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à la Borges: um convite
1
Maria Iraci Sousa Costa*
http://orcid.org/0000-0002-5551-4557
2
Caroline Mallmann Schneiders**
https://orcid.org/0000-0003-4365-8737
3
Amanda Eloina Scherer***
http://orcid.org/0000-0002-7183-805X
Este artigo está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional 1
MARIA IRACI SOUSA COSTA, CAROLINE MALLMANN SCHNEIDERS E AMANDA ELOINA SCHERER
DOSSIÊ
Borges), organizamos nosso texto por estantes (de galerias hexagonais) para
procurar compreender a vastidão e a complexidade do conjunto de obras e do-
cumentos que se atribui a Saussure.
P
■ ara nós, não existe produção do conhecimento sem uma vontade ex-
pressa do pesquisador. Essa vontade também se dá pelo interesse em
fatos e dados que vão se apresentando (e se acumulando) ao longo da
vida acadêmica, desde a graduação, quando decidimos por nossa formação
profissional, até a nossa formação como pesquisador e nosso exercício enquan-
to tal. Vamos a Letras porque gostamos das letras e das Letras em seu sentido
fundador e, a nosso ver, inseparáveis: a língua e a literatura. Embora com a
invenção do disciplinar e com a manualização do conhecimento linguístico – de
todo jeito e a toda prova –, a língua e a literatura acabaram sendo apartadas
da sua rede de significações e, desse modo, a divisão social (e acadêmica) aca-
bou criando um fosso entre elas, separando inclusive os sujeitos e seus objetos
(seriam línguas diferentes – língua e literatura?). Maior exemplo de tal divisão
é o que nomeamos na contemporaneidade como área de conhecimento.
Nosso interesse, aqui, não é trazer à tona tal divisão, muito menos o político
que a ordena, mas mostrar o quanto somos interpelados pela nossa formação (e,
por que não, por essa divisão?) ao nos depararmos com nosso interesse pela
linguagem. Desde cedo, quando ainda na graduação, qualquer uma das autoras
deste artigo sempre esteve em um envolvimento muito particular, poderíamos
até afirmar, em uma metáfora bem brasileira, em uma relação antropofágica
com a língua e com a literatura. Por uma espécie de canibalismo amoroso! Ca-
nibalismo da letra que é engolida pela palavra, da palavra engolida pelas signi-
ficações que almejaríamos, imaginariamente, que elas estivessem ao nosso dis-
por. Como se toda a palavra fosse carregada, ela mesma, por uma ordem
possível do real. Como se letra e palavra fossem urgidas em nosso canibalismo
amoroso. E as perguntas que sempre teimavam em aparecer poderiam, nesse
início de vida acadêmica, ser resumidas desta forma: o que é escrever; o que é
produzir uma escrita autoral; o que é produzir conhecimento pelo ato próprio do
escrever; o que fica ou resta daqueles rascunhos todos que estiveram a nossa
mercê para que pudéssemos publicar no sentido da oficialidade e da maquinaria
do impresso. O que de virtualidade nos esperava e nos alcançava...
Não à toa, nós três fomos aos poucos nos identificando e nos alicerçando
naquilo que o jargão da História das Ideias Linguísticas traz como historicidade.
A história não apenas de fatos e dados, mas as condições de produção de uma
certa memória disciplinar; de um certo controle, pelo institucional, quando da
divisão disciplinar, quando de sua história. E nosso maior ensejo sempre foi,
nos estudos sobre a língua, “conhecer” também os rascunhos, ou, na expressão
de Fenoglio (2013), o nosso “ruminar” na produção do saber sobre e na língua,
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1 Um belo exemplo foi a I Escola de Altos Estudos em Semiologia, que aconteceu na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM),
em novembro de 2016, promovida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pelo Programa
de Pós-Graduação em Letras (PPGL) e pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa.
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Adentrando na biblioteca
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Cabe ressaltar que a tradução italiana do CLG data da década de 1960, o que
significa que o CLG e suas respectivas traduções/versões estão sempre abertos
a diferentes interpretações e (res)significações, uma vez que o processo de edi-
ção do CLG constitui-se sobre a fragilidade do dispositivo2 de escrita do CLG,
que, para Trabant (2019), distancia o texto final de sua fonte.
Ainda sobre as edições em língua francesa do CLG, destacamos a edição es-
pecial em formato de livro de bolso publicada em 2016, em homenagem aos cem
anos de publicação do CLG. Essa edição toma como referência o texto de 1916
e é acrescida de um prefácio de Jean-Didier Urbain. Trata-se de uma outra for-
ma de circulação do mesmo (?) e eterno texto.
2 “Saussure fala (Fonte), escuta + escrita1 dos estudantes (akroatai, fonógrafos), leitura de Bally e Sechehaye dessas notas, escrita2
de Bally e Sechehaye, publicação (impressão): Curso” (TRABANT, 2019, p. 384).
3 “par ‘corpus saussurien’ nous entendons l’ensemble des textes de Ferdinand de Saussure (ouvrages, articles, notes, brouillons,
leçons, lettres, etc.), et rien que les textes dont l’auteur légitime est Saussure lui-même. En revanche, par archive saussurienne
nous entendons la collection de documents historiquement liés à la personnalité de Saussure. Cette archive est ouverte et reçoit
des textes de plusieurs auteurs: les textes de Saussure, mais aussi le texte du Cours de Linguistiques générale de Bally et
Sechehaye, des souvenirs, des lettres adressées à Saussure, des documents de travail identifiés comme appartenant à d’autres
auteurs tels que les feuillets 311-327 des notes sur l’intonation lithuanienne.”
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4 Estanislao Sofia é, atualmente, bolsista Jovem Talento do Programa Institucional de Internacionalização (Capes-PrInt – UFSM) no
Laboratório Corpus e Centro de Documentação e Memória.
5 “Mais inauthentique vis-à-vis de quoi? D’une pensée, d’une théorie, d’un texte qui seraient susceptibles d’être considérés, eux,
comme ‘authentiques’? D’une instance, disons en tout cas, pour avancer avec prudence, qui le serait à un degré supérieur à celui
inhérent au CLG. La prudence s’avére ici strictement nécessaire, car les conséquences diffèrent selon qu’on considère que
l’inauthenticité de cet objet réside dans la théorie, dans le texte, ou dans la pensée qu’on y présente. Différents auteurs ont
défendu ces arguments de diferentes manières, en alléguant des preuves et en recourant à des critères chaque fois distincts [...].”
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[...] tal divisão não obedece a critérios de autenticidade das fontes. O corpus
saussuriano é o conjunto de documentos constituído por fontes de natureza
heterogênea cuja existência não parece ser negada por nenhuma das partes
que integram a arena da polêmica. Kyheng chama-o de arquivo. A denominação
para nós é o ponto de menos importância. Interessa-nos apenas resguardar a
existência de um conjunto heterogêneo de fontes. O corpus de pesquisa é o re
corte que se faz do conjunto, tendo em vista os objetivos da pesquisa (FIORIN;
FLORES; BARBISAN, 2013, p. 16).
Os autores são categóricos recusando o critério de autenticidade, o que seria
para eles como que iniciar uma busca por um verdadeiro Saussure em contra-
ponto a um falso Saussure. O que os autores propõem
não diz respeito a um suposto valor de verdade que as fontes teriam se contra
postas entre si. Não se trata de defender que uma fonte é mais ‘verdadeira’ que
outra, trata-se apenas de resguardar as especificidades que cada fonte tem
(FIORIN; FLORES; BARBISAN, 2013, p. 17).
Desde que o CLG foi publicado, a autoria da obra é problematizada e o crité-
rio de autenticidade dos textos saussurianos é um tema bastante delicado e
debatido, separando aqueles que entendem que o CLG não poderia ser atribuído
a Saussure e aqueles que defendem que o CLG é tão autêntico quanto o ELG,
que também é atribuído a Saussure, todavia não foi publicado por ele. Desse
modo, muitos pesquisadores não fazem distinção entre corpus e arquivo saus-
suriano, logo não fazem distinção entre os textos mais ou menos “autenticamen-
te” saussurianos e consideram apenas a noção de corpus saussuriano, que com-
preende os textos publicados por Saussure e também aqueles em seu nome.
De antemão, é preciso destacar que, de nossa parte, não defendemos a hierar-
quização de autenticidade dos textos saussurianos. Entendemos que se trata de
textos de natureza distintas que precisam ser considerados por aquilo que são
e, principalmente, é urgente que se reflita sobre os critérios de edição de manus-
critos tão complexos. Além disso, acreditamos que as questões que abordamos
aqui são basilares para qualquer pesquisador que se debruça sobre os textos
saussurianos e nenhum pesquisador pode alegar desconhecê-las ou ignorá-las.
À parte da noção de corpus e arquivo saussuriano, para não ter que abordar
o conjunto de textos saussurianos por uma temática de autenticidade, propo-
mos uma outra organização, considerando também os desdobramentos dos tex-
tos saussurianos e a sua capacidade de tornar-se outro e ser sempre o mesmo.
Vejamos!
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sabemos, Saussure ficou conhecido, sobretudo, por aquilo que ele não publicou,
mas foi publicado em seu nome. Em vida, Saussure publicou muito pouco. Suas
publicações resumem-se a um número limitado de textos que só vieram à luz
por uma exigência acadêmica.
Uma das primeiras publicações de Saussure foi aos 21 anos, em 1879, em
Leipzig, quando ele publicou o seu célebre Mémoire sur les système primitif des
voyelles dans les langues indo-européenes6. Dois anos depois, em 1881, Saussure
publicou sua tese de doutorado intitulada De l’emploi du génitif absolu en sanscrit7.
A maior parte das publicações de Saussure foi reunida por Charles Bally e Léopold
Gautier e publicada, em 1922, sob o título Recueil des publications scientifiques
de Ferdinand de Saussure8.
A esse conjunto de textos, poderíamos (mas não deveríamos) acrescentar
ainda as cartas trocadas entre Saussure e outros linguistas, como “Lettres de
Ferdinand de Saussure à Antoine Meillet”9, publicadas por Émile Benveniste
na revista Cahiers Ferdinand de Saussure (doravante Cahiers), n. 21, de 1964
(p. 89-135). Entretanto, é preciso aí um pouco de cautela, pois se trata de cartas
que foram escritas por Saussure, porém publicadas por terceiros. É preciso con-
siderar ainda que se trata de textos que, ainda que a temática seja de interesse
de outros linguistas, não foram escritos para ser divulgados publicamente. Sua
versão final foi estabelecida por outrem, isto é, a forma como é tornada pública
é mediada por outros que não o autor do texto. Essa problemática leva-nos, en-
tão, para a segunda galeria da biblioteca.
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11 “contribuer d’une façon générale à l’avancement de la science linguistique, principalement en étudiant les systèmes de langues
à la lumière des principes et des méthodes de Ferdinand de Saussure: par des réunions et des discussions périodiques; en
publiant, si les circonstances le permettent, au moins une fois par année, un organe, les CAHIERS FERDINAND DE SAUSSURE
publiés par la Société Genevoise de Linguistique contenant un ou plusieurs travaux originaux, le compte rendu de publications
reçues et le procès-verbal des séances.” Disponível em: https://www.cercleferdinanddesaussure.org/CFS/Volume_1_1941.pdf.
Acesso em: 22 jul. 2020.
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“A luz procede de algumas frutas esféricas que levam o nome de lâmpadas. Há duas
em cada hexágono: transversais. A luz que emitem é insuficiente, incessante.
Como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude; peregrinei em
busca de um livro, talvez do catálogo de catálogos” (BORGES, 1941, p. 35).
Nessa galeria, não exatamente numa estante, mas sob uma cúpula transpa-
rente, com uma iluminação incidindo de cima para baixo direta e pontual, coloca-
remos o volume que deu início a uma série de discussões que se estendem até
hoje: o Cours de Linguistique Générale (1916). Como sabemos, Saussure não es-
creveu a obra que hoje conhecemos como CLG e, como os próprios editores admi-
tem no prefácio à primeira edição, provavelmente, Saussure não teria autorizado
a sua publicação. Nesse caso, precisamos recuperar aqui o dispositivo de escrita
do CLG para justificarmos o porquê de estarmos guardando-o aqui nessa galeria.
Saussure ministrou uma série de três cursos de Linguística Geral entre os
anos de 1907 e 1911, na Universidade de Genebra. A partir dos cursos ministra-
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dos oralmente por Saussure, os alunos tomaram notas em seus cadernos. Além
disso, é preciso ponderar também que, tendo em vista a extensão dos cursos e o
distanciamento das datas, o público não era exatamente o mesmo nos três cur-
sos. Após a morte do mestre, Charles Bally e Albert Sechehaye, professores da
Universidade de Genebra e colegas de Saussure, tomaram a iniciativa de publicar,
sob a forma de livro, as notas de Saussure referentes aos cursos ministrados.
No entanto, segundo os editores, o que eles encontraram, naquele momento,
seria insuficiente para um livro e decidem, então, por uma reconstrução apoia-
da, sobretudo, no terceiro curso. Os editores tomaram, como base da reconstru-
ção, as notas de Saussure e também as anotações dos alunos. Como Charles
Bally e Albert Sechehaye não assistiram aos cursos, eles contaram com a cola-
boração de Albert Riedlinger, que assistiu aos dois primeiros cursos.
Ao longo desse processo de reconstrução, os editores depararam-se com al-
gumas dificuldades, especialmente quando os cadernos, ao serem comparados,
apresentaram posições peculiares na tomada de notas, algumas vezes comple-
tamente discordantes. Apesar de todos os percalços, os editores concluem que
esse projeto seria audacioso e publicam, em 1916, a obra que eles chamam de
Cours de Linguistique Générale e atribuem a autoria a Saussure, ainda que não
tenha participado (diretamente) do processo de escrita do texto. Em síntese, o dis-
positivo de escrita do CLG poderia ser resumido na seguinte equação (TRABANT,
2019, p. 384, cf. nota 2):
Saussure fala (Fonte), os alunos escutam + escrita 1 dos estudantes (anotações)
+ Leitura de Bally e Sechehaye dessas notas + escrita 2 de Bally e Sechehaye +
publicação (impressão) = CLG.
Esse dispositivo de escrita dá um ar peculiar ao CLG e, curiosamente, é jus-
to essa obra que alçou a Linguística ao âmbito das Ciências Humanas, colocan-
do Saussure como o fundador da Ciência Linguística. Por isso, esse exemplar
está no centro de uma galeria, não em uma estante, no centro da biblioteca.
Nessa galeria, damos ênfase ao CLG, que, como destacado no início de nossa
reflexão, é uma obra bastante controversa, sobretudo por ela não ter sido publi-
cada por aquele a quem se atribui a autoria. Junto ao CLG, guardaremos um
exemplar da publicação intitulada La “collation Sechehaye” du “Cours de Lin-
guistique Générale” de Ferdinand de Saussure (2015), editada por Estanislao
Sofia. Trata-se de uma edição diplomática das notas manuscritas de Albert
Sechehaye daquilo que posteriormente viemos a conhecer como Cours de Lin-
guistique Générale. Nessa edição, o leitor encontrará, de um lado, a imagem em
alta qualidade do manuscrito (fac-símile) e, de outro, a edição do manuscrito, a
qual preserva e reproduz todas as minúcias e filigranas. O primor e o cuidado da
edição permitem-nos concluir que se refere a uma edição elaborada por um saus-
suriano apaixonado por seu trabalho para saussurianos que amam o que fazem.
Essa edição diplomática proposta por Estanislao Sofia12 nos traz à memória um
outro conto de Borges, “Sobre o rigor da Ciência”. Nesse conto, os cartógrafos se
debruçam sobre a criação de um mapa extremamente preciso e minucioso e
12 Nota ao leitor: por favor, não se zangue por mais uma digressão no nosso texto, mas não podemos deixar de mencionar o
123º Seminário de Estudos Avançados – O estudo da obra de Ferdinand de Saussure: problemas teóricos, filológicos e editoriais,
realizado nos dias 3 e 4 de junho de 2019, no Centro de Documentação e Memória, em Silveira Martins (campus UFSM). O semi-
nário foi ministrado por Estanislao Sofia e abordaram-se os conceitos de sistema e de valor nos manuscritos saussurianos, além,
é claro, do complexo processo de edição do CLG, o qual implica também pensar a problemática da autoria da referida obra.
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criam, então, o mapa em escala 1:1, no qual um centímetro sobre o mapa repre-
sentava um centímetro sobre o terreno.
Em relação ao corpus saussuriano, demos maior destaque ao CLG por várias
razões, mas, especialmente, porque, apesar do seu polêmico processo de edição,
é a obra que promoveu um bouleversement na história na Linguística. Na década
de 1960, quando essa obra contribuiu para que a Linguística fosse aclamada a
ciência-piloto das Ciências Humanas no seio do Estruturalismo, as fontes con-
sultadas para a elaboração do CLG já haviam sido publicadas em edições críti-
cas e havia uma forte discussão sobre tal problemática, como a obra de Robert
Godel, Les sources manuscrites du Cours de Linguistique Générale (1957). Aque-
les que apostavam na cientificidade do CLG e na sua importância para alçar a
Linguística ao âmbito de Ciência pareciam indiferentes às edições críticas e às
discussões que estavam ocorrendo; todavia, elas não afetaram o lugar que a
referida obra já havia adquirido no estruturalismo vigente.
A par do complexo processo de edição do CLG, e também dos diferentes mo-
mentos históricos em que ela foi recebida na história da Linguística no Ocidente,
essa obra está no cerne daquilo que ficou conhecido entre os estruturalistas
como corte epistemológico saussuriano. Aliás, “epistemologia” é uma palavra
que não existia no sentido dado a sua atualidade na época de Saussure, como
destaca Simon Bouquet (2012, p. 22, tradução nossa):
Saussure não fala de epistemologia, no sentido que nós a entendemos – a pala
vra não existia na sua época –, mas seu pensamento não é menos autentica
mente epistemológico, particularmente no que ele permite colocar critérios ge
rais de legalidade científica para a linguística13.
13 “Saussure ne parle pas d’épistémologie, au sens où nous l’entendons – le mot n’existait pas à son époque – mais sa pensée n’en
est pas moins authentiquement épistémologique, notamment en ce qu’elle permet de poser des critères généraux de légalité
scientifique pour la linguistique.”
14 Sobre a noção de descoberta, ver Descendre (2015).
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No caso da Linguística, qual teria sido essa descoberta? O que foi que Saussure
descobriu? Não dizemos que Saussure descobriu o objeto da Linguística, mas
dizemos que ele definiu15 tal objeto. Aliás, a noção de descoberta nas Ciências
Humanas é um tanto delicada. Sériot (2015) aponta essa problemática ao refle-
tir sobre o objeto de conhecimento nas Ciências Humanas. Para ser descoberto,
tal objeto precisaria preexistir ao conhecimento. De fato, as línguas, enquanto
objeto real, existem e preexistem a qualquer conhecimento linguístico. Entretan-
to, é a partir da problemática saussuriana que a noção de língua vai ser tomada
enquanto um conceito teórico e como objeto de conhecimento da Linguística.
A nosso ver, o que temos com a edição e publicação do CLG é uma espécie de
objeto de predileção para os historiadores das ideias, em nosso caso, na História
Social da Linguística, pois ele, o CLG, acaba, nas palavras de Starobinski (2011),
formando uma ideia com unidade semântica capaz de articular com outras uni-
dades semânticas, dando a ver o como podemos articular ciência, história e
memória na história da produção do conhecimento. De outro lado, por muito
tempo, a história da Linguística organizou-se em torno do CLG, tomando-o co-
mo um ponto de ruptura. Segundo Courtine (2006, p. 5),
[...] a reflexão sobre a história da disciplina estava, com efeito, dominada pelo
que poderíamos comodamente chamar de “saussurologia”, isto é, a idéia segun
do a qual o advento de uma linguística científica tinha se fundado sobre um
“corte epistemológico”, que intervém no Cours de Linguistique Générale.
15 Destacamos aqui a importância de refletir sobre a noção de “definição” para a constituição da história da produção do conhe-
cimento. Costa (2012, p. 34) defende que “a definição poderia ser considerada uma formulação singular na medida em que
expõe o sujeito à visibilidade a partir do gesto interpretativo. Além disso, a forma da definição projeta um efeito de fechamen-
to para que não signifique outra coisa a não ser o que o sujeito espera que signifique, ao mesmo tempo em que mascara o gesto
interpretativo, fazendo parecer que o dizer é da ordem da evidência e que o sujeito é exterior ao seu dizer. Dessa forma,
entendemos que definir poderia ser considerado um gesto singular que coloca o sujeito como responsável por aquilo que diz e
escreve, simulando estar na origem do seu dizer, como se as palavras não tivessem história”.
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16 “Il n’y a de lecture complète que celle qui transforme le livre en réseau simultané de relations reciproques.”
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17 “En effet, sur un total d’environ 30.000 pages écrites, réparties entre la Bibliothèque de Genève et la Houghton Library de
Harvard et relevant projets et périodes hétéroclites, moins d’une dixième partie a été étudiée, éditée et publiée.”
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O leitor que nos acompanha até aqui deve estar se perguntando: os manus-
critos saussurianos serão guardados em qual galeria? Aqui convidamos o leitor
para voltar ao mundo real e lembrar que tais manuscritos estão guardados, em
sua maior parte, na Biblioteca de Genebra (Suíça) e também em Houghton Library,
de Harvard (Estados Unidos). O acesso a esses manuscritos, hoje, é mediado por
um trabalho cuidadoso e minucioso de pesquisadores que se dedicam a montar
e decifrar um conjunto de notas na tentativa de atribuir uma ordem. De Mauro
(2016, p. 37, tradução nossa) atribui a esse trabalho pesaroso um ar poético:
Certamente, estes materiais estão em desordem. A atmosfera geral que se des
prende parece aquela de um ateliê onde trabalha o artista: dispersão de frag
mentos, de cacos, de resíduos, de esboços; entretanto, aqui e acolá, alguma
coisa de mais acabado aparece e, às vezes, admiravelmente acabado: trata-se,
em resumo, de uma desordem à procura de uma invenção de uma ordem nova19.
O que significa reconhecer que, para acessar esses manuscritos, será neces-
sário inventar uma (nova) ordem, e essa ordem, por sua vez, sempre poderá ser
outra, uma vez que o autor dos manuscritos já não pode mais nos dizer qual
seria a sua escolha. É muito provável que Saussure também não soubesse que
ordem dar, pois, em várias notas, ele faz alusão à dificuldade de começar e dar
18 “la langue miroite et prend dans son piège le copiste qu’elle institue en sujet”.
19 “Bien entendu, ces matériaux sont en désordre. L’atmosphère générale qui s’en dnégage ressemble à celle d’un atelier où tra-
vaille l’artiste: parsemé de fragments, de débris, de déchets, d’ébauches; cependant, ici et là, quelque chose de plus fini apparaît,
et parfois même, d’admirablement fini: il s’agit en somme d’un désordre à la recherche de l’invention d’un ordre nouveau.”
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20 “Saussure lui-même prend position sur le problème de l’ordre et (dirons nous à la manière de Croce, traducteur de Hegel) ‘del
cominciamento’. C’est là une question qui le tourmente, comme elle a tourmenté déjà Pascal et Hegel et également le dernier
Wittgenstein aux prises avec ses Investigations philosophiques.”
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ganized our text by shelves (of hexagonal galleries) to try to understand the vast-
ness and complexity of the set of works and documents attributed to Saussure.
Referências
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