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J A C Q U E S L A C A R R I E R E

DO DESERTO
Eàltóes Loyola

HOMENS EMBRIAGADOS DE DEUS


Título original:

Les hommes ivres de Dieu


© Librairie Arthème Fayard, 1975.

Material com direitos autorais


Edições Loyola
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ISBN: 85-15-01278-2
2a edição: agosto de 2002
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 1996

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PREFÁCIO......................................................................................................... 13

INTRODUÇÃO................................................................................................. LZ

Primeira parte O FIM DE

UM MUNDO

1 — O FIM DOS TEMPOS..................................................................... 23

Crença no fim iminente do mundo no tempo de Jesus e nos três


séculos seguintes: são Paulo, santo Hipólito de Roma, Basílio de Ancira,
Tertuliano, são Cipriano.

Suas conseqúèncias: a ruptura com o mundo. Santo do deserto e


bom selvagem. Relações entre o anacoretismo e a ascese. A partida para
o deserto.

2 — A GRANDE TRANSIÇÃO............................................................ 33
Os textos sobre a vida no deserto. A ocupação grega e romana no
Egito. Dois mundos estranhos um para o outro. O exotismo egípcio em

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Padres do Deserto
Roma. Primeiros assaltos contra o paganismo. A "morte" do deus egíp-
cio Serápis.

A cristianização do Egito. Sincretismo dos meios citadinos


helenizados. O meio rural. A aventura copta. Tornar-se cristão
permanecendo egípcio. Panorama da heresia monofisita. As perseguições. O
fim de um mundo. Partida de Antão para o deserto.

Segunda parte OS HOMENS ÉBRIOS DE DEUS

3 — A ESTRELA DO DESERTO........................................................... 51

Santo Antão existiu? A Vida de Antão e a tradição aretológica. Onde


começa e onde termina a história? O Chamado: Antão se instala junto de um
ancião.
A experiência das trevas. Permanência de Antão num túmulo. Suas
primeiras tentações. O bestiário fantástico do Egito antigo. Crenças
funerárias e Livro do Am-Duat.
A experiência da luz. Antão parte para a montanha de Colzum. Seus
vinte anos de solidão. Seus primeiros ensinamentos e seus primeiros
discípulos.
Últimos anos de Antão. Suas visões edênicas. Sua
morte.

4 — A PRADARIA DOS SANTOS........................................................ 71

Um santo entre os anjos: Paulo de Tebas. A Vida de Paulo de Tebas por


são Jerônimo. O problema de sua historicidade. Vida de Paulo de Tebas no
deserto. Sua gruta, o pão de Deus, seu encontro com Antão, sua morte
milagrosa.

Um santo entre os homens: Pacômio. As Vidas coptas de Pacômio. Sua


vocação. Sua ascese perto de Khenobóskion com o apa Palamão.
Índice

Seu encontro com o anjo. Primeiros discípulos e primeiras tentações.


Fundação do primeiro mosteiro em Tabenesi. A regra do anjo e os mosteiros
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pacomianos. Sua organização. Sua disciplina. Técnicas de asceses coletivas.
A língua do anjo. Morte de Pacômio.

5 — OS ATLETAS DO EXÍLIO (I)........................................................ 93

O Império romano se torna cristão. Reconhecimento do cristianismo


pelo imperador Constantino. Suas conseqüências sobre o destino do
cristianismo. A Igreja dos militantes e a recusa do temporal. Vida econômica
do Egito do século IV. Prestígio dos primeiros eremitas. Uma nova Terra
Santa. Os primeiros peregrinos do Egito cristão: Paládio, Rufino, Cassiano.

Nos desertos do Alto Egito. Mosteiros e anacoretas. A curiosa viagem


de um monge no deserto.

A Tebaida. Port-Royal e a redescoberta do deserto. As traduções de


Arnauld d'Andilly. Mosteiros e eremitas da verdadeira Tebaida. Os
discípulos de Antão: Paulo o Simples e são Sisoés.

Ao encontro de anacoretas estranhos. Precauções indispensáveis da


parte do leitor: não confiar nas aparências. Vida de João do Egito, o recluso.
Santo Apoio e seus milagres. Pafnúcio e seu anjo. A conversão de Tais. Um
mito de antes da Graça.
6 — OS ATLETAS DO EXÍLIO (II) ...................................................... 119

Os desertos do Wadi-an-Natrun. Suas paisagens fantásticas. Os


perigos que ali se corre.

Homens em tocas de hienas. O deserto da Nítria e o deserto das Celas.


Macário o Jovem. Sua vida e suas asceses incríveis. Macário e o mosquito.
Seus discípulos. O pão e a alma.

Os homens mais humildes do mundo. Macário o Antigo e o deserto de


Skete. Suas visões. Macário e o

querubim. Macário e o cadáver. O ensinamento e os discípulos de Macário o


Antigo: Moisés e os ladrões, Bessarião, Poimém e a estátua. João o Pequeno
e a vara milagrosa. Arsênio, o preceptor.

7 — O FIM DOS ÍDOLOS.......................................................................141

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Padres do Deserto
Proibição oficial de praticar os cultos pagãos. Controvérsia entre
pagãos e cristãos. As violências dos cristãos: pilhagens, incêndios dos
templos, execuções dos sacerdotes. Motins em Alexandria. A última
mensagem do pensamento pagão.

Vida e vocação de Canúcio de Atripé. Seus mosteiros. Suas regras


implacáveis. Sua divisa: forçar os homens a amar a Deus. O porrete e a
salvação da alma. Expedições de Canúcio contra os templos e os sacerdotes
pagãos. Fim do paganismo no Egito.

8 — FICAR MAIS PERTO DO CÉU......................................................159

A Palestina e a Síria cristãs. Autores e viajantes cristãos: Teodoreto de


Ciro, João Mosco.

Na Palestina. Santo Hilarião, primeiro eremita palestino. Sua vida


singular. O Sinai e seus anacoretas errantes. Eremitérios do mar Morto.
Santa Maria Egipcíaca e sua estranha história. Uma prostituta arrependida.
Os contos cristãos do deserto.

A Síria cristã. Breve história do cristianismo siríaco.

Os reclusos. Viver no interior das árvores e das grutas. Santo


Acépsimo, são Talelo e sua jaula, são Marão e sua árvore de espinhos.

Pastadores e estacionários. O testemunho de santo Efrém. Natureza


dessas estranhas asceses. Fechar os olhos para o mundo. As lágrimas de
santa Domnina.

Esítítííis e dendiitas. Natureza e origem possível do estilitismo. As


Vidas de são Simeão o Antigo. Sua vocação. Sua temporada num poço. As
correntes. Sua primeira coluna. Suas asceses e seus milagres. Morte de são
Simeão. Fascínio dos visitantes. Outros cstilitas célebres. Os dendritas. Estar
ébrio de céu e de Deus.

Terceira parte MORRER PARA O

MUNDO

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9 — 0 ROSTO DE SATÀ...................................................................195

As tentações, formas agressivas do mundo demitido. As Tenía^ões


na pintura. A obra de Hieronymus Bosch. As ilusões do deserto.
Anjos carrascos. O inferno copta. Nova conversa de Macário com um
crânio.

Os rostos de Satã. Diferentes aspectos do demônio. Origem do Diabo


e de Satã. Papel do Egito no nascimento do Diabo. O Diabo-monstro e o
Diabo-sedutor.

A voz das eras. Aparência monstruosa do Diabo no deserto. A parte


tenebrosa do homem. A Serpente. O Dragão. As vozes do passado.

O Diabo-sedutor. As tentações de são Pacão e de João do Egito.


"Uma mulher vagando neste deserto..." O Diabo como duplo do asceta.

10      — A CARNE DOS ANJOS..................................................................215

O paraíso copta.

Operários das chamas. Natureza, aspectos e funções dos anjos. Seu


papel no pensamento e nas visões cristãs dos primeiros séculos. Os anjos
no deserto.

Os anjos e os milagres. Reflexões sobre os milagres do deserto. O


paraíso perdido e o paraíso recuperado. Fraternidade dos ascetas com os
animais. O leão de são Gerásimo. A hiena de Macário. O crocodilo de santo
Heleno. A condição de Adão no paraíso terrestre. Como fulminar um
dragão.

Ser contemporâneo de Cristo. Ressurreição dos mortos. Cura dos


doentes. Conservação dos corpos.

Outros milagres particulares. Os milagres cinéticos: levitaçâo,


transporte a distância, imobilizaçâo a distância. O homem glorificado. O
deserto como prefiguração do paraíso.

11      —    PARA ALÉM DA ASCESE........................................................... 221

O ensinamento do deserto e suas ambigüidades. Santidade e


masoquismo. O silêncio dos grandes anacoretas. Aprender olhando.

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Padres do Deserto
Papel do contexto cultural na gênese de certos "milagres". Que
significa morrer para o mundo? As etapas da ascese e as vias da
contemplação: apatheia, hcsychia. O ensinamento de João Clímaco,
Evágrio Pôntico, Diádoco de Foticéia. "Estar atento a si mesmo."

- Os paradoxos da ascese. Renunciar à própria santidade. Os santos


simuladores. Os santos loucos. História de Simeão Slos. Uma taberna
em Antioquia.

EPÍLOGO............................................................................................................ 249

Vestígios contemporâneos dos "homens ébrios de Deus". Os


mosteiros coptas do Egito. O castelo de Simeão na Síria. As igrejas
rupestres na Capadócia. Os últimos anacoretas do monte Atos.

^exa c i o
FONTES F. TEXTOS.......................................................................................... 251

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T
erão os desertos do Oriente Médio deixado de ser hoje em dia o lugar das
experiências soberanas? E, porque se busca neles antes de tudo o ouro negro
que encerram, tem-se deixado de buscar ali a Deus, o sentido do mundo ou
simplesmente uma imagem mais verdadeira de si mesmo? Durante séculos,
sua nudez pareceu rechaçar a história para os confins de suas areias: ali
aparentemente nada se mexia, nada parecia "progredir". Eles eram o lugar do
imutável, de uma virgindade perpétua onde o homem acaba por se
assemelhar aos anjos. Ei-los hoje tornados fontes de vida e morte porque dali
se extrai a energia combustível. Mas talvez assim só façam continuar essa
vocação de fogo que os lançou por todo o tempo na direção das margens
grávidas da história.

Tenho pouca prática do deserto. Alguns dias somente no Baixo Egito,


no Wadi-an-Natrun, há dezoito anos. Aqueles que conhecem esta região e
que a atravessaram em todo o esplendor do fogo solar me compreenderão se
eu disser que ela me pareceu de imediato, estranhamente, um mar de gelo.
Porque este deserto ocidental do Egito não é de areia, mas de sal. Mar
mineral e branco, cuja crosta endurecida é insensível aos ventos e ressoa em
alguns lugares sob os pés como uma abóbada de cristal. Oceano atapetado de
sedimentos fossilizados, de cascas imemoriais, como se as batalhas das águas
e da terra, a alternância dos elementos tivessem encontrado aí o seu campo
de repouso. Num tal mundo, o homem é quase excrescência inútil,

13

presença absurda. E ele só pode viver ali tornando-se também peso morto do
tempo, hibernando-o num perpétuo inverno. Eis por que durante tantos séculos
esse lugar extremo só abrigou fantasmas hirsutos, sombras andrajosas, engodos de
seres humanos que as testemunhas de então designaram os atletas do exílio e que
eu chamei os homens ébrios de Deus.

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Padres do Deserto
Este livro foi escrito e publicado há treze anos. Mas ele nasceu bem mais
cedo em meu espírito, gerado por uma visão noturna. Eu estava então no
monte Atos, no mosteiro da Grande Laura, onde jantava, após o ofício da
noite, no grande refeitório cheio de monges e eremitas para a festa anual de
santo Atanásio o Atônita. As paredes eram cobertas de afrescos antigos, cuja
faixa inferior representava, alinhados lado a lado, os grandes santos do
deserto: Antão, Paulo de Tebas, Pacômio, Macário, Onofre, Poimém. Silhuetas
nuas, longos corpos esquálidos vestidos de barbas e de cabelos caindo até os
pés, com grandes olhos negros cavados na ossatura do rosto. À luz das velas,
suas auréolas realçavam a paüdez de seus traços e todos aqueles santos
retomavam vida, repentinamente, distantes e familiares ao mesmo tempo,
como se, dos continentes seculares de seu afresco, eles surgissem da borda
luminosa daquela refeição noturna. Aquela noite, compreendi que eles não
estavam pintados somente para figurar uma experiência insubstituível, para
se ancorar num tempo passado, mas para surgir também a cada instante no
presente dos homens. E naquela noite senti vir a mim todo um povo da
sombra, cuja existência e história eu havia ignorado até então. Quis conhecê-
los, encontrar um a um os habitantes desse mundo desconhecido do deserto.
Li as Vidas dos santos, os relatos e os testemunhos dos que os conheceram,
inventariei dezenas de textos gregos e coptas que, mais tarde, me levaram ao
Egito. E foi lá, no coração do Wadi-an-Natrun, que decidi escrever um livro
para o qual só tinha, por enquanto, o título: Les hommes ivres de Dieu.

Hoje, não sei muito bem o que pensar deste livro. Ele foi o testemunho de uma
época e de uma vida que me levaram mais freqüentemente ao Oriente que ao
Ocidente. O que então me fascinava continua a me interessar, mas me diz menos
respeito. Nada tenho de asceta e nunca busquei aprofundar melhor aquilo que,
durante anos, me conduziu à procura daqueles homens. Além do mais, sinto-me
totalmente ateu e escrevi a história desses homens sem jamais compar-

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Prefácio

tilhar sua opção e sua fé. Empreendimento sempre incerto, já que ele recusa a
identificação sem que o recuo implicado seja por isso revelador. Isto explica
por que, ao lado de um grande número de reações entusiastas e muito
elogiosas, este livro tenha sido criticado, vilipendiado em alguns meios
católicos. De minha parte, não me preocupava muito com isso, pois na
história não existe domínio reservado. Se os crentes fossem os únicos
habilitados a falar de sua fé, se só os monges tivessem de escrever sobre o
monaquismo, a história do pensamento não passaria de uma eterna
tautologia. Como não tenho, aliás, nenhuma pretensão de historiador,
encontrei-me mais uma vez rejeitado diante de mim mesmo. Porque este
livro não é um tratado de história, uma hinologia ou uma critica
pretensamente objetiva do fenômeno que ele estuda. Os homens ébnos de
Deus é o diário de um encontro inteiramente pessoal com uma época e com
homens que até hoje não sei se foram loucos ou se foram santos. E não sei
igualmente se eles foram — e ainda são — para mim os indígenas de um
outro mundo ou os irmãos desconhecidos de um continente que é o meu.
Este estudo é também um livro-testemunha, quero dizer, o relato de um
testemunho pessoal, termos contraditórios para um ocidental, mas que sempre
se confundiram estreitamente em todo o domínio oriental. Testemunha, em
grego, se diz martyr, que também significa mártir.

Como, enfim, meu objetivo em todos os meus livros nunca foi redigir
teses de pretensão universitária nem marcar data para a posteridade, mas
simplesmente, organicamente eu diria, comunicar-me com meus
contemporâneos, relatar o que vivi e pensei, para que outros o vivam e o
pensem por si mesmos, reivindico particularmente as insuficiências — até
mesmo as ignorâncias — deste livro: como as tentativas e os erros das
amebas e dos paramécios, elas são a marca dos titubeios sem os quais
nenhuma verdade faz sentido. É assim que surge finalmente este livro, após
tantos anos: um ensaio para interrogar, pressentir ou delinear os limites do
homem. Pois foi isso, sem dúvida alguma, que me atraiu outrora para a
experiência desses santos do deserto: esse desafio lançado ao nosso destino
de hominídeo, essa recusa visceral da nossa casca antiga e essa busca última
de um homem diferente.

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Prefácio
Sacy, setembro de 1974.

15

*—t- solar-se do mundo, romper com a sociedade do seu V^/ tempo, pensar, como
fizeram os eremitas, que só fora dela se encontra a resposta ao problema do destino
humano não tem por si só nada de insólito. É uma atitude das mais naturais na
medida em que toda sociedade altamente civilizada engendra inevitavelmente uma
franja anti-social onde figuram como irmãos o eremita e o fora-da-lei. Que ninguém
se espante ao ver aqui estas duas atitudes marginais colocadas no mesmo plano,
pois de fato nada as distingue radicalmente em seu comportamento com relação à
comunidade: refratário dos homens ou refratário de Deus, cada um deles é antes de
tudo um rebelde frente a uma ordem julgada intolerável ou caduca.

Digamos mesmo que, a partir do momento em que esse passo decisivo


for dado, será mais fácil para o anti-social passar de um estado refratário ao
outro do que reintegrar-se a um grupo com o qual ele rompeu
definitivamente. É uma evidência que as tradições populares e a história
oficial têm confirmado desde sempre, como atestam os inúmeros contos do
Bandido que virou monge e os textos das Vidas dos Padres do deserto, nos
quais vemos constantemente ex-bandidos que se tornam eremitas.

Romper com a sociedade de seu tempo é, pois, uma atitude natural, que
não é de forma alguma privilégio da nossa geração, a tal ponto que a história
de cada civilização poderia comportar também a

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história das "anti-sociedades" que ela engendra. Se escolhi ilustrar esse fenômeno
limitando-me a uma época e a um lugar preciso, o Egito cristão do século IV, é
porque ele atingiu ali uma nitidez e uma amplitude excepcionais, raramente
igualadas na história, e porque teve até nossa época conseqüências duradouras, ao
suscitar os primeiros mosteiros conhecidos da história cristã.

Uma palavra basta para definir esse fenômeno: anacorese. O termo grego
anachôresis significa uma retirada, uma fuga para longe do mundo cotidiano. Trata-
sc antes de mais nada de uma opção anti-social que só bem mais tarde ganhará um
significado religioso. Das centenas de camponeses, de escravos, de ladrões que, no

* maquis: nas regiões mediterrâneas, o maquis é uma configuração vegetal composta


de moitas, arbustos e touceiras. A expressão francesa prendre le maquis significa "refugiar-
se, após ler cometido um delito, numa zona pouco acessível coberta pelo maquis".
Durante a Segunda Guerra Mundial, chamavam-se maquis os grupos de resistentes
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(partisans) que lutavam na clandestinidade contra a ocupação alemã da França; os membros
destes grupos eram chamados maquisards (N. do T.).
Prefácio
Egito greco-romano, fugiam para o deserto para escapar do fisco, de seus amos ou
da justiça, dizia-se que praticavam a anacorese. Em suma, ganhavam o deserto,
como se diz em francês moderno que um parüsan ganha o maquis*. E o termo
anacorese nunca perderá totalmente — mesmo quando, bem mais tarde, se aplicar
unicamente aos eremitas e aos santos — este sentido original de refratário, de
"maquisard" dos homens ou de Deus.
Atitude negativa na aparência, já que é antes de tudo uma fuga, uma recusa,
uma ruptura radical com toda a sociedade organizada. Mas sabemos que não basta
fugir para a solidão do deserto (ou, hoje em dia, para a do mato) para romper com
os valores de seu tempo. O anacoreta cristão foge, no deserto, da comunidade
temporal a que pertence, mas para juntar-se ali à comunidade espiritual, invisível,
que reúne todos os cristãos, mortos ou vivos, os santos, os mártires. Ele só se isola
de seus contemporâneos, das delícias ou dos horrores de seu tempo para encontrar a
comunidade ideal e atemporal de seus irmãos dos outros séculos, dos outros
lugares. É assim que este comportamento anti-social culminará paradoxalmente na
constituição, pouco a pouco, nas solidões do Alto e do Baixo Egito, de uma nova
sociedade ♦

Introdução

à margem da antiga, verdadeiras comunidades do deserto que, com o nome de


lauras, skites, coenobia, mosteiros, se tornarão o modelo da cidade futura ou da
cidade celeste. Paradoxo que se encontra na história da palavra "monge", do grego
mónachos, que significava na origem um homem vivendo só e que acabou por
designar todo homem vivendo no seio de uma comunidade religiosa e organizada.

Dos milhares de homens que escolheram, assim, viver fora do mundo e do


tempo, a história guardou sobretudo dois nomes: santo Antão e são Pacômio. Antão
foi, segundo a tradição, o primeiro que teve a idéia de abandonar o mundo para se
consagrar no deserto à meditação e à oração. Pacômio, por seu lado, partiu para os
desertos do Alto Egito não para viver sozinho, mas para fundar ali uma comu-
nidade monástica. Se imaginarmos que meio século após a morte destes dois
precursores contavam-se às centenas — e, um século depois, aos milhares — os
anacoretas e os monges vivendo nas grutas e lauras do deserto, que em seguida este
movimento se estendeu à Palestina, à Síria, à Pérsia, à Capadócia, à Armênia e, mais
tarde ainda, a todos os países do Ocidente, a distância parece incomensurãvel entre
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Prefácio
a aventura — aleatória, afinal de contas — destes dois homens e suas repercussões
na história. Eis um fato que, por enquanto, me contento em assinalar, sem pretender
em momento algum explicá-lo. Sublinhemos apenas que logo de saída o
anacoretismo se apresenta como um fenômeno ao mesmo tempo individual e
coletivo, um impulso sentido por cada um como a livre escolha de sua consciência,
mas que rapidamente se transformou em algo que hoje chamaríamos um movimen-
to de massa. Ora, a maioria dos textos que possuímos sobre a vida destes ascetas
relata essencialmente o aspecto individual do fenômeno.
Eles se consagram a seguir, cada um em sua vida eremuica, seus
jejuns, suas orações, seus milagres e suas tentações sem nunca entrever ou mesmo
suspeitar a amplitude futura e o significado histórico da fuga para o deserto.
r

E por isso que me parece útil, antes de acompanhar no Baixo e Alto Egito a
vida e a aventura excepcionais desses homens, investigar as raízes desse estranho
fenômeno. Não foi sem razões imperiosas, sem profundas motivações, que milhares
de cristãos romperam com sua época, seus bens, sua vida familiar, com o que todos
os textos chamam "o século" ou "o mundo". Parece que assistimos ali a um

19

esforço — consciente ou inconsciente? — para realizar, à margem do mundo


profano, uma sociedade ideal e santa, as comunidades monás-ticas, e um tipo ideal
de ser humano, o homem novo ou o santo do deserto.

"O mosteiro é um céu terrestre e, assim, nós todos devemos ser como
anjos", escreve João Clímaco, autor ascético do século VII. Foi então para se
tornarem anjos, seres no limite do humano, que Antão, Pacômio e todos os
que os imitaram um dia desertaram as cidades e a história para enfrentar a
provação do deserto?

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Padres do Deserto

Primeira Parte

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1. Para evitar acumular citações conhecidas, dou apenas a referência das passagens
essenciais: Mateus 24,29-31; Marcos 13,24-27; Lucas 21,25-28.

* Todas as citações de trechos bíblicos nesta obra se basearão na edição brasileira


da Tradução Ecumênica da Bíblia, São Paulo, Edições Loyola, 1994. (N. do T.)
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Material com direitos
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1. Apotãctico significa, em sentido próprio: remmciante. Servia também para


designar, durante os primeiros séculos, todos aqueles que praticavam a ascese onde quer
que fosse, inclusive em casa, que renunciavam, em suma, à vida dita mundana.

25

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Material com direitos


O um dos tempos
São Cipriano de Cartago, numa Carta a Dimitriano (mais um texto
notável que valeria a pena comparar com os textos ecológicos
contemporâneos), escreve:

Quem não vê que o mundo caminha para seu declínio, que já não tem as
mesmas forças nem o mesmo vigor de antigamente? Não é preciso prová-lo
com a autoridade da Santa Escritura. O próprio mundo o diz e testemunha
que se aproxima de seu fim pela decadência de todas as coisas. Cai menos
chuva no inverno para alimentar as sementes. O sol não é mais tão quente
no verão para alimentar os frutos. A primavera não é mais tão agradável
nem o outono tão fecundo. As pedreiras, como se estivessem cansadas,
fornecem menos pedras, e as minas de ouro e de prata já estão esgotadas. As
terras ficam incultas, os mares sem pilotos, os exércitos sem soldados. Há
menos inocência no tribunal, menos justiça entre os juizes, menos união
entre os amigos, menos indústria nas artes, menos disciplina nos
costumes... Vemos crianças que já são totalmente brancas. Seus cabelos
1. Ressaltemos esta frase de aparência sibilina: "crianças que já são totalmente
brancas". Devia tratar-se com toda certeza de bebês germanos que são Cipriano deve ter
visto pela primeira vez nesta época, na África, onde vivia. Seus cabelos, inteiramente
brancos ao nascer, só se tornam louros com o tempo. Observemos também que Platão, na
Política, já tinha imaginado esse tema dos homens que nascem anciãos e rejuvenescem
pouco a pouco, para retornar ao ventre materno da terra. Essa inversão do tempo, Platão
explicava-a pela retirada dos deuses de sua criação. O universo, abandonado a si mesmo,
vê suas formas e seus seres regredirem até que cada coisa se dissipe. Ora, idéias análogas
nasciam então nos espíritos cristãos: Deus havia se retirado do mundo, deixando o
universo entregue a si mesmo, isto é, à regressão, à morte.

29

caem antes de nascerem e começam pela velhice em vez de terminar por ela.
Assim, todas as coisas, desde agora, se precipitam rumo à morte, sofrem do
esgotamento geral deste mundo1.

Em outros termos, o fim do mundo já não aparece então como um


objeto de terrores ou de esperanças insensatas, mas, ao contrário, como uma
fonte de meditações, de reflexões racionais sobre os fins últimos do homem.
Compreende-se melhor agora como (e por que) os primeiros cristãos deram
tanta importância ao mártir, ao asceta e depois ao anacoreta. Cada um deles,
por esse comportamento anti-social, essa recusa de um mundo moribundo,
aparecia a um só tempo como um modelo e um profeta, como a única
"resposta" possível à angústia de um mundo que lia em si mesmo os sinais de
sua própria agonia.

Material com direitos autorais


2.
^ande t^arasiçâo
Virá um tempo em que parecerá que os egípcios adoraram
seus deuses em vão. Da terra esses deuses retornarão ao
céu, e o Egito será deixado no abandono. Essa terra santa,
pátria dos santuários, se cobrirá de sepulcros e de morte.
Egito! Egito! Das tuas crenças só subsistirão fábulas que
parecerão incríveis às gerações futuras, só restarão
palavras sobre as pedras que contam teus atos de piedade!

Asclépio

A
branca, serena abstração dos desertos. A Palestina, a Síria, a Líbia, o Egito podiam
oferecê-la aos que renunciavam ao mundo. Por que foi o Egito que venceu e se
tornou a terra de predileção da ascese e da anacorese?

Antes de abordar essa questão, ressaltemos um ponto importante: os


textos que relatam a vida no deserto dos "homens ébrios de Deus", e aos
quais apelaremos neste livro, são em sua maioria textos gregos escritos por
gregos: a Vida de Antão, pelo bispo de Alexandria, Ataná-sio; a História
lausíaca de Paládio, a História dos monges do Egito de Rufino de Aquiléia. Os
dois outros textos mais importantes, a Vida de Paulo de Tebas, primeiro
eremxía, de são Jerônimo, e as Conversas com

33
Material com direitos autorais

os monges do Egito, de Cassiano, foram escritos em latim. Mas escrever em grego


significa também pensar em grego. Todos os textos em questão, redigidos com
vistas a um público cultivado que fala grego e latim, naturalmente transpuseram em
sua própria língua os ensinamentos, as palavras, a mentalidade particular dos
homens dos desertos do Egito. Ora, estes homens não eram nem gregos nem
romanos, mas egípcios: Antão, Pacômio, Macário o Antigo, Poimém, Pior, Serapião,
Hor, Pafnúcio, Onofre, Canúcio, Pisêntios, todos esses grandes nomes do
cristianismo copta* eram de raça egípcia, nascidos no Egito de pais egípcios (e
mesmo pagãos, muitas vezes). Não falavam nem grego nem latim, mas copta, forma
demótica da língua egípcia tradicional. Além disso, eram em sua maioria de origem
camponesa, pertenciam àquela classe dos felás que nunca teve qualquer contato (a
não ser pelas revoltas constantes) com os ocupantes gregos e romanos e que perpe-
tuou por longo tempo as tradições, os cultos, a mentalidade do Egito faraônico. É
essencial estabelecer desde já esta distinção, pois do contrário sujeitamo-nos a não
captar em toda a sua originalidade o fenômeno singular que foi o nascimento do
mona-quismo no Egito. Na sua gênese e no seu alcance, é um fenômeno puramente
egípcio o ressurgimento com outras formas de um passado e de uma cultura que se
acreditavam mortos mas que, de fato, nunca deixaram de existir nem de crescer,
apesar dos séculos de ocupação estrangeira.

&            $r ifc

Quando Antão e Pacômio partiram para o deserto, o Egito tinha deixado de

* Como o autor falará com insistência dos captas, parece-nos interessante traçar
aqui um rápido perfil deste povo. Os coptas são os cristãos do Egito e da Etiópia. São
atualmente os descendentes mais autênticos da população do Egito antigo, e sua
continuidade racial se deve à sua religião, que não admite casamentos mistos. Falam uma
língua da família camito-semltica que é a continuação do egípcio falado na época dos
faraós (os egípcios muçulmanos falam árabe). Esta língua se escreve num alfabeto
próprio, baseado no grego. O hierarca supremo da Igreja copta é o Patriarca, que vive no
Cairo. Celebram a liturgia de são Basílio. Do ponto de vista doutrinai, a Igreja copta está
desligada da igreja católica romana e das Igrejas ortodoxas por ter permanecido na
heresia do monofisismo. O termo copta provém de gyptus, alteração do nome grego do
Egito, Aegypíus. (N. do T.)

ser há mais de oito séculos um país independente. O


Padres do Deserto
tamanho descomunal de certos animais, os gregos reagiram com zombaria, escárnio
e esse espírito mordaz que os egípcios não apreciavam muito. Eles lhes retribuíram,
aliás, a gentileza e captamos, nesses jogos da linguagem, todas os abismos que
separam dois povos que estão lado a lado durante séculos sem se compreenderem.
Para os egípcios, os gregos eram gente turbulenta, superficial e pouco séria, um
povo irresponsável e infantil. Recordemos esta frase atribuída por Platão a um
sacerdote egípcio — frase cuja justeza permanece mais que nunca válida a trinta
séculos de distância e que poderia aplicar-se aos gregos de hoje: "Vós outros,
gregos, permanecereis sempre crianças. Quando é que os gregos se tornarão um
povo adulto?"

A presença romana no Egito foi menos sensível ainda que a dos gregos.
Roma tratou o Egito como uma terra à parte, um país cujos costumes, modos
de vida, deuses e o lugar excêntrico que ocupava nos confins do mundo o
diferenciavam das outras províncias do Império. Se os gregos se
justapuseram aos egípcios sem realmente misturar-se a eles, os romanos só
fizeram ocupar o Egito. Senão, vejamos um mapa do Egito romano. Que
vemos aí? Cidades gregas: Alexandria, Náucratis no' Delta, Arsínoe no
Faium; depois, à medida que subimos o Nilo, Afroditópolis, Oxirrinco,
Hermópolis, Licópolis, Ptolomaida, Coptas, Tebas, Siena. Algumas dessas
cidades eram evidentemente de origem egípcia, mas elas usaram durante
muito tempo e com mais freqüência seu nome grego. Uma única cidade tem
um nome e uma origem devidos a Roma: Antinoé, fundada por Adriano após
a morte de seu favorito, Antínoo. É que, de fato, a penetração romana não foi
muito além do Médio Egito. Nada de limes, faixa-fronteira como em tantos
outros países do Império, nada de fortifica-ções, de vias, de implantações
duradouras. Antes uma presença esporádica, nos limites do deserto hostil,
que obrigou os romanos a se servirem de dromedários; presença limitada a
algumas guarniçôes de militares, algumas dezenas de funcionários e cidadãos
confinados unicamente no Delta e nos burgos importantes. Roma ocupa
militarmente o Egito, mas não constrói nada ali, não funda nada, não
compreende nada. Contenta-se em reprimir as revoltas que estouram a todo

1. História chamada "verdadeira" por ser, justamente, fruto de pura imaginação e


por ser o primeiro modelo de uma literatura antiexótica, diríamos hoje
desmistificadora, contra todos os viajantes, autores de relatos fabulosos e fáceis, der-
1
ramados nas "salas Pleyel" da época.
Material com direitos autorais

37
Padres do Deserto
momento e, como diz com acerto um historiador do Egito romano, "em fazer
o país suar trigo e prata para alimentar os romanos".
Dirão que estamos fazendo o jogo do mistério e do exotismo, mas isso seria
ignorar o papel singular que o Egito desempenhou para a cultura romana. Pois este
país — tão desconhecido e tão pouco apreciado pelos que o ocuparam — suscitou
uma verdadeira febre entre os romanos da Itália. Visto de Roma ou de Pompéia, o
Egito não é mais uma terra de trigo povoada de indígenas embrutecidos, mas o país
da sabedoria e do conhecimento, o reino das tradições ocultas e dos poderes
mágicos. Ele cristaliza, em torno de seus enigmas, seus símbolos indecifráveis, seus
monumentos misteriosos, toda uma carência de exotismo e de maravilhoso de que
as culturas antigas se ressentiam tanto quanto as nossas. Pode-se ver uma prova
disso na moda que fizeram os cultos egípcios (os de ísis, principalmente) a partir do
século I antes de nossa era. Toda uma aristocracia culta se entusiasma com ísis, seus
mistérios, seus sacerdotes, com esses cultos estranhos e até então desconhecidos, a
ponto de obrigar o imperador Tibério a suprimi-los, a mandar crucificar alguns
sacerdotes como exemplo e a deportar alguns milhares de fiéis de ísis para a
Sardenha. Tudo isso, junto com os relatos mais ou menos fantásticos trazidos pelos
viajantes (pois a moda então é a dos relatos de viagem fabulosos, onde tudo é
pitoresco e fácil, exotismo de bazar, prodígios e milagres, relatos que Luciano de
Samosata parodiará na sua História verdadeira1), acaba formando no espírito do
profano uma imagem convencional do Egito que se encontra nessas pinturas de
paisagens nilóticas que "causam furor" na mesma época nas casas de Roma e de
Pompéia. Templos e cabanas de juncos à beira do Nilo, barcos e barqueiros, íbis e
crocodilos se reproduzem ali ao infinito, tal como naqueles papéis pintados de
nossa infância onde, numa paisagem oriental estereotipada — deserto, camelos,
mesquita —, mulheres com véus apanhavam água à sombra das palmeiras. Os
romanos, nos primeiros séculos de nossa era, terão o seu Egito, tal como o século
XVI teve as suas índias ocidentais e o século XIX a sua Polinésia: terras paradisíacas
onde se cristalizam essa amargura inconsciente e essa nostalgia da inocência que
afetam as civilizações nas épocas de êxito material e de conquista.

2
Material com direitos autorais
A grande transição
entre vós, ou em qualquer outro lugar, tudo o que se produziu de belo, de
grande, de notável sobre a terra, tudo isso está escrito, aqui, de longa data em
nossos templos e salvo do esquecimento. Nossas leis, basta olhar para elas, e
nossa maneira de viver e nossos conhecimentos: verás que elas têm mais de
oito mil anos de idade". Outra prova será encontrada num relato de Heródoto
(anterior, portanto, ao de Platão) que também estabelece em oito mil anos a
antigüidade do Egito. Quando Heródoto visitou o templo de Amon-Rá, em
Carnac, c perguntou aos sacerdotes desde quando os deuses reinavam sobre
o Egito, eles o levaram ao interior do santuário e lhe enumeraram —
nomeando-as uma a uma — trezentas e quarenta e uma estátuas de madeira:
"pois cada sumo sacerdote, em vida, manda erguer sua estátua e, por uma
enumeração metódica, os sacerdotes me mostraram que eles se sucediam
assim, como os reis, de pai para filho, desde as origens". Trezentas e quarenta
e uma gerações: isso dá quase oito mil anos, o número citado por Platão.
Mesmo dividindo por dois os números dados por Heródoto (para ficarmos de
acordo com os dados da arqueologia), eles permanecem bastante eloqüentes.
Diante da idade que supunham para seus deuses, diante da perenidade de
suas crenças e de sua civilização, os sacerdotes egípcios deviam sentir uma
espécie de vertigem — essa vertigem que arrebatava o visitante estrangeiro à
visão das trezentas e quarenta e uma estátuas alinhadas na penumbra do
templo, sendo cada uma delas um elo do tempo. O Egito viveu durante
quatro mil anos nessa vertigem da eternidade, nessa certeza de que o tempo
era imóvel, de que os deuses egípcios reinavam desde sempre sobre a terra.

E então, um dia, essa vertigem acabou, pois os deuses egípcios morreram.


"Morreram" é uma maneira de dizer, pois é dificílimo descrever — e mesmo
compreender —, na sua complexidade, a morte de um deus. Quando se pode dizer
que um deus morreu? Quando deixa de ter um culto oficial? Mas nada prova, só
por isso, que seus fléis deixam de crer nele, de crer em sua presença e em seu poder
oculto. No século VI de nossa era, ou seja, dois séculos depois da proibição oficial
do paganismo pelo imperador Teodósio, ainda havia no mundo romano homens —
filósofos místicos — que continuavam a crer na verdade dos deuses egípcios. Um
deles escreve: "Sabemos que os deuses viveram e continuam a viver lá".

39

Uma questão que toca tão de perto a alma humana não pode ser resolvida com
base nos vestígios externos que os deuses e seus cultos sempre deixaram na terra,
sobretudo no Egito. De tal sorte que o único critério que permite dizer que um deus
Material com direitos autorais
1. Este episódio foi descrito — com algumas variantes — por Sozômeno, História
eclesiástica (VII, 15), e Sócrates, História eclesiástica (XI.29).
acaba de morrer é ainda aquele fornecido por seus próprios fiéis, quando tomam
consciência de que ele morreu neles, de que deixaram de crer nele. Ora, tal fenômeno
se produziu no Egito, em Alexandria, na última década do século IV, no dia em que
o patriarca Teófilo foi autorizado a instalar uma igreja num templo de Dioniso.
Descobre ali estatuetas obscenas (ou melhor, que ele acha obscenas), as destrói e
lança seus pedaços à multidão dos cristãos. Os pagãos, furiosos, se revoltam, atacam
os cristãos e, tomados de pânico, correm a se trancar no Serapeu — o grande templo
de Serápis. Este templo era de uma magnificência excepcional, que já impressionara,
dois séculos antes, um cristão como Clemente de Alexandria. Mas nem a hora nem o
século se prestavam mais à admiração dos templos pagãos. Os cristãos, excitados por
Teófilo, sobem os cem degraus que levam à entrada do santuário, penetram no seu
interior e se detêm de chofre, tomados de assombro, de pavor, medo, diante da
imensa estátua do deus. A tal ponto que ninguém ousa atacá-la. Finalmente, a uma
ordem de Teófilo, um soldado se apodera de um machado, trepa a uma escada e
começa a golpear a cabeça do deus. O ídolo balança, desaba, a multidão lança um
grito de medo enquanto... uma enxurrada de ratos sai do buraco aberto na estátua!
Então, passado todo o medo, os cristãos arremetem contra o ídolo. Os próprios
pagãos estão consternados: não havia um oráculo muito antigo anunciando que o
mundo desmoronaria no dia em que Serápis fosse profanado? Serápis qucbrou-se e o
mundo não desmoronou. Os cristãos então arrastam os escombros à vontade por
toda a cidade e os queimam1. E cada um deve ter lido, então, na visão daquele
colosso arruinado de onde escapavam ratos, daquele deus esquartejado que era
arrastado pelas ruas, a imagem mesma do paganismo dilacerado, moribundo. O
cristianismo tinha conseguido no Egito — pela violência — aquilo que nem os
persas, nem os gregos, nem os romanos tinham podido fazer: suprimir as divindades
seculares do país e dar a ele um novo deus.

0          * tír

Os primeiros documentos seguros que atestam a existência de uma


comunidade cristã organizada, em Alexandria, datam do final do século II. É
também por esta época que um filósofo grego, Panteno, antigo estóico
convertido ao cristianismo e que teria viajado até a índia seguindo as pegadas
do apóstolo Bartolomeu (segundo Eusébio de Cesaréia), funda em Alexandria
a célebre Didascália, escola cristã de exegese que será dirigida depois dele por
Clemente de Alexandria e Orígenes. O sucesso encontrado por esta escola
prova em todo caso que, à data de sua fundação, já havia nesta cidade
comunidades cristãs suficientemente numerosas e organizadas — decerto
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A grande transição
desde os meados do século II. Mas quem são estes primeiros cristãos? Antes
de tudo, gregos, judeus, romanos, egípcios helenizados, membros da
sociedade cosmopolita e culta de Alexandria. É no seio desta iníeíligenísta que
o cristianismo se difunde a princípio — pela simples razão de que só é
pregado em grego e não pode atingir a massa egípcia propriamente dita, que
fala copta. O que não deixa de criar dificuldades: esta sociedade refinada é,
por natureza, pouco fanática, mais tolerante e aberta a todos os cultos e deuses
novos. Já tinha aceitado os deuses gregos, romanos e as divindades orientais
— sírias e zoroástricas — a ponto de "amalgamá-las" às do Egito. É, por
excelência, uma classe que favorece o sincretismo religioso, onde se recrutarão
os mais fervorosos adeptos do gnosticismo, do neoplatonismo, do
neopitagorismo, das doutrinas herméticas e de todas as seitas religiosas e
filosóficas que se multiplicam na Alexandria do século II. Para tomar só um
exemplo, aquele Serápis — cuja "morte" retratamos um pouco mais acima e
que foi o grande deus da época greco-romana —, aquele Serápis era uma
"mescla" de Zeus-Júpiter, Hades, Osíris, Ápis, Dioniso e mesmo de um pouco
de Amon-Rá! Além de seu santuário de Alexandria, ele possuía um outro,
célebre, onde podia ser adorado segundo o rito egípcio ou o rito grego e cujas
aléias eram ornadas com esfinges egípcias, sereias gregas, estátuas de Ptndaro,
Protágoras e Platão! Tal flexibilidade no sincretismo tem qualquer coisa de
fascinante. É difícil hoje em dia, após vinte séculos de cristianismo, imaginar
que as divindades pudessem associar-se desse modo sem se excluir,
amalgamar-se em panteões incessantemente enriquecidos. A facilidade com
que então se "fabrica-

41

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A grande transição

ramente dizem respeito ao meio que nos interessa aqui, o do camponês copta.
O que é certo é que tornar-se cristão, no século III, para um camponês do
Egito não significava apenas adotar uma religião nova; implicava também
renunciar mais ou menos à religião antiga, a imagens, a símbolos, a ritos
ancestrais. Entre este mais e este menos se situa todo o verdadeiro alcance do
cristianismo naquela época, e a necessidade que ele teve de se acomodar com
este passado prodigioso, de não romper com algumas de suas exigências, em
suma, de dar ao copta a impressão de que ele podia tornar-se cristão
permanecendo egípcio1.
Vale dizer que os termos cristianismo e oistão tinham para um
camponês copta um sentido bem diferente do que tem para nós. De um
extremo a outro do orbis romanus, cada um dos países convertidos teve, aliás,
com bastante rapidez a sua própria visão de Cristo, a ponto de a história dos

1. Permanecer egípcio, para um copta, não significava apenas continuar a perten-


cer ao Egito enquanto nação, mas enquanto cultura, perpetuando a crença nos símbolos
religiosos milenares. Assim, na Vida copta de Teodoro, o discípulo de Pacômio, conta-se
que Teodoro, tendo visto no campo um touro que possuía os sinais externos dos touros
sagrados de Ápis, "mandou-o matar para que seus monges não se pusessem a adorá~lo"\

1. O monofisismo foi uma heresia que afirmava que o Pai e o Filho tinham
somente uma natureza — inteiramente divina — e, portanto, que a natureza humana de
Cristo não passava de uma aparência. Essa doutrina já havia sustentado certo número de
seitas dos séculos anteriores, bem como algumas seitas gnôsticas e também os
marcionitas e os docetistas. Na doutrina monofisita, Cristo só tem uma carne aparente e
pode mudar à vontade de forma e de aspecto. Para explicar a Crucifixão (já que seria
impossível crucificar um fantasma), os monofisitas admitiram que Cristo não foi
realmente crucificado, sendo substituído in extremis por Simão, o Cireneu. Essa heresia
— devida a um monge de Constantinopla chamado Êutico — se difundiu em todo o
Oriente Médio e ganhou o Egito, a Síria e a Armênia, onde subsistirá, apesar da
condenação do concilio de Calcedônia, em 4 5 1 .

2. 45

seis primeiros séculos da Igreja ter sido uma luta constante contra as heresias,
um esforço perpétuo para impor a todos uma visão idêntica de Cristo. O peso
do passado se exerceu profundamente sobre a sensibilidade religiosa do
Egito cristão, e e evidente que haverá sempre, na maneira como um
camponês copta era cristão, algo de estranho à nossa própria experiência. A
prova disso é que no dia em que ele puder, com toda liberdade, escolher o seu
cristianismo, escolherá um cristianismo todo equivocado, herético: o

Material com direitos autorai


monofisismo, que se tornará, a partir do final do século V, a religião nacional
do Egito2.

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Segunda Parte

Material
1
Padres do Deserto
época. Nestas Vidas, os sábios, como mais tarde os santos, de fato comandam os
elementos, afastam os flagelos, domam as bestas selvagens, operam curas
milagrosas, exorcisam os posscssos. O que já permite situar em seu verdadeiro
contexto todos esses milagres, essas diabruras e esse maravilhoso que fervilham na
Vida de Aníão. Eles só têm sentido em função do objetivo visado pelo autor: escrita
para edificar, não para descrever, concebida como um retrato exaltador da vida no
deserto e não uma reportagem minuciosa das façanhas e proezas do santo, a Vida de
Antão não poderia abrir mão das convenções literárias indispensáveis a toda Vida
edificante: milagres surpreendentes, grandes discursos retóricos sobre a virtude e a
sabedoria, recurso ao maravilhoso e ao sobrenatural, assaltos dos demônios. Em
suma, é o "por quê" da Vida de Antão que explica o "como", não o inverso. Todo esse
arsenal de milagres e de tentações, de conversas com os anjos ou de poderes
exaltantes nada tem de cristão. Para o público da época, pagâo
ou cristão, nenhuma Vida de sábio ou de santo podia ter virtude edificante
se não tivesse primeiramente um poder de assombro, se não obedecesse às leis do
romance aretológico, tão rigorosas e imperativas quanto as que presidem hoje em
dia, por exemplo, o romance-folhetim.

Dito isto, uma vez bem admitida esta ganga fabuladora, esta intenção
edificante das Vidas dos santos, não se pode concluir, porém, que elas não
contenham nenhuma parte de história ou de verdade. Ninguém sonha em
negar a existência de Pitágoras ou dos sofistas gregos, ainda que sua vida,
escrita por Jâmblico e Eunápio, contenha mais de maravilhoso e de fantástico
que de real. Tudo leva a crer que Antão de falo existiu. É dito em sua Vida
que ele fez duas viagens a Alexandria, que tomou posição contra a heresia
ariana, e estes fatos puderam ser confirmados por outras fontes. Existiu
seguramente, no século IV, no deserto do Egito, um personagem chamado
Antão, copta iletrado mas dotado de grande sabedoria, que se consagrou a
uma ascese espetacular o bastante para impressionar seus contemporâneos e
incitar um bispo a escrever sua vida. Mas é certo que o personagem histórico
tem pouca relação com o da Vida de Antão. A parte de história que esta Vida
contém, temos de buscá-la contra o próprio texto, contra o autor às vezes, em
tudo o que lhe pôde escapar sobre os fatos, os lugares, as coisas que ele
descreve. É ali, nessa parte obscura, inconsciente da obra, que a história real
de Antão (a quem os sinaxános

1
Material com direitos autorais
1
1
Padres do Deserto
que fugiam dos lugares habitados para escapar das corvéias, dos impostos,
de seus amos ou da justiça. Mas sua temporada no deserto era apenas
passageira. No caso de Antão, esta partida tomava um sentido bem diferente,
pois o que o atrai não é a realidade concreta, e sim a realidade simbólica do
deserto.

Como todos os anacoreias que o imitarão a seguir, Antão viveu numa


época e num meio profundamente impregnados de símbolos e de imagens
bíblicas. Toda a realidade material circundante (o deserto, o céu, os sons, as
luzes, as sensações mais quotidianas) possui um valor e um sentido
simbólicos, por ter servido, de uma maneira ou de outra, a este ou aquele
episódio da história divina. O deserto, antes de tudo, é um lugar inóspito,
tórrido, onde ninguém poderia levar uma existência normal. Lá o homem
está nu, apanhado entre a terra e o céu, entre os dias extenuantes c as noites
gélidas, prisioneiro de uma paisagem abstrata, que não é a imagem de
nenhum mundo familiar. O deserto é um lugar inumano. Mas que quer dizer
inumano para um copta? Quer dizer um lugar habitado por outras criaturas
que não homens: por anjos e demônios. No deserto, nenhum homem pode
viver se não for ajudado por Deus ou por seus anjos, ninguém pode morar ali
sem enfrentar mais cedo ou mais tarde os assaltos do Diabo: tem de viver ali
com os milagres e as tentações. Mas, de tanto freqüentar os anjos, acaba-se
parecendo com eles. O que os homens do deserto perdem em humanidade
ganharão em angelismo, e compreende-se que os pintores bizantinos que
representarão estes homens do Egito nos afrescos dos mosteiros da
Capadócia ou da Grécia os tenham pintado sob este duplo aspecto de
selvagens c de anjos: rosto emagrecido, trajes esfarrapados, cabelos que caem
até os pés, mas também olhares perdidos na contemplação de uma outra
realidade, carne que quase não é mais carne. Todas as convenções da arte
bizantina terão como meta fazer dos grandes ascetas não criaturas
impassíveis, fantasmas ou ilusões, mas seres que já pertencem a uma outra
espécie de humanidade, a meio caminho do outro mundo. O deserto é o lugar
de uma experiência suprema, uma provação que conduz fatalmente o homem
para além de si mesmo, rumo ao Anjo ou à Besta, rumo ao Diabo ou a Deus.
Orígenes — que dirigiu por muito tempo a célebre Didascália de
Alexandria e foi um dos espíritos mais eminentes do século III —

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Padres do Deserto
serpentes "com rostos de centelha, fogo na face e fogo no olho", o senhor do
cetro, o que está no país, o falcão macho e o falcão fêmea. De cada lado da
margem, assistindo à passagem do cortejo divino, aparece uma multidão de
criaturas: numa das margens, estão todos aqueles que "criam o Oceano e
fazem a marcha do Nilo"; são, na ordem, três deuses, quatro mulheres, quatro
* Qrictéropo: gênero de mamíferos tubultdentados, com aparência geral de um
porco, mas dotado de uma boca em forma de tubo, por onde se alimenta de cupins e
formigas; é chamado na África do Sul aardvark ("porco da terra"). (N. do T.)

* * Cinocêfalo: nome grego que significa "cabeça de cão", aplicado a um gênero de


macacos cuja cabeça lembra a de um cão. (N. do T.)

múmias chifrudas e aladas, quatro nobres, um objeto de aparência estranha


(provavelmente uma haste de papiro), mas que é na realidade um ser vivo, já
que se chama aquele que é cheio de magia, um homem ajoelhado chamado
aquele que traz o despertar, Anúbis, um carneiro chamado o matador de seus
inimigos, um carregador e uma carrcgadora de olhos, o deus-orictéropo* Set e
um cinocéfalo** (na mitologia egípcia, os cinocéfalos abrem e fecham as
portas do Reino dos Mortos). Na outra margem se erguem aqueles que cortam
as almas e apnsionam as sombras. Dtstinguem-se o deus Órion, um deus
chamado o Ocidental, uma deusa que está sobre a c h a m a , cinco criaturas com
cabeça de pássaro carregando facas, mais oito Osíris e o deus-carneíro
Khnum. E isso se repete em cada uma das doze horas do Am-Duat! Além
disso, só mencionamos aqui os deuses e as criaturas mais aparentes, as que
estão nas margens do rio. Ao longe, nas trevas desse mundo estranho, o
brilho do deus-Sol ilumina de passagem, como um projetor varrendo a noite,
criaturas de pesadelo: mortos sepultados na areia, dos quais só a cabeça
emerge, serpentes montadas em patas tão altas quanto pernas-de-pau, o
dragão Apófis enroscado num penhasco que ele envolve com suas espirais,
homens estendidos na terra, decapitados ou manietados (os "inimigos" do
Sol), outras, enfim, que mal adivinhamos, sepultadas sob montículos de areia.

Essa imaginação funerária não era somente visual, mas sonora. Nesta
ou naquela hora do Am-Duat, os textos descrevem os ruídos múltiplos que
acompanham a passagem da barca divina: gritos de alegria dos mortos
enquanto o Sol atravessa sua "hora", gemidos e

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Padres do Deserto
ele apareceu fora daquele castelo àqueles que vinham até ele, e ficaram cheios de
assombro ao vê-lo num vigor maior do que jamais tivera. Não tinha nem
engordado pela ausência de exercício nem emagrecido por tantos jejuns e
combates sustentados contra os demônios. Tinha o mesmo rosto de antes, a
mesma tranqüilidade de espírito e o humor agradável. Não estava nem abatido de
tristeza nem numa excessiva alegria. Seu rosto não era nem demasiado jovial
nem demasiado severo. Não dava mostra nem de desagrado de se ver rodeado de
tamanha multidão nem de satisfação de ser saudado e reverenciado por tanta
gente. Era de uma perfeita igualdade de alma, num estado conforme à natureza.

Ele forma então seus primeiros discípulos, que decidem renunciar ao mundo
e se agrupar em torno dele. Desta época — que podemos situar aproximadamente
em 305 — data a fundação da primeira comunidade cristã no Egito. Ainda não é
um mosteiro, mas, no máximo, uma laura, um agrupamento de anacoretas,
submetidos a uma ascese e a um modo de vida relativamente livres. Esta primeira
comunidade, Antão a estabelecerá às margens do Nilo, não longe da fortaleza de
Pispir, perto da atual aldeia de Deir-el-Maimum.
A reputação de Antão, nesta data, já é enorme no Egito. Ela atinge todas
as camadas da população e não mais apenas um punhado de devotos e
admiradores. Uma multidão de pessoas aflui ao "mosteiro" de Pispir, deita-se
ao longo da entrada, na esperança de ver o asceta aparecer para lhes falar,
curá-las ou exorcizá-las. Já corre o boato de que basta se aproximar do
"mosteiro" de Antão para voltar de tá imediatamente curado. Mas Antão não
suporta nem a multidão, nem os milagres, nem a glória e decide partir de
novo para mais longe no deserto, "num lugar onde não fosse conhecido de
ninguém".

^      0 m

A última parte da vida de Antão, da idade de sessenta anos até sua


morte, apesar de alguns detalhes concretos, mal pertence à história humana.

Após ter deixado seus companheiros de Pispir, Antão se deteve às


margens do Nilo, sem saber muito para onde iria, quando, de repente, ouviu
uma voz celeste lhe dizer que se dirigisse "para o deserto interior". Naquele
exato momento, passavam beduínos; ele os

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Padres do Deserto
assava seu pão duas vezes por ano e fazia-o secar ao sol. Ninguém podia
entrar onde ele morava, mas ficava-se do lado de fora e ouvia -se sua
palavra".

E quando Antão morreu, no monte Colzum, aos cento e cinco anos de


idacle, o sinaxário acrescenta:
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"Viveu até a boa velhice sem que sua força diminuísse. Nenhum de
seus dentes caiu".

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Sinai, ainda que estivéssemos a mais de vinte léguas. O mar fica a oriente deste
mosteiro. Ás pontas do Sinai ficam a leste do mar. Avistamos algumas montanhas
do lado do ocidente com um pouco de mata, mas muito distante de lá, e todo o
conjunto do que podíamos vislumbrar era inteiramente árido e causticado.

É ali que Paulo de Tebas viverá durante cem anos. Cem anos de uma
existência quase milagrosa, ainda que são jerônimo, no que lhe diz respeito, ache
tudo muito natural:

A palmeira de que falei lhe fornecia tudo o que era necessário à sua alimentação e
à sua vestimenta, o que não deve ser visto como impossível, já que Jesus Cristo e
seus anjos são testemunhas de que, nesta parte do deserto que pertence às terras
dos sarracenos e se junta à Síria, tenho visto solitários dos quais um, recluso há
trinta anos numa caverna, só vivia de pão de cevada e de água lodosa, e um outro,
trancado numa velha cisterna, vivia de cinco figos por dia.

Paulo de Tebas viverá decerto com menos que isso. Levará nesta gruta
uma existência angélica que o universo teria ignorado se, pouco antes de sua
morte, Deus não tivesse avisado Antão da existência de Paulo. Antão tinha já
noventa anos, mas decidiu imediatamente pôr-se a caminho, à procura dele.
A partir deste episódio, a Vida de Paulo de Tebas torna-se uma espécie de
sonho acordado em pleno deserto.

Para começar, onde vive Paulo de Tebas? Antão não sabe e parte às
cegas. Mas às cegas, quando alguém se chama Antão e vive no deserto, quer
dizer o olho de Deus. A Providência guarda o caminho do asceta e nele
coloca estranhas balizas:

Ao despontar o dia, santo Antão começou a caminhar sem saber aonde ia e o sol,
chegado o meio-dia, já tinha escaldado o ar de tal sorte que parecia todo inflamado
quando ele viu uma criatura que tinha em parte o corpo de um cavalo e era como
aquelas que os poetas chamam Hípocentauros. Tão logo o vislumbrou, Antão ar-
mou sua fronte com o sinal salutar da cruz e lhe gritou: "Olá! Em que lugar da
terra mora aqui o servo de Deus?" O monstro, então, murmurando não sei o que
de bárbaro e entrecortando suas palavras mais do que proferindo-as distintamente,
esforçou-se por fazer sair uma voz doce de seus lábios eriçados de pêlos e,
estendendo a mão direita, lhe mostrou o caminho tão desejado. Depois, dissipou-se
diante dos olhos daquele a quem tinha enchido de espanto. Quanto

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A Vida de Pacômio chegou até nós num grande número de versões


escritas nos diferentes dialetos coptas: boháirico e menfitico (Delta e Baixo
Egito), akhmínico e sub-akhmínico (no Médio Egito) e sahídico (no Alto
Egito). Estas Vidas apresentam entre si certo número de variantes, mas todas
concordam no essencial: os principais episódios da infância de Pacômio e sua
regra são, em todas elas, os mesmos. Por eles, podemos reconstituir com
bases históricas bastante seguras a espantosa existência do primeiro dos
monges.

Pacômio nasceu em 286 na aldeia de Esneh (atualmente Isna), no Alto


Egito, a uns cinqüenta quilômetros de Tebas. Ao contrário de Antão, teve
uma infância paga. Mas, como não se poderia admitir que um futuro santo
pudesse, mesmo inconscientemente, adorar os ídolos, sua Vida toma o
cuidado de assinalar que ele só os adorava na aparência. Vomitava a cada
vez o vinho dos sacrifícios, seu estômago se recusava a ingurgitar alimentos
oferecidos aos ídolos. Antão, aos vinte anos, teve a revelação de uma vida
consagrada a Deus. Em Pacômio, o fenômeno é invertido: ele é consagrado a
Deus sem ao menos saber disso. Inversão que se opera até nos detalhes mais
concretos: Antão ouvia o chamado de Jesus; Pacômio, ao penetrar num
templo pagão, aos oito anos de idade, não ouve voz alguma; ao contrário, são
os ídolos que param de falar ou de profetizar. A vocação de Pacômio é essa
voz paga que se cala em sua presença.
Em nada surpreso com tantos prodígios, Pacômio continua a crescer:
aos vinte anos, é alistado à força no exército romano e parte um belo dia para
a guarnição, em Antinoé. Lá, pela primeira vez, fica sabendo que existem no
mundo seres chamados cristãos, que se devotam voluntariamente aos outros
e se deixam martirizar, em vez de renegar sua fé. Tocado por sua
generosidade e sua gentileza, Pacômio os freqüenta assiduamente e decide,
nesta época, consagrar-se ao Deus dos cristãos.

Assim que foi dispensado, dois ou três anos mais tarde, ele regressou
ao sul e chegou um belo dia a Sheneset (em grego Khenobóskion),

aldeia deserta e causticada pela intensidade do calor. Então, pôs-se a considerar


aquele lugar: não tinha muitos habitantes, apenas alguns. Foi até o rio, num
pequeno templo chamado pelos antigos Psampisarapis (lugar de Sarápis), pôs-se de
pé, orou, e o espírito de
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Padres do Deserto
oração ali... Como se prolongasse na oração, uma voz lhe veio do céu e lhe disse:
"Pacômio, instala-te aqui e constrói tua morada. Uma multidão de homens virá a
ti, e isso lhes beneficiará a alma".

Nas versões posteriores, o episódio é mais preciso ainda: um anjo aparece a


Pacômio, lhe dá suas instruções e lhe entrega, numa tabuleta de bronze, a Regra de
seus futuros mosteiros.

Este deserto da Revelação — como poderíamos chamá-lo — situava-se perto


da aldeia de Tabenesi, na margem ocidental do Nilo, nas proximidades da antiga
cidade de Denderah. Foi lá que Pacômio se instalou para obedecer às instruções
angélicas. É lá que ele fundará, algum tempo depois, seu primeiro mosteiro.

Esse episódio do anjo ilustra de maneira direta as observações feitas no


início do capítulo precedente. Cada vez que uma descoberta ou uma
iniciativa humana teve grandes conseqüências para os homens, eles
tenderam imediatamente a atribuir-lhe a paternidade a um deus, a um anjo
ou a um herói. Aos casos já mencionados (escrita, fogo. linguagem)
acrescentemos aqui o das leis. A origem das leis foi quase sempre atribuída a
deuses, e esta tendência se encontra nas tradições hebraica e cristã. Nelas, os
Dez Mandamentos e a Regra de Pacômio são de inspiração divina. Moisés,
no cume do Sinai, e Pacômio, no coração do deserto de Tabenesi, recebem
das mãos de Deus ou do anjo as tábuas de pedra ou de bronze contendo a Lei
sob a qual os homens deverão viver. No caso de Pacômio, a influência é tanto
mais nítida quanto o episódio do anjo é justamente tardio. Foi inventado
numa época em que os mosteiros pacomianos se haviam multiplicado ao
longo do Nilo, em que Pacômio, tão venerado quanto os maiores fundadores,
tinha se tornado o Moisés dos copias. Rapidamente, a lenda ratificou — pelo
episódio da Tábua do anjo — esse destino paralelo dos dois homens. De toda
maneira, o fato essencial é que, num dado momento de sua vida, Pacômio
teve a revelação — ou a idéia — de sua vocação: arrastar os homens para fora
do mundo por seu exemplo, agrupá-los em torno de si, instituir no deserto
comunidades que repousariam em regras e princípios absolutamente novos.
Eis o âmago do problema, a prodigiosa originalidade da empresa pacomiana:
fundar uma sociedade de homens "partindo de novo do zero", organizar a
vida deles e suas relações segundo um sistema origi

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Padres do Deserto
de salvação, como uma sorte de ascese aníiartísüca na qual a recusa da beleza
teria o mesmo papel que a recusa do corpo na ascese física?

*m

A partir da fundação do primeiro mosteiro de Tabenesi até sua morte,


ocorrida, em 348, durante uma epidemia de peste, Pacômio se consagrou por
inteiro à organização da vida cenobítica. Empregamos aqui de propósito o
termo cenobítico. O cenobita (do latim coenobium: "comunidade"*) designava
na época todo homem que vivia em comunidade, ao passo que monge ainda
tinha o sentido de homem que vivia só. Com o tempo, o termo monge passou
a designar também todo homem que vivia em comunidade c tornou-se
sinônimo de cenobita. Mas no tempo de Antão e Pacômio a distinção ainda
era muito nítida entre estes dois modos de vida. O termo mosteiro, que os
tradutores das Vidas de Antão e Pacômio empregam quase sempre, não deve
nos iludir: ele designa, no mais das vezes, uma gruta ou uma simples cabana
de gravetos onde vive um solitário. Dito isso, e para a comodidade da
linguagem, nós empregaremos sempre aqui o termo mosteiro em seu sentido
corrente de edifício onde monges vivem em comunidade.
Até sua morte, portanto, Pacômio cumpriu sua obra cenobítica e fundou
nove mosteiros. Todos se situavam entre Tebas, ao sul, e Akhmin, ao norte,
* Na verdade, o termo latino coenobium, apresentado pelo autor, é de origem grega,
formado de hoine ("comum") + bios ("vida"), "vida comum". (N. do T.)
tendo como centro a região de Khenobóskion e Tabenesi, onde Pacômio
fizera suas primeiras experiências. Depois dos de Tabenesi e de Pabau,
fundou sucessivamente os mosteiros de Sheneset (que é o nome copta de
Khenobóskion, já citado), de Tmusus (também chamado Moncoso), próximo
do precedente, na margem esquerda do Nilo, e depois, mais ao norte, os de
Tbeu e de Tesmine, perto de Akhmin, enfim, bem mais ao sul, nas cercanias
de Tebas, o de Fnenum. Também fundou, perto de Pabau e de Tesmine, dois
mosteiros de mulheres. Se situarmos por volta de 318 a construção do
primeiro mosteiro, veremos que durante trinta anos Pacômio viveu uma
existência puramente cenobítica. A experiência da solidão, dos túmulos e dos
anjos estava encerrada. A seus olhos, era possível doravante ser um asceta
vivendo no seio de uma comunidade.
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Padres do Deserto
monges usarem um capuz bastante amplo para que cada um pudesse cobrir com ele
o seu prato e comer ao abrigo dos olhares indiscretos, sem ele mesmo saber o que
seu vizinho fazia. Assim, durante as refeições comuns, todos os capuzes baixados se
tornavam, no sentido próprio como no figurado, um testemunho de humildade!

Aliás, como regra geral, Pacômio não gostava dos jejuns demasiado freqüentes
ou exagerados. Num domínio em que é tão delicado traçar a fronteira entre o
orgulho e a humildade, o próprio fato de recusar um bocado de pão ganhava um
sentido equivocado: era por orgulho ou por ascese? E Pacômio chegou logo a exigir
que cada monge comesse em cada refeição "quatro ou cinco bocados de pão para
evitar a vaidade".
No trabalho, a ascese também era regulamentada. A cada monge cabia
trabalhar e fazer, além dos trabalhos de sua casa, uma esteira de juncos
trançados por dia, que ele depositava diante da porta de sua cela. Um dia,
por vaidade, um monge depositou duas. Diante disso, Pacômio trancou-o
cinco meses em sua cela, obrigando-o a fazer duas esteiras por dia.

Obviamente, essas reprimendas sobre a alimentação, o sono, o trabalho


eram só um meio destinado a facilitar a ascese mental do monge, permitir-lhe
dominar sobretudo o homem interior, "matar o homem mundano", segundo a
expressão de um anacoreta. A essas repreensões físicas correspondiam,
portanto, repreensões de outro gênero destinadas a matar a sensibilidade, as
reações afetivas, a individualidade do monge. Por exemplo, o riso era
formalmente proscrito e o silêncio era de regra durante a refeição, no trabalho
e ao longo de todo o dia. "Aprende a calar" era uma das regras essenciais das
comunidades pacomianas. Mas ninguém estava "ao abrigo da língua", de
uma palavra deslocada, de uma frase infeliz e que traía preocupações
profanas. Um dia, Teodoro, o principal discípulo de Pacômio, avistou um
monge que retornava de viagem. "De onde vens?", perguntou-lhe. Pacômio
estava presente. Disse a Teodoro: "Teodoro, apressa-te em controlar teu
coração. Habitua-te a nunca perguntar a alguém de onde vens? ou aonde vais?,
a não ser para saber aonde vai sua alma".

O temperamento dos monges coptas evidentemente se dobrava bem mal


àquela disciplina de ferro. As querelas, as disputas, as lutas

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Os atletas do exílio

No entanto, no mesmo momento em que os antigos "resistentes da era


das perseguições descobrem as delícias da colaboração com o poder, eis que
um movimento inverso leva para os desertos e a vida ascética um grande
número de cristãos de todas as condições: camponeses, primeiro, e foras-da-
lei, escravos, pequenos artesãos, depois cidadãos ricos, "gente do mundo" e
mesmo altos dignitários do Império. Em outros termos, ao passo que uma
1. Louis Bouyer, UAscèse chrètienne et le Monde contemporain (Ed. du Cerf).

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parte da Igreja tem acesso à história, uma outra parte recusa-a violentamente,
refugiando-se na vida atemporal do deserto. Não se trata aí de uma simples
coincidência. Entre estas duas ordens de fato, há uma relação de causa e
eleito, ressaltada por todos os historiadores — de Ferdinand Lot a Louis
Bouyer. "A Igreja, imensamente ampliada", escreve Ferdinand Lot em La Fin
du monde anüque, "não pode mais permanecer na sociedade dos puros, dos
santos que esperam o fim dos tempos. Identificada ou quase com o 'mundo1,
a Igreja sofre profundamente a influência degradante da vida. Para escapar
dela, uma única via de recurso: viver fora do mundo, artificialmente,
buscando o deserto ou a solidão, enclausurando-se sozinho ou coletivamente.
Não é por puro acaso que o ascetismo eremítico e depois monacal surge no
Oriente no momento mesmo do triunfo da Igreja." Porque o monaquismo é
justamente, como escreve por sua vez Louis Bouyer, "a reação instintiva do
sentimento cristão contra uma falaciosa reconciliação com o presente que a
conversão imperial podia parecer justificar", reação a qual é preciso, para
compreendê-la, "situar no contexto da Igreja constantiniana fazendo a paz
com o mundo"1. Por quê? Porque, antes da conversão do imperador
Constantino, permanecer cristão significava arriscar-se a perder tudo: a vida,
os bens, o emprego. Após a conversão, será possível permanecer cristão
conservando tudo. A fuga para o deserto é, então, uma resposta àquela
sedução nova, à tentação do mundo, do poder e do temporal.
Na perspectiva deste livro, esse fenômeno ganha também um outro
sentido: o fim das perseguições significa, para a sociedade cristã, o fim do
modelo ideal que era o santo-mártir. A necessidade de um novo "modelo" se
faz sentir; através dele aquela sociedade poderá perseguir seu sonho anti-
social. Pois o fim da clandestinidade e o

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OS atletas do exílio

E compreende-se também por que tantos escravos buscarão asilo nos


mosteiros e terminarão, eles também, como monges ou eremitas. A tal ponto
que essa fuga para o deserto provocará graves distúrbios sociais e a Igreja terá
de reagir desde o século IV O concilio de Gangres, por exemplo (que ocorreu
em 342), excomungou o bispo Eustátio e seus discípulos por terem
aconselhado aos escravos que abandonassem seu amo e se tornassem ascetas.
Bem depressa, aliás, como era de se esperar, a Igreja tomará a defesa da
ordem social e dos interesses dos amos e dos poderosos. "Nós não
permitiremos jamais", diz um Cânon dos santos Apóstolos do século IV,
"coisa semelhante que cause mágoa aos amos aos quais pertencem os escravos e
que semeia o distúrbio nos lares..." Mais tarde, um edito do imperador
Valente chega a ordenar que "sejam trazidos à força os escravos que se
escondem entre os monges". Estas disposições acabaram por influenciar a
própria hagiografia, já que um santo do século IV, Teodoro, "tinha o poder
milagroso de prender os escravos com laços invisíveis que tornavam toda

1 . Anne Hadjinicolaou, Recherches sur la vie des esdaves dans le monde byzanún
(Institui Français d'Athènes), 1950.

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fuga impossível. Se, apesar dessa precaução, o amo perdia seu escravo, tinha
a possibilidade de vir dormir à noite no túmulo do santo. Esse mostrava em
sonho o lugar onde o escravo se refugiara. Parece bem claro que são Teodoro
preferia os amos aos escravos"1.

Assim, por ter suscitado o modelo do santo-anacoreta, atleta do exílio e


novo mártir do deserto, empreendido e desenvolvido ao longo do Nilo as
prodigiosas "sociedades artificiais" que foram os mosteiros pacomianos, o
Egito se tornará bem depressa, a partir do início do século IV, uma "segunda
Terra Santa" onde "o igualitarismo cristão, apoiado nos textos do Novo
Testamento, a idéia da Cidade celeste e

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OS atletas do exílio

Vimos também no Egito muitos outros solitários. Que poderíamos dizer desses
homens admiráveis e dessa multidão infinita que estão nos arredores de Siena, na
Alta Tebaida, cuja virtude pode passar por incrível tanto ela se elevou acima da
condição dos homens? Pois ainda hoje eles ressuscitam os mortos e caminham
sobre as águas como são Pedro...

O fato de estes mosteiros serem longínquos parece ter contribuído


muito para sua lenda. Os desertos do Alto Egito, praticamente inacessíveis
aos viajantes, passavam por conter anacoretas mais prodigiosos ainda que os
das outras regiões do pais, e os relatos que começarão a circular sobre os
ascetas, a partir do século V, estão entre os mais arrebatadores da literatura
copta. O anacoreta se torna, nesses textos, um personagem quase não-
humano, que vive no mais das vezes em meio aos animais e foge até do
"cheiro de homem".

Um desses textos, descoberto e traduzido por Robert Amelineau, intitula-se A


viagem de um monge egípcio no deserto, e podemos considerá-lo o modelo do gênero:

Havia um anacoreta cujo nome era Pafnúcio. Falava com os padres que amavam a
Deus e eis o que lhes disse: "Sou Pafnúcio e, um dia, concebi no coração o desejo de
ir às profundezas do deserto para ver se havia ali algum monge. Caminhei durante
quatro dias e quatro noites sem comer nem beber. No quarto dia, cheguei a uma
caverna e, antes de penetrar nela, bati à porta, segundo o costume dos irmãos, para
que o irmão saísse e eu o pudesse abraçar. Esperei. Bati à porta até o meio da noite:
ninguém respondeu".

(Cena típica da vida no deserto. Era um hábito muito freqüente dos


anacoretas: não abrir aos visitantes nem aos discípulos, mas deixá-los bater o
máximo de tempo possível, para experimentar sua perseverância. Alguns
textos falam de discípulos batendo dois ou três dias seguidos!)

Eu disse em meu coração: "Talvez não haja nenhum irmão neste lugar". Entrei na
caverna gritando: "Abençoa-me, meu pai!" Quando entrei, olhei ao meu redor: vi
um irmão sentado, guardando silêncio. Estendi a mão imediatamente, peguei seu
braço. Ele se esfarelou em minha mão. Apalpei todo o seu corpo e vi que ele
permanecera assim desde que morrera. Olhei ao meu redor, vi um manto. Quando
o apanhei, ele também se desfez em pó. Eu então

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os atletas do exílio

milagrosamente transportada para o coração das areias, com seus tanques,


seus bosques, seus outeiros e seus lavradores.

Muito diferentes, porém, eram aqueles famosos desertos da Tebaida,


que os jansenistas transformaram num oásis de paz e de meditação. No
sentido estrito do termo, a Tebaida era a região circunvizinha de Tebas no
Alto Egito (a mesma em que se estabeleceram os primeiros mosteiros
pacomianos), mas, de fato, todos os autores do século IV e os viajantes
posteriores chamaram de Tebaida as soledades que beiram o Nilo desde
Mênfis até Siena, isto é, todo o Médio e o Alto Egito. Para não confundir
ainda mais uma geografia já demasiado incerta, é este sentido amplo que
conservaremos.

Que eram, pois, esses desertos do Médio e do Alto Egito nos quais
tantos anacoretas se instalarão a panir do século IV? Extensões de pedra,
onde só brotavam algumas palmeiras e um pouco de grama, onde os pontos
de água eram raros; extensões entrecortadas de outeiros ou de colinas a cujos
pés os ascetas eclificarão cabanas com galhos, cavarão simples buracos para
se abrigarem do sol lá onde não existiam túmulos subterrâneos abandonados.
Os que se estabelecerão perto do Nilo viverão como trogloditas nos grandes
rochedos e escarpas que pendem sobre o rio, em grutas que o viajante pode
ver ainda hoje. Escreve Maillet, um viajante do século XVIII:

A começar do castelo do Cairo e até o Alto Egito, milhares e milhares de celas


talhadas na pedra se vêem nos lugares mais inacessíveis. Os santos anacoretas só
chegavam a estas grutas por trilhas muito estreitas, freqüentemente interrompidas
por precipícios que eles atravessam com pequenas pontes de madeira que, retiradas
de seu lado, tornavam inacessível a abordagem de seu refúgio. Ali está o que se
chama a Tebaida, outrora famosa pelo número prodigioso de eremitas que ela
abrigou. Avistam-se muitas dessas grutas e cavernas a partir dos barcos que
navegam pelo Nilo. Havia algumas de onde, com longas cordas, se hauria água do
mesmo Nilo, quando ele estava em sua altura, vindo o rio então flutuar ao pé dos
rochedos escarpados...
Aliás, estas grutas não são unicamente o que se tem chamado Tebaida. Há também
aquelas montanhas desertas e incultas que se estendem rumo ao mar Vermelho
com três ou quatro jornadas de marcha e que são, propriamente, os desertos da
Tebaida. tão célebres na história eclesiástica dos primeiros séculos. É lá que, entre

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Os atletas do exílio

com uma esponja e da lavagem das panelas"1. Episódio bastante freqüente na


vida dos santos a partir do século IV, sobretudo na Síria. Há aí uma espécie
de ascese última no sentido de que, ao castigar seu próprio corpo, visa-se de
fato a castigar seu ser social, a excluir-se da sociedade, permanecendo no seio
da sociedade mesma, o que o anacoreta. evidentemente, não pode fazer. Eis por
que, nos séculos seguintes, quando este tema atingir sua precisão, ele situará
os "santos simuladores", como poderíamos chamá-los, não mais no deserto
nem mesmo nos mosteiros, mas em plena cidade (como Marcos o Louco, em
Alexandria, ou Simeão Slos, em Antioquia) ou mesmo no seio da própria
família (como santo Aleixo).

m      %t m

Os anacoretas disseminados nas grutas situadas ao longo do Nilo


permaneceram anônimos por mais tempo. Em razão primeiramente de seu
afastamento — alguns se retiravam em locais inacessíveis ou em túmulos
subterrâneos — e porque, no mais das vezes, esses anacoretas preferiam fugir
dos visitantes a ter de recebê-los. É um fenômeno bastante lógico, e os
maiores anacoretas não são necessariamente os mais conhecidos. E mesmo
certo que em meio àquela multidão de ascetas dos desertos do Egito tenha
havido alguns que atingiram uma perfeição suficiente para, de certa forma,
"fechar o círculo", isto é , renunciar à própria santidade2. Quanto aos outros,
ou seja, aqueles cujo nome e cujas proezas ascéticas chegaram até nós, é óbvio
que os mais famosos não foram necessariamente os mais santos. O clima
espiritual bem particular do Oriente cristão no século IV conduziu certos
anacoretas a uma espécie de exagero ascético, a uma ostentação
desconsiderada de mortificações e de macerações, onde o rigor e a
sinceridade nem sempre estavam no comando. Mas, por outro lado, há que se
dizer que é muito difícil julgar, a vinte séculos de distância, a experiência de
homens que viveram quarenta ou cinqüenta anos na solidão. Assim, que o
leitor não se engane. Em todos os exemplos que

1. Não tentei repetir essa experiência.


1. Faremos uma descrição dessas anacoreses um pouco mais adiante, a
propósito da vida de Macário o Antigo.

2 . 111

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os atletas do exílio

nos campos egípcios, já que Ruíino fala, em torno de Hermópolis Magna, de

nove ou dez burgos cheios de pagãos onde os demônios eram adorados com
superstições ímpias e uma paixão estranha [trata-se decerto de um culto de
Díoniso-Osíris], pois tinham um templo de maravilhosas dimensões, no meio do
qual havia um ídolo que os sacerdotes — acompanhados de todo o povo —
apanhavam e levavam em torno destes burgos à maneira das bacantes e
celebravam cerimônias sacrílegas para obter a chuva do céu.

De fato, o "milagre" realizado por Apoio é só um episódio da luta cada


vez mais violenta que oporá, na segunda metade do século IV, os cristãos aos
pagãos. Uma geração mais tarde — quando o paganismo for oficialmente
proibido em todo o Império —, veremos monges cristãos, comandados por
Canúcio ou Macário de Thu, pilhar os templos pagãos, incendiá-los, quebrar
os ídolos e, às vezes, massacrar na mesma ocasião o pessoal do templo. No
tempo de Apoio, na falta de poder usar de tais violências, os cristãos se
contentam em massacrar os pagãos ou "neutralizá-los" simbolicamente, mas o
"milagre" aqui parece-se demais com o que será, em seguida, a história real,
para não ser pura e simplesmente senão a expressão literária dos desejos in-
conscientes dos cristãos. Sem forçar demais a análise desse "milagre"
aretológico, ressaltemos que se trata nitidamente de um milagre "solar"
(multidões de pagãos imobilizados e queimados pelo sol) que foi talvez
atribuído a santo Apoio em razão de sua homonímia com o antigo deus solar
dos gregos.

Um pouco mais ao norte, perto de Heracleópolis, vivia certo Pafnúcio


cuja vida era tão santa, escreve Rufino, "que olhavam para ele menos como um
homem que como um anjo". Mas... atenção! Aqui de novo as aparências
enganam. Um anjo, Pafnúcio? Pode até ser. Após anos de permanência no
deserto, ele mal havia se elevado na escala das virtudes acima de certo
músico de Heracleópolis (como lhe revela um anjo — este sim, verdadeiro —
a quem ele cometera a imprudência de fazer a pergunta). E Pafnúcio redobra
seus jejuns e suas orações. "Em que ponto estou agora?", pergunta ele ao anjo
alguns anos depois. "Como aquele fulano da aldeia mais próxima", responde
o anjo. E Pafnúcio, de novo, redobra seus jejuns e suas orações. Pergunta uma
terceira vez ao anjo: "Em que ponto estou agora?" "Como aquele

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Padres do Deserto
ditou ver, conforme sua imaginação, restos de gigantes mumificados ou
grandes veleiros petrificados no fundo dos mares.
"Encontram-se ali", escreve Coppin, "pedaços de ossos humanos que
mudaram sua natureza para a das rochas. Eles nada têm de reconhecível
além da forma, mas a quantidade em que se encontram não deixa dúvidas de
que tenham sido ossos verdadeiros."

Um século depois dele, Maillet percorreu por sua vez a região e


escreveu: "É na rota desse canal (o canal do Faium) que se achava o deserto
de são Macário c aquele vale chamado Baharbalaama, termo árabe que
significa mar sem água, porque o mar outrora encheu esse vale. Isso ainda se
reconhece pela quantidade de embarcações que encontramos petrificadas
com seus mastros e que, provavelmente, tinham naufragado ali no tempo em
que a superfície do mar cobria com suas águas o golfo. Conserva outra prova
incontestável dessa origem
nas conchas marinhas de que suas margens pedregosas estão carregadas. É
no meio desse deserto horrível e estéril que se encontra ainda
hoje o mosteiro de são Zacarias e dois ou três outros habitados por alguns
religiosos coptas. É a esse pequeno número que estão reduzidos hoje aqueles
mosteiros famosos que povoaram aquelas soledades no tempo em que o
Egito era cristão"1.
Ossadas humanas, barcos naufragados... Os viajantes dos séculos XVII
e XVIII tinham a imaginação assombrada pelos desastres humanos. Rufino,
que percorreu esses desertos no século IV, na época em que os anacoretas
começavam a se multiplicar ali, interpretou de modo bem diferente a
estranha atmosfera do lugar:

Viemos em seguida para a Nítria, que é afastada de Alexandria cerca de


quarenta milhas e que é o lugar mais célebre de todos os lugares monásticos
do Egito. Tira seu nome de um burgo que é bem próximo, onde há grande
abundância de salitre, e creio que a Providência divina assim o permitiu,
pois ali seria preciso um dia lavar os pecados dos homens tal como nos
servimos do salitre para lavar as manchas das roupas.
1 . Maillet, Description de VEçypte ( 1 7 3 5 ) .

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liis-nos de volta à nossa atmosfera familiar, a do século IV, onde a
necessidade de símbolo é tão grande que o próprio salitre se torna
"aretológico" e sinônimo de princípio purificador.

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os pecados dos outros. Eu os ponho à frente para só olhar para eles." E os
anacoretas mudaram de assunto.

m * #

Na extremidade oriental do Wadi-an-Natrun, a uns quinze quilômetros


mais ao sul, o salitre desaparece pouco a pouco, o solo se faz menos duro.
Deixa-se cavar mais facilmente, de modo que numerosos ascetas ali cavaram
buracos — cobertos com ramos de palmeiras ou com juncos, para se
protegerem do sol — ou se instalaram debaixo da terra, em cavidades tão
estreitas que mal era possível se mexer lá dentro. Era o famoso deserto das
Celas (em grego: feeiíia), onde Paládio passou três anos como discípulo de
Macário o Jovem. Escreve ele:

Em meio àquelas celas, algumas não tinham qualquer abertura, salvo um buraco
para se escorregar dentro, pois se situavam no deserto interior, onde não se
admitiam visitantes. Era nessas que Macário morava durante a Quarentena. Eram
cavernas escuras situadas sob a terra, como tocas de hienas, e eram tão estreitas
que nem mesmo era possível estender os pés.

É nesse reduto que Macário o Jovem (assim chamado para distingui-lo


de seu homônimo Macário o Antigo) vinha mortificar-se todo ano durante
quarenta dias, por ocasião da Quaresma. Em seguida, ele regressava para
uma das outras celas, mais espaçosas, que possuía no deserto e onde recebia
os peregrinos que vinham vê-lo de todos os cantos do mundo romano.

Ao contrário dos outros anacoretas, que pareciam no mais das vezes


feras de formas humanas, esse Macário era

pequeno, muito fraco e muito delicado. Só tinha barba nos lábios e muito pouco no
de cima, pois suas extremas austeridades impediam que ela lhe crescesse no queixo.

Extremas austeridades, diz Paládio. Perguntamo-nos se o termo


extremas não é um eufemismo quando se sabe, por exemplo, que, para vencer
o sono, Macário passou vinte dias e vinte noites ao ar livre, em pleno deserto,
queimado de dia pelo sol, transido de frio à noite, a tal ponto que, ao cabo
desses vinte dias,

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inipondo-se privações excessivas, e tornar-se igualmente presa dos demônios.
Algumas regras ascéticas tornaram-se, portanto, necessárias. As regras — e
esse é seu papel — concretizam e tranqüilizam. Elas dizem ao asceta o que é
bom e o que é mau e, se ele as respeita, fica mais seguro, no seio desse
universo ambíguo por onde avança um pouco como um cego, de estar no
caminho certo, que leva aos anjos e ao céu.

Foi evidentemente acerca do alimento e dos jejuns que tais regras


primeiro se estabeleceram. Sabemos por Cassiano que a maioria dos
anacoretas se impunham, por exemplo, só comer sete azeitonas por dia. Pois
é preciso saber muito bem, mesmo e sobretudo a propósito de um número de
azeitonas, onde começa e onde termina o pecado. Assim, o asceta estabelece:
se comer seis azeitonas em vez de sete, é um pecado de orgulho e, se comer
oito, um pecado de gula.

Conceder ao alimento tamanha importância simbólica poderá parecer


exagerado, mas não levar isso em conta seria ignorar o papel essencial que ele
tem desempenhado na maioria das religiões c das sociedades como símbolo
dos estados espirituais, das relações sociais e até das experiências místicas
1 . Richards, Hunger and Work.
mais elevadas. Este símbolo é lido claramente nas religiões primitivas ou
antigas, mas o cristianismo está longe de tê-lo ignorado. Quando o etnólogo
inglês Richards escreve, por exemplo, que, nas sociedades arcaicas, "o
alimento é a fonte das emoções mais intensas, ele fornece a base de algumas
das noções mais abstratas e das metáforas do pensamento religioso... Para o
primitivo, o alimento pode tornar-se o símbolo das experiências espirituais
mais elevadas, a expressão de relações sociais essenciais..."1, ele coloca uma
evidência e um princípio válidos também para os ascetas dos desertos do
Egito. O pão, para o asceta, podia passar como o "reflexo" da alma. e
encontramos uma ilustração impressionante disso nesse episódio da vida de
um anacoreta que João do Egito contou a Paládio. Esse anacoreta era de fato
tão perfeito que Deus o havia desobrigado

da preocupação que dizia respeito a seu alimento e lho fornecia por sua
Providência. Quando, impelido pela fome, ele entrava em sua caverna,
encontrava sempre sobre a mesa um pão de um gosto
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Um dia em que Macário estava em sua cela, olhou para a direita e viu. Eis que
um querubim de seis asas e olhos inumeráveis estava perto dele. E, quando apa
Macário começou a olhá-lo assim e a dizer: "Que é isso? Que é isso?", então, pelo
esplendor e pela claridade de sua glória, ele caiu sobre o rosto, o santo apa
Macário, e ficou como morto.

A sobriedade desse texto copta da Vida de Macário faz dessa passagem um


episódio quase único na literatura cristã do Egito. Nem as visões de Antão, que são
muito literárias e decerto inventadas por Atanásio, nem as de Pacômio, que em
grande parte são acréscimos tardios, têm este caráter conciso, direto, este acento de
surpreendente sinceridade. O homem suporta com dificuldade a visão dos anjos e
dos querubins, entendamos essa manifestação fulgurante de certos estados
interiores devidos aos jejuns e que o asceta não consegue crer que vêm do fundo de
si mesmo. Daí por que o medo, a angústia arrebatam o anacoreta diante da visão,
diante da voz daquela "coisa" que de repente se põe a "estar lá" e a falar.

Na noite seguinte, eis que todo o lugar se tornou luminoso como à hora do meio-
dia nos dias de verão, e apa Macário soube que era o querubim que voltava para
ele. A princípio, aquela Virtude ficou algum tempo sem lhe falar, para que ele não
se amedrontasse...

Depois, quando o asceta foi pouco a pouco se habituando ao brilho e à


presença do querubim, a "Virtude" o transportou em êxtase para o deserto de Skete
e lhe disse que ali se instalasse.

Macário parte para Skete, descobre os lugares como os havia visto com
o querubim, avista uma colina onde cava uma gruta, apanha juncos para
fazer um leito, cava um poço para sua água e se instala. Mas alguma coisa o
atormenta nesse deserto. Os demônios, primeiramente, que, cada vez que ele
se põe a orar, vêm "para cima de sua caverna como uma multidão de
cavaleiros que fingem travar combates uns contra os outros", enquanto outros
"ficam perto da porta e fazem bolas de fogo que lançam dentro da caverna,
onde explodem" (não é uma admirável descrição demoníaca da tempestade
no deserto?). E , depois, seus discípulos o atormentam, seus discípulos que já
afluem até e l e , aos quais

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*      * *
Quem quer que tivesse, àquela época, seguido Paládio e Rufino em sua
viagem ao deserto de Skete teria encontrado ali, junto com eles, homens singulares.
Uma espécie de teatro inaudito é encenado naqueles ermos, um teatro em que cada
um dá a impressão de interpretar com minúcia, pontualidade, fervor, um papel
eterno.

Eis no horizonte um anacoreta todo negro (havia negros, vindos da Núbia e


da Etiópia, que se tornavam anacoretas) e que caminha arrastando, amarrados às
suas costas, quatro indivíduos de aspecto suspeito. Não nos enganamos: é mesmo
Moisés o Etíope, ex-salteador, ex-bandido, ex-ladrão, que um dia se tornou eremita
e que pôs a serviço de Deus a mesma brutalidade que tinha antes aplicado a serviço
do Diabo. Esses indivíduos de aparência duvidosa que ele carrega às costas são
quatro antigos "colegas" de roubo e bandidagem que ele fez prisioneiros e arrasta
até a "igreja" de Skete para convertê-los ali. Sua Vida acrescenta que ele "converteu
assim até setenta e cinco ladrões, que se tornaram seus mais fervorosos discípulos".

Mas aqui está, para variar, um anacoreta que é todo doçura. Doce
demais mesmo: passa seus dias e suas noites atravessando o deserto a chorar.
Por que chora? Por si mesmo, pelo mundo? Não, diz Paládio, ele "chora pelo
pecado original e pelas [altas dos primeiros homens". É Bessarião, o eremita
errante, aquele que "nunca entra em qualquer morada habitada". Dorme cm
pleno deserto, onde realiza milagres que fazem sonhar: detém o curso do sol,
ressuscita os mortos (por engano, aliás, pensando que são simples doentes,
pois, senão, ele não ousaria nunca ressuscitar um morto, por modéstia),
atravessa o Nilo caminhando sobre a água e "sente a água até o tornozelo, mas
logo abaixo ela é sólida". A única vez de sua vida em que entrou numa aldeia,
Bessarião viu tantos pobres que deu seu manto ao primeiro, a metade de sua
túnica ao segundo, a outra metade a um terceiro, e se viu no meio da praça da
aldeia,

onde ficou totalmente nu e teve que correr a sentar-se sob um pórtico, cruzando os
joelhos e cobrindo-se com as mãos, sem que lhe restasse outra coisa além do
Evangelho debaixo do braço!

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O fim dos ídolos

Já no século III, Clemente de Alexandria escrevia em seu Proíréptico:

Aqueles que alimentam e guardam os macacos têm constatado com espanto que
esses animais não se deixam enganar por imagens de cera e de barro, ainda que
revestidas de roupas de donzela. Sereis vós então piores que os macacos ao
testemunhardes respeito por estátuas de pedra ou de madeira?

E acrescenta:

Como foi possível divinizar assim estátuas, objetos insensíveis? Não consigo
compreendê-lo e lastimo a loucura desses infelizes que por aí se extraviaram.
Certos animais não têm todos os seus sentidos, como os vermes e as lagartas,
outros são cegos ou enfermos, como as toupeiras e os musaranhos. E, no entanto,
esses animais diminuídos valem mais que estátuas estúpidas. A ostra não tem nem
visão, nem audição, nem voz, mas ela vive, cresce, sofre as influências da lua. As
estátuas, essas, são impotentes, inertes, insensíveis.

E um século mais larde santo Atanásio. o autor da Vicia de Antão,


escreverá, por seu turno, em seu tratado Contra os pagãos:

Alguns desceram tão baixo em seus pensamentos e obscureceram de tal modo seu
espírito que inventaram seres que absolutamente não existem e que não vemos na
criação para fazer deles deuses. Misturam os seres racionais com os seres sem
razão. Põem junto naturezas dessemelhantes e as honram como divindades, como
aqui esses deuses com cabeça de cão, com cabeça de serpente ou de asno...

9788515012787

1. Esse detalhe mostra, apesar de tudo, o caráter ambíguo da stasis exercida no


meio da multidão: ascese implacável ou exibicionismo?

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É, portanto, como se vê, a irracionalidade aparente dos cultos egípcios, essa
inconcebível união, na divindade, do humano e do animal

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