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27 CLIO ~ Revista do Curso de Mestrado em Histé: AMOR, VIOLENCIA E SOLIDARIEDADE NO TESTEMUNHO DA ARTE RUPESTRE BRASILEIRA GABRIELA MARTIN Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista do CNPq Um casal une suas mdos num gesto delicado de danca, outro pro- tege, carinhosamente, uma crianca. Cenas de cépula exibem a posses~ so violenta da fémea ou o simples ato amoroso milenar. O observa- dor desses testemunhos da perenidade do homem vera, também, figuras com grandes cocares que dangam freneticamente enguanto uma figura solitaria ensaia passo de auténtico "balet". Guerreiros,armados até os dentes, se exibirdo enfrentando inimigos e junto a eles, figuras hitifalicas, de descomunais membros sexuais parecem querer inculcar nos combatentes a sua forca vital, a forga identificadora da potén- cia do macho, desde a pré-histéria até os nossos dias. Grupos de ca gadores perseguem emas e veados, outros preparam pirogas, pintadas de diversas cores, para a pescaria ou viagem pelo rio. Araras e tu- canos alegram a floresta gravada nas pedras e ao observador nao se- r& poupada a nota tragica oferecida pelos corpos dos inimigos derru pados no solo. As cenas multiplicam-se na variedade dos grupos de homens ou mulheres que carregam boisas, cestas ou potes transportan do Agua ou alimentos; algumas figuras, s4o singelas na simplicidade de sua nudez pura, outras, cheias de cocares e atributos, mostram 0 poder da sua hierarquia. Com armadilhas e jaulas, cagadores, na to- caia, aguardam pacientemente o passo da onga. Enquanto a caga e as lutas prosseguem,pequenas figuras adornadas com penas, ensaiam uma danca de roda, onde os participantes seguram-se pelas maose sao di- rigidos por um mestre de ceriménias ostentando longo cocar, em dan- ya ancestral hoje t4o nordestina. © mundo que aparece nas pinturas rupestres da regido do Seri- 46, no Sul do Rio Grande do Norte, 6 0 cotidiano da pré-histéria. * Pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cient{fico e Tec nologico - CNPq 28 Nos estudos sobre pintura rupestre pré-histérica, tem-se de signado, geralmente, como rito de iniciagdo sexual, qualquer tema de conteiido er6ético. Porém, nos desenhos do Seridé, o sexo esta re- presentado com uma simplicidade que nada oferece, aparentemente, de ritual: uma figura masculina, por exemplo, deitada no chéo, descan- sa a cabeca sobre o braco esquerdo e masturba-se 4 sombra de uma Arvore; uma outra, de membro descomunal, simplesmente segura-o com ambas as maos e¢ o exibe orgulhosa. Menos solitérios, casais copulam no meio de uma danga, misturando-se a dangarinos com ramos e folhas nas mos. Culto 4 fertilidade ou utilizagdo de plantas alucinégenas, como a jurema, para aumentar o "climax" da danga? Ambas as hipdte- ses poderéo ser validas. Quem eram esses, aparentemente, pequenos seres, que em dese- nhos nunca superiores a quinze centimetros deixaram-nos um retrato tdo vivo da sua vida cotidiana? Infelizmente, além do realismo e vi. vacidade das suas pinturas, pouco sabemos desses primitivos habitan tes do Nordeste; onde moravam, que comiam ou que tipodeculto ren- diam aos seus mortos, estdo nos imprecisos campos das teorias. ° que sabemos precisamente é que esses artistas pré-histéricos pinta- ram os abrigos rochosos das serras que circundam os vales do Rio Se ridé e seus afluentes, Carnaiba e Acaud, desenhando, com delicadeza e minuciosidade, os detalhes e og fatos mais importantes da sua existéncia: a luta, a caga, a danga e o amor. Voltavam para suas al- deias, situadas, seguramente, na beira dos rios, sem deixar indi- cios materiais de sua presenga, quase como uma burlaoudesafio aos arqueélogos, que tanto os temos procurado, com paciéncia e nao raras vezes com desesperagao. Os desenhos, 4s vezes finissimos, foram feitos com pincéis de fibras vegetais, nas cores vermelha, amarela, branca e preta. A ri- queza das pinturas e dos temas representados é tal que, apenas em cinco abrigos, copiamos e fotografamos mais de trés mil figuras en- tre antromorfos e zoomorfos. Outros abrigos com o mesmo tipo de pin turas que designamos de "Estilo Serid6", j4 foram descobertos e€ 0 estudo sistematico dos mesmos certamente nos levaré a um maior co- nhecimento dos nossos primeiros artistas. £m fevereiro de 1983, o mundialmente conhecido antropdlogo Richard Leakey, em conferéncia pronunciada em Brasilia, transmitida via Embratel para trinta cidades do Brasil, desenvolveu uma indaga~ cdo permanente da Arqueologia, da Histéria e da Filosofia: "O homem @um ser agressivo ou solidario?". Contemplando-se a riqueza de temas CLIO - Revista do Curso de Mestrado em Histéria 29 das pinturas do Serid6, ganha brilho e probabilidade a opcdo otimis ta de Leakey, pelo homem mais solidario do que agressivo, como cons— trutor de uma sociedade vidvel. Apesar de que os temas representan- do lutas sejam numerosos nas pinturas do Seridé, diferengas de atri putos e adornos dos protagonistas, indicam grupos humanos de tribos diferentes que lutam pelo seu espaco vital, pelo direito a suas ro- gas e suas areas de caga; entretanto, os temas que poderfamos cha-— nar solidarios dentro da comunidade, s4o os mais abundantes: renova se ai nossa esperanca na condic&o humana com pais que cuidam das criangas, recoletores de alimentos que, em grupos, carregam suas sa colas, dangarinos e grupos que integram as cagadas coletivas. Nao falta, também, nessas pinturas do Serid6, um tom brincalhao, uma cer ta alegria de viver que se manifesta indisciplinadamente na grande mobilidade, na quase agitacdo dos seus personagens, muito diferen- tes do aspecto estdtico freqiiente na maioria das figuras antropomor fas da arte rupestre brasileira. Muitas das faces das figuras huma~ nas do Seridd, esquematizam perfis em atitude exaltada como se esti vessem gritando ou cantando, quando se trata de cenas de danga. Em geral, todas elas retratam grande expressdo emocional e, sobretudo, documentam extraordinarios movimento e agilidade nas numerosas ce~ nas de danca que se encontram nos abrigos que pesquisamos, destacan do-se, principalmente, as relacionadas com 4rvores ou ramos. No abri go "Casa Santa" pertencente ao municipio de Carnaiba dos Dantas, por exemplo, uma figura humana, adornada com grande cocar, ergue os bra cos sustentando um ramo de 4rvore e é evidente que essa atitude de- monstra ser um personagem importante, cuja hierarquia nao é somente assinalada pelo grande cocar, mas evidencia-se por uma fileira de outras figuras que o acompanha na danga. E provavelmente, uma das cenas mais marcantes do abrigo. Cenas parecidas, com pequenas va— riantes, aparecem noutros sitios: no abrigo Xique-Xique, também em Carnatba dos Dantas, em uma das mais belas representacgdes do "Esti- lo Serid6", uma roda de figuras humanas formando pares, gira em tor- no de uma personagem central, possivelmente mascarada, que sustenta um ramo em cada méo com dignidade e elegancia. A danca é fregiiente e variada, pois noutros abrigos, varias pessoas dancam em torno de uma arvore e no sitio "Mirador", em Parelhas, belas figuras que dan cam em torno de uma 4rvore, foram pintadas a cinco metros de altura do solo do abrigo. No sitio "Serrote do Gavido", uma figura isolada danga graciosamente sustentando duas araras nos bragos. Nao nos cabe o mérito da descoberta dessas pinturas. Apenas ini ciamos o seu estudo sistematico e cientifico. Faz mais de 50 anos que um sertanejo autodidata, José de Azevedo Dantas, copiou-as pa- cientemente a lapis, com precisdo digna de um desenhista formado e laureado em qualquer boa escola de desenho. No sertdo magico do Nordeste brasileiro, as coisas mais fantas. ticas sdo a realidade cotidiana.Acontecem normalmente no dia a dia, como tem assinalado o escritor Ariano Suassuna. A cobra que voa ou © passaro que fala, s40 elementos téo comuns na paisagem nordestina como 0 mandacara ou o juazeiro, a arvore magica que nda perde a fo- lhagem verde nem na mais cruel das secas. & necessario conhecer as brenhas do Xique-Xique sobre o rio CarnaGba, para compreender-se 0 fendémeno da existéncia de José de Azevedo Dantas, nascido e criado 1a, figura digna de romance, que aprendera a ler e@ escrever nas areias do rio, ensinado pelos irmdos mais velhos e que aprendera a desenhar sozinho, copiando caricaturas de jornais ou reproduzindo em papel barato, as figuras da nossa Histéria que ele achava mais dig- nas. Junto com seu irméo Mamede, inventor e avtedidata como ele, ob teve das folhas e flores do campo ag tintas para iluminar seus dese nhos e pinturas. Esse personagem nao foi singular somente no dese nho: escrevera de punho e letra, um jornal que intitulou "O Raio" e outro "O Momento, jornal dedicado 4 vida sertaneja", que distribuia pessoalmente entre seus conterrdneos, com noticias ingénuas e mora- listas, da vitéria bolchevique ao costume pernicioso 4 moral, das mulheres cortarem os cabelos. Na mesma medida, acreditava na solu- cao de todos os males deste mundo pela agaéo ben&éfica da educacdo e assim escreveu entre 1913 e 1928. Morreria tuberculoso aos 35 anos, Do manuserito de Dantas, felizmente, conservamos uma cépia. Ne le estdo recolnidos cada desenho dos abrigos do Seridd, alguns de- les hoje perdidos por acidentes naturais ou depredagdo humana. Nas trezentas laminas do manuscrito, seu autor, com cuidados didaticos, indica junto aos desenhos, 0 lugar do achado, além de comentarios que refletem a pureza dos seus sentimentos sertanejos. Ao iniciar o manuscrito, durante trés paginas de fina caligrafia, defende-se de uma improvavel vaidade, explicando textuaimente: "Um amigo fallando sobre o meu trabalho pensa leval-o & publictdade, eujo resultado se rd recompensade pelos poderes competentes, granjeando alem dieso o bom eoncetto do piblico. Ao contrdvto do que imagina ndo levo as cou sas por esse lado, pote trabalho apenas para ser util ds minhas pre oceupagdes @ ndo para angariar sympathia ou jutzo favoravel de um publico cheto de complexidades. Tambem ndo me alimenta idéta procu~ var ser agradavel por cousas que julgo de poueo aleance para mere- CLIO - Revista do Curso de Mestrado em Histéria 31 cer Lisongeira reputagdo. Portanto, se a minha tarefa é jd o resul- tado de um tempo em que, pela dura acea@o das ctireunstancias, vi-me foreado @ proeurar o tsolamento nas selvas, nesse mesmo tsolamento devo continuar com 0 resultado do’ meu trabalho. De qualquer forma, o tempo urge que empreguemos algum esforgo em provetto da humanida- de, ainda mesmo que seja na mats insignificante parcella do que po- de ser capaz o fator home Foi através desse manuscrito, do diario pessoal e de alguns ni- meros dos jornais conservados pela familia Azevedo Dantas, ainda re- sidente na cidade de Carnatiba dos Dantas, no Rio Grande do Norte, que nos foi possivel iniciar as pesquisas que nos levariam 4 desco- berta de um dos conjuntos pictéricos rupestres mais belos e interes santes do Brasil. Além do importante e evidente interesse arqueolégico e etnolé- gico dessas pinturas, poderiamos perguntar com a 6tica do historia- dor da Arte, qual o seu valor para o conhecimento da arte primitiva brasileira. No primeiro nimero da Revista VALBRARTE, © artigo do Prof. Ulpiano Bezerra de Meneses, da Universidade de S40 Paulo, in- titulado “Sobre as mil faces da arte primitiva",deu, por antecipado, a resposta. Diz Ulpiano B. Meneses que "o contato com a arte primi- tiva estd se tornando aberto e enriquecedor", ao mesmo tempo que cha ma a atencao para a forma preconceituosa com que se trata o termo "primitivo" na arte, quase sempre a partir de uma perspectiva "euro pocéntrica" Discute-se muito, entre os arquedlogos especialistas no tema, a validade ou ndo do termo "arte" aplicado 4 pintura rupestre pré- histérica. Achamos que toda manifestacdo estética forma, de uma ov de outra maneira, parte da histéria da sensibilidade humana e, con- seqiientemente, da histéria da arte. 0 pintor que retratou os fatos mais relevantes. da sua existéncia, nas rochas, tinha, indubitavel- mente, um conceito estético do seu mundo e da sua circunstancia. A inteng&o pratica da sua pintura poderia ser diversificada, variando desde a magia ao desejo de historiar a vida do seu grupo; porém o pintor certamente desejava que o desenho fosse "belo" segundo seus préprios padrées estéticos. Ao realizar sua obra, estava criando Ar te. Por outro lado, se as pinturas de Altamira, na Espanha, ou as da Dordonha, na Franga, sdo consideradas, indiscutivelmente, patri- ménio universal da arte pré-histérica, quando sabemos que, pintadas nas profundidades das cavernas escuras, nado foram feitas para agra dar ninguém do mundo dos vivos, néo ha porque duvidar ou negara 32 categoria artistica das nossas expressivas e graciosas pinturas ru- pestres do Serid6, No Brasil, a Arqueologia é, esteticamente falan- do, relativamente pobre, com excegéo das famosas ceramicas de Mara— j6, de Santarém, e Marac4 e alguns objetos singulares procedentes da Amaz6nia. Dai a importancia da pintura nas rochas, uma das poucas manifestagdes artisticas ou estéticas que nossos indios da floresta tropical e do sertdo nos deixaram. Porém os artistas do Seridé nao nos deixaram indicios materiais nos sitios das pinturas que permi- tam 4 Arqueologia conhecé-los melhor 4 excecéo de alguns enterra~ mentos muito tumultuados, nos quais os defuntos foram queimados e deles restaram apenas contas dispersas de colares de osso e concha marinha. Porém, através do realismo das cenas que se espalham nas rochas, podemos deduzir que conheciam a tecelagem, sugerida nos be~ los tapetes pintados em variada policromia. Utilizavam a navegagao fluvial, com pirogas e remos desenhados em grande quantidade e deco xados com desenhos geométricos. Arcos, flechas, propulsores e bordu nas, aparecem como armas de caca e guerra. Grande variedade de ador nos plumérios, pintura corporal e roupas de fibras vegetais eram uti lizados. Poderiam conhecer a cerémica, se interpretarmos como tal os recipientes que muitas figuras carregam, nas méos ou penduradas numa vara apoiada nos ombros. Pelos adornos e maior tamanho de algumas fi guras, identifica-se o chefe do grupo e pelas diferencas das vestes e formas dos cocares, os membros de tribos diferentes. Encontramos, retratada na rocha, uma sociedade que, seguramente, correspondera a grupos primitivos que possuiam culturas agricolas baseadas no milho ou na mandioca e que, calcula~se que em torno de 2.000 anos atras te nham iniciado formas incipientes de agricultura no Nordeste do Bra— sil. CLIO - Revista do Curso de Mestrado em Histéria SITIO XIQUE-XIQUE T CARNAGBA DOS DANTAS RN 34, NY SWINWd sod vagvNuvo I aNOIxX-anoIx OILS oo Ss oO BOON LL CLIO - Revista do Curso de Mestrado em Histéria SITIO LAGEDO, SERROTE DO REINADO CARNAGBA DOS DANTAS, RN ie ¥ 4 SITIOS XIQUE-XIQUE I EM CARNAOBA DOS DANTAS E BOQUEIRAO EM PARELHAS RN CLIO - Revista do Curso de Mestrado em Histéria SITIO XIQUE-XIQUE I - CARNAGBA DOS DANTAS-RN. 37

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