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DO DESERTO
Eàltóes Loyola
ISBN: 85-15-01278-2
2a edição: agosto de 2002
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 1996
INTRODUÇÃO................................................................................................. LZ
UM MUNDO
2 — A GRANDE TRANSIÇÃO............................................................ 33
Os textos sobre a vida no deserto. A ocupação grega e romana no
Egito. Dois mundos estranhos um para o outro. O exotismo egípcio em
3 — A ESTRELA DO DESERTO........................................................... 51
MUNDO
O paraíso copta.
EPÍLOGO............................................................................................................ 249
^exa c i o
FONTES F. TEXTOS.......................................................................................... 251
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presença absurda. E ele só pode viver ali tornando-se também peso morto do
tempo, hibernando-o num perpétuo inverno. Eis por que durante tantos séculos
esse lugar extremo só abrigou fantasmas hirsutos, sombras andrajosas, engodos de
seres humanos que as testemunhas de então designaram os atletas do exílio e que
eu chamei os homens ébrios de Deus.
Hoje, não sei muito bem o que pensar deste livro. Ele foi o testemunho de uma
época e de uma vida que me levaram mais freqüentemente ao Oriente que ao
Ocidente. O que então me fascinava continua a me interessar, mas me diz menos
respeito. Nada tenho de asceta e nunca busquei aprofundar melhor aquilo que,
durante anos, me conduziu à procura daqueles homens. Além do mais, sinto-me
totalmente ateu e escrevi a história desses homens sem jamais compar-
tilhar sua opção e sua fé. Empreendimento sempre incerto, já que ele recusa a
identificação sem que o recuo implicado seja por isso revelador. Isto explica
por que, ao lado de um grande número de reações entusiastas e muito
elogiosas, este livro tenha sido criticado, vilipendiado em alguns meios
católicos. De minha parte, não me preocupava muito com isso, pois na
história não existe domínio reservado. Se os crentes fossem os únicos
habilitados a falar de sua fé, se só os monges tivessem de escrever sobre o
monaquismo, a história do pensamento não passaria de uma eterna
tautologia. Como não tenho, aliás, nenhuma pretensão de historiador,
encontrei-me mais uma vez rejeitado diante de mim mesmo. Porque este
livro não é um tratado de história, uma hinologia ou uma critica
pretensamente objetiva do fenômeno que ele estuda. Os homens ébnos de
Deus é o diário de um encontro inteiramente pessoal com uma época e com
homens que até hoje não sei se foram loucos ou se foram santos. E não sei
igualmente se eles foram — e ainda são — para mim os indígenas de um
outro mundo ou os irmãos desconhecidos de um continente que é o meu.
Este estudo é também um livro-testemunha, quero dizer, o relato de um
testemunho pessoal, termos contraditórios para um ocidental, mas que sempre
se confundiram estreitamente em todo o domínio oriental. Testemunha, em
grego, se diz martyr, que também significa mártir.
Como, enfim, meu objetivo em todos os meus livros nunca foi redigir
teses de pretensão universitária nem marcar data para a posteridade, mas
simplesmente, organicamente eu diria, comunicar-me com meus
contemporâneos, relatar o que vivi e pensei, para que outros o vivam e o
pensem por si mesmos, reivindico particularmente as insuficiências — até
mesmo as ignorâncias — deste livro: como as tentativas e os erros das
amebas e dos paramécios, elas são a marca dos titubeios sem os quais
nenhuma verdade faz sentido. É assim que surge finalmente este livro, após
tantos anos: um ensaio para interrogar, pressentir ou delinear os limites do
homem. Pois foi isso, sem dúvida alguma, que me atraiu outrora para a
experiência desses santos do deserto: esse desafio lançado ao nosso destino
de hominídeo, essa recusa visceral da nossa casca antiga e essa busca última
de um homem diferente.
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*—t- solar-se do mundo, romper com a sociedade do seu V^/ tempo, pensar, como
fizeram os eremitas, que só fora dela se encontra a resposta ao problema do destino
humano não tem por si só nada de insólito. É uma atitude das mais naturais na
medida em que toda sociedade altamente civilizada engendra inevitavelmente uma
franja anti-social onde figuram como irmãos o eremita e o fora-da-lei. Que ninguém
se espante ao ver aqui estas duas atitudes marginais colocadas no mesmo plano,
pois de fato nada as distingue radicalmente em seu comportamento com relação à
comunidade: refratário dos homens ou refratário de Deus, cada um deles é antes de
tudo um rebelde frente a uma ordem julgada intolerável ou caduca.
Romper com a sociedade de seu tempo é, pois, uma atitude natural, que
não é de forma alguma privilégio da nossa geração, a tal ponto que a história
de cada civilização poderia comportar também a
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história das "anti-sociedades" que ela engendra. Se escolhi ilustrar esse fenômeno
limitando-me a uma época e a um lugar preciso, o Egito cristão do século IV, é
porque ele atingiu ali uma nitidez e uma amplitude excepcionais, raramente
igualadas na história, e porque teve até nossa época conseqüências duradouras, ao
suscitar os primeiros mosteiros conhecidos da história cristã.
Uma palavra basta para definir esse fenômeno: anacorese. O termo grego
anachôresis significa uma retirada, uma fuga para longe do mundo cotidiano. Trata-
sc antes de mais nada de uma opção anti-social que só bem mais tarde ganhará um
significado religioso. Das centenas de camponeses, de escravos, de ladrões que, no
Introdução
E por isso que me parece útil, antes de acompanhar no Baixo e Alto Egito a
vida e a aventura excepcionais desses homens, investigar as raízes desse estranho
fenômeno. Não foi sem razões imperiosas, sem profundas motivações, que milhares
de cristãos romperam com sua época, seus bens, sua vida familiar, com o que todos
os textos chamam "o século" ou "o mundo". Parece que assistimos ali a um
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"O mosteiro é um céu terrestre e, assim, nós todos devemos ser como
anjos", escreve João Clímaco, autor ascético do século VII. Foi então para se
tornarem anjos, seres no limite do humano, que Antão, Pacômio e todos os
que os imitaram um dia desertaram as cidades e a história para enfrentar a
provação do deserto?
Primeira Parte
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1. Para evitar acumular citações conhecidas, dou apenas a referência das passagens
essenciais: Mateus 24,29-31; Marcos 13,24-27; Lucas 21,25-28.
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Quem não vê que o mundo caminha para seu declínio, que já não tem as
mesmas forças nem o mesmo vigor de antigamente? Não é preciso prová-lo
com a autoridade da Santa Escritura. O próprio mundo o diz e testemunha
que se aproxima de seu fim pela decadência de todas as coisas. Cai menos
chuva no inverno para alimentar as sementes. O sol não é mais tão quente
no verão para alimentar os frutos. A primavera não é mais tão agradável
nem o outono tão fecundo. As pedreiras, como se estivessem cansadas,
fornecem menos pedras, e as minas de ouro e de prata já estão esgotadas. As
terras ficam incultas, os mares sem pilotos, os exércitos sem soldados. Há
menos inocência no tribunal, menos justiça entre os juizes, menos união
entre os amigos, menos indústria nas artes, menos disciplina nos
costumes... Vemos crianças que já são totalmente brancas. Seus cabelos
1. Ressaltemos esta frase de aparência sibilina: "crianças que já são totalmente
brancas". Devia tratar-se com toda certeza de bebês germanos que são Cipriano deve ter
visto pela primeira vez nesta época, na África, onde vivia. Seus cabelos, inteiramente
brancos ao nascer, só se tornam louros com o tempo. Observemos também que Platão, na
Política, já tinha imaginado esse tema dos homens que nascem anciãos e rejuvenescem
pouco a pouco, para retornar ao ventre materno da terra. Essa inversão do tempo, Platão
explicava-a pela retirada dos deuses de sua criação. O universo, abandonado a si mesmo,
vê suas formas e seus seres regredirem até que cada coisa se dissipe. Ora, idéias análogas
nasciam então nos espíritos cristãos: Deus havia se retirado do mundo, deixando o
universo entregue a si mesmo, isto é, à regressão, à morte.
29
caem antes de nascerem e começam pela velhice em vez de terminar por ela.
Assim, todas as coisas, desde agora, se precipitam rumo à morte, sofrem do
esgotamento geral deste mundo1.
Asclépio
A
branca, serena abstração dos desertos. A Palestina, a Síria, a Líbia, o Egito podiam
oferecê-la aos que renunciavam ao mundo. Por que foi o Egito que venceu e se
tornou a terra de predileção da ascese e da anacorese?
33
Material com direitos autorais
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* Como o autor falará com insistência dos captas, parece-nos interessante traçar
aqui um rápido perfil deste povo. Os coptas são os cristãos do Egito e da Etiópia. São
atualmente os descendentes mais autênticos da população do Egito antigo, e sua
continuidade racial se deve à sua religião, que não admite casamentos mistos. Falam uma
língua da família camito-semltica que é a continuação do egípcio falado na época dos
faraós (os egípcios muçulmanos falam árabe). Esta língua se escreve num alfabeto
próprio, baseado no grego. O hierarca supremo da Igreja copta é o Patriarca, que vive no
Cairo. Celebram a liturgia de são Basílio. Do ponto de vista doutrinai, a Igreja copta está
desligada da igreja católica romana e das Igrejas ortodoxas por ter permanecido na
heresia do monofisismo. O termo copta provém de gyptus, alteração do nome grego do
Egito, Aegypíus. (N. do T.)
A presença romana no Egito foi menos sensível ainda que a dos gregos.
Roma tratou o Egito como uma terra à parte, um país cujos costumes, modos
de vida, deuses e o lugar excêntrico que ocupava nos confins do mundo o
diferenciavam das outras províncias do Império. Se os gregos se
justapuseram aos egípcios sem realmente misturar-se a eles, os romanos só
fizeram ocupar o Egito. Senão, vejamos um mapa do Egito romano. Que
vemos aí? Cidades gregas: Alexandria, Náucratis no' Delta, Arsínoe no
Faium; depois, à medida que subimos o Nilo, Afroditópolis, Oxirrinco,
Hermópolis, Licópolis, Ptolomaida, Coptas, Tebas, Siena. Algumas dessas
cidades eram evidentemente de origem egípcia, mas elas usaram durante
muito tempo e com mais freqüência seu nome grego. Uma única cidade tem
um nome e uma origem devidos a Roma: Antinoé, fundada por Adriano após
a morte de seu favorito, Antínoo. É que, de fato, a penetração romana não foi
muito além do Médio Egito. Nada de limes, faixa-fronteira como em tantos
outros países do Império, nada de fortifica-ções, de vias, de implantações
duradouras. Antes uma presença esporádica, nos limites do deserto hostil,
que obrigou os romanos a se servirem de dromedários; presença limitada a
algumas guarniçôes de militares, algumas dezenas de funcionários e cidadãos
confinados unicamente no Delta e nos burgos importantes. Roma ocupa
militarmente o Egito, mas não constrói nada ali, não funda nada, não
compreende nada. Contenta-se em reprimir as revoltas que estouram a todo
37
Padres do Deserto
momento e, como diz com acerto um historiador do Egito romano, "em fazer
o país suar trigo e prata para alimentar os romanos".
Dirão que estamos fazendo o jogo do mistério e do exotismo, mas isso seria
ignorar o papel singular que o Egito desempenhou para a cultura romana. Pois este
país — tão desconhecido e tão pouco apreciado pelos que o ocuparam — suscitou
uma verdadeira febre entre os romanos da Itália. Visto de Roma ou de Pompéia, o
Egito não é mais uma terra de trigo povoada de indígenas embrutecidos, mas o país
da sabedoria e do conhecimento, o reino das tradições ocultas e dos poderes
mágicos. Ele cristaliza, em torno de seus enigmas, seus símbolos indecifráveis, seus
monumentos misteriosos, toda uma carência de exotismo e de maravilhoso de que
as culturas antigas se ressentiam tanto quanto as nossas. Pode-se ver uma prova
disso na moda que fizeram os cultos egípcios (os de ísis, principalmente) a partir do
século I antes de nossa era. Toda uma aristocracia culta se entusiasma com ísis, seus
mistérios, seus sacerdotes, com esses cultos estranhos e até então desconhecidos, a
ponto de obrigar o imperador Tibério a suprimi-los, a mandar crucificar alguns
sacerdotes como exemplo e a deportar alguns milhares de fiéis de ísis para a
Sardenha. Tudo isso, junto com os relatos mais ou menos fantásticos trazidos pelos
viajantes (pois a moda então é a dos relatos de viagem fabulosos, onde tudo é
pitoresco e fácil, exotismo de bazar, prodígios e milagres, relatos que Luciano de
Samosata parodiará na sua História verdadeira1), acaba formando no espírito do
profano uma imagem convencional do Egito que se encontra nessas pinturas de
paisagens nilóticas que "causam furor" na mesma época nas casas de Roma e de
Pompéia. Templos e cabanas de juncos à beira do Nilo, barcos e barqueiros, íbis e
crocodilos se reproduzem ali ao infinito, tal como naqueles papéis pintados de
nossa infância onde, numa paisagem oriental estereotipada — deserto, camelos,
mesquita —, mulheres com véus apanhavam água à sombra das palmeiras. Os
romanos, nos primeiros séculos de nossa era, terão o seu Egito, tal como o século
XVI teve as suas índias ocidentais e o século XIX a sua Polinésia: terras paradisíacas
onde se cristalizam essa amargura inconsciente e essa nostalgia da inocência que
afetam as civilizações nas épocas de êxito material e de conquista.
2
Material com direitos autorais
A grande transição
entre vós, ou em qualquer outro lugar, tudo o que se produziu de belo, de
grande, de notável sobre a terra, tudo isso está escrito, aqui, de longa data em
nossos templos e salvo do esquecimento. Nossas leis, basta olhar para elas, e
nossa maneira de viver e nossos conhecimentos: verás que elas têm mais de
oito mil anos de idade". Outra prova será encontrada num relato de Heródoto
(anterior, portanto, ao de Platão) que também estabelece em oito mil anos a
antigüidade do Egito. Quando Heródoto visitou o templo de Amon-Rá, em
Carnac, c perguntou aos sacerdotes desde quando os deuses reinavam sobre
o Egito, eles o levaram ao interior do santuário e lhe enumeraram —
nomeando-as uma a uma — trezentas e quarenta e uma estátuas de madeira:
"pois cada sumo sacerdote, em vida, manda erguer sua estátua e, por uma
enumeração metódica, os sacerdotes me mostraram que eles se sucediam
assim, como os reis, de pai para filho, desde as origens". Trezentas e quarenta
e uma gerações: isso dá quase oito mil anos, o número citado por Platão.
Mesmo dividindo por dois os números dados por Heródoto (para ficarmos de
acordo com os dados da arqueologia), eles permanecem bastante eloqüentes.
Diante da idade que supunham para seus deuses, diante da perenidade de
suas crenças e de sua civilização, os sacerdotes egípcios deviam sentir uma
espécie de vertigem — essa vertigem que arrebatava o visitante estrangeiro à
visão das trezentas e quarenta e uma estátuas alinhadas na penumbra do
templo, sendo cada uma delas um elo do tempo. O Egito viveu durante
quatro mil anos nessa vertigem da eternidade, nessa certeza de que o tempo
era imóvel, de que os deuses egípcios reinavam desde sempre sobre a terra.
39
Uma questão que toca tão de perto a alma humana não pode ser resolvida com
base nos vestígios externos que os deuses e seus cultos sempre deixaram na terra,
sobretudo no Egito. De tal sorte que o único critério que permite dizer que um deus
Material com direitos autorais
1. Este episódio foi descrito — com algumas variantes — por Sozômeno, História
eclesiástica (VII, 15), e Sócrates, História eclesiástica (XI.29).
acaba de morrer é ainda aquele fornecido por seus próprios fiéis, quando tomam
consciência de que ele morreu neles, de que deixaram de crer nele. Ora, tal fenômeno
se produziu no Egito, em Alexandria, na última década do século IV, no dia em que
o patriarca Teófilo foi autorizado a instalar uma igreja num templo de Dioniso.
Descobre ali estatuetas obscenas (ou melhor, que ele acha obscenas), as destrói e
lança seus pedaços à multidão dos cristãos. Os pagãos, furiosos, se revoltam, atacam
os cristãos e, tomados de pânico, correm a se trancar no Serapeu — o grande templo
de Serápis. Este templo era de uma magnificência excepcional, que já impressionara,
dois séculos antes, um cristão como Clemente de Alexandria. Mas nem a hora nem o
século se prestavam mais à admiração dos templos pagãos. Os cristãos, excitados por
Teófilo, sobem os cem degraus que levam à entrada do santuário, penetram no seu
interior e se detêm de chofre, tomados de assombro, de pavor, medo, diante da
imensa estátua do deus. A tal ponto que ninguém ousa atacá-la. Finalmente, a uma
ordem de Teófilo, um soldado se apodera de um machado, trepa a uma escada e
começa a golpear a cabeça do deus. O ídolo balança, desaba, a multidão lança um
grito de medo enquanto... uma enxurrada de ratos sai do buraco aberto na estátua!
Então, passado todo o medo, os cristãos arremetem contra o ídolo. Os próprios
pagãos estão consternados: não havia um oráculo muito antigo anunciando que o
mundo desmoronaria no dia em que Serápis fosse profanado? Serápis qucbrou-se e o
mundo não desmoronou. Os cristãos então arrastam os escombros à vontade por
toda a cidade e os queimam1. E cada um deve ter lido, então, na visão daquele
colosso arruinado de onde escapavam ratos, daquele deus esquartejado que era
arrastado pelas ruas, a imagem mesma do paganismo dilacerado, moribundo. O
cristianismo tinha conseguido no Egito — pela violência — aquilo que nem os
persas, nem os gregos, nem os romanos tinham podido fazer: suprimir as divindades
seculares do país e dar a ele um novo deus.
0 * tír
41
ramente dizem respeito ao meio que nos interessa aqui, o do camponês copta.
O que é certo é que tornar-se cristão, no século III, para um camponês do
Egito não significava apenas adotar uma religião nova; implicava também
renunciar mais ou menos à religião antiga, a imagens, a símbolos, a ritos
ancestrais. Entre este mais e este menos se situa todo o verdadeiro alcance do
cristianismo naquela época, e a necessidade que ele teve de se acomodar com
este passado prodigioso, de não romper com algumas de suas exigências, em
suma, de dar ao copta a impressão de que ele podia tornar-se cristão
permanecendo egípcio1.
Vale dizer que os termos cristianismo e oistão tinham para um
camponês copta um sentido bem diferente do que tem para nós. De um
extremo a outro do orbis romanus, cada um dos países convertidos teve, aliás,
com bastante rapidez a sua própria visão de Cristo, a ponto de a história dos
1. O monofisismo foi uma heresia que afirmava que o Pai e o Filho tinham
somente uma natureza — inteiramente divina — e, portanto, que a natureza humana de
Cristo não passava de uma aparência. Essa doutrina já havia sustentado certo número de
seitas dos séculos anteriores, bem como algumas seitas gnôsticas e também os
marcionitas e os docetistas. Na doutrina monofisita, Cristo só tem uma carne aparente e
pode mudar à vontade de forma e de aspecto. Para explicar a Crucifixão (já que seria
impossível crucificar um fantasma), os monofisitas admitiram que Cristo não foi
realmente crucificado, sendo substituído in extremis por Simão, o Cireneu. Essa heresia
— devida a um monge de Constantinopla chamado Êutico — se difundiu em todo o
Oriente Médio e ganhou o Egito, a Síria e a Armênia, onde subsistirá, apesar da
condenação do concilio de Calcedônia, em 4 5 1 .
2. 45
seis primeiros séculos da Igreja ter sido uma luta constante contra as heresias,
um esforço perpétuo para impor a todos uma visão idêntica de Cristo. O peso
do passado se exerceu profundamente sobre a sensibilidade religiosa do
Egito cristão, e e evidente que haverá sempre, na maneira como um
camponês copta era cristão, algo de estranho à nossa própria experiência. A
prova disso é que no dia em que ele puder, com toda liberdade, escolher o seu
cristianismo, escolherá um cristianismo todo equivocado, herético: o
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Segunda Parte
Material
1
Padres do Deserto
época. Nestas Vidas, os sábios, como mais tarde os santos, de fato comandam os
elementos, afastam os flagelos, domam as bestas selvagens, operam curas
milagrosas, exorcisam os posscssos. O que já permite situar em seu verdadeiro
contexto todos esses milagres, essas diabruras e esse maravilhoso que fervilham na
Vida de Aníão. Eles só têm sentido em função do objetivo visado pelo autor: escrita
para edificar, não para descrever, concebida como um retrato exaltador da vida no
deserto e não uma reportagem minuciosa das façanhas e proezas do santo, a Vida de
Antão não poderia abrir mão das convenções literárias indispensáveis a toda Vida
edificante: milagres surpreendentes, grandes discursos retóricos sobre a virtude e a
sabedoria, recurso ao maravilhoso e ao sobrenatural, assaltos dos demônios. Em
suma, é o "por quê" da Vida de Antão que explica o "como", não o inverso. Todo esse
arsenal de milagres e de tentações, de conversas com os anjos ou de poderes
exaltantes nada tem de cristão. Para o público da época, pagâo
ou cristão, nenhuma Vida de sábio ou de santo podia ter virtude edificante
se não tivesse primeiramente um poder de assombro, se não obedecesse às leis do
romance aretológico, tão rigorosas e imperativas quanto as que presidem hoje em
dia, por exemplo, o romance-folhetim.
Dito isto, uma vez bem admitida esta ganga fabuladora, esta intenção
edificante das Vidas dos santos, não se pode concluir, porém, que elas não
contenham nenhuma parte de história ou de verdade. Ninguém sonha em
negar a existência de Pitágoras ou dos sofistas gregos, ainda que sua vida,
escrita por Jâmblico e Eunápio, contenha mais de maravilhoso e de fantástico
que de real. Tudo leva a crer que Antão de falo existiu. É dito em sua Vida
que ele fez duas viagens a Alexandria, que tomou posição contra a heresia
ariana, e estes fatos puderam ser confirmados por outras fontes. Existiu
seguramente, no século IV, no deserto do Egito, um personagem chamado
Antão, copta iletrado mas dotado de grande sabedoria, que se consagrou a
uma ascese espetacular o bastante para impressionar seus contemporâneos e
incitar um bispo a escrever sua vida. Mas é certo que o personagem histórico
tem pouca relação com o da Vida de Antão. A parte de história que esta Vida
contém, temos de buscá-la contra o próprio texto, contra o autor às vezes, em
tudo o que lhe pôde escapar sobre os fatos, os lugares, as coisas que ele
descreve. É ali, nessa parte obscura, inconsciente da obra, que a história real
de Antão (a quem os sinaxános
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Material com direitos autorais
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Padres do Deserto
que fugiam dos lugares habitados para escapar das corvéias, dos impostos,
de seus amos ou da justiça. Mas sua temporada no deserto era apenas
passageira. No caso de Antão, esta partida tomava um sentido bem diferente,
pois o que o atrai não é a realidade concreta, e sim a realidade simbólica do
deserto.
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Material com direitos autorais
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Padres do Deserto
serpentes "com rostos de centelha, fogo na face e fogo no olho", o senhor do
cetro, o que está no país, o falcão macho e o falcão fêmea. De cada lado da
margem, assistindo à passagem do cortejo divino, aparece uma multidão de
criaturas: numa das margens, estão todos aqueles que "criam o Oceano e
fazem a marcha do Nilo"; são, na ordem, três deuses, quatro mulheres, quatro
* Qrictéropo: gênero de mamíferos tubultdentados, com aparência geral de um
porco, mas dotado de uma boca em forma de tubo, por onde se alimenta de cupins e
formigas; é chamado na África do Sul aardvark ("porco da terra"). (N. do T.)
Essa imaginação funerária não era somente visual, mas sonora. Nesta
ou naquela hora do Am-Duat, os textos descrevem os ruídos múltiplos que
acompanham a passagem da barca divina: gritos de alegria dos mortos
enquanto o Sol atravessa sua "hora", gemidos e
Ele forma então seus primeiros discípulos, que decidem renunciar ao mundo
e se agrupar em torno dele. Desta época — que podemos situar aproximadamente
em 305 — data a fundação da primeira comunidade cristã no Egito. Ainda não é
um mosteiro, mas, no máximo, uma laura, um agrupamento de anacoretas,
submetidos a uma ascese e a um modo de vida relativamente livres. Esta primeira
comunidade, Antão a estabelecerá às margens do Nilo, não longe da fortaleza de
Pispir, perto da atual aldeia de Deir-el-Maimum.
A reputação de Antão, nesta data, já é enorme no Egito. Ela atinge todas
as camadas da população e não mais apenas um punhado de devotos e
admiradores. Uma multidão de pessoas aflui ao "mosteiro" de Pispir, deita-se
ao longo da entrada, na esperança de ver o asceta aparecer para lhes falar,
curá-las ou exorcizá-las. Já corre o boato de que basta se aproximar do
"mosteiro" de Antão para voltar de tá imediatamente curado. Mas Antão não
suporta nem a multidão, nem os milagres, nem a glória e decide partir de
novo para mais longe no deserto, "num lugar onde não fosse conhecido de
ninguém".
^ 0 m
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Material com direitos autorais
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Padres do Deserto
assava seu pão duas vezes por ano e fazia-o secar ao sol. Ninguém podia
entrar onde ele morava, mas ficava-se do lado de fora e ouvia -se sua
palavra".
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Padres do Deserto
Sinai, ainda que estivéssemos a mais de vinte léguas. O mar fica a oriente deste
mosteiro. Ás pontas do Sinai ficam a leste do mar. Avistamos algumas montanhas
do lado do ocidente com um pouco de mata, mas muito distante de lá, e todo o
conjunto do que podíamos vislumbrar era inteiramente árido e causticado.
É ali que Paulo de Tebas viverá durante cem anos. Cem anos de uma
existência quase milagrosa, ainda que são jerônimo, no que lhe diz respeito, ache
tudo muito natural:
A palmeira de que falei lhe fornecia tudo o que era necessário à sua alimentação e
à sua vestimenta, o que não deve ser visto como impossível, já que Jesus Cristo e
seus anjos são testemunhas de que, nesta parte do deserto que pertence às terras
dos sarracenos e se junta à Síria, tenho visto solitários dos quais um, recluso há
trinta anos numa caverna, só vivia de pão de cevada e de água lodosa, e um outro,
trancado numa velha cisterna, vivia de cinco figos por dia.
Paulo de Tebas viverá decerto com menos que isso. Levará nesta gruta
uma existência angélica que o universo teria ignorado se, pouco antes de sua
morte, Deus não tivesse avisado Antão da existência de Paulo. Antão tinha já
noventa anos, mas decidiu imediatamente pôr-se a caminho, à procura dele.
A partir deste episódio, a Vida de Paulo de Tebas torna-se uma espécie de
sonho acordado em pleno deserto.
Para começar, onde vive Paulo de Tebas? Antão não sabe e parte às
cegas. Mas às cegas, quando alguém se chama Antão e vive no deserto, quer
dizer o olho de Deus. A Providência guarda o caminho do asceta e nele
coloca estranhas balizas:
Ao despontar o dia, santo Antão começou a caminhar sem saber aonde ia e o sol,
chegado o meio-dia, já tinha escaldado o ar de tal sorte que parecia todo inflamado
quando ele viu uma criatura que tinha em parte o corpo de um cavalo e era como
aquelas que os poetas chamam Hípocentauros. Tão logo o vislumbrou, Antão ar-
mou sua fronte com o sinal salutar da cruz e lhe gritou: "Olá! Em que lugar da
terra mora aqui o servo de Deus?" O monstro, então, murmurando não sei o que
de bárbaro e entrecortando suas palavras mais do que proferindo-as distintamente,
esforçou-se por fazer sair uma voz doce de seus lábios eriçados de pêlos e,
estendendo a mão direita, lhe mostrou o caminho tão desejado. Depois, dissipou-se
diante dos olhos daquele a quem tinha enchido de espanto. Quanto
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Padres do Deserto
Assim que foi dispensado, dois ou três anos mais tarde, ele regressou
ao sul e chegou um belo dia a Sheneset (em grego Khenobóskion),
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Padres do Deserto
de salvação, como uma sorte de ascese aníiartísüca na qual a recusa da beleza
teria o mesmo papel que a recusa do corpo na ascese física?
*m
Aliás, como regra geral, Pacômio não gostava dos jejuns demasiado freqüentes
ou exagerados. Num domínio em que é tão delicado traçar a fronteira entre o
orgulho e a humildade, o próprio fato de recusar um bocado de pão ganhava um
sentido equivocado: era por orgulho ou por ascese? E Pacômio chegou logo a exigir
que cada monge comesse em cada refeição "quatro ou cinco bocados de pão para
evitar a vaidade".
No trabalho, a ascese também era regulamentada. A cada monge cabia
trabalhar e fazer, além dos trabalhos de sua casa, uma esteira de juncos
trançados por dia, que ele depositava diante da porta de sua cela. Um dia,
por vaidade, um monge depositou duas. Diante disso, Pacômio trancou-o
cinco meses em sua cela, obrigando-o a fazer duas esteiras por dia.
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Os atletas do exílio
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parte da Igreja tem acesso à história, uma outra parte recusa-a violentamente,
refugiando-se na vida atemporal do deserto. Não se trata aí de uma simples
coincidência. Entre estas duas ordens de fato, há uma relação de causa e
eleito, ressaltada por todos os historiadores — de Ferdinand Lot a Louis
Bouyer. "A Igreja, imensamente ampliada", escreve Ferdinand Lot em La Fin
du monde anüque, "não pode mais permanecer na sociedade dos puros, dos
santos que esperam o fim dos tempos. Identificada ou quase com o 'mundo1,
a Igreja sofre profundamente a influência degradante da vida. Para escapar
dela, uma única via de recurso: viver fora do mundo, artificialmente,
buscando o deserto ou a solidão, enclausurando-se sozinho ou coletivamente.
Não é por puro acaso que o ascetismo eremítico e depois monacal surge no
Oriente no momento mesmo do triunfo da Igreja." Porque o monaquismo é
justamente, como escreve por sua vez Louis Bouyer, "a reação instintiva do
sentimento cristão contra uma falaciosa reconciliação com o presente que a
conversão imperial podia parecer justificar", reação a qual é preciso, para
compreendê-la, "situar no contexto da Igreja constantiniana fazendo a paz
com o mundo"1. Por quê? Porque, antes da conversão do imperador
Constantino, permanecer cristão significava arriscar-se a perder tudo: a vida,
os bens, o emprego. Após a conversão, será possível permanecer cristão
conservando tudo. A fuga para o deserto é, então, uma resposta àquela
sedução nova, à tentação do mundo, do poder e do temporal.
Na perspectiva deste livro, esse fenômeno ganha também um outro
sentido: o fim das perseguições significa, para a sociedade cristã, o fim do
modelo ideal que era o santo-mártir. A necessidade de um novo "modelo" se
faz sentir; através dele aquela sociedade poderá perseguir seu sonho anti-
social. Pois o fim da clandestinidade e o
1 . Anne Hadjinicolaou, Recherches sur la vie des esdaves dans le monde byzanún
(Institui Français d'Athènes), 1950.
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fuga impossível. Se, apesar dessa precaução, o amo perdia seu escravo, tinha
a possibilidade de vir dormir à noite no túmulo do santo. Esse mostrava em
sonho o lugar onde o escravo se refugiara. Parece bem claro que são Teodoro
preferia os amos aos escravos"1.
Vimos também no Egito muitos outros solitários. Que poderíamos dizer desses
homens admiráveis e dessa multidão infinita que estão nos arredores de Siena, na
Alta Tebaida, cuja virtude pode passar por incrível tanto ela se elevou acima da
condição dos homens? Pois ainda hoje eles ressuscitam os mortos e caminham
sobre as águas como são Pedro...
Havia um anacoreta cujo nome era Pafnúcio. Falava com os padres que amavam a
Deus e eis o que lhes disse: "Sou Pafnúcio e, um dia, concebi no coração o desejo de
ir às profundezas do deserto para ver se havia ali algum monge. Caminhei durante
quatro dias e quatro noites sem comer nem beber. No quarto dia, cheguei a uma
caverna e, antes de penetrar nela, bati à porta, segundo o costume dos irmãos, para
que o irmão saísse e eu o pudesse abraçar. Esperei. Bati à porta até o meio da noite:
ninguém respondeu".
Eu disse em meu coração: "Talvez não haja nenhum irmão neste lugar". Entrei na
caverna gritando: "Abençoa-me, meu pai!" Quando entrei, olhei ao meu redor: vi
um irmão sentado, guardando silêncio. Estendi a mão imediatamente, peguei seu
braço. Ele se esfarelou em minha mão. Apalpei todo o seu corpo e vi que ele
permanecera assim desde que morrera. Olhei ao meu redor, vi um manto. Quando
o apanhei, ele também se desfez em pó. Eu então
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Que eram, pois, esses desertos do Médio e do Alto Egito nos quais
tantos anacoretas se instalarão a panir do século IV? Extensões de pedra,
onde só brotavam algumas palmeiras e um pouco de grama, onde os pontos
de água eram raros; extensões entrecortadas de outeiros ou de colinas a cujos
pés os ascetas eclificarão cabanas com galhos, cavarão simples buracos para
se abrigarem do sol lá onde não existiam túmulos subterrâneos abandonados.
Os que se estabelecerão perto do Nilo viverão como trogloditas nos grandes
rochedos e escarpas que pendem sobre o rio, em grutas que o viajante pode
ver ainda hoje. Escreve Maillet, um viajante do século XVIII:
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m %t m
2 . 111
nove ou dez burgos cheios de pagãos onde os demônios eram adorados com
superstições ímpias e uma paixão estranha [trata-se decerto de um culto de
Díoniso-Osíris], pois tinham um templo de maravilhosas dimensões, no meio do
qual havia um ídolo que os sacerdotes — acompanhados de todo o povo —
apanhavam e levavam em torno destes burgos à maneira das bacantes e
celebravam cerimônias sacrílegas para obter a chuva do céu.
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Padres do Deserto
os pecados dos outros. Eu os ponho à frente para só olhar para eles." E os
anacoretas mudaram de assunto.
m * #
Em meio àquelas celas, algumas não tinham qualquer abertura, salvo um buraco
para se escorregar dentro, pois se situavam no deserto interior, onde não se
admitiam visitantes. Era nessas que Macário morava durante a Quarentena. Eram
cavernas escuras situadas sob a terra, como tocas de hienas, e eram tão estreitas
que nem mesmo era possível estender os pés.
pequeno, muito fraco e muito delicado. Só tinha barba nos lábios e muito pouco no
de cima, pois suas extremas austeridades impediam que ela lhe crescesse no queixo.
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inipondo-se privações excessivas, e tornar-se igualmente presa dos demônios.
Algumas regras ascéticas tornaram-se, portanto, necessárias. As regras — e
esse é seu papel — concretizam e tranqüilizam. Elas dizem ao asceta o que é
bom e o que é mau e, se ele as respeita, fica mais seguro, no seio desse
universo ambíguo por onde avança um pouco como um cego, de estar no
caminho certo, que leva aos anjos e ao céu.
da preocupação que dizia respeito a seu alimento e lho fornecia por sua
Providência. Quando, impelido pela fome, ele entrava em sua caverna,
encontrava sempre sobre a mesa um pão de um gosto
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Na noite seguinte, eis que todo o lugar se tornou luminoso como à hora do meio-
dia nos dias de verão, e apa Macário soube que era o querubim que voltava para
ele. A princípio, aquela Virtude ficou algum tempo sem lhe falar, para que ele não
se amedrontasse...
Macário parte para Skete, descobre os lugares como os havia visto com
o querubim, avista uma colina onde cava uma gruta, apanha juncos para
fazer um leito, cava um poço para sua água e se instala. Mas alguma coisa o
atormenta nesse deserto. Os demônios, primeiramente, que, cada vez que ele
se põe a orar, vêm "para cima de sua caverna como uma multidão de
cavaleiros que fingem travar combates uns contra os outros", enquanto outros
"ficam perto da porta e fazem bolas de fogo que lançam dentro da caverna,
onde explodem" (não é uma admirável descrição demoníaca da tempestade
no deserto?). E , depois, seus discípulos o atormentam, seus discípulos que já
afluem até e l e , aos quais
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* * *
Quem quer que tivesse, àquela época, seguido Paládio e Rufino em sua
viagem ao deserto de Skete teria encontrado ali, junto com eles, homens singulares.
Uma espécie de teatro inaudito é encenado naqueles ermos, um teatro em que cada
um dá a impressão de interpretar com minúcia, pontualidade, fervor, um papel
eterno.
Mas aqui está, para variar, um anacoreta que é todo doçura. Doce
demais mesmo: passa seus dias e suas noites atravessando o deserto a chorar.
Por que chora? Por si mesmo, pelo mundo? Não, diz Paládio, ele "chora pelo
pecado original e pelas [altas dos primeiros homens". É Bessarião, o eremita
errante, aquele que "nunca entra em qualquer morada habitada". Dorme cm
pleno deserto, onde realiza milagres que fazem sonhar: detém o curso do sol,
ressuscita os mortos (por engano, aliás, pensando que são simples doentes,
pois, senão, ele não ousaria nunca ressuscitar um morto, por modéstia),
atravessa o Nilo caminhando sobre a água e "sente a água até o tornozelo, mas
logo abaixo ela é sólida". A única vez de sua vida em que entrou numa aldeia,
Bessarião viu tantos pobres que deu seu manto ao primeiro, a metade de sua
túnica ao segundo, a outra metade a um terceiro, e se viu no meio da praça da
aldeia,
onde ficou totalmente nu e teve que correr a sentar-se sob um pórtico, cruzando os
joelhos e cobrindo-se com as mãos, sem que lhe restasse outra coisa além do
Evangelho debaixo do braço!
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O fim dos ídolos
Aqueles que alimentam e guardam os macacos têm constatado com espanto que
esses animais não se deixam enganar por imagens de cera e de barro, ainda que
revestidas de roupas de donzela. Sereis vós então piores que os macacos ao
testemunhardes respeito por estátuas de pedra ou de madeira?
E acrescenta:
Como foi possível divinizar assim estátuas, objetos insensíveis? Não consigo
compreendê-lo e lastimo a loucura desses infelizes que por aí se extraviaram.
Certos animais não têm todos os seus sentidos, como os vermes e as lagartas,
outros são cegos ou enfermos, como as toupeiras e os musaranhos. E, no entanto,
esses animais diminuídos valem mais que estátuas estúpidas. A ostra não tem nem
visão, nem audição, nem voz, mas ela vive, cresce, sofre as influências da lua. As
estátuas, essas, são impotentes, inertes, insensíveis.
Alguns desceram tão baixo em seus pensamentos e obscureceram de tal modo seu
espírito que inventaram seres que absolutamente não existem e que não vemos na
criação para fazer deles deuses. Misturam os seres racionais com os seres sem
razão. Põem junto naturezas dessemelhantes e as honram como divindades, como
aqui esses deuses com cabeça de cão, com cabeça de serpente ou de asno...
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É, portanto, como se vê, a irracionalidade aparente dos cultos egípcios, essa
inconcebível união, na divindade, do humano e do animal