp-ja-estao-abertas-
a forma da história da religião ou da exegese textual e teológica.
as-inscricoes-para-o-novo-enem-
usp/) Quer usar a nota do Enem para entrar na USP?
Nos departamentos de história, a presença da Bíblia é rarefeita, pois Já estão abertas as inscrições para o novo Enem
a história de Israel é menos praticada do que as histórias do Egito ou USP (https://jornal.usp.br/universidade/quer-usar-a-
nota-do-enem-para-entrar-na-usp-ja-estao-abertas-
da Mesopotâmia, e prepondera o interesse pela Grécia e por Roma.
as-inscricoes-para-o-novo-enem-usp/)
Paradoxalmente, não há quase nenhum recorte em nossas
(https://jornal.usp.br/universidade
disciplinas que possa desprezar a importância da Bíblia, do Brasil
/estude-na-usp/fuvest-divulga-
colonial à Revolução Francesa, da Idade Média à Independência notas-de-corte-do-vestibular-
norte-americana. 2023/) Fuvest divulga notas de
corte do vestibular 2023
(https://jornal.usp.br/universidade/estude-na-
O problema, portanto, é saber se é possível integrar a Bíblia hebraica
usp/fuvest-divulga-notas-de-corte-do-vestibular-
na operação historiográfica e como fazê-lo. 2023/)

(https://jornal.usp.br/institucional/
Para o historiador, isso significa duas possibilidades inseparáveis. A marisa-monte-sera-embaixadora-
primeira: a Bíblia como sendo, ela mesma, um fenômeno histórico. A do-programa-de-bolsas-usp-
segunda: sua consideração, ou não, como fonte documental. diversa/) Marisa Monte será
embaixadora do programa de bolsas USP Diversa
(https://jornal.usp.br/institucional/marisa-monte-
A própria questão poderia ser considerada um tanto descabida, pois sera-embaixadora-do-programa-de-bolsas-usp-
a historiografia atual se constituiu a partir da profunda remodelação diversa/)
da noção de documento: quando surgiu como saber moderno no (https://jornal.usp.br/universidade
século XIX, a história privilegiou os documentos escritos, /morreu-o-professor-e-
particularmente, os de natureza oficial. Embora os textos ainda pesquisador-isaias-raw-um-dos-
maiores-cientistas-do-seculo-no-
predominem, a história abriu-se a novas fontes (imagens, objetos brasil/) Morreu o professor e pesquisador Isaías Raw,
materiais, relato oral) e integrou todo tipo de documento não oficial: um dos maiores cientistas do século no Brasil
cartas privadas, textos literários, jornais, panfletos de propaganda (https://jornal.usp.br/universidade/morreu-o-
professor-e-pesquisador-isaias-raw-um-dos-
etc. Se “tudo é história”, pode-se dizer também que “tudo é
maiores-cientistas-do-seculo-no-brasil/)
documento”. Mesmo um falso documento pode servir como fonte
para se estudar algo, desde que o historiador tenha ciência de sua
falsidade (uma obra de arte forjada; um decreto imperial não
autêntico ou uma fake news). Diante desse quadro, o que poderia
justificar a exclusão da Bíblia do campo de documentos históricos?

Ocorre que a Bíblia tem uma trajetória de mais de dois mil anos no
pensamento ocidental e seus vários usos e apropriações levantaram
questionamentos legítimos que precisam ser considerados.

O ponto mais evidente é a sua concepção como “Escritura Sagrada”.


Muitos documentos com que trabalham os historiadores têm,
igualmente, uma natureza sagrada atribuída por suas sociedades: o
Livro dos Mortos, no antigo Egito; as preces aos deuses sumérios e
tantos outros. Há, porém, uma grande diferença: enquanto estes
pertenceram a religiões hoje mortas, a Bíblia continua sendo o livro
sagrado do judaísmo, dos vários cristianismos e, indiretamente, do
islamismo. A sacralização dos textos bíblicos criou obstáculos ao seu

estudo fora do domínio teológico. Foi somente às vésperas do
Iluminismo que as “Sagradas Escrituras” passaram a ser objeto de
reflexão crítica.

Na historiografia, a situação é particular e até curiosa: os


especialistas que buscaram escrever uma história moderna do antigo
Israel integraram as narrativas bíblicas como uma espécie de enredo
histórico preestabelecido, como o guia de um passado já escrito.
Caberia ao historiador traduzi-lo em um linguajar acadêmico
aceitável. Em outros termos, a Bíblia não foi inserida na operação
historiográfica como uma verdadeira fonte a ser submetida ao crivo
dos instrumentos de análise aplicados aos demais documentos, o
que, justamente, conferia à historiografia moderna sua mais
importante característica: a de ser um saber inferencial sobre as
sociedades, fundado na crítica das fontes.

A existência de um documento escrito complexo, extenso e


praticamente único não é uma exclusividade. O mesmo ocorre, por
exemplo, com a obra de Tito Lívio para vários períodos da história
romana ou com a Ilíada e a Odisseia para o chamado período
homérico. No entanto, em nenhum desses casos o texto impôs uma
tutela narrativa ao historiador, sobretudo se considerarmos as novas
perspectivas introduzidas por cada uma das “escolas”
historiográficas que se sucederam até hoje.

A história do antigo Israel, ao contrário, persistiu sendo praticamente


uma paráfrase das narrativas bíblicas. O mesmo ocorreu na
arqueologia bíblica tradicional, concebida como uma prática de
escavação e de interpretação da cultura material que visava a
corroborar a narrativa fornecida pelo texto bíblico. Os artefatos, as
estruturas etc. tampouco foram integrados adequadamente como
fonte documental para a produção de um conhecimento sobre a
sociedade antiga.

Há, portanto, razões suficientes para que a legitimidade da Bíblia


como documento histórico tenha sido questionada e para que um
ruidoso debate tenha se estabelecido entre os chamados
“maximalistas” (que procuravam conservar ao máximo a narrativa
bíblica) e os “minimalistas” (que buscavam minimizar a validade
documental da Bíblia).

Entre esses extremos, porém, uma solução intermediária parece ser


mais sensata e produtiva. Não resta dúvida de que os textos bíblicos
impõem dificuldades imensas ao historiador. O conjunto é
extremamente diversificado e mesmo incoerente; sua unificação é
fruto de um processo longo e mal conhecido; sua redação e,
sobretudo, sua forma canônica final são tardias, em geral separadas
por séculos dos contextos a que se referem. Para complicar ainda
mais, materialmente falando, o texto que conhecemos hoje deriva de
manuscritos medievais que datam de por volta do ano 1000 (depois
de Cristo!). Entre esses códices medievais e os manuscritos
“originais” (do qual não temos sequer um exemplar) há um vácuo
quase total, preenchido de modo apenas parcial pelos Manuscritos
do Mar Morto e por pouquíssimos outros fragmentos esparsos.

São problemas sérios. Todavia, a situação não é muito diferente para


grande parte do que nos sobreviveu da literatura antiga e não pode,
por si só, ser motivo para descartar a Bíblia como documento.

No entanto, é preciso reconhecer que essa intricada condição


documental da Bíblia só pode ser enfrentada se seu conteúdo for
submetido às mesmas ferramentas críticas utilizadas para qualquer
documento. Na feliz expressão de Mario Liverani, historiador italiano,

é preciso fazer da história do antigo Israel uma “história normal”.
Acrescentemos: é preciso tratar a Bíblia como um “documento
normal”. Nem mais, nem menos.

Inserir a Bíblia na história implica, portanto, inserir a história na


Bíblia, reconhecendo nela um fenômeno cultural, fabricado por
sociedades humanas em uma série de contextos sociais concretos.

É nesse sentido que os estudos sobre a memória cultural e sobre o


trauma coletivo enquanto fenômeno histórico e literário foram
fundamentais para se entender melhor boa parte das narrativas
bíblicas. Muitas delas só são compreensíveis historicamente como
resultado do trauma representado pelo cativeiro babilônico. A
conquista do Reino de Judá pelos babilônios, em 587 a.C., solapou
pilares fundamentais da sociedade judaíta: a perda da terra e a
migração forçada de parte da população; o fim da dinastia davídica;
a destruição do templo de Jerusalém. O aparecimento de uma
literatura de crise é parte das respostas culturais a esse trauma
coletivo. Seja sob o domínio babilônico, seja depois, sob o domínio
persa (Ciro, o Grande, conquistou a Babilônia em 539 a.C.), os
judaítas exilados reformularam a memória de seu passado, fundindo
antigas tradições e elementos inéditos. São mitologias da criação e
do dilúvio, sagas de ancestrais, textos proféticos, literatura sapiencial
e mesmo erótica. E, sobretudo, narrativas acerca de um passado
remodelado pelo que restou dos escombros da tragédia de Judá.
Sob esta ótica sulista, o reino do norte, Israel, foi pintado em cores
francamente negativas. Ao mesmo tempo, “Israel” ganhou um novo
sentido: não mais uma entidade política, um reino governado por um
soberano, mas um referencial identitário do qual os judaítas do exílio
se reivindicaram como herdeiros legítimos.

A invenção de um passado que se apresenta como propriamente


histórico é a matriz da memória cultural bíblica, que cria e mantém a
coesão e a identidade da comunidade: a fuga espetacular do Egito, a
conquista heroica de Canaã, uma monarquia unificada e
esplendorosa sob David e Salomão. Ao mesmo tempo, essa
construção memorial comporta reflexões sobre o sofrimento presente
e sinaliza possibilidades e limites de projetos para um futuro melhor,
tanto para os retornados quanto para os que restarão na diáspora,
primeiro à sombra do Império Persa, depois em um universo
profundamente marcado pela cultura grega e pelo domínio das
monarquias helenísticas.

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