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VASCO DA GAMA

OU O

DESCOBRIMENTO DA HIA

Drama Histórico -YVliantasíidt

cm 1 prologo e 5 actos

pon

FRANCISCO DUARTE DMUM E

TYPOGUAPIUA DE SALLES, LAHGO DE S. DOMINGOS, N.° 17

" 1870
>
VASCO DA GAMA
OU O

DESCOBRIMENTO DA DIA
Drama Histórico -çliautastico
em 1 prologo e 5 actos
POR

TYPOGUAPHIADE SALI,ES. — LARGO DE S. DOMINGOS, N.° M.

1870
HARVARD'
UNIVÉRSltV
LIBPARY ,
4UG 28 1974 /

B.l.
2lo «r.-Sr. Jítarqiuj tellija
ACTUAL REPRESENTANTE DO PRECLARO

O ACTIIOR

Francisco Duarte d'Almeida e Aravjo

Lisboa 30 de março de 1870.


PROEMIO

Quando subiu á scena em S. Carlos a opera a Afri


cana, era então empresario do theatro da Rua dos Con
des o meu amigo Pinto Bastos, e fallando nós das incohe-
rencias do libreto, se concordou em escrever eu um
drama, no qual se désse ao heroe do descobrimento da
índia por mar, o seu verdadeiro colorido. Pouco tempo
depois o referido meu amigo, Pinto Bastos, deixou de
ser empresario d'aquelle theatro, e o alludido drama não
passou de projecto. Em janeiro do corrente anno, e quando
a actual empresa societaria do theatro da Rua dos Con
des levou á scena o meu drama 1640, ou a Restaura
ção de Portugal, os actores Brandão e Lopes Cardoso,
recordados d'aquelle facto, pediram-me levasse por deante
a empresa do Vasco da Gama; que fosse drama de es
pectaculo; e se compromettiam a leval-o á scena. Metti
mãos ao trabalho: mas, infelizmente, a empresa não se en
controu com forças para o seu dispendio; e presumo ter
sido esta a unica razão, dando eu credito ao que se me
disse, de elle não subir ás provas publicas. Se me falta
a scena, não me falta todavia a imprensa; e por esta o
exponho eu agora á apreciação dos amadores do theatro
portuguez. Estampo-o qual saiu do primeiro jacto; tendo
de observar que introduzi n'esta obra uma novidade,
qual, pela naturalidade historica, não deixar fallar indL
viduos de estranhas nacionalidades, e que, pela primeira
vez, se encontravam, o mesmo idioma, quando o facto era
que se intendiam por via de interpelres., ou lingoas. Bem
conheço a diíGculdade da inovação; mas parece-me tel-a
salvado pela forma porque levo a acção. Todavia se esta
inovação for um defeito, é elle de fácil emenda na repre
sentação, na qual se pode inutilisar o interpetre, e col-
locar a phrase d'este na bocca do proprio personagem
representado.
Havia eu primeiramente escripto o prologo, que vae
em seguida a este proemio; porém os actores observa-
ram-me a difficuldade da recitação de tantos versos ;
è accedi á observação, substituindo-o pelo prologo em
prosa, não colocando então a acção no Olympo, pois que
a lingoagem dos deuses não podia deixar de ser em
verso; c sim na ilha que o nosso immortal Camões, tão
poeticamente, fingiu nos seus Lusiadas. Este epico é tam
bem quem me authorisa á ficção do prologo, e do quinto
acto. No exemplo terei de certo a absolvição do phan-
tastico do meu drama
Março de 1870.
F. D. Almeida e Araújo.
PERSONAGENS

Vasco da Gama
Fr. Christovão Soares (freire de ChristoJ
Diogo Dias (escrivão)
Pedro d'Alemquer (piloto)
Álvaro de Braga (escrivão da feitoria)
Fernão Martins (lingoa)
Molemo-Caná (lingoa) 1
Gonzaga (dispenseiro da caravella S. Gabriel) \
Francisco (pagem) 2
Maria 2
Vicente
Veloso }- soldados
Leonardo )
Lobo-Marinho
Ecula > marinhei,™
Cabo do Espichel
Rodrigues (degradado)

1 A nympha Gliceris, desempenha tambem o papel de Gonzaga


e Molemo-Caná, porque è a enviada por Venus a acompanhar os
portuguezes, e livral-os das traições que Baecho lhes move nas
índias.
2 Francisco, pagem, desempenha tambem a parte de Maria, como
se conhece no andamento do drama.
O Camokim de Calecut
A IMPERATRIZ DE CALECUT
O Catual de Calecut
Rei de Melinde
Foteima (official do rei de Melinde)
Cemereci (official do rei de Melinde)
Zichi (princesa de Melinde)
Bazibut (Jogue)
Venus 1
Cupido
divindades mythologicas
Pan
Sileno .)
Ephyra -\
GlicerisI i
Clymene \ nymphas
Chloris í
Nise J
Adamastor

Ofliciaes da marinha portuguesa, soldados portugue


ses, marinheiros portugueses; povo indiano; naires; bai
ladeiras; faunos; satyros; nymphas.
QUADRO I

ILHA CYTHEREA

Vista d'esta ilha, a predileta de Venus. O panno do fundo


deve represental-a, basta de arvoredos, e no fundo,
o mais longiquo, o templo, habitação da deosa. Deve o
mesmo panno ficar collocado ao 3.° bastidor, a contar
da rampa; e isto em consequéncia de se poder armar,
além doesta scena, a outra vista d'este mesmo quadro.

SCENA I

Venus, Gligeris, Cupido, Nymphas

Ao subir o panno as nymphas estão reunidas em choro


e cantam o seguinte, á entrada de Venus; que vem n'um
carro, puxado por pombas, e acompanhada de Cupido.

Choro

E chegada a gentil Venus,


A formosa mãe do amor,
A alma da natureza,
Que fecunda com primor.

Os seus olhos são dois soes,


Que relusem lá nos ceus;
E, luminosos, a terra
Animam co'os raios seus!
Venus apeia-se do carro, com Cupido . . . as nym~
phas fazem-lhe corte.
Venus (a Gliceris)
Grande commeltimento é o meu! . . . Carêço em
pregar a força dos meus encantos, e o artificio do
discurso, para mover o pae dos deuses em favor de
-um povo que amo, e de uma nação briosa que segue
o impulso das minhas leis.
Gliceris
Tenho notado, deusa, que ha tempos andas preoc-
cupada; mas, pelo que ouço, atrevo-me a perguntar
se a Grecia, o Lacio, o orbe inteiro, ergueram de
novo os nossos altares?
Venus
Esse povo segue o impulso das minhas leis; não
com a religião do idolatrismo, e sim com a cavalhei
resca dedicação de mortaes que sabem comprehen-
der o sentido mythologico das divindades olympicas
d'esses tempos, que já vão remotos ... A essas di
vindades não rendem culto os portuguezes.
Gliceris
Esse povo não é descendente de Luso, filho de
Baccho?
Venus
Sim; mas a religião que essa nação professa, sim
plicissima, pura e santa, está despida da idolatria
das paixões que se personificaram nos deuses da gen
tilidade: porém, no profundo estudo do coração hu
mano, descobriram que nós, os deuses antigos, era-
.mos um mytho, deificado para os rudes povos; e que
em muitas das nossas alegorias está encerrada a cos
mogonia do universo.
XI
Gliceris
E proteges esses que não rendem culto publico a
ti, mãe do amor, e alma tambem do universo?
Venus
Contenta-me o culto interno . . . satisfaz-me a sua
adoração no intimo do peito . . . Quando a alma se
encontra presa nas cadeias do amor—meu terno fi
lho—nessa alma tenho um altar, erguido volunta
riamente; o que val muito mais do que o culto ex
terior imposto pela constituição dos imperios. Aquelle,
por voluntario, ergue-se suave, meigo, intimo, perfu
mado nas azas da oração ingenua e candida, até ás
sublimes regiões onde demora a divindade:—este,
o culto decretado, é mentido no rosto e na com
postura que muitos affectam; não passa dos labios;
e as phrases que a bocca murmura, pois que não
saem do coração, não sobem até á estancia divina...
perdem-se nas quebradas dos montes, e dissolvem-
se nas camadas da atmosphera!
Gliceris
Que motivo obriga, porém, a esse congresso dos
deuses?
Venus
A pedido meu, Jupiter reune hoje concilio, no
qual se devem tratar principios que tem de fazer uma
revolução geral na vida dos povos, pondo em com-
municação, por uma via até agora ignota, os oppos-
tos extremos da diurna peregrinação de Apollo, desde
que o astro do dia—abrindo aos mortaes as letar .
gicas palpebras cerradas pelo encantamento das pa
poulas de Morpheu,— se desprende dos braços ásx
XII

Aurora, para, ao apparecimento de Diana, se recli


nar nos braços de Thetis . . .
Gliceris
Não percebo ainda como esse povo— o lusitano—
terá parte na revolução que dizes!
Venus
Vou explical-o. Morto o rei portuguez D João, se
gundo de nome, já tão glorioso pelas suas descober
tas maritimas, foi succedido no throno pelo actual
monarcha D. Manoel, que, não menos glorioso, que
o seu antepassado, ha de deixar nome na Histo
ria Universal — denominar-se-ha o Afortunado. . .
N'este incessante pensamento . . . mas não seja Ve
nus quem o diga. . . aguarda um pouco. . . (diri-
ge-se a uma gruta.)
Gliceris
Vae buscar o livro das Sybillas.
Venus (voltando)
Aqui está o livro de ouro—o livro immortal. . .
Escuta:
Parece que guardava o claro ceu
A Manoel e seus merecimentos
Esta empresa tão ardua que o moveu
A subidos e illustres movimentos.
Manoel, que a Joanne succedeu
No reino, e nos altivos pensamentos,
Logo como tomou do reino o cargo,
Tomou mais a conquista do mar largo.

O qual, como do nobre pensamento


D'aquella obrigação, que lhe ficará
De seus antepassados (cujo intento
XIII

Foi sempre accrescenlar a terra chara)


Não deixasse de ser um só momento
Conquistado no tempo que a luz clara
Foge, e as estrellas nitidas, que sáem
A repouso convidam quando caem.

Estando já deitado no aureo leito


Onde imaginações mais certas são;
Revolvendo contino no conceito
De seu officio e sangue a obrigação,
Os olhos lhe occupou o somno acceito,
Sem lhe desoccupar o coração;
Porque, tanto que lasso se adormece,
Morpheo em varias formas lhe apparece.

Aqui se lhe appresenta que subia


Tão alto, que tocava a prima esphcra,
D'onde diante varios mundos via,
Nações de muita gente estranha e fera:
E lá bem junto donde nasce o dia,
Depois que os olhos longos estendera,
Vio dos antigos, longinquos, e altos montes
Nascerem duas claras e altas fontes

Aves agrestes, feras, e alimarias


Pelo monte selvatico habitavam:
Mil arvores silvestres, e ervas varias,
O passo e o tracto ás gentes atalhavam,
Estas duras montanhas adversarias
De mais conversação, por si mostravam
Que, desde que Adão peccou, aos nossos annos,
Não as romperam nunca pés humanos.
XIV
Das agoas se lhe antolha que saiam.
Par'elle os largos passos inclinando,
Doqs homens, que mui velhos pareciam
De aspeito, inda que agreste, venerando:
Das pontas dos cabellos lhe caiam
Gottas, que o corpo todo vão banhando;
A cor da pelle, baça e denegrida;
A barba hirsuta, intonsa, mas comprida.

D'ambos de dous a fronte coroada


Ramos não conhecidos e hervas tinha;
Um cVelles a presença traz cansada,
Como quem de mais longe alli caminha.
E assim á agua, com impeto alterada,
Parecia que doutra parte vinha;
Bem como Alphêo de Arcadia em Syracusa
Vae buscar os abraços de Arethusa

Este, que era o mais grave na pessoa,


Destarte, para o Rei, de longe brada:
Oh tu, a cujos reinos e coroa,
Grande parte do mundo está guardada;
Nós outros, cuja fama tanto voa,
Cuja serviz bem nunca foi domada,
Te avisamos que é tempo que já mandes
A receber de nós tributos grandes.

Eu sou o illustre Ganges, que na terra


Celeste tenho o berço verdadeiro,
Esfóutro é o Indo, rei, que nesta serra
Que vês, seu nascimento tem primeiro.
Custar-te-hemos, com tudo dura guerra,
XV

Mas insistindo tu, por derradeiro


Por não vistas victorias, sem receio,
A quantas gentes vês porás o freio.

Não disse mais o rio illustre e santo,


Mas ambos desapparecem num momento.
Acorda Emanoel chum novo espanto,
E grande alteração de pensamento:
Estendeu nisto Phebo o claro manto
Pelo escuro hemispherio somnolento;
Veio a manhã no ceu pintando as cores
Da pudibunda rosa, e roxas flores

Chama o rei os senhores a conselho,


E propõe-lhe as figuras da visão;
As palavras lhe diz do santo velho,
Que a todos foram grande admiração.
Determinam o nautico aparelho,
Para que com sublime coração
Vá a gente, que mandar cortando os mares
A buscar novos climas, novos ares.
(Ouve-se uma harmonia.)
Gliceris
O Olympo está em festa.
Venus
É o divinal murmurio das deidades, que sahindo
das luminosas espheras, e lusentos astros em que de
moram, se encaminham ao recinto sagrado.
Choro das nymphas
Vencerás, formosa Venus
Bom despacho á rogativa,
XVI

Teus pedidos ordens são


A que genio algum se esquiva:

Bem merece o luso povo


Teus carinhos protectores,
Que no mundo não ha outro
Mais excelso de primores.

Provada fidelidade
Tem por timbre, e por brasão:
Na guerra heroe valente.
Na paz branda condição.

Venus (para a nympha Gliceris)


N'este momento em que estamos praticando, a frota
levanta ferro das praias do Rostello . . . Eil-a
(Apparece no fundo a frota, que vae passando
com a marinhagem nas gaveas, dando vivas a Por
tugal. Ouvem-se vozes do povo bradando: Boa via
gem.)
Gliceris
Aquellas vozes?
Venus
São as do povo, que apinhado na praia do Rostello,
e na margem do Tejo até á foz, invidam aos nautas
boa viagem
Gliceris
Arrojada empresa! . . . Fazer a volta do mundo não
é para forças humanas?
Venus
Hade sel-o, que ao povo portuguez servem os es
torvos unicamente a incender-lhe os brios, e os impos
XVII

siveis de estimulo a mostrarem que os não conhece


(ouve- se trovejar) Jove abriu o congresso. . . A voz
do raio o annuncia . . . Baccho, que sabe estar a ponto
de perder, nas índias, o seu prestigio, oppõe-se á em
presa: e para que ella vá de vencida appresento-me a
implorar o auxilio do pae dos deuses. . . Partamos.
(Sobe ao carro com Cupido', e saem da scena, segui
dos pelas nymphas, que vão cantando:)

A gloria de um povo jmmortal


Vae surgir nos fastos da Historia,
Inscrevendo o leal Portugal
Em feitos de eterna memoria.

2
QUADRO II

(Mutação rapida)

Bepresenta-se o Olympo. —Está desembaraçado o espaço


dos 3 primeiros bastidores, a contar da rampa. Na al
tura do quarto bastidor está uma balaustrada dourada,
a qual tem, no meio, uma abertura, formada em de-
grãos, figurando a via lactea—para se subir até ao
throno de Júpiter, que é formado em nuvens e reca
mado de estreitas. Desde a balaustrada até ao fundo
do theatro, tem os deuses os seus togares entre as nu
vens. Uns estão de pê, e outros sentados, no acto da
mutuação de scena. Júpiter está sentado no throno.
Em frente da balaustrada ha tripodes douradas, e
com esmeraldas e pedras preciosus engastadas, nas
quaes ordem perfumes; intermediadas as tripodes com
vasos, tambem com pedras preciosas engastadas, e fio'
res raras, figurando as mais exquisitas das quatro
partes do mundo—pavões com a cauda aberta, e aguias
com olhos de carbúnculos. Ouve-se uma harmonia; e
quando Venus apparece em scena, Júpiter e os deu
ses se levantam.
Venus apeia-se do carro com Cupido, e as pombas con
duzem o carro para fora da scena . As nymphas, que
teem seguido o carro, ficam no espaço do proscenio que
está livre; e cantam o seguinte choro, emquanto Venus
vae subindo ao throno, sendo comprimentada pelos deu
ses, e querendo, ajoelhar ante Júpiter, este Ih'o não con
sente, e a faz sentar no throno. á sua esquerda, es
tando Juno á direita.
XIX

SGENA I

Júpiter, Venus, Apollo, Baccho, Marte, Gliceris,


Nymphas, Cupido, Divindades

Choro

Jove immortal, que os destinos réges,


Gloria a ti, aos deuses, ás deidades;
Tu, que impões a todos elementos
Ordens soberanas e vontades:

De Venus escuta a rogativa:


Não permittas que feros reveses.
Impeçam a magna tentativa
Dos esforçados nautas porluguezes,

(Dança mimica das nymphas, qus se tem colocado,


em grupo com as costas voltadas para os bastidores
da direita, e outro grupo com as costas voltadas para
os bastidores da esquerda, de sorte que não voltem as
costas nem para o Olympo, nem para os espectado
res. Emquanto tem logar a dança, Ganimedes e
Hebe, distribuem nectar aos deuses.)

Júpiter (a Venus)
Que move, oh filha minha! esse cuidado
Que te enuvia assim teu bello rosto,
Subleva-te esse peito angustiado
Qual se morta tiveras de disgosto"?
Dise. derrama, neste peito amado,
XX
Isso em que tens o teu cuidado posto,
Que fio meu cuidado peregrino
Em serenar-tc o espirito divino
Venus (a Júpiter)
Ha pouco o disse, Padre! . . . Baccho injusto
Atroz persegue a lusitana gente;
E porque nella nunca coube o susto
Fera guerra lhe move, e inclemente;
Lá vae mares a fora, bem a custo
Em p'rigo de falhar a empresa ardente,
Pois que a frota p'las ondas combatida
Dispersa está, parece já perdida!
Baccho (levantando-se)
Ouvido tinha aos Fados que viria
Uma gente fortissima de Hespanha,
Pelo mar alto, a qual sujeitaria
Da índia tudo quanto Doris banha.
E por novas victorias venceria .
A fama antiga, ou sua, ou fosse estranha. . .
Altamente me doe perder a gloria.
De que Nisa celebra inda a memoria.

Vê já que tive o Indo sobjugado,


E nunca lhe tirou Fortuna, ou Caso
Por vencedor da índia sêr cantado
De quantos bebem agoa do Parnaso:
Temo agora que seja sepultado
Meu tão celebre nome em negro vaso
Dagoa de esquecimento se lá chegam
Os fortes portugueses que navegam
Venus
Sustento pela sua graça bella
XXI

A affe.:çxo á gente lusitano,


Pelos dotes que hoje vejo nella
D'essa minha nação —nação romana:
Nos fortes corações, na grande eslrella,
Que mostraram na terra Tingitana;
E na lingoa que bem pois se imagina
Com pouca variante ser latina.
Marte levantando a viseira, e batendo com o conto
da lança, que produz um tom cavo, como que
abalando o Olympo)
Oh, tu, Jove! . . . senhor, a cujo imperio
Tudo aquillo obdece que criaste;
Se esta gente que busca outro hemispherio,
Cuja valia e obras tanto amaste,
Não queres que padeçam vituperio,
Como hajá tanto tempo que ordenaste,
Não ouças mais, pois és juiz direito,
Razões de quem parece que é suspeito.

Que se aqui a rasão se não mostrasse


Vencida do temor demasiado,
Bem fora que aqui Baccho os sustentásse,
Pois que de Luso vem, seu tão privado.
Mas esta tenção sua agora pásse,
Porque emfim vem de estomago damnado;
Que nunca tirará alheia inveja
O bem que outrem merece, e o Ceu deseja.

E tu, Padre, de grande fortalesa,


Da determinação que tens tomada,
Não tornes por detraz; pois é fraqueza
Desistir da cousa começada.
XXII

Mercurio—pois excede em ligeiresa


Ao vento leve, e á setta bem talhada,
Lhe vá mostrar a terra, onde se informe
Da índia, e onde a gente se reforme
Júpiter
Imprequemos os Fados sobre-humanos:
Àpollo nos desvende os seus arcanos.

Apollo (cantando, acompanhado da lyra)

Fortalesas, cidades, e altos muros


Por elles vereis sempre edeficados;
Os turcos bellacissimos e duros
D'elles sempre vereis desbaratados;
Os Reis da índia, livres, e seguros
Vereis ao Hei potente sobjugados;
E por elles, de tudo emfim senhores,
Serão dadas na terra leis melhores.

Vereis este que agora, pressuroso,


Por tantos medos o Indo vae buscando,
Tremer d'e,lle Neptuno, de medroso,
Sem vento suas agoas encrespando.
Oh caso nunca visto e milagroso,
Que trema e fervá o mar, em calma estando!
Oh gente forte, e de altos pensamentos,
Que tambem della hão medo os elementos!

Vereis a terra, que a agua lhe tolhia,


Que inda ha de sêr um porto mui decente,
Em que vão descançar da longa via
As náos que navegarem do Occidente.
XXIII

Toda essa costa, emfim, que agora urdia


0 mortifero engano, obediente
Lhe pagará tributos, conhecendo
Não poder resistir ao Luso horrendo.

E vereis o mar Roxo tão famoso


Tornar-se-lhe amarello de enfiado;
Vereis de Ormuz o reino poderoso
Duas vezes tomado e sobjugado:
Ali vereis o mouro furioso
De suas mesmas settas traspassado;
Que quem vae contra os vossos, claro veja,
Que se resiste, contra si peleja.

Vereis a inexpugnabil Dio forte,


Que dois cercos terá, dos vossos sendo;
Ali se mostrará seu preço e sorte,
Feitos de armas grandissimos fazendo:
Invejosos vereis o grão Mavorte
Do peito lusitano fero e horrendo.
Do mouro alli verão que a voz extrema
Do falso Mafaméde ao ceu blasphema

Goa vereis aos mouros sèr tomada,


A qual virá depois a sêr senhora
De todo o Oriente, e sublimada
Co'os triumphos da gente vencedora:
Alli soberba, altiva, e exalçada,
Ao gentio, que os idolos adora,
Duro freio porá, e a toda a terra
Que cuidar de fazer aos vossos guerra.
XXIV

Vereis a fortaleza sustenlar-se


De Cananor, com pouca força e gente;
E vereis Calecut desbaratar-se
Cidade populosa, e tão potente:
E vereis em Cochim assinalar-se
Tanto um peito soberbo c insolente.
Que citbara jamais cantou victoria
èQue assim mereça eterno nome e gloria

De modo será, Deoses, que de geito


Amostrarão esforço mais que humano.
Que nunca se verá (ão fopte peito,
Do Gangetico mar ao Gaditano,
Nem das Boreaes ondas ao Estreito,
Que mostrará o agravado Lusitano;
Posto que cm todo o mundo, de affrontados,
Resuscitassem todos os passados.
JrpiTER (a Venus)
Marcados os destinos portuguezes,
Venus socegue o lindo peito arfado,
Pois não terá nem damnos, nem reveses
Esse povo tão seu idolatrado,
E nas armas illustre, tantas vezes,
Quantas vezes na guerra ha batalhado! . . .

i Voltando-se para os deuses, levantando-se, e to


dos os mais:

O Olvmpo desde já festeja a gloria,


De seus feitos em eternal memoria.

O Olympo apparece illuminado esplendidamente


XXV
a cores. Por sobre o throno de Júpiter apparece um
dístico, com a seguinte legenda:
A' GLORIA DOS PORTUGUESES NA ÍNDIA

As nymphas fazem grã -ronde, cantando:

Choro final

A' descoberta das índias


Os fados propicios são:
Novos mares, novos mundos,
Conquista a lusa nação.

CAE O PANNO
PROLOGO
-.
A ILHA GYHIIRli
Vista d'esta ilha, a predilecta de Venus. O panno de fundo
deve representar o conjunto da ilha, basta de arvore
dos; grutas, cascatas, estatuas; lendo no fundo mais
longiquo, o templo, habitação da deosa.

Ao subir o panno de bocca, as nymphas que estão reunidas


em choro cantam o seguinte, á entrada de Venus, que
vem n'um carro, puxado por pombas, e acompanhada
de Cupido. Venus não desembarca: pára o carro no
meio da scena, e fica conversando com Gliceris (nijm-
pha) em voz baixa.

SCENA I

Vénus, Gliceris, Ephyra, Clymene, Chloris, Nise,


Cupido, e mais nymphas

Choro das nymphas

É chegada a gentil Venus,


A formosa mãe do amor,
/ A alma da naturesa
Que fecunda com primor.

Os seus olhos são dois soes


Que relusem lá nos Ceus,
E luminosos, a terra
Animam, com os raios seus.

(Dançam, repetindo a ultima quadra.)


30

Venus
É a hora do concilio dos deuses . . . Cumpra-se o
que disponho. (Despede-se de Gliceris, e parte no
carro com Cupido.)

SCENA II

As NYMPHAS, MENOS VÉNUS E CuPIDO


(As nymphas cercam Gliceris)

Ephyra
A deusa vae ao concilio?
Gliceris
Sim ... foi ella propria que o provocou . . . Grande
eommettimento de certo é o seu; mas para o conse
guir carece empregar a força de seus divinaes en
cantos, e o artificio do seu seductor discurso.
Clymene
Que intenta, pois?
Gliceris
Commover Jove, o pae dos deuses, em favor de
um povo que ama, e de uma nação briosa que segue
o impulso das suas leis.
Nise
Tenho notado que a Deusa anda ha tempos preoc-
cupada; mas pelo que ouço a Gliceris, então a Gre
cia, o Lacio, o orbe inteiro ergueram de novo os
nossos altares?
Gliceris
Não; mas a religião que essa nação professa, sim
plicissima, pura, e santa, está despida da idolatria
das paixões que se personificaram nos deuses da gen
31
tilidade; porem no profundo estudo do coração hu
mano descobriram que nós, as divindades antigas,
eramos um mytho, deificado para os rudes povos, e
em nossas alegorias unicamente os sacerdotes da
sciencia sabiam decifrar a cosmogonia do universo.
NlSE
E protege a deusa esse povo que não rende a ella
culto publico—a ella, que é a deusa do universo?
Gliceris
Contenta- lhe o culto interno . . . satisfaz-lhe a ado
ração no intimo do peito . . . Quando a alma se en
contra presa nas cadeias do amor, n'essa alma tem
Venus um altar, erguido voluntariamente, o que vale
muito mais que o culto exterior, imposto pela cons
tituição dos imperios. Aquelle, por voluntario, er-
gue-se suave, meigo, intimo, perfumado nas azas da
oração ingenua e candida, até ás sublimes regiões
onde demora a divindade; — este, o decretado, é
mentido no rosto, e na compostura que muitos affe-
ctam: não passa dos labios; e as phrases que a bocca
murmura, pois que não saem do coração, não sobem
á estancia divina—perdem-se nas quebradas dos
montes; dissolvem-se nas camadas da atmosphera!
(Ouve-se o som de calamos e pandeiros.)

Ephika
Que desaccordo?!
NlSE
Que inferneira?!
Gliceris
São os deuses sylvestres que acompanharam Bac-
eho ao Olympo.

SCEiNA III

Sileno, Pan. satyros, phaunos e as nyphas

SlLENO

Ora viva a bella companhia. (Offerece ás nymphas


uvas, que os satyros conduzem em açafates )
Pan
p- Com licença das bellas e encantadoras nymphas.
(Tocanocalamo uma melodia.)
Gliceris (com altivez)
Que os trouxe aqui?
Sileno (meio embriagado)
Ora eu lh'o vou explicar ... Lá o patrão Baccho
— que ia assim entre as dez e as onze, para o Con
cilio dos deuses, disse-nos assim:* —Companheiros
e amigos das bambochatas! venha mais um trago da
borraxa . . . tenho de fallar muito no Concilio, et in
vino veritas . . . preciso envernisar-me . . . heide en
terrar hoje os Lusitanos, ou deixo de ser Baccho por
toda a eternidade.
Ephira
Que motiva, porém, o congresso dos deuses?
Pan
Uma cousa inaudita, estupendal . . . Vão tratar-se
lá principios que tem de fazer uma revolução geral
na vida dos povos, pondo em communicação . . .
Sileno (interrompendo)
Sim, pondo em communicação. . .
Pan (continuando)
Por uma via até agora ignota . . .
33

Sileno (interrompendo)
Por uma via até agora ignota . . .
Pan
Calla-te ahi borraxão . . .
Sileno
Ah! sim ... a cousa é isso! . . . então vou-me dei
tar. . . coserei assim dois almudes que me estão a
ferver na caldeira, porque foram tirados mesmo pu-
rinhos de cima da borra. (Quer levar comsigo uma
nympha que o repelle; e elle encolhendo os hombros
vae deitar-se á sombra d'uma arvore.)
Pan (continuando)
Gomo ia dizendo, bellas nymphas; trata-se de por
em communicação, por uma via até agora ignota, os
oppostos extremos da diurna peregrinação de Apollo
desde que o. astro do dia, abrindo aos mortaes as le
targicas palpebras cerradas pelo encantamento das
papoulas de Morpbeo, se desprende dos braços da
Aurora, para, ao aparecimento de Diana, se reclinar
nos braços de Thetis.
Cllmene
E quem hade levar esse projecto a effeito?
Sileno (levantando meio corpo, e tartamudeando)
Ora a pergunta tem bem de responder. . . a Al-
bion, a quem o tio Baccho dnrá forças e mais eu.
Pan
Calla-te dahi, ou afogo-te.
Sileno
Em vinho?. . . anda depressa.
Nise
Sim; quem é que tem esse projecto?
3
34

Pan
Os lusitanos; os portuguezes:
Ephira
Não percebo.
Gliceris
Vou explicar tudo. Morto o rei portuguez D. João,
segundo de nome, já tão glorioso pelas suas desco
bertas maritimas, foi succedido no throno pelo actual
monarcha D. Manoel, que não menos glorioso que o
seu antepassado hade deixar nome na historia uni
versal, apellidando-se o Afortunado! . . . N'este in
cessante pensamento mandou aprestar uma frota
para o descobrimento das índias; e mares fora vae
ella vogar, com o seu capitão Vasco da Gama. i
SlLENO
Ah!. . . agora dei no vinte. . . Tio Baccho que
tem o privilegio de embebedar os indios, está em
convulsões de perdêl-o ás mãos dos portugueses...
Por isso tambem elle foi ao concilio! . . . verdade é
que quem o seu não vê, o diabo lh'o leva. ( Ouvem-
se trovões.)
Pan

E Venus é a advogada dos portuguezes no con


cilio? . . . Estes trovões é a voz de Jupiter. Está aberta
a deliberação.
Climene
Sem duvida.
SlLENO

Pois hade perder a partida . . . Nunca vi a for


mosura levar a melhor desforra do summo da uva.
35

NlSE
Companheiras! vou espreitar o que, se passa no
Olympo, para vir contal-o.
Climene
A curiosa!
NlSE
Diz a caldeira á certãa, tire-te lá, não me enfar
rusques.. . . Tu é que querias ir?
Climene
Eu!
Nise (para Ephira)
Tu?
Ephira
Eu!
Nise (para Chloris)
Tu?
Chloris
Eu!
Nise (para as outras nymphas)
As senhoras?!
Todas (a uma voz)
Nós?!...
Nise

Então, como nenhuma quer, vou eu.


Nymphas (a uma voz)
Vamos todas, vamos todas.
Nise
E eu so era a curiosa?! . . . Ora boas noites, mi
nhas dissimuladas. (Deita acorrer para um dos bas
tidores, e é vista elevar-se nas nuvens. Ouvem-se ti
ros de artilheria.)
36

SCENA IV

Os MESMOS, MENOS NlSE

Sileno (remexendo-se)
Que diabo d'isto é aquillo?!. . . (levanta-se sobre
um cotovello, e escuta) Provavelmente é Vulcano,
que está trabalhando na forja.
Gliceris
Não . . . é a frota portuguesa que levanta ferro
no Tejo.
Pan
Arrojada empresa! . . . Fazer a volta do mundo,
não é para forças humanas.
Gliceris
Hade sel-o, que ao povo portuguez servem os es
torvos unicamente a incender-lhe os brios. Os impos
siveis são estimulo a mostrarem que os não conhece.
(ouve-se um vosear confuso e longiquo)
Sileno (levantando meio corpo, e applicando o ou-
do ao tablado)
Torno a repetir , e affirmo com um milhão de
diabos (dando punhadas no tablado) que é Vulca
no que está trabalhando na forja, e provavelmente
descobriu alguma arma de novo gosto para dar ca
bo da triste humanidade. . . Será bombarda de
agulha!?
Gliceris
Esse rumor confuso que, de tantas mil legoas che
ga a esta ilha, são as saudações enthusiasticas com
que o povo lusitano, apinhado na praia do Rostel-
37

lo, e nas que delimitam até á foz do Tejo, saúdam


os futuros descobridores da índia . . . Olhem . . .
(apparece no fundo a frota composta de quatro
vellas, singrando o mar)

Choro das nymphas

Vencerás, formosa Venus,


Bom despacho á rogativa;
Teus pedidos ordens são
A que genio algum se esquiva:

Bem merece o luso povo


Teus carinhos protectores,
Que no mundo não ha outro
Mais excelso de primores.

Provada fidelidade
Tem por timbre, e por brasão:
Na guerra heroe valente,
Na paz branda condição.

(dançam repetindo a ultima copla, e acaba de


passar a frota)

SlLENO
Ah! . . . isso vae assim! . . . E' tudo Venus, e os
lusitanos!. . . pois eu lhes vou mostrar se Baccho, e
as índias são barro (levantem do-se). . . Para aqui.
faunos e satyros! . . . temos tempo para a bambocha,
emquanto os deuses da Gamara alta estão discutin
do projectos de agoa morna. . . Vamos a isto.
38

(Os faunos e satyros formam a um lado, e asnym-


phas, como espavoridas, formam do lado contrario)

Choro dos faunos e satyros

Vence o vinho os valentões,


Faz até mudar carrancas;
Põe-os mansos qual cordeiros,
Apenas lhes cáe nas panças!

Vence, vence, vence oh Baccho!


Quem não seja teu amigo;
Deixa-o esticar á sêde;
Põe-lhe as costas té no embigo!

Não merece compaixão,


Deus das sumas alegrias,
Quem despresa o teu licor,
Tuas pandigas folias!

(dançam grutescamente, repetindo a ultima copla)

SCENAV

Nise descendo em uma nuvem, e os precedentes.

Nise (cantando)

Jove potente,
Justiça fez,
Pois que protege
O porluguez.
39
Na lide honrosa
Venus venceu:
Astuto Baccho
Tudo perdeu.

Era para ver no Olympo


Como os deuses debateram
A nobre causa, gloriosa,
Que os portugueses venceram!

Foi o debate renhido;


Houve contra—houve prós;
Porém, alfim a victoria
Ficou por elles—por nós.

Na lide honrosa,
. Venus venceu;
Astuto Baccho
Tudo perdeu

Jove potente
Justiça fez,
Pois que proteje
O portuguez.

Choro das nymphas

A gloria de um povo immortal


Vae surgir nos fastos da Historia,
Inscrevendo o leal Portugal
Em feitos de eterna memoria.
40
GuCERIS
Refere, Nise, como se passou a sessão dos Deuses
no Olympo,
Pan
Houve votação?
Nise
Pois não havia haver!
Sileno
Batota!
Clymene
Foi nominal?
Nise
Não.
SlLENO
Batota!
Ephira
Por levantados e sentados?
Nise
Não.
Sileno
Mais batota!
Choloris
Então por espheras?
Nise
Está visto.
Sileno
Batota completa!
Pan

Quem foram os escrutinadores?


Nise
Saturno:
41

SlLENO
Que devorisla!
Nise (continuando)
E Mercurio.
Sileno
Que empalmador!
Clymene
A mesa tinha secretarios?
Nise
Secretarias, se faz favor.
Pan
Era mesa mixta!
Ephyba
As secretarias?
Nise
A primeira Latona.
Pan
Que chorona!
Nise (continuando)
A segunda Ceres
Pan
Ih! como havia cortar! ... se ella aprendeu a cei
feira! . . . Ora vá a gente dar credito a uma assem-
bléa deliberativa, ainda mesmo composta de deoses
da primeira ordem! ... Se tambem os immortaes
fasem d'estas!H . . . Vou beber duas pipas de vinho,
e por- me á testa duma revolta. . . Bota abaixo os
deuses—de primeira ordem, se entende. . . para go
vernar o mundo bastam os adventicios, graduados
em segunda ordem, que já são bastos; vamos lá. Em
quanto ás assembléas, catrapuz com ellas. . . Eu cá
sou assim: corto logo o mal pela raiz. . . Qh, minha
42

bella nympha Clyméne, não tem por cá daquelle fi


norio da ilha de Chypre, que pertence á deosa Ve
nus?
Clymene
Vá-se para donde veio e deixe-nos em paz. . .
Refere pois (para Nise) como se passou o concilio.
(Pan tem pegado no braço de Sileno e pretendido
arredal-o... Este debate-se, e diz):
Sileno
Larga dahi ... Eu tambem quero ouvir.
Pan
Então socega, e attento escuta.
Nise
Jupiter abriu a deliberação narrando que os lusi
tanos tem praticado proesas que deixam a perder
de vista as dos assyrios, persas, gregos, e romanos:
—que lhes está promettido pelos fados, que tenham
longos tempos o governo do mar que vê do sol a
roxa entrada; e que assim, porque a lei do destino
não pode sêr quebrada, era bem se lhes mostrasse a
desejada índia; e, portanto, já havia determinado que
na costa africana fossem agasalhados como amigos,
Chloris
E digam que a deosa não tem muito poder!
Pan
Se é tão formosa! . . . Decerto: fica riscada para
sempre a formosura.»
Nise (continuando)
Então Baccho, não consentindo no que Jupiter
disse, expoz ter ouvido aos fados que das partes de
Hespanha havia sair uma fortissima gente, que pelo
mar alto sujeitaria a índia, e que, por via de novas
43

victorias venceria a fama antiga, quer sua propria,


quer estranha. . .
Sileno
Barro.
Gliceris

Pois não barraste! . . . Com a gente portugueza


não se brinca ... em lhes chegando a mostarda ao
nariz vae tudo pelo pó do gato . . . Continua (para
Nise).
Nise (continuando)
Mas que attendesse Jupiter que elle Baccho havia
muito que era cantado vencedor da índia...
SlLENO
Ac muneris!
Nise (continuando)
E portanto se oppunha a que o seu nome ficasse
ali sepultado no vaso do esquecimento.
Sileno
E nós tambem nos oppomos . . . É como digo . . .
Ora veremos.
Pan
E os deoses deram-lhe apoiados?
Nise
Qual! . . . fallar elle e chiar um carro era tudo o
mesmo,-
Pan
Ora essa!
Sileno
Era porque não estava ainda como devia ficar.
Eu bem lhe tinha dicto:—Baccho! leva a borraxa...
olha que no Olympo não ha senão nectar, o que cor
4.4

responde a calda de capilé ... Se eu fosse em com


panhia d'elle, outro gallo lhe cantaria.
Gliceris
E a deosa?
NlSE
Com que enthusiasmo se ergueu ella no meio do
mais religioso silencio! . . . Expoz os motivos porque
era afeiçoada aos lusitanos, as eminentes qualidades
que nelles sobresaem, sua fidelidade ao rei e á pa
tria, e terminou declarando abertamente que estavam
sob sua protecção . . . Aqui romperam os bravos
de toda a parte, e a Deusa foi comprimentada pelos
mais conspicuos da assembléa.
Pan
Podera não. . . andam-lhe sempre farejando as gra
ças!
Ephyra
Ninguem mais teve a palavra?
NlSE
Marte ergueu-se irado contra Baccho, batteu na
abobeda celeste com o conto da lança, e o Olympo
tremeu.
SlLENO
Se elle não havia de fallar! . . . ainda se lembra das
rêdes, onde foi colhido.
Ephyra
E que disse Marte?
NlSE
Narrou as proesas dos lusitanos, no tempo de Ser
torio e Viriato contra os romanos, e depois no tempo
de Affonso Henriques, e seus successores, contra os
serracenos . . . descreveu as batalhas de gigantes que
45
sustentaram contra os hespanhoes, no tempo de D.
João I; suas conquistas na Africa, onde cada palmo
de territorio que conquistaram foi uma perola de glo
ria marcial; e concluiu dizendo que os lusos eram
dignos, pelo seu valor, do diadema do universo,
apostrafando Baccho, que fallava de invejoso por
causa do seu damnado estomago, e que, portanto,
Jupiter não devia attender ás suas vinhosas rasões.
Sileno
Patifel . . . (aos satyros e faunos) Socios e com
panheiros meus! este insulto não deve passar assim...
não podendo vingar-nos em Marte, e em Venus, que
esjão longe? desaffrontemos Baccho, em as nymphas
que têmos presentes. . . Á victoria.

Choro dos satyros e faunos, correndo

N'ellas. . . sim nellas


A affronta vingar . . .
Por Marte, por Venus,
Nos devem pagar,

Choro"das nymphas, fugindo

Ah! nymphas, donzellas,


A fuga tentar;
Por Marte, por Venus
Hêmos escapar.

(Cada satyro e cada fauno consegue agarrar uma


nympha, ficando iodos os pares em linha, no fundo
do theatro, os faunos e satyros' atraz das nymphas,
46

que seguram pelas cinturas, buscando beijal- as; po


rém as nymphas esquivam os beijos, voltando a face
para o outro lado.)

Choro

faunos e satyros

Victoria... victoria (buscando dar o beijo)

Nymphas

Victoria!... não... não (voltando as caras) #

Faunos

Ah! é nossa a gloria (tentando dar beijo na outra face)

Nimphas

Por ora inda não. (voltando a cara)

Repete-se

Faunos

Tecêmos os laços (o mesmo jogo de scena)

Nymphas

Havemos fugir. . . (dito)


47
Faunos

Entre os nossos braços dito)

Nymphas

Viver é morir! (dito)

Ensenble

Faunos .. s Nymphas
Cantamos victoria; I V Não louvem a gloria
Cantamos sim, sim; \ ) Por ora inda assim;
Recolhe-se a gloria í j Se canta a victoria
Somente no fim. ) ' Sómente no fim.

(Forcejando por beijarem as nymphas sõ do lado


de uma face.)

As nymphas não se deixam beijar; desprendem-se


dos faunos e salyros, e voltando por traz d'elles ater-
ram-os, fazendo -os ajoelhar, e pondo lhes as mãos
sobre os hombros.)

Ensemble

Nymphas -s r Faunos
Vencemos, vencemos, j 1 Perdemos.... perdemos,
Qual era de ser; \ ) Não devia ser;
Por nós a justiça í ) A nossa justiça
Devia vencer. J f Devia vencer.
48

Gliceris (largando o fauno; no que é imitada


"pelas outras nymphas)

Ergam-se . . . Basta a humíliação para castigo . , .


Nenhum outro infligimos, porque temos mesmo como
aviltante tirar de taes inimigos outro qualquer des
forço. . . Estes brios tomámos por exemplo dos por-
tuguezes—nação valorosa, a qual nenhum inimigo
assombra na guerra: —nação generosa, que satisfeita
com a gloria dos seus louros, não tinge a purpura
do seo manto real no sangue do vencido! . . . Por
tugal não vê neste um escravo; vê um homem; vê
um irmão . . . Hade ser esta nação que dará um dia
exemplo ao mundo de partir ella propria os grilhões
de mil povos que lhe hão de ser subjeitos em seus lon
gos dominios, para os elevar da degradação aos foros
da liberdade . . . hade sêr tambem d'ella, nos tempos
que estão por vir, que sahirá o humanitario exemplo
de abater os cadafalsos, ainda para os mais abjectos
criminosos, como o christianismo apagou as fogueiras
pagãas—respeitando a vida do homem, que nenhuma
sociedade tem direito de arrancar, nem mesmo a pre
texto da vingança de um insulto a essa sociedade, (ou
ve -se uma peça de musica, cuja melodia seja mui
suave, e todavia riella tome parte toda a orchestra).
Escutem como no Olympo os deuses festejam a justa
sentença de Jove no pleito dos lusitanos! . . . Veja-se
como nos proprios astros se increve a gloria d'este
povo . . . (apparece o templo de Venus transformado
n'um sol, tendo no centro inscripto o dístico:)

Á GLORIA DOS DESCOBRIDORES DA ÍNDIA


49

Choro das nymphas .

A' descoberta das índias


Os fados propicios são:
Novos mares, novos mundos,
Conquista a lusa nação.

Gliceris (continuando)
Saude-se o genio que neste momento vae buscar a
perola indiana, gerada na concha que serve de carro
á Aurora, para a engastar fulgente e rutilante na coroa
d'esta excelsa monarchia! (desapparece o sol, eé subs
tituído pelo retrato de Vasco da Gama, n'um circulo
de gloria) Ao genio e valor daquelle heroe iguala o
genio e valor de cada um dos membros d'esta gloriosa
nação, o elogio dos quaes unicamente está cifrado
numa singella, mas eloquente phrase: «São portugue-
zes; e portuguezes só querem morrer! » (Desce opanno)

FIM DO PROLOGO
ACTO PRIMEIRO

QUADRO I
CARAVELLA S. GABRIEL

Esta caravella (ê a almirante) tem a popa voltada para


o espectador. A scena passa-se no convéz. O panno de
fundo representa um extenso horisonte de mar e ceu,
e mais três velas em diferentes distancias.

SCENA I

Lobo-Marinho, Enguia, Bitacula, (marinheiros) algu-


gumas sentinellas passeando. Vicente, (soldado)
de sentinella no castello de popa. Varios mari
nheiros sentados, cosendo panno, outros de pé, ou
tros deitados sobre rolos de cabos, tanto á popa,
como á proa.

Lobo-Marinho
Por S. Nicoláo, que é o mestre da manobra cá dos
mareantes, esta procura das índias é uma maginação
do diabo!
Enguia
Mas donde veiu a S. Alteza, o sr. D. Manoel, ter as
sim a cabeça a léste?!
Bitacula
É para uma pessoa andar a tres quartos de éste-nor-
oeste, e sempre com a borda debaixo de agoa. Diz-se
52
que El-Rei teve a imaginação de um sonho em Estre
moz, no qual viu duas agrestes montanhas, que mos
travam nunca ter dado rumo a pés de homem, desde
que Adão peccou; e que d'estas montanhas nasciam
dois rios, que lá na bolla de Sua Altesa, que decerto
nessa occasião estava sem atemento nem substancia,
se lhe transformaram em dois velhos de barbas com
pridas, os cabellos a escorrer agoa, e a farpella enchar
cada. Vieram os taes macacos de tope grande, que
eram famosos palreadores do arco da gavea, dizer a
Sua Altesa que eram o Ganges e o Indo, que tinham
seu nascimento no imperio celeste, e lhe acenava com
muita terra, e riquissimos tributos, como uma batel-
lada de bagunxo e parne, que era ir pelo portaló fora,
se acaso Sua Altesa mandasse pelo mar largo a des-
cobril-os por davante do cabo das correntes. . .
Lobo-Marinho
Atravessa ahi. Não foi nesse cabo que Bartolomeu
Dias fez termo de arribação, quando veiu a esta via
gem por mandado do sr. Infante D. .Henrique, que
Deus haja?
Bitacula
É como diz; e até eu vim n'essa companha. A qua
renta e tantas legoas do ilheo, a que se poz nome de
Santa Cruz, está esse cabo das correntes, que não
poude dobrar; o que sómente é possivel com monção
favoravel, porque soprando o vento norte, as caravel-
las são impellidas para a costa, e não ha outra passa
gem para a índia.
Enguia
Esse cabo e o das Tormentas são o fim do mundo...
ora no fim do mundo pode haver terras?
53

BlTACULA
E se a houvesse leria este fidalgote da corte bar
bas a puxar até arrebentar cada páo com sua véla,
melhor que Bartholomeu Dias, que era um bom mes
tre de mareação?
Lobo -Marinho

Bons bocados nos estão guardados se continuar


mos nesta avania de procurar á fina força o tal
preste João . . . Aqui á falla . . . Temos de dar con
ta de nós ás nossas familias, e então é preciso, visto
que o panno está envergado, suspender, e navegar
para Portugal. ( Ouve-se um marinheiro cantar).
BlTACULA
E o Cabo do Espichel. . . juramento d'alma que
é precisa cautella com elle, e estarmos de vigia nos
váos. . . E todo á mão com os officiaes de pôpa.
Lobo-Marinho
Troquemos os cabos . . . não deixemos o chaveco
com agua aberta ... Ao depois largarêmos da amar
ração.
SCENA II

Cabo do Espichel, e os ditos

Cabo do Espichel (subindo pela escotilha)

Eh rapazes! . ^ . se falta a rufadeira, e já não ha


boxêxas que façam olho de peixe, nem por isso um
homem se faz asul . . . Qual de vocês é melhor can
tador do que cá o meco?... (reparando no sesudo dos
marinheiros aos quacs se dirigiu, e á parte) Aqui ha
54
rascada! . . . (alto) Melhor cara traga o dia de ama
nhã. . . Estão assim com cara de enjoados. . . Irral
por Santelmo! . . . parece que faz aqui muito mar,
muito balanço, ajuntam-se as enxarcias, e não se
pode subir aos vaos! . . . Vocês advinham trovoada?
Bitacula
Esta, o mar por sotavento... a viajem vae,tão
demorada!
Cabo de Espichel
Quando cae grande agoaceiro um homem caixa-se
com a amurada, e deixa pinchar o barco ... A cousa
hade ter fim; quando mais não seja no fundo do mar.
O chaveco larga da amarração, desconjuncta-se, es-
cangalham-se as obras mortas e vivas, somem-se os
mastaréos, e vae um marinheiro calafetar cavernas
no buxo dalgum tubarão. . . Viva Deos!. . . o que
tem de ser seja . . . tristesas não pagam dividas . . .
Toca a cantar. O Cabo do Espichel não treme da
morrer afogado. . . ando sempre de escota á larga...
Lobo-Mamnho
A parrelaventear.
1 r Enguia
É um rapaz amantcste.
Cabo do Espichel
Então vocês callam-se para ahi?! ... Já estou
farto de lhes ouvir largar espaládos- Escutem se que
rem, que vou deitar uma cantiga:

Nas vagas o marinheiro


Affronta o rijo tufão;
Embora o tempo lhe caia,
De medo não treme. não.
55
Na manobra sempre forte,
Segura firme o timão;
E se estalla a tempestade,
Se rebenta o mar em ira,
Desvairado não delira,
Que sem susto encára a morte!

No rebentar dos trovões


Ouve aquella melodia,
Que a alma forte lhe enleva
Na mais valente energia!
O p'rigo passa cantando,
Como se fora alegria
O fragor da tempestade!
E da sorte descuidado
Nas ondas dorme emballado,
No destino confiando!

Se desarvóra a galé,
Ao governo não cedendo,
Vê o p'rigo a rosto enxuto,
Negra sina não temendo! . . .
Trabalha com vivo ardor,
Força mortal excedendo:
Mas se a manobra é baldada,
A pique vae o baixel,
Busca na vaga infiel
Brava morte, com valor!

Bitacula

É verdade. . . é verdade! . . . viva o cantador.


50
SGENA III

Os ditos, Frencisco (pagem) que se senta na amu


rada, e alguns outros marinheiros que tem vindo
de proa.
Lobo-Marinho

A boas horas vem este galope de proa impingir-


nos cousas tristes! . . . Para que lembrar os tempo-
raes, a morte, quando a temos todos os dias diante
dos olhos, porque ha bastos mezes andamos sobre
as ondas, sem vêr termo á viagem!. . . Queremos
cousas alegres.
Vozes
Sim ... sim . . . cantigas alegres.
Cabo do Espichel
Alegres . . . alegres ... De que serve mentir os
labios, quando a cada no que avançamos vem uma
nuvem, ameaçando temporal desfeito, avisar-nos de
que é preciso ferrar panno . ,. . metter em rise, e por
tudo em arvore secca? . . . E assim que o bom ma
rinheiro se prepara para o combale entre a vida e a
morte . . . com uma região de diabos! . . . ! n' estes
momentos não estão a calhar cantigas de maricas. . .
Eu cá não as sei . . . isso é bom para Lobo-Marinlio,
que deshonra a alcunha que lhe pozeram:
Lobo-Marinuo
Que dizes dahi?! . . . (remettendo contra Cabo do
Espichel)
Cabo do Espichel (pondo-se em attitude de defesa)
(Ambos puxam de navalha)
Digo e repito que deixo para li os motetes de ru
57
flão . . . Se te chegas para cá não te saes bem da ras
cada.
Lobo-Marinho
Olha que se pulo dou-te uma pancada.

Bitacula (com alguns marinheiros, que tem


corrido a interporem-se entre os dois.)

Que é lá?. . . quem está de vigia! . . . Não vale,


em boa camaradagem do galeão . . . Taes disputas
são boas, á fé, para quando abancados em terra . . .
aqui a segurança de todos depende da armonia . . .
(para Lobo Marinho) Se sabes alguma cantiga ale
gre, canta-a, Lobo-Marinho.
Lobo-Marinho
Cá estou em calmaria . . . Cantal-a-hei; mas hão
de alguns da companha cantai -a comigo,
Vários marinheiros
Cantaremos . . . cantaremos . . .
Lobo-Marinho
Obrigado, amigos; obrigado (apertando as mãos
aquelles que se ofereceram) Vocês não tem fajeca da
rapasiada do alcaixa .... (para Cabo do Espichel)
Não sei se será de rufião ... Lá vae:

Deixámos na patria amada,


Lembrança das desventuras,
Buscando nas ondas 'sprança
De mil gosos, mil venturas.

Inda aqui, sobre estas ondas,


Amor, que em terra deixámos.
58
Nos está sempre lembrando
Juramentos que firmámos.
Choro dos marinheiros

Sim, que o marinheiro sim,


N'essa plaga aonde fôr,
Guardará, constante, as juras
Do seu firme e terno amor.

Lobo-Marinho

Quando rebenta a porcella,


Se involve em furia atormenta,
Porque a esperança nella tem
D'esse amor bem se sustenta:

Pois ouviu á sua amada


N'essa triste despedida:
«Volve amor!... volta depressa
« Alegrar-me a triste vida.

Choro dos marinheiros

Marinheiro! agora ah que sim!


Nas vagas não ha que temer. . .
Lá sorri a estrella nos ceus;
Da amante o signalde bem q'rer

Marinheiro! alegre sorrir,


Sem medo á manobra, ou pavor
Que finda a viagem lá tens
Na patria o premio de amor.

"\
50
Lobo-MarinhO

Damor esp'ranças,
Lá nesssa praia,
Que a bella estrella
Alíim nos raia!

Damor esprança
Hade sahir,
Pois em bonança
Vejo-a luzir!

Estrella dalva,
Bem confirmada
Esperanças dá
Duma alvorada.

Oh! como a rota


Vae presanteira!
Abate a calma
Brisa fagueira!

Choro

Oh! como a rota


Vae presenteira!
Abate a calma
Brisa fagueira!

Lobo-Marinho

Damor espVança
60

Vejo sorrir
Ao marinheiro.
No seu porvir!

A nuvem foge. . .
Já, sem temer,
Damor esp'rança
Podemos ter!

E do baixel
N'este singrar
Nos leva amor
Bem a abordar!

Oh! marinheiro!
Não tremas, não;
Em terra tens
Teu coração.

Choro
Oh! marinheiro!
Não tremas, não;
Em terra tens
Teu coração.
( Ouve-se uma voz de cominando dada por porta
voz, e a marinhagem corre á proa.

SCENA IV
Francisco, pagem, e Vicente, sentinella
Francisco (pensativo e suspirando)
Que vida a minha! (torna a cahir absorto em suas
meditações )
61
Vicente (girando no tombadilho de popa)

Um signal de porta- voz foi bastante, para a tri-


pulagem deixar o seu folguedo! . . . Aqui está o sr.
Vicente, soldado veterano, engaiolado como um bi-
xaroco na arca de Noé! . . . Ceu! mar, e disse . . .
E porque?. . . Porque deu no bestunto ao sr. In
fante D. Henrique, indusido pelos seus cosmographos,
e uns traficantes que vieram lá de Venesa, affirmar-
lhe que havia no cabo do mundo um préste João,
que era christão—mandar umas expedições em bus
ca do tal ratasana! . . . Ora o sr. Infante D. Henrique
já se finou, mas passou a mania em testamento a
El-Rei D. Manoel. . . Ora eu já dobrei o cabo Boja
dor, no barinel que o sr. Infante D. Henrique, ata-
sanádo pela febre de descobrir terras, entregou a
Affonso Gonçalves Bandaia, seu copeiro : — no tempo
de Sua Altesa, o sr. D. João II, e que ia em com
panha de Gil Esteves . . . tambem estive nas Ilhas
Canarias, descobertas por messior João de Betten
court. . . fui ao Berim, e não tremi: nem quando
acompanhei ao Congo Diogo Cão . . . Porque heide
tremer agora? Isto já vae para a velhice; e por isso
tremo travar conhecimento com algum peixão do mar:
sepultura que não é cá muito do meu gosto ... Ao
menos lá por onde a raposa anda, se o soldado fica
no campo, furado por uma balla, tem as honras da
sepultura em terra sagrada; mas aqui? . . . encontra
sim as honras de uma balla, mas aos pés, para ir
direitinho para o fundo do mar! e por fim, zás! . . .
é engolido um pobre soldado, que em terra nunca
voltou cara ao inimigo, embora por cima da cabeça
62
me rebentasse uma abobeda de pelouros! . . . E tudo
isto porque?. . . Por ter sido mandado em procura
do sr. preste João das Arabias!
Em busca do preste João,
Um rei de cá-cá-rá-cá,
Vae triste um pobre christão
Procurando o rei lá do chá!

Era de certo melhor


Assorda comer co'amigos
Nas terras de Montemor,
No Algarve as passas e figos!

Melhor! ... de certo melhor,


Ficarmos lá por Guiné;
Das pretas era o amor,
Christão, de mais pura fé.

Francisco (suspirando)
Que vida a minha!
Vicente
Este rapaz deixou namorada lá em Lisboa! ...
coitado . . . Ahi vou sêr rendido na sentinella.

SCENA V

(Vem o cabo render Vicente, e fica em seu logar ç


besteiro Leonardo. Em quanto se rende a senti
nella, diz:
Francisco
A quanto obriga o amor! ... a quantas inconve
niencias, Deus meu! (saeocabo e a sentinella rendida)
63
SCÈNÃVI

Francisco e Leonardo

Leonardo (chegando-se a Francisco que se levanta)

E arrependes-te?
Francisco
Não ... Em Lisboa jurei-te, no dia em que tro
cámos as primeiras fallas de amor, ser sempre tua,
e por toda a vida ... Eu, pobre engeitada, que só
encontrei em tua mãe as caricias que devia receber
d'aquella que me deu o ser, e barbaramente demit-
tiu de si os deveres sagrados que a natureza lbe im
punha, apenas comecei a balbuciar as primeiras pa
lavras, n'ellas aprendi com o teu nome a soletrar
amor, apellidando a tua de minha mãe . . . Mãe! que
nome tão docel . . . é o som desferido na harpa de
anjos! ... A ti, chamava-te meu irmão . . . Irmão!
parece-me o ciciar do Zefiro beijando meigo as flo-
rinhas do prado! . . . Ah! (apertando-lhe a mão)
Como de pequenina já te amava.
Leonardo
Eras a minha querida irmãsinha. . . Nos meus
brinquedos de creança alegria não tinha se nelles
não tomavas tambem parte.
Francisco
E verdade. . . Ao diante, o amor da creança
transformou-se no amor da mulher; e deleitava-me
a alma a doce esperança de em breve ser tua á face
dos altares, quando esta expedição da índia, cortou
as azas em que o anjo da minha felicidade voava
G4

para o paraiso da nossa união conjugal, e precipi-


tou-me desabrida na terra safara dos meus tormen
tos!
Leonardo
E verdade, Maria! . . . deviamos casar dentro em
um mez, mas dois dias depois de me alistar no terço,
fui embarcado nesta caravella São Gabriel e d'abi a
pouco nos fizemos de vella.
Francisco
Tinha, porém, jurado ser tua até á morte. . .
Heide cumprir o juramento que meu coração formou
e a alma sanccionou.
Leonardo
E cumpiiste-o, sim, mas com imprudencia.
Francisco
Imprudencia! ... E és tu que o dizes?! . . . Que
vens fallar de imprudencia a quem ama delirante e
apaixonadamente^
Leonardo
Perdoa, Maria! . . . É por ti que tremo, vendo os
perigos de mar e de terra a que vens exposta. . . é
pela minha ventura e amor, que receio seres desco
berta . . . Compõe-se a expedição de cento e setenta
pessoas, entre mareantes e homens d'armas ... são
duplicados olhos que estão erguidos sobre ti.
Francisco
Receias por mim?! . . . Não avalias como a morte
me será suave tendo-te a meu lado . . . Receias por
ti? . . . cruel! ... só vês entre tantos homens o teu.
ciume, e não a minha constancia!
Leonardo
Maria! . . . minha bem amada!
65
Francisco
Angustiada pela noticia da tua partida, concebi um
projecto que logo puz cm execução . . . Para dar honra
a Francisco de Lemos—o filho de Dona Mencia—fora
elle nomeado, por empenho de familias amigas, pagem
de Vasco da Gama. Reluctava a nobre dona em deixar
partir o filho estremecido a tão longa e perigosa nave
gação . . . Abri-me com esta senhora, que é em extre
mo bondosa, e sempre me professou carinho . . . pro-
puz-lhe substituir-me ao filho. Considerou-me os pe
rigos e lances a que me arriscava . . . combati-os re
soluta . . . finalmente accedeu.
Leonardo
E nossa pobre mãe?
Francisco
Sentiu nalma o duplo golpe da tua e minha partida;
mas o coração de mãe também é egoista, e vendo que
eu te acompanhava, pareceu-lhe que escudado por
mim te entregava ao teu bom anjo da guarda.
Leonardo
Misera! . . . isolada das suas affeições na terra,
quem a aninhará?
Francisco
D. Mencia de Lemos, que radiante de praser, por
conservar junto a si o filho, jurou-me proteger nossa
mãe, recolhendo-a em seu palacio. Tudo prevenido
assim, involvida no prestito que no dia 8 de julho de
149 7 embarcou napraiadeRostello, achei-rneabordo
da capitania, prestando meus serviços de pagem a Vasco
da Gama, sem elle, nem pessoa alguma suspeitarem
do meu sexo, e espiando as horas e os momentos em
que mais á solta te podesse fallar a sós: mas como tem
5
6G

sido tão curtos só agora poude narrar-te o que ainda


ignoravas.
Leonardo
Deus nos proteja, Maria.
Francisco
Deus e a Virgem nos protegerão, que conhecem a
puresa do nosso amor . . . Lembras-te, Leonardo,
d'aquella canção que na vespera da partida me reci
taste?. . . jurando-me que a todas as horas a invoca
rias, para que as auras me levassem á terra a confir
mação do teu amor? ... Já então havia eu preparado
tudo para te acompanhar; mas não quiz diser-te nada,
porque me dissuadirias do intento, e uma palavra tua
são ordens para mim. (baixando os olhos com pudor
e enleiada) Não te acompanharia, que não havias que-
rel-o.
Leonardo
Minha Maria! . . . como é sublime o teu amor! . . .
Se me lembra essa canção?!... Não me tens ouvido
aqui tantas veses repetil-a a bordo?
Francisco
Sim... e bem profundamente a gravei na memoria
para me baixar ao coração, a alimental-o na sua cons
tancia... Escuta, vê se a sei, ou não:

Ah! deixei-te, meu berço de infancia,


Minha patria de ricos primores;
Da amante namorada instancia,
Exhallando perfume de flores!...
Vou viver entre gente remota,
E da ausencia já soffro o quebranto; .
67

Que na terra deixei meu encanto:


Minha patria, meu ceu, meus amores!

A galera já singra afanosa,


Pela brisa do mar impellida!...
Como a vista se volve saudosa
Para a terra que vae em fugida!
Por ventura de novo eu verei
Esses meigos e doces penhores
Muito fundos, e vivos amores
De minha alma, e da minha vida?!

Ai, adcos!... levo nalma saudades


Que bem vivas terei de penar;
Duras penas— crueis anciedades
Que, por certo, sim, me hão-de matar!..,
Como triste será se morrer
Longe d'esses meus ternos amores,
Sepultado no bravos furores
Das revoltas tormentas do mar!

Ah! deixei-te, meu berço de infancia,


Minha patria de ricos primores;
Da amante namorada estancia,
Exhallando perfume de flores!...
Vou viver entre gente remota,
E da ausência já soffro o ojuebranto;
Levo nalma glorias de encanto:
Minha patria, meu ceu, meus amores.

[Ao dizer este ultimo verso, abraça-se a Leor


nardo.)
68

SCENA VI

Gonzaga, e os ditos

Gonzaga (apparecendo repentinamente, e mettendo se


de permeio aos dois)
Imprudentes! querem denuhciar-se?
Leonardo
O dispenseiro da caravella S. Gabriel!!!
Francisco (para Leonardo)
Sabe tudo.
Gonzaga (para Leonardo)
Não lhe importe saber quem sou ... um dia des
vendarei o mysterio ... (a Francisco) Passou a Vasco
da Gama o aviso que lhe dei?
Francisco
Cumpri o ordenado.
Gonzaga
Guardando segredo sobre ter sido eu que o en
viei?
Francisco
Guardei.
Gonzaga (para Leonardo)
De mim nada se arreceie . . . protegerei seus cas
tos amores; mas para o diante tenham discripção.

[As sentinellas bradam ás armas).


Gonzaga (continuando)
Ahi vem Vasco da Gama. . . (para Leonardo)
Continue no seu posto. . . (para Francisco) Pagem,
venha commigo.
69
(Leonardo gira como sentinella. Gonzaga e Fran
cisco retiram-se. Vasco da Gama, acompanhado do
Estado-maior, sobe á tolda, e caminha para o cas-
tello de popa, apresentando lhe armas as sentinellas.)

SCENA VII

Vasco da Gama, Pedro d'àlemquer, (piloto) Diogo


Dias, (escrivão) Fernão Martins, (lingoa) Fr.
Christovão Soares, (freire de Thomar, e capellão
mor da armada) Officiaes do estado-maior, Fran
cisco, (pagem) e Leonardo, (girando como senti
nella )

Vasco da Gama (sentando-se, e os mais em pé)


Que nos diz sr. Pedro de Alemquer?
Pedro de Alemquer
Que não deve estar longe, segundo observei pelo
astrolabio, o cabo Não; do qual se diz que poucos
voltam dos que para elle vão; mas que passaremos
avante, e voltaremos com o favor divino . . . Adiante
d'este cabo, segundo a Taboa de Ptolomeu, acha-se
o cabo Promontorio. Esta viagem fiz com Bartholo-
meu Dias, e posso certificar que proximos estão.
Vasco da Gama
Com tão boas novas devem todos folgar . . . Temos
(para os officiaes) caso serio a tractar hoje . . . (vol-
tando-se para Diogo Dias) Sr. escrivão, vá buscar a
bandeira que recebi de Sua Altesa o Senhor Dom
Manoel, quando em Estremoz me commetteu a em-
preza do descobrimento das índias . . . Traga tam
bem o livro, onde está lançada a falla que Sua Al
70
teza nos fez por essa occasião. (Sae Diogo Dias: e
Vasco da Gama continua, voltando-se para os offi-
ciaes.) Temos que fazer com alguns dos nossos ma
rinheiros, e gente de armas. Recebi aviso particular
de que se nota na tripulação d'esta capitania, e das ca
ravellas, certa agitação e symptomas desagradaveis.
Puz de atalaia alguem, cuja intelligencia fio desco
brirá a trama. Serão prevenidos os capitães Paulo da
Gama, da S. Raphel; Nicolau Coelho, da Berri; e
Gonçalo Nunes, da náo, para virem ámanhã de ma
nhã, com alguns dos seus officiaes a conselho, a bordo
da capitania.
Fr. Christovão Soares
Deus previnirá como melhor fôr para o serviço de
sua santa fé. ' ' - •
Vasco da Gama (a um official)
Chame aqui a gente de proa, e a guarnição.
(O official vae cumprir a ordem, e Diogo Dias
apparece com os objectos mandados buscar).
Vasco da Gama [continuando para os officiaes)
Logo lhes direi quanto sei. . . fallas são para
mais espaço e folego.

SCENA VIII

Os ditos, a marinhagem e guarnição, que formam


entre d'avante e casíello de popa, cujo espaço está
unicamente oceupado pelo Estado-maior.

Vasco da Gama (avançando para onde estão formadas


a guarnição, e tripulação
Estamos prestes, segundo a opinião do sr. piloto,
71
Pedro de Alemquer, a passar esse temeroso cabo,
que denominam das Tormentas, mas que confio em
Deus, na Virgem sua mãe, e no anjo Custodio do
reino, trocar no de Cabo da Boa Esperança. . .
Aguardei este momento, não porque a peitos por-
tuguezes seja myster levantar animos, ou excitar
brios, porque os teem bem altos de seu natural, mas
para repetir de novo, á vista dos perigos, a resolu
ção em que estou de os vencer . . . Leia, sr. escrivão
(para Diogo Dias) a falla que Sua Altesa, o Senhor
Rei Dom Manoel, nos fez, tanto a mim, como aos
srs. capitães desta armada, quando nos commetteu
esta gloriosa empresa, e que por sua regia ordem
foi lançada no livro que tem em mão . . . (para todos)
Attendam, e descobertos todos, pois é El-Rei que
falla, (descobre-se, e todos igualmente.)
Diogo Dias (lendo)
«Depois que aprouve a Deus, Nosso Senhor, que
eu recebesse o sceptro d'esta real herança de Por
tugal, mediante sua graça, assim por haver a benção
de meus avós, a mais principal cousa que trago na
memoria, depois do cuidado de vos reger, e gover
nar em paz e justiça, é como poderei acrescentar o
patrimonio d'este meu reino, para que mais liberal
mente possa distribuir por cada um o galardão de
seus serviços; e achei que nenhuma outra é mais con
veniente a este meu reino, que o descobrimento da
índia, e daquellas terras orienlaes, com que ganha
rêmos galardão, lama e louvor cerca dos homens.
Assim que consideradas estas cousas, e outras, man
dei armar quatro vellas que, (como sabeis) em Lis
boa estão de todo prestes para seguir esta viagem de
72

boa esperança. E tendo eu na memoria como Vasco


da Gama, que está presente, em todas as cousas que
de meu serviço lhe foram entregues e encommenda-
das, deu boa conta de si; eu o tenho escolhido para
esta ida, como leal vassallo, e esforçado cavalleiro,
merecedor de tão honrada empresa: a qual espero
que leve a cabo com aquelles que o ajudarem nos
trabalhos d'esta viagem, porque com esta confiança
eu os escolhi por seus ajudadores; e a elle e a vós
recommendo paz e concordia, a qual é tão poderosa
que vence e passa todos os perigos.»
Vasco da Gama
Do mais que se seguiu passo a dar conta. Aquel-
la bandeira (aponta para ella, a qual Diogo Dias
desdobra nos braços) que Sua Altesa me entregou,
para a hastear nas paragens da índia, estava nesse
comenos estendida nos braços do Escrivão da Puri
dade, e eu, posto de joelhos em presença do nosso
rei, proferi o seguinte juramento que ora ratifico pe
rante todos. (Avança para a bandeira, e estende so
bre ella a mão direita, dizendo:) Eu, Vasco da Ga
ma, que ora por mandado de vós, mui alto e mui
' poderoso rei meu senhor, vou descobrir os mares e
terras do oriente da índia, juro, em o signal d'esta
cruz em que ponho as mãos, que por serviço de Deus
e vosso, eu a ponha asteada, e não dobrada, ante a
vista de mouros, gentios, e de todo o genero de povo
aonde eu fór; e que por todos os perigos de agoa,
fogo, e ferro, sempre a guarde e deffenda até á morte.
E assim juro que na execução, e obra d'este desco
brimento que vós. meu rei e senhor me mandaes fa
zer, com toda a fé, lealdade, vigia, e diligencia eu
73

vos sirva, guardando e compondo vossos regimentos


que para isto me forem dados, até tornar onde ora
estou ante a presença de Vossa Altesa, mediante a
graça de Deus, em cujo serviço me enviaes.

(Acabado o juramento, Diogo Dias dobra a ban


deira, e todos se cobrem dando Vasco da Gama o
exemplo.)

Vasco da Gama (avançandopara o centro dos officiaes,


guarnição e homens d'armas,
que se agrupam, formando quadro.)

Conheçam portanto, todos, a inabalavel resolução


em que estou: —sepultar-me n'estes mares, se não
poder luctar com a furia dos elementos; ou, vencen-
do-os, plantar no hemispherio da aurora, a ferro e
fogo se myster for, as sacrosantas quinas do pendão
de Portugal, (desembainhando a espada, e florean-
do-a Por Deus, pela Patria, e pelo rei, avante, leaes
portugueses! (A esquadra salva, e cae opanno.)

FIM DO 1.° QUADRO DO i.° ACTO


ACTO PRIMEIRO

QUADRO II

CARAVELLA S. GABRIEL

Meio atravessada em scena, dando a proa no ultimo bas


tidor (o 1.°) da esquerda do espectador (estibordo). O
panno do fundo representa mar, (como no l.° quadro
d'este acto) em illmitado horisonte.

SCENA I ,

No castello de prôa: Leonardo, Gonzaga, Pedro de


Alemquer, Francisco. Na pôpa grupos de mari
nheiros, como commentando algum sucesso. Senti-
nellas distribuidas pela tolda.

Leonardo
E vieram com os commandantes das outras tres
vellas, os escrivães João de Sá, da S. Raphael; Al
varo de Braga, da Berrio; e Nuno, da nau.
Pedro de Alemquer
E havia, segundo se diz, combinação com as ou
tras guarnições da frota . . . Não se sabe por quem
foi tudo denunciado ao sr. Vasco da Gama.
Gonzaga (áparte)
Eu o sei.
Pedro de Alemquer
Mas prevenidos hontem os capitães, traças por tal
7o

forma deram, qne já está nas mãos do capitão-mór


uma relação dos mais compromettidos.
Francisco (fingindo ignorar o plano da revolta)
Então era o plano fazer saltar a náos, quando es
tivessemos ancorados nalgum porto?
Gonzaga
Tão tollos eram elles que quizessem ficar para
sempre n'estas paragens d' Africa, sem esperanças de
voltar a Portugal . . . Uma noite d'estas deviam os
conjurados d'esta caravella S. Gabriel, a bordo da
qual estamos, obrigar aqui o sr. Pedro de Alemquer
a voltar de bordo, e quando Vasco da Gama presu
misse que iamos em direitura ao cabo, mal preca
tado se encontraria pela altura de 30 a 31 graus de
latitude, e 1 de longitude, nas agoas da Madeira; e
assim, por ser passada a monção, havia, por neces
sidade a frota, seguir viagem para o Tejo.
Pedro de Alemquer
Bem; se eu quisera annuir.. . primeiro perderia
a vida que commctter tão vil traição.
Gonzaga
. E em verdade que tramavam sua morte; porquê
ao dar as vozes de viiar, lançal-o-iam de rosto ao
mar, espalhando voz de que se afogára, e a traição,
quando descuberta, seria cm conjunctura de não ha
ver meio de a remediar.
Leonardo
Porem as outras vellas da expedição?
Gonzaga
Communicar-se-lhes-ia que, por justos motivos, o
capitão-mór resolvera retroceder a Portugal, em vir
tude de uma carta-prégo que trouxéra com ordem de
76

sêr aberta pelo 36.° de longitude, e 34.° de latitude


meridional, pela altura do Cabo das Tormentas.
Cumprida a ordem se encontrara determinação de que,
dadas certas circumslancias, se fisesse de volta a Por
tugal. Essas circumstancias se justificavam no des
gosto da tripulação; o que tudo se explicaria em con
selho, quando chegados a Portugal. O seu immediato
sr. Pedro de Alemquer, e que o substituiria na marea-
çãa, ..entrava tambem no concluio. Os signaes tro
cados entre as vellas, seriam decifrados ao capitão-
mór, a bel prazer dos rcbellados.

SCENA II

Bitacula, sobe pela escotilha, e dirige-se ao castello


de popa. Os ditos

Bitacula, (a Pedro de Alemquer,


fazendo-lhe continencia)

Estou de ordens ao conselho. Por mandado d'este


venho intimar o sr. Pedro d'Alemquer a comparecer
na camara do commandante onde funcciona.
Pedro de Alemquer
Prompto. (Desce pela escotilha com Bitacula.)

SCENA ffl

Os ditos, menos Pedro de Alemquer e Bitacula

Gonzaga (a Francisco e Leonardo)


Unicamente estou presente. . . Sabedor dos se-

-"V
77

gredos de ambos, não estorvo, de certo, que dêem


largas á expansão dos corações.
Francisco
Obrigada, sr. dispenseiro; obrigada . . . Que mais
tenho a dizer a Leonardo que elle não saiba, e os
nossos olhos, quando nas vistas se encontram, não
hajam dito mais que as proprias palavras?
Leonardo
Os nossos mais eloquentes e apaixonados discursos,
resumem se singellamente numa palavra: —amor.
Francisco
Confessa porém, Leonardo, que foi grande a tua
surpresa, quando reconheceste a tua Maria, em Fran
cisco, o pagem do sr. Vasco da Gama.
Leonardo
E quem poderia suspeital-o? . . . Eu proprio não
dava credito ao que meus olhos viam. Foi na ilha de
S. Thiago, a pricipal de Cabo Verde, onde tomámos
algum refresco, ao cabo de treze dias de navegação,
que bem attentei em ti. Baldadamente interroguei
todos da marinhagem: não sabiam dizer mais de que
eras filho de D. Mencia de Lemos. . . Duvidava eu,
hesitava no acreditar em taes vozes, e nessa similhança
de feições que amor gravou no fundo do meu peito,
e tão finamente tenho estampadas nalma, que mesmo
em sonhos sempre te hei retratada na mente. . . Ainda
te não disse, não, que em honra d'esse retrato com-
puz uns versos.
Francisco
Desejara ouvil-os, sr. poeta.
Gonzaga
E assim pode chamar-lhe, porque os amantes são
78
poetas... e se nem todos tradusem em versos rimados,
e em cadencias metreficadas as suas inspirações, toda
via todos, nos castellos aerios que fantasiam pelo amor,
têem um tanto de imaginativo, que bem se lhes pode
chamar poesia. (Vae para daoante, a ter com os ma
rinheiros.) . .
SCENA IV

Francisco e Leonardo

Francisco
Vejamos a sua inspiração, sr. poeta.
Leonardo
Agradece-a aos teus encantos. Eil-a:

O composto de Marilia
Forma um mixto divinal,
Qual em toda a naturesa
Não se pode achar igual:
Reune a essencia das flores;
Do íris os resplendores:

Sua tez aveludada,


Não ha que posssa igualar:
,. São os olhos de tal brilho
Que o sol vem offuscar: .
Quando em mim ternos se fitam
Gosos mil no peito excitam.

Sua boca uma conxinha


Nacarada—de coral—
Entre aberta, mostra uns dentes
79
Mais lusentes que o cristal:
De oval puro o seu rosto
Quem o vê, pasma de gosto.

Nas faces lindas covinhas.


Abertas pela mão de Deus,
Grutas são que amor prefere
Quando áterra vem dos ceus:
O collo gentil, mimoso
É dum carmineo formoso.

Para acabar o retrato


Que imperfeito debuxei,
Um pincel mesmo divino
Se bem o fará, não sei;
Que em Marilia a naturesa
Fez esforço de bellesa.

Francisco
Bravo, sr. poeta! . . . tenho a felicital-o pelo gosto
da sua poesia, e ao mesmo tempo muita pena sinto, em
lhe dizer, pelo que respeita ao retrato, que está muito
favorecido. . . Um rosto, qual o meu, é facil de depa
rar; basta só buscal-o á luz de qualquer candeia: mas
uma bellesa, como o trovador a fingiu, nem ao clarão
de mil archotes se encontrará.
Leonardo
Zombeteias, cruel?! ,, ...
Francisco
Não. . . é um leve gracejo que amor permitte. ...
não quero dizer que o retrato esteja parecido. . .
não o está; lisonjeia-me, porém, que a tua imaginar
80

ção me adorne de encantos como esses que são fi


lhos da mente apaixonada . . . Leonardo, estou tão
feliz de me ver a teu lado, que não trocára minha
sorte presente, pela coroa de uma rainha.
(Durante esta falla, Veloso, tem se encostado ao
mastro, juncto os quaes os dois interlocutores eslão
de costas, e ouve a conversação.)
Leonardo (com ternura)
Marial
Francisco
Sim... Leonardo... se acaso a sorte tem destinado
que um dia, por qualquer fatalidade te separes de
mim, ah! preferiria morrer neste momento, para não
chegar a tal estremo... aqui, em teus braços exhal-
lava gostosa a vida mirando teus olhos, que parecem
indicar-me a estrada do ceu, e ouvindo de teus labios
essa dulcissima phrase que só os anjos podem di
gnamente pronunciar:—amor! . . . Ah! Leonardo,
que se um dia me abandonares, não sei a que ex
tremos me leverá esta paixão ... de imaginal-os
tremo . . . não o podes suppor.
Leonardo
Que exaltação, Maria! . . . abandonar-te, trahir-
te! . . . nunca.
Francisco
É a exaltação da febre do amor, que toca o paro
xismo do delirio... Perdoa... careço ouvir essa tua
solemne promessa para me serenar o animo... Ma-
tar-me-hias, Leonardo, o corpo, e condemnarias a
minha alma, porque perdido o teu amor, pouco se
me daria do futuro destino... és minha vida na
terra, meu salvamento na eternidade... Se alguma
81
mulher me roubasse o teu amor... (com impeto.— Ve-'
bso, que tem até aqui escutado, rètira-se sem ser
preseniido.) '
Leonardo
Desalentas-me, oh muito minha amada! . . . mes
mo principio a descrêr de mim, porque essa injusta
suspeita demonstra assaz não te haver dado provas
dos meus extremos . . . Como poderei apagar-te da'
mente essas medonhas visões?
Francisco
Amando-me, Leonardo; amando-me, qual te amo.. .
Se souberas como estou orgulhosa de ti, e anceio esse
dia em que á face dos altares consagre esta unica af-
feição que hoje me possuel... Tuas prendas captiva-
ram-me: teu valor exalta-me. Não ha muito ainda
que presenciei um rasgo do teu heroismo. Foi na
Bahia de Santa Helena.
Leonardo
Bem me recordo; e em mau passo me encontrei
n'essa ilha. Os negros revoltaram-se contra nos, e
perseguiam o misero Veloso. Deviamos castigar-lhe :
a ousadia. Vasco da Gama mandou saltar em terra
a guarnição dos bateis. Acompanhei-o. Tinha acor
rido contra nós quasi toda a população valida d'a-
quellas seis legoas de circuito que a ilha méde. O
paiz é alto, montanhoso, cercado de rochas escar
padas. Éramos poucos em proporção dos negros,
mas tomámos bem a desforra. Por duas vezes cahi
em mão d'elles ao livrar Veloso; duas vezes fiz mor
der a terra áquelles que se aventuraram a por-nos
mão. Recolhidos aos bateis, eramos ainda da praia
violentamente frechados . . . E Vasco da Gama, com
6
82
que valor combatia?! Por galardão de esforço lá tem
na perna uma cicatriz honrosa; d'outra frechada o
livrei eu, recebendo-a no corpo, com que lhe fiz es
cudo, quando em meus braços cahiu desfallecido pela
perda do sangue. .
Francisco
E reconhecido que está, estima-te deveras. Já ouvi
mesmo dizer que, na primeira promoção, serás ele
vado a capitão de proa.
Leonardo
Não é por gabar-me, mas em todos os officiaes
tenho bom conceito. . . E a causa, Maria, do meu
porte?... Diz-se que El-Rei ha-de gratificar bem,
aquelles que voltarmos com felizes novas d'esta ex
pedição em que Sua Alteza tanto empenho faz . . .
Ah! . . . como ufano te condusirei ao altar, agraciado
remunerado pelo Rei! ... Os perigos que me venham,
Maria! ... os perigos, que lodos vencerei, só por
crear uma posição que possa partilhar comtigo . . .
Assusta-te ainda o futuro ? . . . Não te provo assim
meus estremos e affectos?
Francisco
Sim, Leonardo. . . já estou tranquilla.

SCENAIV

Leonardo, Francisco, e Gonzaga (vindo de proa)

Gonzaga

Sempre imprudencia!... Houve alguem que os es


pionou. .; ' . . :'' y. :.. í. '.'"-.. i«
83

Leonardo
Quero? .I
Gonzaga
Veloso. Encostado; aqui ao mastro da gata, por
algum tempo ouviu suas conversações, e lá passeia
á proa, como agitado e preoccupado. ( Veloso effecti-
vamente passeia áprôa agitado e preocupado.)
Francisco
Estamos perdidos. .
Leonardo
Não te arreceies, que não sou homem a voltar
rosto; nem a outro inda mais ousado que elle.
Gonzaga
Vou vigial-o... {olhando para a proa) Mas que!...
desceu para a coberta! . . . Mal agouro (dirige-se à
prôa, e desce tambem à coberta como Veloso prece
dentemente o fez.)

SCENA V

Francisco e Leonardo

Francisco
Que se dirá de mim, apenas se divulgar a nova de
que sou mulher, e para seguir o amante vesti estes
trajes que me não competem?!
Leonardo
Deus fará por melhor... Elle, que conhece a nossa
innocencia, embora os homens a possam suspeitar,
não permittirá que onde não ha crime, e só impru
dencia, por esta nos advenha castigo. (As sentinellas
bradam ás armas.)
84

Francisco
O capitão-mór da frota! (retiram-se para a proa)

SGENA VI

Vasco da Gama, Pedro de Alemquer, com alguns of-


ficiaes da armada, sobem á tolda, e dirigem-se ao
portaló de bomborbo, onde alguns ofjiciaes embar
cam para as suas vellas. Embarcados estes, Vas
co da Gama, com Pedro de Alemquer, e os offi-
ciaes que ficaram, e pertencem á guarnição do S.
Gabriel, vem para o castcllo de popa.

Vasco da Gama (sentando-se. Os offlciaes ficam de pé)


Muito folguei que o conselho não encontrasse a
minha opinião. Pareceu-me a rhais cordata, porque
a occasião é critica, e carecemos de braços... Lou
vado o Senhor; pelas minuciosas indagações a que
procedi, não havia, por ora, mais que queixumes de ho
mens, naturalmente descontentes por tão dilatada
viajem. Separando-se d'esta capitania, e repartindo-
sc pelas outras vellas, tres ou quatro, quando muito,
dos promotores, tudo progredirá bem.
Pedro de Alemquer
Fallava-se em tentativas de assassinio; em uma
verdadeira revolta á mão armada!
Vasco da Gama
Não sabe, sr. piloto, quem conta um conto, sem
pre lhe accrescenta um ponto?... e se os feitos, quan
do já cumpridos correm, tão adulterados, pelas boccas
dosho mens, que será quando os acontecimentos es
tão ainda augurados por vir?... Descancem todos, e
85
confiem em mim... (reparando em torno a st) Onde
está o meu pagem?... Que seja chamado aqui... Os
srs. officiaes podem ir onde o seu devêr os chame,
ou o entertenimento lhes mingue estas horas de te
dio que as viagens de alto curso trazem comsigo.
(Os officiaes retiram-se comprimentando Vasco da
Gama.)

SCENAVII

Vasco da Gama (levaniando-se)


i

Ainda restava esta, para me dobrar os cuidados


da armada!... Ser meu pagem uma mulher!... Quem
acreditará, havendo do facto conhecimento em Por
tugal, que ella não embarcou por meu consenso, e
que, sendo minha amante, tive a vilania de a fazer
passar por amante do besteiro Leonardo, para enco
brir minha falta de honra?!

SCENA VIII

Francisco (conservando ~se em distancia), e -


Vasco da Gama

Vasco da Gama
Aproxime-se... Diga-me quem é?
Francisco [ajoelhando)
Senhor!
Vasco da Gama
A sua confusão e rubor m'o revellam... Esses fa
tos de pagem não lhe pertencem.
86
Francisco . .- > .
Sou uma desventurada.
Vasco da Gama . . , ...
Assim m'o fizeram saber ha pouco... e de desven
turada foi o passo que deu.
Francisco (erguendo- se com altivez)
Sr. capitão! a minha phrase não authorisa a maré
leve suspeita sobre a minha honra... Não devia ter-
me chamado desventurada. . . sim imprudente; por
que em verdade foi imprudencia; mas só impruden
cia... Esta tem desculpa no amor; e o sr. Vasco da
Gama, que é cavalleiro e fidalgo, bade condoer-se
de uma infeliz, que, com as lagrimas nos olhos, l'hô
roga, e a dor no coração o implora.
Vasco da Gama (enternecido')
Attenderei no caso, mas presuma, primeiro que
tudo, a triste posição em que a sua imprudencia me
colloca... Vou destinar-lhe uma camara onde fique a
recato, té chegarmos a paragem onde se encontrem
fatos ajustados ao seu sexo; e depois providenciarei,
como cumpre a mim, e a si... Por agora retire-se à
minha camara, (sae Francisco)

SCENAIX

\*vseo da Gama

Na primeira vella que expessa ao reino, com a fe


liz nova de ter descuterío a índia, e com alguns na-
turaes, que d'estas paragens enviarei para testemu
nho d'essa nova, esta donzeila—já acompanhada de
outras —poderá regressar cora o recato que lhe é de
«7
vido... Vamos ordenar uma camara, que será a pri
são temporaria d'esta captiva de amor. (Sae por
bombordo, e desce pela escotilha; ao passo que, por
estibordo, vêm Leonardo, trasendo Veloso, agarrado
pelo pescoço.)

SCENÀ X .

Leonardo e Veloso

Leonardo
Aqui covarde, espião infame.
Veloso
Fiz mal, Leonardo . . . Perdoa . . . foi o diabo que
me tentou.
Leonardo
O diabo!... o diabo!... Pobre genio infernal que
carrega com todos os crimes, que só os homens
commettem . . . E não tens outra desculpa?
Veloso
Não.
Leonardo (largando-o, colloca se defonte (Tellc,
e crusa os braços.)
Tu, que lá cm terra eras conhecido como rufião;
tu, que blasonavas de mulher alguma te resistir; te
mordeste de inveja vendo que uma levára sua abne
gação a ponto de perigar sua vida e sua honra, só
por seguir-me a mim, que não blasono de conquista
dor, e que me enebrio no amor d'aquella, á qual tenho
de dar um dia o meu nome.
Veloso
Leonardo!
88
Leonardo (continuando)
Deixa-me concluir. . . E eras tu o somenos que podia
denunciar o pagem ao capitão... Eras tu o somenos;
porque na bahia de Santa Helena, me deveste a vida,
senão ficavas na mão daquelles cafres, que, já com fú
ria, carregavam sobre ti, quando puz peito á terra para
te deffenderl... Isto é verdade?
Veloso
É.
Leonardo
Eras tu o somenos para tão negra traição, porque
sempre te tratei como o mais intimo amigo. .
Veloso
E verdade.
Leonardo , -, .; ,...

Eras tu o somenos. Não me admiraria que tal vilesa


partisse d'algum da mareação, com os quaes não tenho
tracto; mas de ti, camarada e irmão de armas!.... Que,
devêmos todos a estes titulos sagrados?... Não é au
xilio e protecção?
Veloso .. .
Tu o dizes.
Leonardo
Mas que desculpa a tão aviltante perfidia? '
Veloso
Já o disse... uma tentação do demonio.
Leonardo . ',...
Pois que o demonio te tentou (avançando para elle;
agarrando-o pela cintura; e levantundo-o sobre a
amurada) vae ter com elle a agradecer-lhe (preci- .
pita-o no mar.) .-..--'.
89

Marinhagem . -. .
Homem ao mar . . . homem ao mar! (Ha aqui o
movimento a bordo, natural do successo, soltando-se
e arreiando-se dos turcos um escaller.)
Leonardo (movimento de arrependimento e reflexão)
Foi tambem uma tentação do demónio, mas bem
terrivel!... (Corre a mão pela testa, enuma súbita re
solução, despe o fato, sobe á amurada, e diz) Sei
nadar... ou salval-o, ou morrer com elle (precipita-
se nas ondas.)

SCENA XI

Vasco da Gama, e officiaes, sobem á tolda,


ao ouvir aquelle rumor.
. * '*
Mestre da marinhagem (dando o conmando
com porta-voz)

Prompto para atravessar... Carrega véla grande...


Ala os braços de ré. . . (Estas vozes são dadas, na
distancia de um minuto de umas ás outras. A mari
nhagem faz a manobra. Ve-se Leonardo trazendo
Veloso ao cimo d'agoa; e o esquife vae remando para
os receber.)
Vozes a bordo
Está agarrado. (Os dois tem sido alados para o
esquife,)
Vasco da Gama
Salvos! . . . salvos!
v. . Pedro de Alenquer< ... .-,<..
Corajoso homem! ...',!.
(Emquanto os alam para bordo, onde desanima
dos sdo ambos postos na tolda, com os fatos escor
rendo agqa, e d'ahi descidos pela escotilha para a
primeira coberta, voe desfasendo-se a nebrina que
durante este quadro tem impedido a vista do fundo,
e no ultimo bastidor à esquerda do espectador, e
portanto a estibordo da galera, apparece um ro
chedo, entrando pelo mar. E o cabo das Tormentas.)
Gageiro (no cesto da gavea)
Terra! . . . terra por estibordo.
Pedro de Alemquer (chegando-se a Vasco da Gama)
Sr. capitão! estamos nas agoas do cabo das Tor
mentas . . . Ordena Sua Senhoria se prosiga em as
manobras, para fngir-mos de terra?
1 Vasco da Gama
O seu dever, sr. piloto. ( Vae o piloto collocar-se
no seu posto. Vozes de manobrar pelo porta-voz,
que devem ser dadas com espaço de minuto a mi
nuto. A marinhagem a postos.)
Voz -
Virar por davante. . . Prompto para virar. . .
Salta as escotas de proa. . . Salta escota do traque-
te . . . Salta amuras sobre bolinas . . . Salta bolinas
de ré á ré larga... salta bolinas de próa... Amura...
Gafa . . .
Vasco da Gama
Louvores a Deus, que estamos prestes nos mares
da índia.
(No cabo das Tormentas, que se ergueu no ultimo
bastidor, da esquerda do espectador, apparece uma
nuvem negra, e, nó meio d'esta, o espectro de um gi
gante.)
91
Spectro
Ouve ta, oh gente ousada, mais que quantas
No mundo commetteram grandes cousas,
Tu que, por guerras cruas, taes e tantas,
E por trabalhos vãos nunca repousas,
Pois os vedados terminos quebrantas,
E navegar meus longos mares ousas,
Que hei de desfazer em fragil lênho
A náo, que devassar o mar que tenho.

(A marinhagem solta um brado de terror.)


Vasco da Gama
Onde peitos portuguezes?... onde as vozes de es
forço e alento?... Uma visão que a imaginaçao avulta
numa chimera, sendo a realidade só uma nuvem
reflectindo a miragem da terra, e não passando as
vozes, que se presumem ouvidas, do sibilar dos ven
tos nas desencontradas camadas atmosphencas, que
se tradusiram em palavras, que cada um traz em
mente, dissipa-se assim... Bombardeiro de proa!...
fogo. (O bombardeiro dá fogo á peça. A vima e a
nuvem desaparecem, ficando só á vista o Labo.)
Olhae... É assim que os filhos de Portugal sabem
vencer os obstaculos. . . É assim que temos marcha
do sempre pela estrada da gloria. (Cae o patino.)

Fim do 2." quadro, e do i." acto


r
ACTO SEGUNDO
QUADRO I

A ACÇÃO PASSA-SE EM MELINDE TERRA


ORIENTAL DE AFRICA

Salla regia, no gosto indiano, adornada com grandes ta


lhas da Índia, nas quaes ha arbustos da Flora orien
tal. A' direita do espectador está um catei, com riquis- '
sima camilha, sob uma especie de docel, armado com
sedas indianas, variegadas.
Ao levantar o panno já estão em scena, Leonardo, far
dado de capitão de proa; Molemo-Caná, mouro goserate
de nação, e lingoa; Veloso; soldados portuguezes, uns
besteiros e outros bombardeiros; e Foteima, official da
casa do rei do Mehnde.

SCENA I
i

Os REFERIDOS ACIMA

Foteima (para Molemo Cana)


Pri- tchi-tchá-tchó-pxin-tchá
Leonardo
Em que estamos mettidos?!... Só percebi que va
mos tomar chá.
Molemo-Caná (para os portuguezes)
Diz que esperemos um pouco, emquanto vae pre
venir o rei.
94
(Foteima faz uma cortesia e retira-se. Os solda
dos portuguezes .fuffffilk*- continência.)

SCENA II

OS DITOS MENOS FOTEIMA

Leojaádío (joam Moíam* Cana, enquanto Foteinta


s . -.'.' vae sahindo)-
Homeml diga-lhe tambem que não nos demore,
pois se temos de tomar chá, bebida da China que
nunca provámos, que venha ella quanto antes para
a saborearmos.
Molemo-Caná
Não se trata de chá, sr. official portuguez; trata-
se do rei.
Leonardo
Bom . . . fico sabendo que por estas terras, quando
se falla do rei diz-se chá [abaixando a cabeça) Cor
tesia ao sr. rei chá... Aprender até morrer.., Olhe
cá. oh amigo!... sua mercê, que falla soffrivelmente o
portuguez, já andou lá por aquellas terras?
Molemo-Caná
Estive em Ceuta, onde tive tractos com alguns da
sua nação. Fui depois á Hespanha, a Venesa, em
cujas galés me transportei ao Egypto, e agora estou
por aqui.
- -<.. .j.., Leonardo
Sim, senhor, é rijo de pernas... que lhe faça mui
to bom proveito. . . Se eu tivesse andado só um
milhão de decimas, centessimas, milessimas partes,
do que peregrinou, estava derreado que nem um
93

burro lasarento, dos que transporiam louça da maia...


Não tome lá o burro como dito a si... (apontando
para o catel) Aquella cama é onde o rei faz a sua
somneca depois de tomar chá?
Molemo-Caná
Ali naquella camilha, que está assentada num
catel, é onde se recosta, a uso d'estas terras, para
dar audiencia.,
Leonardo
Não são pouco commodistas, e chamem-lhes lá
tollos! ... Se a arenga é comprida, das que, como
todas, causam somno, o maganão do rei-chá, ou
chá-rei, que tanto importa dar-lhe na cabeça, como
na cabeça lhe dar, vae dormindo muito á socapa, e
ás vezes está sonhando. . . sonhando! xi, xi!... que
cousinhas! e o arengador pensando que está mui re
colhido e concentrado a esculal-o!... Esta moda de
via passar aos reis lá da Europa... coitados! aturam
as estopadas, ou a pé firme, ou, quanto muito, sen
tados, Deus sabe com que vontade de bocejar, sc
não dormir!... Vamos cá, oh Veloso (para Veloso)
examinar de perto o tal catel. ( Veloso avança para
Leonardo, e ambos se dirigem ao catel... A meio ca
minho param.) Olha que não vale lá restos de re-
saibo... o que passou, passou... Foi Deus que me
quiz desenganar, naquella occasião, de que Belze-
buth tem permissão de tentar uma alma christã.
(Continuam ambos a andar para o catel.)
Veloso
Mas igualmente me salvaste a vida; e então nada
mais tenho a lembrar que-esta ultima acção. (Já am
bos estão examinando o catei.)
96

Leonardo
Amiguinhos como dantes; confessa, porém, que a
agoa estava fria de arrepiar!... cuidei morrer gelado!
Veloso
E julgas que me considerei n'algum banho de ca
pilé morno?! (apontando para os brocados, e pedra
ria do catel) E maravilhoso!
Leonardo
Deixa ver o commodo que isto dá. (faz menção
deitar- se)
Molemo-Caná (que tem estado a conversar com al
guns soldados, reparando na acção de Leonardo
avança para este)
Imprudente! (retendo o)
Leonardo ( detendo se
Imprudente?... em que?... Então um rei d'estes
tem melhor corpo do que eu?... Ora... já vou embir
rando com o tal sr. CanáL. Vamos vêr se esta ca
ranguejola se dá bem com os meus ossos!., (conti
nuando na menção de se deitar, e retido por Cana)
Homem vá á fava. ( Ouve-se musica no interior do paço. )
Molemo-Caná
Ãhi vem o rei.
Leonardo (indo para o seu logar,
e assim tamlem Veloso)
Vamos lá ver-lhe o focinho.
Molemo-Caná (aparte)
Alma de poeta!... estouvados sempre!

SCENA Hl

Entram em scena as bailadeiras, cantando e fazen-


97

do menção de tanger varios instrumentos. Col-


locam-se de um e outro lado do throno. Seguem
os homens de armas, com azagaias, arcos, e fle
chas, e postam-se na frente do' espectador, cobrin
do a porta do fundo, que é a principal entrada
da salla. Segue o rei, que vem n'um palanquim,
e deitado na charolla do mesmo. Âcompanha-o a
côrte. O rei desembarca do palanquim, pondo o
pé nas costas de um escravo preto; sobe ao catel,
e recosta-se. A corte forma de um e outro lado
do throno, em frente das bailadeiras.

Rei de Melinde, Foteima, e os ditos

Choro das bailadeiras

Pti-ti-tchi=pti-ti-tchi=pti-ti-tchi
Ai-phó-phó==lá-phó-phó=tchi-phó-pho
Qui-ri-qui=tiri-lá=tchá=tchá=tché;
Pá-tó-ló-=ló-tó-pá=pá-tó-ló.

Leonardo (á parte)

Ahi estamos outra vez com o rei, que é o chá; mas


o pti-ti-li-tchi, e pá-tá-ló, nem patavina! . . . pho-phó
quer dizer que o rei é fôfo. .'. assim balofo. . . mas
o qui-ri-qui?... ah sim, está bem entendido, come
galinha... que lhe faça muito bom proveito... vou
aprendendo. (Molemo Caná, apenas o rei se tem re
costado, aproxima-se d'elle, fallam momentos em voz
baixa, no entanto que Leonardo diz o aparte acima
é voltando-se para os portuguezes.)
7
. 96
Molemo-Caííá
O rei permitte que se aproximem os dois deputa
dos pelo sr. Vasco da Gama, capiíão-mór da arma-
.da portugueza. (Leonardo e Veloso dão um passo
para a frente, e Molemo-Caná lhes faz signal pa
ra se deterem. Param. Foteima avança do catei para
os dois, e os conduz até defronte do throno, fazendo
signal a ambos para ajoelharem. Ajoelham só com
um joelho.. Molemo-Caná, que no entanto tem fal
iado baixo com o Rei, repete em voz alta): O Rei
permitte que os senhores delegados exponham a mis
são de quem vêm encarregados.
Leonardo
Olhe, oh so lingua!... de toda esta algaravia não
entendo nada. Eu lhe digo em resumo, e enfeite-o
lá com a sua rhetorica... El-Rei, o Senhor Dom Ma
noel, não permitte ao capitão que salte em terra, ou
porto algum primeiro do que em Calecut, na índia,
para onde vae destinado ; mas se Sua Real Pessoa
tem muito prazer em fallar com elle, vá lá ao rio nos
seus zambucos, que encontrará o capitão nos seus
bateis, ámanhã, porque hora marcar; e ahi assenta
rão paz e amisade... Tempere lá este molho de bro
cos como quizer... Não lhe esqueça o essencial. Tra
go ali uns presentes para lhe oferecer da parte de
Sua Altesa El-Rei de Portugal... Avie-se, homem;
diga-lhe tudo isto; e que já têmos doridos os joelhos;
que se a gente ouve, ora de pé, ora ajoelhado, a
missa que é de Deus, não é justo ouçamos sempre
ajoelhados toda esta pratica, que talvez seja do dia
bo... Ande: despache-se. [Molemo-Caná falla com»
Rei, a quemrepeiteo discurso, eoRei responde. #»
99

quanto estas fallas, que não se ouvem, ha o seguinte


dialogo, em á parte)
Veloso
Tambem tenho os joelhos dormentes.
Leonardo
Se te parece! a espiga é pequena!... Para arredar
o pensamento do tormento, vou recreando a vista
por aquellas pequenas, que estão deitando a cabeci
nha por cima dos hombros dos officiaes da casa do
Rei.
Veloso
Parece mesmo que nos estão galando como o sapo
á doninha.
Leonardo
Eu escolhia...
Veloso
Tambem eu.
Leonardo
Quantas?
Veloso
Meia dusia... E tu?
Leonardo
Todas... aqui não ha que escolher; e para uma
pessoa se não enganar, nada de retalho ; tudo por
atacado.
Molemo-Caná (que tem acabado de fallar em voz
baixa com o Rei. Alto)
O Rei de Melinde ordena primeiro que se ergam
os srs. deputados do capitão Vasco da Gama...
Leonardo e Veloso (erguendo-se, e fazendo
cortesias caricatas)
Muito obrigado, Real Senhor.
100

Molemo-Caná (continuando)
Em segundo logar, acceita as vistas no rio com o
capitão-mór, o sr. Vasco da Gama... Vae ordenar
que tudo se prepare para o encontro, onde mais de
espaço fallará sobre o negocio de sua vinda a es
te reino. . . Manda-me tambem lhe communiqucm
que, para o caso que Sua Senhoria particularmen
te me confiou, e outros, mandará ás náos seus
embaixadores esta noite. . . Mais é do seu agrado
lhe sejam entregues os presentes, de que são porta
dores.
Leonardo

Ahi. . . ahi que me dóe... Vamos lá depressa...


Quem quer a moça anda com o pé, e com a bolsa.
(Vão Leonardo e Veloso buscar o degradado Rodri
gues, e um soldado, que conduzem uma grande ban
deja de prata, coberta com damasco de seda, tendo
bordadas as armas de Portugal. Dirigem-se ambo$
ao catei. Rodrigues descobre uma opa de escarlata,
bordada a ouro, e quer tiral-a, dizendo ao soldado
que trouxe a bandeja.)
Rodrigues (ao soldado)
Anda, safa de pressa a bandeja, que estes ladrões
São capazes de nos roubarem.
Molemo-Caná (que tem chegado tambem ao catei
acompanhado de Foteima)
Entregue tudo.
Rodrigues
Tambem a bandejinha?!...
Molemo-Caná
Bandeja e tudo.
101

Rodrigues (para o soldado)


Vae-te embora... não tens aqui que fazer... esta
mos bifados. (O soldado retira-se)
Molemo-Caná (que tem estado a conversar
com o Rei, depois de ser entregue a
bandeja a Foteima.)
0 Rei agradece ao capitão, e"a seu irmão o Rei de
Portugal...
Leonardo (á parte)
Não sabia ser tão bem aparentado. '
Moleno-Caná (continuando)
Suas obesequidades, que não caem em coração in
grato.
Rodrigues (á parte) .
Para receber todos tem coração... Que dises, Ve
loso, a bandeja não fazia conta?
Soldado (tambem á parte)
Se fasia!... vão-se-me os olhos nèlla.
Rodrigues (da mesma forma em á parte)
E a mim a alma. (Emquanto ha estes apartes, o
Rei tem tocado no braço de Molemo-Caná, falla-lhe
em voz baixa).
Molemo-Caná (em voz alta)
Acrescenta o Rei... (volve a foliar em voz baixa
com o rei).
Leonardo (á parte)
Acrescenta o ReL.e disse.
Veloso (puxando lhe pelo braço)
Deixa ouvir.
Molemo-Caná (continuando)
Que para fazer honra aos enviados de Portugal,
ordena se lhes dè mostra dos divertimentos da sua
102
corte. ( 0 Rei durante os apartes seguintes faz aceno
a Foteima, que se dirige ao monarcha, e recebidas a
ordens, vae ter com uma das bailadeiras a trans-
mitiir-lhas. Sae elegantemente o corpo do baile a
organisar o bailado, que segue, na toada da canti
ga acima.)
Choro

Píi-ti-tchi=pti-ti-tchi=pti-ti-tchi
Ai-phó-phó=lá-phó-phó=tchi-pho-phó:
Qui-ri-qui=tiri-lá=tchá=tchá==tché;
Pá-tó-ló=ló tó-pá=pa-to-ló.

(No decurso da scena muda entre o Rei e Foteima


e emquanto se organisá a dança tem logar os seguin
tes apartes.)
Leonardo
Bravo !... vamos ter vistas de pernas !... Não são
máos os divertimentos d'esta corte, a julgar pela
amostra do pannoL. oh Veloso!... serão pernas; gam
bias; ou canellas?
Veloso (tambem em á parte)
Deixa abrir a exposição e fallaremos depois.
(Segue o bailado. As bailadeiras e choristas, prin
cipiam saudando o Rei, ex depois os portuguezes. No
fim do bailado o Rei falla em voz baixa com Mole-
mo, e este repete alto.)
Molemo-Caná
O Rei dá por terminada a audiencia, e recolhe aos
seus aposentos.
(Sae o prestito na mesma ordem que entrou e can
tando. Molemo-Caná acompanha-o, indo ao lado de.
103

uma dama. Quando esta passa por frente de Leo


nardo, chama para ^ste aattenção de Molemo-Caná
apontando para aquelle, dizendoAhe adeus com a
mão, e continuando como a inquerir Molemo-Caná)
Leonardo (com enthusiasmo)
Está fisgada!. . . está fisgada... Uma conquista!
(Cae o panno)

Fim do 1.° quadro do 2." acto


ACTO SEGUNDO
QUADRO II

Outra salla no palacio do Rei de Melinde, tambem mui


to sumptuosa. Ê noite; e deve estar brilhantemente
illuminada, com brandões de resina aromatica.

SGENA I

Molemo-Caná e Maria (que precedentemente,


no 1 .° acto, era o pagem Francisco
vestida tambem de mouro.)

Molemo-Caná

Somos chegados aos aposentos da valida da prin


cipal mulher do Rei de Melinde. Vasco da Gama, re-
ceioso sempre da estada da senhora a bordo, mes
mo , quando não pelo seu credito, pelos azares da
guerra em que de momento para momento se pode
encontrar nos mares da índia, onde terá de comba
ter as náos de Mecca, que até hoje tem sido as uni
cas senhoras do monopolio do commercio da espe
ciaria, que por esta via, novamente agora descober
ta, os portuguezes lhes vão arrebatar, resolveu dei-
xal-a aqui, confiada á guarda de um Rei amigo, pa
ra de novo vir tomal-a, quando, no regresso para
Portugal, fizer escalla por Melinde.
103
- ' v . Maria -: ...

Bem castigada estou da minha imprudencia. . .


Que mais terei de passar?! ...
;.- MolEMO-CaNÁ

Quem se sugeitou a amar, sugeitou-se tambem a


padecer... Valor, e resignação . . . Desatavie-se d'es
ses fatos masculinos, envergando os que são proprios
do seu sexo, e que deve trazer vestidos por baixo
d'esses, que ao cahir da noite lhe foram presentes,
(indo vér a porta primeira, á direita baixa)... Aqui
não está viva alma; nem este quarto tem communi-
cação. Ali estará á vontade. No entanto vou preve
nir o Rei da sua chegada. (Maria recolhe -se no quar
to indicado.)
SGENA II

Molemo-Caná

Hoje tiveram logar, no rio Quilmance, á foz do


qual está assentado este reino, as vistas entre o Rei
de Melinde, e o capitão Vasco da Gama. Seu irmão
Paulo da Gama, e Nicoláo Coelho ficaram com os
navios a bom recado, e tanto a pique, que podessem
acudir em qualquer necessidade. Elles, Vasco da Ga
ma, nos bateis, e mais gente disponivel da frota, ves
tidos de fesia por fora, e armas secretas por dentro,
se foram ao logar aprasado para as vistas, com gran
de aparato de bandeiras e toldos, grande estrondo
de trombetas, e vozes de prazer. O Rei de Melin
de vinha num zambuco, com algumas pessoas prin-
cipaes, e menestreis que tangiam. Chegou-se Vas
co da Gama ao zambuco real, onde foi recebido
106
pelo Rei, como homem em cujo peito não ha má
tenção; e em toda a pratica que ambos tiveram,
que durou um bom pedaço, tudo foi com tanta se
gurança de ambas as partes, como se entre elles
houvera conhecimento de mais dias. Finda a prati
ca, cada um se voltou por seu caminho. Amanhã se
deve, por consentimento do Rei, assentar aqui na po
voação um padrão, por nome Espirito Santo, em tes
temunho da paz e amisade concertada entre ambos...
Vamos, porem communicar a chegada de
(sae).
SCENA II

Maria, (vestida em trajes melindanos, canta. )

Se alguem dissera
A padres meus
Quando nascida,
Que a longos mares
Seria exposta,
Ahl não n'o crêra
Dos padres meus
A alma qrida;
Porque os pesares
De tal angosta
Os mataria!

A triste sina
Teve logar . . .
Eu fui trasida
A terra ignota.
Gommovedora
107

Esta mofina
Heide ehofat,
Se fôr trahida;
Pois, n'esta rota,
Se amor não fora
Não viviria (desalenta.)

SGENA III

Molemo-Caná, Zichi (a princesa) e Maria

Molemo-Cana

Aqui está a dama, á qual se confia sua guafda.


(Maria faz uma mesura a Zichi.)
Zichi (a Molemo)
Tchi-tchá-pho-hu.
Molemo-Caná (a Maria)
Diz que será bem recebida.
Maria (outra mesura a Zichi)
Obrigada.

(Quando Zichi vae para sê retirat, vê Leonardo


que apparece entre portas do fundo. Zichi põe o de
do na bocca, fazendo-lhe signal para que se calle,
e aponta-lhe para a primeira porta, esquerda alta,
como para que vá ahi esconder-se, e entra na se
gunda porta, esquerda baixa. Leonardo esconde-se
no quarto indicado, não sendo visto por Maria e
Molemo, que estão em scena. Enquanto tem logar
esta scêna muda, trôca-se o seguinte dialogo no pros
cenio.)
108 '

SGENA IV

Maria e Molemo-Caiú

Maria

Está difinitivamente lançada a minha sorte.


Molemo
E não é tão má como se lhe afigura. Daqui a Ca
lecut, que é na região do Malabar, e a que propria
mente chamamos índia dentro do Ganges, pois esta
terra de Melinde pertence ainda á Africa oriental,
medeia um golfão de setecentas legoas, que tanto
corre de uma á outra costa, e para o navegar são
precisos vinte dois dias, quando não apparêça cou
sa que impeça a navegação. Veja que serviço se lhe
não presta poupando-a a tão longa viagem!
Maria
Que me importam suas mathematicas e geogra-
phias, quando o peito me está rebentando de lagri
mas que me marejam os olhos, por esta separação,
e não posso derramal-as no coração de quem m'as
motiva! •
Molemo

Manejarei, por lhe aprazer, uma entrevista de des


pedida.

Maria (com reconhecimento, apertando ao


peito a mão de Molemo)
Ah!
109

SCENA V

Zichi, Maria e Molemo

Zichi (para Molemo)


Tó-pi-cho-qui.
Molemo (a Maria)
Está prompto o seu aposento. (Maria aproxima-
se de Zichi, que a conduz até á entrada ao quarto,
para o qual lhe aponta com o dedo.)
Molemo ( que as tem acompanhado até á entrada
do quarto, pega na mão de Maria, com
efusão, e diz-lhe:)
Confie em mim, que ainda hade vêr Leonardo.
Mama (dando um suspiro)
Aprasa a Deus. (saem ambas da scéna.)

SCENA VI

Molemo-Caná
Agora é mister desobrigar-me da promessa que
fiz a Maria—manejar-lhe uma pratica de despedida
com Leonardo . . . Estes namorados tem artes de en
volver estranhos em seu partido, e presumem sem
pre que os estranhos tem obrigação de metterem mão
em suas novellas amorosas! . . . Todavia, esta pobre
Maria é digna de commiseração . . . exposta, pela
violencia do amor a uma viajem tão longa, vê-se, em
tão espaçado trajecto, violentada a recalcar no fundo
do peito todo seu thesouro de affectos, para não pa
tentear aos olhos dos companheiros de viajem a in-
discripção que commettera em fingir extranho sexo,
MO

e seguir um homem que o. sagrado laço do hymmeu


não a authorisava a chamar esposo; e ao cabo, por
fim, de tão longo sacrifício se vê descahida das mais
charas illusões, pela inesperada descoberta do seu
disfarce!. . . Vamos; ao menos proporcionemos á mi
sera leves momentos de linitivo a tão acerba angus
tias de amor.
SCENAVII

Zicm e Molemo-Caní

Zichi
Pa-ta-ho-tchi-vali'-bu <
MOLEMO
Podera não estar ella inconsolavel?! (esta phrase
é dita como que tradusindo o pensamento de Zichi,
e deve sêr pronunciada ao mesmo tempo que ella vae
soltando aquellas palavras. Depois, dirigindo -se tam
bem a Zichi:) Fa-ta-hu-ló-tu-pi-tá. (alto, para dar
a entender a phrase que lhe dirigiu.) Se a prince
sa tractar bem a mísera, nisso receberá ella alguma
consolação. (N'este dialogo o príncipe Cemerice, ma
rido de Zichi, tem atravessado, desapercebido, para
os aposentos da princesa; d'ahi a pouco, Maria, co
mo perseguida pelo príncipe, qiie chega atraz d'ella
entre portas, faz-lhe um gesto imperativo, empur-
rando-o para dentro, e desapparecendo com elle.)
Zichi (a Molemo)
Piu-ai-cari-tu-pô.
MoLEMO
(Conduzindo Zichi para entre-partas do quarta
onde Maria despiu o fato de mouro, e ficam at%
111

bo» coilociidQs entre o reposteiro, e o quarto, de .sor


te que sejam vistos dos espectadores, mas não de quem
entrar em scena. Diz cm aparte, como tradusindo a
phrase que ella acima disse:) —Bem sei que tem bom
coração, e se compadece dos infortunios [apontando,
sob o reposteiro, para dentro do quarto): Tá-pó-nL-
lá-ti-pi. (Maria não vendo ninguem em scena, sae
dos quartos onde está alojada, fazendo um gesto im
perativo de detenção para o príncipe Cemereci, que
a persegue; e vae occultar-se no quarto onde está Leo
nardo. O príncipe quer seguil-a, mas vendo n'esse co-
menos Molemo e Zíchi, que saem debaixo do repos
teiro, recolhe-se ao interior dos aposentos da prin
cesa.)
Molemo
( Vindo para a scena com Zichi, e tradusindo a
phrase que acabava de dirigir -lhe sob o reposteiro:)
É preciso fazer desapparecer dali aquelles fatos tur
cos, mesmo pelo credito d'esta princesa. (Tem am
bos chegado ao meio de scêna, e ouve-se dizer no
quarto onde estão Maria e Leonardo:)
Maria
Ab! até que em fim.
Zichi
(Que ouviu, admirada, diz para Molemo:) Pai-u-i!
Molemo-Caná
(Respondendo á princesa:) Ui'-dá. (Zichi corre pre
cipitadamente aos .seus aposentos.)
SCENA VIII
Molemo-Caná
Sim, também jouvi. . . á princesa figurou-se voz
113
de homem, porém eu conheci bem a voz de Maria...
Os olhares mysleriosos que Zichi, durante a nossa
conversação lançava para aquelle quarto (designando
onde estão Leonardo e Maria) revellam-me occulta
intriga ... Foi d'ali que partiram as vozes ... va
mos vêr (entra no referido quarto, e sae d'elle con-
dusindo Leonardo e Maria, ao mesmo tempo que Zi
chi conduz como violentamente o príncipe Cemere-
ci, com o qual vem altercando. Estupefacção em
todos.) - .
SCENAIX
t
Os ditos, Leonardo, Maria, Zichi e Cemereci

Zichi
(Vem dizendo a Cemereci:) Tá-pi-to.
Cemereoi
(Respondendo:) Di-to-pi-ti.
Molemo
( Emquanto se trocam aquellas phrases dizendo
tambem para Leonardo, e apontando lhe para Zi
chi:) É á princesa que ella fica confiada emquanto
vamos a Calecut. (Leonardo dirige se a Zichi, e quer
beijar- lhe a mão, que ella retira, com ademan é
zangada, e ciosa, lançando olhares chamejantes a
Maria.)
Zichi
(Ao príncipe^ Pá-pu-ló (fica conversando com fi
le; e Leonardo com Maria.)
Molemo .,
(Á parte) Está ciosa. . . vamos conjurar a_ tem
pestade. . . Agora advinho o motivo porque hóntem

'"
113
tanto me inqueriu a respeito de Leonardo . . . feriu-
lhe a corda sensivel (dirigindo-se a Zichi) Pai-ti-pu
pai-tó. . . lo-pái-tu.
Zichi (olhando para Maria e Leonardo, como escur-
tinando-lhes os affectos. diz a Molemo-Canà)
Lá-tu pi?
Molemo-Caná (respondendo-lhe)
Tu-pi.
Zichi (o Molemo-Caná)
Pai-pho. (Volta se para Cemereci com o qual con
tinua a conversar).
Molemo-Caná (a Maria e Leonardo)
Façam suas despedidas. Certifiquei á princeza que
são irmãos; pareceu-me acredital-o . . . Assim é pre
ciso, para o bom tratamento de Maria emquanto se
detiver aqui, que não desmintam nas acções esta boa
opinião que fomentei . . . Basta agora um abraço; os
juramentos e protestos de ha muito que estão feitos.
Leonardo inda esta noite ha de ficar a bordo... acom-
panhal-o-hei para desculpar a ausencia que já na ca
pitania se hade ter notado .... Amanhã, ante ma
nhã, a armada hade levantar ferro.
Leonardo
Marial (conchegando -a ao peito)
Maria
Leonardo! (soluçando, e encostando- lhe a cabeça
sobre o hombro. Momentos de silencio' e angustia.)

Maria e- Leonardo (cantam em dueto)

Se no vacuo da desventura
instante de prazer lampeja,
8
114
Rapido fulge, e mais tetrica
A desventura alfim negreja.

Assim tão rapidos voaram


Do goso os fugases momentos:
A ventura veloz fulgor;
A desdita eternos tormentos.

Uma esp'rança só posso ter


Pelo destino alimentada . . .
Não a falses, pois minha vida
Só d'ella pende confiada.

Essa esperança é teu amor,


Vívido, constante e eterno:
Terei nelle o meu paraiso;
E não o tendo, negro averno!

(Leonardo abraça entranhadamente Maria, e sae


como desvairado, conduzido por Molemo-Caná.)

SCENA X

Maria, Zichi, Cemereci

Maria (qne fica como ríum espasmo momentaneo


rebenta n'uma explosão de delírio febril,
e canta)

Alma adorada que partes,


Livre voa toda inteira,
115
Cruel, não deixes metade
Que sem ti alma não é;
Sem o efluvio que repartes
N'esta porção prisioneira,
Falta-te a esperança e fé . . .
Não vás bipartida sumir-te:
Aguarda ... já vou seguir-te.

(Desmaia nos braços de Zichi, e coe o panno.)

Fim do 2.° quadro do 2.° ACTO


r"

ACTO TERCEIRO

QUADRO I

A ACÇÃO PASSA-SE EM CALECUT, NA ÍNDIA

Pagode. Os dois primeiros bastidores, a contar da ram


pa, tanto os da direita, como da esquerda, fingem ma-
gestosos porticos, que dão entrada para o templo. Á
altura dos quintos bastidores é dividido o templo por
um portal magnifico, com portas de metal muito bem
trabalhadas, que estão abertas sobre os lados para o
publico, e ao fundo d'ella se vê uma escada dourada,
praticavel, para subir para a rotunda, que fica a meia
altura do pavimento da caixa do theatro ás bamboli-
nas. Esta rotunda é d similhança do choro em as nos
sas egrejas, e n'ella estão em vulto, e em parte elevada,
os idolos, diante de cada um dos quaes se colocam
piras, que hão de queimar incenso. Por cima d'esta
rotunda finge o tecto uma clara-boia. cúpula, ou zim
borio, adornado de muitos arabescos, e com janellas
mui rasgadas.
Ao levantar o panno, estão na rotunda os Brâmanes
lançando incenso nas piras, e psalmeando o choro que
abaixo segue. A parte baixa do templo estáoccupada
por naturaes do paiz. homem, e mulhares, que toda
via devem deixar espaço para os prestitos do Catual
e de Vasco da Gama, que depois lêem de entrar em
scena.
118

SCENA I

Naturaes do paiz, e Brâmanes

Choro dos Brâmanes

Ti-pae-Iãev . ." ti-pae-lae,


Ó-mó-é. . . ó-mó-é,
Gri-pae-tae. . . tae-gri-pae,
Pé-sé-Ié. . . pé-só-lé. '

Ó-mó-é. . . ó-mó-é
Pé-sé-lé. . . ó-mó-é;
E-pho-si. . . tae-gri-pae,
Pé-sé-lé. . . ó-mó-é,

SGENA II

Ao findar o choro entram: a musica do paiz, tocando


uma marcha: seguem dois palanquins, no primeiro
dos quaes vem Vasco da Gama, e no segundo o Ca-
tual. Seguem os naires; e officiaes e soldados da arma
da portugueza.
Ao chegarem os palanquins junto ao portal no centro do
pagode, desembarca o Catual, que vae dar a mão a
Vasco da Gama, para tambem desembarcar. São rece
bidos ao portal do centro do templo pelos brâmanes,
que os conduzem pela escada, acima á rotunda, onde
se sentam n'uns coxins; assistindo ás ceremonias re
ligiosas. Os restantes de ambos os préstitos, (nos quaes
entra tambem a musica da armada portugueza) ficam
em baixo no espaço franco ao povo.
Vasco da Gama, vestido de rjalla, e com o manto de
119
cavalleiro de Christo. O Catual e bramanes, na
rotunda. Fr. Christovão Soares, com habito de
Freire de Christo, Leonardo, Veloso, Molemq-Ca-
ná, e varios officiaes da armada, dois tambem com
mantos da ordem de Christo, em baixo, assim co
mo os soldados, e um Jogue, que está envolvido
entre os naturaes do paiz, e somente se destaca
d'elles a seu tempo.

Leonardo
Então que vimos aqui fazer? . . . Isto é estação
obrigada?
Molemo-Caná
É costume do paiz para os naturaes se purificarem
do contagio com os estrangeiros.
Leonardo
Estamos então para com esta gente na mesma re
lação que os porcos e os animaes immundos para
com os judeus?! . . . animaes são elles, uns idolatras,
que talvez tenhamos de purificar a ferro e fogo . . .
Esta gente é muito supersticiosa?
Molemo-Caná
Se o é! . . . Não principiam empresa alguma sem
' primeiro consultar seus astrologos e advinhos sobre
o dia e hora.
Veloso
Não lhes hadc render mal o officio?
Molemo-Caná
Se rende! ... os taes astrologos e advinhos não
vivem de outra cousa, nem chatinam em 'cousa al
guma, mas não tem mãos a medir, e são ricos, po
derosos, e conceituados entre o vulgo.
120

Fr. Christovão Soares


São á guisa dos charlatães e ledores de buena-di-
cha lá em o nosso paiz.
Leonardo
Quem são aquelles homens que estão lá em cima
com o capitão Vasco da Gama?
Molemo-GanA
São os bramanes — casta sacerdotal. . . Ensinam
os mysterios da divindade, e tem grande predominio .
no povo.
Veloso (para Fr. Christovão)
Corre voz de que o sr. Capitão mór da armada
verificará aqui a ceremonia de armar um cavalleiro.
Fr. Christovão Soares
Julgo que sim.
Leonardo
Não se sabe ainda quem será; mas ahi está" o co
fre onde vem as insignias para o acto.
Fr. Christovão
E tambem estou eu para proceder a elle.
Jogue (no meio de um grupo de naturaes
do paiz que o encobre à, vista
dos portuguezes):
Pha-tó-chi-ló-tá.
Veloso (ouvindo aquellaphrase, e olhando
para o grupo, a Molemo-Caná):
Que atrae tanto a attenção dos naturaes, n'aquel-
le grupo, de que partiu tão estranha voz?
Molemo-Caná
E ura Jogue.
Veloso
Que bicho é esse?
121
Molemo-Caná
Um mendicante, pertencente a uma seita de ho
mens, ao modo de philosofos, que deixam o mundo,
e em habito vil e baixo andam por todas as terras
em romaria.
Veloso
Nunca vimos em Portugal taes estafermos!

Fr. Christovão (a Leonardo):


Mutatis mutandibus, quantos não ha na Europa,
armando tambem á superstição!
Molemo-Caná
Por todas as terras, quiz dizer na índia. Nas pra
ças publicas das cidades, nos pagodes, nas estradas,
nos bosques se encontra esta casta surgindo repen
tinamente ao viandante.
Veloso
E de que vivem?
Molemo-Caná
Das esmollas que lhes dão. Figuram vida asceti
ca e frugal; maldição, porem, sobre aquelles que
não os soccorrem.
Fr. Christovão
Vendem indulgencias a seu modo.

Molemo-Caná (continuando)
O povo teme-os, e vive sugeito ao terror super
sticioso que incutem . . . Vou fazer com que, os que
o circundam, lhes deixem praça para o verem nas
suas contorsões (achega-se aos naturaes do paiz, e
depois de lhes faltar, elles deixam um claro, ao cen
tro do qual o Jogue fica visível ao espectador).
122

SGENA II

Bazibut (Jogue) e os ditos

Bazibut (faz muitas contorsões e tergeitos, ora sus-


tendo-se num pé, ora em outro, ora collocando
as mãos no chão, e andando com as pernas no ar,
ora sentando-se encrusado, e erguendo-se a pouco
e pouco, mui suavemente, até ficar na altura na
tural, como em extase. Estando no extase, diz):
Bi-qui-lá-tó-chó.
Molemo-Caná
Está imprecando os deuses, como que ameaçando
grande desgraça sobre Calecut e a índia, pela che
gada de uma nação estranha . . . Bom será lhe dêem
alguma cousa, que as dadivas logo lhe desviarão o
curso d'cssas ideias que procura incutir no povo con
tra a nação portuguesa.
Leonardo (destaca do grupo com que está
conversando, ackega-se a Bazibut, e
entrega lhe um obulo, dizendo):
Mais tem Deus para dar do que o diabo para le
var.
Veloso (seguindo o exemplo de Leonardo,
aproxima-se de Bazibut, e dá-lhe
tambem um obulo, dizendo):
Dá ao diabo o que não podes haver pelo amor de
Deus (alguns dos demais porluguezes seguem o exem
plo d'aquelles, dando a Bazibut uma esmolla, mas
bensendo-se todos ao dar-lha. Neste intervallo tem
logar o seguinte dialogo):
123

Molemo-Caná (a Fr. Christovão):


Sua senhoria não quer dar cousa alguma ao Jogue?
Fr. Christovão
Não sustento occiosos.
Leonardo
E se nos provier mal?
Fr. Christovão
Supersticiosos sempre! . . . Menores contas têmos
de dar a Deus ainda mesmo da nossa impiedade que
do fanatismo ... A impiedade mostra-se á descober
ta, e sabe-se como combatel-a. A superstição, o fa
natismo, e a hypocrisia, são mascaras que illudem e
prevertem a santa religião de paz e fraternidade que
Christo legou ao mundo. Estas lepras corrosivas en-
contram-se em todas as religiões; não serei eu que as
substancie (volta costas, e dirige-se a outro grupo de
portuguezes. No entanto, tendo o Jogue acabado dj
receber as esmollas, diz):
Bazibut (Jogue) (repetindo o versículo dos Bramanes):
Pé-sé-lé . . . Ó-mó-é.
Leonardo (o Molemo) :
Que diz elle?
Molemo-Caná
Repete um versículo do choro dos Bramanes, que
se traduz assim: «Purificae-os, Senhor.» Está ben-
disendo as esmollas, e reparem que já olha com mais
agrado (em choro repetem os Bramanes, incensando
Vasco da Gama e o Catual, o seguinte psalmrando):
Ó-mó-é. . . gri-pae-tae. . .
Pé-sé-lé . . . ó-mó-é:
É-pho-sí. . . tae-gripae. . .
Pé-sé-lé. . . ó-mó-é.
124

Molemo-Caná
Está cumprido o rito, e findas as purificações . . .
O sr. Vasco da Gama e o Catual vão descêr. Sem
receio podem agora todos chegar á presença do Ça-
mori, que está satisfeita a superstição.

SGENA ffl

(Descem Vasco da Gama, o Catual, os naires,


acompanhados pelos Bramanes).

(O Catual falla baixo com Molemo, que repete):


Molemo-Caná (tradusindo a .Vasco da Gama,
as palavras do Catual):
Agora que estão cumpridos os ritos, e a divinda
de, segundo affirmam os Bramanes, se mostra pro
picia ás vistas do sr. commandante portuguez com o
mui alto e poderoso Çamori de Calecut, pode-se ir
caminho, sem maior detença ao paço do imperador,
que demora cinco legoas d'este templo.
Vasco da Gama (a Molemo):
Diga ao sr. Catual, que ainda teremos aqui uma
breve demora . . . Vamos proceder tambem á purifi
cação, a modo de portuguezes e christãos, para que
nossas vistas com o Çamori sejam todas em paz, con
cordia, e reciproca felecidade dos dois reinos. (Mo
lemo- Cana repete isto em voz baixa ao Çamorim,ao
entanto que Vasco da Gama, voltado para os por
tuguezes, lhes diz): Precederemos tambem, para irá
presença do Çamori de uma solemnidade estas vistas,
que imponha ao povo idolatra; mas a nossa solem
nidade hade ser mais proveitosa que a delles, pois
125
elevará á nobre classe de cavalleiros, um, que ha
muito tenho destinado a essa honra . . . Pode um ca-
valleiro ser armado no campo de batalha, ou em ou
tro qualquer logar, quando a mercê urja. Escolhi, a
proposito, esta occasião, porque prevenido do ritual
gentilico, tencionei fazer uma obra agradavel a Deus,
no proprio local onde a idolatria ergue cultos a. di
vindades imaginarias. . . (falla de vagar com alguns
ojficiaes).
Leonardo (o Velloso):
Então deveras se arma aqui um cavalleiro?
Fr. Christovao
E ser-lhe-ha uma surpreza, sr. Leonardo.
Vasco da Gama (ao oficial, com quem
acaba de fallar):
Chame o recependiario que indiquei.
Official (deve ser dos que trazem manto
de cavalleiro de Christo).
Sr. Leonardo dos Santos, capitão de popa da ca-
ravella S. Gabriel?
Leonardo
Eu? (avança para onde está Vasco da Gama; e
Fr. Christovao acompanha-o).
Vozes
Elle?! Leonardo?!
Vasco da Gama (a Leonardo):
Vae ser armado cavalleiro; que pela sua lealda
de, e honroso feito praticado na Bahia de Santa He
lena, libertando a Velloso, e escudando a minha pes
soa, na revolta dos negros, bem merece esta honra
ria (a Fr. Christovao). . . Sr. Fr. Christovao Soa
res, em breves palavras lhe compondeie os deveres
120

de gráo que vae receber; mais longa instrucção será


para depois em Portugal quando receber em fornia o
habito, na casa capitular dos Freires de Christo, na
Egreja da Conceição, em Lisboa ... Eu sou aqui um
dos padrinhos ao novo cavalleiro: o outro será, sr.
official (dirigindo -se ao offtcial, com que precedente
mente follara. Este dirige-se amn soldado, que trou
xe um cofre, e que o conduz para onde estão Vas
co da Gama, Fr. Cliristovão, e mais cavalleiros que
estão com mantos).
Fr. ChristovÃo (a Leonardo, que está
, de pé, janto d'eUe):
O cavalleiro da milicia de Nosso Senhor Jesus
Christo tem tres votos: a obediencia, a pobresa, e a
castidade. A obediencia é especial virtude devida ao
preceito do prelado pela reverencia de Deus, e o
principal acto da religião; e por isso mais honrada,
que o sacrifício e effeito desta virtude consiste, prin
cipalmente, em obedecer ao mestre e governador n'a-
quellas cousas que convem á. regular observancia e
intenlo d'esta santa religião, e o mesmo será obede
cendo em todos os mais, contanto que não sejam con
tra Deus, e contra a ordem: A pobresa não se guar
da hoje, como na instituição d'esta milicia, por favor
dos Sumos Pontífices; mas ao diante se significarão
as esmollas com que se resgata este voto: A castida-
de, no cavalleiro secular, tem uma limitada dispen
sa. Não fica levantado de todo o voto da continen
cia, porque não é dispensado em mais do que para
usar legitimo matrimonio. ( O soldado que trouxe ç
cofre, tira d'elle um murrião, uma espada {embai
nhada) e esporas, que colloca numa bandeija, eev-

L
127

trega a um dos ofjiciaes, padrinho. Este offerece-a


a Vasco da Gama, que desembainhando primeiro a
espada, e collocando-a assim na bandeja, toma esta
em mãos, e ajoelha com ella, em presença de Fr.
Christovão Soares, que benze as armas, lançando
sobre ellas tres cruzes, e dizendo): Em nome de Deus,
Todo Poderoso, abençô-o as armas do novo caval-
feiro de Christo. (Vasco da Gama ergue se, entrega
a bandeja, ao soldado que lha appresentou, e diz a
Leonardo, que ajoelha): A primeira e principal obri*
gação do cavalleiro, é pelejar contra os inimigos da
Cruz de Christo, para augmentar sua santa fé, e a
deffender e conservar, estando sempre prompto com
suas armas para favorecer e servir a Santa Igreja Ca-
tholica, com o proposito de dar a vida por sua def-
fensão e augmento, todas as vezes que o Mestre o
mandar. (Vasco da Gama tira da bandeja a espada
que embainha, e cinge a a, Leonardo. Coloca-lhe de
pois o morrião na cabeça, e entrega as esporas aos
dois cavalleiros assistentes (que são os que estão com
mantos,) e estes Ih'as calçam. Vasco da Gama che-
ga-se depois ao recipendario; desembainha ihe a (s~
pada, e floreando, pergunta a Leonardo) Leonardo!
quer ser cavalleiro da milicia de Nosso Senhor Jesus
Christo?
Leonardo
Assim o desejo, e é esse meu ardente voto.
Vasco da Gama
Promette guardar tudo que os cavalleiros são
obrigados a guardar, segundo a ordem de cavallaria?
Leonardo
Assim o juro. j
128
Vasco da Gama
Eu Vasco da Gama, em nome de El -Rei Nosso
Senhor, governador e perpetuo administrador da or
dem militar de Nosso Senhor Jesus Christo, cujas
vezes e poder para isso tenho, vos recebo aella(cfá
tres pancadas com a espada no murrião).
Fr. Christovão
Está armado cavalleiro, pacifico, valente, fiel e
consagrado a Deus. (Levanta-o. Vasco da Gama
embainha lhe a espada)... Fr. Christovão (continuan
do, e abraçando-o): Exciteris á somno mililke et vi
gilia in fide christi, et forma laudabit. (Os circum-
stantes, portuguezes, abraçam-o, dizendo): A paz seja
comvosco. (A musica da armada portitgueza, que es-
tá presente, como acima se disse, composta de in
strumentos de latão, em honra ao novo cavalleiro
toca a armonia que sê escreverá ajustada á seguin
te letra, que os portuguezes cantarão):
Choro
Na milicia de Deus, Jesus Christo,
Se filia um novel cavalleiro,
Que por Deus, pela Patria, p'lo Rei,
Nos extremos será o primeiro.
Vasco da Gama (a Molemo):
Diga ao Catual que está finda a nossa purificação,
e podemos ir caminho do Paço do Çamori. (Molemo
falla baixo com o Catual).
Vasco da Gama (proseguindo, e voltado
para os portuguezes):
O pagode da gentilidade ficou semi-purificado pe
lo acto da verdadeira religião, que nelle acabamos
de praticar . . . Sem os naluraes o presumirem, er-

^
120

gueu-se, triumphante o estandarte da Cruz, o, en?


breve, os idolos da índia cahirão derrubados de seus
altares, para nelles se erguer o symbolo da redemp-
ção e da fraternidade . . . Fica lançada n'estas pa
ragens do Oriente a vergontea da formosa arvore do
Christianismo, cujos ramos abrigarão á sua sombra
o padroado de Él-Rei de Portugal ... A índia já
tem um cavalleiro seu . . . É Leonardo; o primei
ro. . . Será seguido de milhares d'elles que susten
tarão, com esforço, as heroicas acções que nossos suc-
cessores aqui terão de commetter; e ao heroico im
pulso dos quaes ajoelharão aterrados os reis d'esta
parte do mundo, offertando, como páreas de tribu
tários a Portugal, as joias indianas, que pela mão
de Deus, se engastarão na coroa rutilante da mo-
narchia portugueza. (Embarcam Vasco da Gama, e
o Catual nos palaquins, e saem do Pagode, na or
dem em que entraram, tocando, e cantando as mu
sicas da armada portugueza, e do reino de Calecut),

Choro dos Portuguezes (ainda no pagode):


Na milicia de Deus, Jesus Christo,
Se filia um novel cavalleiro,
Qe por Deus, pela Patria, p'lo Rei,
Nos extremos será o primeiro. ♦
Choro dos Calecutanos (sahindo do pagode):
Ó-mó-é. . . gri-pae-tae:
Pé-sé-lé . . . ó-mó-é:
E-pho-si. . . tae-gri-pae.
Pé-sé-lé . . . ó-mó-é.
130

Choro dos Portuguezes (como fechando


a marcha do prestito):

Já deixámos na índia assentado


O primeiro e sagrado padrão;
Que de eterna memoria será
Ao esforço da lusa nação (cae o panno).

FlM DO i." QUADRO DO 3." ACTO


ACTO TERCEIRO

tllTADHO II

Uma salla, no gosto indiano. Deve ser a entrada prin


cipal pelo fundo: fechada: portas lateraes para quar
tos interiores. Entre as portas lateraes, janellas ras
gadas. As pinturas devem ser em arabescos asues,
dourados, e brancos. No tecto da salla, figurar-se-ha
a Trindade indiana, e as suas transformações em me
dalhões que circundam a figura principal. No lado
esquerdo do espectador haverá uma cadeira, de es
paldar, pregaria dourada sobre moscovia. Esta cadei
ra, tem de um e outro lado coxins indianos. Um bo*
fete a um canto da salla, tendo papeis sobre elle.
Ao levantar o panno está Vasco da Gama sentado na
cadeira de espaldar. Molemo-Caná, em um dos coxins,
ao lado. Diogo Dias conversando com Leonardo e Ve
loso. Os demais de pé, em grupos, nos quaes se nota
Fr. Christovão. Estão duas sentinellas á porta do
fundo.
SCENA I

Vasco da Gama, Fr. Christovão Soares, Molemo-Ca


ná, Leonardo, Diogo Dias (feitor em Calecut), Al
varo de Braga (escrivão da feitoria), Fernão Mar
tins (lingoa), Veloso e Soldados Portuguezes.
132
Vasco da Gama (sentado. A Molemo-Caná):
Diz, sr. Molemo-Caná, que esta demora por par
te do Çamori, provem de intrigas de mouros, tanto
naturaes da terra, como de fora, em rasão do tracto
da especieria que teem, como senhores que estão da
navegação pelo mar- roxo?
Molemo-Caná
E digo a verdade, á fé de leal que sou, e me pa
rece hei dado provas ao sr. capitão.
Vasco da Gama
Em verdade muitas. Não me esquecem os servi
ços prestados em Melinde; e pelos seus bons officios
uão poderam os mouros torcer a franca vontade e
opinião do Rei.
Molemo-Caná
Elle é de seu natural justiceiro, bem inclinado, se-
sudo, e amigo da paz, se bem que mouro: mas creia
Sua Senhoria que tambem muito concorreu para lhe
inclinar o animo, o presente que lhe fez, no dia das
vistas sobre o rio, dos trese mouros que aprisionou
no zambuco, á sabida de Mombaça. N'esta gente o
ser largo de mãos tem grã valia; e servem os presen
tes de lhes abrir bem as orelhas para ouvirem as
proposições. . . Da mesma forma, querendo seguir
meu humilde conselho, não perderá seu tempo o sr.
capitão se proceder assim em Calecut.
Vasco da Gama
Procederei, porque seus conselhos tegi sido sem
pre bons e rasoaveis.
Diogo Dias (que se tem aproximado):
Mui especialmente provou sua prudencia no rio
dos Bons Signaes, onde ficou assente o padrão S. Ra
133

fael; e por espaço de um mez nossos navios ficaram


em corrigimento, estando a gente quasi todamalata,
em consequencia das carnes, pescado salgado, e bes-
couto corrompido de tanto tempo que ali comemos.
Leonardo (que tambem se tem aproximado
com Diogo Dias):
Do rio dos Bons Signaes uma memoria ficou ao
sr. capitão. Inda me lembra e tremo, que estando
Sua Senhoria a bordo do navio de seu irmão, osr.
Paulo da Gama, o S. Raphael, numa bateira peque
na, somente com dois marinheiros que a remavam,
e tendo as mãos pegadas na cadeia da enxarcia, em-
quanto fallava com ellc, a agoa desceu tão têsa, que
lhe furtou a bateira por baixo, e o sr. capitão, e os
marinheiros não tiveram mais salvação do que fica
rem pendurados nas cadeias, té que se lhes acudiu.
Vasco da Gama
Deus, porem, em sua misericordia nos conservou
para chegarmos, finalmente, a assentar pé n'esta
terra da Índia.
Diogo Dias
E não foi menor o perigo, quando na manhãad'es-
se dia 24 de fevereiro sahimos a barra do rio dos
Bons Signaes. A caravella S. Raphael foi dar em sec-
co num banco de areia. Não havia foiças a safal-a,
quando felizmente a maré enchendo nos tirou do pe
rigo, de sorte que navegando sempre á vista da cos
ta, passante cinco dias surgimos em Moçambique,
em signal do que ahi deixámos assentado o padrão
por nome S. Jorge.
Vasco da Gama (levantando-se):
Esses e outros são perigos passados, de que. te
134
mos de agradecer a Deus ... agora, sómente, é de
grande monta deliberar-mos como proceder aqui era
Calecut. . . Que lhe consta, pois, sr. Molemo-Caná,
das maquinações dos mouros contra nós?
Molemo-Caná
Como sabe, capitão, quando fui com um degra
dado notificar ao Imperador de Calecut a chegada
d'esta armada, e pedir-lhe houvesse por bem deter
minar o dia que Sua Senhoria fosse -a elle, porque
sem sua licença não sahiria dos navios, recordado
estará que eu e o degradado dormimos essa noite
em terra.
Vasco da Gama
E por signal grande inquietação tive, por não vol
tarem.
Molemo-Caná
Mas na tarde do seguinte dia eramos de volta em
a caravella, e assim desfiz a suspeição que Sua Senho
ria concebera de minha infidelidade.
Vasco da Gama
Confesso que sim, e ora lhe peço desculpa de tão
infiel pensamento.
Molemo-Caná

Mas natural. Sou estranho á sua nação; ainda que


mouro todavia, pois em nossa religião tambem ha
pessoas honradas, dei conta do meu recado. N'essa
noite ficámos em casa de Monçaide, meu co-religio-
nario, e corretor de mercadorias, mas homem de fé.
Por elle tenho sabido quanto os outros mouros tra
mam. Não preciso contar das vistas que o sr. capi- ,
tão teve com o Çamorim.
135

Vasco da Gama
Essa primeira entrevista a pouco se reduziu. Re
cebido em audiencia, pelo bramane-mór mi conduzi
do ao catel onde o Çamorim se recostava, e sentei-
me nuns dcgráos do mesmo. Notei que o Çamorim
me recebeu com muita graça no ar do rosto, e por
espaço grande esteve notando os trajes e actos das
pessoas que me acompanhavam. Praticámos em pa
lavras geraes, e á 'mão lhe passei duas cartas que
Sua Real Senhoria El-Rei Dom Manoel lhe manda
va, uma escripta em arabigo, e outra em portuguez,
ambas da mesma substancia. Significou-me que as
veria, e que me fosse então repousar. Emquanto ao
gasalhado me disse se requeria que o tivesse com
mouros, ou com os naturaes, pois aqui não havia gen
te de minha nação. Respondi como apropriado.
Molemo-Ganá
Sim; que entre mouros e christãos ha differença
entre a lei que têem, e outras paixões particulares; e
que com os vassallos d'elle Çamorim, tanto o sr.
Capitão, como os portuguezes, não sabendo seus
costumes temia de os anojar; e portanto pedia a Sua
Real Senhoria que os mandasse aposentar sem com
panhia alguma.
Vasco da Gama
E verdade; e mandou ao Catual que me conten
tasse; e por isso aqui estamos alojados. ,
Molemo-Caná
E como detidos, ou prisioneiros, por industria dos
mouros.
Vasco da Gama
Prisioneiro! ... O representante do Rei de Portu-
ias
gal não se retêm assim contra sua vontade, onde
quer que seja. Em quanto ao lado me pender a es
pada, este braço terá força para abrir caminho por
entre quem ousar vedar-me o passo. Aprendi dos
meus maiores, e de todos os portugueses que mane
jam armas, a têr braço para ferir livre, e não pulso
para soffrer algemas . . . N'este logar em que estou
não sou Vasco da Gama; represento Dom Manoel,
Rei de Portugal; e os Reis de Portugal, louvado Deus,
não vergam ainda o collo a nenhuma lei do estran
geiro, nem vergarão nunca; ao contrario, alguns a
tem imposto pela sabedoria e pela espada.
Leonardo [desembainhando a espada e assim
todos os portugueses)
Nossos ferros sabem cortar, nossas vidas estão
promptas ao sacrifício pela patria, e pelo Rei... Com
ferro em punho vamos abrir caminho até ás náos, e
ai d'aquelles que se atravessarem diante! ... A mul
tidão não temêmos; nem o esforço portuguez mede
seus inimigos pelo numero... quanto maior seja,
mais se nos redobram os brios de os aniquilar . . .
Vamos, Sr. Vasco da Gama; pela religião e pelo Rei,
as nossas armas devem vingar, lavando no sangue
inimigo, a affronta feita ao nome portuguez. (Como
ameaçando sair e mais os soldados portugueses, e ins
tando com Vasco da Gama para os acompanhar.)
Vasco da Gama
Prudencia . . . Não perca a precipitação o que a
brandura pode ganhar . . . Vae nisto o interesse do
Rei, e a prosperidade da nação . . . Com os mouros,
authores d'este desaguisado, breve ajustaremos con
tas-. . . É chegada a monção de suas náos que vem

,
137

de Meca a estas paragens da índia fazer trafico de


especiarias. Pagarão pelo que os seus nos fiseram em
Moçambique e Mombaça, e á fé de Vasco da Gama
vos prometo grandes festas a ferro e fogo, até de
todo as destruir, e não pequeno despojo tomaremos
para El-Rei, e para vós. (Dirigindo-se a Molemo-
Caná) Sr. Molemo-Caná, de sua mercê fio uma hon
rosa e mui confidencial missão. Vamos escrever uma
carta ao Catual, pedindo-lhe venha aqui. Far-me-ha
a mercê de ser meu secretario, pois essa carta tem
de ser escripta em arabigo. (Para Fr. Christovão
Soares) Sr. Fr. Christovão Soares; acompanhe-me,
que tambem careço do seu conselho. (Molemo-Caná
e Fr. Christovão Soares fazem uma cortesia de as
sentimento, e ambos se dirigem com Vasco da Gama
a um gabinete interior. )

SGENA II

Os DITOS, MENOS VASCO DA GaMA, Fr. CHRISTOVÃO


Soares, e Molemo-Caná

Leonardo
Muito prudente é o capitão! ... eu cá por mim
não me sustinha ... ia já daqui por essas ruas fora
distribuindo bordoada de cego, pelouros meudos, e
catanada por dá cá aquella palha.
Veloso
Seriam as tuas primicias de primeiro cavalleiro da
índia.
Leonardo
Morde-te, cão invejoso, que nunca has perder ò
138
•estro. . . Mas não vá por isto quebrar- se a nossa
amisade tão bem soldada naquelles mergulhos no
mar do Gabo da Boa Esperança. Inda não te contei
a minha aventura em Melinde.
Veloso
Correu pela caravella S. Gabriel que íisestes por lá
grandes proesas. (Fazem circulo a Leonardo).
Leonardo
Ah rapazes! se eu fora gabarolla podia contar o
feito e por fazer, e vocês haviam acreditar. . . Pois
saibam que indo a empresa muito bem perfillada e
alinhavada, fiquei, por fim de contas, ah! (escancara
a bocca) aguado, homens! . . . por fé minha com
agoa na bocca, assim como qualquer de vós outros
que já tenha ido a um colloquio ajustado, e venha
por fim com uma canella no ar.
Veloso
Então o principe, o esposo da tal princeza de Me
linde foi apanharte com a bocca no gomil, e tocou-
te a pavana?
Leonardo

Qual gomil! . . . nem cheguei a tomar-lhe o cheiro,


quanto mais levar o gargallo á bocca!... Pavana!...
nentes, que com o cavalleiro Leonardo havia de ha-
ver-se, se quizesse fazer-se valentão cioso ... Ora
quem julgas tu, Veloso, que eu havia deparar, quan
do já contava ter em meus braços a princesa semies-
carumfia, dizendo-lhe: « doce alma da minha vida, sou
teu. . . és minha?»
Uma voz
O marido.
139

Leonardo
Qual marido, tollos?... Os maridos nesta terra não
se importam com estas cousas ... foi um magico.
Todos (ás gargalhadas)
Um barbaças!. . . bem empregados abraços. . .-
ah! . . . ah! . . . ah! . . . boa pulha!
Leonardo (a Veloso, em voz aparte)
Encontrei Maria, que Vasco da Gama confiou
em recato á princesa, até voltarmos a recolhel-a em
Melinde, no regresso para Portugal.
Uma voz
E o magico deixou-se abraçar?
Leonardo
Callem-se para ahi, zombeteiros do diabo . . . sim
abracei, beijei o magico, fiz-lhe tres festinhas na cara,
e ficámos amigos á boa paz.
Todos
Ah! ... ah! . . . ah! . . . Um magico por uma prin
cesa. (Dispersam-se, ficando só Veloso e Leonardo).
Veloso
È de suppor, mudaste a chave á fechadura?
Leonardo :
Podera não ... as mulheres sempre èngollem cada
carapetão! . . . disse-lhe que tinha ido alli por sua
causa, e a despedir-me . . . chorei, chorámos, abra-
çamo-nos. . . e ella engoliu a pirola.
Veloso
E a princesa?
Leonardo
Damnada como uma bixa. . . deilou-me uns olhos
que eram mesmo de comer-me. . . e tinha rasão, fi
cámos pintados. . . . '.;>
HO
Veloso
Leonardo! . . . Maria merece- te mais lealdade.
Leonardo
Ahi vens pregar-me moral. . . Maria tem aqui o
seu quinhão, (batendo no peito) que ninguem lh'o
tira, mas por ora não lhe commetto infidelidade . . .
(olhando para Vasco da Gama, Fr. Christovão Soa
res, e Molemo Cana, que entram em scena) O capi-
tão-mór da armada.
SCENA III
Vasco da Gama, Fr. Christovão Soares,
Molemo- Cana e os ditos
Fr. Christovão Soares
Deve o sr. Vasco da Gama muitas graças a Deus,
pelos perigos de que o tem livrado n'este commetti-
mento da descoberta das índias.
Vasco da Gama (entregando a carta
a Molemo- Cana)
Conhece a importancia da missão ... do seu re
sultado depende como haver-me em Calecut... Peço
que nella empregue toda a diligencia.
Molemo-Caná
Nenhum outro servidor encontraria o sr. capitão
mais dedicado. (Sae fazendo reverencia).

SCENA IV
Os DITOS, MENOS MoLEMO-CanÁ

Fr. Christovão Soares (continuando)


Como ia disendo; não fallando dos outros perigos,
441

também não foi pequeno o que corrêmos em Moçam


bique.
Vasco da Gama (senlando-se)
E quem havia suspeitar do Xeque, que dava mos
tras de leal, recebendo os presentes que lhe mandei,
doces e conservas da ilha da Madeira, de que me
me cambiou em retorno algum refresco da terra. Nos
tres abexins que vieram a bordo encontrei tambem
boa acolheita, e noticias proveitosas para esta nave
gação.
Fr. Christovão Soares (sentando- se tambem)
Por isso os mouros deram traças para os abexins
não voltarem á caravella.
Vasco da Gama
Nem d'elles me queixo, nem mesmo do Xeque, e
sim dos mouros, que na qualidade de pilotos ajus
tei por trinta meticaes de ouro, pêso da terra, e uma
marlota de grãa.
Fr. Christovão Soares
Não pequena insistencia elles fiseram por levar
logo essas cousas na mão.
Vasco da Gama
Do que me proveio suspeita não consentindo que
um fosse em terra, sem que outro ficasse na caravella.
Não pequeno trabalho me deram os naturaes, quando
os nossos bateis abicáram á praia, em demanda de
lenha e agoa; que foram ganhas á força das espin
gardas que os nossos levaram, e bem lhes serviu
para responderem ás frechadas com que foram acom-
mettidos. Estava rota a paz com o Xéque; mas por
não entender apropriado fazer força, deixei a povoa
ção, que bem podia queimar, e fui tomar pouso na
142

ilha- de S. Jorge. O piloto mouro que estava a bordo,


e um negro grumete fugiram a nado, e por lá fica
ram, se bem que na busca que ainda mandei fazer
.d^lles, não foram pouco castigados os naturaes, pela
sua falta de fé.
Fr. Christovão Soares
r Tão castigados que o Xeque, no dia immediato,
mandou pedir paz e concordia, disendo que um dos
.pilotos era ausentado, e metido pelo sertão temendo
o castigo que lhe podiam dar; e o outro piloto esta
va já castigado, por ser morto com a nossa artilhe-
;ria: e que as marlotas, e o mais que houveram, tudo
fora tomado a suas mulheres; e vol-o mandaram em
companha de novo piloto.
r , Vasco da Cama (passeando, com
Fr. Chrislovão Soares)
Que vinha iscado tambem da malquerença, e apos
tado a fazer encalhar o galeão, ou abrir-lhe agoa de
encontro a algum penedo. (Esta phrase é dita, pa
rando ambos junto onde está Leonardo.)
Leonardo (mettendo se na conversação)
E como, pela graça de Deus, sr. Capitão, escapá
mos todos do traiçoeiro intento! ... O piloto de Mo
çambique mareou o galeão a Mombaça, e, a pretexto
de visita dos naturaes, os mouros abordados, vesti
dos de festa e tangeres, como para nos honrar, en-
. cheram as nossas embarcações . . .
Fr. Christovão Soares
Não tinha mal planeado!
Leonardo
Deus inspirou o sr. capitão a mandar n'esse mo
mento desferir a vella, com grande contentamento dos
143
mouros que já presumiam levar para terra a presa,
que o traiçoeiro piloto lhes promettera; e não me
nos alegria dos nossos, cuidando que em encontrar
tão lusida gente, e as novas que lhe davam da ín
dia, tinham achado o fim de nossos trabalhos.
Fr. Christovão Soares
Breve, porém, veiu a uns e outros o desengano.
Milagrosamente obrou Deus que a caravella não qui-
zesse fazer cabeça por a vélla tomar vento; e come
çou de ir descahindo sobre um baixo. A este perigo
se accudiu mandando lançar uma ancora: e como é
costume dos mareantes, em tal faina, soltarem gran
des brados, e correr por todo o navio de uma a ou
tra parte aos aparelhos, vendo' os mouros, que esta
vam pelos outros navios, esta revolta, parecendo-lhe
que a traição que levavam no peito era descuberta,
todos uns por cima dos outros se lançaram aos bar
cos.
Vasco da Gama
Elles proprios se denunciaram.
Leonardo
E os que estavam na caravella S. Raphael, que vi
ram aquella desordenada fuga dos outros, imaginan
do tambem que nas outras tres vellas fora onde se
descobrira a traição, de cambulhada todos se lança
ram ao rio, não sendo dos ultimos o piloto de Mo
çambique, que se alijou dos castellos de popa. . .
Que vista não faziam aquellas fótas de variegadas co
res sobrenadando nas agoas!. . . Muitos pagaram a
traição morrendo afogados (entra um soldado com
uma carta que entrega a Diogo Dias).
144

Diogo Dias (vendo o enderesso da carta e


dirigindo -se a Vasco da Gama):
Foi entregue á nossa sentinella esta carta, que me
chega ás mãos por via de um official dos paços do
Çamorim (apresentando a).
Vasco da Gama (sentando -se):
Marcará o dia da audiencia, porque espero?! (ve-
ja-se nota no fim para se conhecer como a carta de
ve ser appresentada. Vasco da Gama, desenleia as ta-
boinhas, e olliando para as folhas de palmeira olla,
entrega-a a Fernão Martins, dizendo lhe): Suamer
cê, que tambem sabe o arabigo, tenha a bondade de
a traduzir.
Fernão Martins (lendo):
«Limpido sol da minha alma. . . (detendo-se).
Vasco da Gama
Que! . . . (levantando -se) ... Veja bem se a mim
dirigida.
Fernão Martins
Sem duvida. . . (lendo): «Ao sr. capitão da arma
da do Rei de Portugal. »
Vasco da Gama
Continue . . . talvez esse tractamento seja o de cor
tesia usado n'este reino.
Fernão Martins (continuando a ler):
«Em trevas ficou immerso o meu coração, desde
que na entrevista que o sr. capitão teve com o meu
esposo, o alto Çamorim, não mais tornei a vêr esse
sol que lançou na minha alma o doce calor do amor...
(detendo-se).
Vasco da Gama
Ora esta!
145
Leonardo (a parte):
Bonito! . . . agora tocou a vez ao capitão!
Vasco da Gama (a Fernão Martins):
Continue.
Fernão Martins (continuando a leitura):
«Morrerei ás mãos do pesar, se o grande capitão
não escutar meus rogos, que são vir esta noite ao pa
ço, onde uma escrava o introduzirá. Lembre-se o ca
pitão que se me satisfizer a este voto do coração,
posso levar a bom caminho seus desejos n'esta vinda
a Calecut . . .
Vasco da Gama (irado):
Assaz de leitura . . . (lançando mão da carta que
tira a Fernão Martins) . . . Esta carta prova a de
vassidão d'estes idolatras . . . Não vim á índia, em
serviço de El-Rei, acceitar requebros de damas: sim
vassalagem de principes ... A quem a recusar esta
(batendo na espada) fará força ... a repto de mu
lheres unicamente sei responder assim (rasga as fo
lhas de palmeira, quebra entre dedos as taboinhas,
e passa por cima d'ellas, a fallar devagar com Fr.
Christovão Soares).
Leonardo (para Veloso):
Seguirias aquelle exemplo?
Veloso
Esta noite estaria nos braços d'ella.
Leonardo
Aqui muneris . . . Não é a mel para a bocca do
asno ... Se fora commigo! . . .
Diogo Dias (achegando -se a Vasco da Gama
e Fr. Christovão Soares):
Admira-se Sua Senhoria do modo de proceder da
10
Hl?

mulher do Çamorim, porque não está ao facto dos


usos da terra. Os naires, que teem por profissão se
rem homens de guerra, sendo do mais nobre sangue
de todo o gentio, na opinião d'elles, podem chamar-
se filhos do vulgo.
Veloso (que se tem achegado a este -
grupo, com Leonardo):
Filhos do vulgo?
Leonardo
Sim, homem! . . . quer dizer que são filhos de mui
tos paes . . . Que optima terra!
Diogo Dias (continuando):
Filhos do vulgo, e não faça o dito especie, por
que quer dizer que as mulheres são communs aos
da sua dignidade.
Leonardo
Ah! . . . não ser eu naire!! . . .
Diogo Dias
O uso é tão geral que depois de uma mulher do
sangue dos naires é de edade de dez annos . . .
Leonardo (á parte):
Começa cedo! . . .
Diogo Dias (continuando):
Sim, em tendo dez annos, acha-se apta para ter
maridos.
Veloso (â parte):
Bom! ... a cousa vae no plural.
Diogo Dias [continuando):
Pode dar entrada em sua casa a quantos naires
quizer, e tambem aos Bramanes, que são os seus re
ligiosos, por serem licenciados n'estas entradas.

I
147

Leonardo
Oh Veloso! . . . faz-te bramane; que eu meto-me
a naire. . . anda. . . apanhamos as petises.
Diogo Dias (continuando):
E são elles e ellas tão livres o"este vinculo conju
gal, que se um aborrece ao outro, isto basta para
se apartarem por modo de repudio; porem emquan-
to estão em concordia elle é obrigado de manter a
ella.
Leonardo
Ainda em cima!
Vasco da Gama
Costumes, em verdade, estravagantes, e só filhos
da religião do gentilismo. Já não estranho, pois, o
proceder da esposa do Çamorim, mas não é de mi
nha fidalguia e religião conformar-me a taes usos...
(com inquietação): Molemo-Caná demora-se com a
resposta!
Leonardo
Diga cá, sr. Diogo Dias, que é tão sabido das vir
tudes caseiras d'esta terra ... os maridos ficam as
sim?. . .
Diogo Dias
Como hão de ficar se é o uso! . . . Costume faz
lei. Quando um naire vem de fora, e algum outro
naire está com ella, basta, para não entrar, e saber
que está. . . (hesitando no termo que hade empre
gar) . . . sim, que está . . . achar a adaga e a espa
da do outro á porta, sem por isso receber escandalo,
ou paixão. „ .-,..'.',.,-,
148

Leonardo

Ditosa condição, ditosa gente


Que sem ciumes vivera santamente!

Veloso
E então como se havêm elles em o negocio dos fi
lhos?
Fernão Martins
De tudo isto vem nenhum d'elles haver por filho
o parto da mulher, nem são obrigados a os manter;
e seus verdadeiros herdeiros são os sobrinhos, filhos
das irmãas.
Vasco da Gama
Mui lidos nestas cousas são vossas mercês, sr.'
Diogo Dias e Fernão Martins, e se, em veras, encon
tro entretenimento em as suas narrações, assalteia-
me a demora de Molemo-Caná, pois não dista mui
to daqui a moradia do Catual. (Molemo-Caná ap-
parece entre portas).
Leonardo (apontando para Molemo-Caná):
Falla no máo, e aparelha o páo! . . . E adagio por-
tuguez.
SCENA V

Molemo-Ganá e os ditos

Vasco da Gama (indo ao encontro


de Molemo-Caná):
Já me sobresaltaval . . . E então?
Molemo-Caná
Prestes estará aqui o Catual que tem cargo de en
149
tender em as pretenções dos poríuguezes . . . Nos
seus modos aventei que os mouros o peitaram com
presentes, e lhe commetteram indispor Sua Senhoria
com o Çamorim para lhe não dar breve despacho,
sr. Vasco da Gama, até serem chegadas as náos de
Mecca, com as quaes contam metter as portuguezas
a fundo, e irem gastando as pessoas que ficarem em
terra, de sorte que não haja mais memoria d'elles,
nem da descoberta da índia.
. Vasco da Gama
Deus seja louvado se der ensejo de encontrar-me
neste porto com as náos de Mecca . . . Que vindas
sejam prestes, pois me tirarão o cuidado de ir em de
manda d'ellas. . . Ah! . . . querem experimentar co
mo os pelouros portuguezes rebentam, e o nosso fer
ro retalha?. . . Que seja. . . Náos, carregamentos, e
vida de homens expedirei para o fundo do mar; e
se o azar da guerra permittir que o destroço da ar
mada, que me está commettida, seja tal, que tam
bem tenhamos de ficar sepultos n'estas ondas, hon
rado morrerei no golphão que me abysmar, calcan
do aos pés o destroço dos inimigos de Christo; . . .
e ao tomar-me a asphixia, atroando, com o ultimo
alento, estes mares, bradarei : « que se um capitão
portuguez morre, depois da victoria, envolve-se glo
rioso no seu sudario, e desce á região dos mortos
victoriando sua patria: Portugal! (Desce o panno).

Fim do 2." quadro do 3.° acto


ACTO QUARTO

QUADRO I

A mesma decoração da precedente salla, soldados por-


tuguezes, etc.

SCENA I .,."'^'J

Vasco da Gama, Molemo-Caná, Fr. Christovão Soa


res, Leonardo, Veloso, Alvaro de Braga, Fernão
Martins.

(Entra um soldado, e diz a Vasco da Gama):


Aproxima-se o Catual.
Vasco da Gama
Que seja recebido com"a honraria propria á sua
representação neste reino. (Sete o soldado).

SCENA II

Os ríiTos menos o Soldado

Leonardo
Agora pertence-nos a honra da recepção.
;. .... Vasco da Gama (para Molemo-Caná):
Sr.. Molemo-Caná, servirá sua mercê de interpe
152

tre junto ao Calual. . . (para Fernão Martins): e o


sr. Fernão Martins desempenhará o mesmo myster
de lingoa, junto a mim. (Ouve-se fóra de scena a
musica da armada portugueza).
Fr. Christovão Soares
E chegado.
Vasco da Gama
Façam mercê o Cavalleiro Leonardo, e o sr. Es
crivão Alvaro de Braga, de o irem receber e intro
duzir. (Saem Alvaro de Braga e Leonardo).

SCENA III

Os DITOS, MENOS AlVARO DE BRAGA E LEONARDO

Veloso (á parte):
Chuxa que a cousa vae com todas as etiquetas!...
E a primeira vez que vejo o capitão tão sobrancei
ro em todos os pontinhos.
Vasco da Gama
Represento neste acto Sua Alteza El-Rei o Se - ,
nhor Dom Manoel. . . os sr.s cavalleiros, officiaes,
homens de armas, e mareantes que são presentes,
tomem nos seus rostos e continencia a quadra que
lhes compete numa audiencia solemne. (Senta-se
ríuma cadeira alta. Á ilharga, á direita estão co
xins para o Catual). *

SCENA IV

O Catual, e sequito pouco numeroso, introduzidos


por Leonardo, Alvaro de Braga e os ditos.
183
Quando o Catual chega junto ao estrado da cadeira
onde Vasco da Gama está sentado, lewnta-se este
majestosamente, dando tres passos á frente, es-
tcnde-lhe a mão e o conduz para os coxins que lhe
estão destinados. O Catual faz uma reverencia, e
seniam-se ambos, ficando Molemo-Caná á direita
do Catual, e Fernão Martins á esquerda de Vasco
da Gama. Os officiaes do Catual ficam de pé, do
lado d'estes, formando em frente dos bastedores
d'esse lada; os officiaes e soldados da armada por
tuguesa, do lado de Vasco da Gama.

Vasco da Gama (depois de sentado, para o Catual.


As palavras que Vasco da Gama vae disendo,
Molemo as traduz em voz baixa ao Catual)

Pedi esta entrevista, sr. Catual, porque certos fa
ctos que ultimamente se tem dado com os portugue
ses, não estão em harmonia com os sentimentos de
paz em que somos vindos a Calecut. Pode presumir
?uaes aggravos tenho a queixar-me. (O Catual falla
aixo com Molemo-Caná).
Molemo-Caná (repetindo alto)
O sr. Catual diz ignoral-os.
Vasco da Gama
Em primeiro logar, vae em setenta dias que desejo
ir á presença do Çamorim. Imperador d'esta região
do Malabar; e sempre se me ha impedido. [Catual
falia baixo com Molemo-Caná.)
Leonardo (á parte, emquanto fala Molemo-Caná
com o Catual)
Anda . . . leva a primeira estocada . . . Parece que
154
a cousa (para Veloso) vem cheirar a esturro pelos
principios que leva.
Molemo-Caná (tradusindo as palavras do Catual)
Diz o sr. Catual ser uso d'este reino, não irem ante
o principe os embaixadores, senão quando os mande
chamar, e mais' que primeiro repousem alguns dias.
Vasco da Gama
Farto do repousar estou, nem para repousar foi
que El-Rei, meu senhor, me mandou ás partes da
índia. . . Preciso tambem rasão porque não hei li
cença, nem os meus, de andarem soltamente pela ci
dade ?
Veloso (enquanto o Catual e Molemo-Caná
fallam em voz baixa)
Segundo capitulo da accusação . . . Isto vae em
termos de tribunal sumario.
Molemo-Caná (tradusindo as palavras do Catual)
Responde o sr. Catual, que emquanto o sr. Vas
co da Gama não fôr despachado pelo mui alto e po
deroso Camorim não tem, nem os seus, licença para
andarem soltamente pela cidade; e mais convem ser
isto assim para evitar algum escandalo que podem
receber dos mouros, pois entre todos ha paixões pela
rasão do que cada um crê á cerca das cousas de Deus;
e por esta forma da prohibição, tudo se ordena em
líftá- paz.
Vasco da Gama
Não estão os portugueses costumados nem a sof-
frer dilacções nos seus negocios, nem prohibições que
lhe tolham o passo. Delonga sobeja tem havido na
minha audiencia em forma, por Sua Altesa o Çamo-
rim. . . Já podérater ido, se não me sustara ainda
155
um respeito pelo atributo da magestade; meus solda
dos sabem abrir caminho, em passos muito mais dif-
ficeis do que este, e a espada que me pende ao lado
é de tempera para bater rija ás portas dos regios
aposentos até ellas se franquearem. Não me leve, ar.
Catual a este extremo; tenho aggravos grandes, e
exijo d'elles reparação. Expedi de modo vossas or
dens, para hoje mesmo terem logar minhas vistas
com o sr. Çamorim,
Molemo-Caná (repetindo o que lhe disse o Catual)
Diz ser impossivel, por não ter recebido ainda or
dens; e o mais que em sua mão está é apressar que
cllas cheguem á satisfação de Sua Senhoria, para cujo
ftm se retira, "esperando em breve obtel-as do impe
rador, e communical-as.
Vasco da Gama (a Molemo Cana)
Communique-lhe de minha parte que está retido,
e d'aqui não sae senão em minha companhia ás vis
tas com o Çamorim. (Para os soldados.) Ninguem
sae d'aqui sem ordem minha, e se alguem tentar for
çar a passagem, o soldado portuguez sabe como cum
prir o seu dever.
Molemo-Caná (que tem fallado com o Catual)
O Catual queixa-se de traição. Diz que se confiou
em boa fé, c nunca esperou do capitão portuguez lhe
armasse uma cilada.
Vasco da Gama (leoantando-se, e o Çamorim)
Cilada! . . . é a pena de talião. Naquelle quarto,
(apontando para um quarto interior) estão aprestes
de escrever á moda da terra . . . Acompanhe, sr:;
Fernão Martins, o Catual. . . Que se despache bre
ve, se breve quor sahir d'aqui comrftigo á presença
ISO

do Çamorim . . . Que escreva em termos que as de


mandadas vistas ainda hoje tenham logar.
Molemo-CanA (depois de fatiar baixo com o Catual)
0 Catual diz que cede á violencia, e passa a es
crever ao Çamorim. (Retira-se o Catual e Fernão
Martins á casa immediata.)

SGENA V

Os DITOS MENOS FERNÃO MrTINS E O CaTUAL

( Vasco da Gama passeia agitado.)


Leonardo
Hein! . . . Não se sahiu o capitão?! . . . Que me
dizem a esta? ... de detido tornou-se detentor! . . .
A cousa chegou a ponto de já não haver meias me
didas.
Diogo Dias
Parece- me que se aproxima o feito de sahirmos
d'aqui todos com armas em punho.
Fr. Christovão Soares
Talvez que não. O acto de energia do capitão, im
põe a esta gente.
Vsco da Cama (indo buscar ao bofete duas cartas)
Sr. Molemo-Caná! tem salvo conduclo para andar
pela cidade, e assim não posso fiar dos meus esta
commissão sem risco de serem detidos . . . mais esta
mercê lhe peço. Esta carta ao feitor portuguez, na
qual lhe ordeno que com os mais da feitoria, ama
nhã, a quase antemanhã, estejam na praia onde acha
rão os nossos bateis (para os recolherem ; e esta,
a meu irmão Paulo da Gama, em o S. Raphael,

>.
187
onde lhe envio regimento de como proceder. (Mole-
mo-Canà recebe as cartas e sae, dizendo Vasco da
Gama para os soldados) Passe que leva ordens mi
nhas.
SCENA VI

Os DITOS, MENOS MoLEMO-CaNÁ

Vasco da Gama
Cilada! . . . por um olho, olho: e pelo dente, den
te .. . Cilada! . . . e como chamarei á ousadia de me
reter, a mim, embaixador do Rei de Portugal, nas
casas que me deram por moradia . . . não permittir
ao feitor, e seus empregados que despachem o carre
gamento de especiarias, como se havia tratado! . . .
Queriam da minha, parte blandicias, quando de seu
lado engano e traição! . . . Animo portuguez não sof-
fre mingoa no seu pondunor e credito . . . Julgavam
reter-me, e elles é que ficam retidos até que obtenha
despacho dos meus requerimentos ao Çamorim . . .
Queria o Catual expedir-se só, para segundo disia,
abreviar as vistas, como se eu fóra homem que não
estivesse prevenido contra os tramas e embustes . . .
Era-lhes, de certo, favoravel o intento para indispo
rem contra nós o Çamorim, mas a prudencia acau
tela- me, e não recebi de Sua Altesa ordens senão
para tractados de paz. O mal que fiserem será vin
gado nas armadas que hão de seguir, e tenho em
Deus, que o nome portuguez, descoberta, como está
a viajem da índia, ha de ficar gravado em ferro e
fogo no coração d'aquelles que se escusarem á paz
e amisade que nos presamos saber sustentar. Não se
158

avilta o nome desta nação ante outras na Europa


mais poderosas e illustradas, e havia o orgulho na
cional rojar-se aqui ante nações barbaras!... Nunca;
porque o portuguez nasceu para fallar sobranceiro
na assembléa das nações, e nunca humilde.

SCENA VII

Gatual, Fernão Martins e os ditos

Fernão Martins (apresentando uma carta,


no feitio e forma da precedente,
a Vasco 4a Gama
Eis a carta para o Çamorim, cuja leitura pede o
sr. Gatual.
Vasco da Gama
Leia.
Fernão Martins (lendo)
Ao mui poderoso Çamorim. Imperador do Mala
bar, o seu servo Cojé-Cemerici, eatual de Calecut,
ao qual está commettido prover nas pretenções da
armada pelo Rei de Portugal. Senhor! aehando-me re
tido como refens em poder do capitão portuguez, até
que Vossa Magnanimidade Imperial lhe receba as vis
tas em que tem de expor sua embaixada, por El-Rei
de Portugal, sou a impetrar estas vistas para se des
pachar em os negocios dos portugueses, e fico como
Vassallo submisso aguardando para tal fim as deter
minações do mui alto e poderoso Çamorim. meu se-"
nhor*— Assignado —Coje-Cemereci.
Vasco da Gama .
Expeça-se. Diga sr. Fernão Martins ao Gatual quej

I
159

é preciso ura salvo conducto, para o meu enviado


não ser detido na passagem. (Fernão Martins falta
baixo com o Caiual, e este tira do braço uma ma
nilha, que lhe entrega).
Vasco da Gama (emquanto o Caiual e. Fernão
Martins fallam baixo)
Sr. Cavalleiro Leonardo (Leonardo aproxima- se
de Vasco da Gama)
Fernão Martins (a Vasco da Gama) t
Esta manilha (apresentando-a) leva a marca da
dignidade do Catual. E o salvo conducto que abrirá
passagem até á presença do Çamorim.
Vasco da Gama (a Leonardo)
0 desempenho d'esta commissão. Leve em sua
companha seis homens de armas á escolha. (Leonar
do recebe das mãos de Fernão Martins a carta, e a
manilha que enfia no braço, escolhe seis arcabuzeiros,
e sae fasendo uma reverencia a Vasco da Gama. No
entanto que escolhe os arcabuseiros tem dito:)
Leonardo
Quererá a esposa do Çamorim trocar por mjm o
capitão?... Tentemos a empresa se tiver também
vistas com ellas. (Sae e os arcabuzeiros).'

SCENA VIII

Os ditos, menos Leonardo, e os arcabuseiros

Vasco da Gama (sentando-se, e tambem o Catual)


Então, sr. Catual, julgou que me encontrava des
prevenido na sua proposta para que eu mandasse
varar os navios em terra? (Fernão Martins repete
160

estas, e o seguinte dialogo baixo ao Catnal, e dá pof


este as respostas )
Veloso (á parte)
Era emboscada de certo.
Fernão Martins (alto)
Responde o sr. Catnal que o motivo d'essa insis
tencia,, não era o querer anojar os portugueses, mas
sim o receio de que tentassem fazer algum enojo á
gente da terra, depois que os que estavam desem
barcados, se vissem nos navios, como se dizia que
íiseram nos portos d'onde vinham.
Vasco da Gama
Boa desculpa para encobrir o arteficio da distrui-
ção da armada, combinada com os mouros. Pergun-
te-lhe, sr. Fernão Martins, que podia em nosso
porte fazer suppor que tencionavamos cauzar nojo aos
naturaes?
Fr. ChristovÃo Soares (á parte emquanto Fernão
Martins, e o Catual fallam baixo)
Que prudencia a do capitão! Nesta pratica está
colhendo rasões para as suas vistas com o Çamorim.
FernXo Martins (alto, repetindo aspalavrasdo Catual)
Diz que era natural a suspeição, pela maneira que
a frota se postou em frente de Calecut; porquanto se
fosse gente pacifica a portuguesa, devia seguir o cos
tume d'estas partes, principalmente neste tempo de
inverno, varando seus navios em terra, e não estan
do sempre com a verga de alto, como gente que tem
animo de commetter algum mal.
Veloso (á parte)
E digam que o Calecutano não é esperto em suaa
respostas.
161
9 i
Vasco da Gama
. Dê-lhe por desculpa, sr. lingoa, se bem que os
damnados intentos lhe descobri, que os nossos na
vios são de quilha, e não dos de feição da terra, e
por isso era cousa impossível serem varados, por não
haver aqui aparelhos, como em Portugal para esta
necessidade . . . E pergunte mais porque mandou re
ter os meus homens da feitoria, e a fazenda que le
vavam para comprar de mantimentos?

SCENA IX

Molemo-Caná (entra, e entrega uma carta a Vasco da


Gama, que a lê, emquanto Fernão Martins falla
de vagar com o Catual.) Os personagens da scena
anterior.

Fernão Martins (alto)


Responde o sr. Catual que o unico motivo foi para
ficarem em refens, a requerimento da gente do mar,
para poderem ir pescar seguramente d'elles.
Vasco da Gama
Pois diga-lhe sr. Fernão Martins, que se trocaram
as setas em grelhas, e quando esperavam ter seguros
sete homens da nossa feitoria, foi meu irmão Paulo
da Gama que, em refens, lhe segurou vinte e seis
pescadores, que lá estão agora em represalia a bor
do da caravella S. Raphel... Assim mo certifica esta
carta. Somente serão restituidos a troco dos sete
portuguezes da feitoria, e da fasenda que os mouro»
com elles tomaram,
11
162
Veloso
Golpe de mestre !..-.. Deus de certo nos ajuda.
( O Catual ouvindo a tradução d'aquellas palavras de
Vasco da Gama, feita pelo lingoa Fernão Martins,
mostra-se muito compungido, e ameaça querer ras
gar os fatos, e falla vivamente com Fernão Martins.
Ao entanto diz):
Fr. Christovão Soares (para Veloso)
E sim que é ajuda de Deus, porque todos os ar-
teficios dos mouros tem sido pelo favor da Provi
dencia descobertos, e contra elles proprios voltados.
Fernão Martins (tradusindo a Vasco da Gama
as palavras do Catual)
Implora, sr. capitão, a benevolencia de Sua Se
nhoria para esses mal- aventurados pescadores, que
são pessoas mui acreditadas na terra, e cujas mulhe
res a esta hora devem ter amotinado a população,
podendo dar causa a elle Catual sêr demittido. . .
que a troco d'esses refens está prompto a dar um
salvo conducto para os portugueses embarcarem li
vremente com suas fazendas, ou commerciarem.
Vasco da Gama
Que o escreva ali (apontando para o quarto im-
mediato. Saem o Catual e Fernão Martins).

SCENA X

Os DITOS MENOS FERNÃO MrTINS E O CaTUAL

Fr. Christovão Soares


Louvo a prudencia de Sua Senhoria n'esta intrin
cada pendencia.
m

Vasco da Gama
E como haver-me senão por esta forma, para não
indusir o Çamorim, que de boa fé creio illudido pe-4
los mouros, e por suas venaes authoridades por el-
les corrompidas?... Não me pêsa usar de pruden
cia, quando com ella se não prejudique o serviço de
El-Rei.
SCENA XI

Catual, Fernão Martins e os ditos

Fernão Martins (apresentando uma carta na -


forma das precedentes a Vasco da Gama)
Eis o salvo conducto . . . Está em regra.
Vasco da Gama {guardando-o)
Será enviado quando me dirigir ás vistas com o
Çamorim.
Veloso
O cavalleiro Leonardo, que regressa da sua com-
missão.
SCENA XII

Leonardo, os seis arcaruseiros, e os ditos

Leonardo (entregando, na forma da carta acima,


uns papeis a Vasco da Gama)
Recebi-os da propria mão do Çamorim.
Vasco da Gama (apresentando-os a MolemO'Caná)
A quem dirigidos?
Molemo-Caná (lendo o sobscripto)
Ao Catual Cojé-Cemerecei. (devolve os papeis a
Vasco da Gama) v
164

Vasco da Gama (o Leonardo, dando- lhe os papeis)


Entregue-os ao Catual, sr. Cavalleiro, e a mani
lha que serviu de salvo-conducto. (Leonardo entrega
os papeis ao Catual, e a manilha que tira do braço,
fazendo-lhe uma reverencia)
Veloso (para Leonardo, emquanto o Catual lê)
Que responderá o Çamorim?
Leonardo (para Veloso)
Está sabido, acceita as vistas com o capitão, pois
quando lhe entreguei o officio do Catual, vi-o tremer
como varas verdes, e tomar mais cores que um ca
maleão. (O Catual entrega a carta do Çamorim a
Fernão Martins, dizendo-lhe que a leia em voz alta)
Fernão Martins (para Vasco da Gama)
O Çamorim pede-me que faça leitura alta d'estes
papeis. O sr. Capitão permitte?
Vasco da Gama
E se myster, ordeno-o.
Fernão Martins (lendo)
Eu, o Çamorim, imperador da grande região do
Malabar, ordeno ao meu Catual Cojé Cemerecei, en
carregado de provêr nos requerimentos e ordenan
ças da gente portugueza, ora chegada a estes meus
reinos, que sem detença me appresente o capitão
Vasco da Gama, a fim de provêrmos, em concerto,
nos pedidos do regimento que El-Rei de Portugal
lhe entregou, e estabelecermos em commum quanto
melhor seja para o solemne tratado de paz, amisade
e commercio entre as duas nações do oriente e oc-
cidente. (O Catual acabada a leitura faz uma reve
rencia a Vasco da Gama, que Ih'a reíribve)
168
Vasco da Gama (a Molemo-Caná, dando-lhe a
carta que precedentemente recebera
do Catual)
Este salvo conducto á feitoria. Já não é myster
que se embarquem a occultas, como estava aprasa
do, nem a occultas era dever que fossem, porque os
portuguezes, ainda quando vencidos, passam por en
tre os seus inimigos vencedores, com a fronte er
guida radiando-lhe o esplendor da heroicidade . . .
(dirigindo-se aos portuguezes) Aos paços do Çamo-
rim. . . Vamos firmar o primeiro tratado que asse
gura na índia o nosso predominio, e engasta mais
um esplendido florão na excelsa coroa de Portugal.
(Saem todos em ordem, e ouve-se tocar fora de scena
a musica da armada portugueza.)

Fim do 1.° quadro do 4." acto


ACTO QUARTO

QLADRO II

Salla no palacio do Çamorim, é de columnatas, nos bas


tidores, e ao fundo, o qual será no quarto bastidor,
contando do proscenio; porque os tres restantes basti
dores é um jardim, sobre o qual abrem as columna
tas da salla, e tendo espaço para bailado. O tecto da
salla é corrido, devendo ser de grande riquesa de or
natos. As columnas fingem armadas de preciosas se
das. De um e outro lado ha um catei, para o Çamo
rim, e a esposa; e junto aos cateis coxins para a corte
se sentar. Junto ao catei da direita, ha uma tripode,
na qual está um prato de ouro com folhas de betei.

SCENA I

Ao levantar o panno estão alguns mires collocados como


sentinellas em cada columna. No jardim as bailadei
ras, dançam, e cantam:

Ai-ú-é. . . pé-ri-gri. . . tó-ta:


Lá-pi-si . . . tó-ló-li . . . ló-tó:
Ai-ú-é. . . pé-ri-gri. . . tó-tá:
Phi-lá-pé . . . ti-pi-ti . .. dó-fó.

O Çamorim, a esposa e a corte, passam no jar


dim, por entre as bailadeiras, e entram no salão. 0
Çamorim, conduz a esposa ao catel da esquerda, e
167
dle deita-se depois no catei da direita, ficando a seu
lado, de pé, o Bramane-môr, e um official da corte,
que durante toda a scena lhe offerece de quando em
quando o prato com as folhas de betei, que elle tira
e mastiga, deitando os residuos n'um vaso tambem
de ouro.
Ernquanto todos tomam os logares, repetem no,
jardim as bailadeiras o choro, e bailado. No fim
d'esse, ouve-se fora a musica da armada portugue
sa, e o cortejo de Vasco da Gama, acompanhado do
Catual, assoma ao jardim. È ahi recebido feias bai
ladeiras, que os condusem entre si, e trasendo ellas
festões de flores.
Ao entrarem na salla, o Bramane-môr vae receber es
pecialmente Vasco da Gama, que conduz primeira ao ca
tei da esposa do Camarim, que lhe estende a mão, e Vas
co apertando-a de encontro ao peito, Wa beija, ao que ella
se sorri. Écondusido depois ao catei do Çamorim, a quem
faz uma venia, e sewta-se no primeiro coxim, e no íwit
mediato Fr. Christovão Soares. A um aceno do Brama-
ne-mór, alguns offlciaes se sentam nos coxins; porém
Leonardo, Velloso, e Fernão Martins, devem ficar no pros
cenio formando um grupo: e outros grupos de portu
gueses ao fundo. As bailadeiras postam-se em fileira des
de o catei da Imperatriz até ao fundo da scena. A arca
da do fundo da salla está preenchida por naires e mili-
cia de Calecut. Molemo-Caná está junto ao Çamorim.

SCENA II

Çamorim, Vasco da Gama, Fr. Christovão Soares,


Leonardo, Veloso, Fernão Martins, Catual. e os
restantes.
168
Çamorim (falia baixa com Molemo-Caná)

Veloso (mo entanto para Leonardo)


Este Imperador c de mais grandesa que o Rei de
Melinde.
Leonardo
Deves concordar, porém, que todos são uma sucia
de mandriões . . . Está repoltreado que parece o vi
lão em casa do seu sogro.
Veloso
Cada um pode cslar á vontade em sua casa.
Molemo-Caná (repetindo a Vasco da Gama
o que lhe disse o Çamorim)
O Imperador significa ao mui nobre sr. Vasco da
Gama, capitão mór da armada de Sua Allesa o Rei
de Portugal, o muito prazer que recebe, em o vêr
nos seus estados.
Vasco da Gama
E muito mais guindada é para mim a honra que
tenho em chegar, finalmente, á presença do monar-
cha mais potentado na região das índias.
Veloso (á parte, emquanto Molemo-Caná
falla baixo com o Çamorim)
Troca de rebuçados para se adoçarem a bocca!
Leonardo (postando-se em ademan de galanleador
á esposa do Çamorim)
Vou assestar as bombardas para romper o fogo.
Molemp-CanA (para Vasco da Gama):
Mui grande contentamento diz, recebeu também,
de um Rei de tão longe terra, como é a do poente,
lhe enviar embaixada; que louva muito os portugue-
zes, por lhe parecer gente de boa rasão, consideran-

>
i
169
do mui proveitosa a sua vinda a estes reinos, por se
rem senhores de tanta mercadoria, como se diz.
Fernão Martins (á parte):
Aqui vae disfarce. ' ,
V\sco da Gama
Alta honraria nas expressões, desafinada, comtu-
do, na armonia com as obras! . . . (para Molemo-
Caná) peça desculpa ao sr. Çamorim dos desagui-
sados com o Catual.
Fernão Martins (emquanto Molemo-Caná
falla com o Camarim, e á parte
para Veloso):
Principiam as reconvenções! . . . que caminho le
vará a audiencia?. . . Tudo, porém, devemos fiar da
prudência do capitão.
Veloso
Nem era justo passasse por alto o estimular-se da
affronta que nos fizeram.
Leonardo [para Veloso):
Não vês como o sorriso lhe brinca nos labios (re-
ferindo-se á esposa do Çamorim) quando olha cá
para o meu lado?. . . Aquelle sorriso está mesmo di
zendo ginjas.
Molemo-Caná (para Vasco da Gama):
Immediatamente, porém, despachou no aggravo,
quando d'elle teve conhecimento. Culpados de tudo
foram os mouros que sobre a vinda dos portuguezes
tiveram consulta, e deram vozes de terror. . .
Vasco da Gama
Certo estou.
Molemo-Caná [continuando):
Diz mais. o Çamorim, permittindo o sr. capitão.
170
que, como prova de sua lealdade e boa vontade, ex
porá parte do que se passou.
Vasco da Cama (faz uma cortezia de assentimento.
Emquanto Molemo-Caná falla baixo com o Ça-
morim, diz para Fr. Christovão Soares):
Em verdade que vejo o Çamorim em feição de não
ser hostil. . . Se os mouros um dia me caem sob
mão, dar-lhes-hei de rosto, a tirar-lhes para sempre
a vontade de se metterem com os portuguezes.
Fr. Christovão Soares
Que novo embuste urdiriam (continua follando
baixo com Vasco da Gama).
Leonardo (para Veloso):
O barco vae nagoa.
Veloso (para Fernão Martins):
Não hade perder o sestro de galanteador.
Fernão Martins
O que o berço dá! . . .
Leonardo (para Veloso):
Morde-te de inveja. . . Se queres alguma conquis
ta laz-te desempenado como eu. . . Olha, mas á so
capa, cá para este garbo.
Molemo-Caná (para Vasco da Gama):
Refere Sua Alteza, que entre muitas rasões que
foram trazidas do grande damno que todos recebe
riam se os portuguezes entrassem na índia, foi o que
contou um cTelles, dizendo que o anno passado so
bre duas náos de Mecca que tardavam, em que lhes
vinha fazenda, fizera pergunta a algumas pessoas que
usam do officio de astrologia e de outras artes, que
d'ella dependem, e que em um vaso d'agoa lhe mos
trou as náos perdidas, e mais outras á vella que di
\1i
aia partirem de mui longe para vir á índia; que a
gente d'ellas seria total destruição dos mouros n es
tas partes; e verdade foi que as duas náos se perde
ram; e nestes termos se pode tomar suspeita do mais
em a vinda das vellas portuguezas.
(Riso na gente portuguezá): Contos de bruxas.
Vasco da Gama (a Molemo-Caná, para o
referir ao Çamorim):
Em respeito ao Soberano não tomo mesmo em
Calecut desaggravo das offensas. Vim despachado a
assentar pazes, e é uma resposta peremptoria e cla
ra ás cartas de El-Rei que hoje requeiro. (Enquan
to Molemo-Caná falla baixo com o Çamorim, uma
dama que tem fallado com a esposa do Çamorim,
vem ter com Leonardo, e diz-lhe, com muitos acio-
nados que vá follar com a Imperatriz, expressan
do -se assim): Phi-ti-phto.
Veloso (para Leonardo):
Desferra-te d'ella.
Leonardo (para Fernão Martins):
Veja se entende esta lingoa de trapos, e m'a põe
em pratos limpos.
Veloso
Queres a dama de fricassé? (Fernão Martins fal
ia de vagar com a dama).
Leonardo
Quero só uma lingoa que tenha sabor a alguma
cousa . . . esta é sem sal.
Fernão Martins (a Leonardo):
A Imperatriz quer que lhe vá fallar.
172
Leonardo (puxando por Fernão Martins):
Venha dahi. . . ajude-me a levar esta cruz ao
ealvario.
Fernão Martins (que tem foliado
baixo com a dama):
Não precisa lingoa. A Imperatriz é moura do Cai
ro, onde teve tractos com os portuguezes.
Leonardo
Diga-me isso. . . já está costumada.
Fernão Martins
Faz-se entender perfeitamente.
Leonardo
Então fique-se. . . Tambem n'estas cousas é me
lhor a gente entender-se só do que por terceiras pes
soas. (Dá caricatamente o braço á dama, e dirige-
separa o catei da Imperatriz, onde fica a conversar).
Veloso
Em verdade é o namorador mais feliz que conhe
ço. (Durante este jogo de scena, Molemo-Caná tem
faltado com o Çamorim, que lhe entrega uns pa
peis: Vasco da Gama com Fr. Christovão Soares;
Leonardo com a esposa do Çamorim; e assim os
mais grupos).
Molemo-Caná (appresentando a Vasco
da Gama os papeis que recebeu
do Çamorim):
Eis o despacho que o Çamorim dá á embaixada.
E uma carta para Sua Alteza El-Rei o Senhor Dom
Manoel, na qual diz como recebera outra sua, e ou
vira seu embaixador, e explica a partida dos portu
guezes, como que se alguma cousa agastados, causa
fora pelas antigas differenças entre christãos e mou
473

ros: que elle Çamorim tem muito contentamento da


amisade de El-Rei, e commercio das cousas do seu
reino, podendo ser sem aquelles escandalos que se
deram, porque os mouros elle Çamorim os ha por
naturaes do seu reino, por ser gente mui antiga n es*
te acto de commercio.
Vasco da Gama (a Molemo-Caná, e
recebendo os papeis):
Agradeça ao Çamorim e faça-lhe sentir que os
portuguezes não quebram nunca seus tractados de
paz quando encontram lealdade em quem os assen
ta com elles; mas que no desforço são terriveis quan
do sentem mingoa de fé no que lhes é devido. (Fal'
la baixo Molemo-Caná com o Çamorim, e Vasco
da Gama com Fr. Christovào Soares).
Leonardo (vindo da esposa do Çamorim
para o grupo):
Ora esta! . . . não estou convidado?
Fernão Martins e Veloso
Para que?
Leonardo
Para a dança que vae seguir -se aqui no Paço.
Veloso
Então brinca tudo!
Molemo-Caná (para Vasco da Gama):
Pede desculpa a Çamorim, mas diz pesar lhe um
segredo que deve revellar; e roga a Sua Senhoria
lhe descubra a verdade, que promette perdoar, por
ser cousa natural aos homens buscarem cautellas é
modo de sua abnegação para fazerem seu proveito.
Vasco da Gama (levantando- se):
Que será?. . . (para Molemo-Caná): Revelle seu
174
segredo. Se for cousa que tocar a portuguezes, sa
berei agradecer-lhe . . . Mas perdoar? . . . (com indi
gnação): E quem o ousado que acena com um per
dão a Vasco da Gama? (acerca-se do Çamorim e de
Molemo-Caná, como tendo pressa em recolher-lhe
breve as palavras).
Molemò-Caná (d'esta vez traduzindo litteralmente,
as palavras do Çamorim, que move os beiços, e
faz accionados, como que dictando):
Que se o sr. Vasco da Gama eos seus andam des
terrados por algum caso, lhes perdoará tudo: cá se
gundo tem sabido de alguns homens das partes de
franquia donde dizem ser vindos, não terem Rei, ou
se o ha na sua patria, seu officio mais é andar pelo
mar em armada em maneira de corsarios, que em ra-
são de commercio.
Vasco da Gama (apostrofando o Çamorim; e do que
diz, Molemo-Caná faz traducção ao Çamorim, pa
lavra por palavra):
Corsarios nos?! ... (a esta phrase, levanlam-se
os portuguezes que ainda estão sentados, e nota-se
em todos uma especie de fervor e agitação). Corsa
rios nos! os portuguezes?! . . . Verdadeiramente não
ponho culpa ao Çamorim, e ao povo de Calecut, cui
dar de nós muitas cousas, porque grã-novidade deve
ser para elles verem n'estas partes nova gente em
religião e costumes, e demais vindos por caminhos
nunca d'antes navegados, com embaixada de um po
deroso Rei, que não pretende mais interesse, que di
latar a Fé Christã, e a amisade e communicação do
Çamorim, para dar nova sahida ás especiarias d'este
reino de Calecut. . . Homens, armas, cavallos, ou
175
ro, prata, seda, e outras cousas á humana vida ne
cessarias, em Portugal as ha, sem necessidade de as
vir buscar a reinos alheios, nem tão remotos como
são os da índia. Sabendo pois o Çamorim o que El-
Rei meu Senhor quiz, de mil e seiscentas legoas de
costa, que Sua Alteza e seus antecessores mandaram
descobrir, não pode já haver-se por cousa nova, en
viar Sua Alteza mais ávante por esta mesma costa
té chegar a Sua Real Senhoria, cuja fama é mui ce^
lebrada na christandade . . . Se, portanto, o Impera
dor não mete mão do seu poder neste odio que os
mouros tem travado comnosco, não respondo pelo
grande incendio de guerra, de que isto pode ser cau
sa n'estas partes, porque a gente portugueza não dis
simula injurias. (O Çamorim levanta-se, e falla agi
tado com Molemo-Canâ).
Fr. Christovão Soares (a Vasco da Gama):
Por vós, capitão, e por nós ás nossas náos. (Re
cresce a agitação nos portuguezes. A Imperatriz le
vanta-se, e vem com algumas damas lançar-se mos
braços de Leonardo, dizendo):
Me salva, portuguez. . . vae desmaiar.
Leonardo
Quem me alivia d'este tropeço?! (empurra-a para
os braços das damas): Goráram as danças!
Molemo-Caná (para Vasco da Gama
ao qual se achega em companhia
do Çamorim):
Capitão, o Çamorim está convencido da lealdade
dos portuguezes, e firma o pacto de amisade que lhe
offerece El-Rei de Portugal . . . ( Vasco da Gama
176

aperta a mão ao Çamorim, e este abraça Vasco da


Gama).
Molemo-Caná (continuando):
E convida Sua Senhoria, e o respectivo sequito
para as festas que em honra d'este tractado deseja
dar no paço.
Vasco da Gama
Louvado Deus! que todos são vindos á boa ra-
são!. . . (para Molemo-Caná) Signifique ao Çamo
rim que hoje mesmo solto vellas, em serviço de El-
Rei e me desculpe, por tanto, de não assistir ás suas
festas . . . (voltando-se para os portuguezes): Se não
acceito folguedos em Calecut, e os privo de uma di
versão, em verdade aprasivel no decurso de tão lon
ga e fastidiosa navegação, é porque sei medir o he
roismo dos portuguezes que me acompanham. Entre
as folias que se nos offerecem aqui, e o castigo que
devemos inflingir a um corsario, por nome Timoja,
que infesta as costas de Angedivida, escolham os
homens de coração valoroso . . . Não ha que es
colher; fiquem folias, tangeres, e cantares para os
acanhados de animo, e coração efeminado: para os
portuguezes, onde o perigo se levanta, o pelouro
rebenta, a espada decépa, e a lança retalha, n'es-
se campo, que é o saráo da guerra, sabem ser os
primeiros a coroarem-se como esforçados ... Te
mos louros a colher em Angedivida; marchemos,
portanto á gloria dos heroes.

Fim do 2." quadro, do 4." acto.

",
ACTO QUINTO

Ilha Cytherea. A mesma decoração do prologo.

SCENA I

Leonardo, Pedro de Alemquer, Veloso, Lobo Mari


nho, Enguia, Vicente e alguns Besteiros.

Leonardo
Então que lhe parece, sr. Pedro de Alemquer?...
Temos acolá um palacio, por ali estão grutas, aqui
estatuas: bella vegetação, fontes, cascatas . . . porém
nada de viva alma!
Enguia
Aposta cá o méco, olhem que lh'o juro pelas obras
mortas da caravella S. Raphael, que estamos numa
ilha encangada!
% Pedro de Alemquer
A fé que sim . . . (para os besteiros): vão vêr se
descobrem por ahi alguem (saem os besteiros, com
Vicente).
SCENA II

os ditos menos os besteiros e vlcente

Veloso
A chalaça não está má! . . . Aposto que viemos
12
178

parar ao Paraiso terreal, onde ninguem mais habi


tou depois da fragilidade do pae Adão.
Lobo Marinho
E isso mesmo . . . estamos no porão da náo Pa
raiso terreal; e que o ainda nos vale é não termos
um par de ferros aos pés . . . ao menos andamos á
nossa vontade.
Pedro de Alemquer
O capitão Vasco da Gama mandou-me sondar o
porto para vêr se dá fundo ás nossas vellas, e fazer
mos agoada ... ao passo que vocês tinham de fal-
lar com a gente de terra. Eu cá por mim encontrei
a enseada excellente; mas vocês nem um cabrito que
lhes diga: mé-mé!. . . Fruetas temos aqui bastas pa
ra refrescos . . . mas a quem pertencerá tudo isto?
Enguia
Alembra-me que não nos ponhamos com meias
medidas . . . Trazemos as aljavras cheias de bagun-
xo, vamos fazendo mão baixa no que nos convier,
que isto é presa segura; e se podermos manducar sem
esbaguchar, melhor. . . Se alguem apparecer a pe
dir contas da rebolice, como não andamos a barla-
ventear, e, á fé de Deus, não queremos largar-lhe al
guma soulha, paga-se-lhes, e damos á vella.
Leonardo
Não haja aqui embuste como se deu com Timo-
ja, que não havendo nós noticia d'elle, e estando em
Angedivida, mui descançadinhos nos trabalhos de es
palmar os navios, elle nos deu de sobresalto com o
arteficio dos seus oito navios de rêmos, pegados uns
nos outros, todos cobertos de rama, que pareciam
mesmo uma grande balsa natural . . .
179

Enguia
Tambem aqui pode haver algum rombo que me
ta agoa, e as bombas não dêem força a esgotar. . .
oh se pode!
Pedro de Alemquer
* Emquanto ao Timoja, esse foi bem escovado. Pau
lo da Gama, e Nicolao Coelho salvaram os navios
enramados com a sua artilheria, e de maneira que os
barcos se derramaram, acolhendo-se a tripulação a
terra.
Enguia
E foi bom para o corsario vir á falla: . . . arreou
bandeira, entregou-se á discripção, e lá ficou nosso
amigo.
Pedro de Alemquer . '
Mas aqui, se esta ilha não fôr alguma ficção do
diabo, não temos a receiar arteficio de piratas.

SCENA III

Vicente, e os arcabuseiros, regressando,


e os precedentes.

Leonardo
Então! . . . que de novo?
Vicente
Corremos a ilha toda . . . E fertil; mas nem folgo
vivo.
' ' Lobo Marinho . i<-
Esta é mesmo de fazer doudejar a bussola!
' . Vicente : [,
Se o inimigo não está de emboscada, recolheu-
180
se á praça forte, que ainda não sabemos onde é.
Leonardo
Pois olhem lá, emquanto vocês parlam quebrando
a cabeça por advinhar quem é o domno, ou adom-
na d'esta prenda, como aquellas fructas me fazem
crescer agoa na bocca, vou apanhal-as(írepaaw<t
arvore).
Lobo Marinho
Tome tento que o temporal não lhe carregue com
a gata e a gavea.
Leonardo
A deus e á ventura deitar a nadar.
Enguia
Não se fie no velacho, que está sobre a pega, o
tempo cada vez vem a mais (Leonardo tem trepado
ao meio da arvore).
Vicente (para os besteiros):
Amigos! temos passaro bisnáo ... a caçada é cer
ta; toca a apontar.
Leonardo (em cima da arvore):
Olá rapazes! . . . tento com o alvo (o arvore tre
me. Leonardo fica suspenso pelos braços).
Leonardo
Ai que anda aqui manha do diabo . . . Guarda lá
de baixo.

(Uma voz sahindo do centro da arvore, canta):

Mortal, atrevido, ousado,


Que vens o fructo colher,
Mal o pomo triturares,
Hades louco perecer.
181

Leonakdo (deixando-se cahir da arvore):


O diabo está aqui . . . abre-nuncio!

(Nas cascatas, grutas, estatuas, balsas de


flores, etc, repete-se em choro):

Mortal, atrevido, ousado,


Que vens o fructo colher,
Mal o pomo triturares
Hades louco perecer.

Vicente
Eu ouvi!
Enguia
Foi dali!
Lobo Marinho
Foi dacolá!
Pedro de Alemquer
Daqui (cada um aponta para seu lado).
Leonardo
Estupidos! . . . para que esta pasmaceira? Procu
remos ... Se alguem fallou é porque cá está.
Todos
Farejemos (emquanto procuram cada um por seu
lado, cantam o seguinte quinteto):

Farejemos . . . farejemos,
Pois havemos encontrar. . .
Cá por nós nada tememos,
Ou vencer, ou espichar!

(Leonardo pára defronte da arvore a que trepou,


182
Pedro de Âlemquer defronte de uma balsa de flo
res, Lobo Marinho defronte de urna cascata, Vicen
te defronte de uma estatua e Enguia defronte de
uma gruta.
Quinteto

Foi aqui. . . aqui só foi


Qu'a a tal voz pois nos fallou:
Eu rebente como um boi,
Se não foi que ressoou.

(Dentro da arvore, da balsa de flores,


da cascata, da estatua e da gruta, em
choro, o seguinte quinteto):

Aqui foi, sim aqui foi,


Que tal voz lhe ressoou;
Aqui foi, sim aqui foi
Que essa voz pois lhes fallou.

Todos
Foi aqui. . .
Leonardo
Não digas, tal . . . aqui.
Pedro de Âlemquer
Aqui.
Lobo Marinho
Aqui.
Vicente
Aqui.
Enguia
Aqui.
183

SGENA IV

(Nenhum se move do logar onde affirma que ou


viu a voz. Repentinamente saem da arvore, balsa
etc., nymphas, e os cinco caem de joelhos, assim co
mo os soldados, cantando o seguinte choro):

Celeste apparição,
Encanto divinal,
Imploro o meu perdão
Que sou fraco mortal.

SCENA V

Glyceris (sahindo do templo) e os ditos

Glyceris

Ergam-se ... Sei o motivo que os conduziu aqui.


A armada será provida de tudo de quanto careça.
Regressem, pois ás náos; dêem a Vasco da Gama re
lação do que viram, certefiquem-lhe que esta ilha é
de gente amiga, e somente habitada pelas amasonas,
tão celebradas na antiguidade. Da minha parte ac-
crescentem que o convido a vir, com a guarnição de
suas velas, tomar nella algumas horas de repouso
neste seu regresso para Portugal. E muito por es
pecial recommendado hei tambem ao capitão da ar
mada, que deixe igualmente folgarem aqui um pou
co as damas, que conduz a bordo (com um gesto
imperativo): Á armada.
184

Leonardo
Falla bem (comprimentando-a).
Vicente
Cá vamos (idem).
Lobo Marinho
Daqui a pouco lhe estaremos na alheta (idem).
Todos os restantes (a uma voz):
Até já (idem).
Glyceris
Remem á força, e prestes se façam de bordo (saem
Leonardo. Vicente, Lobo Marinho, Enguia, Pedro
de Alemquer e os soldados).

SCENA VI

As NVMPHAS

Glyceris (ás nymphas):


A armada portugueza, que foi descobrir a índia,
regressa a Portugal, fazendo escalla por esta ilha.
Os deuses a protegeram; e deve encontrar aqui o so
nho da futura gloria que n'este feito conquistaram...
Compete ás nymphas dulcificar-lhes a agrura da via
jem.
Ephyra
Ficam por nossa conta.
NlSE
Eu prometlo fazer-lhes boa acolheita.
Clymene
De mim não hão de ir descontentes.
Chlorys
Serei digna de Venus.
185
As restastes nymphas (confusamente)
Todas nós, todas nós, todas nós.
Glyceris
Está bom . . . está bom . . . que algazarra! . . . Bem
dizem os mortaes que as mulheres em fallando fazem
mais bulha que n'uma capoeira de galinhas . . . Mui-
bem. . . apraz-me esse enthusiasmo. Os portugue-
zes merecem a admiração do universo. . . Venus é
chegada.
SCENA VII

Harmonia. Venus, vem, como no prologo, acompa


nhada de Cupido, num carro puxado por pombas
chegando ao melo da scena desembarca, e Cupido,
desapparecendo o carro. Emquanto dura o seguin
te choro, falla de vagar com Glyceris.
Choro das nymphas

Bella Venus, a deusa formosa.


Eis do Olympo á terra baixou;
Aqui vem por Lysia famosa,
A que extremo fiel consagrou.

Venus segue acompanhada pelas nymphas, e Cupi


do até ao templo, onde unicamente se encerra com o
filho e uma nympha, voltando as outras para o pros
cenio, repetindo o choro.
Bella Venus, a deusa formosa,
Eis do Olympo á terra baixou;
Aqui vem por Lysia famosa,
A que extremo fiel consagrou.
186

Gliceris (para as nymphas. Ouve-se a musica


da armada portuguesa)
São desembarcados os portugueses.
As NYMPHAS
Vamos buscal-os . . . vamos buscal-os . . .
Glyceris (com impaciencia)
Nymphas, em ordem.
Chlorys
Qual ordem, nem meia ordem . . . quem primeiro
chega primeiro enche. (Saem de scena.)

SCENA VIII

Gliceris

Parece que nunca viram homens!!! . . . Têem ra


zão; estes são excepcionaes —são heroes. . . A mão
dos deuses marcou com o cunho da heroicidade
aquelle bem fadado reino de Portugal, que tem sa
bido mostrar ao mundo, que se a natureza lhe ta
lhou na Europa um delimitado espaço, esse o tomou
por cabeceira, que o resto dos membros de seu corpo
gigante se recostam estendidos por milhares de le-
goas do mundo conhecido, repousando á sombra de
suas briosas gloria.

SCENA IX

Vasco da Gama dando o braço a Maria, que vem


vestida de melindana, officiaes, soldados e nauti
cos da armada, cada um acompanhado de uma
nympha, varios escravos, e escravas mouras e in
187

dianas. Entram em sccna ao som de um hymno


que será o hymno da descoberta da índia, de
sempenhado pela musica da armada, e todos em
choro..
Hymno

Novos trilhos—novos mares


Lusitanos descobriram;
E na fronte novos louros
Por tal feito heroes cingiram.

A's artes, commercio, industria


Do oriente o sceptro deram;
E lá no berço da aurora
Eternal nome inscreveram,

Chôro

A sua gloria
Viva eternal;
Deus abençôe
Fiel Portugal.

Glyceris (avançando para Vasco da Gama)


Eis a immortalidade.
Vasco da Gama
Não aprendi a ser descortez com as damas; mas
permitta-me a nympha, ou deidade, uma pergunta:
Onde estamos?
Glyceris
Ao cabo de tão longa viajem, e tamanho commet-
limento que os portugueses vem de emprehender, só
188
na immorlalidade tem o seu condigno premio . . .
Esta ilha, uma das antigas hysperides, foi pelo favor
dos deuses agora reapparecida no atlantico, para os
desanojar de tão aturada navegação . . . Permitta o
capitão Vasco da Gama, que a gente da armada por
tuguesa se dirija com as nymphas á refeição que
nesta ilha têem preparada.
Vasco da Gama
Ordene-o, deidade, que tudo se cumprirá
Glyceris (para as nymphas)
Como a deusa determinou. (As nymphas saem de
scena, tomando cada uma seu parceiro na gente da
armada. Os músicos tambem saem de scena, acom
panhados de nymphas.)

SCENA X
Vasco da Gama, Glvceris, Maria k Leonardo

Glyceris (para Vasco da Gama)


Leonardo e Maria teem que desafogar no peito de
um as passadas magoas do outro. . . ha tanto tempo
que vivem separados! . . . Venha, capitão, e aquel-
les que leva ao reino, como mostras vivas do exito
de sua viagem—venha ao templo onde a deusa o
aguarda, para lhes desvendar o futuro. — Maria e
Leonardo ficam aqui bem a sós—nem a sós estão os
amantes quando se encontra um ao pé do outro . . .
A esta hora, a gente que ficou em as náos, está
igualmente por meus cuidados provida de refrescos...
Partamos. (Sobe com Vasco da Gama, e os escra
vos a encerrarem-se no templo.)
189

SGENA XI
Leonardo e Maria
Leonardo
Até que finalmente, Maria!
Maria
E como anciava este momento! . . . Vasco da Ga
ma cumpriu sua palavra de fidalgo e cavalleiro, indo
a Melinde, e desde então tenho sido a bordo da ca-
ravella de Paulo da Gama, a quem me confiou, em
companhia daquellas mulheres indias que leva a
Portugal, tractada com todas as attenções. Promet-
teu-me que apenas aportados a Lisboa, serás ap-
presentado a El-Rei, como seu mais estremado ca
valleiro, e que as nossas nupcias breves seguirão,
sendo elle, e El-Rei os padrinhos do nosso consorcio.
Leonardo
Tudo, Maria, tem um termo:—a desdita para que
tambem um dia os desgraçados folguem; e a ventura
para ninguem se fiar n'ella.
Maria
Estou tão feliz!
Leonardo
E eu não menos ditoso.

Dueto

Exulta, coração, exulta;


Eis o fim dos teus tormentos:
Exulta que o amor premeia
Da constância os sentimentos.
190

Oh! rainha vida


EspYança, amor;
Do meu affecto
Doce penhor!

Lá no futuro
Terno porvir,
Feliz auguro
Vejo surgir.

Exulta, coração, exulta;


Eis o fim dos teus tormentos:
Exulta que o amor premeia
Da constancia os sentimentos.

(Durante qae as nymphas estão com os portu


gueses fôra de scena, e no decurso d'estas duas sce-
nas acima, deve ouvir-se a musica da armada por
tuguesa, tocando como ao longe em recreação dos
folguedos das nymphas com os portugueses.)

SCENA XII

As nymphas voltam com os seus parceiros, cantando


o seguinte em choro. Adverte-se que na frente vem
aquellas com a gente de guerra: e depois as outras
com a gente da tripulação:

Choro da gente de guerra

Viva o soldado
Leal portuguez
191
Heroe estremado
Até num revez

Choro da marinhagem

E viva da armada
O nauta leal,
Gloria provada
De Portugal.

Choro geral

Viva esse povo,


Sem outro a par
Que um trilho novo
Abriu p'lo mar.

SCENA XIII

Vasco da Gama, Glyceris, escravos e os ditos

Glyceris (o Vasco da Gama)


A deusa predisse-lhe o futuro, e desvendou os ar
cados de Portugal. Predisse a realidade, embora o
capitão tome o auguro como um sonho de gloria.
Vasco da Gama
Absorto estou?!! Diga-me quem é?
Glyceris
O dispenseiro Gonzaga que desàppareceu em Me-
linde, para ser substituido pelo interprete Molemo-
Caná . . . (para Maria e Leonardo) Recordam-se de
que um dia, abordo da caravella S. Gabriel, lhes disse
192
que um dia saberiam quem eu era? Agora o declaro...
(para Vasco da Gama continuando) Por outra, sou a
prudencia, que sempre deve sêr a guia dos heroes...
Agora acolham-se os portuguezes ás suas naos por
que esta ilha tem de desapparecer. Antes disso de
terminam os fados que se represente em quadro vi
sivel a forma porque a architectura, e o cinzel nao
de aos seculos futuros^ommemorar este feito da des
coberta das índias. (As nymphas tem desaparecido
quando Glyceris vem do templo com Vasco da Gama;
e portanto tem ficado unicamente emscena Glyceris e
os portuguezes). Olhae. . . (no logar do templo appa-
rece o frontespicio do convento dos Jeronimos).

SCENA XIV
Entram oito nymphas, trazendo festões, e formam um
pequeno bailado, terminando o qual, postas em li
nha se lê a palavra Portugal, formada pelos fes
toes de flores.)
Glyceris
A piedade de Dom Manoel, e as riquesas que as
frotas, que vão seguir na viajem da índia, hão de ac-
cumular na mãe patria, erguerão esse monumento
na mesma praia do Rostello, donde a armada par
tiu, e onde será recebida entre os enthusiasticos vi
vas de um povo, que vae cingir o diadema do pre
dominio do oriente. Agora o monumento que Portu
gal ha de um dia erguer ao cantor dos Lusíadas, pa
gando a divida dos seculos ao epico seu rival; (sw&s-
titue-se a vista do convento dos Jeronimos, pelo mo
numento a Camões, e entram emscena mais cinco nym
193
phas, trazendo festões de flores que formam a palavra
ÍNDIA, depois de terminado um pequeno bailado,
com as precedentes bailarinas, que ficam formadas em
duas linhas, a primeira, com um joelho em terra, di
zendo ÍNDIA: a segunda, de pé, e portanto mais ele
vada, dizendo, PORTUGAL. Ouve-se um torvão.)
Glyceris
As náos, senhores, que a ilha vac submergir-se...
Ide descançar das trabalhosas fadigas do mar; e na
patria, abençoados pelo monarcha, que a historia de
nominará o Afortunado; victoriados pelos concida
dãos que em cada um de vós outros ha de venerar
um heroe—adorados pela familia estremosa que se
ufanará de contar entre si um dos descobridores da
índia—todos encontrarão seu quinhão de gloria na
fama e prosperidade da Patria.
Vasco da Gama
Deus abençoado, que nos restitue á patria cober
tos de gloria,—á Patria, que seus filhos tanto de
peito estremecem; que pela sua prosperidade e li
berdade sacrificam voluntaria e heroicamente a viífâ
(desembainhando e floreando a espada) A Portugal!!!
(os portuguezes desembainham as espadas) Viva Por
tugal.
Todos (repetindo este brado)
Viva Portugal! (Saem de acena, tocando a musica
da armada o hymno da índia, e cantando em choro:

Novos trilhos, novos mares


Lusitanos descobriram;
E na fronte novos louros
Por tal feito heroes cingiram
13
194
(Ouve-se um trovdo subterraneo).
Glyceris (ás nymphas):
Pelos conductos maravilhosos porque acorrestes
aqui, diriji-vos ás espheras e astros que são vossas
habitações (as nymphas, com prestesa, recolhem-se
às estatuas, balsas, arvores etc, donde sahiram).

SCENÂ XIV

Glyceris

(Tem baixado uma nuvem).


Glyceris (subindo á nuvem):
Esta ilha vae desapparecer para sempre da super
fície do globo; porque onde os portuguezes um dia
assentaram pé, nenhuma outra nação é digna de pi
sar esse territorio. (Eleva-se em a nuvem, as ondas
acommettem pelos bastidores a ilha que invadem
derrocando tudo, os bastidores transformam-se cm
nuvens, e o panno do fundo representa as armas
portuguezas, entre nuvens, numa gloria de anjos;.

Fim do 5.° acto. e do drama.


NOTA

Quando Vasco da Gama recebe uma carta, da impe


ratriz, que dissemos, escripta em folhas da palmeira ólla
.chamámos a attenção para esta nota. Na índia não es-
"creviam em papel, é sim em tiras de folhas da dita pal-
i eira, sendo as palavras gravadas levemente com um
r «stylete. Reuniam-se depois aquellas tiras e entalavam-se
"em duas pranchas estreitas de madeira, que se aperta
vam com um fitilho.
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7/4 13 P 6155
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