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21/08/13 www.ifcs.ufrj.br/humanas/0024.

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Arno Wehling: uma nova proposta para o IHGB


Entrevista: Luiz Cristiano de Andrade e Thatiana Murillo

Quando empossado presidente do Instituto Histórico e


Geográfico Brasileiro, Arno Wehling foi considerado muito
jovem para o cargo. Nada incomum para alguém que buscou a
História cedo. Concluída a graduação, partiu em seguida para
o doutoramento na USP.

Além dos anos dedicados à pesquisa e à carreira


administrativa, Arno lecionou em três universidades distintas:
UFRJ, UNI-RIO e Gama Filho. Gosta de ensinar e frisa a
importância da prática docente.

Elegante, faz questão de mencionar o trabalho da esposa:


“minha produção está extremamente vinculada à da Maria
José. Nosso trabalho é dialogado o tempo todo. Como existe um
machismo muito forte na tradição brasileira, em algumas
situações as pessoas são tentadas a pensar que a mulher
desempenha papel secundário, o que não é verdade em nosso
caso.” E prontamente conta também um pouco da história do
IHGB.

H&M: Como o senhor vê a sua trajetória intelectual?


Arno: Sempre me imaginei associado à alguma atividade ligada à
História, embora não possa precisar desde quando. Entrei muito
na faculdade aos 18 anos e logo desenvolvi um interesse maior
pela pesquisa e pela reflexão teórica. Procurei conciliar os dois
aspectos porque não creio que se possa fazer pesquisa sem
fundamentação teórica e, ao mesmo tempo, uma fundamentação
teórica sem trabalho empírico significa que se está em outro
campo - pura reflexão - a Filosofia. Eu me formei em História
pela Faculdade Nacional de Filosofia (antiga Universidade do
Brasil) sendo naturalmente influenciado por alguns professores da
época, como Maria Yedda Linhares, Eulália Lobo e,
particularmente pelo professor Guy de Holanda, com quem
comecei a trabalhar em pesquisa. Ele conciliava esse interesse
teórico com o gosto pela investigação. Eu lastimava que o curso
de História tivesse uma excessiva francofilia. Dependendo da
área, da Cadeira e do grau de atualização, basicamente conhecia-
se a historiografia francesa anterior aos Annales e praticamente se
ignorava as outras tradições historiográficas (inglesa, alemã e
ibérica). Após a graduação fui fazer o doutoramento na USP
(naquele tempo não havia mestrado), sob a orientação do
professor Eduardo Oliveira França que sempre foi - e ainda é -
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uma das minhas referências e um interlocutor muito positivo. Em


1972 defendi a minha tese de doutorado sobre a política
econômica do estado português em fins do século XVIII, e em
1979 obtive o título de livre-docente em História Ibérica, também
na USP. Mais tarde graduei-me em Direito, porque senti falta de
fundamentação nessa área para o desenvolvimento de alguns
projetos. Prestei também, concursos para professor titular: o da
UNI-RIO, em História do Direito (1991) e o da UFRJ, em Teoria
e Metodologia da História (1992).

H&M: O sr. havia mencionado uma “certa francofilia” no curso


de História na época de sua graduação. O sr. se filia à alguma
tradição?
Arno: A francofilia como qualquer outra filia é prejudicial. De
modo algum nego a importância dos Annales nos seus vários
momentos. Eu próprio trabalho com algumas de suas categorias.
No entanto, essa preocupação excessivamente estruturalizadora
ou sistêmica prejudica a análise de outros aspectos. Mais
sinteticamente, eu diria que há duas tradições: uma analítica - que
não é exclusiva dos Annales -, e a hermenêutica, que teve pouco
desenvolvimento na historiografia brasileira, e que se
complementam muito bem. Uma visão analítica (seja econômica,
social ou de mentalidades) não precisa necessariamente excluir
uma visão hermenêutica, caracterizada fundamentalmente pela
tentativa de identificação da intenção do agente social. Não
precisa, também, ser tão estruturante, esquecendo o singular. Na
mesma investigação pode-se trabalhar com as duas abordagens
desde que se tenha uma problemática bem definida. Sempre fui
contra o exclusivismo metodológico. Aliás, vejo com desconforto
todo exclusivismo, coerente com meu interesse nas questões
epistemológicas da ciência em geral e das ciências humanas em
particular. As ricas possibilidades da filosofia da ciência, em suas
várias opções, parecem-me enriquecedoras para sedimentar
nosso universo conceitual e nossos procedimentos
metodológicos. A excessiva concentração nestes últimos,
inclusive pela Escola dos Annales – e é Roger Chartier que
reclama desta limitação – olvidando uma discussão
epistemológica mais aprofundada, empobrece
desnecessariamente a ciência histórica.

H&M: O sr. poderia nos falar um pouco da sua produção


acadêmica?
Arno: Tenho algumas preocupações maiores, como a
compatibilização da docência com a pesquisa. Sempre gostei de
lecionar, assim como gosto de pesquisar. É uma preocupação que
tenho e lamento que alguns professores mais novos demonstrem
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exclusivo ou excessivo interesse pela pesquisa. Isso pode, até


certo ponto, prejudicar - na graduação - a formação das gerações
seguintes. Há casos concretos de excelentes pesquisadores que
têm falhas graves na prática docente. Não vejo incompatibilidade
entre um bom professor e um bom pesquisador.

Na minha trajetória acadêmica, nesses 30 anos, tive


fundamentalmente dois interesses: o primeiro, uma linha de
estudos teórico-metodológica canalizada para a análise da
historiografia, entendida como Canguillen, no sentido de que a
história de uma ciência é o laboratório de sua epistemologia. A
História da historiografia, no meu entender, tem este papel de
alimentador da discussão das questões teóricas e, até certo ponto,
metodológicas. Ao nos debruçarmos sobre determinado autor,
mesmo que seja de um contexto anterior aquilo que se
convencionou chamar de historiografia científica, do século XIX
em diante, enfrentamos alguns problemas da explanação e do
conhecimento históricos como tais.
Minha tese de titular na UFRJ sobre Varnhagen e Capistrano de
Abreu foi desenvolvida nesta linha de reflexão. Outro campo de
trabalho, propriamente empírico, refere-se ao estudo do período
colonial, mais especificamente do Estado colonial, suas
características e seu processo de desenvolvimento. Ultimamente
estou trabalhando com administração judiciária colonial, uma
pesquisa apoiada pelo CNPq sobre o Tribunal da Relação do Rio
de Janeiro que deverá resultar no livro “O Direito e a Justiça no
Brasil Colonial”. Nesta vertente estou me encaminhando para a
História do Direito brasileiro, área ainda praticamente inexplorada
e cuja problemática está por se definir, porque a maioria da sua
produção ainda se concentra na evolução legislativa. Minha
produção está extremamente vinculada à da Maria José (sua
esposa). Nosso trabalho é dialogado o tempo todo. Como existe
um machismo muito forte na tradição brasileira, em algumas
situações as pessoas são tentadas a pensar que a mulher
desempenha papel secundário, o que não é verdade em nosso
caso.

H&M: Como foi a sua experiência em três universidades


distintas?
Arno: São três universidades distintas e dois modelos: o público e
o privado. Certamente é uma experiência muito enriquecedora
porque os dois modelos implicam em estruturas e dinâmicas
diversas na organização curricular da graduação, na pós-
graduação, na pesquisa, na edição de trabalhos e na
racionalização administrativa, deixando de mencionar outros
aspectos como os perfis dos alunos, dos docentes, dos técnicos e

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dos administradores. Não me sentiria bem se ficasse fechado


numa universidade com dedicação exclusiva.

H&M: O senhor foi o primeiro presidente do IHGB originário do


sistema de pós-graduação. Como sua formação intelectual influiu
na sua carreira administrativa?
Arno: Na vida universitária, quase sempre tenho me dedicado,
simultaneamente, à docência, à pesquisa e à administração; esta
última, tanto na universidade pública (como decano na UNI-RIO)
como na UGF, na direção do Departamento de História e hoje do
Instituto de Ciências Sociais. Para o IHGB procuro canalizar esta
experiência diversificada.

H&M: O senhor poderia falar do perfil dos outros presidentes?


Arno: Vicente Tapajós sucedeu a Lacombe em 1992. Em seu
discurso de posse chamou a atenção para o fato de ser o primeiro
presidente do Instituto formado num curso regular de História: o
da Universidade do Distrito Federal, na década de 30. Voltei ao
tema em meu discurso de posse dizendo sentir-me satisfeito em
ser o primeiro presidente egresso do sistema de pós-graduação.

Os presidentes anteriores eram basicamente formados em Direito


e com atividade relevante no serviço público e/ou na vida
política, como Américo Lacombe – que dirigiu por mais de meio
século a Casa de Rui Barbosa; Pedro Calmon – que foi reitor da
Universidade do Brasil por 18 anos e Ministro da Educação;
Macedo Soares, embaixador e chanceler; Afonso Celso, diretor
da Faculdade de Direito; o Barão do Rio Branco até o primeiro
presidente, o Visconde de São Leopoldo, que foi o homem da
geração da independência.

H&M: Há diversos trabalhos sobre a relação do Instituto com o


Estado Imperial. Entretanto não são muitos os textos que
analisam a sua produção após a proclamação da república. O
IHGB teria perdido espaço para a ABL nos primeiros anos da
república, no que se refere à discussão da questão nacional?
Arno: Não creio. Nos países em que existe tradição acadêmica é
comum a coexistência das Academias da Língua, da História, da
Ciência e outras. Elas têm objetivos distintos e, portanto, não há
motivo para concorrência. A idéia de se criar uma Academia de
Letras surgiu no IHGB.
Essa percepção parece-me que ocorre pela excepcional
visibilidade que o Instituto tinha sob o governo imperial, gozando
da proteção direta e empenho pessoal de D. Pedro II, que
frequentou nada menos que 506 sessões. Hoje seria possível um
Chefe de Estado fazer o mesmo em qualquer entidade?

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Passado o clima de agitação jacobina da 1ª década republicana, e


com a absorção dos conselheiros ao poder (Rodrigues Alves, Rio
Branco...), o IHGB voltou a ser um forum de discussões
significativas sobre o tema da questão nacional. Basta percorrer a
Revista e os Anais dos Congressos para verificar sua presença.

H&M: Houve alguma mudança na produção do IHGB após a


criação das Faculdades de Filosofia nas décadas de 30 e 40?
Arno: Até a década de 20, os institutos brasileiros tiveram uma
produção razoavelmente atualizada em termos da ciência da
época. Euclides da Cunha, Sílvio Romero e Capistrano de Abreu
foram sócios, mas o volume de produção era da matriz
varnahgeniana e não da cientificista. Isso só se torna mais patente
depois da década de 30, quando houve um grande impulso das
ciências sociais em torno de Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto
Freyre, Nelson Werneck Sodré, Caio Prado e Roberto Simonsen.
Mesmo tendo Sérgio Buarque e Gilberto Freyre como sócios,
não houve alteração do perfil da Instituição, que ficou defasada
apesar de algumas mudanças pontuais. A partir de então, o IHGB
e a maioria dos institutos estaduais permaneceram com sua
produção na velha tradição varnhageniana (produção sobretudo
baseada na memória e com preocupação metodológica
característica da história política) até a década de 70, e por isso
foram muito criticados como superados, obsoletos, reacionários,
etc. Esse hiato tem sido superado pelo ingresso de pesquisadores
oriundos dos programas de pós-graduação ou com uma formação
equivalente. O nosso desafio hoje é alterar o perfil da Instituição
mantendo um compromisso com a tradição. Não podemos
renegar 160 anos de tradição.

H&M: Ao longo de sua existência o Instituto parece ter ficado na


tensão entre a produção da história e a preservação da memória.
Houve algum projeto que definisse esta questão? E atualmente,
há algum?
Arno: O Instituto passou por várias fases em 160 anos de
história, o que tem sido estudado em teses de doutoramento e
outros trabalhos. Uma de suas principais características é o fato
de ter dupla finalidade - algumas vezes conflitantes - com a
memória e com a história. O Instituto foi fundado em 1838
dentro de um esforço de afirmação da unidade nacional por parte
de uma elite conservadora ligada ao Partido Regressista. Deveria
construir uma identidade a partir da construção de um panteão
nacional, de heróis. Isto dentro do ideário do romantismo e do
historicismo. Além disso, desde o início há uma preocupação
com a elaboração de um trabalho científico de historiadores,
geógrafos, etc. Ao longo de sua vida o IHGB tem oscilado entre
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essas duas fidelidades, e em alguns casos tentado compatibilizá-


las. Essa ambiguidade caracteriza o movimento academicista do
qual o Instituto faz parte. Esta dupla fidelidade está presente
também em outras academias, como a de Portugal, da Espanha,
do México, Argentina. Para atender a essa dupla finalidade, a
própria organização corporativa não pode ser exclusivista, seja
em termos profissionais ou em pensamento. Ele deve ser um
termômetro das tendências intelectuais das áreas a que ele serve:
História, Geografia e Ciências Sociais.

H&M: O senhor poderia nos apresentar o Instituto de um modo


geral: quais são os seus financiamentos, o seu acervo, suas
publica-ções, etc.
Arno: Institucional-mente o IHGB desde o século passado viveu
de subsídios públicos. Na década de 70, Pedro Calmon
conseguiu com o governo a construção desse prédio (o terreno já
havia sido doado na gestão de Macedo Soares) no qual ocupa
cinco andares (alugando os oito restantes). Atualmente, recebe
um subsídio muito pequeno do Ministério da Cultura; nossa
verba principal vem dos aluguéis, e com o esvaziamento do
centro da cidade estamos sendo afetados. Há um andar
desocupado há bastante tempo. Agora estamos tentando outras
formas de receber apoio, já que em cada mudança de orçamento
a verba oficial vai sendo cortada. Considerando os ventos neo-
liberais, em que nós e outras entidades temos sido bastante
penalizados, estamos mudando nossa orientação pois o estado
está querendo sair o máximo possível dos seus compromissos
diretos. Uma alternativa que estamos buscando é a de trabalhar
com projetos. Temos um convênio com a UERJ, que paga
estagiários para trabalhar em nosso arquivo. Quero acrescentar
que o IHGB tem um papel de utilidade pública não só legal, mas
substancialmente: atendemos permanentemente pesquisadores da
pós e do exterior, e para isso precisamos manter um quadro de
25 funcionários, entre outros encargos.

Quanto ao acervo ele é muito rico. Eu diria que temos dois


acervos: um no sentido tradicional da expressão, que é o que
temos na biblioteca e no arquivo. Nesse arquivo há coisas
preciosas, como por exemplo, os livros de orações dos malês da
revolta na Bahia, em 1835; um copiador de documentação do
Conselho Ultramarino; e muitos outros documentos importantes.
A Biblioteca, além de ser uma brasiliana completa, também tem
muitas obras raras: a coleção de Martius; a 1ª edição dos
Lusíadas que pertenceu ao Imperador Pedro II, autografada por
Camões. E a diretora de nosso museu, Vera Tostes - que
também dirige o Museu Histórico Nacional -, tem um grande

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plano: transformar todo o Instituto num museu de acordo com


procedimentos museológicos mais modernos. Muita gente pensa
que o museu é um museu imperial. Há muitas peças deste
período, mas o acervo é bem mais diversificado. A começar pelo
crânio do Homem da Lagoa Santa, uma peça pré-histórica. Uma
outra parte do nosso patrimônio.

Esta é uma iniciativa de alunos do Instituto de Filosofia e Ciências


Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e este é
um espaço público onde todas as colaborações políticas, acadêmicas e artísticas são
bem vindas.

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