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CLIO ~ Revista do Curso de Mestrado em Histéria 81 ARTE RUPESTRE NO SERIDG(RN): O SITLO “MIRADOR” NO BOQUEIRAO DE PARELHAS* GABRIELA MARTIN da Universidade Federal de Pernambuco Bolsista do CNPq O sitio "Mirador", no Boqueirdo de Parelhas, noRio Gran de do Norte 6 0 inico dos até agora descobertos, com pinturas ru- pestres do estilo Seridé (Martin, 1981, 1982, 1984), que apresen- tava possibilidades de escavacdo arqueolégica. De fato, na “cape- la" ou "Santudrio" que caracteriza esses sitios — e que consiste em um recanto protegido onde se acumula maior concentracéo de pin turas — existia suficiente sedimento factivel de ser escavado. Como j4 explicamos em publicagées anteriores sobre a regido, os sitios que abrigam as belas pinturas rupestres do Seri dé,ndo eram lugares de habitacdo e supottos que o "habitat" dos artistas pintores dos abrigos das serras, deveria localizar-se em aldeias perto dos rios que formam a bacia do rio Seridé e seus afluentes. A rica tem4tica das pinturas sugere-nos grupos agricul tores de estrutura social complexa. A area escavavel era pequena, nao superior a trés por quatro metros de superficie, e 0 sedimento entrava em contato com as pinturas indicando ocupagdo posterior. Nosso interesse em efe- tuar essa escavacdo era enorme porque dependendo dos resultados tinhamos esperanca de obter dados complementares e esclarecedores * Pesquisa realizada com auxilio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cien— tifico e Tecnolégico - CNPq. 82 do esta4gio cultural dos artistas do Serid6 do qual somente conhe- cemos a realidade plastica pintada por eles mesmos. A revista Maachete 34 havia publicado ampla matéria so- bre a arte rupestre do Serid6, ilustrada com numerosas fotogra-— fias, varias das quais pertencentes ao sitio “Mirador" e.como a divulgacdo poderia atrair visitantes indesejados, resolvemos rea- lizar a escavacgdo o mais rapidamente possivel. A camada arqueolégica descoberta tinha 60 cm de espessu ra, depois de retiradas as numerosas pedras colocadas, nos pare- ce, propositadamente. A drea escavada estava ocupada por uma ne- crépole indfgena utilizada, principalmente, para enterramentos in fantis. Os sepultamentos foram realizados a menos de 30 cm de pro fundidade, sem nenhuma ordem aparente e foram posteriormente tu- multuados pelos animais selvagens. Misturados aos ossos humanos foram achados também numerosos ossos de roedores. Coletamos, como nico enxoval funerario contas de colar de osso e concha, com os quais foi possivel a reconstrugdo de trés colares. Os restos achados nao podem ser relacionaios com as pintu- ras; apenas, como ja dissemos, assinalavam uma ocupacdo posterior. Foram coletados, em pequena quantidade, restos esparsos de carvdo a 60 om de profundidade que, coletados com os devidos cuidados, foram encaminhados ao Instituto de Fisico-Quimica "Roca solano" do “Consejo Superior de Investigaciones Cientificas" de Madrid, para sua possivel datacao radiocarbénica. Foram também realizadas outras sondagens em diferentes pontos do abrigo que resultaram, infelizmente, estéreis. Eleva-se o sitio “Mirador" sobre o vale do rio Seridénu ma barreira calcarea quase vertical, ligeiramente inclinada para dentro, e que permite a protecdo das pinturas em alguns trechos. 0 CLIO - Revista do Curso de Mestrado em Historia 83 sitio est4 formado por um pareddo de 40 metros de largura varian- do a altura entre cinco e dez metros. As pinturas desenvolvem-se desde o chao até alturas de quatro a cinco metros, fazendo-se ne~ cessario para copia-las, levantar-se andaime. No lado oeste do si tio, uma cavidade cuja altura nao sobrepassa 1,60 m serve de abri go, lugar escolhido para ser realizada a escavacdo. A rigqueza do sitio em pinturas é tal que cada visita significa uma grata aventura, pois, dependendo da hora e tipo de luz, € possivel descobrir-se novos desenhos que em geral _ passam desapercebidos nas primeiras exploragées. Dividimos o sitio em cinco grandes painéis pictéricos, para facilitar o estudo e a identificacdo das pinturas no labora-— torio, embora o sitio "Mirador" seja todo ele um grande e nico painel de centenas de figuras e cenas. Como ja £izemos aopublicar © abrigo “Casa Santa", de Carnadba dos Dantas (G. Martin, 1982), dentro da divisdo subjectiva em painéis, separamos as cenas na me dida do possivel, ante a impossibilidade de reproduzir inteiros os enormes painéis. As cenas est4o formadas, em geral, por varias fi guras humanas, sendo menos comuns os antropomorfos isolados. Por muito detalhados que se pretenda ser na descrigao das cenas, nada mais expressivo que a vis4o da prépria cena, dada a qualidade prépria do estilo Serid6. As cenas que aqui apresenta mos S40 apenas uma pequena amostra do sitio "Mirador", cujo estu- do completo por niveis de identificacdo, sera objeto de outro tra balho. Ndo apresentamos neste artigo que, pretende, apenas ,ser uma nota prévia, as pinturas da "capela" ou "santudrio" onde rea~ lizamos a escavacdo, pois a acumulacdo e superposicdo de grafismos de acdo e composicaéo, seguramente realizados em etapas diferen- 84 tes, 6 de tal ordem que precisa-se de uma publicacdo especial com transparéncias, para se poder assinalar a superposi¢do no papel. Cabe observar no sitio "Mirador" que as cenas situadas nos painéis fora da "capela" foram pintadas com certa parciménia @ até separadas umas das outras. Entretanto, na "capela". existe verdadeiro “horror vacui", com superposigdo de grafismos nas co- yes vermelho, preto, amarelo e branco e representacgao de grafis- mos puros, raros no estilo Seridé. Comentarios sobre as cenas que aqui apresentamos estado no pé da prépria ilustracdo. : Algumas consideragSes sobre as pinturas do estilo Seridd Apesar da falta de dados materiais nos sitios arqueolé- gicos rupestres do Serid6, a variedade tematica das pinturas, per mite-nos reconstruir um universo indigena cheio de rigveza antro- polégica, pinturas que, em mais de noventa por cento dos grafis- mos representados, podem ser consideradas como grafismos reconhi cidos ou reconheciveis, ou seja, segundo 0 método proposto por A. M. Pessis (1994) para a interpretacdo da arte rupestre, as pintu- ras do Serido, ja a partir do nivel cenografico ou primeiro ni vel de interpretagdéo podem ser classificadas e interpretadas, da da a clareza da sua tematica. Segundo A.M. Pessis (1984), a iden- tificagao da arte rupestre deverd ser feita em quatro fases ou ni veis de interpretacdo © identificagdo (niveis morfolégico, ceno- grafico, hipotético e conjectural). Na pintura e gravura esquema- ticas a aplicagdéo dos dois Ultimos niveis no estudo dos grafismos puros, situa-se muito no terreno hipotético, se como geralmente ocorre, as representacGes rupestres ndo estado apoiadas em dados arqueolégicos. Somente, com apurados estudos estatisticos podere CLIO - Revista do Curso de Mestrado em Histéria 85 mos ampliar nosso horizonte de conclusées. Porém, na pintura ru- pestre do estilo Seridé, mesmo sem a ajuda do material arqueolégi co mével, a possibilidade de reproduzir 0 universo antropolégico dos seus autores 6 mais fScil e a aplicacdo do método de Pessis pode levar 4 interpretacdes certeiras. : A anglise dos tragos de identificagao da Toca da Entra- da do Baixao da Vaca, no SE do Piaui, é um bom exemplo desse tipo de interpretacao e que aplicaremos no caso do Seridé, pois ambos estilos "Serra da Capivara" e "Seridé", pertencem 4 Tradi¢gao Nor- deste. A experiéncia tem demonstrado que, mesmo quando o aces- so as pinturas ¢ cépia das mesmas, resulte de um trabalho longo e penoso, na realidade isso 6 apenas uma minima parte do trabalho total, tantas sdo as fases de estudo, identificacdo e interpreta cdo que as mesmas exigem no laboratério. Apesar de trabalhar cinco anos no levantamento da arte rupestre do Serid6, estamos ainda na fase inicial de localizacdo e cépia de sitios e temos procurado publicar, o mais rapidamente possivel, notas prévias sobre os sitios com alguns exemplos de identificacdo do estilo, de forma a dar conhecimento a comunidade arqueolégica que os poderd utilizar para seus préprios estudos. Somente depois de acumular uma ampla bagagem de dados, é que pas- saremos ao estudo pormenorizado por niveis. No caso do Seridé e no estado atual da pesquisa, esta- mos interessados em localizar a cultura do Seridé, cujos homens pintavam abrigos, deixando-se para uma segunda fase o estudo da propria pintura em si. Esse estudo se nos apresenta muito sugesti. vo e rico em dados, mas o desejo de realizar trabalho cientifico e pormenorizado obriga-nos a nao precipitareampliar nosso fundo de dados. 86 © nivel conjetural ou Gltimo nivel de interpretacdo, se gundo o método proposto por Pessis 6 "o resultado do estudo dos demate nivets e eonduz cobretudo o peequisador a suposicdes natu- ralmente contestdvete. Trata-se efetivamente de suposigoes mata ou menos razodvets, fundamentadas em fatos conkectdos, mas que 0 pesquisador ndo estd em condicées de vertftear". mplicando-se es- se nivel as pinturas do Seridé, encontraremos respostas certas ms RO que nao estejamos em situagdo de verificd-lezs smaterialmente. exen grupos conhecescxes da 3 a reagées com desenh nicleo social mais importante, pode ser Geduzida pelas cenas que temos chanado de "grupos familiares", presentes em todos os abri- gos. A idéta de chefia ou hierarquia de um homem sobre cs denais, fica também girnemente determinada nos grupos de“cagadores e suerreiros. Aqui chegamos a um ponto delicado na metodologia des- dos grafismos. M. Consens (1981) afirma ndo accitar os ter cSes descr: mos das compos as como "guerreiros dancando", de caca", etc.. porém, ndo explica como ele descreveria uma cena homanas lutam com bordunas ou como cCeveria ser exito um o de veados perseguidos por um grupo de figuras bumanas aru com arcos e flechaa. Alega o referido autor que "surge a duvida se teriam existido como tats na mente do vealiza dor dos desenhos ou se aseim sao considerados apenas pelo fruto de veflezdes etnocéntricas do arquedlogo”, Perguntamos, especial mente no caso das pinturas do Seridé, se 0 realizador dos dese- nhos quando pinta uma cena de caca ou luta estaria querendo repre sentar outra coisa para confundir o espectador. Queremos ver nas palavras de Consens, uma chamada 4 cautela na hora das descricées e afirmativas a respeito da arte rupestre. CLIO - Revista do Curso de Mestrado em Histéria 87 Seguramente 6 o medo de utilizar palavras gastas ou vi ciadas no seu significado, quando aplicadas 4s representagées ru- pestres, a razao da utilizacdc do termo “grafismo", menos compro- metido e mais abstracto que "figura", "sinal", "desenho“, "simbo- lo", etc. Utilizado por Leroi-Gourham nas suas aulas do Colégio da Franca, a partir de 1969 (A. Leroi-Gourham,1984), estahoje in troduzido na metodologia brasileira por N. Guidon e osmembros da sua equipe. Cada pesquisador deverd, mesmo dentro de uma metodologia padronizada, realizar suas pequenas adaptacdes. Como diz Dorath Pinto Uchda, "0 método ¢ determinado pelo sttio", e esta curtafra se encerra o melhor pragmatismo aplicdvel A qualquer metodologia. Registre-se também que é comum utilizar-se o termo "antropomorfo" ou "figura antropomorfa" para a figura humana, mais ou menos esbo cada, sem determinacao de sexo; porém, nas pinturas do Serid6 as cenas sdéo t&o determinadamente humanas, tdo representativas da vi da cotidiana, que chamé-las de antropomorfas seria dar ambigiiida- de ao fato conereto, e, por isso, neste caso, nos grafismos de agdo utilizamos o termo " igura humana" preferentemente ao termo antropomorfo, sem que isso impe¢a que 0 utilizemos nos sitios da Tradigdo Agreste em Pernambuco. BIBLIOGRAFIA CONSENS, M. 1981-1982 Arte rupestre no Piaui. Alguns problemas prévios sua andlise morfolégica. Arquivo do Museu de Histé ria Natural, v. VI-VII, Belo Horizonte, GUIDON, Niéde 1981-1982 Arte rupestre: Uma sintese de procedimento de pes quisa. Arquivo do Museu de H.N., v. VI-VII, Belo 88 LEROI-GOURHAM, André. 1984 Arte y grefismo en la Europa Prehistérica. Ed. Ist- mo, Colegio Universitario, Madrid. Simbolos, artes y creencias de la Prehistoria. Ed. Istmo, Colegio Universitario, Madrid. MARTIN, Gabriela 1981-1982 0 estilo "Serid6" na arte rupestre do Rio Grande do Norte. Arch. do Museu de H. N., v. VI-VII, Belo Ho- rizonte. 1982 “Casa Santa": Um abrigo com pinturas rupestres do es tilo Seridé, no Rio Grande do Norte. CLIO ne 5, Uni versidade Federal de Pernambuco. Recife. 1984 Amor, violéncia e solidariedade no testemunho da ar- te rupestre brasileira. CLIO ne 6, Série Arqueolégi ca ne 1, UFPE, Recife. MONZON, Susana. 1984 Andlise dos tragos de identificacdo. Estudo de um caso: A toca da Entrada do Baixao da Vaca. CLIO n?6, Série Arqueolégica ne 1, UFPE, Recife. PESSIS, A. M. 1984 Métodos de interpretacao da arte rupestre: analises preliminares por niveis. CLIO n? 6, Série Arqueol6-— gica n? 1, UFPE, Recife. CLIO - Revista do Curso de Mestrado em Histéria 89 Sitio "Mirador" (Parelhas). (1-2) _Cenas de luta, com representagao do sexo, pouco comum no estilo Seridd, onde, geralmente, o sexo nao @ representado. (3) Desenho de tecido ou tapete com motivos geomatricos. Cor vermelha. 90 Sitio "Mirador" (Parelhas) Cena com figuras humanas pintada a cinco metros de altura do sola do abrigo. Cor vermelha. 92 CLIO - Revista do Curso de Mestrado em Histéria Sitio “Mirador” (Parelhas) Duas fases da escavacdo arquedldgica. 93 94 Sitio "Mirador" (Parelhas) Colares de osso e concha do enxovai funerario. CLIO - Revista do Curso de Mestrado em Histéria Sitio "Mirador" (Parelhas) “Grupo familiar" tipico do estilo Seridé e figuras humanas dangando- 95

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