Você está na página 1de 41
PEDRO GALVAO ORGANIZACAO S Ly S Y) e a ae UMA INTRODUCGAO POR DISCIPLINAS LOGICA RICARDO SANTOS. METAFISICA DESIDERIO MURCHO. EPISTEMOLOGIA CELIA TEIXEIRA ETICA PEDRO GALVAO FILOSOFIA POLITICA JOAO CARDOSO ROSAS, MATHIAS THALER E INIGO GONZALEZ FILOSOFIA DA RELIGIAO AGNALDO CUOCO PORTUGAL FILOSOFIA DA CIENCIA ANTONIO ZILHAO FILOSOFIA DA LINGUAGEM TERESA MARQUES E MANUEL GARCIA-CARPINTERO. FILOSOFIA DA MENTE SARA BIZARRO FILOSOFIA DA ACGAO. SUSANA CADILHA E SOFIA MIGUENS ESTETICA E FILOSOFIA DA ARTE AIRES ALMEIDA Titulo original: Filosofia, Uma Introdugio por Diseiplinas Preficio: © Pedro Galvdo Edig6es 70, 2012 Légica: © Ricardo Santos e Edigées 70, 2012 ‘Merafisica: © Desidério Murcho e Edigoes 70, 2012 Epistemologia: © Célia Teixeira e Edigdes 70, 2012 Etica: © Pedro Galvao e Edigdes 70, 2012 Filosofia Politica: © Joao Cardoso Rosas, Mathias Thaler, Iftigo Gonzalez e Edigdes 70, 2012 Filosofia da Religito: © Agnaldo Cuoco Portugal e Edigoes 70, 2012 Filosofia da Ciencia: © Antonio Zilhto e Edigdes 70, 2012. Filosofia da Linguagem: © Teresa Marques, Manuel Garcia-Carpintero ¢ Edigdes 70, 2012 Filosofia da Mente: © Sara Bizarro e Bdigdes 70, 2012 Filosofia da Accéo: © Susana Cadilha, Sofla Miguens e Edig6es 70, 2012 Estética e Filosofia da Arte: © Aires Almeida e EdigSes 70, 2012 Capa: FBA Depdsito Legal n® 348242/12 Biblioteca Nacional de Portugal ~ Cataloga¢ao na Publicarso FILOSOFIA Filosofia : uma introduedo por discipinas / Pedro Galo... [ot al. - (Exita-colecgo) ISBN 078-972-84-17066 1 GALVAO, Pedro cou 101 Paginagio: MA Impressio ¢ acabamento: PENTAEDRO, LDA. "para EDIGOES 70, LDA. Setembro de 2012 Direitos reservados para todos os paises de lingua portuguesa por Edigves 70 EDIGOES 70, Lda. Rua Luciano Cordeiro, 123 ~ I? Esq! 1069-157 Lisboa / Portugal “Telefs.: 213190240 — Fax: 213190249 e-mail: geral@edicoes70 pt www.edicoes70.pt Esta obra esté protegida pela lei. Nao pode ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que seja.o modo utilizado, incluindo fotocépia e xerocdpia, sem prévia autorizagio do Editor. ‘Qualquer transgressio & lei dos Dircitos de Autor seré passivel de procedimento judicial. Filosofia Politica JOAQ CARDOSO ROSAS, MATHIAS THALER eINIGO GONZALEZ Teorias da justica A teorizacio da justiga €, provavelmente, a vertente mais visivel ¢ prolifica da sofia Politica contemporanea. Isso deve-se ao influxo da obra publicada por Rawls, em 1971, com o titulo Uma Teoria da Justica. Ai a ideia de justica surge 0 «a virtude primeira das instituigdes sociais» (Rawls, 1971: 27). A fustica € 0 do moral que permite ajuizar se as instituigdes de enquadramento de uma iedade estao ou nao bem ordenadas. Isso implica que, na concepgao de justiga, jam subsumidas ideias de liberdade, igualdade e distribuigao da riqueza e que ideias, para além de devidamente justificadas, sejam também examinadas to as suas consequéncias institucionais e aos beneficios e encargos que delas rem para os cidadaos. Muitos pensadores contemporineos partiram da teorizagao de Rawls para, con do a usar a linguagem da justica ¢ dos direitos e deveres que as instituigdes implicam para cada individuo, aprimorarem a formulacao rawlsiana da pro- concepcao de justica social, corrigindo aspectos menos conseguidos na formu- ao de Rawls (e.g. Dworkin, 2000; Sen, 2009). Outros procuraram alargar a ideia * Este é um texto escrito a tés maos ¢ em trés linguas diferentes, Por isso o produto final teve a inter- # decisiva de uma quarta mfo, a de Alexandra Abranches, que traduziu e unificou a prosa. Os quatro =ntes no texto, embora filiados em diferentes institulgOes, sto todos membros do Grupo de Teoria ica da Universidade do Minho. 176 FILOSOFIA UMA INTRODUGAO POR DISCIPLINAS de justica a elementos nao incorporados na viséo rawlsiana, como a multiculturali- dade das sociedades em que vivemos (Kymilicka, 1989) ou a injustiga e a pobreza a nivel global (Beitz, 1979; Pogge, 1989, 2002). Outros ainda romperam com a for- mulagao de Rawls, ao criticarem a distribuigdo de oportunidades e riqueza (Nozick, 1974), owa visdo anti-perfeccionista das liberdades basicas (Sandel, 1980), ou ainda a0 articularem uma teoria alternativa de cariz comunitarista (Walzer, 1983). Ha também quem se tenha posicionado de uma forma radicalmente critica diante do «paradigma distributivo» rawlsiano, abrindo o caminho para uma Filosofia Politica mais atenta aos fenémenos da dominacio e da opressao (Young, 1990). Nesta primeira secgao do capitulo dedicado a Filosofia Politica, comegaremos Por uma breve anilise de conceitos centrais da formulacao da justica de Rawls ¢ de alguns dos seus criticos internos. Seguidamente, exporemos a critica de Nozick, baseada na ideia de «propriedade de si mesmo». Depois, confrontaremos estas perspectivas liberais com as criticas comunitaristas, nomeadamente de Sandel Walzer. Referir-nos-emos também 8 critica radical de Iris Young ao paradigma distributivo. Para terminar, abordaremos as tentativas mais recentes de estender © pensamento contemporaneo sobre a justica da ordem doméstica dos Estados, onde ele comegou por ser elaborado, ao plano da sociedade global. 1.1. A justiga como equidade Rawls chama a sua concepgao «justica como equidade» (justice as fairness) na medida em que ela é escolhida, face a algumas alternativas possiveis, como vere- mos, a partir de uma situago inicial que é, ela prépria, equitativa (fair). A ideia geral é a de descrever uma situacao de escolha na qual as regras que presidem & eleigio da concepgao de justiga nao favorecem especialmente nenhum individuo na sociedade em relagao a qualquer outro e so, por isso, equitativas. A situagio mais favorecida para esta escotha é, segundo Rawls, a «posi¢do original». Vejamos 0 que a caracteriza. Trata-se de uma derivagio da ideia cléssica de contrato social. No entanto, a posigéo original rawlsiana é puramente contrafactual - ao contrério do que acon- tece muitas vezes com a descrigao do estado de natureza no contratualismo clissico ~ ea escolha af adoptada inscreve-se no plano hipotético - nao se trata de um acordo implicito na sociedade, como geralmente acontecia na tradicao contratua- lista. Note-se ainda que Rawls, de novo em contraste com o contratualismo classico, no esté apenas preocupado com a questao da justificagao da autoridade politica, mas também ¢ sobretudo com a definiggo da uma concepcfo alargada de justica (abarcando também aspectos sociais e econémicos).. A posigio original é um dispositiyo de representagao. Nela podemos colocar «partes» iguais, representantes de todos e cada um dos cidad4os em cada comuni- FILOSOFTA POLITICA JOAO CARDOSO ROSAS, MATHIAS THALER & INIGO GONZALEZ dade politica. Para que a sua decisio seja certa e infalivel, essas partes sio dotadas de racionalidade instrumental ¢ sio mutuamente desinteressadas. No entanto, para garantir a imparcialidade da sua escolha, elas sio colocadas debaixo de um espesso véu de ignorancia, que nao permite que conhegam os individuos que representam, © seu status, as suas preferéncias pessoais, etc. Na posigao original, as partes tem acesso apenas a conhecimentos genéricos necessdrios para a decisio a tomar. Nomeadamente: as sociedades vivem num contexto marcado pela escassez € pela pluralidade dos objectivos individuais, todos os individuos necessitam de certos «bens sociais primérios» (liberdades, oportunidades, rendimentos, respeito pro- prio), etc. Com a posigio original assim caracterizada, as partes sio confrontadas com uma lista de alternativas a escolher. Na sua versao mais simplificada, sem ter ainda em consideragio alternativas mistas, ou combinatérias de alternativas, pode limi- tar-sea escolha a um menu tradicional no pensamento ético-politico. Por um lado, uma concepgao deontolégica da justica, da qual falaremos jé de seguida. Por outro, concepgées de cariz teleolégico, como o perfeccionismo (aristotélico, nietzsche- niano, etc.) ¢, sobretudo, o utilitarismo (de Bentham aos contemporaneos, pas- sando por Sidgwick). Rawls justifica longamente a concep¢ao da justiga que considera mais apta a medir-se com as concepgées perfeccionistas ou utilitaristas. Ao apresentar a melhor concepgio de justiga ele esté sobretudo preocupado em afastar & partida ‘o«sistema de liberdade natural» (a expresso é de Adam Smith), ic., a situagéo na qual se protegeria apenas as liberdades basicas, retirando da esfera da justica a construgao da igualdade de oportunidades e a distribuigao da riqueza, favorecendo assim as instituigoes de um Estado protector das liberdades mas, para além disso, apenas apostado cm assegurar a abertura das carrciras ao mérito ¢ a eficiéncia dos mercados em termos paretianos (fazendo com que alguém fique melhor sem que ‘ninguém que pior). Contra esta ideia de sistema de liberdade natural, Rawls advoga ‘aquiloa que chama «igualdade democritica» que, para além da proteccao das liber- -dades, requer instituicées estatais que estabelecam uma igualdade de oportunida- ‘des substantiva — no meramente formal — ¢ uma distribuigio do rendimento e da queza de acordo com aquilo que designa por «principio da diferenga». Assim, a oncepgio rawlsiana da justiga pode ler-si Primeiro Cada pessoa deve ter um direito igual a0 mais extenso sistema de liberda- des bésicas que seja compativel com um sistema de liberdades idéntico para as outras. (Rawls, 1971: 68) Segundo As desigualdades econémicas ¢ sociais devem satisfazer duas condig6es: em primeiro lugar, sera consequéncia do exercicio de cargos ¢ fungdes abertos 178 FILOSOFIA UMA INTRODUCAO POR DISCIPLINAS a todos em circunstancias de igualdade equitativa de oportunidades; e, em segundo lugar, ser para o maior beneficio dos membros menos favorecidos da sociedade (o principio da diferenga). (Rawls, 2001: 42-3) Se o principio das liberdades nao parece oferecer problemas de maior e pode ser apoiado pelos libertaristas, o mesmo nao acontece com o segundo principio. O argumento central de Rawls para o adoptar, rejeitando o sistema de liberdade natural, consiste em estabelecer a existéncia de uma lotaria social e natural que distribui as condic6es sociais do nascimento € 0s talentos naturais de cada um de forma aleatéria, Ora, se essa distribuicao inicial é extremamente desigual e os indi- viduos nao sao por ela moralmente responsiveis, nio faz sentido nao a corrigir. Dai ser necessario promover uma igualdade substantiva de oportunidades, para com- pensar os nascidos em situacio socialmente desfavorecida, mas também aplicar 0 principio da diferenca, de modo a compensar os menos talentosos, ainda que estes beneficiem de uma verdadeira igualdade de oportunidades. As partes na posi¢éo original, portanto, tem de escolher entre esta concepcao e os principios teleolégicos acima referidos. Como a posigio original é uma situa- G0 de incerteza - devido ao barramento da informagio através do véu de ignoran- cia — Rawls considera adequado que os principios a escolher para o ordenamento da sociedade - de justiga, perfeicao ou utilidade — sejam aqueles que todas as par- tes representantes possam aceitar, ainda que a situagio que os seus representados ocupem na sociedade, em termos de acesso a bens sociais primarios, seja a menos favorecida, ou seja, ainda que a posigio social daqueles que as partes representam seja escolhida pelo seu pior inimigo. Ora, tal estratégia — que se afigura, efectiva- mente, racional — equivale a adopcao de uma regra deciséria maximin, visando a maximizagio do minimo de bens sociais primarios que cada um pode obter. Uma vez adoptada a regra maximin, torna-se dbvio que a concepgao da justiga acima explicitada é superior, do ponto de vista da posigao original, as concepgoes de tipo teleolégico. O principio de utilidade visa a maximizagio da utilidade total ou média, nao tendo em atencio a forma da sua distribuic¢do e menos ainda a maxi- mizagio do minimo que cada um pode obter. Pelo contririo, os principios da jus- tiga atribuem a cada individuo um minimo muito elevado de bens sociais primarios, incluindo oportunidades e riqueza. Esse minimo nao € negocidvel em fungao de um qualquer acréscimo de utilidade social. Um principio de perfeigdo, por seu turno, conduz a que os individuos dotados de determinadas qualidades ou virtudes sejam beneficiados na distribuigdo de bens sociais primarios. Mais uma vez, nao € aqui possivel a maximizacio do minimo que cada um pode obter e que deve ser independente das concepgées da vida boa de cada individuo (as concepgdes do bem de cada um no sio do conhecimento das partes na posigao original). Um principio de perfeigao apenas maximizaria o indice de bens sociais primarios de alguns e nao da generalidade dos individuos que as partes representam. FILOSOFIA POLITICA JOAO CARDOSO ROSAS, MATHIAS THALER 5 INIGO GONZALEZ Uma vez elaborados os princfpios da justiga como equidade e justificada a sua escolha face a alternativas de caracter teleolégico, Rawls enfatiza a necessidade de aplic4-los, nos nossos juizos de justica, aquilo que designa por «estrutura basica da sociedade». Esta é formada pelas principais instituigdes politicas, econémicas sociais e pelo modo como elas, no seu funcionamento conjunto, distribuem bene- ficios ¢ encargos pelos membros da sociedade. Essas instituicGes incluem a Cons- tituigao que estabelece o elenco de liberdades bisicas ¢ as regras do processo poli- tico, mas também os principais arranjos econémicos ¢ sociais (relativos & propriedade, fiscalidade, educacdo, seguranca social, etc.) e 0 modo como eles s40 fixados no sistema legal, Para ser considerada justa, portanto, uma Constituicdo terd de verificar o principio das liberdades e uma legislagao justa tera de operacio- nalizar o segundo princfpio da justiga, garantindo a igualdade de oportunidades em sentido equitativo e a distribuicao do rendimento ¢ da riqueza de acordo com © principio da diferenga. Note-se, portanto, que a justiga é procedimental no sen- tido em que se aplica a sistemas de regras da estrutura basica e nao directamente a casos concretos. Presume-se que, uma vez em presenca de uma estrutura bisica justa, os casos concretos possam ter um tratamento justo. Alguns autores rawlsianos mas criticos de Rawls, comegando por Dworkin, cedo manifestaram a sua insatisfagao face a uma conceptualizagao da justiga que procura corrigir a lotaria social e natural, mas néo dando suficiente atencao as "sariagdes do esforco individual e aos factores de pura mé sorte natural (como o aso de uma deficiéncia fisica muito incapacitante, por exemplo). As yersoes das Jastiga que procuram cortigir estes defeitos aparentes na formulagéo rawlsiana ignam-se por luck egalitarianism (“igualitarismo da sorte”). Este consiste pois tentativa de, aceitando embora o essencial da concepeao rawlsiana, torné-la mais ivel a premiar aqueles que mais se esforcam e a compensar especialmente ~ #0 apenas através do principio da diferenca ~ os que so afectados por factores pura mé sorte. Uma das contribuigdes mais importante do pés-rawlsianismo pode ser encon- na obra de Amartya Sen. De acordo com uma visto desenvolvida ao longo de itos anos ¢ sistematizada num livro recente (Sen, 2009), este autor pretende tituir a métrica da justica de Rawls ~ os bens sociais primérios -pela ideia de pabilidades». Ou seja, a justica ndo consistiria numa distribuigio equitativa dos primdrios através da estrutura basica, mas antes na promocio das capabilida- ou poderes que os individuos efectivamente tém para as suas realizacées indi- is e colectivas. Mais ainda, o contetido da justica no deveria ser decidido de vez por todas a partir da perspectiva da posicao original, mas antes em termos Priticos e variaveis, de acordo com o que as circunstancias podem sugeri a promocao das capabilidades humanas. Em vez do institucionalismo trans- tal de Rawls, Sen propde uma perspectiva centrada nas realizagoes priticas las pelo desenvolvimento das capabilidades. 179 180 EILOSOEIA UMA INTRODUGAO POR DISCIPLINAS Una outra vertente interessante e exemplificativa da vastissima literatura filo- s6fica a que Rawls deu origem é a da reflexdo sobre o multiculturalismo. Essa reflexao esta ausente do pensamento de Rawls. Mas Will Kymlicka (v. em esp. Kymlicka, 1995) ¢ outros autores rawlsianos partem dessa auséncia para a colmatar de uma forma que continua a ser claramente rawlsiana, permitindo embora uma ponte com as teorias do reconhecimento de que trataremos mais adiante. Assim, Kymlicka considera que a socializagao dos individuos em culturas societais mino- ritérias tem consequéncias anti-igualitarias para esses individuos face aos membros das culturas maioritarias ao nivel do exercicio efectivo das suas liberdades basicas. A cultura ~ que deve ser considerada um bem social primario~ tem um valor dife- rente para os membros das maiorias e para aqueles que esto ligados as minorias. Por isso a protecgdo das culturas societais minoritdrias, através da concessio de direitos especiais para os seus membros - direitos de auto-governo para as nagdes minoritarias, direitos poliétnicos para os grupos de imigrantes ~ é essencial para que as liberdades consagradas no primeiro principio da justiga possam ser realiza- das por todos de forma igual. O pensamento de Rawls deu origem a imtimeras correcgSes (como as do luck egalitarianism), prolongamentos (e.g. Sen) e tentativas de complementaridade (como em Kymlicka). Mas fez também surgir, através de oposigdes mais marcadas, outros paradigmas na teorizagio da justica. E 0 caso do libertarismo de Nozick. 1.2. Propriedade de simesmo Se, na teoria rawlsiana, os direitos (¢ deveres) dos cidadaos de uma sociedade bem ordenada decorrem da justia — através da estrutura basica -, na teorizagao de Nozick os direitos individuais so, por assim dizer, constitutivos. A justica decorre desses direitos e do seu respeito absoluto, como veremos jé de seguida. A intuigao central de Nozick é a renovacio da ideia lockeana de «propriedade de si mesmo». Cada individuo é proprictatio do seu corpo ¢ da sua vida, mas tam- bém da liberdade para a usar e dos haveres materiais que, no uso dessa liberdade, possa acumular. A auto-propriedade, portanto, define-se por direitos individuais a0 proprio corpo, liberdade e posses. Esses direitos estabelecem restrigoes abso- Tutas aquilo que os outros e 0 Estado nos podem fazer. A justiga em termos sociais e econémicos é aquela que diz respeito as posses ou haveres dos individuos. Segundo Nozick, a justiga nesse sentido implica que os individuos tém direito ao que adquireme que inicialmente no pertengaaninguém (um pedaco de terra, uma jazida de petréleo, uma patente farmacéutica por eles descoberta, etc.). Também tém direito 20 que lhes é transferido voluntariamente ao longo do tempo (por contratos de compra e venda, doagdes, herancas) Se alguém possui algo que nao resulte de aplicacdes repetidas destes principios da FILOSOFIA POLITIGA JOAO CARDOSO ROSAS, MATHIAS THALER BINGO GONZALEZ 181 justica na aquisicao e da justica nas transferéncias, entdo uma rectificagao deve ser introduzida (os tribunais fazem isso). De outra forma, aquilo que os individuos detém possuem-no a justo titulo. Note-se que os haveres de cada um resultam da liberdade de adquirir e trans- ferir. Mas, tal como Locke dizia que esses haveres s6 seriam legitimos se fosse deixado o mesmo e igualmente bom para os outros, Nozick considera que a nossa aquisicao de algo (e também as transferéncias) nao devem deixar ninguém pior do que estaria se essa aquisi¢ao (ou transferéncia) nao ocorresse. Mas isso significa que, se nao prejudicarmos directamente 0s outros, podemos adquirir e transferir, ou nao transferir, tudo o que desejarmos, como uma propriedade imobiliaria, um pogo de petréleo, ou a férmula para produzir um medicamente contra 0 cancro. Ora, aquilo a que geralmente chamamos justiga social e econémica — e que pode ser exemplificado, numa versio sofisticada, pelo pensamento de Rawls — implica que o Estado intervenha nas aquisigdes e transferéncias dos individuos através de impostos com intuito redistributivo (por exemplo, para criar igualdade de oportunidades, ou para cobrir riscos sociais que levam os individuos & pobreza). Aquilo que decorre da visio nozickiana ¢ a ilegitimidade desse tipo de interferén- cia. Nozick é especialmente critico das teorias que visam um qualquer resultado final redistributive (0 princtpio de utilidade, 0 principio da diferenga de Rawls), mas também das teorias tradicionais da justia que diziam «a cada um segundo...» ‘© mérito, ou a contribuicao para a sociedade, ou qualquer outra coisa. Estas teorias padronizadas visam também uma certa estrutura distributiva e como, tal, levam 4 interferéncia constante do Estado nos haveres dos individuos, o que, para Nozick, é também uma interferéncia na sua liberdade e uma violagao do quesito central da auto-propriedade. Assim, nao podendo ter fungées redistributivas (sem violar os direitos dos individuos), o Estado deverd ter apenas uma fungi protectora da auto-proprie- dade. O Estado deve proteger a vida ¢ a liberdade dos individuos, assim como vigiar cumprimento dos contratos entre eles. Para isso sfo certamente necessérias as ituigdes do Estado minimo (tribunais, prisdes, policias), mas nao mais do que 10. Quaisquer outras instituigdes estatais, implicando formas de redistribuicio rciva pela via fiscal, s4o contrarias aos direitos individuais e, como tal, injustas. Nozick nao deixa de considerar a possibilidade de uma anarquia, entendida (0 auséncia de Estado, poder proteger melhor os direitos individuais do que o éprio Estado minimo. Mas conclui que, sem esse tipo de Estado, mantém-se a abilidade existente no estado de natureza lockeano e decorrente da impossi idade de resolver satisfatoriamente os conflitos entre os individuos. Nozick nao pois um anarco-capitalista, mas antes um defensor do Estado minimo, a partir de -missas morais. A ideia de auto-propriedade e a concepsao de justiga que daf decorre nao cou de ser revisitada por diversas vezes na Filosofia Politica contemporanea, FILOSOFIA UMA INTRODUGAO POR DISCIPLINAS no apenas por libertérios de tipo nozickiano, favorecedores da desigualdade social e econémica, mas também pelos «libertaristas de esquerda». Estes tendem a alar- gar em muito a restri¢ao lockeana que Nozick limitava 4 ideia de nao prejudicar os outros, ou de nao os deixar pior do que estavam & partida, Os libertaristas de esquerda parecem estar mais proximos da ideia original de Locke de que o mundo Apartida é de todos ¢ que, como tal, aqueles que tém mais posses ou haveres, ainda que os tenham adquirido no uso da sua liberdade, devem uma compensagao aos que ficaram privados deles. A propriedade da terra ¢ os restantes recursos naturais nGo so, como sabemos hoje, inesgotiveis. Por isso aqueles que os possuem so moralmente obrigados a pagar uma renda aos que nao posstiem, 0 que gera uma multiplicidade de efeitos distributivos. Dai estes libertaristas, pelo seu pendor igualitério, serem chamados «de esquerda». Mas este uso politico da linguagem no nos deve enganar. A teorizagio da justiga dos libertaristas de esquerda, em particular em autores como Vallentyne ou Otsuka, é intelectualmente muito sofis- ticada e insere-se num registo mais filos6fico do que politico (no sentido comum desta palavra). Com os libertaristas de esquerda, o pensamento de matriz nozi- ckiana parece voltar a aproximar-se do pensamento de Rawls, em termos substan- tivos, mas por razGes radicalmente diferentes ¢ baseadas na concepedo hiper-indi vidualista da propriedade de si mesmo. 1.3. Individualistas versus comunitaristas Uma boa parte da teorizagio contemporanea da justiga pode ser descrita como um debate entre individualistas e comunitaristas. Os individualistas incluem liber- taristas como Nozick ¢ 9s libertaristas de esquerda, mas também os liberais igua- litarios como Rawls, Dworkin ou Sen e até, num sentido mais vago, os utilitaristas que estes outros individualistas tanto criticam. Oindividualismo, ou mesmo atomismo, da concepgio libertarista esta fora de duvida. Os libertaristas advogam aquilo que noutro contexto foi designado como «individualismo possessivo» (a expressao aplicada por C. B. Macpherson a autores como Hobbes e Locke). O individuo auto-proprietdrio, que ninguém pode (legi- timamente) possuir ou instrumentalizar para fins externos ao prdprio individuo, cuja liberdade consiste na inexisténcia de limites externos e coercivos & sua acco, cujos bens sao vistos como uma decorréncia dessa liberdade, tudo isto constitui o fundamento moral basico destes autores. A ideia de que a sociedade como um todo, ou a cooperagao social, ou os lagos de solidariedade comunitéria, possam desem- penhar um papel restritivo do absoluto respeito pelos direitos individuais é algo que esté fora do horizonte libertarista. O liberalismo igualitario ¢ também individualista, embora num sentido mais qualificado. Pense-se no caso de Rawls. sujeito dos direitos (e deveres) que FILOSOFIA POLITICA JOAO CARDOSO ROSAS, MATHIAS THALER F INIGO GON: decorrem da justiga é a pessoa politica do cidadao individual. A prioridade da igualdade da liberdade na teoria da justia como equidade protege o individuo assim entendido, nao permitindo que as suas liberdades basicas sejam sacrificadas em nome de outros principios distributivos, ou da maximizagao do bem-estar agre- gado. Estamos portanto na presenca de um individualismo, mas de forma alguma do individualismo possessivo dos libertaristas. O individuo rawlsiano, ao ser nfo apenas racional mas também razoavel, esta aberto a cooperagao com os outros ¢ pode aceitar, nomeadamente, o aspecto solidarista do segundo principio da justiga, incluindo a ideia de que se deve partilhar com os outros as eventuais vantagens decorrentes da lotaria social e natural. Por fim, o utilitarismo, alvo de critica cerrada pelas teorias da justiga contem- poraneas, nao deixa de ser também individualista no sentido em que é 0 individuo que constitui o sujeito da utilidade e que, como jé dizia Bentham, cada um vale um ninguém vale mais do que um. No entanto, de uma forma ainda mais evidente do que no liberalismo igualitario, este individualismo de base é mitigado pelo facto de o utilitarismo estar preocupado apenas com a agregacao do bem-estar (em ter- mos totais ou médios, isso nao importa aqui) e néo com o modo como esse bem- -estar é distribuido pelos individuos. Tendo em conta estas diferenciagGes, ou gradagbes, que vio desde o individu- alismo extremo dos libertaristas ao individualismo mitigado de liberais igualitarios ©, fortiori, utilitaristas, pode dizer-se que 0 comunitarismo contemporaneo pro- ‘cura apresentar uma visao radicalmente diferente da dos individualismos. O comu- nitarismo tende a considerar que 0 individuo é constituido pela comunidade, em termos psicoldgicos e sociolégicos. Existe um primado desta em relagao aquele ou, se se quiser, alguma forma de holismo social, quer se traduza ou nao num holismo de caracter metafisico. Michael Sandel, que hoje se designa como perfeccionista e j4n3o como comu- nitarista, foi provavelmente o autor mais marcante na critica ao individualismo liberal, ainda que tenha assentado baterias sobretudo em Rawls. Este é um bom caso para a critica comunitarista porque, como Sandel nao deixa de notar, 0 segundo principio da justiga - especialmente o principio da diferenga ~, ao cor- tigir a lotaria natural e social, opera numa légica comunitarista. Por outras palavras: ‘0s talentos naturais dos individuos e as contingéncias sociais que os favorecem sio, por assim dizer, colocados em comum. O problema em Rawls nao esta, portanto, ‘no contetido deste segundo principio, mas na absoluta prioridade das liberdades. individuais e no modo anti-perfeccionsita como elas sao lidas pelo proprio Rawls. Vejamos. Na concepgio rawlsiana, o principio das liberdades ¢ lexicalmente prioritario ‘© protege a capacidade de cada um para escolher e perseguir a sua propria concep- a0 do bem, desde que compativel com a justiga. As partes na posigao original nao nhecem as concepgoes particulares do bem das pessoas que representam ¢, por FILOSOFIA UMA INTRODUGAO POR DISCIPLINAS, isso, nunca poderiam adoptar um principio perfeccionista (de tipo aristotélico, nietzcheniano, ou outro qualquer) que levasse a uma ordenagio da estrutura basica intencionalmente favoravel a determinadas concepgées do bem e desfavoravel a outras. A visio rawlsiana das liberdades é pois anti-perfeccionista em fungao da sua propria estrutura argumentativa € no porque esteja assente numa qualquer concepgao antropoldgica particular. Para Sandel, no entanto, Rawls estar4 vinculado, malgré lui, a uma concepgio metafisica do homem que assenta numa visio desenraizada (wnemcumbered) do eu (self), a visio de um sujeito anterior e exterior as suas escolhas. Como alternativa, Sandel propde uma concepedo propriamente comunitarista do eu, enraizado no seu contexto social, com uma identidade que é descoberta a partir desse contexto eno escolhidaa partir de um ponto de vista exterior. Como acima sugerimos, esta antropologia alternativa 4 rawlsiana no tem de levar a nenhuma alteracio do prin- cfpio da diferenga — que de alguma forma a pressupord - mas conduz a uma leitura perfeccionista das liberdades (que Sandel, alias, nao deixou de desenvolver em obras posteriores ¢ na segunda edicao do livro de 1982). O corolirio da critica de Sandel ¢ que caber4 ao Estado promover algumas concep¢des do bem em relagio a outras, violando o principio da neutralidade intencional, porque essas concepgies séo predominantes e porque contribuem para o bem comum de uma determinada sociedade. No entanto, Sandel nao chega a desenvolver uma teoria completa da justiga alternativa a rawlsiana (ou nozickiana). Esse feito coube a Michael Walzer. Este autor recusa a existéncia de uma métrica universal da justica — os bens sociais primirios, as posses materiais, ou qualquer outra — para afirmar o cardcter social, ou contextual, dos bens que uma concepgao da justica deve ter em consideracio, assim como dos préprios critérios da sua distribuigao. Desta forma, Walzer abre caminho na teorizacio da justia para um certo relativismo cultural, incompativel com qualquer universalismo abstracto (embora nao incompativel com um univer- salismo empirico e de reiteracao). Para Walzer, cada sociedade politica - no caso moderno, cada Estado - tem um conjunto de esferas de justiga que englobam os bens a distribuir as modali- dades de distribuicao. Assim, diferentes Estados valorizam de diferentes formas e distribuem segundo critérios proprios os bens da qualidade de membro, da provi- so social (daquilo que a sociedade considera dever prover a todos os seus mem- bros), dos cargos e empregos, da educagdo, do parentesco e do amor, da graca divina, do reconhecimento, etc. Entre as esferas da justi¢a sto particularmente importantes a do dinheiro e do mercado ea do poder politico. O poder politico sempre a esfera a partir da qual as restantes se podem alterar e recompor. Ei em grande parte o modo como distribuimos o poder politico (pelo controle democré- tico, por exemplo, em vez da hereditariedade) que determina a configuragao esfé- rica da sociedade. Mas, nas sociedades eapitalistas actuais, a esfera do dinheiro FILOSOFIA POLITICA JOAO CARDOSO ROSAS, MATHIAS THALER E INIGO GONZALEZ do mercado tende a ser especialmente relevante e mesmo predominante, alterando assim a autonomia relativa nao apenas do politico mas também de todas as restan- tes esferas. Walzer salienta a necessidade de aceitarmos diferentes critérios de justiga, correspondentes aos «entendimentos partilhados» em cada comunidade politica sobre os bens a distribuir e 0 modo da sua distribuicdo. No entanto, Walzer consi dera que existe injustica sempre que a autonomia de qualquer esfera, correspon- dente ao entendimento partilhado na sociedade, ¢ comprometida pelo predominio de outras esferas. B com certeza verdade que o dinheiro pode facilmente transfor- mar-se num bem predominante, tal como 0 préprio poder politico (num regime nao democritico). Mas também outras esferas tém essa tendéncia que as pode transformar em predominantes, gerando a injustica (e.g,, a graga divina, o paren- tesco). O grande problema associado ao predominio de um bem ou esfera sobre todos os outros est no facto de os detentores desse bem = seja ele o dinheiro, 0 poder, a graca divina ou qualquer outro ~ se transformarem eles préprios numa classe dominante, Desta forma, predominio esférico transforma-se em domina- io de uns homens sobre outros homens. Segundo Walzer, o ideal de qualquer sociedade consiste no evitamento do predominio da dominagio de uns sobre os outros, Ele chama a isso «igualdade omplexa», para a distinguir do ideal da igualdade simples. Autores como Rawls, lozick ou os utilitaristas esti apenas preocupados com a igualizacao de alguns Dens considerados fundamentais (os bens sociais primarios, as liberdades negati- , o bem-estar). Mas para Walzer, como dissemos acima, nao hé bens fundamen- is universais. A questo central da justiga nao consiste na distribuigo igualitéria alguns bens, mas antes na distribuicao correspondente aos entendimentos de sociedade sobre as suas esferas da justica. As grandes desigualdades surgem ando aparecem bens e classes predominantes. Se isso for evitado realiza-se omunitariamente o ideal da igualdade complexa, ainda que a distribuicao de Grios bens nao seja necessariamente igualitaria. Note-se, para finalizar, que o comunitarismo conseguiu captar aimaginagio de itos, nao sé no registo filoséfico, mas também numa esfera mais sociolégica e de ste politico corrente. Assim, ele péde ser apresentado como o regresso do espi- to de comunidade de que carecem muitas das sociedades actuais (Etzioni, 1993), # ainda como uma forma alternativa de sociedade, como aquela que existe no jente e em torno do que por vezes se designa por «valores asiaticos» (Bell, 2000). 14, Para além do paradigma distributivo Apesar de diferir radicalmente da teorizacao individualista ou mais liberal da tiga, 0 comunitarismo nao chega propriamente a romper com o «paradigma a FILOSOFIA UMA INTRODUGAO POR DISCIPLINAS, distributivo». Mesmo no caso de Walzer, as esferas da justiga sfo apresentadas como «distributivas», embora as «coisas» a distribuir sejam extremamente varidveis nem todas facilmente interpretadas 4 luz da ideia de distribuicio (e.g., o paren- tesco). A questio que se coloca consiste em saber se a distribuiggo de bens mate- riais e imateriais por parte do Estado é a forma mais adequada de pensar a justiga nas sociedades contemporaneas, ou se podemos encontrar uma alternativa mais satisfatoria. Iris Marion Young notabilizou-se pela tentativa tedrica de encontrar uma alter- nativa ao paradigma distributive (Young, 1990). Este seria mais adequado para pensar a justica relativa a bens materiais ~ como a riqueza ~ do que a bens imateriais ~ como as oportunidades, por exemplo. Para além disso, o paradigma distributivo centra-se apenas na alocagao de bens especificos por parte do Estado, ndo exami- nando suficientemente 0 contexto no qual esses regimes distributivos ocorrem e so justificados. Por isso é necessario passar a um paradigma que se centre no contexto social e institucional no qual se formam os padrées distributivos, incluindo aspectos politicos, econémicos ¢ simbélicos ou culturais. Partindo de intuigdes recolhidas, nomeadamente, na ética do discurso de Habermas, Young considera que as instituig6es justas sto aquelas que todos pos- sam aceitar numa situagao de ndo-coergao. Por isso o seu trabalho consiste larga- mente em desmontar as situag6es de coercao, nas quais prevalece a injustiga, como nos casos daquilo que designa por «opressio». A opressio impede o auto-desen- volvimento ¢ a prépria capacidade dos individuos para exprimirem os seus inte- resses, necessidades e sentimentos. As modalidades da opressio sio muitas, divi- didas em algumas categorias: exploragio econémica, marginalizacio, caréncia de poder, imperialismo cultural e violéncia. Os grupos oprimidos podem ser minorias étnicas, mas também as mulheres, os homossexuais, as pessoas idosas, os deficien- tes, et cetera, e sofrem de uma ou varias modalidades de opressao. A libertagio da opressio a construcao da justia através da politica e nao se opera pela supressao da diferenca dos grupos oprimidos face & maioria, mas antes pela afirmacio dessa diferenca e pela participagao desses grupos na vida publica. Apolitica da diferenga defendida por Young abre a possibilidade de um tratamento diferencial dos grupos oprimidos e estigmatizados, de modo a favorecera sua inclu- so (0 que remete para a segunda sec¢ao deste capitulo para o tema do «reco- nhecimento»). 15. Uma justica global? Serao as diferentes teorias contemporaneas da justica, nascidas numa reflexdo balizada pela existéncia de um mundo dividido em Estados independentes, sus- ceptiveis de ser adaptadas ao mundo globalizado? Esta é uma questdo que tem FILOSOFIA POLITICA JOAO CARDOSO ROSAS, MATHIAS THALER & INIGO GONZALEZ dominado a reflexao dos filsofos politicos nos anos mais recentes. As teorias igua- litarias, libertaristas e comunitaristas nao pareciam muito sensiveis a esta questo. De um ponto de vista comunitarista estrito, a justiga ¢ ¢ sera sempre local e nunca cosmopolita. Para os libertaristas, no podemos ultrapassar a existéncia e fungio dos Estados (minimos), embora no plano das transac¢Ges econémicas o interna- cionalismo nao seja rejeitado. Para um liberal-igualitério como Rawls, talvez sur- preendentemente, a justiga internacional nao pode ter o mesmo alcance e relevan- cia que tem a nivel doméstico, j4 que vivemos num mundo de Estados ¢ povos com culturas politicas diferentes e nem todas tém a mesma potencialidade para desen- volver uma concepgio tao exigente como a da «justiga como equidade» (Rawls, 1999), No entanto, a principal contribuigao para o tema da justica global veio preci- samente dos autores neo-rawlsianos que criticaram o anti-cosmopolitismo de Rawls, como Charles Beitz (Beitz, 1979 e 1999) e Thomas Pogge (Pogge, 2002). Este ultimo tem insistido na importancia de um «principio de suficiéncia» que considera injustas todas as desigualdades que nao estejam associadas 4 garantia da climinagao da pobreza em termos absolutos. Pogge tem também enfatizado os nossos deveres negativos face aos pobres globais, Com efeito, muitas das estruturas internacionais, politicas e financeiras, causam dano directo aos mais pobres 20 legalizarem, por exemplo, 0 acesso a empréstimos internacionais e a exploracio de recursos naturais por parte de governos néo democriticos ¢ cleptocraticos. O nosso dever em relago aos mais pobres é, antes de mais, o de nao lhes causar dano ¢ por isso temos a obrigagdo de fazer o possivel por mudar um sistema inter- nacional de regras que permite isso mesmo. Beitz, por sua vez, desde ha muito que vem sugerindo a aplicagao da posigao ‘original rawlsiana ao plano internacional, pensando a concepgao de justiga ai esco- thida como aplicavel também ao plano internacional. A ideia central é que, a este ‘nivel, existe também uma estrutura bdsica institucional que distribui beneficios e encargos pelos diferentes individuos em todo o mundo. Ora, 0 facto de alguém scer num determinado pais, por exemplo num pais especialmente pobre, é tio. itrério do ponto de vista moral como qualquer outro factor da lotaria social € 1. Por isso deve ser corrigido. Abre-se assim 0 caminho & aplicagio da justia litéria em termos internacionais e globais. Aestratégia deontolégica de autores como Beitz, Pogge e outros mais recentes , No entanto, confrontar-se com a visio igualmente cosmopolita mas baseada principio utilitarista de maximizagio do bem-estar agregado e nao numa teoria justica, como ha muito vem sido defendido por Peter Singer (e.g,, Singer, 1993). ta recordar a reflexao deste sobre as questdes da pobreza longinqua ¢ a neces- de de a contrariar até ao limite da utilidade marginal decrescente ou, pelo 108, até ao ponto em que nés préprios, cidadaos de sociedades mais afluentes, tenhamos de sacrificar o nosso modo de vida. 187 188 FILOSOFIA UMA INTRODUGAO POR DISCIPLINAS . Teorias do reconhecimento O conceito de «reconhecimento» recebeu uma consideravel atengio no dis- curso da Filosofia Politica dos ultimos vinte anos e, tal como acontece com qual- quer tendéncia teérica, ha razdes tanto internas como externas & academia que explicam a veeméncia com que este conceito emergiu. No que diz respeito as raz6es internas, é plausivel a hipdtese segundo a qual o conceito de «reconheci- mento» articula um descontentamento hegeliano com a teoria politica liberal de indole kantiana que John Rawls (1971) inaugurou e que se tornou dominante, Nao € por acaso que os dois defensores mais proeminentes do reconhecimento enquanto ideal normative dedicaram grande atencao ao gigante do idealismo ale- m4o (Taylor 1975; Honneth 2010). As raz6es externas prendem-se com o facto de que, no final do século xx, as democracias liberais se viram confrontadas com a diversidade cultural de uma forma urgente e nova (Thompson 2006). A questo aque a teoria politica tenta responder referindo-se ao conceito de reconhecimento €a seguinte: como devem as instituig6es politicas e juridicas das democracias libe- tais responder as pretensdes colocadas pelas minorias sexuais, religiosas, étnicas ¢ culturais? Este é, 0 mesmo tempo, um problema dificil para quem tem de tomar decisées praticas e um desafio filoséfico para os tedricos. Ainda que nao seja razoavel afirmar que tenha ja sido desenvolvida uma res- posta uniforme a esta questo, é possivel, hoje, delinear os contornos mais gerais do debate em torno do conceito de reconhecimento. Tendo isto em vista, dividimos a presente sec¢do nos seguintes segmentos: primeiro, discutimos a perspectiva de Charles Taylor sobre 0 reconhecimento e as suas implicag6es para o multicultura- lismo. Em segundo lugar, sumarizamos a contribuigio de Axel Honneth para 0 debate. O passo seguinte consiste num breve exame das duas objecgdes mais rele- vantes a0 ideal normativo do reconhecimento. Finalmente, fornecemos uma ante- visio da direccao que 0 conceito de reconhecimento podera estar a tomar. 2.1. Fundamentos normativos do reconhecimento O texto de Charles Taylor «A Politica do Reconhecimento» (Taylor 1994) pode ser considerado como o ponto de partida deste debate e, tendo em conta que desencadeou uma ampla discuss4o do conceito de reconhecimento, vale a pena revisité-lo. Neste texto seminal, Taylor introduz uma distingao entre dois signi cados possiveis do termo «teconhecimento», Por um lado, ele é usado para dar pesoa «politica da igual dignidade», quese funda naquilo que todos os seres huma- ‘os, qua seres humanos, partilham. O reconhecimento em virtude da igual digni- dade ¢, portanto, uma consequéneia da norma universal da autonomia, Hoje em dia hd muitos movimentos sociais que procuram promover esta «politica da igual FILOSOFIA POLITICA JOAO CARDOSO ROSAS, MATHIAS THALER & INIGO GONZALEZ dignidade». Basta pensar em ONGs internacionais como a Amnistia Internacional, que luta pelos direitos humanos em todo o mundo. O que une todos estes movi- mentos sociais ¢ 0 facto de recorrerem de forma sistematica 4 lei. Os activistas que promovem a igual dignidade de todas as pessoas apelam frequentemente a insti- tuigGes legais de forma a garantir a universalidade dos direitos humanos. Este significado de «reconhecimento» est em competigio com outra perspec- tiva que enfatiza aquilo a que Taylor chama a «politica da diferenga». Esta coloca ‘0 seu enfoque em grupos ¢ individuos na sua especificidade. A norma subjacente no é a autonomia mas antes a autenticidade — a natureza caracteristica deste grupo ou daquele individuo. O reconhecimento neste segundo sentido € 0 objectivo dos movimentos sociais que se organizam em torno de uma identidade particular. Taylor dé o exemplo do Québec, de onde é natural, ¢ onde os partidos politicos ¢ ‘os actores da sociedade civil tentam obter o reconhecimento do cardcter tinico da sua provincia instituindo, por exemplo, politicas da lingua que protegem o francés da extingo no Canada. E evidente que o reconhecimento no sentido de uma politica da diferenga é extremamente relevante para o multiculturalismo. Se os individuos ou os grupos serecem ser reconhecidos pela sua identidade especifica, ¢ n4o apenas por aquilo que partilham com todos os outros individuos ou grupos, entao temos & nossa disposigio um principio para orientar politicas tipicamente associadas ao multi ‘culturalismo, como 0s «direitos de grupo diferenciados», as excepgdes & lei geral- ente aplicavel com base em justificagGes religiosas, os direitos limitados de auto- overnacio, e algum tipo de soberania tribal (Levy 2000; Kymlicka 1995). Logo, (0 é excessivo sugerir que Charles Taylor é, de facto, um dos mais importantes éricos do multiculturalismo. Os argumentos filoséficos que podem ser mobilizados para a defesa de politi- multiculturais s40 varios, e parcialmente antagénicos, desde o igualitarismo ral neorawlsiano até ao pés-colonialismo (Song 2010; Kymlicka 1989; Ivison, ‘on, e Sanders 2000; Ivison 2002). O proprio Taylor recorre a uma variante da itica comunitarista do liberalismo para oferecer uma justificagao sdlida da poli- da diferenga. Aqui, é crucial verificar que todo o debate entre comunitarismo iberalismo se centra na questi do modo como 0 mundo social se organiza no nivel mais fundamental. A critica comunitarista rejeita a ontologia social sobre ual se erige a ética liberal, A ontologia social do liberalismo da primazia ao ividuo. Isto significa que todas as acces e bens colectivos podem ser compre- iidos como propriedades de individuos. Taylor acredita que este «individua- o metodolégico» ou «atomismo» é fundamentalmente erréneo porque con- de forma desadequada o caracter proprio das acces e bens colectivos. Alguns s sio «irredutivelmente sociais», no sentido em que a sua bondade nao pode sreduzida ao bem-estar dos individuos (Taylor 1995), Sea identidade cultural e istica estiver entre estes bens, segue-se que uma politica de reconhecimento 190 FILOSOFIA UMA INTRODUGAO POR DISCIPLINAS énormativamente justificada. A interpretacao de Taylor do modo como o mundo social se organiza fornece, assim, um suporte ontolégico ao seu compromisso com politicas multiculturais. 2.2 Respeito préprio Axel Honneth fornece uma leitura do «reconhecimento» que contrasta de forma clara com 0 projecto de Taylor (Honneth 1996, 1997). Curiosamente, Honneth publicou o seu primeiro livro (em alemio) sobre esta questo no mesmo ano em que foi publicado o texto de Taylor sobre “A Politica do Reconhecimento”. As suas principais fontes intelectuais incluem Hegel ¢ os pragmatistas americanos, como George Herbert Mead ou John Dewey, mas também Jean-Paul Sartre. Com aajuda destes autores tao diferentes, Honneth procura examinar o papel do reco- nhecimento nas lutas sociais. Para compreender estas lutas, precisamos de ir além de uma anilise puramente econémica da desigualdade, ou de uma andlise pura- mente politica da opressao: antes, 0 que é necessério é uma andlise moral dos modos como certos tipos de reconhecimento incorrecto estruturam 0 nosso mundo colectivamente organizado. A intuigao subjacente é bastante simples: a autonomia, num sentido kantiano forte, ndo pode ser exercida se 0 sujeito que age sofre de uma falta de respeito préprio. O respeito proprio, ¢ é este o cerne do argumento de Honneth, s6 pode ser cultivado se os outros se empenharem no reconhecimento do valor do sujeito: através do respeito, da estima ¢ do amor. Assim, a premissa hegeliana fundamental sobre a qual repousa esta concepgao do reconhecimento afirma que a autonomia ea auto-realizagio sé s4o possiveis inter-subjectivamente, através do contacto e da troca com os outros. Esta interpretacao do reconhecimento tem consequéncias para a nossa com- preensao das lutas sociais. Segundo Honneth, estas lutas no dizem respeito ape- nas a rectificacao de injustigas, como a exploragao econémica ou a exclusio polf- tica; mas também, e principalmente, contém pretensdes de reconhecimento do valor proprio dos individuos. Dito de outro modo, as lutas sociais tém motivacées morais porque so essencialmente acerca da necessidade de ser valorizado pelos outros. E por isso que 0 conceito de «reconhecimento» contém tanto um aspecto Psicolégico introspectivo como um aspecto social dirigido para fora. Sem 0 reco- nhecimento enquanto proceso psicolégico, 0 sujeito nao é capaz de usar recursos Positivos de auto-realizacao. Sem o reconhecimento enquanto processo social, 0 colectivo nao é capaz de incluir todos aqueles que o habitam. Honneth distingue ainda entre trés modalidades de reconhecimento: amor, respeito e estima. O amor é uma relagdo que envolve o reconhecimento de que o nosso préprio ser é carente e vulneravel. A capacidade de amar é, pois, um pré- ~requisito para o desenvolvimento de uma personalidade completa. Jé 0 respeito FILOSOFIA POLITICA JOAO CARDOSO ROSAS, MATHIAS THALER E INIGO GONZALEZ uma categoria de reconhecimento completamente diferente. Quando um sujeito se esforca por obter respeito, isso significa que quer ser reconhecido como um igual. E por esta razio que Honneth associa o respeito as lutas sociais contra a discriminagao no dominio legal e politico. Sempre que um sujeito sente que nao étido em conta pelas instituigdes como um portador de certos direitos, inevitavel- mente 0 seu respeito préprio sofrerd. Por isso, Honneth defende que a luta pela aplicabilidade universal de certos direitos ¢, essencialmente, uma luta pelo reco- nhecimento dos sujeitos enquanto membros iguais de uma comunidade ou, dito de outro modo, pela visibilidade na esfera publica (Honneth e Margalit 2001). O movimento dos direitos civis pode ser visto como um exemplo entre muitos de uma luta social em torno dos termos equitativos da pertenca a uma comunidade. Finalmente, hd um terceiro sentido de reconhecimento que pode ser sintetizado na estima, A estima é diferente do respeito porque nao visa estabelecer qualquer tipo de igualdade. Se estimo alguém, atribuo a essa pessoa qualidades extraordi- nérias. A estima é, pois, uma questo de hierarquias: sem uma avaliagio excepcio- nalmente positiva (e, portanto, desigual), eu nao seria capaz de reconhecer a pes- soa como digna da minha atencio. Este tiltimo ponto torna clara a divergéncia entre Taylor e Honneth. Enquanto Taylor vé a politica do reconhecimento de identidades particulares em contraste com a luta pela igual dignidade (da humanidade universal), Honneth concebe esta ltima luta precisamente como parte integrante da mesma politica do reconheci- jento, n4o como uma sua forma distinta. As lutas sociais pela incluso no dominio ‘Tegal e politico nao podem, segundo Honneth, ser concebidas fora do mesmo pro- sso de reconhecimento. Honneth usa o quadro de referéncia desenvolvido nos is primeiros textos para construir uma abordagem sistematica das varias pato- as associadas ao reconhecimento inadequado (Honneth 2008). 2.3 Questdes em aberto A literatura secundaria em torno da politica do reconhecimento tem crescido rmemente desde a publicagao das contribuices seminais de Taylor e Honneth. como seria de esperar, os comentadores tem chamado a atenco para as poten- is limitagGes deste conceito. Por uma questio de brevidade, iremos seleccionar nas duas areas em relagdo as quais a teoria politica do reconhecimento tem sido de criticas. A primeira area diz respeito as politicas multiculturais advogadas por Taylor wuitos outros defensores de uma politica do reconhecimento. Recordemos que \damento normativo para o reconhecimento da natureza caracteristica de uma ra particular reside na ontologja social do comunitarismo. As culturas forne- bens sociais, como a lingua, que os individuos isolados nao so capazes de 191 192 FILOSOFIA UMA INTRODUGAO POR DISCIPLINAS assegurar, E esta importancia primordial que torna as culturas valiosas ¢ que faz com que 0 atomismo liberal esteja errado. As politicas multiculturais, que muitas vezes implicam excepgées em relagio as leis geralmente aplicaveis, s4o, assim, jus- tificadas por referéncia ao valor intrinseco das culturas. No entanto, ha quem tenha sublinhado os perigos de tais politicas multicultu- rais. A critica mais vigorosa diz respeito ao fenémeno das minorias vulneriveis dentro das minorias (Eisenberg e Spinner-Halev 2005). O multiculturalismo parte do pressuposto segundo o qual a justiga exige uma abordagem imparcial para remediar o desequilibrio de poder entre culturas diferentes. Mas 0 que acontece aos individuos que nao se identificam com ua identidade cultural particular ou que inclusivamente se tornam vitimas de violéncia dentro do grupo? A maior parte das questées que tém animado a controvérsia em torno das politicas multiculturais estao relacionadas com o género € 0 sexo. Os criticos tém sublinhado a tensio potencialmente fatal entre o multiculturalismo e o feminismo (Okin 1998). O pro- blema é bastante evidente: se os defensores do multiculturalismo visam justificar direitos de grupo diferenciados, podem estar a minar desse modo o principio da igualdade de género, j4 que as mulheres e as minorias sexuais so oprimidas em praticamente todas as culturas. Logo, a organizagio patriarcal de muitas culturas faz. com que sejam questiondveis as excepgdes em relacao a lei geralmente aplica- vel (Shachar 2000, 2001; Phillips 2003). Em resposta a esta objeccao a0 multiculturalismo, hé quem tenha argumen- tado que as feministas constroem binémios normativos, como a oposigio entre 0 valor da cultura e o principio da igualdade de género, que sao indevidamente sim- plistas. E, pois, possivel e desejével instigar um didlogo construtivo entre o multi- culturalismo e 0 feminismo (Volpp 2001). A segunda area na qual 0 conceito de reconhecimento tem sido profunda- mente posto em causa pode ser sintetizada por uma dicotomia ilustrativa: redistri- buigdo ou reconhecimento (Fraser 1995, 2000; Fraser and Honneth 2003). Como vimos, Honneth concebe as lutas sociais em termos de conflitos em torno do reco- nhecimento. Lutar pelo reconhecimento 6, pois, reclamar justica na esfera cultural. Mas os marxistas, tanto 0s ortodoxos como 0s revisionistas, tém levantado a objec- a0 segundo a qual colocar 0 enfoque na transformagao cultural pode por em causa a busca da justica propriamente dita — isto é, da justia econémica. O mal maior desta nossa época do capitalismo avangado, dizem estes criticos, ainda é a desigual- dade material e nao a desigualdade simbélica. A politica do reconhecimento comete o grave erro de simplesmente presumir que existem diferentes culturas com identidades particulares. Mas se ajustiga econdmica é o objectivo primordial de qualquer projecto progressista, entao a politica baseada na cultura tem um problema: «reifica» identidades e, deste modo, impede a busca de solidariedade de classe emancipatéria. Logo, o multiculturalismo é considerado como sendo perigosamente des-politizante: parece procurar a justiga através de acordos na FILOSOFIA POLITICA JOAO CARDOSO ROSAS, MATHIAS THALER & INIGO GONZALEZ esfera cultural, mas de facto perpetua a injustiga ao recusar-se a combater a desi- gualdade material. Em resposta a esta objeccio, alguns defensores do multiculturalismo tém ten- tado enfraquecer o contraste entre redistribui¢io ¢ reconhecimento. Estes defen- sores argumentam que é um erro propor que seja necessirio escolher entre justica naesfera cultural ou igualdade econdmica. Uma concepeio suficientemente ampla de justica tem de ser multidimensional e dar conta da opresséo numa variedade de arenas sociais que se intersectam (Yar 2001). 2.4, Sucesso te6rico, crise pratica? Talvez possamos, antes de passar & questo do reconhecimento ao nivel global, especular um pouco sobre as suas direcg6es futuras enquanto categoria tedrica e principio pritico. Por um lado, no podemos negar que o «reconhecimento» tem tido uma carreira com surpreendente sucesso enquanto tendéncia académica no Ambito da Filosofia Politica. Além disso, o conceito migrou rapidamente dos limi- tes mais restritos da filosofia anglo-americana ¢ europeia para uma diversidade de sub-disciplinas em ciéncia politica, sociologia e antropologia. Os estudantes de politica comparada e de relagGes internacionais, em especial, tem usado 0 vocabu- lario desenvolvido por Taylor e Honneth de maneira criativa e ampla (Presbey 2003; Schmidt, Barvosa-Carter e Torres 2000). Neste aspecto, a perspectiva é bas- tante positiva ¢ ha raz6es para esperarmos o aparecimento de mais compromissos interdisciplinares com o conceito de reconhecimento. No que respeita as muitas ¢ variadas praticas de reconhecimento, o quadro a tracar é menos claro. E na Europa de hoje que a crise do multiculturalismo é mais fortemente sentida, Por todo o continente, partidos de direita candidatam-se usando plataformas xenéfobas ¢ racistas para explorar a insatisfagao de muitos ‘eleitores, canalizando-a contra os imigrantes. Fenémenos como a controvérsia dos cartoons dinamarqueses (Klausen 2009) 0 affaire du foulard (a questao do véu) em Franca (Benhabib 2010) incitam medos uma reac¢io contra o multiculturalismo. Sera jd chegada a hora de escrevermos obituério do reconhecimento? Talvez ainda seja muito cedo para um diagnéstico io fatalista, mas a vigilancia é certamente justificada: a teoria, bem como a pratica, stram que hé problemas sérios para os quais ainda nao descobrimos uma solucio. 2.5, A diferenga cultural numa perspectiva global Os prineipios subjacentes ao conceito de reconhecimento nao sio relevantes nas no contexto dos Estados-nacao. Podem também ser invocados para proble- tizar uma perspectiva convencional de acordo com a qual 0 Estado é o lugar 194 FILOSOFIA UMA INTRODUGAO POR DISCIPLINAS quase natural para colocar, contestar e lidar com pretensées de justica. Esta seccao ird focar, selectivamente, trés t6picos distintos mas interligados que transformaram esta perspectiva convencional: secessio, migragio e novos movimentos sociais. Estes tépicos sao, todos eles, animados por um interesse em novas formas de agén- cia na «constelagio pés-nacional» (Habermas 2001). A secessio torna-se intuitivamente pertinente se pensarmos nas ramificagoes que as pretensées ao reconhecimento podem ter. A ideia central da filosofia poli tica do reconhecimento de Charles Taylor éa convicgéo de que os grupos culturais tém direito a ser reconhecidos pelo Estado porque fornecem bens irredutivel- mente sociais que os individuos sozinhos nao sio capazes de assegurar. Implicito nesta pretensio estd um direito nao especificado & auto-determinagao para todos 0s grupos culturais. Se tomarmos 0 Estado-nagio como 0 quadro de referéncia no ambito do qual esta pretensio ¢ negociada, hé varios arranjos institucionais que parecem ser adequados para a realizago do objectivo do reconhecimento: entre estes esto os «direitos de grupo diferenciados», as excepgGes & lei geralmente aplicével com base em justificagGes religiosas, os direitos limitados de auto-gover- nagio, e algum tipo de soberania tribal. Considerados de um ponto de vista esta- tista, a maior parte destes arranjos enquadra-se melhor numa organizacio federal do que numa organizacio cemtralista do Estado (Follesdal 2010; Young 1990, 2000; Levy 2008). No entanto, se levarmos a sério o principio da auto-determinagao das culturas, seo levarmos aos seus limites, inevitavelmente deparamos com a questo da seces- sao: sob que circunstancias terdo as minorias justificacao para lutar por um Estado proprio, em vez de procurarem uma acomodagao no ambito de um Estado exis- tente? Esta questao tem tido muitas respostas diferentes, desde a reclamagao de territério injustamente usurpado até a tomada de decis4o plebiscitéria (Buchanan 1997, 2007; Patten 2002; Wellman 1995; Philpott 1995). A questao da secessio assinala, pois, uma limitacao consideravel da lei internacional convencional, na qual 0 Estado figura como o modelo da soberania. Em segundo lugar, ainda que o objectivo final dos movimentos secessionistas seja, sem dtivida, a criagdo de um novo Estado, ha outras ramificacdes possiveis da teoria do reconhecimento numa escala global. Se 0 processo de reconhecimento de uns e de outros envolver um encontro vertical, dialégico, entre membros iguais de uma comunidade, segue-se que podem e devem emergir novas formas de agén- cia para além do Estado (Tully 2004). Os migrantes, por exemplo, incorporam estas novas formas de agéncia por todo o mundo: enquanto estrangeiros, eles so residentes permanentes de um pais de cujo processo democratico muitas vezes esto excluidos. Os fildsofos politicos tém tentado lidar com este fenémeno per- turbador desenvolvendo perspectivas alternativas acerca da relacio entre cidada- nia democratica e soberania territorial (Baubéck 1994, 2003, 2005; Benhabib 2002, 2005, 2007). O ponto fundamental do seu argumento é que, na época da FILOSOFIA POLITICA JOAO CARDOSO ROSAS, MATHIAS THALER & INIGO GONZALEZ globalizacio, a cidadania democritica precisa de ser radicalmente revista — tanto na teoria como na pratica — de modo a dar conta normativamente do facto de que 0 trans-nacionalismo migrante veio para ficar. Finalmente, surge a questdo das novas formas de agéncia no que respeita aos movimentos sociais. Cada vez mais os conflitos em torno do reconhecimento envol- vem actores que nao podem ser associados a um tnico Estado-nagio. (Fraser 2008). De facto, alguns destes actores pertencem aquela que ja tem sido chamada «sociedade civil global» (Amoore and Langley 2004; Bartelson 2006; Kaldor 2003; Smith 1998). Estes movimentos sociais organizam-se muitas vezes em torno de questdes concretas com significado verdadeiramente global, como o VIH/SIDA, 0s direitos humanos, ou as mudangas climaticas. Na sua luta pela justica, estes movimentos desafiam de forma profunda o modo como o poder é distribuido e ‘exercido hoje em dia nas relagGes internacionais, contribuindo deste modo para uma reorganizac&o cosmopolita da politica global. 3. Teorias da democracia ‘Ainda que, historicamente, a democracia tenha mé reputagéo, ao longo do século xx ganhou uma aceitagio praticamente unénime enquanto forma de -governo. Que governos duvidosamente democriticos — a Republica Democritica Alemi, a “democracia orginica” de Franco, a Republica Popular Democritica da Coreia se tenham referido a si mesmos como democracias, ou que democratizar paises se tenha convertido num objective aparentemente legitimo de politica externa, so factos que mostram a forga retérica ¢ ideolégica da democracia na actualidade. Consequentemente ~ ainda que com algum atraso em comparagdo com as ‘teorias da justica e mesmo do reconhecimento - durante as tiltimas décadas os Silésofos politicos comegaram a interessar-se pela democracia e a elaborar teorias da democracia cada vez mais detalhadas (Pateman 1970; Young 1990; Dahl 1991; Habermas 1992; Behabib 1996; Christiano 1996; Nino 1997; Elster 1998; Waldron 1999; Estlund 2008). Varias razdes adicionais explicam este interesse renovado. im primeiro lugar, as ondas de democratizagéo na América do Sul, no sul da juropa e nos paises da antiga Unido Soviética. Em segundo lugar, as reformas nstitucionais e a implementacio de instituigdes contra-maioritirias (bancos ntrais independentes, tribunais constitucionais) em paises com longa tradigao jemocratica, como a Nova Zelandia ou a Gra-Bretanha, Em terceiro lugar, a cres- nnte desconfianca em relaco as instituig&es politicas nas democracias consolida~ s, com a consequente diminuigio da participacao dos cidadaos. E, finalmente, 1o ambito filoséfico, a percepgao de que, uma vez que os desacordos acerca da stiga distributiva e do reconhecimento so tao persistentes entre os fildsofos ¢ 196 FILOSOFIA UMA INTRODUGAO POR DISCIPLINAS os cidadaos, é necessdrio complementar as teorias da justica e do reconhecimento com teorias da autoridade acerca da tomada de decisdes face a esses desacordos. As teorias da justica distributiva e do reconhecimento sao, principalmente, teorias de primeira ordem. Ou seja, sao teorias sobre como partilhar encargos € beneficios, materiais e simbdlicos, entre os membros de uma sociedade. As teorias da democracia, por seu lado, séo teorias da autoridade, isto é, teorias de segunda ordem sobre como tomar decisdes quando existem desacordos acerca dessa parti- Tha. A necessidade deste tipo de teorias surge quando se verifica aquilo a que Jeremy Waldron (1999) chamou «as circunstancias da politica»: (1) a necessidade de escolher um curso de acco comum (2) sobre o qual nao existe um acordo. Pensemos, por exemplo, num condominio onde ¢ preciso decidir se um elevador deve ou nio ser instalado. Cada condémino tem uma ideia sobre se o elevador deve ser instalado, bem como sobre quem e em que medida deve pagar a instalagao (por exemplo, 0 condémino do primeiro andar pensa que o vizinho do sexto deveria pagar mais do que ele, ja que beneficiard mais do elevador). Ou seja, cada condé- mino tem uma ideia acerca do que é justo nesta situagio. As circunstancias da politica dao-se, pois, quando os condéminos tém que decidir instalar ou nao 0 elevador e, a0 mesmo tempo, estio em desacordo sobre o que fazer. Precisam, entdo, de um procedimento para tomar uma decisio que seja vinculativa para todos. Hoje em dia, a resposta natural é que 0 tinico procedimento legitimo é 0 democratico. Mas ainda que assim seja, a democracia é um conceito essencialmente contestado, que admite definigées diferentes e, por vezes, incompativeis (Gallie 1956). Nesta terceira secgao serao analisadas as principais teorias filoséficas acerca de quatro questées bisicas da democracia. Primeiro, o que faz com que as decises democraticas sejam legitimas? Segundo, quais sao os limites da tomada de decisdo democratica? Terceiro, que tipo de participagio se exige por parte dos cidadaos? E quarto, quais sdo 0s procedimentos de tomada de decisio numa democracia? 3.1. Legitimidade O que faz com que os cidadaos obedegam as leis? A primeira resposta, dbvia, é que o Estado faz respeitar as leis mediante 0 uso do poder coercivo - uma vez que tem o monopélio da violéncia legitima sobre o seu territério, segundo a famosa definicéo de Weber. Mas para além disto, independentemente de estarem ou nao de acordo com elas, os cidadios tendem a perceber as leis democriticas como legitimas ou, pelo menos, como mais legitimas do que as dos regimes nfo demo- craticos. Ou seja, os cidadaos no obedecem apenas por medo de serem castigados, mas também porque percebem que as leis democriticas gozam de certa legitimi- dade. Isto permite resolver o chamado paradoxo de Wollheim (1962): como € pos- sivel que um cidado X esteja de acordo com a lei A se ao mesmo tempo esta FILOSOFIA POLITICA JOAO CARDOSO ROSAS, MATHIAS THALER EINIGO GONZALEZ 197 conyencido de que nao-A? E possivel porque X pode acreditar que ndo-A é a deci- so correcta ¢ acreditar ao mesmo tempo que A é a decisao legitima (uma vez que foi tomada democraticamente). Uma das tarefas da Filosofia Politica é explicar a natureza da legitimidade democratica, destacando-se, quanto a esta questao, trés tipos de teorias: instrumentalistas (Hayek 1960; Arneson 1993; Van Parijs 1996; Dworkin 2001), procedimentalistas (Waldron 1999; Bellamy 2007) e mistas (Rawls 2001, Christiano 2008). Ao contrério das teorias procedimentalistas, que atribuem a legitimidade da democracia & qualidade dos seus procedimentos (por exemplo, que incluam todos os cidadaos, que todas as vozes tenham o mesmo peso, ou que se ‘garanta o direito de manifestagio e associagao a todos os cidadaos), as teorias instrumentalistas con- sideram que a democracia goza de legitimidade em virtude dos seus resultados. Ou seja, em virrude da sua capacidade de produzir x, sendo x uma varidvel externa ¢ independente do processo democritico, como, por exemplo, a alternancia paci- fica (Przeworski 1999), o bem-estar social (Sen 1999) ou a satisfacdo dos direitos fundamentais dos cidadios (Ameson 1993). Segundo Arneson, por exemplo, os direitos politicos s4o andlogos aos direitos que os pais tém sobre os seus filhos, na medida em que dao aos seus titulares poder sobre terceiros — na influente termi- nologia de Hohfeld (1919) sao direitos-poder, pois permitem modificar a estrutura de direitos de primeira ordem, como os direitos civis e econémicos. Assim, tal como © poder dos pais sobre os seus filhos se justifica quando o seu exercicio beneficia 08 segundos, os direitos politicos sé seriam justificados desde que servissem para Promover os direitos fundamentais dos restantes cidadaos. A legitimidade da democracia nao seria, entio, intrinseca, mas meramente instrumental. Por isso, as teorias deste tipo sio comummente denominadas «consequencialistas», «instru- mentalistas» ou até mesmo «epistémicas» (por atribuirem 4 democracia a capaci- dade de produzir resultados correctos ou «verdadeiros»). Foram apresentadas duas objecgées fundamentais a estas teorias. Primeiro, uma vez que a relagio entre democracia e resultados depende das circunstincias, de um ponto de vista instrumentalista nao deveria haver nenhum problema quanto & suspensio dos direitos politicos naquelas circunstncias em que, mantendo-se 0 resto igual, tal possa conduzir a melhores resultados. Uma vez que esta é uma implicagao contra-intuitiva para a maior parte de nés ~ concluem os criticos - a legitimidade da democracia deve ser, pelo menos em algum grau, intrinseca e nfo puramente instrumental. Segundo, ainda que pudesse estabelecer-se uma relacao empiricamente s6lida e necessdtia entre democracia e resultados (tuma justificagao consequencialista das regras, por assim dizer), os politicos ¢ os cidadios desde logo discordam acerca dos objectivos que a democracia, supostamente, deve alcangar. Tais discrepincias nao sio transitérias, antes fazem parte da propria esséncia da politica. Logo, a democracia nao pode ser justificada com base em objectivos polt- ticos independentes porque existem desacordos persistentes acerca de quais 198, FILOSOFIA UMA INTRODUGAO POR DISCIPLINAS devem ser os objectivos a perseguir. A democracia é, precisamente, o sistema que’ usamos para tomar decisdes sob as circunstancias do desacordo (Waldron 1999 Bellamy 2007). Ao contrario das teorias instrumentalistas, as teorias procedimentalistas atr= buem legitimidade & democracia nao pelos seus resultados mas pela qualidade dos seus procedimentos. Consideram, portanto, que a legitimidade da democracia repousa no facto de os cidadaos gozarem de um conjunto de direitos politicos que os habilitam a participar na tomada de decisdes em pé de igualdade. E isto com independéncia em relacao aos resultados que 0 exercicio desses direitos produza Ainda que seja dificil encontrar teorias puramente procedimentais por principio, sao numerosas as teorias procedimentais elaboradas a partit do reconhecimento dos desacordos politicos. Poderia dizer-se que as justificagoes deste tipo so prag~ miticas ou second-best ~ uma vez que consistiriam em dizer que o ideal seria alcan- ¢ar 0 consenso em torno de um conjunto de principios a perseguir ¢ sobre os meios para o fazer, mas como isto nao é possivel é necessério um procedimento para gerir © desacordo. No entanto, nem Bellamy nem Waldron aceitam a distincao entre justificagées por principio e justificagdes second-best, porque consideram que a exis- téncia de desacordos ¢ uma condigao intrinseca da politica que qualquer teoria da legitimidade deve ter em conta. Negar os desacordos politicos implica negar a propria esséncia da politica, 3.2. Constitucionalismo Ainda que haja muitas maneiras de concebé-lo (cf. Nino 1997), o constitucio- nalismo caracteriza-se pela limitagao do poder politico do soberano. Historica- mente, o constitucionalismo surgiu para limitar 0 poder do monarca absoluto, ainda que nos sistemas democraticos seja 0 poder do parlamento aquilo que é limitado. HA dois tipos de limitagoes constitucionais (substantivas e procedimen- tais) ¢ dois tipos de mecanismos principais para pé-las em marcha (a rigidez cons- titucional e a justiga constitucional). Os limites substantivos do constitucionalismo costumam identificar-se com os direitos — individuais mas também colectivos, como muitos reconhecem hoje em dia — tais como os que estao contidos em cartas de direitos desde a Bill of Rights da Revolugao Gloriosa britanica até 4 Declaracao Universal de Direitos Humanos das Nages Unidas, passando por multiplas formulag6es incluidas na chamada parte dogmitica das constituicdes estatais. Trata-se, entio, de limites substantivos e a sua justificago num sistema democratico consiste em evitar a chamada «tirania da maioria» (Tocqueville 1835; Mill 1859), ou seja, que uma maioria de cidadaos, directamente ou através dos seus representantes, use o poder politico para sacri- ficar os interesses de uma minoria. Os defensores do valor instrumental da demo- FILOSOFTA POLITICA JOAO CARDOSO ROSAS, MATHIAS THALER = INIGO GONZALEZ cracia de que falémos na subsecedo anterior tendem a ver estes limites como uma maneira de evitar que as decisdes democréticas produzam resultados injustos (Arneson 1993; Dworkin 2001). Mas os limites substantivos também tém sido jus- tificados procedimentalmente, por se tratar de compromissos alcangados pelos cidadaos em momentos de «politica extraordinéria», como os que ocorrem nos Processos de criagdo ou reforma constitucional e nos quais, ao contrario do que acontece nos momentos de «politica ordindria», a participacao dos cidadaos ¢ ele- vada ¢, por isso, as garantias democraticas dos acordos aleangados sio comparati- vamente maiores (Ackerman 1991), Os limites constitucionais podem ainda ser procedimentais ¢ dirigidos a evitar que uma maioria use o poder politico para modificar a propria estrutura da tomada de decis6es num sentido antidemocratico. Goebbels comentou em certa ocasiao que «ser sempre uma das coisas mais engracadas da democracia que ela dé aos seus inimigos mortais os meios de destrui-la» (cit. Kirshner 2010: 405). Ainda que seja muito discutivel que Hitler tenha chegado ao poder de forma democritica, uma das preocupagGes classicas em relacao 4 Repiiblica de Weimar ¢ 0 facto de a sua Constituicéo nao proteger suficientemente o sistema democratico dos poss{- veis abusos antidemocraticos (como aquele que o Presidente Hindenburg cometeu em 1933 em relagao ao artigo 48, cancelando a liberdade de imprensa e reuniao e proibindo o Partido Comunista de participar nas eleigdes de Margo, que Hitler viriaa ganhar com um apoio de 44%). Os limites procedimentais contidos na cha- mada parte orginica da constituigao ~ que define a divisio de poderes e os proce- dimentos de tomada de decisdes servem, entio, de garantia face & dita ameaca e tém sido justificados tanto a partir de posigdes instrumentalists (Dworkin 2001) como procedimentalistas (Ely 1980). ‘Sao dois os mecanismos normalmente usados para garantir institucionalmente que os limites constitucionais ~ sejam substantivos ou procedimentais — so res- peitados. Por um lado, a rigidez constitucional, ou seja, a incorporagio de um pro- cedimento de reforma constitucional mais exigente do que o procedimento legis- lativo normal (por exemplo, a exigéncia de super maiorias parlamentares ou de aprovagao em referendo). Por outro lado, 0 controlo judicial de constitucionali- dade, ou seja, a competéncia atribuida ao poder judicial para rever e anular as leis que sejam consideradas incompativeis com a Constituicao. Embora as formas de revisdo constitucional sejam numerosas, o modelo que tem sido mais debatido em Filosofia Politica é o modelo norte-americano de supremacia judicial (amplamente exportado para outros paises), no qual o Supremo Tribunal tem a tiltima palavra sobre a constitucionalidade das leis. O constitucionalismo judicial ~ e, mais concretamente, a revisio judicial das eis — tem sido atacado pelos procedimentalistas por duas razées principais (Wal- dron 1999; Bellamy 2007). Primeiro, por ser questionavel que um grupo reduzido de juizes constitucionais ~ que, tal como os parlamentares, toma decisées usando 199 200 FILOSOFIA UMA INTRODUGAO POR DISCIPLINAS a regra da maioria ~ possa proteger melhor os direitos dos cidadaos do que os Proprios cidadaos ou os seus representantes. E segundo, pelo défice democratico implicito no deslocamento das decisées acerca dos direitos dos cidadaos das maos dos seus legitimos titulares para as maos de uma maioria nao eleita de juizes que, contrariamente aos representantes parlamentares, ndo tem que prestar contas aos cidadaos. Segundo Waldron, existe, de facto, uma contradi¢ao entre, por um lado, afirmar que os cidadaos tém direitos (reconhecendo a sua autonomia) ¢ retirar- -lhes, por outro, a capacidade para decidir quais sao esses direitos, como devem ser hierarquizados em casos de conflito, etc. (negando a sua autonomia), Segundo Waldron ¢ Bellamy aalternativa ao constitucionalismo judicial - tanto procedimental como substantivo —é 0 chamado modelo de Westminster (em refe- réncia & sede do parlamento britinico) de acordo com o qual o parlamento retém todo o poder politico. No entanto, ha que assinalar que tanto o Reino Unido como a Nova Zelindia reformaram recentemente o seu sistema politico, criando cartas de direitos e tribunais constitucionais e: distanciando-se, assim, do modelo de West- minster de que, historicamente, foram os principais representantes. 3.3, Participacao e representacao No seu sentido etimoldgico, democracia significa o poder (kratos) do povo (demos). Exige, pois, a participacio do povo na tomada de decisées politicas. Ora, @ participagao dos cidadaos tem sido definida de maneiras muito distintas. Esta sec¢ao analisa as contribuigées da tradi¢ao republicana e da tradigao liberal. Em primeiro lugar, a participagao politica pode conceber-se apenas como um direito ou também como um dever e, neste segundo caso, ser vista como um dever Politico (sendo que em muitos paises 0 voto é obrigatério ou a filiagio sindical é exigida para haver acesso a provisdes de bem-estar) ou unicamente moral (sendo que muitos governos simplesmente destinam recursos publicos 4 promogao da participagao). A tradicao republicana colocou a énfase na necessidade da partici- Pagao até ao ponto de «idiota» (idiotes) ser o qualificativo que recebiam os cidadaos atenienses que nao cumpriam as suas obrigagées civicas, Na tradicao liberal, pelo contrario, argumentou-se que a consideracao da participacao como um dever viola aneutralidade estatal, uma vez que impée aos cidadaos uma concepgio particular do bem. E verdade—argumentam os liberais — que alguns cidadaos podem realizar- se militando politicamente, mas, como defendeu, de forma célebre, Benjamin Constant (1819), nas sociedades modernas muitos deles encontram satisfagao em Ambitos privados que nada tém a ver com a politica (0 trabalho, a familia) e nio cabe ao Estado impor uma ou outra forma de vida, Esta critica pode ser vélida no caso de concep¢des republicanas de tipo comunitarista ou neoaristotélico ~ 0 que hoje é conhecido como (Elster 1995: 238). 5, pois, prové- vel, que também no caso da deliberacao a hipocrisia seja o tributo que o vicio presta avirtude, Elster apresentou duas réplicas a esta acusagio. Primeiro, ainda que seja um facto que muitas pessoas se comportam deste modo, a hipocrisia é, por definicéo, parasitaria da sinceridade. Como mostrou Kant, 0 mentiroso s6 pode sé-lo de forma eficaz numa sociedade na qual pelo menos uma parte das pessoas nio mente habi- tualmente. Sendo, ninguém acreditaria nele e seria inutil mentir. Segundo, ainda que a maioria dos agentes se comportem de forma hipécrita, a obrigacao de dis- fargar os seus interesses sob razGes obriga-os a manter a sua posigao em ocasides posteriores ainda que seja apenas por uma questo de coeréncia. Por exemplo, se X defende A (por exemplo, fazer greve contra uma reducio salarial) em T1 como uma proposta que beneficia outras pessoas (ainda que, na realidade, X sé tenha interesse em A porque o beneficia a ele), ver-se-d obrigado a defender A em T2 ainda que ja no o beneficie. Se nao 0 fizesse, ficaria claro que a sua motivagdo em Tl era auto-interessada e ele nao seria capaz de apelar a razdes aparentemente imparciais de forma eficaz no futuro. Isto mostra, segundo Elster, que a hipocrisia pode ter, apesar de tudo, uma forea efvilizadora.

Você também pode gostar