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O polímata e a história
da erudição: Peter Burke sob
o signo da tradução cultural
Carlota Boto
N
a entrevista que saber, tangenciando, sob tal perspectiva,
concedeu em também a matéria da educação.
1999 à profes- Historiador da cultura, Peter Burke –
sora Maria Lú- como observa Maria Lúcia Garcia Pallares-
cia, sua esposa, -Burke – sempre procurou fazer conexões
Peter Burke entre inúmeros campos do conhecimento,
destacava que construindo pontes entre épocas e assuntos.
interpretações A experiência da diversidade cultural teria
errôneas sobre seu trabalho em resenhas marcado sua trajetória, posto que, “com pai
o desconcertam, dado que costumam atri- católico irlandês e mãe judia de origem po-
buir a ele ideias e visões de mundo que ele lonesa e lituana, sua família unia tradições
não perfilha. Ora, com essa advertência, a culturais muito diferentes”1. Tendo estudado
minha tarefa ganha uma responsabilidade em um colégio jesuítico de Londres, Peter
maior. Desde que li o livro O polímata: Burke cursou a Universidade de Oxford. Re-
uma história cultural – de Leonardo da
Vinci a Susan Sontag, tive o desejo de re-
senhá-lo; e é o que eu pretendo fazer aqui.
1 Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke, As muitas faces da
Peço desculpas a Peter Burke se eu não história: nove entrevistas, São Paulo, Editora Unesp,
conseguir (a despeito de me esforçar para 2000, p. 186.
festivais etc.”4. Tal como veio a ser definido da narrativa na história. No livro, Peter
por cientistas políticos e por historiadores Burke conta as histórias e as trajetórias
desde meados do século passado, a ideia de dos sujeitos de sua pesquisa: “Tais narra-
cultura “engloba a socialização política, isto tivas culturais, como foram chamadas, ofe-
é, os meios pelos quais o conhecimento, as recem pistas importantes para o mundo em
ideias e os sentimentos são transmitidos de que foram contadas” 7. Além disso, registra
uma geração para outra”5. Sob tal perspec- ainda o historiador, “narrativas complexas,
tiva, o termo “cultura” abarcaria modelos expressando uma multiplicidade de pontos
historicamente veiculados, símbolos e sig- de vista, são uma maneira de tornar inteli-
nos, mediante os quais as pessoas se co- gíveis os conflitos, bem como de resistência
municam, aprendem e se dispõem diante à tendência à fragmentação” 8.
da vida. Isso posto, Peter Burke em O po- Ao iniciar seu instigante relato com os po-
límata vai exatamente tentar mostrar como límatas da Antiguidade, Peter Burke aborda
se comportam as pessoas que estão fora da os gregos e os romanos. Enfatiza o tratado
curva relativamente ao padrão comum de sobre a retórica de Quintiliano, o qual desta-
conhecimento. Como tais pessoas apren- cava que o orador deveria conhecer todos os
dem, como elas lidam com o aprendizado assuntos. Não se detendo no mundo ocidental,
e mobilizam seus saberes nas lidas coti- Burke passa pelos estudiosos chineses, su-
dianas; enfim, como elas transmitem esse blinhando a cultura geral que era ministrada
repertório apreendido às outras pessoas. na educação dos futuros administradores e
Para estudar os polímatas, Peter Burke funcionários públicos. Depois, comenta o
tem de lidar com a ideia de fronteiras cul- declínio da erudição na Alta Idade Média,
turais, quer como travas, quer como zonas a despeito da guarda dos acervos de livros
de contato que podem aproximar diferentes e documentos nos mosteiros. Sendo assim,
estilos, diferentes épocas, diferentes perten- “à medida que os estudiosos desse período
ças nacionais ou mesmo geográficas. Burke juntaram os fragmentos dos antigos saberes
– sobre essa temática – já advertia em seu gregos e romanos, eles também os classifi-
livro acerca da história cultural: “[...] mu- caram, tanto no currículo das escolas ane-
ros e arame farpado não podem impedir xas às catedrais quanto nas enciclopédias”
o trânsito de ideias, mas daí não decorre (p. 44). No tocante à Baixa Idade Média,
que inexistam barreiras culturais”6. Mesmo Peter Burke indica a inovação que teriam
assim, existem encontros e, sobretudo, tra- representado as universidades, entre o final
duções de uma cultura para outra. Entre- do século XI e o século XIII. Era como se,
cruzando fontes e personagens, O polímata, no mundo antigo e na Idade Média, os po-
de alguma maneira, recupera a dimensão límatas fossem sujeitos coletivos, que mo-
bilizavam o conhecimento, sobretudo, com
a finalidade de guardá-lo.