Você está na página 1de 36
rico a semelhancga do texto de partida, com diferentes palavras, de ma eee entidos: esmos S6bolos rios, s6bolas torrentes De Babildnia o Povo ali oprimido Cantava ausente, triste, e afligido Memérias de Sido, que tem presentes.” porém, da segunda estrofe em diante, Gregério de Matos nao $6 atua- lizao tema no contexto brasileiro como também recria o poema de CamGes, modificando-Ihe a forma: soneto, em versos decassilabos, outras rimas, fi- garas e até significados, alterando 0 modo de contar a desdita humana com o passar do tempo e as “mudancas” ocorridas. A personagem do poema narrativo 6 mulher, “um anjo” de “beleza”, que “chora (...) bens (...) ausentes” e, com cles, “odesengano”’: ‘Sébolas do Caipe aguas torrentes Um peito melancélico, e sentido Um anjo chora em cinzas reduzido Que sao bens reputados sobre ausentes.* Para que é mais idade, ou mais um ano, Em quem por privilégio, e natureza Nasceu flor, a quem um sol faz tanto dano? “ MATOs 'S. Gregério de, Op. cit, p. 411 e 412. * MATO: S: Greaério de. Op. cit, p. 412. Vossa prudéncia pois em tal dureza Nao sinta a dor, e tome o desengano Que um dia é etemidade de beleza. A recriagao que atualiza 0 poema camoniano as margens de To brag leiro, inclusive pelo emprego da palavra de vocabulério tupi, serve. 80, ¢6 indice de referéncia, do termo que descreve 0 Brasil: as margens dg Cap, estabelecem 0 cendrio do poema. Gregério emprega silogismo, através gy antiteses “beleza"/"cinzas”, “bens"/"flor’/“danos”, e paradoxos, como “Soi” pon, do-se a fazer “tanto dano” a “natureza”, portanto assumindo a postura estéticg do Barroco literario, com que remete ao texto camoniano, ao empregar iden, tico motivo e alterar 0 tema, pois que se refere a beleza da amada Associads ao passar do tempo. A chave de ouro, em paradoxo hiperbolico de tara beleza, refere-se ao tempo ea beleza da mulher amada: “Que um dia éeternidaiy de beleza”. Comprova a diferenga, embora 0 motivo prevaleca o mesmo nos dois textos. E, assim, comum 0 procedimento gregoriano que se da em referéncias intertextuais aos grandes mestres, no primeiro verso de um poema. Nao s6a Camées, mas a Gongora e Quevedo. A reescrita, principalmente dos versos camonianos, algumas vezes ocorre em versos completamente diferentes; em outras, em semelhancas tematicas e diferengas formais, através de versos, rimas, figuras que se diversificam, ou na completa reescrita, pela qual o novo texto apenas lembra a poesia do seu modelo. De diferentes modos, portanto, © texto atualizado - “hipotexto” - lembra o “hipertexto” como se 0 utilizass sempre na intencional referéncia, explicita ou nao, imitagao, pastiche, colagem % MATOS, Grogério do. Op. cit, p. 411, 412. | — as sempre buscada. Na poesia lirico-amorosa, Gregorio de Matos pe pli ficar varios tipos de intertextualidade, portanto. No goneto de que se transcreve a primeira estrofe, Gregério de Matos te a outro de Camées, imitando apenas o tema, pela figura da amada e . entido jdealizado, através da palavra-chave: “Angélica”, em completa st reescrita: Anjo no nome, Angélica na cara, Isto é ser flor, e anjo juntamente, Ser Angélica flor, e Anjo florente, Em quem, sendo em vos se uniformara? Quem veria uma flor, que a nao cortara De verde pé, de rama florescente? E quem um Anjo vira to luzente, Que por Deus, o nao idolatrara? Se como Anjo sois dos meus altares, Féreis o meu custédio, e minha guarda, Livrara eu de diabélicos azares. Mas vejo, que tao bela, e tao galharda, Posto que os Anjos nunca dao pesares, Sois Anjo, que me tenta, e nao me guarda.® O soneto foi escrito e oferecido para a noiva na Bahia, Maria dos Povos, * MAT 8, Gregério de. Op. cit., p. 406 > | quem denomina Angela. Remete ao famoso de Camées, de que se tansy ve, apenas para lembrar e para que se observem as diferencas, a Prime estrofe, de que 0 discurso amoroso do poeta brasileiro guarda o sent a idealizacdo da amada: Presenga bela, angélica figura, Em quem quanto o Céutinha nos tem dado; Gesto alegre, de rosas semeado, Entre as quais se esta rindoa Fermosura” Como se pode ver, 0 texto de Gregério de Matos remete ao de Camies em referéncia implicita, que se da através da palavra “angélica” e ao temacom © qual ambos constroem os sonetos. A referéncia fica s6 na palavra, no pr- meiro verso. O discurso de Gregorio re-escreve 0 outro, com diversos signifi- cados, no emprego das metéforas, no hiperbélico modo de expor as qualida- des da noiva, na atitude poética mais subjetiva que a de Camoes, principal- mente a partir do primeiro terceto, em que a antitese “anjo’/’ "diabélicos azares" bem demonstra outra visio de mundo que nao a de Camées. Lendo a chave de ouro, tem-se o sentido do amor (em paradoxo) sensual, que predomina em muitos dos demais poemas de Gregério. Os empréstimos da poesia lirico-amorosa de Camées “digeridos’ ™ criatividade por Gregério de Matos nao se detém aqui. Ainda se podesa" citar referéncias implicitas, como “Queridoa um tempo, agora desprezado", sonetod? Gregério que remetea “vivo de lembrancas, mouro de esquecido”,escrito por came ® CAMOES, Luis Vaz de. Op. cit., p. 127. «poces lembrangas da passada gidria”*, ou as alusoes dir etas, como a” Inés”, de das,” ea outro poema de Camées, A usta @S quais podem ser transformadas em soneto: Aquele nao sei qué, que Inés te assiste No gentil corpo, na graciosa face, Nao sei donde te nasce, ou nao te nasce, Nao sei, donde consiste, ou nao consiste...° O soneto recria o de Camées Busque Amor novas artes, n ovo enge- nho, que se completa com os seguintes versos: Que dias ha que na alma me tem posto Um nao sei qué, que nasce nao sei onde Vem nao sei como, e déindo sei por qué. Os versos de Camées, por sua vez, inspiraram Gregério ao romance, que contém: Lembra-me 0 rosto gentil, € ver eu no gentil rosto CAMOES, Luis Vaz de, Op. cit., p. 116. * i CAM. Contorme anteriormente citado, no poema encomidstico, em que o poeta registra com a marca « MATOS, Gregério de, Op. cit, p. 930. ‘i CAM ‘ MOES, Luis Vaz de, Op. cit, p. 112. — dido um nao sel qué, escon nao sei como.” que me matou, As vezes, ainda ha apropriagao de termos © expressdes que 56 sey, jor profundidade, tal como o Amor chamado de “go, ’Velan, ce, em na leitura em mai 93 i: 0 os quais lembram Camées di ” le Eu ca ntay go”, “fogo” que “passa brandamente amor tito: docemente™ e de: Amor € fogo quearde sem sever®, ainda quando sao at no sentido barroco da definicéo do sentimento, em divida dos poet, as, do periodo literdrio ao classico luso, conforme ja se viu. re. rei dp Sobre o discurso camoniano, Gregério parece ter mais inspiragig q 0 z 4 0 que nao recorre a essa fonte maior da . Poesia bra. émo soneto Alma minha gentil que te partiste n, 05 no modo de falar da morte e contém alguma iS que nos poemas liricos em sileira. Re-escreve assim tam textos que detém semelhanga referéncias explicitas. Alma ditosa, que na empirea corte Pisando estrelas vais de so! vestida, Alegres com te ver: fomos na vida, Tristes com te perder somos na morte.® ————— % MATOS, Gregorio de. Op. cit., p. 608. #8 MATOS, Gregorio de. Op. cit, p. 514. % CAMOES, Luis Vaz de. Op. cit., p. 107, % CAMOES, Luis Vaz de. Op. cit., p. 123. s MATOS, Gregério de. Op. cit., p. 410. Diz a didascalia ter sido 0 soneto escrito, oferecido au i =D. Victoria - cujo sentimento o poeta assume falando com a filha, que morrera. a 4 Hf a otexto original é um dos mais famosos sonetos ‘camoes NO Brasil, o qual teria sido escrito a a de a ‘eit estrofe somente: aP' da poesia lirico-amoro- mada Dinamene. Leia-se Alma minha gentil que te Partiste To ced desta vida, descontente, Repousa lé no Céu eternamente Eviva eu ca na terra sempre triste.” Nas demais estrofes, GregGrio faria referéncia ao texto camoniano ape- nasem: “tao cedo te partiste” (verso 9) e na expressao “a maior gloria te subiste”, que Jembra 0 verso camoniano “Se ld no assento etéreo, onde subiste’”™ realizan- do, portanto, a leitura criativa do modelo. H4, em Gregério, outro soneto construido a semelhanga desse, o qual remete ao texto de Camées, com maior sentimento de dor causado pela morte. O procedimento intertextual, ai, nao se faz por referéncias explicitas, apenas no sentido geral, que deixa implicito o dos versos camonianos. Dele, transcreve-se a primeira estrofe eo ultimo verso: Querido filho meu, ditoso esprito Que do corpo as prisées tens desatado, E por viver no Céu téo descansado Me deixaste na terra tao affito. eS) Se » CAMOES, Luis Vaz de. Op. cit., p. 116. “Idem, Verso 4, >» Eacabandoa flor, dure ainda 0 tronco. ee es, encontra-se a dramitica co do soneto de Camo ndiciy a chave de ouro contém a §j Coes ri Iho. A inspiracdo buscada em a 8 due ain ta cresce, parecendo ter main Mes ria, Na releitura humana de perder os mais queridos; resume a dor de um pai ao perder o fi explicita o que ja se afirmou antes: 0 poe tividade, ao fazer 0 “estranhamento” do grande modelo da poesia brasiy ira tio de Matos, como se pode ver, todo um sistem, a te. Existe, em Grego o qual estava, com ele e com os demais escrit Tito. ceptor da poesia camoniana, res brasileiros da época, sendo transformado, digerido e recriado. Gregg noe na 7 to ser acusado de plagio e cdpia dos textos de Camées. Revelam sey, is nao pode mais que imitacao. As dividas do Brasil 8 Liters. textos o gosto e a influéncia, tura Portuguesa tém o centro em Camées. 3.9 PLAGIO, HUMOR E DIFERENCA™ Gregério de Matos nao plagiou Camoes. Se, na lirica, j4 se encontram muito mais ocorrem na satira. A sAtira e a parédia identif- as diferengas, os ibéricos Géngora, Quevedo cam os poemas como reescritura dos model oe %® MATOS, Gregorio de. Op. cit., p. 1138. Vem acompanhado o soneto da seguinte didascdla, 2 parece explicar o sentido dramatico da enunciagao, a morte de seu filho: “Chora 0 poeta? vam flho seo, cujo pezar deo motivo a primeira obra sacra deste livro”. : capitulos sobre o tema, em que procedemos 20) ie tupi e 02s li 100 Em nossa tese de doutorado, ha varios da pelo poeta, do vocabulario de origem de personagens, da linguagem empregat africanas. _—_—— al 5. O estudo intertextual mostra o conjunto de diferengas, princi- oes: a”, ” : *. or no discurso do “outro”, que distancia os textos oriundos da lite- ; | ay jaimer ortuguesa na literatura do Brasil-Colénia. O humor é, entao, fo- ra P' satu! praves sil com tissement, carnavalizacao literaria. O poeta reconta a Historia do o humor descentralizador (déviant), que carnavaliza o discurso Braet ea escritura completamente descentralizada (déviante). O centro nao ce I pgeagal: é o Brasil e seus problemas. Gregorio de Matos ri desses : as e critica OS brasileiros: reconhece as faltas, inverte o caminho e tido da identidade nacional. lias mai problem: funda o sen! No discurso carnavalizador do poeta baiano, estabelece-se verdadeira “guerra”, com a palavra e pela palavra, a qual se volta contra 0 poder colo- nizador, contra as classes sociais mais altas, contra 0 clero e as autoridades maiores da col6nia. Incorpora a voz popular, advinda das “profundezas”, e desmonta o sistema estabelecido. Os textos fundam sentidos pela trans- gressao significativa, criando simbolos e imagens de recusa e de critica a sociedade, em personagens e agdes que conformam, pela primeira vez, uma picaresca brasileira. No humor, que se traduz em “folia” e travestissement da escritura camoniana, nascem os sentidos irreverentes contra tudo e todos. Popular, obsceno, de linguagem vulgar. Escreve a fala do povo (classes so- ciais mais baixas), que agride e transgride, afronta instituigdes, desmascara hipocrisias (brancas, negras, mesticas). Mostra-se entao o agressor/agredi- do, 0 dominado contra 0 dominador. Persona, personae. Na satira, surgem os anti-her6is brasileiros. Sao fidal- 8s, pretensos intelectuais, maus padres e freiras, corruptas autoridades oe religiosas, péssimos representantes do governo portugués no Bra- Sil. Sao falsog 9s valores e a moral. No estilo misto, de riso e dramaticidade, apontam-se faltas e acusam-se culpados. Na déviance Significativa, Tefipy a cidade da Bahia - a colénia inteira - como 0 Prep inferno, g maldito expde ao ridfculo e destréi a hierarquia. Dessacraliza, i carnavalizacdo. Rir do “outro”, inverter, dessacralizar. Narra as Piores - da sociedade brasileira, mestiga, a quem fere e agride. Usa a Poderg, arma da palavra contra os colonizadores. Por isso foi chamado, com . zao, de “Boca do Inferno”. A satira ironiza e serve de testemunho 20 sen tempo. Conta o Brasil pelo avesso. Alimenta-se da historicidade e fundy sentidos, os da brasilidade. No discurso politizado e carnavalesco, Gregorio fala a voz Popular na revolta contra o mau governo, sob 0 jugo da monarquia de Portugal, de | quem questiona a competéncia. O poeta, filho de uma classe social | empobrecida, denuncia a ma politica econémica e a crise do sistema colo. nial no Brasil. Em ligacao direta com a realidade que o cerca, o discurso deprecia toda a sociedade mestica em formagao. A voz irénica acusa intri- gas, conchavos, a mediocridade do povo. Mostra os contrastes de pais rico com muitos pobres. Transpée as similitudes na ideologia anticlericale antigovernista contra os estrangeiros exploradores. O discurso assume en- tao formas diferentes, novos sentidos, por refletir novas a cenografiae cronografia. Ainda quando, como num espelho, produza a escritura/ki- tura dos modelos. Abaixo, famoso soneto de Camées, 0 qual, como se pode observar, rem te a texto biblico - Génesis XXIX - e ao de Petrarca. O texto foi transformado em pré-texto de parédia realizada por Gregério de Matos: Sete anos de pastor Jacé servig'o' Labao, pai de Raquel, serrana bela: Mas nao servia ao pai, Serviaa ela, Eaelaso por prémio pretendia Os dias, na esperanga de um sé dia, Passava, contentando-se com vé-la; Porém 0 pai, usando se Cautela, Em lugar de Raquel Ihe dava Lia Vendo 0 triste pastor: que com enganos Lhe fora assim negada a sua pastora Como se a nao tivera merecida, Comega a servir outros sete anos, Dizendo: - Mais servira, se nao fora Para tao longo amor tao curta a vida. E a parédia de Gregério de Matos Guerra: Sete anos a nobreza da Bahia Serviu a uma pastora indiana e bela Porém serviu a india e nao a ela, Que & indiia sé por prémio pretendia Mil Dias, na esperanga de um so dia Passava, contentando-se com vé-la: \MOES. Luis Vaz de. Lirica. Sao Paulo: Cultrix, 1984, Pp. 108. oS —_— Mas Frei Tomas, usando de cautela, Deu-Ihe o vilao, quitou-Ihe a fidalguia. Vendo o Brasil, que por tao sujos modos Se Ihe usurparaa sua Dona Ewira, Quase a golpes de um mago e de uma goiva: Logo se arrependeram de amara todos, E qualquer mais amara, Se nao fora Para tao limpo amor tao suja a nowva. id O amor, que transcende o tempo, projeta-se a zona ideal, infensa a ma lic de do sentimento, até para além da vida, se esta nao fosse “tao curta” para pleno gozo de amar. O amor, assim ligado a efemeridade temporal, conota sentido fisico, mais corpo do que espirito. O que remete a outro significado, a de Labao. Para Camées, Jacé viveria somente e para 0 amor, na plenity. diverso daquele que a critica costuma ler nos textos camonianos, ou seja, 0 nao-platonismo, marcado por “Eros”, pela vida, em oposicao a “Tanatos’, morte. Esta-se, no soneto acima, portanto, diante de um dos casos em queo “platonismo” de Camoes é desmentido pelo texto. Jé em Gregorio, o texto se reveste da intencionalidade com a qual paro- dia os versos de Camées, demonstrando 0 conhecimento da tradicao e do- minio da técnica, num jogo ltidico e malicioso, com que transforma 0s vers0s liricos do poeta portugués na brincadeira risonha sobre um fato ocorrido no 102 Matos, Gregorio de. Obra Poética. James Amado. Op. cit., p. 678. Tratar-se-A das questoes relativas a parédia dos textos camonianos mais adiante, nO capitulo se yr prasil. O emprego dos cardinais reforga a hipérbole temporal: “sete” trans- forma-se em “mil” (“sete anos’/’mil dias”). No Brasil, vence a malicia; 0 mais importante éa questo material, nao o amor da mulher querida (“a India s6 +r prémio pretendia”), que se premia com mais malicia ainda (‘Deu-lhe o yilso, quitou-lhe a fidalguia’). A figura da mulher é depreciada: na ultima estrofe, os versos indicam a mulher que tem muitos amores, sentido que se completa com chave de ouro (‘para tao limpo amor tao suja a noiva”). A antitese camoniana “longo amor”/“curta vida” sofre a leitura burlesca que a transforma em “impo amor’/“suja a noiva”, empregada aqui a palavra no sentido de “sujeira” moral, conotando a falta de valores morais. Em ritmo e medida, os versos sao idénticos. A visao de mundo é oposta. A parodia trans- forma os significados liricos do discurso camoniano em burla e critica a soci- edade. Encontram-se, em Gregorio de Matos, muitos textos como esse, com referéncias explicitas a Camées. Gregério de Matos foi um dos primeiros escritores a fazer a releitura de temas como a mulher e o amor idealizados, transformando-os em temas sensuais, 4s vezes de extremo erotismo, opon- do-se, na parddia, aos textos (ou exagerando-os) do grande modelo e fonte maior da poesia brasileira. A parédia nao é considerada plagio; antes, d4-se como uma recriagao textual em que o autor retoma o poema sério, de assunto considerado eleva- do, transforma-o, recria-o em diferente tipo de situagdo, agora mais vulgar, pela substituicdo do tema central, em nova perspectiva, com finalidade de tiso e burla. Essa recriagao carnavalesca da realidade brasileira do século XVIL, através da parédia, 6 um dos procedimentos de que Gregorio de Matos langa mao com muita freqiiéncia para ler 0s modelos europeus. Vejam-se alguns outros tipos de procedimentos recorrentes na obra de Gregério de Matos Guerra. Os empréstimos séo muito comuns. O poeta 9 pw i. | brasileiro revela uma espécie de gosto particular pelo que se pode g} ch, Wee saad ” a ” ai plagio criativo”", sem ser acusado de “roubo” ou desonestidade ; Mar de ir age 7 = ., ni al. Justifique-se a afirmagao: Gregorio de Matos, na poesia sattric telecty, 4, realizg 95 textos Leama. Ah discy recriaga4o, nao cépia apenas. Sao operacGes por componentes litergr; me. Tas, se. mAnticas, fonéticas. Toma o esqueleto do soneto de partida, nele Teali eee ‘ * mi substituigdes de palavras, inserindo palavras novas (de outro sistemay oe aM. operacées sutis que fazem do seu verso um jogo que esconde/reyela estrangeiros e que, no mais das vezes, resulta em diferente tipo de pliando sentidos, atualiza o contexto e até o tema central. O resultado ¢ , texto de chegada diferente, original, que se distancia do primeiro, num We cesso de ocultamento, que o dissimula e da-lhe nova perspectiva de leitura, Observa-se 0 gosto pela cépia de fragmentos, a colagem, jogo de citacées,g pastiche, a satira e a parédia. Desse olhar duplamente centrado, decorrem as figuragées de dois espa. os que também invertem as posigGes, pois que ora o poeta exalta 0 “li” -a Europa, o centro - ora da valor maior ao “aqui” - a cidade da Bahia, ao Brasil, a periferia. Porém, essa cor local que vem impressa nos versos nunca temo sentido exético ou paradisiaco que se lé na grande maioria dos escritores da época. Nao exalta nem sacraliza a paisagem do Brasil, a qual, antes, pode servir de mero pano de fundo para pintar as personagens da col6nia e suas acées. Tém razao aqueles que chamam sua poesia de iniciadora do romance de costumes no Brasil. As riquezas brasileiras, tao exaltadas pelos primeiros cronistas obnubilados, e mesmo sacralizadas pelos romanticos, servem de oposigao dialética para 0 sdtiro, que quer p6r em destaque, criticando, a Po" breza (econémica e moral) dos seus habitantes. Ha, em Greg6rio, pela pt EO E fagiaie 103 Tomou-se de empréstimo a denominagao ‘extraida de BENABOU, Marcel. Les Ruses du Pag Exemples Oulipiens. In: \VANDENDORPE, Christian. Le Plagiat. Op. cit., P 20. eit vez na Literatura Brasileira, um modo de ver e de pensar as terras d le gemma diferente, que advem: de uma consciéncia critica, pela qual analisa realidade sem subserviéncia. Na poesia de Greg6rio de Matos Guerra, é que a literatura Passa entao a d emonstrar que possui, em relacao a cultura do centro - 0 “1a” -,0 que Pierre Rivas define como “uma relacao, nao mais de submissao dolorosa e sagrada | mas de subversao liidica, parédica, antropofagica”, através do plagio, cept doo autor, e da “parédia”, que é um ‘canto paralelo’ “que a periferia reenvia ao centro, para dele se apropriar e ai marcar seu territério”™. E com essa visao critica, contraria, invertida, que, ao invés de exaltar, mostra uma realidade dolorosa (mas real), que Gregério escreve sobre um dos maiores problemas das colénias, ou seja, 0 comércio com o estrangeiro que as exploram. Filho de familia acgucareira que estava sofrendo os preju- izos econdmicos, levanta a voz e “fala” em nome da sua classe social, do povo inteiro, através da metonimia preferida: a cidade da Bahia: Triste Bahia! Oh qudo dessemelhante Estds e estou do nosso antigo estado! Pobre te vejo a ti, tuamiempenhado, Rica te vejo eu ja, tua mi abundante. a 7 mee Pierre. Emergence et Différenciation des Littératures sous Dépendence: Quelques Propositios ques. In: GRASSIN, Jean-Marie. Littératures Emergentes (Actes du Xie Congrés de l’Association 1996. ae de Littérature Comparée. Bern; Berlim, FrankturM; New York; Paris; Wien: Peter Lang, 1220, (Comunicagao proferida no XI Congresso da AILC, Pars 20-24 aoilt, 1985). Aqui est 0 texto em some: lorsque Iécrivain a, avec ensemble de cette tradition, (..) une relation, nom plus de mission craintive et sacré, mais de subversion ludique, parodique, anthropophage (..) le plagiat (.. y fa le (qui est un ‘chant paralléle’ celui que la périphérie renvole au centre pour se l'approprier et quer son territoire)”. 97 Mes Ati tocou-te a maquina mercante, | Que em tua larga barra tem entrado, Amim foi-me trocando, e tem trocado Tanto negocio, e tanto negociante. Deste em dar tanto acucar excelente Pelas drogas inuiteis, que abelhuda Simples aceitas do sangaz Brichote. Oh se quisera Deus, que de repente Um dia amanheceras tao sisuda Que fora de algod4o 0 teu capote!"® Triste Bahia, mais que riso, tem o sentimento de pena de quem sabe ser sua terra muito rica e explorada por “maquina mercante”, POr sagazes “brichotes”, os quais trocam riquezas por mercadorias intteis. Nesse mun- do de inversao, 0 dinheiro, 0 comércio e 0 lucro passam a ser 0 valor maior, substituindo as leis e a ética. Como o materialismo predomina, pas- sa a comandar a vida da colénia uma nova ordem, em que se substituem os antigos valores. A falta de bom senso dos governantes é apontada na ultima estrofe: enquanto o “aqui” é figurado como o lugar rico que empo- brece pela incompeténcia no setor econémico, de “14” vém os que 0 poeta denominaria unhates (ladrdes) em outros poemas. Bem difere, portanto, do poema de Rodrigues Lobo, em que a tristeza provém da consciéncia da efemeridade do tempo, que a tudo corrompe. O belo soneto Formoso Tejo, que serviu de modelo a Gregério, tem a comparacao homem-natureza. 0 © Op. cit, p.333. Escl simples it B is sa larece a Nota 247 os seguintes termos: simples = sindnimo de drogas, remédics = termo pejorative de estrangeiro, 98 to - hipertexto - de Gregorio escreve uma outra, ter Pee dade social brasileira. nova, diferente reali- A leitura do soneto de Gregério de Matos Guerra reme ral - pela escritura (ontem-hoje) origindria da mesma representa como déviance, a qual se desorganiza em fungaéo lidade da justiga e do governo na sua “Triste Bahia”. © “ Gregorio de Matos, esse escritor engajado, te a questao tem- visdo critica e que da falta de norma- aqui” € a terra de em busca de mudar a sua realida- de social, que fez guerra aos poderosos e foi chamado de “ seus contemporaneos. maluco” pelos Como se pode observar, as referéncias ao tempo e ao espaco vem quase sempre associadas no discurso satirico de Gregério de Matos Guerra Se,em muitas outras sdtiras, o poeta alude a um outro tempo, melhor, de ordem e de bonancas, marca-se 0 centro como 0 local em que hd o saber transmitido nas universidades, ¢ 0 respeito as normas pelas pessoas em geral, em oposi- cao a esse “aqui” de periferia, onde - no tempo presente - mandam os que nao deviam, aparentam ter os que nada tém, sao felizes os que nao merecem. No tempo da satira, 0 “hoje” reconverte a realidade e transmuda-se na desordem, porque estao invertidos 0 Bem no Mal, o saber na falsidade, o valor em desvalor, O tempo passado era o do Bem, da ordem, mas passou e 6 ficou dele a lembranca. Na visdo estética do Barroco, que jA possui essa forte consciéncia da efemeridade do tempo e de como o ser humano é preca- tio neste mundo, o poeta satirico revela o seu inconformismo pela leitura do tempo presente de dissolugao, que se relaciona com um passado de ordem. Essa 6 a razao Por que o poeta escreve: 99 IH Eu sou aquele que, passados anos canteina minha lira maldizente torpezas do Brasil, vicios e enganos. Ebem que os decantei bastantemente, canto a segunda veznamesma lira omesmoassunto em plectro diferente (...)'* O motivo é 0 proprio “desconcerto do mundo”, com o qual 0 poeta nig compactua e, por essa mesma 1aza0, chamam-no “louco”, tornando-se mal. dito no apelido que Ihe dao: Isso faz a discreta fantesia: discorre em um, e outro desconcerto, condena 0 roubo, e increpa a hipocrisia. Onéscio, 0 ignorante, 0 inexperto, que nao elege o bom, nem o mau reprova, por tudo passa deslumbrado, e incerto. diz logo prudentago, e repousado, Fulano é um satirico, é um louco, de lingua ma, de coragao danado. (...)'” Junto com as acusag6es, o homem culto, que se sente na obrigagio 4 8 Op. cit., p. 366. O grifo é nosso. 1° IDEM. 100 - dos, traduz 0 poeta consciente que deve estar engajado com 0 acusat culpa a com a sua gente: Se souberas falar, também falaras/Também seu tempo © satirizaras, se souberas/Se foras poeta, poetizaras”.'* em direcao ao degredo, porém, 0 poeta diz ao povo da sua terr adeus Cidade/e agora me deverds/Velhaca, dar eu adeus/a quem devo ao demo dar/(...) que nem Deus te querera(...)"". Nos versos finais, a dualidade barroca da linguagem representa a irreveréncia qualo poeta denomina os habitantes da terra na\ tal: “Adeus Povo, adeus y7110, Quando no navio, a: “Adeus praia, coma Bahia/digo, Canalha infernal F légico que ele também estenda essa irreveréncia aos politicos. A irreveréncia politica coma qual Gregério pratica a sua “guerra” pela palavra tem origem na visdo inconformista e critica, que pode ser até denominada de anarquista. Sempre descontente com toda a hierarquia, fez da palavra a arma derosos. Na forma Itidica de questionar, Gregorio para lutar contra os po elar as classes sociais. e os signos explodem para niv ‘Ao subverter a hierarquia, libera o insano, 0 escandaloso, o grotesco. Valori- constituido. No riso criti- za, assim, o nonsense e agride a sociedade e o poder co, assume a linguagem do poder, como resposta criativa contra os modelos da metrépole. carnavaliza o discurso, (“Tucano”) e Sousa Menezes (“O Os governadores Camara Coutinho as palavras. Nesse mundo de per- Braco de Prata”) seriam castigados pelas su we Op. cit., p. 366 e 367. O grifo é nosso. "Op. cit. p. 1170 "ODM, nas para 0 ar, nao havia lugar para autoridades. Pelas ruas da Bahia, a Plebe deliciava-se com a quebra dos tabus, as obscenidades monstruosas, as Vulga, ridades com as quais as pintava Gregério de Matos. O governador é uma das personagens da picaresca: Avés, vaca sempiterna, cozida, asada e de molho, Boisempre, galinha nunca insecula seculorum () Avés, 6 enforcador, () Av6s, ilustre Tucano mal direito e bem giboso, pemas de rolo de pau (...)"" Na sociedade brasileira em formagao, a politica das cortes gerava o inconformismo pela ma situacao politica e econdmica. Ou a pessoa vivia de acordo com as normas impostas pelo rei e seus representantes, ou sofria perseguic6es de toda natureza. No século XVII, a Inquisicao exercia nas co- | lonias forte regime de censura. O povo calava-se ou morria. O governo orde- nava a situacao e era obedecido. Era preciso ser igual ao poder que governa- va. A classe do poder garantia-se nele pelas escolas, na pregacao dos padres, nas masmorras e no desterro e até na morte. Nesse contexto histérico, a voz do poeta satirico responde com 0 riso, a vulgaridade, 0 burlesco do baixo humor. As questées politicas que nao podiam ser tratadas abertamente era™ ™ Op. cit, p. 179, 180. atira que brincava com verdades. Fazia falar, assim, a vontade das mais baixas. Como a voz das antigas profetisas, irrompia a fala para dizer verdades, para desmascarar; vituperava ¢ lanca- motivo das di Pi nauis press4gios contra os homens (maus). va o A questao cultural evidencia-se, principalmente, nas vozes étnicas - re- do o negro e o mulato, 0 indio, 0 fidalgo portugués, o judeu, en- fim, tao mescladas quanto a nagao brasileira -, vozes que se cruzam, justa- "ge e superpondo-se ao longo da obra. Nasce a identidade do discurso jiterdrio pela multiplicidade de temas relacionados com especifica cenogra- fa e nova cronografia; através de centenas de personagens-tipo do Brasil colonial; pela especificidade dos simbolos e signos, os quais remetem a ques- toes de ordem social, politica, econdmica e ética; pelo jogo discursivo que inverte a propria escritura, fazendo nascer outro sentido; pela palavra que rompe com hierarquias, desmistifica e dessacraliza a prépria sociedade em que se gera. A linguagem empregada desvia-se com violéncia dos modelos; quando incorpora esse jogo popular dos ditados, traz ao texto literdrio o significado vulgar da giria, cria e recria a lingua herdada. Produz presentan pondo heterogeneidade. Nesse mundo invertido, que se desvia de todas as normas, quebram-se 0s tabus; nao hd valores nem hierarquia, o discurso rompe interditos e decla- ra perversdes. Burlesca, erética e ambigua, a linguagem a que recorre é obs- cena e vulgar, visando a agradar um publico analfabeto, a ralé das Profundezas” sociais, que se identifica com o baixo humor do discurso. au O aspecto ideolégico marca os signos com referéncias contextuais. Abo- indo interdi ; : Cad interditos sexuais, a fala do antiethos serve como arma contra 0 poder, ricaturi; Si i. a a . iza pessoas importantes, mostra seus “desvios” & normalidade, reu- os nindo fraquezas e falsidades; no desnudar partes do corpo Considerag Has imorais, revela funcées fisiol6gicas pouco elegantes. Para destruj, a autog dade (falsa), 0 baixo humor, através da satira e da parédia, Tidiculariza : : poe ao escdmio a falta de inteligéncia, de moral e de carater dos Poder, Criador e personagens desmascaram monstros, que figuram uma realidad monstruosa: a colénia de Gregério de Matos, 4 qual o poeta faz “gueny através do grotesco. Para além da cultura representada, o discurso envia aos sentidos deun | pensar as fraquezas humanas, universal e dialético, situado entre suas neces. | dades e 0 excesso. Ri da vulnerabilidade humana para rir do abuso do poder do | homem sobre o homem. No conflito entre o ser e o parecer, os anti-heréis pia. ros criados quebram as barreiras da moralidade e representam a falta de justig, de religiosidade, de moral que o ser humano quer esconder dos demaise quea satira se encarrega de desnudar. Pelo significado erético, os versos Tepresentam, enfim, a forca dionisiaca que torna a propria realidade uma grande “folia’ desmantela a linguagem séria e a ordem, fazendo da vida um rir sem temo, é¢ carnavalesco poder contra a tristeza e a dor, a forga de Eros contra Tanatos. O baixo cémico poe a nu a aparéncia negativa dos seres humanos,° cheiro do corpo, a velhice e a gordura, o disforme e as trocas sexuais * linguagem jocosa é empregada rosto, olhos, nariz, boca, exemplo, Para zombar de partes do corpo tais conn bem como para referir-se ao falo e a vag ® “m Poema inteiro € feito para exaltar “as exceléncias do con”? qual, segundo o mote, deve ser “(..) apertado, (...)/chupao, enxuto, © aa do", ou podera o poema ser redigido para indicar a melhor medida .. P. 963. A palavra “cono”, Giria da época, significa vagina. 104 | Pane ie L énis (“dous palmos de caralho”") ou ainda énis eiro de uma “puta” famosa por esse motivo: “fedendo embaixo e em cima, hi ) Fedeis mais que um bacalhau”™4, Ou, ainda Pior, para misturar a beleza ‘a “dama” funcées fisiolgicas como ‘defecar, Para indicar a sujeira e mau urinar. | A linguagem obscena estende-se a defini cao da prépria cidade natal, centro de todas as maldades, e € voz que condena 08 vicios e a inversio de tesco modo de Poesia que ira inverter 0 tema nobre em definic&o vulgar: Define sua Cidade (Mote:) De dous ff se compée esta cidade a meu ver um furtar, outro foder No jogo de Palavras agressivas, o poeta esvazia significados, Significante da palavra BAHIA e brine, Para caracterizar a Personagem satiric Trompe o ‘a com a metonimia cidade (habitante), ca principal de seus poemas (a cidade): Bahia tem letras cinco que sdo B-A-H-I-A logo ninguém me dir * P. 928. A giria denomina o Pénis OP. cit..p. 1014 » 1012. 105 que dous ff chega ter, salvo se em boa verdade S40 os ff da cidade um furtar outro foder. Gregorio de Matos Guerra demonstra a consciéncia da intencio, de praticar o desvio da propria escritura no poema, quando cria w de linguagem intencionalmente ilégica e incongruente para cay Malidag le Ma telacig Tacterizay 0 8M comum : ° ‘AVTaS Condy. zem, reforcando a ideologia dos signos, inclusive com o verbo considerag, Tado. interdito pela moral crista. O enunciador promove a desordem intenci | nal mundo déviant da colénia brasileira. Nessa ruptura coma lingua; a violéncia da forma serve para comprovar a idéia que as pal. da linguagem para representar uma realidade sem ordem. Tudo se resume, na col6nia, na auséncia total de valores, na falta de um comportamento i. co. A realidade infernal (antiethos) é figurada através da quebra de todos os Padroes de normalidade, como o poeta o faz com a linguagem, rompendoo sistema lingiistico. Nos versos mordazes da satira, um dos temas preferidos é a representa. ¢40 do monstruoso que compé6e 0 baixo corpo para criticar 0 sexo ilicito, as invers6es sexuais e a falsa moral da sociedade representada. Sao postos, as- sim, a nu, todos os vicios e paixdes, 0 embuste que compée o ocultara intersexualidade e as traigdes de casais. O comportamento vil e sordidoé vituperado através de jogos de palavras, trocadilhos e sarcasmos. A cidade é muitas vezes chamada de Sodoma e Gomorra; esses desvios sao continua mente lembrados. A dissimulac4o é uma das caracteristicas permanentes do povo e dos poderosos. Na liberagao do vocabulario, chistes e lugares ¢0- muns, a sdtira encontra o meio mais facil de atingir 0 vulgo a que s¢ destina e de promover a catarse pelo riso. 106 fanaa Escandalosa, sua pena nao “respeitava” cabecas do governo brasileiro, que, na sua visao invertida, nao os considerava lideres Tespeitaveis ou m erecedores de respeito. Nem os santos da Igreja escaparam A sua sétira, we, assim também poderia ser considerada herética, pois que produziu ri- mas com ofensas, por exemplo a Santo Anténio, a quem exaltou na lirica, recendo ter tido devogao, e até a Jesus. A satira tem sua fungao de crénica, pelo testemunho dos fatos que se esenrolaram na Bahia do século XVII. Esta é uma das mais importantes -omponentes de sua poesia como especificidade brasileira, desde uma vez ue € através da referencialidade e, principalmente, do modo como pensa . Passa, desse modo, a centrar a escritura na prépria realidade, a qual jd se dena (ou des-ordena) como “descentramento”, “movimento” em direc4o 0 “conjunto de diferencas” de que fala Derrida". O poeta subverte a escri- 1a, realizando o seu travestissement'” através da parédia, da satira, do pastiche u da mais simples colagem e imitacao da literatura ibérica. No discurso composto em duplo movimento de sentidos, a linguagem .@ et Différenciation des Littératures sous Dépendence: " Faz-se referéncia a RIVAS, Pierre. Emergenc Littératures Emergentes. Op. cit... Marie. e cai 83 eee Propositions Théoriques. In: GRASSIN, Jean-t “DERRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferenca. Sao Paulo: Perspectiva, ” GENETTE, Gérard. Palimpsestes: la litérature au second degré. Pais: Seul, 1962 107 4 O i i e e rsonas da coléni. . compoe uma linha virtual em que s© refletem perso’ " énia, reduplican, rem e se op6em como se vistas através de um imensy do imagens que se transfe1 lica-as indefinidamente. Lentamente carag espelho que as deforma e multip! terizadas pelas agGes - picaras -, essas personagens vao-se delineando naes. critura, para conformar a sociedade inteira. C dos os principios da lei e da justica, duplicam , jem a vaidade e a falta de ideais. Atrayg, am agées mais do que se descrevem ros do “viver baiano” 18 ‘omo se fossem vistas pelo |a, do contrario, opondo-se a to’ comportamento antiético, super! dos poemas, um a um, em que se narr. caracteres, 0 “coronista” vai formando os quad: io de Matos vai contando a histéria de cada um des. Lentamente, Gregori pria cidade da Bahia. Pois predomina sobre ses anti-herdis na hist6ria da pro) todos eles, ou metonimicamente 0s revine, Cidade. Voz narrativa que acusa € personagem principal que sofre, a cidade do poeta vive as corrupgoes € desacertos dos seus habitantes, como deles recebe conseqiiéncias. No conjunto, forma-se uma picaresca: emergente, sin- a persona principal dos versos: a gular, brasileira. O discurso dessa picaresca, ao mesmo tempo em que remete a tradicao ibérica, lembrando as agGes de Lazarillo, Gusman e o Buscén’, contém um modo de ser, agir e de pensar singular e especifico 4 nagao brasileira. A releitura dos romances picarescos, bem como das personagens da satira de Quevedo, fica evidente na poesia de Gregério de Matos pelas caracteristicas dos “herdis’ "8 Faz-se referéncia as trés obras clssicas da picaresca espanhola e as personagens centrais, a qué sem divida, a obra pottica de Gregorio remete: Lazarillo de Tormes, Guzman de Atfarache, de Mateo ‘Aleman, e La vida de! Buscén, esta ultima escrita por Quevedo. 119 E como 0 proprio Gregorio chamou-se. Conforme James Amado: “A foto proibida ha 300 anos”. In MATTOS, Gregorio de. Op. cit., p.17. 4, 108 | apresentados, na Perspectiva Social dos textos, NOS conflitos Préprio sentido geralr que aponta para a situagao de crise € a visio Critico-burlesca do autor, Nesse mundo invertido, cuja des-ordey peloavesso a narracao dos fatos da Historia do Brasil-Colnia, Desde os tem- 0s dorDescobrimento as exploracdes estrangeiras, or e, enfim, a colonizagao, lé-se a tealidade histéri preta-se a critica 4 economia, & 'M subverte todos os valores, lé-se 40 comércio com 0 exte- juridica e social do pais. Assim como seus antepassados ibéricos (anti-)herdis de Gregério de Matos Guerra si viver uma existéncia de aventuras, fingimento. Os picaros buscam sem, forca do dinheiro e da vaidade; fingem ser 0 que nao sao, vencem, conseguindo sempre atingir os objeti i ceiros e vadios, os anti- que compéem as Picarescas, os ubvertem valores e Normas para Na satira de Gregorio de Matos, ha grande quantidade desses tipos, de todas as classes sociais, conformando todo um conjunto Tidiculo em que re- poder-se classificd-los Por afinidades, Mheiro (os ladrées, ananciosos, avarentos, corruptos, inescrupulosos - mui- teristicas na colénia), os movidos pela mentirosos, falsos fidalgos, pseudo-intelectuais, falsos (0s pelas paixées (“putas”, transexuais, avarentos, gulo- ma escala de inversao de valores, ha os que retinem vai tos dos novos ricos tém essas carac Vaidade (hipécritas, "eligiosos), os movid SOs e Violentos), Nu | dessas “qualidades” s 7 COMO Os padres, os poderosos, os governantes, os juizes, , wat 8 bem como os “brichotes” (estrangeiros). S40 comuns os que renegam as Origen IS, ou que as tém impuras e se declaram fidalgos. Do outro lado da Moeda, ; “cornos”, os “burros”, os submissos e os famintos. Assim também a poesia escrita incorpora o (anti-)heréi Picaro da culty TO, P dro . 7 . baixas, Va. dio e mentiroso, capaz de, sempre, safar-se das situages mais dificeis Os outros para conseguir 0 que quer. Pedro Malasartes simboliza os mos de defesa dos pobres na luta pela sobrevivéncia. No Processo géncia literria, o simbolo popular passa 4 literatura escrita na Poesi; g6rio de Matos. Em mais de uma vez, 0 poeta faz referéncia ao heréi Picaro, nesse caso, como enganador da Justica, quando fala ao “Galileu Requerente" israelita satirizado, que pretende burlar a lei: “(..) eu zombo de Vossos pleitoy Porque sao vossos direitos/de Pedro de malas artes”™, ra popular oral: Pedro Malasartes. Criado pelo anedotério brasilej, figura as mas artes do “vivo”, inteligente das camadas sociais mais 20 iludiy Mecanis. de emer. a de Gre. Gregério propée-se a satirizar os habitantes da Bahi: ia pela degradagio moral em que vivem. Desse modo, esvazia o discurso (dominante) baseado em valores, principalmente no conceito de honra, que é dito “da boca para fora”, mas nao se concretiza, em termos de comportamento ético das pes- soas em geral. Na edigéo de James Amado, Principal fonte deste “corpus”, o maior de todos os capitulos é denomina do “A Cidade e seus Picaros”", Nele, hi poemas em que Gregério incorpora um esteredtipo de tradicao brasileira ———__ *° Op. cit, p. 561, Op. ct. capitulo il © qual vai dap, 397 até a 1160, sendo, portanto, a maior parte da obra. 110 |g fit ctever 4 | * onde PO gjdo 0 Brasil povoado pela pior escéria de Portugal es, 08 quais eram enviados para a colénia nore ee degrada. metropole, que, sabe-se, nao foi norma cates sip o “gato” vem para o Brasil (0 “aqui”, lugar sem I aa derao praticar suas agGes picaras), ptincipaiments "Rs exce- _ahos dO Douro/sao grandessissimos velhacos:/em Portugal iy ae sf sad ” . Brasil sao gatos 2 | rose an mundo visto po avesso, Gregorio refigura uma centena de per- ona gens picaras que se opdem ao Bem, a Verdade e a Justica. Basicamente, «sse3 tipos sociais sao 0s que se desviam dos cédigos do direito, de ética e de discurso critico (antiethos) que os descreve compée um conjunto deantiteses, metdaforas € hipérboles em que se léem oposigées bindrias que remetem sempre ao seu contrario, em funcao contrastiva. Assim, 0 codigo semiologico define-se Por caracteristicas negativas que indicam a existéncia das positivas, ou que as negam, s@ncia no contexto. Pela auséncia pela sua au: completa de hierarquia, de bens morais, de virtudes e de sabedoria, a lingua- gem da satira centraliza os seguintes ti Nesse religido- oO pos: O desonesto (ladrao, usurdrio, simoniaco, mentiroso, junto com uma subclassificagao de diversas profis- trados comprados, religiosos sées que se deixam corromper, tais como magis' 0 nao-catdlico (herege, judeu, muculmano, o ignorante (todos os “néscios” de pregador incompetente, inapto simulado, pseudofidalgo, na troca de mas que exploram os fiéis etc.), s-MOVvOSs), mau poeta, 0 fingidor (0 dis e alternam, luterano, calvinista, os cristao que fala o poeta: mal letrado e advogado, governador incapaz) pseudo-religioso). Esses tipos S& justapoem ¢ sf acées, para simbolizar a falta de ordem total. (DEM. _ Entre as mulheres, além das classes ja citadas, das prostitutas e da, mulheres que traem os maridos, ha as freiras, as velhas, as feias, Maes ie vendem as filhas, e as gananciosas em geral. Como os homens, assumen, também os “desvios” das normas sociais e éticas acima citadas. - Dentre enorme variedade de tipos de que se compoe essa Picaresca emergente na poesia brasileira, ha os que se destacam como Personagens Principais, nao sé pela recorréncia com que aparecem na satira, mas Pring. palmente por atuarem de modo a exercer influéncia no comportamento das demais e porque vivem os fatos mais importantes narrados na colénia, Por ordem de importancia na obra, esses picaros sao os padres, os Tepresentan. tes da Lei, os pseudofidalgos, os portugueses, os néscios e os cornos, as my. Iheres da vida. Os representantes da Igreja no Brasil recebem os mais estranhos apeli- dos; séo motivo de chacota e atores de muitas “velhacarias”. Descreve-os mais pelas acGes: os missionarios jesuitas “caminham como camelos/comem como salvages”™ ou sao “mariolas de missal”, “sacerdotes ao burlesco”™. No retrato grotesco de um clérigo chamado Frisao, pinta-o como: Acara é um fardo de arroz, (....) Aboca desempenada éaponte de Coimbra, onde nao entram nem saem mais que mentiras. 12 Op. cit., p. 338. "2 1DEM (... alingua de vaca pormaidizente e maldita mas pelo muito que corta (.)'3 Como se pode ver, 0 retrato do Padre visa a pintura grotesca em lin- gar com O objetivo de ridiculariz4-lo. Assim 0 poeta expde ao age vul; . : 5 ituigdo a que pertence e inverte a hierarquia. jidiculo @ instil Os frades franciscanos recebem apelidos vulgares, como “Frei troso"™, “Frei Porraz”™, “Frei Foderaz”™, “Frei Sarna”, “Frei Pirtigo”™, "0 dem ser “Frei Franquia”, “Frei Carqueja”™, “Fradinhos esfaimados”, ° ee inho”™ em suma, sao 0 “lixo eclesistico do mundo”™, Todos esses anon sao escravos das paixGes, amam mulheres da vida, comem e be- bom demais, entregam-se a luxtiria e ao prazer, ao sexo (normal e anormal), asimonia, razao pela qual, no mais das vezes, roubam e enganam, a fim de sustentar os seus vicios. 0p. cit, p. 228. 0p. cit, p. 857. |'70p. cit, p.256. "Op. cit., p. 255. "Op. cit, p. 251 Op. cit, p, 250. "IDEM. 0p. cit, p. 1093, 13, Iw (.) queum Frade Sagrado venda osagrado dleo 0a crisma (.) Queemtodaa Franciscania nao achasse um mau Ladrao.'* Muitos desses padres aparecem “retratados” como presyy Na visao critica, ridiculari 9 «-taose maus regadores. Y Tiza-os a cristaos Pp 0 extre hy dendo-os em portugues culto e vulgar: 7 Doalto verd vocé aputasem intervalos tangida de mais badalos que tema torre da Sé* E em latim: porque cego de vicio no Ihe entra no oculorum osecula seculorum de uma puta de ab initio'® ‘on HA muitos picaros na Sé da Bahia, que representa todo o conte lonial - brasileiro, viciado, pecador - e é uma de suas mais poderosasint- Op. cit, p. 214, ™ Op. cit. p. 264. ** Op. cit, p. 265, - .,Nele, ine d de ideolo; ni ; 3 mul -,nada mais € que: ig} reta-se a sociedade especifica do Brasil-Colénia. Enfim, nesse gia anti-religiosa, em que emerge a picaresca brasileira, a Anossa Sé da Bahia com ser um mapa de festas éumpresépio de bestas, se nao for estrebaria'* los componentes de maior evidéncia na transformagao do sistema “iifstiCO oriundo de Portugal que a déviance de Gregério de Matos Guerra capta da fala popular do brasileiro e produz a diferenca das demais obras de que sofreu influéncias é o registro de palavras oriundas do tupi-guarani e dos falares africanos. A mescla das racas produziu a mestigagem étnica. O Jéxico desses outros sistemas, ao instalar-se no portugués classico, iria mina- Joe exercer a sua ruptura. Um di a e convencional, o sistema lingitistico com- aneira que qualquer elemento que nele se ‘o sistema inteiro. Em toda sociedade colo- ema forma-se pelo contato das culturas, s sistemas, os quais geram diferengas s de ordem fonoldgica, semantica, De natureza social, aleatori poe um todo dinamico de tal m inserir desencadeara a mudanga ni nial, como € 0 caso do Brasil, o sist pela insercao de elementos de outro: lingiisticas e conformam alterag6e: lexicolégica, morfoldgica ou sintatica. A lingua portuguesa trazida ao Brasil no século XVI pelos descobridores Op. cit, p. 195, | 18 os 1s e colonos tinha o prestigio de uma civilizagao memordvel, comprovady ates vés das lutas contra arabes e castelhanos na Peninsula Ibérica. Segundo este, diosos, entretanto, nao conseguiu sobrepor-se de imediato ao ‘UPi-guaran;, como era de se supor. Apontam-se dois fatores para que 0 tupi fosse mai falado que o portugués no Brasil, até 0 século XVIII. Em primeiro lugar, 7 portugueses aqui radicados casavam-se com mulheres indias; como os 6. mens estivessem ocupados em atividades agricolas, comerciais, ou na defesy da terra contra invasores estrangeiros, deixavam a educagao dos filhos as esposas ou companheiras. A lingua nativa seria transmitida pelas MAes aos filhos. O mesmo ocorreu com centenas de bandeirantes, que deixaram my}, tos descendentes no sertao brasileiro a serem criados pelas maes: Mestigos, filhos de europeus, os quais nunca falaram o portugués. Outro fator que concorreu para a permanéncia do tupi-guarani como lingua mais falada en. tre 0 povo, nos séculos XVI e XVIL, foi o desempenho dos jesuitas nas Mis. sdes. Estudaram a lingua indigena, objetivando a catequese, a ponto de es. crever gramatica e diciondrio. Nos colégios, ensinavam as duas linguas aos indios e aos filhos dos colonos. A conseqiiéncia imediata foi que, ainda Nos séculos XVII e XVIII, a lingua mais falada no Brasil nao era a dos colonizado- res, mas a dos colonizados. A poesia satirica de Gregério de Matos Guerra registrou esse vocabula- rio, ora para fazer referéncia aos lugares da Bahia, como indices de uma topografia especifica, ora para representar os costumes e 0 modus vivendi do povo brasileiro, ora para fazer burla aos habitantes da colonia que tinham sangue mestico. Nesse ludismo de linguagem, Gregério chama para 0 texto indices de referencialidade ao contexto e incorpora elementos do sistema lingiiistico, Os quais promovem a ruptura do portugués classico por ele empregado. 116 Poe _ para a poesia, a fala do povo mestico, promove a diferenga de ele sak, i: ai composicao do outro. No sistema, emergem os tracos que ca- ariam © portugués do Brasil. Na literatura, emerge o sentido da acer im lingiifstica’”. ifiquemos. Algumas vezes, Gregorio de Matos faz o verso imitar Exem| pl . = leira. A supresséo de fonemas atonos finais, por exemplo, is mestica brasil Pe actriticd da linguagem popular oral, distinta do portugués de Portu- é 10 seguinte poema escreve de modo satirico essa fala, enquanto narra a al. ”, ae “ ta on aal g uma “negrinha”, amante de um “tapuia” muito valente, 0 qual a pistoria de . era traindo-o: carpreendl Paina mata, al, |, aqui sé tu mangala saiba Deus e todo mundo, que me inguizolo mavundo mazanha, mavunga, e ma’* Aescrita fica quase ilegivel ao registrar a fala popular brasileira; sabe-se que, as vezes, tem-se dificuldade de comunicagao oral, mesmo com os recur- sos da linguagem falada com a pessoa de nenhuma instrucao, fato decorren- teda ma prontincia das palavras e frases. O mérito de Gregério de Matos fica em captar essas variacdes de ordem popular em seus poemas. Na tese de doutorado, procedemos ao levantamento do vocabulario de origem tupi e de linguas iieanas na obra de Gregorio de Matos Guerra. “MATOS, Gregorio de. Op. cit., p. 892 e 893. 17. fan =k i, Outro poema ha em que o escritor emprega um refrao brasileira origem tupi-guarani: Mangard. Nele, conta a histéria de duas Mulaias,, de roubaram um papagaio (origem indigena) de um capitao (Portugués, ey co), amante de uma delas, que, por esse motivo, as prendera, O Poema co, tém a mescla das trés racas, com a linguagem de todas, cujo sistema = no alterado -, escreve: “Todo 0 povo, que isto vé/pergunta em seu desabo, nao ao papagaio, mas ao dono /(....)/Mangara”. E, pois, com a insergao do léxico de origem tupi e africana que 0 si ma portugués do Brasil comega a distanciar-se do de Portugal. Ao incor rar esses vocdbulos da fala popular brasileira, Gregério de Matos diversif. ca-se e escreve o seu idioleto, fazendo outra leitura dos modelos herdades, nado s6 de Camoées como também dos autores barrocos da Espanha. Ao re gistrar a fala crioula, imprime especificidade a satira e, com ela, faz emergir a poesia brasileira. “% Op. cit., p. 284. 118 Iw

Você também pode gostar