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livros

O polímata e a história
da erudição: Peter Burke sob
o signo da tradução cultural

Carlota Boto

O polímata: uma história cultural – de Leonardo da Vinci


a Susan Sontag, de Peter Burke, São Paulo, Editora Unesp, 2020, 512 p.

Revista USP • São Paulo • n. 129 • p. 165-170 • abril/maio/junho 2021 165


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N
a entrevista que saber, tangenciando, sob tal perspectiva,
concedeu em também a matéria da educação.
1999 à profes- Historiador da cultura, Peter Burke –
sora Maria Lú- como observa Maria Lúcia Garcia Pallares-
cia, sua esposa, -Burke – sempre procurou fazer conexões
Peter Burke entre inúmeros campos do conhecimento,
destacava que construindo pontes entre épocas e assuntos.
interpretações A experiência da diversidade cultural teria
errôneas sobre seu trabalho em resenhas marcado sua trajetória, posto que, “com pai
o desconcertam, dado que costumam atri- católico irlandês e mãe judia de origem po-
buir a ele ideias e visões de mundo que ele lonesa e lituana, sua família unia tradições
não perfilha. Ora, com essa advertência, a culturais muito diferentes”1. Tendo estudado
minha tarefa ganha uma responsabilidade em um colégio jesuítico de Londres, Peter
maior. Desde que li o livro O polímata: Burke cursou a Universidade de Oxford. Re-
uma história cultural – de Leonardo da
Vinci a Susan Sontag, tive o desejo de re-
senhá-lo; e é o que eu pretendo fazer aqui.
1 Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke, As muitas faces da
Peço desculpas a Peter Burke se eu não história: nove entrevistas, São Paulo, Editora Unesp,
conseguir (a despeito de me esforçar para 2000, p. 186.

isso) ser fiel na interpretação e na tradução


simbólica de sua obra. O que me chamou
a atenção no livro, desde logo, foi seu ca-
ráter pedagógico. A amplitude da temática, CARLOTA BOTO é professora titular da
bem como a originalidade da abordagem, Faculdade de Educação da USP, bolsista
produtividade do CNPq e autora de, entre
é acompanhada por um rigoroso sentido outros, A escola do homem novo: entre o
analítico que perpassa vários campos do Iluminismo e a Revolução Francesa (Editora Unesp).

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cém-formado em História, ele foi convi- na tradução em língua portuguesa cuidado-
dado a lecionar na Universidade de Sussex, samente efetuada pela Editora Unesp. Logo
onde teve uma experiência bastante signi- no princípio, ele define o polímata como al-
ficativa por quase 20 anos, quando então guém que se interessa por muitos assuntos
ingressou na Universidade de Cambridge, e que aprende muitos assuntos. O livro se
onde permanece até hoje. A Universidade propõe a abordar, nesse sentido, a erudição
de Sussex – conforme observa Soares Ju- no campo acadêmico: “e falar de estudiosos
nior 2 – tinha uma proposta interdiscipli- [scholars] com interesses que eram ‘enci-
nar, já que havia ali seminários que eram clopédicos’ no sentido original de percorrer
pensados para integrar as formações em todo o ‘curso’ ou ‘currículo’ intelectual ou,
História, em Sociologia, em Literatura, de alguma maneira, determinado segmento
etc. Não era comum, naquele início dos importante desse círculo” (p. 20). No livro,
anos 60, lidar com um mapa do conheci- o que Peter Burke apresenta é o que ele
mento que desafiasse as convenções, mas chama de uma “prosopografia dos sábios”,
o projeto inovador de Sussex previa isso. ou seja, uma biografia coletiva, que inclui
Leitor de inúmeras línguas desde muito um conjunto extremamente vasto – 500 pes-
jovem, Peter Burke construirá toda sua soas – de eruditos de diferentes quadrantes,
obra à luz das noções de hibridismo cul- tempos e origens, homens e mulheres, que
tural e de tradução cultural. O hibridismo poderiam ser classificados nessa categoria
cultural pressupõe a correlação entre os de polímatas. Ainda no começo do livro,
vários campos do saber – a antropologia, Burke assinala sua preocupação com a so-
a sociologia, a história social e a histó- brevivência dos polímatas em uma cultura
ria das ideias, por exemplo. Burke aponta marcada pela crescente especialização.
que, ao longo de sua carreira, misturou De certa maneira, abordar o presente tema
coquetéis teóricos3. A tradução cultural, requer que se pense também nas representa-
por sua vez, prevê a possibilidade de se ções coletivas existentes acerca do próprio
lidar com uma miríade de culturas, que lugar público desse tipo de intelectual. Isso
possam vir a conversar entre si, mediante abarcaria pressupostos implícitos, sistemas
a interpretação que se vier a fazer delas. de crenças e compreensão do senso comum
O polímata é, já à partida, um livro sin- de uma cultura específica. Afinal, só se po-
gular. É diferente pelo título sugestivo e in- derá ver o sujeito diferenciado a partir do
trigante. É original pela abordagem. É denso que se acredita ser a normalidade, do ponto
no conteúdo. É fluente na sua bela escrita. de vista cultural. A propósito – como dirá
No ano passado, 2020, Peter Burke lançou o próprio Peter Burke em outro livro, este
esse livro simultaneamente na Inglaterra e sobre história e teoria social –, a própria
acepção de cultura passou a ter um signi-
ficado ampliado, compreendendo, além das
manifestações eruditas, toda uma gama de
2 Peter Burke, um historiador da cultura e da sociedade: as “atitudes e valores de pessoas comuns e suas
muitas faces de um intelectual polímata, dissertação de
mestrado, São Paulo, PUC/SP, 2016, p. 29. formas de expressão na arte e no cancio-
3 Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke, op. cit, p. 209. neiro populares, nas histórias folclóricas, nos

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festivais etc.”4. Tal como veio a ser definido da narrativa na história. No livro, Peter
por cientistas políticos e por historiadores Burke conta as histórias e as trajetórias
desde meados do século passado, a ideia de dos sujeitos de sua pesquisa: “Tais narra-
cultura “engloba a socialização política, isto tivas culturais, como foram chamadas, ofe-
é, os meios pelos quais o conhecimento, as recem pistas importantes para o mundo em
ideias e os sentimentos são transmitidos de que foram contadas” 7. Além disso, registra
uma geração para outra”5. Sob tal perspec- ainda o historiador, “narrativas complexas,
tiva, o termo “cultura” abarcaria modelos expressando uma multiplicidade de pontos
historicamente veiculados, símbolos e sig- de vista, são uma maneira de tornar inteli-
nos, mediante os quais as pessoas se co- gíveis os conflitos, bem como de resistência
municam, aprendem e se dispõem diante à tendência à fragmentação” 8.
da vida. Isso posto, Peter Burke em O po- Ao iniciar seu instigante relato com os po-
límata vai exatamente tentar mostrar como límatas da Antiguidade, Peter Burke aborda
se comportam as pessoas que estão fora da os gregos e os romanos. Enfatiza o tratado
curva relativamente ao padrão comum de sobre a retórica de Quintiliano, o qual desta-
conhecimento. Como tais pessoas apren- cava que o orador deveria conhecer todos os
dem, como elas lidam com o aprendizado assuntos. Não se detendo no mundo ocidental,
e mobilizam seus saberes nas lidas coti- Burke passa pelos estudiosos chineses, su-
dianas; enfim, como elas transmitem esse blinhando a cultura geral que era ministrada
repertório apreendido às outras pessoas. na educação dos futuros administradores e
Para estudar os polímatas, Peter Burke funcionários públicos. Depois, comenta o
tem de lidar com a ideia de fronteiras cul- declínio da erudição na Alta Idade Média,
turais, quer como travas, quer como zonas a despeito da guarda dos acervos de livros
de contato que podem aproximar diferentes e documentos nos mosteiros. Sendo assim,
estilos, diferentes épocas, diferentes perten- “à medida que os estudiosos desse período
ças nacionais ou mesmo geográficas. Burke juntaram os fragmentos dos antigos saberes
– sobre essa temática – já advertia em seu gregos e romanos, eles também os classifi-
livro acerca da história cultural: “[...] mu- caram, tanto no currículo das escolas ane-
ros e arame farpado não podem impedir xas às catedrais quanto nas enciclopédias”
o trânsito de ideias, mas daí não decorre (p. 44). No tocante à Baixa Idade Média,
que inexistam barreiras culturais”6. Mesmo Peter Burke indica a inovação que teriam
assim, existem encontros e, sobretudo, tra- representado as universidades, entre o final
duções de uma cultura para outra. Entre- do século XI e o século XIII. Era como se,
cruzando fontes e personagens, O polímata, no mundo antigo e na Idade Média, os po-
de alguma maneira, recupera a dimensão límatas fossem sujeitos coletivos, que mo-
bilizavam o conhecimento, sobretudo, com
a finalidade de guardá-lo.

4 Peter Burke, História e teoria social, São Paulo, Editora


Unesp, 2002, p. 165.
5 Idem, ibidem, p. 111. 7 Idem, ibidem, p. 158.
6 Idem, ibidem, p. 153. 8 Idem, ibidem, p. 160.

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O Renascimento traz novas cores à his- A proliferação de periódicos culturais, dentre
tória dos polímatas. Às sete artes liberais os quais o Spectator, de 1711, e a Encyclo-
seriam agregadas as Humanidades, que en- pédie, de 1751, trouxe a possibilidade de
volviam, além da gramática e da retórica, conhecimentos trançados que se tornaram
poesia, história e ética. Como sublinha Peter disponíveis ao leitor comum. Além disso,
Burke, “o ideal de polivalência ou do ‘ho- os eruditos tornavam-se, cada vez mais,
mem universal’ foi promovido no próprio intelectuais públicos, caracterizados não
Renascimento” (p. 57). O projeto da época apenas pela variedade de seus interesses e
constituía-se no saber universal que os gregos atividades, mas também pela sua preocupa-
haviam chamado de encyclopaedia – círculo ção com o cenário social e político. Assim
do conhecimento. A ambição do período seria podem ser considerados Voltaire, Diderot,
o domínio simultâneo de várias disciplinas. D’Alembert, Condorcet e tantos outros. Pe-
Aí temos figuras como Vittorino da Feltre, ter Burke aqui fala das mulheres, compara o
Leon Battista Alberti, Pico della Mirandola Iluminismo francês com o escocês, com o
e, como não poderia deixar de ser, Leonardo inglês, com o espanhol e com o russo, até
da Vinci; todos eles projetando no horizonte chegar finalmente às Américas. Comenta
o desejo de universalidade, ou aquilo que sobre dois polímatas importantes que, nos
Pico qualificava como homem polivalente Estados Unidos, se dedicariam à política:
– pessoas especialistas em qualquer campo Benjamin Franklin e Thomaz Jefferson.
do conhecimento. Leonardo da Vinci, com O período compreendido entre a segunda
certeza, é o exemplo mais clássico do su- metade do século XIX e os anos 2000 é
jeito que envereda por todos os ramos do caracterizado por Burke como a “era da
saber humano, a despeito de algum nível territorialidade”. O avanço do conhecimento
de aparente dispersão de interesses. É como sistematizado trouxe a tendência à espe-
se o polímata deslizasse com ligeireza de cialização, que, por definição, “reduzia a
um território a outro, nem sempre fixando quantidade de informações que precisavam
aqui ou ali sua morada. ser dominadas” (p. 204). Isso acabou por
Passando para o século XVII, Peter confluir para que, no limite, o campus da
Burke anota alguns registros de indivíduos universidade se tornasse “uma espécie de
que ele chamará de “monstros de erudi- arquipélago, com muitas ilhas de conhe-
ção”, como Bayle, Leibnitz e Comenius. cimento, separadas umas das outras pelas
A busca por um conhecimento universal paredes dos ‘departamentos’, como eram
tinha aqui a característica de ser paralela à chamados na Grã-Bretanha, ou ‘institu-
tentativa de encontrar uma harmonia uni- tos’, como eram conhecidos na Alemanha
versal. Era a época dos virtuosi, os quais, e em outros lugares” (p. 210). A especia-
“assim como os ‘antiquários’ mais espe- lização, nessa época, foi um dado que ten-
cializados, às vezes, eram criticados por dencialmente provocou a fragmentação do
perder o verdadeiro conhecimento devido conhecimento. Hoje vivemos parcialmente
à sua paixão pelos detalhes” (p. 134). um movimento contrário, que, por sua vez,
O século XVIII constituiu a era do polí- convive com a tendência anterior à qual
mata coletivo, se é que é possível dizer isso. pretendia se contrapor: há a mera coexis-

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tência entre disciplinas e há também inter- viveriam, na realidade atual, os polímatas


disciplinaridade – diz Peter Burke (p. 358). em uma era em que a busca no Google
Também para os séculos XIX e XX, Pe- parece dar conta de acessar todo o uni-
ter Burke mobiliza um conjunto significativo verso de informação existente? Faz ainda
de polímatas – homens e mulheres – que sentido pensarmos na formação do polí-
teriam sobrevivido a essa camisa de força mata? Seria possível projetarmos uma po-
da especialização: Norbert Elias, Michel limatia coletiva, capaz de agregar o saber
Foucault, Susan Sontag, só para citar al- de modo a construir o conhecimento novo
guns. Depois o historiador busca problema- mediante o recurso ao entrelaçamento de
tizar a caracterização coletiva e, sobretudo, áreas e à interface das disciplinas? O ce-
a dimensão individual do polímata. O que nário da pandemia que assola o planeta
impele o indivíduo para a polimatia? O li- certamente contribui para configurar novas
vro mostra alguns dos traços típicos desse constelações de acesso ao conhecimento.
sujeito: curiosidade, boa memória, criativi- É preciso, antes de tudo, verificar como
dade, concentração, rapidez de raciocínio, pensa e o que pensa essa juventude que
imaginação, inquietação e fôlego de traba- hoje aprende diante das telas dos compu-
lho... O livro trabalha também como seria tadores. Interrogar o repertório desses jo-
a formação ou os estilos de formação pelos vens significa indagar por onde eles apren-
quais passaram os polímatas. Burke conclui dem e quais são as clivagens mediante as
sua análise mostrando como o mundo digi- quais eles apreendem a construção social
tal, o cenário presenciado pela World Wide da realidade. Essa seria a incumbência do
Web, contribui ou não para a formação de educador que leu o livro de Peter Burke.
novos polímatas. Dialogando com a neu- A dimensão pedagógica da obra está exa-
rociência, Peter Burke – ele próprio talvez tamente em sua habilidade de recortar e
um dos últimos polímatas – conclui dizendo trançar conceitos e objetos, disciplinas e
que a abundância de mensagens das novas saberes. Nas franjas do que essa história
mídias digitais tem modificado o acesso e o nos conta, há certamente uma lição sobre
processamento intelectual do conhecimento. como se dará – no diálogo entre passado
A grande questão colocada por este livro e futuro – o caminho para o conhecimento
é exatamente essa. A história é – como não transdisciplinar. Por tudo isso, convido o
poderia deixar de ser – contada a partir leitor a essa leitura, que proporciona, a um
de uma questão do presente. Como sobre- só tempo, aprendizado e fruição.

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