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Paul Brunton

A CRISE
ESPIRITUAL
DO HOMEM

UNIVERSALISMO
Sumário

Capítulo 1 — A Crise na Sociedade

Capítulo 2 — Não Haverá um Mundo Melhor sem Homens Melhores!

Capítulo 3 — A Idade da Máquina

Capítulo 4 — A Crise da Ciência e do Intelecto

Capítulo 5 — O Ego em Evolução

Capítulo 6 — O Homem na Tribulação e na Felicidade

Capítulo 7 — A Vontade do Homem e a Vontade de Deus

Capítulo 8 — O Mal em Nosso Tempo

Capítulo 9 — Deus É!

Capítulo 10 — A Voz do Profeta

Capítulo 11 — Os Nossos Recursos Interiores

Capítulo 12 — A Busca

Capítulo 13 — O Silencioso Chamado do Eu Supremo


A Crise Espiritual
do Homem

O autor, mundialmente conhecido por suas valiosas obras abordando os mais


variados problemas filosóficos e místicos da Alma humana, traduzidas em várias
línguas, oferece mais esta, ora vertida para o nosso idioma. Seu tema é
sobremodo sugestivo, na época atual de transição do mundo, e seu estilo, como
sempre, empolga pela clareza e arguto espírito observador.

São treze substanciais capítulos, em que começa analisando criticamente a atual


situação espiritual do homem, incapaz de responder inteligentemente ao desafio
do presente, mas deixando-se envolver e tragar em seu vértice demolidor, e
termina apontando a solução correta, que é a busca de seu Eu Superior e
atendimento ao chamado do Eu Supremo.

E sabe fazê-lo de maneira magistral, sob uma ampla perspectiva, capaz de


satisfazer os que também se defrontam com essa crise mundial e individual e
lhe desejam equacionar a solução.
1
A Crise na Sociedade

O mundo anterior à guerra procurou ansiosamente e avidamente engoliu uma


dose excessiva de prazer para deleitar os sentidos e de progresso para agradar
à mente. Entretanto, tão pequeno era o seu controle sobre a vida que, pouco
depois, ele se via forçado também a engolir uma dose excessiva de sofrimento
e dano. No momento exato do seu maior triunfo, ao alcançar a conquista
suprema sobre as coisas materiais e as forças sutis, a civilização do mundo
converteu-se em tragédia.

Muita gente esperava e supunha que o fim da guerra e o princípio da paz também
seriam o princípio de um período de aflições cada vez menores e normalidade
cada vez maior. Muita gente esperava e supunha que as nações iniciassem vida
nova no terreno da amizade e da compreensão. Mas a história do mundo do
após-guerra, que deveria ter sido a história desse movimento triunfal do mau
para o bom, tornou-se, ao invés disso, a história do deplorado movimento do
mau para o pior. A paz que se seguiu à guerra, como se vê, não é paz.

Os tempos posteriores à guerra são dignos de nota pela suprema expectativa,


pelo caos desagradável e pela insegurança que dominam países inteiros e até
continentes, e pelo estado de crise ininterrupta. Excetuando-se uma vintena de
anos, as crises vêm-se sucedendo sem que se possa vislumbrar-lhes o fim.
Nunca até agora um número tão grande de pessoas se viu mergulhado em
tamanha incerteza, em tão grande perplexidade e inquietação. Os sinais dessa
situação são tantos e tão claros que todos podem lê-los. As confusões começam
com o café da manhã. Movimentam-se com medonha rapidez. Dificilmente se
passa uma semana sem uma sensação de proporções mundiais. Os jornais nos
dão, num único número, o que era antes a história de um mês inteiro. As suas
páginas nos consternam e conturbam com relatos de novas crises, que se
seguem ritmicamente às anteriores; deixam retesados e tensos os nossos
nervos com quadros de mercados deprimidos e humanidade oprimida; estreitam-
nos os olhos com histórias de mudanças repentinas. A situação já é
suficientemente dramática e seria fantástica se não fosse tão trágica também.

Expostos como estamos às agitações da nossa era, é mais difícil do que nunca,
para nós, manter a serenidade de espírito. As notícias desalentadoras nos são
transmitidas com demasiada frequência e os medos perturbadores se tornaram
tão insidiosos que não nos permitem conservar a placidez senão à custa de
ingentes esforços. Sem paz interior, sem segurança externa, o homem moderno,
que durante tanto tempo se condoeu dos seus antepassados da Antiguidade e
da Idade Média, converteu-se hoje num objeto de piedade. Existem
características alarmantes no crescimento do seu desequilíbrio emocional e da
sua instabilidade mental. Há em sua mente e há em sua vida excitações
neuróticas e tumultos patológicos, paixões veementes e perigosas indecisões.

Uma sombria implicação flui debaixo da palestra cotidiana do mundo. Os homens


franzem intermitentemente o cenho, preocupados, à medida que as suas
esperanças se reacendem e apagam, alternadamente. Vivem numa espera
prolongada e numa ansiosa expectação. Buscam forças um no outro, mas não
as encontram. O medo substitui a fé, e a perplexidade e a confiança correm de
um lado para outro, num constante vaivém. Há pressentimentos em seus
corações e assombro em suas mentes. E eles começam a perguntar:

— É este o fim inglório a que nos conduz a nossa tão gabada civilização
moderna?

As guerras e as crises puseram a nu a terrível potencialidade para o mal que


ainda se esconde no homem, a despeito da sua aparência civilizada. Não faz
muito tempo que ele supunha haver deixado para trás o selvagismo, mas as suas
atividades recentes e contemporâneas mostram positivamente que isso não
aconteceu. A verdadeira tragédia do nosso tempo não reside tanto nos próprios
acontecimentos externos, sem precedentes, quanto na indigência ética e na
enfermidade espiritual, sem precedentes também, que eles revelam com tanta
clareza. Quando nos lembramos dos esforços impressionantes e dos legados
institucionais de profetas religiosos, e quando a isto acrescentamos a enorme
quantidade de literatura exortiva que deixaram após si, para guia da posteridade,
os sábios filósofos e os renomados pensadores de tantos períodos passados em
tantas partes do mundo, poderíamos razoadamente esperar ver um pouco
menos do velado barbarismo, do materialismo sem discernimento e do violento
egoísmo que têm campeado, tão agressivos, em nosso próprio tempo. Terá,
porventura, cada época de aprender de novo a sua Ética? Jamais descansará,
acaso, a alma errante do homem? O mundo está pejado de experiência, mas
ela, ao que tudo indica não nos vale em nossa hora de precisão.

A triste confusão do nosso tempo parece completa. Não é necessário traçar um


quadro vívido das condições, tão manifestas à maioria dos exaustos habitantes
deste planeta atormentado. O cientista que trabalha em seu laboratório, o político
que declama do alto dos seus palanques, o historiador com os olhos fitos nos
registros de séculos desaparecidos, o economista com as suas cerradas fileiras
de cifras, o clérigo perplexo diante das páginas apocalípticas das escrituras, e o
soldado atento às paixões nacionais — todos, por igual, nos oferecem as suas
opiniões, as suas vigorosas convicções e as suas panacéias preferidas. Não
devemos duvidar de que o que eles têm para oferecer-nos possua uma dose
maior ou menor de verdade, mas quando ouvimos todas as suas vozes ao
mesmo tempo é como se tivéssemos sido transplantados para alguma moderna
torre de Babel, tão conflitantes e contraditórias são as suas explicações
descritivas e as suas prescritivas sugestões. Os escuros problemas da nossa
era não são de fácil solução para os professores, que também não podem
mandar os amigos do gênero humano saírem pela noite afora a fim de se
aconselharem com as estrelas. Se a crise esclareceu muita coisa para umas
poucas cabeças, confundiu tudo para muitas. Estas já não sabem para onde
voltar-se em busca da verdade, nem no que devem acreditar no presente, nem
tampouco o que esperar do futuro. Sentem-se atarantadas pelas incertezas
paralisantes, e acabrunhadas diante das tremendas manchetes que olham todos
os dias para elas do alto das páginas dos jornais. Esses acontecimentos fazem
com que a maioria se sinta como que impelida de cambulhada, sem saber ao
certo para onde. O resultado é que também não sabem como lidar com as
dúvidas que lhes inficionam a consciência, nem com os obstáculos que
interferem na sua conduta.

Os terríveis choques físicos da guerra tiveram as suas repercussões nos


choques mentais subsequentes. Os homens, dessarte, viram-se obrigados a
examinar e, por conseguinte, a descobrir não somente os valores e as verdades,
mas também os erros e os delírios implícitos em suas opiniões. O curso dos
acontecimentos forçou-os a indagar se valia a pena perseverarem em suas
atitudes e se as suas crenças eram verdadeiras ou falsas. As respostas podem
ter sido totalmente erradas, mas eles dificilmente teriam podido subtrair-se às
perguntas.

Os choques do tempo da guerra e as ansiedades do tempo da paz exerceram


influência sobre o caráter, tanto benéfica quanto maléfica. Quem quer que tenha
passado por eles e permanecido o mesmo homem inalterado, conservando as
mesmas inalteradas opiniões, só poderá ser um sábio ou um doido — e os
sábios, que se dão ao trabalho de sondar as profundezas e não se detêm à
superfície, são raros. Está claro que existem os que acreditam piamente não ser
diferentes do que eram antes. Mas estes se enganam. Podem dar a impressão
de haver mudado pouco, mas o subconsciente registrou mais. Os ferimentos do
corpo causados pela guerra podem curar-se depressa, mas os efeitos mais
profundos da guerra se evidenciam lentamente.

Efeito curioso, assim da guerra como da crise, sobre as pessoas em toda parte
é a divisão delas em três grupos distintos e diferentes — tão diferentes que o
quadro se torna paradoxal. Pois, conquanto tenham passado pela mesma
experiência de miséria nos tempos de guerra e de caos nos tempos de paz,
sacaram dessa experiência conclusões divergentes! A mesma angústia
universal ou a mesma atribulação pessoal, que desmantelaram a fé religiosa de
muitas pessoas, fortaleceram a de outras; deixando, ao mesmo tempo, um
terceiro grupo indiferente e apático em relação à religião, preocupado tão-só com
uma visão exclusivamente política ou econômica da vida, escorada num ódio
feroz de classe ou nacional. A mesma catástrofe que estragou a fé quebradiça
de alguns, fortificou e revitalizou a fé declinante de outros, ou a levou, pela
primeira vez, à mente de um terceiro grupo; entretanto, muitos há que, perdido
o interesse tanto pela aceitação quanto pela negação, voltaram-se, de todo, para
assuntos mais mundanos. Dentre os que reagiram aceitando a religião, muitos o
fizeram por necessitarem urgentemente de alguma espécie de refúgio, e não por
haverem investigado se, de fato, se trata de um refúgio certo ou duradouro.
Precisamente pelas mesmas razões, outros se entregaram à bebida, à
sensualidade ou à violência política.

Todas as crises da humanidade aproximaram alguns de uma vida melhor, mas


também dela arredaram outros. É truística a afirmativa de que os homens são
seres complexos. Neles andam misturados o bem e o mal, como andam
entrelaçados os propósitos exaltados e os motivos baixos. Daí que a sua conduta
nas circunstâncias ora vigentes seja igualmente complexa. Se muitos
sucumbiram às negaças desatinadas da fugaz sensualidade, outros se
elevaram, respondendo ao chamamento mais alto da busca espiritual; outros
ainda encontraram satisfação na adesão entusiástica a partidos políticos ou
doutrinas econômicas, que agitam o estandarte de lemas altruísticos, mas
acabam levando à violência demoníaca.

Com os nervos abalados e os sentimentos feridos, a humanidade passou pela


provação da guerra mundial, ou para cair moralmente através de uma
interpretação negativa das suas experiências, ou para elevar-se espiritualmente
através de uma compreensão positiva do seu verdadeiro significado. A primeira
reação dilatou o egoísmo e estimulou a animalidade. A segunda, reduziu o
egoísmo e sujeitou a animalidade. Uma despertou os homens, através das
aflições da guerra e das ansiedades da crise, para a busca espiritual. A outra os
conduziu, pelos mesmos acontecimentos, para o desleixo e a degradação
espirituais, ou para o ódio social violentamente destrutivo.

À violência da guerra sucedeu o tumulto da paz. O sacrifício e o idealismo da


primeira foram seguidos por uma recaída no egoísmo e no cinismo da segunda.
As influências da desintegração moral e da perturbação social são
ameaçadoramente ativas. Apesar das desgraças e lições de vida de que foram
palco as terras escalavradas pelas batalhas, o velho erro e o velho espírito estão,
mais uma vez, em nosso meio. Os efeitos morais da experiência por que passou
a humanidade não mostram o progresso suficiente no terreno do caráter e das
metas necessário para conduzi-la a bom recado durante esse período perigoso.
Embora subsistam alguns resíduos, certa marca definida sobre o caráter, a
inspiração pública e o altruísmo individual, tantas vezes gerados durante esses
anos críticos de guerra, declinaram em grande parte, deixando após si a
frustração e a apatia. Os padrões sociais tornaram-se mais duros, menos
sensíveis e mais materialistas do que antes, mais do que nunca votados ao
conforto do corpo e aos deleites do espírito; não respeitam a pobreza honrada.
A ampla degradação das maneiras é um mau acompanhamento da derrocada
dos ideais.

Quando se tornam impotentes as sanções religiosas da moral, como aconteceu


tão dramática e preponderantemente em certas terras, os resultados são graves.
Quando se escoa a vida interior da religião, quando a fé e a reverência se
desgarram para as gerações mais velhas e perdem o sentido para as gerações
mais jovens, é inevitável que a vida exterior da sociedade desvele o caos e o
crime, e que os homens se sintam enojados dos seus semelhantes ou
desesperançados deles. Quando a fortuna é incerta, quando a vida é vulgar, e
rugem as tempestades sociais, os homens que não vêem nisso uma
admoestação para transcender tudo na busca espiritual de si mesmos, vêem-se
tentados a esquecer tudo na busca temerária do prazer. Sentem-se
descontentes com a sua situação pessoal e insatisfeitos com a futilidade e a falta
de sentido da existência. Deixam-se, por isso mesmo, flutuar à superfície,
tentando esquecer, e repetindo os versos de Ronsard, o poeta francês do século
XVI:

E como ninguém pode dizer o que amanhã virá,


Vive, colhe hoje as rosas do mundo.

O desejo ardente da excitação física, a tendência para sórdida aventura e a


aceitação irrestrita dos impulsos animais são favorecidos por muita coisa da
nossa civilização descuidada, e favorecidos em detrimento nosso. A catástrofe
pessoal ou pública levou os desequilibrados a encontrar momentâneo refrigério
no cinismo e no sensualismo, os quais, no fim, são inúteis, quando os poderia
ter levado ao jejum, à oração e à reflexão, que muitas vezes podem ser úteis.

Assistimos, no correr da mesma existência, a mudanças de pensamento e


opinião, de conduta e meio, tão vastas que dificilmente algum profeta previdente
poderia ter falado sobre elas e ser crido. Não obstante, apesar de tudo isso,
subsiste o fato de que o caráter moral de amplos grupos da humanidade está
consideravelmente pior do que antes, e as motivações mais materialistas do que
nunca. Muitos dos que eram outrora indiferentes à religião, continuam
indiferentes. Muitíssimos outros consideram o estudo espiritual ou a prática
mística um luxo inútil e declaram não ter tempo para isso. Certa seção dos
intelectuais zomba dessas coisas, tachando-as de escapismo, sem imaginar
sequer que são eles os verdadeiros escapistas. Não lhes passa pela cabeça que
isso poderia ser até uma parte da atividade característica do ser humano. A visão
que eles têm da vida está positivamente fora de foco. A guerra não os tirou da
sua atitude escapista; o horror e o choque, o sangue e a tribulação não lhes pôs
a nu a insuficiência. O homem que fala como crente em coisas espirituais,
entendem eles, é um simplório ingênuo ou um hipócrita calculista.

A angústia e o desespero de vítimas infelizes de operações malignas e perversas


opressões deixaram muitas delas encalhadas nas praias da dúvida sobre a
existência de um poder mais alto, e do ceticismo quanto à sua beneficência. A
tensão elevada, o terror e a angústia dos tempos não somente prejudicaram
algumas pessoas, mas também se revelaram superiores às forças de outras. A
primeira guerra mundial foi o acontecimento que finalmente destruiu a fé do
romancista inglês Thomas Hardy num Deus generoso. A segunda guerra
mundial levou a brilhante intelectual, que era a escritora inglesa Virgínia Woolf,
a buscar refúgio no suicídio, deixando após si estas palavras lamentosas: “Tenho
a impressão de que vou enlouquecer e não posso continuar vivendo nestes
tempos terríveis”. Os seus sentimentos não aguentaram a angústia da
existência. O mal do mundo sujeitou-lhe a mente.

Muitos que outrora acreditaram haver um movimento no destino da humanidade


que conduz para o Bem, agora acreditam que ele conduz para o Mal. Deverão,
acaso, ser censurados se as escuras calamidades do nosso tempo produziram
essa mudança inesperada da fé? Quando a bondade é metida a riso e as
pessoas bondosas lançadas no desespero; quando os falsos, os cruéis e os
diabólicos são tão poderosos, não é muito para admirar que o espírito dos
homens se veja apunhalado de dúvidas. Diante de forças monstruosas, que
reaparecem, aparentemente vitoriosas, e revelam tanta maldade e ignorância,
tanta bestialidade e astúcia, eles podem ser perdoados por pensar, às vezes,
que todas as suas melhores esperanças são meras ilusões, que todos os seus
valores religiosos e morais não passam de imposturas. Não é possível verificar
com exatidão se os que não têm fé religiosa ultrapassam em número os que a
têm, mas são sem conta os que foram espiritualmente paralisados pela tragédia
e pelo terror do que suportaram.

Entretanto, existem outros que esperavam que, depois de todo esse sofrimento,
depois de todo esse horror, uma nova humildade tomasse conta do mundo, a
humildade capaz de reconhecer e reverenciar um poder mais alto que o do
homem. Quando tantas pessoas em tantos lugares viram supostas seguranças
transmudadas em ficções; quando tanta coisa deu de si debaixo deles,
obrigando-os a alongar a vista para além das tribulações presentes e para além
das atuais aflições, acreditava-se que isso houvesse ensinado aos capazes de
haurir algum ensinamento a necessidade de acreditar em Deus. Houve
precedentes históricos para a idéia de que as destrutivas agonias da guerra e as
caóticas misérias da paz levassem muita gente a um cansado pessimismo, que
procuraria no extraterreno o que não podia encontrar aqui.

A proximidade ou a distância da realização de uma esperança dessa natureza é


discutível, mas há uma coisa a respeito dela que não o é: a crise ensinou, acima
de tudo, e continua a ensinar, que quem não enfrentar decisiva e definitivamente
o problema espiritual da sua existência sobre a terra não escapará à insegurança
e à ansiedade mentais. E não só suscitou essas questões, como também obrigou
as pessoas a sair à cata das respostas. E se as pessoas foram capazes de
passar pelas experiências dessa guerra e dessa crise sem se deter para
perguntar a si mesmas, de vez em quando, qual é o significado da vida humana,
estão destinadas a continuar sofrendo insensatamente. No meio do colapso dos
patrimônios, do desmoronamento da fé e da catástrofe dos acontecimentos,
somente os que começaram a encontrar valores permanentes, capazes de
sobreviver a esses desastres, poderão realmente pôr fim ao seu sofrimento
mental, relaxar as suas tensões, e reduzir os seus temores. Nos demais, a
consciência de uma falta interior tornou-se mais aguda, a sensação da
necessidade de uma satisfação interior, que não foi encontrada, tornou-se mais
forte. Entretanto, a idéia do que é realmente necessário permanece confusa e
vaga, ou tragicamente errada.

Disseram os cínicos que o homem continua a ser o mesmo bárbaro, que é pura
fantasia esperar pelo seu progresso espiritual num futuro próximo. Mas dizer que
é loucura esperar uma rápida e geral revivescência espiritual não é dizer que a
guerra não deixou algum depósito espiritual na mente de uma seção da
humanidade. A caixa postal de todas as pessoas que escrevem com eficiência
sobre assuntos espirituais ministra provas de que muita gente está começando
a interessar-se por esses assuntos pela primeira vez e por motivos decorrentes
da crise mundial. O seu despertar do letargo espiritual já foi iniciado, embora o
preço pago por ele tenha sido terrível. Mostra-nos a História que é sobretudo
nessas épocas de sofrimento generalizado, de sublevação social e de valores
feitos em pedaços, de crise religiosa e desafio moral, que se buscam mais
amplas e mais altas concepções de vida e nascem novos movimentos
espirituais.

Se a guerra trouxe profunda miséria ao gênero humano, também trouxe com ela
uma profunda oportunidade para que os homens se humilhassem pelos
sofrimentos, aprendessem com as reflexões e se envergonhassem dos seus
erros. Do seu vasto sofrimento — desse banho de sangue humano — todos
tiveram a oportunidade de erguer-se, depurados, purificados e mais sábios.
Hesitante e confusamente, alguns lhe aprenderam corretamente as lições sob a
terrível pressão dos acontecimentos, purificando-se de crenças tolas e conceitos
materialistas. O seu choque drástico e as suas miseráveis consequências
acarretaram a perda de alguns apoios externos e isto, por seu turno, acarretou
a perda de alguns apoios internos. Arrebatados por ondas de pessimismo,
lançaram-se à procura de consolação religiosa, ou mensagens proféticas
confortadoras, ou experiência mística. (É possível que o significado da palavra
“místico” se tenha tornado demasiado vago e demasiado lato para ser realmente
útil. A palavra “espiritual” não será muito melhor. Entretanto, não existe um
equivalente adequado na língua inglesa para a idéia que se pretende transmitir.
O sânscrito já é mais bem servido. Não obstante, essas palavras precisam ser
usadas por amor da brevidade, mas só o serão aqui quando a sua evitação for
demasiado trabalhosa.)

Após a primeira guerra mundial tornou-se moda ser-se cínico, despreocupado e


superficial; era de todo démodé ser-se intensamente sério no tocante à natureza
e ao destino da alma humana. Mas depois da segunda guerra mundial, com a
sua tragédia mais ampla e o seu sofrimento mais profundo, as reflexões em torno
desse tópico são relativamente mais intensas. Olhando de frente para a sua
experiência, alguns entraram a ponderar conceitos mais verdadeiros,
ambicionando elevar as suas atividades a um plano mais alto. Um ponto de vista
como esse não foi atingido pela maioria do gênero humano mas, sem dúvida, foi
atingido por certos indivíduos.

Quantos foram compelidos, pelo que percebem da situação das coisas neste
planeta, a encetar uma busca conscienciosa do significado da vida? Quanto
impulso ganharam realmente esses movimentos? Serão visíveis neste período
de após-guerra as marcas de uma santidade maior, de uma conduta mais pura
e de menor profanidade? É verdade que hoje um número maior de pessoas do
que antes da guerra procura a verdade espiritual. Mas o seu número é ainda tão
pequeno e o seu aumento tão lento, que o movimento está muito longe de
exercer uma influência decisiva. Só um número relativamente reduzido de
pessoas foi despertado pela crise mundial para buscar a existência interior. Os
que se interessam pelo idealismo pessoal, aspiram ao aperfeiçoamento de si
mesmos e estendem a mão para alcançar o divino, ainda são pouquíssimos. A
regeneração, que poderia ter sido o resultado de uma guerra desse caráter
inusitado, precisa apresentar maiores indícios de estar-se iniciando, para que
não se dissipe a expectativa de um despertar espiritual geral. A grande
escuridade que envolvia o gênero humano antes da guerra ainda envolve uma
parte demasiado grande da humanidade do após-guerra. É a causa de uma
massa inevitável de sofrimentos e misérias, de pecado evitável e desespero, que
existe no mundo e não pode encontrar melhor solvente do que esse despertar.
2
Não Haverá um Mundo Melhor
sem Homens Melhores!

Seria fácil para uma geração que assistiu a um conflito sem paralelo e a um mal
sem precedentes perder a fé no poder divino ou na divina sabedoria. É o que
está acontecendo a muita gente nesta época; de tal maneira se preocupa com
as circunstâncias externas da sua vida que lhe descura do propósito mais
elevado. As suas análises dos acontecimentos históricos e da evolução humana
ou não são suficientemente profundas ou são totalmente enganosas. Que outro
resultado se pode esperar de homens que carecem do conhecimento das leis
espirituais, que governam a causação desses acontecimentos e controlam a
evolução?

Já chegaram os tempos tão vívida, ainda que tão brevemente, mencionados em


vários passos do Novo Testamento. Observem como eles dizem que um sinal
identificador é o aparecimento de falsos profetas. São Lucas nos adverte, em
palavras candentes: “Vêde que não sejais enganados... não os sigais”. O erro
que comumente se faz na compreensão dessas páginas é limitar a referência
apenas a profetas religiosos e místicos. Mas os mestres e líderes de movimentos
destrutivos, cujos dogmas têm sido recebidos com fervor emocional e
propagados com fanatismo intelectual, precisam ser não apenas incluídos na
referência, mas também colocados em primeiro lugar. Eles desviaram para si
precisamente o mesmo tipo de fé ou devoção que se dedica a líderes religiosos
como Maomé.

Um milhão de pessoas seguirá um líder loquaz, que vocifera protestos belicosos


e as conduz à destruição final, quando apenas umas poucas pessoas seguirão
um inspirado líder intelectual, que as levará à verdadeira bem-aventurança. Isso
mostra o imperfeito senso de valores que prevalece entre as pessoas totalmente
ignorantes de que, se a sua atitude interior para com a vida for falsa, falsos
também serão os seus negócios externos, pessoais, políticos e econômicos.
Mostra que a razão por que a massa do gênero humano não pode fazer da sua
civilização um sucesso é porque não pode fazer um sucesso de si mesma. Não
tendo suficiente fé nas forças superiores, nem se deixando conduzir por elas,
põe a fé em forças destrutivas.
Quando ouvimos narrar a história maravilhosa da longa ascensão do homem,
conhecemos que ele encerra dentro em si mesmo o poder de vencer as
dificuldades. Pode operar mudanças consideráveis e mover o seu mundo para a
frente, mas só logrará fazê-lo de maneira pacífica e construtiva se disciplinar a
violência da sua natureza animal. Não é possível dispensar a passada
experiência da raça humana, nem o conhecimento tradicional por ela acumulado.
Cabe-nos aproveitá-los.

Aqueles cuja base metafísica é o materialismo dialético, excluem da sua análise


do homem a grande verdade de que a razão suprema da sua presença aqui é o
seu desenvolvimento espiritual. Consideram-no tão-só como um corpo de carne,
cujos interesses primordiais são materiais. Mas o fato de se afastarem dessa
verdade não os afasta da sua esfera de operação. Enquanto mantiverem uma
concepção tão incorreta da natureza humana quanto a materialista, florescerão
entre eles as ilusões do egoísmo extremo e os males do ódio implacável. Sob a
influição dessas idéias errôneas e dessa limitada compreensão, os homens
ingênuos que as professam estão caminhando perigosamente perto da beira de
um precipício. Vivem numa escuridão a que de tal maneira se avezaram que
julgam ver nela a própria luz. Isto os coloca numa situação precária.

A verdadeira luta hoje em dia é confusa e disfarçada; não é apenas a luta exterior
e manifesta, que todos os jornais registram. É a que se trava entre a grande
mentira de um conceito materialista da vida e a grande verdade de um conceito
espiritual. Chamamos mentira ao primeiro porque ele afirma que estamos aqui
na terra tão-somente para satisfazer aos apetites do corpo e aos desejos do ego.
Em todo o correr da longa história do homem, os videntes mais sábios e os
profetas mais iluminados expuseram o seu descobrimento cabalmente
comprovado — e não apenas a sua opinião — de que as forças da Natureza,
Deus, nos trouxeram aqui para disciplinar tais apetites e elevar esses desejos,
como requisito preliminar do propósito mais alto da vida — a descoberta do Eu
Supremo e da união consciente com ele.

Iludidos pela aparência das coisas, milhões acreditaram que a sua existência é
física e nada mais. Hoje estão comendo o fruto azedo dessa falsa crença. A
compreensão correta de si mesmos lhes teria mostrado que eles não são apenas
criaturas compostas de corpo, sentimentos e pensamentos, senão também de
intuições espirituais. Daí que o fundamento mais forte possível, sobre o qual se
pode edificar qualquer estrutura social, é a Ética essencial de todo ensinamento
espiritual. Essa Ética brota, afinal, de um conhecimento misticamente revelado
das leis morais e espirituais, que governam o universo. A nova compreensão das
velhas leis, que penetra muito mais fundo que qualquer doutrina político-
econômica, acarretaria necessariamente nova e melhor integração da
sociedade, a qual, então, refletiria o pensamento ético.
O observador imparcial pode parecer pessimista, mas sabe que se baldarão as
conferências mundiais enquanto os estadistas a elas comparecerem com o fito
exclusivo de proteger os seus interesses atuais, propor soluções improvisadas e
evitar concessões penosas. Malograr-se-ão enquanto os governantes e os
povos preferirem perspectivas superficiais a perspectivas mais profundas.
Revelar-se-ão, como foi predito há vários anos num livro anterior, meras ilusões
enquanto não os animarem um ideal ético mais elevado e um conhecimento
metafísico superior. Quando uma civilização materialista se torna exteriormente
impressionante, mas continua internamente empobrecida, quando as relações
políticas se convertem numa fachada primorosa para ocultar os salões
espiritualmente vazios que existem por detrás dela, é fatal que surjam problemas
ameaçadores de todos os lados. O verdadeiro problema contemporâneo, que
existe atrás de todos os outros, é o da regeneração mental e moral.

Os que conhecem os poderes ocultos do pensamento na vida e no destino do


homem, sabem que a paz externa não pode ser assegurada com êxito enquanto
guerras internas devastam o coração. Enquanto os homens não domarem as
suas iras, não disciplinarem os seus desejos, não refrearem as suas cobiças,
não modificarem o seu materialismo e não sujeitarem a crueldade e o morticínio
que praticam nos animais, subsistirão as causas mais profundas da guerra. A
única coisa que podem fazer, no estádio atual da evolução humana, é criar uma
instituição internacional que funcione como polícia internacional. Assim como as
forças policiais das cidades não impediram todos os crimes mas, sem embargo,
preveniram muitos, assim a criação de uma instituição dessa natureza talvez não
impedisse todas as guerras, mas preveniria muitas. Todas as sugestões dessa
natureza têm os riscos próprios, que as acompanham. Sem embargo, alguma
proposta precisa ser aceita e levada a cabo, sejam quais forem os perigos,
porque de nenhuma outra maneira poderá abrir-se mais depressa para a
humanidade a perspectiva de uma vida mais pacífica. Se a história futura
confirmar a trágica impossibilidade de se realizar a sugestão contemporânea,
isto só ocorrerá porque as lições mais profundas da história que se finda,
ecoadas aqui, foram insuficientemente aprendidas ou totalmente ignoradas. Mas
assim como as sinistras necessidades da guerra só nos impuseram mudanças,
havia muito necessárias, quando já não se podiam evitar, assim também as
sinistras necessidades da paz nos imporão as mudanças pessoais e nacionais
que muitos ainda estamos demasiado alheados para adotar. Um mundo novo e
melhor surgirá, afinal, e apesar de tudo. Mas na medida em que o deixarmos
surdir da compulsão, e não da volição, teremos de sofrer muitíssimo durante os
seus trabalhos de parto. Ao cabo de tudo, o Verbo substituirá a Espada.

É duvidoso que a harmonia absoluta venha, um dia, a prevalecer entre os


homens, a não ser que eles, primeiro, alcancem a meta espiritual que Deus lhes
depara sempre. A vida social cria os seus próprios problemas, os seus próprios
conflitos de interesses, coletivos e pessoais. A vida nacional acarreta disputas
acirradas com outras nações, ou invasões agressivas delas. No mundo das
formas manifestas cada uma das quais é diferente de todas as outras em alguns
pontos, é inevitável que haja atritos nesses pontos. Aparentemente, um reino de
perfeita harmonia na terra não é possível. A natureza do mundo e a natureza do
homem parecem vedá-lo. Mas o que nós não podemos encontrar fora de nós
mesmos, existe e pode ser encontrado no mais fundo de nosso ser. Quando
Jesus anunciou, um dia, a boa nova aos seus ouvintes e disse-lhes, com
palavras singelas, que “o reino dos céus” estava dentro deles, queria dizer, se é
que queria dizer alguma coisa, que o mais importante e o mais desejável da vida
não se encontra em nenhum lugar, coisa, pessoa ou posição exteriores; só pode
ser encontrado nos estratos ocultos dos pensamentos e sentimentos do homem.
O bramante doutrinário, que pensa de modo diferente, que persuade as pessoas
a examinarem apenas a superfície dos problemas, poderá dizer o que bem
entender, mas o certo é que uma utopia física nunca existiu e, provavelmente,
nunca se encontrará. Dir-se-ia uma miragem, que atrai os homens apenas para
iludi-los, um horizonte que sempre recua, ou um sonho de que os iludidos
sonhadores precisam despertar. O criador do sonho pintará quadros aprazíveis
de uma sociedade ideal ou até de urna sociedade ascético-religiosa, em que
tudo estará bem e todos serão felizes, mas a realidade jamais será assim, pois
teria de ser construída com o material de homens falíveis e imperfeitos.

Se os ashrams, retiros espirituais do Oriente, e os mosteiros religiosos do


Ocidente, com a doutrina tão alevantada e espiritual que muitos possuem, foram
incapazes de criar comunidades perfeitamente harmoniosas e moralmente puras
mas, ao contrário, padecem das mesquinhas fraquezas da lamentável natureza
humana, que esperança poderá haver de se realizar esse sonho fora dos seus
muros, onde a aspiração, menos urgente, é menos profunda? Onde está o
material humano para uma sociedade sobre-humana dessa espécie? Acaso se
encontrará em quantidade suficiente, em algum lugar, nos dias que correm? Os
milênios terrestres são sempre adiados, nunca se realizam. Assim foi no
passado, assim será no futuro. Qualquer sociedade ou colônia idealista, na
melhor das hipóteses, só poderá ser relativamente boa, boa em certo momento
e em certo lugar e boa apenas para esse momento e para esse lugar. Nunca
fugirá à relatividade, à imperfeição e à transitoriedade que impregnam este
mundo. A natureza humana perderia a atual individualidade ignorante se
devesse realizar os sacrifícios vicários que dela espera o otimismo róseo, mas
falaz, do idealista social, humanitário ou religioso. O paraíso que os homens
desejam alcançar é uma condição que eles precisam criar interiormente, a pouco
e pouco, para si mesmos. Assim que os homens se tornam espiritualmente
dignos de um mundo melhor, chegam mais perto dele. Uma praticidade mais
sábia não procuraria estabelecer o reino dos céus na terra, no sentido de uma
utopia física. Estaria imbuída, com demasiado vigor, da compreensão da
transitoriedade das coisas e percebendo, com demasiada profundidade, a
imperfeição inerente a todas elas, não se deixaria iludir por um propósito tão
materialista. Buscaria, em lugar disso, estabelecer um lar terreno melhor para a
humanidade, com a intenção de usá-lo como trampolim para chegar ao
verdadeiro reino dos céus, que é e sempre será um reino interior. Não se trata
de um reino espacial. Jesus, o perito pescador de homens, advertiu-os de que
não deviam procurá-lo: “Olhai para cá! ou Olhai para lá! pois, vêde, o reino de
Deus está dentro de vós”. Entretanto, não poucos dos Seus seguidores se
deixaram penetrar da crença de que esse reino pode ser exteriorizado. Crêem
possível a criação de uma espécie de utopia controlada por sacerdotes,
exatamente como alguns materialistas acreditam que só se pode criar uma
utopia econômica, livre do controle de sacerdotes. Os sonhadores místicos
confiam na possibilidade de se criar uma espécie de comunidade perfeccionista.
Mas uma coleção de seres humanos imperfeitos nunca chegará a semelhante
resultado.

A verdade aqui é que os problemas externos que atormentam o homem são, na


realidade, projeções dos problemas internos que ele não conseguiu solucionar
com acerto em seu coração e em sua mente. Não existe uma resposta adequada
às principais perguntas da Política e da Economia sem que primeiro se encontre
uma resposta adequada às perguntas mais amplas da própria vida, que,
necessariamente, incluem as seguintes perguntas: “Que é o homem?” “Quais
são os verdadeiros objetivos para os quais existe a sociedade organizada?”
“Quais são os últimos fins que devem ser alcançados por seu intermédio?”
Enquanto não atinarmos com as respostas corretas a essas perguntas,
estaremos apenas trabalhando no escuro e despendendo energias inutilmente
ou, o que é pior, danificando a matéria humana de que é feita a sociedade. A
ignorância dessas respostas é a causa principal da nossa triste condição atual.
O sofrimento de hoje nos segura, como um horrível atascadeiro, em que nos
afundamos mais e mais a cada passo que damos para a frente, simplesmente
por não sabermos e não podermos ver o ponto apropriado de destino para o qual
deveríamos caminhar. Por outro lado, se chegarmos a uma clara concepção
desses objetivos e dessas finalidades, seremos capazes de trabalhar com maior
eficiência, de agir com mais eficácia e de viver mais felizmente. Mas como
poderemos fazê-lo com êxito se não conhecermos a direção mais ampla que as
forças evolutivas da própria vida a estão compelindo inexoravelmente a seguir?
Sem o conhecimento da vontade divina, só conseguiremos tropeçar no escuro e
ferir-nos talvez gravemente, como já nos temos ferido neste século trágico. Até
aqui, temos cumprido o nosso destino cega e inconscientemente, o que vale
dizer, penosa e estupidamente. Mas o método da deriva espiritual já não
compensa. Poderíamos tê-lo utilizado em épocas mais fáceis, mas já não
podemos fazê-lo agora, nestes tempos severamente críticos.

Os problemas que oprimem a humanidade serão talvez, na maioria, políticos e


econômicos e, por conseguinte, deveriam ser enfrentados com medidas
econômicas e políticas. Mas o seu substrato permanece moral e metafísico.
Nenhuma solução será fundamental se ignorar esses dois elementos. Nenhuma
providência para salvar a humanidade do perigo que paira sobre ela se revelará
satisfatória se deixar de lado a providência espiritual; quaisquer outras que forem
tomadas de per si redundarão apenas em malogro. Somente quando o
economista e o político, o estadista e o soldado tiverem a sensatez de percebê-
lo e a coragem de admiti-lo; só quando tiverem a humildade de declarar-se
semifalidos e sem fundos suficientes, poderá operar-se o milagre e um poder
superior vir em nossa ajuda e fazer por nós o que nós não podemos fazer.

O que é melhor para o indivíduo, será também, finalmente, melhor para a


humanidade. Quem quer que examine o filme desenrolado da própria existência
ou da existência humana como um todo e sem preconceitos, verá que é
irrefutável essa verdade. E se o indivíduo só pode alcançar a verdadeira
felicidade seguindo um modo de vida melhor, a sociedade também só assim
logrará alcançá-la. Se se seguirem caminhos mais fáceis, os resultados serão
provavelmente menores. Vistas por esse prisma, as reformas políticas,
econômicas e sociais não poderão, por si mesmas, propiciar a verdadeira
felicidade ao homem. Isso não quer dizer que elas não sejam necessárias, pois
poderão propiciar-lhe uma felicidade parcial ou transitória. São úteis paliativos,
capazes de aliviar-lhe a dor, mas não são remédios radicais, que possam curar-
lhe a doença.

Uma economia industrial que não reconhece, na prática, o homem como ser
espiritual nem o universo como obediente às leis divinas, engendra perigos
psíquicos para o seu povo. Ainda que os seus planificadores ofereçam um lugar
mais satisfatório em que possa viver a massa geral das pessoas, não ministrarão
os ideais para os quais essas pessoas terão de viver se quiserem cumprir o mais
alto propósito da sua encarnação, ideais que acabarão determinando o destino
daquele lugar. “O homem põe e Deus dispõe” é um dito que talvez pareça cediço,
mas ainda funciona. Os realistas e racionalistas, que desprezariam a aplicação
de dignos ideais como simples divisas e lemas impraticáveis de um sonhador,
iludem-se a si mesmos.

A nossa incapacidade de construir uma sociedade estimável é essencialmente


uma incapacidade moral. Mas antes que se possa realizar reforma moral, será
indispensável que se realize a reforma espiritual. Esta é a raiz de todas as outras.

Não devemos, em nosso juízo da doutrina naturalista, que prega o contrário, e


dos homens mal orientados que a simbolizam no mundo de hoje, enganar-nos a
respeito das massas que se deixaram embair por ela. Não devemos esquecer-
lhes a igualdade suprema, que as liga a Deus. Cumpre-nos recordar que, à sua
maneira cega e inconsciente, elas também estão procurando a verdade; elas
também, um dia, se verão pacificadas diante do Espírito. Também aceitarão,
finalmente, o ideal salvador da boa vontade, em oposição ao ideal destrutivo do
ódio. Também aprenderão a conhecer que o amor divino está por trás de todos
os acontecimentos e que, assim que os homens se voltam à sua procura, veem-
no caminhando para eles. Nosso Pai ainda está no céu e impende-nos
reconhecer a nossa qualidade de filhos. Esta singela verdade está no centro de
todo ensinamento espiritual.
3
A Idade da Máquina

O culto que hoje se consagra à velocidade no viver, no agir e no fazer produziu


tensões nervosas que, por seu turno, levaram os homens a buscar refrigério no
uso de estimulantes artificiais e drogas narcóticas. Os que possuíam vontade
mais fraca se demasiaram nessa busca e acabaram mutilando o seu caráter
moral.

Uma consequência diferente desse culto parece trivial mas, na realidade, não é
o que parece. Criou-se um desprezo pelas terras em que o ritmo de mudança é
mais lento, em que se arrasta a passagem de um modo de vida antiquado para
uma existência mecanizada. Atrás desse desprezo está a incapacidade de
compreender por que as pessoas nessas terras querem ser deixadas em paz e
preferem desenvolver-se a seu talante, sem nada perder do contentamento
íntimo que possuem. As duas nações deste planeta que fizeram da velocidade
um alto ideal de vida tornaram-se, por isso mesmo, incapazes de simpatizar com
os anseios de povos atrasados, que preferem preservar o ritmo vagaroso de vida
e perseverar nele. Estes últimos se contentam em desempenhar apenas um
pequeno papel na corrida pelo poder e pela riqueza. Consideram o ambiente das
nações ocidentais falto de atrativos, a condição mental como uma espécie de
loucura, e o tropel e o tumulto como indignos do preço que custam. E o que é
mais curioso ainda, vêem na máquina uma espécie de brinquedo.

Não obstante, a despeito dos seus pontos de vista, é verdade que os métodos
industriais modernos, graças à sua tremenda capacidade produtiva, alcançada
por técnicas de massa baseada em máquinas, vieram para ficar. Mas vieram
para ficar em sua forma atual? Dão ao trabalhador o seu pão com manteiga, mas
também o despojam de satisfações íntimas e de valor funcional individual.
Transmudam-no, até certo ponto, numa parte da máquina e privam-no da sua
virilidade. Na medida em que a máquina lhe tira a individualidade e força-o a
executar os mesmos e poucos movimentos mecânicos todos os dias, durante
toda a sua vida de trabalho, propende a tolhê-lo. As linhas de montagem nas
fábricas imensas, que vertem massas de gêneros, não fazem quaisquer
solicitações às habilidades criativas dos trabalhadores, mas apenas os mantêm
empenhados, em trabalhos de repetição. Os arranjos físicos e a atmosfera
mental dessas fábricas são, não raro, nocivos ao sistema nervoso humano.
Precisamos da indústria mecanizada, mas não precisamos dela a um preço tão
alto. Os industriais e economistas que tratam o homem, inclusive a si mesmos,
como simples cifra estatística, ou como simples “operário” suscetível de ser
arregimentado em massa, à semelhança de um instrumento de produção, de um
torno, e não como ser humano sensível, capaz de sentir e pensar, lhe atrofiam
os talentos e lhe cerceiam o pendor criativo. Lidam com robôs humanos e não
curam de valores mais elevados. Em seu culto da visão mecanizada da vida,
perdem o equilíbrio, exatamente como perdem o seu outros adoradores da
máquina, que os verberam politicamente em nome do coletivismo forçado.
Ambos estão hipnotizados pela forma moderna do materialismo. Ambos
acreditam que a máquina aliviará o labor e aumentará a prosperidade por tal
maneira que toda a gente, dali por diante, será feliz. A tecnologia inventiva pode
fazer, e está fazendo, coisas maravilhosas nesta época, mas nunca fará ninguém
realmente feliz. Salvou o homem do trabalho servil, mas poderá, porventura,
salvá-lo da angústia mental? Quantos milhões de operários de indústrias
transcenderam mentalmente as máquinas por que eles zelam? E quantos
famosos diretores do mundo dos negócios se tornaram em algo mais do que
meros autômatos do mundo dos negócios?

O panorama das nossas grandes cidades apresenta um espetáculo. Pois foi para
essas habitações superpovoadas, de crescimento vertiginoso, do mundo
ocidental, que se sentiram atraídos os pioneiros de hoje. Grandes construtores,
engenheiros, peritos, astutos financistas, cientistas habilidosos, comerciantes
empreendedores, os milhões que se esfalfam em obediência às suas ordens,
juntamente com artistas, escritores e outros homens de sonhos, estão todos lá.
Nas cidades, forças de todo gênero lutam pela primazia; ambições de todas as
categorias lutam por prêmios em trajos tentadores. O campo dos negócios torna-
se, às vezes, um como campo de batalha, em que pelejam gigantes da
inteligência e da astúcia. À semelhança de um moinho imenso, cada cidade
extrai dos seus habitantes tudo o que eles possuem de habilidade, energia e
coragem.

A vida citadina desenvolve a mentalidade humana. A sua competição aguça a


faculdade humana. Isto é bom quando equilibrado por sentimentos mais belos,
mas é mau quando não existe o equilíbrio. A vida nas cidades maiores estimula
a inteligência, promove a ambição e desenvolve a personalidade, ao passo que
a vida nas fazendas enrijece o corpo, aumenta a confiança própria, mas achata
a personalidade. Os homens e mulheres que vivem em cidades demasiado
desenvolvidas perderam, em grande parte, o contacto direto com a Natureza que
possuíam os seus antepassados lavradores. Os valores e virtudes que a vida da
cidade desenvolve na humanidade se convertem em deméritos e vícios quando
levados ao excesso. Quando uma área metropolitana não é restringida em certo
ponto, cria perturbações, perigos e males. Passa a concorrer para o materialismo
sem alma dos seus habitantes. O tamanho dessa colmeia humana de
proporções mamúticas, que é uma metrópole moderna, tornou-se hoje
estupidamente inconveniente. As próprias dificuldades de transporte interno
acabarão impondo, com o tempo, uma redução ou um novo arranjo.

O célere crescimento de enormes centros comerciais e industriais acarretou uma


existência artificial, antinatural. Esta, por sua vez, redundou em desequilíbrio
mental e enfermidade física. A vida de uma família que só conhece calçadas de
pedra dura, muros confinantes de tijolos e tetos baixos de estuque, que olha para
as árvores, para a relva e para as flores com tímido assombro, como coisas não
familiares, que está incessantemente exposta aos ruídos enervantes da
existência urbana, é uma vida que corre o risco de ser espiritualmente ferida.
Aqueles que vivem em feias vielas ou nos distritos superpovoados, de ruas sem
árvores, não têm os mesmos horizontes mentais dos que vivem em umbrosas
avenidas. Com o uso cada vez maior dos veículos a motor e a consequente
conversão das ruas em exasperantes centros de ruído, pressa e atividade
incessante, cada cidade gigantesca passa a ser mentalmente venenosa para a
raça humana, gerando tensões psicológicas e dissociações espirituais. Os
ruídos estridentes desgastam os nervos e conturbam a saúde mental. Uma
sociedade que os aceita tão prontamente tende a tornar-se, sem dúvida, mais
materialista ainda. Dir-se-á que nada menos do que uma crise financeira, um
desastre econômico ou mesmo a ameaça de um bombardeio atômico será capaz
de arrancar às cidades uma população que se afundou em demasia no
materialismo urbano, que perdeu o contacto com a Natureza e a intuição de
espírito.

Essas grandes cidades são o nosso carma, que exprime o que somos. Na
medida em que nos aprimoramos, aprimoramo-las. Nos ambientes em que
encarnamos, encontramos as lições que precisamos aprender, ou granjeamos
os frutos do que fizemos no passado, ou esbarramos em condições que nos
incitam a mudá-las e melhorá-las e, ao fazê-lo, a desenvolver-nos.

A crença atual de que a economia industrial existente é a mais eficiente possível


pode ser correta de um ponto de vista técnico mas ignora, com demasiada
frequência, os seus efeitos destrutivos sobre o organismo nervoso, os talentos
criativos e o caráter moral do homem. Uma estimação apropriada da sua
eficiência os tomaria em consideração. A estimação atual os ignora, porque a
sua concepção fundamental do homem é unilateral e materialista.

Hoje em dia, depois que a Ciência complicou a vida e o intelecto desassossegou


o homem, uma atitude serena, composta, parece estar além do horizonte.
Entretanto, a necessidade dela é imperativa. Só o misticismo filosófico mostrará
como o homem surpreendido no meio do complexo labirinto de atividades
urbanas, em luta contra a velocidade e a pressão da vida citadina, sacudido pelo
seu timbre estridente e agitado e, talvez, onerado ainda pela necessidade de
suprir às suas necessidades econômicas, pode abolir o conflito interior e manter
a mente numa calma sublime. As multidões, todavia, estão intimamente
despreparadas para essa abordagem filosófica, de modo que tudo o que puder
ser feito por meios externos para conservar-lhes a psique melhor equilibrada,
deve ser feito.

O desejo ardente da beleza verde e da paz leniente do campo, que se expressa


em escapadas de fim de semana para fora da cidade, ou em jardinzinhos em
volta da casa é, no fundo, um desejo espiritual. O rompimento de todo contacto
com a Natureza durante longos períodos priva o morador das cidades de um
alimento vital para o seu eu interior. Sadhu Sundhar Singh, o místico cristão
hindu, disse, de uma feita, que sempre sentia, poderoso, o espírito do mal nas
grandes cidades. “Ir às grandes cidades é sempre contrário ao meu desejo, e
preciso constranger-me a fazê-lo. Sei por que os eremitas preferem viver em
cavernas e montanhas. Eu também prefiro. Mas recebi ordens, num êxtase, para
ajudar os outros neste mundo”, ajuntou. E também era de opinião que o
materialismo é mais forte nas cidades do que nas aldeias.

Quando um homem sensível percorre uma rua, depois de terem sido os seus
sentimentos purificados pelos bosquetes solitários da Natureza, sente-se
distante daquelas casas, que tantas vezes não são lares, senão barricadas da
tribulação. Por outro lado, é raro encontrar-se um lavrador cuja mente ultrapasse
a lida fleumática dos campos. A idealização romântica da existência rústica se
dissipa tão logo nos lembramos dos camponeses analfabetos, semimortos de
fome, da Índia e da China. É tão néscia neste século XX quanto a idealização
romântica da vida do citadino.

O pensador filosófico não verbera o advento do industrialismo, inevitável e


necessário, mas defende o movimento contemporâneo no sentido da
descentralização, porque esta é a necessidade ambiental nos dias de hoje.
Observa fenômenos que qualquer observador criterioso pode testemunhar — os
fenômenos dos resultados psicológicos e físicos, tanto da vida urbana quanto da
vida rural. Recomenda a necessidade de uma economia convenientemente
equilibrada, uma forma de existência social desenvolvida por igual, que não seja
extremista nem penda para um lado só. Deplora com justeza os males repulsivos
que o industrialismo excessivo, unilateral e desequilibrado, carreou em sua
esteira, mas admite, com justeza também, que o padrão de prosperidade e
conforto físicos, em todos os países, está na razão direta do uso que se faz da
máquina. Os críticos não devem protestar contra os processos da máquina, os
quais, na verdade, são úteis e proveitosos, mas contra a maneira pela qual um
industrialismo cego conduziu homens e mulheres, empregados na operação
dela, a uma vida antinatural e à perda dos valores mais elevados, quando se
mostra incapaz de diferenciá-los, como seres humanos que possuem um cerne
espiritual, das próprias máquinas.
Nós, que vivemos hoje, não podemos voltar facilmente às condições primitivas
ou medievais. A máquina pode ser usada contra homens e mulheres, como na
guerra, ou a favor deles, como na paz. A noção ascética, popularizada por
homens como Tolstoi e Gandhi, de que ela é necessariamente nociva e
geralmente má, tem uma base de verdade parcial mas, considerada de per si, é
desproporcionada e antifilosófica. A máquina está aqui e devemos aceitá-la. Mas
isso não quer dizer que devamos deixar que ela nos avassale, que nos escravize.
Com uma raça espiritualmente desperta, artisticamente criativa, a civilização da
máquina já não retardaria o verdadeiro crescimento, mas seria mantida em seu
lugar e utilizada como ajuda valiosa para promover o crescimento e elevar a
sociedade.

A Ciência e a invenção, a organização e a técnica abrirão grandes possibilidades


ao conforto físico futuro da humanidade. O avanço da invenção livra a raça
humana dos labores monótonos e iterativos e, assim, libera a mente humana
para trabalhos mais elevados. Se os homens preferem usar a liberação para
finalidades degradantes, esse é o risco que acompanha todo progresso racial.
Mas se o risco se tornar muito grande, se a vida humana for utilizada apenas
para fins materialísticos, as invenções só estorvarão e não lhe favorecerão o
progresso verdadeiro. Enquanto o mundo não assentar as suas invenções
mecânicas, assim como as suas reformas, sobre uma base filosófica, como terá
de fazer, todo novo bem adquirido acarretará um novo mal. A velocidade é uma
ajuda para o ritmo mais célere da civilização moderna, mas não precisamos, por
isso, acelerar o necessário ao cultivo da nossa natureza mais profunda, a
verdadeira alma. Uma civilização cuja eficiência meramente mecânica e externa
faz do homem uma criatura insensível e sem alma, não passa de um
semimalogro.

Isso tudo não quer dizer, entretanto, que não se devam fazer tentativas práticas
para criar ambientes cada vez melhores. O aperfeiçoamento dos ambientes
externos é sempre benéfico; pode, por si mesmo, criar uma atmosfera em que
os ideais mais elevados sejam melhor recebidos; mas não substitui, nem
substituirá jamais, o aperfeiçoamento da entidade humana que precisa habitar
esse ambiente. Entretanto, oferecer, como tantas vezes oferecem os idealistas
místicos, porém antifilosóficos, a panacéia para os distúrbios sociais da
humanidade, exclusivamente consistente na mudança individual de coração,
sem fazer outra coisa senão ficar esperando que a mudança remota aconteça e
rejeitar todas as propostas práticas, é confessar a própria falência intelectual. Só
a falta de equilíbrio e a manifesta estreiteza de perspectiva levam esses
idealistas a afirmar que a única reforma necessária é a mudança da natureza
humana. O erro deles não está em afirmarem que a mudança de coração
produzirá a mudança de ambiente. Isto é verdade. Está em rejeitarem o segundo
enquanto aguardam o primeiro. Pois existem coisas más no ambiente humano,
que impedem a ocorrência dessa mudança ou, não podendo impedi-la, não lhe
permitem subsistir.

Esse panorama histórico, trágica realidade para os milhões que nele sofrem,
simples dança de sombras para os místicos que meditam longe dele, só é
corretamente avaliado pelo filósofo.

Porque o seu ideal equilibra razoadamente o egoísmo e o altruísmo, a Filosofia


requer positivamente que se opere a mudança externa mas, ao mesmo tempo,
sustenta que a maior esperança do homem reside em melhorar de tal maneira o
caráter individual que a melhoria afetará inevitavelmente todas as relações
sociais com outros homens e se difundirá de dentro para fora. Insiste em que,
embora as forças que modelam o destino externo dos homens e das nações
sejam muito mais internas, psicológicas, éticas e mentais, as forças externas,
sociais, políticas e econômicas também prestam contribuições efetivas.
Concorda em que o caminho da evolução moral e mental proporciona a
verdadeira base para uma mudança meritória, mas também assevera que essa
evolução pode ser ajudada e apressada pelo fornecimento de melhores
condições físicas. Deplora a triste situação, em que os nossos melhores
pensadores começam a renunciar ao materialismo científico do século XIX e a
redescobrir a verdade espiritual do século XX, enquanto que as massas
trabalhadoras se atardam, ignorantes, a alguma distância deles.

Hoje em dia, o caminho para o domínio espiritual percorre, até certo ponto, o
domínio social. Os males ambientais precisam ser algum tanto melhorados para
que as pessoas — tanto as ricas quanto as pobres — possam ter consciência
dos seus males internos e, em seguida, concentrem a sua atenção num bem
superior. O homem obrigado a uma preocupação forçada e contínua com o
problema de ganhar a vida ou de sustentar a família, seria realmente néscio se
não desse a esse problema a grande importância que ele tem. Até os mais
afortunados não fazem nada de mal, senão tudo de bem, ao prover-se de
confortos materiais e conveniências modernas, como uma boa casa, roupas
decentes e comida adequada. O mal começa quando os homens elevam essas
coisas à categoria de ídolos e passam a adorá-las como finalidades da vida,
esquecidos das finalidades mais elevadas; e quando têm o coração repleto de
apegos a elas, porém vazios de ideais além delas e, sobretudo, quando as
adquirem à custa de valores espirituais ou da violação da integridade moral.

Quando os homens são impulsionados por motivos altruísticos, mas possuem


uma visão limitada das coisas, só procuram afastar a pobreza da posse material
em casos individuais. Em lhes faltando sabedoria, poderão fazer tanto mal
quanto bem nessas tentativas. Quando atingem uma visão mais profunda das
coisas, os mesmos homens procuram afastar a pobreza da posse material na
sociedade como um todo, procurando as suas verdadeiras causas pessoais e
sociais. Mas quando não são apenas movidos por motivos altruísticos, mas
também possuem a mais profunda visão da vida, procuram afastar a pobreza do
pensamento, a pobreza da concepção e a pobreza da alma, a par das condições
físicas degradantes.

Existe, hoje em dia, a necessidade de um organismo social mais elevado que


qualquer outro ora existente, um organismo que repouse na obediência
consciente a leis superiores, que leve em conta o fato de que o homem é um ser
espiritual e físico ao mesmo tempo. A nossa esperança imediata de um mundo
melhor não reside totalmente na mudança interior, pois isso seria exigir demais,
nem totalmente na mudança exterior, pois isso seria exigir de menos. Reside
numa síntese adequadamente proporcionada das duas.

Enquanto a massa das pessoas se preocupa principalmente em ganhar a vida,


dificilmente se poderá censurá-la por mostrar-se indiferente à cultura espiritual e
artística superior. Para ela, esse tipo de cultura parecerá, o mais das vezes,
excessivamente remota ou totalmente imaginária. Excetuando-se o treinamento
inferior do intelecto — que não se deve confundir com inteligência — o fator
essencial nessa situação é que a citada massa, não poderá dar atenção
suficiente à busca da verdade, nem aspirar à sua realização pessoal, enquanto
não se sentir menos tolhida pela inevitável dependência das condições
econômicas.

Sempre foi preciso suprir às quatro necessidades elementares, insistentes e


estáveis de comida, roupa, abrigo e combustível, antes de satisfazer às
necessidades culturais, religiosas, místicas ou metafísicas. É verdade que a
necessidade de ganhar a vida sempre foi a necessidade mais importante na
existência da maioria dos homens. A estafa contínua, apenas para conservar
vivo o corpo, a constante escravidão à labuta mecânica, o triturante esforço da
luta de todos os dias pela vida, deixam a muitos pouco tempo para pensamentos
mais alevantados e atalham o nascimento de idéias mais nobres. Os desesperos
físicos do desempregado e os temores de insegurança do empregado põem
amiúde em relevo elementos mais baixos do caráter humano. Levam a mente a
obcecar-se negativamente por seus problemas terrenos, a lutar combativamente
contra os outros pela própria existência, a aceitar soluções violentas e agressivas
de dificuldades econômicas e a abafar intuições espirituais através da inveja ou
da acrimônia. Os que são obrigados a suportá-las não sentirão muito da divina
atmosfera entre cenas lôbregas de sordidez. Em maior escala em épocas
anteriores, mas em escala acentuadamente menor em épocas recentes ou em
certos países, as massas condenadas a longas horas de trabalho estafante para
poderem sobreviver, se ocupavam inevitavelmente, na maior parte do tempo, de
quanto se relacionava com o corpo físico e as necessidades animais. À
proporção que a sociedade civilizada modificar a sua atual forma materialista,
elas se libertarão das opressões do excesso de trabalho, do desemprego e da
pobreza excessiva, e terão tempo suficiente para a cultura mais elevada, para a
criação estética, para o desdobramento criativo e para o desenvolvimento mental
não vocacional.

Foge ao escopo destas páginas a discussão dos argumentos dos que sustentam
o motivo do lucro pessoal e os dos que o rejeitam de todo. Ambos são
compelidos por um egoísmo que acarreta, e acarretará sempre, o atrito, mas que
tem sido inevitável no curso do desenvolvimento humano. Ninguém trabalhará
sem motivo, quer se trate da edificação de um estado coletivista, quer se trate
da construção de uma fortuna particular. Só o sábio ou o santo, que servem
desprendidamente, porque servem por ordem de um poder mais alto, escapam
a essa necessidade, mas esses homens pertencem a uma raça à parte. É certo,
contudo, que muito conflito industrial poderia ser resolvido se ambas as partes o
encarassem com a atitude mental de cooperação, que supõe alguma negação
do ego pessoal.

Não nos interessa aqui o asceta extremo, que consciente e deliberadamente


tenta viver com o menos possível. Essa renúncia, que ele a si mesmo se impõe,
reveste-se de certa nobreza, ao passo que a sofrida involuntariamente pelos
pobres geralmente os degrada. Ele enveredou por um caminho excepcional com
um propósito especial e, alcançado este, a Natureza pode ou não ordenar-lhe
que volte, como ordenou ao próprio Buda que voltasse, ao caminho médio. Mas
aqueles que só encontram a felicidade num ambiente de pobreza, e a sua
espiritualidade apenas numa economia de escassez, pertencem às épocas
primitivas ou medievais e são apenas retrógrados. Os padrões mais elevados de
vida e a multiplicação de necessidades não são intrinsecamente maus,
conquanto possam vir a sê-lo facilmente, como aconteceu em alguns países
ocidentais, quando desacompanhados de disciplinas espirituais. É lamentável
que o poder corruptor de um estado próspero da sociedade seja histórico; e
lamentável porque, tendo um caráter bem equilibrado, espiritualmente alerta, a
prosperidade mostra mais o bem do que o mal que pode fazer. Entretanto, para
a maioria das sociedades — e de certo para o Ocidente — chega o momento em
que a vida mais simples é o único caminho para a vida mais sadia, e a recusa
de aceitá-la conduz à doença, à decadência e à autodestruição.

É, todavia, a atitude mental que assumimos em relação à multiplicação das


posses que as faz boas ou más. Boas casas, dieta adequada e participação
cultural não impedirão ninguém de reivindicar e conseguir o seu direito de
primogenitura espiritual.

Se bem não seja possível, com o defeituoso material humano de que dispomos,
chegar a um milênio neste mundo, a uma utopia terrestre; se bem o
perfeccionismo político-econômico não passe de um sonho dos doutrinários
emocionalistas, é possível construir um mundo mais cooperativo e mais belo do
que o que existe. Isto exigiria todo o senso incomum, todo o claro pensamento
concreto, toda a boa vontade moral, toda a sábia, artística e espiritual liderança,
todo o empreendimento imaginativo que os nossos melhores homens podem
reunir. A impossibilidade de trazer à terra um impossível sonho utópico — não
será razão para deixarmos de tentar trazer um fragmento dele.

É inevitável que nos encaminhemos para uma forma mais alta de civilização. A
guerra ensejou ao indivíduo e ao Estado uma oportunidade — frequentemente
mal recebida — de indicar a sua posição na luta pela vida e demonstrar quais
são as metas que realmente colimam. Todos, incluindo os que saíram
profundamente abalados e malferidos, estão sendo compelidos pelo vasto caos
a desenvolver-se em novas direções e a reajustar-se a novas correntes
evolutivas ou, através do egoísmo, da cegueira, da covardia e da inércia, a
desastres que terminarão em destruição.

Compreenderemos corretamente esses acontecimentos se os compreendermos


em função de uma mudança universal muito mais ampla, que abrange a própria
existência humana. A guerra foi uma fase de um titânico momento decisivo da
história mental e moral da humanidade, um sinal exterior de um conflito interno
entre as forças da luz e das trevas, que ainda continua. Por detrás da crise
visível, expressa em tremendos sucessos históricos, grassa, escondida, uma
crise invisível, que é, com efeito, a sua causa ativadora. O conflito, hoje, se trava
exteriormente, entre grupos políticos e sistemas econômicos. Interiormente,
porém — e, portanto, essencialmente — trava-se entre concepções opostas do
homem, da sua vida e da sua finalidade nesta terra. É um conflito entre o
completo materialismo, associado ao severo idealismo de um lado, e o
materialismo parcial, associado à fé religiosa parcial do outro. Estamos
assistindo às convulsões finais, às últimas atividades desesperadas da natureza
assassina deixada no homem pelas reencarnações animais da sua fase pré-
humana de evolução.

Contraria a própria natureza do egoísmo humano o dito espanhol, secular e


incisivo: “Conquanto severa, a verdade é um amigo verdadeiro”. E até os poucos
capazes de aceitá-lo, duvidarão de que as asserções de princípios filosóficos
possam ser equiparadas às afirmativas da praticidade mundana. Em épocas
comuns, eles teriam uma base sólida para a sua vida. Mas nós vivemos em
épocas extraordinárias. A vida, nos tempos que correm, é um desafio que não
pode ser ignorado.
4
A Crise da Ciência
e do Intelecto

O Progresso Científico Conduz à Autodestruição


A necessidade pessoal do homem lhe acicata o engenho mental. As invenções
seguem as pegadas de cada necessidade consciente. A Natureza oferece as
suas assombrosas maravilhas à humana exploração delas. Nenhum homem
vivo, hoje em dia, pode escapar aos resultados, tanto benéficos quanto
maléficos, da atividade científica. Muitos são ajudados de algum modo, muitos
prejudicados de outro, pelas consequências dos seus rápidos e espetaculares
avanços. Ouvimos um homem falar, a trezentos quilómetros de distância, tendo
apenas um fiozinho muito fino ou uma onda oculta entre nós e ele; esse recurso
provém do pensamento de cientistas e do trabalho de engenheiros. Um homem
cai morto a nossos pés, atirado ao solo por um automóvel que corria desatento;
a morte dele também é devida, em última análise, ao pensamento e ao trabalho
deles.

O intelecto que raciocina em sua alta perfeição, como o vemos exemplificado


entre os grandes cientistas do nosso tempo, é algo que merece e exige o nosso
mais alto respeito. Os seus métodos de pesquisa escrupulosamente exatos e as
suas observações cuidadosamente metódicas são dignos de admiração; a sua
cautelosa atitude é valiosíssima e absolutamente necessária no lugar
apropriado. Não formamos entre os que desprezam as consecuções culturais e
científicas do intelecto, a fim de exaltar as místicas consecuções da intuição. Não
nos anima o desejo de depreciar as maravilhas da ciência moderna a fim de
mostrar as maravilhas do antigo misticismo. Não podemos aceitar o dogma de
que a reflexão sensata e conscienciosa é errada para o aspirante intelectual mas
certa para o materialista mundano. Faz muito tempo que se mostra o místico
hostil aos processos intelectuais e constrangido pelos processos práticos.

O período científico e industrial era imprescindível para que o homem


prosseguisse no desenvolvimento de todas as suas faculdades, e não apenas
de algumas. A obra científica e intelectual precisava começar a estender-se.
Tratava-se de uma fase necessária da evolução humana. Somente os que
jornadearam extensamente pelos países primitivos sabem como é grande a
floresta de absurdas superstições e costumes parasíticos que sufoca a vida
interior e exterior dos seus habitantes. Esse foi o preço pesado que eles pagaram
pela fé completa, mas cega, nos modos tradicionais. O bem realizado pela fé é
desfeito pelo mal realizado pela superstição. A Filosofia, com efeito, ordena ao
homem que desenvolva os seus poderes de raciocínio. Exatamente como a
Ciência, ordena-lhe que se acautele contra a visão superficial, o enunciado
incorreto, a ênfase exagerada, a premissa falsa, o fato não relatado, o raciocínio
falaz e o quadro desvirtuado. Respeita o intelectual francês André Gide, e está
de acordo com ele, quando o ouve bradar pela integridade entre a razão e a
religião, com estas palavras: “Quero honrar a Deus com cada uma das minhas
partes”. Se o adverte dos perigos em que cai a maioria dos intelectuais, os
perigos do orgulho, da arrogância, da estreiteza e da intolerância, fá-lo apenas
porque ele não deve, à medida que crescem o seu poder de raciocinar e o seu
juízo crítico, tornar-se menos humilde, menos reverente e menos piedoso, senão
mais. Cumpre-lhe robustecer e não debilitar os seus instintos mais elevados. A
perda da crença num poder mais alto do que o seu ou no poder da Natureza, a
doutrina de que só o ambiente físico modela o caráter, o materialismo que se
transverte não só numa interpretação do universo, mas também num código de
conduta — eis aí uns poucos sintomas de mudanças promovidas pelo culto
excessivo do intelecto. O que realmente aconteceu aos seus modernos e
fervorosos sectários foi exatamente o contrário do que sucedeu aos povos
primitivos e, portanto, tão calamitoso à sua maneira, pois assim como estes
pagam um preço pesado pela cegueira da sua fé, assim também aqueles pagam
um preço diferente, mas igualmente pesado, pela cegueira do seu ceticismo. O
bem conseguido pelo progresso intelectual é agora amplamente
contrabalançado pelo dano que o acompanha. Não há outro modo, assim para
os primitivos como para os modernos, de safar-se dessa situação senão
reajustando as suas atitudes de forma a restaurar-lhes o equilíbrio.

Ninguém compreenderá corretamente o complexo problema do mundo se não


vir que as mudanças profundas do problema humano são parcialmente
responsáveis por ele. O progresso moderno deu ao caráter humano amplitude
sem profundidade, fluência sem sabedoria. A Ciência conduziu a porção
pensante da humanidade para duas direções divergentes. Destruiu a fé espiritual
de um grande grupo, mas reforçou a fé de um grupo menor. Esse resultado
paradoxal não é tão desconcertante quanto parece. Pois ambos os grupos
interpretaram os fatos e observações de acordo com as suas inclinações,
tendências e sentimentos pessoais inatos. Os homens diferem tão extensamente
em suas disposições que um resultado dessa natureza era inevitável. Mas isso
não quer dizer que os dois resultados tenham valor igual. Não têm. O primeiro
passa por alto algumas lições mais profundas que toda experiência proporciona
e que os dados científicos, na realidade, não contradizem.
A atividade do nosso progresso externo e superficial cega os olhos dos homens
para a verdade que nenhuma civilização, incapaz de lograr o equilíbrio entre as
forças materialísticas e as forças espirituais, pode suportar. O seu próprio
materialismo pesado, finalmente, a faz vacilar. Este é um significado apocalíptico
dos acontecimentos contemporâneos que abalam o mundo. A civilização
moderna chegou ao seu fim lógico e tem colhido o que semeou.

Muita gente acusou Hitler, com justeza, de pôr em perigo a civilização, mas
nunca se deu conta de que a chamada civilização se estava transformando,
através do desequilíbrio, num grande perigo para o gênero humano. Os
expositores da ciência popular quedavam extáticos ao retratar o paraíso a que a
ciência aplicada nos estava conduzindo a todos. Não se lhes dava de que fosse
um paraíso para a cabeça, que deixava de fora o coração, ou de que fosse, na
melhor das hipóteses, um paraíso para o corpo e deixava não tocadas as partes
espiritualmente intuitivas e normalmente sensíveis do homem! Não perceberam
que o caráter ético do homem, os seus motivos atuantes, as suas atitudes para
com os semelhantes e, acima de tudo, a sua compreensão dos fins supremos
da vida ainda são a verdadeira força que move a maçonaria proporcionada pela
Ciência. A História moderna mostrou o que eles esqueceram, a saber, que
sempre que o homem aprimorava a face externa da vida, mas não conservava
o seu equilíbrio mental, pagava caro, muito caro, cada um desses
aprimoramentos. Afastava-se cada vez mais do centro original do seu próprio ser
a cada passo que dava. Pois cada novo recurso figurado pelo seu cérebro
inventivo era pago com a perda do poder espiritual. Esses homens, que se dizem
realistas práticos, que viam outrora o mundo do após-guerra milagrosamente
transformado num paraíso por máquinas, invenções, novos materiais e
reajustamentos econômicos, mas não enxergavam necessidade alguma de uma
mudança interior paralela da humanidade, viram-se, ao cabo de contas,
sonhadores iludidos pelos próprios acontecimentos.

Não faz muito tempo que essa mesma gente supunha, de maneira perfeitamente
desculpável, que o progresso da Ciência e o avanço da indústria resolveriam
todos os problemas da vida. Não obstante, quanto mais incenso queimavam nos
altares do progresso, tanto mais zombava deles o destino, desferindo golpes
gigantescos na civilização que deveria ter experimentado esse progresso.
Quanto mais a sua percepção do caráter cíclico da História era embotada por
momentos prósperos e descobrimentos científicos, tanto mais semelhavam
homens a caminhar para a beira de um precipício. Quanto mais identificavam o
seu bem mais alto com o simples desenvolvimento físico e intelectual, tanto mais
se erguiam as forças primitivas e bárbaras para esmigalhar esse
desenvolvimento. Não conseguiram ver que a razão, alçada ao seu mais puro
extremo metafísico, se impessoaliza e enobrece o homem, mas que, ao descer
às suas mais espessas profundezas materialísticas, converte-se em mera
astúcia egoísta e faz do seu melhor o seu pior.
A crença ingênua de que a Ciência poderia melhorar de tal maneira o estado do
homem que lhe daria finalmente a felicidade utópica, está-se esvaindo
rapidamente. É manifesto agora que ela não influi na sua natureza moral, não
lhe governa a natureza animal e não lhe perturba o pendor pelos caminhos
falsos. É evidente que a casa dele talvez esteja repleta de máquinas, mas que o
seu coração continua vazio de satisfação. A noção do progresso interminável foi
aquela com que a Ciência, a princípio, lisonjeou os seus devotos, mas agora
amedronta as suas vítimas. Foi um belo espetáculo para o século XIX assistir à
passagem do vapor à eletricidade, mas um espetáculo medonho para o século
XX presenciar o progresso das granadas de mão, convertidas em mísseis
teleguiados. A presunçosa satisfação de que tudo corria às mil maravilhas está
desaparecendo, substituída pela compreensão infeliz de que o progresso pode
ser também uma coisa demasiado unilateral. Ao ver tanta porfia e tanta
desordem no mundo, tanta bestialidade e tanto irracionalismo, muitos
perguntarão a si mesmos que espécie de progresso é essa. Estes tempos
precisam ser vistos em sua perspectiva histórica e psicológica apropriada para
que possam ser vistos corretamente. Ver-se-á, então, que o progresso técnico
conseguido não compensou o regresso espiritual que o acompanhou. A flagrante
disparidade entre eles chama a atenção.

A era que estamos vivendo não pode ser descrita como totalmente despojada
de valores intelectuais, mas assim se podem descrever as tendências que
sobrenadaram entre as duas guerras mundiais. Essa fase abrigou uma
civilização que entoou poemas em louvor do seu próprio e romântico avanço
industrial, mecânico e inventivo. Esse avanço era adequado e necessário. Mas
quando foi comprado com a violação de leis morais, a entronização do intelecto
acima da intuição, com a cobiça, o egoísmo, a violência e a perda da fé num
poder superior e da reverência que lhe é devida, essas loas traíram uma
superficialidade grotesca, pois o movimento se converteu em marcha para o
precipício. Quem poderá visualizar o fim desse processo degenerativo que se
verifica entre nós? Cada decênio dos últimos cem anos tem visto mais orgulho,
porém menos reverência, mais informação, porém menos sabedoria, e mais
franqueza, porém menos bondade do que o decênio precedente. A perda dessas
qualidades deve ser chorada. Pagamos muito caro a substituição do culto de
Deus pelo culto da Coisa.

Porque possuímos o automóvel, o avião e a bomba atômica, pretendemos saber


mais do que os nossos antepassados e os exóticos asiáticos. Sabemos, de fato,
mas só a respeito de coisas. Na realidade sabemos menos acerca de nós
mesmos, acerca dos propósitos ocultos da vida, acerca do mundo da realidade
interna. Fazemos tão pouco do que realmente importa, e tanto do que é
relativamente trivial! A amplitude do conhecimento entre os antigos filósofos era
limitada, mas não o era a profundidade do pensamento. Dessa maneira foi
possível aos místicos realizar o milagre de chegar, com um número menor de
fatos à sua disposição, a conclusões supremas mais verdadeiras a respeito do
universo do que nós, os modernos, assim como a um conhecimento mais exato
do ser essencial do homem. Isto não deverá surpreender-nos se nos lembrarmos
de que a mesma Ciência, que nos diz que só devemos basear a busca da
verdade nos fatos aduzidos pelos sentidos, também nos diz que os próprios
sentidos são limitados, indignos de confiança e imperfeitos. O místico, tantas
vezes criticado pelo cientista, bem poderá rir-se, irônico, dessa situação!

A Ciência saiu a campo e pôs-se a investigar o universo em todas as direções,


exceto uma — o próprio cientista! Tamanhas são a pressão e a tensão da nossa
pretensa vida civilizada que se torna cada vez mais difícil aos homens encontrar
um pouco de tempo para examinar o próprio eu, e mais ainda para sondá-lo. Foi
por isso que os que adotam o ponto de vista materialístico a respeito de si
mesmos chegaram a tão ampla conclusão escorados em provas tão parcas.
Teriam feito melhor se, em vez de proferir um veredicto injusto, o houvessem
guardado para si. Essa ausência de sentimento religioso, essa indiferença para
com a experiência mística, essa paralisia da veneração pelas coisas mais altas
e pelas leis morais, que principiou há dois séculos, não poderiam ter estadeado
as suas más consequências em toda a sua terrível plenitude e forma visível
enquanto não se tivesse passado o tempo suficiente. Mas esse tempo já passou.
A violência e a guerra, a concupiscência e o ódio — tais são os frutos amargos
da perda da fé num poder mais elevado e da perda da crença naqueles que
podem comungar com ela. Se eles escancararam a porta da desesperança para
a maioria dos homens, a culpa deve atribuir-se a essa negação, a que podem
ser finalmente rastreados. Não aquecido pelo sentimento, não iluminado pela
intuição, o intelecto engana o homem, dando-lhe a ilusão da verdade. E um
estado assim é muito pior do que a ignorância da verdade. E é por isso que o
cientista frio contribuiu, sem querer, muito mais para o mal humano de hoje do
que o camponês analfabeto. É tão-somente a vaidade intelectual do homem que
o leva a acreditar-se capaz, finalmente, de fazer da sua vida terrena exatamente
o que deseja, pelo poder do conhecimento científico. Haverá sempre um número
incalculável de circunstâncias para controlar ou até para impedir uma coisa
dessas.

O aparecimento da Ciência e o desenvolvimento do intelecto não foram, em si


mesmos, fenômenos maus. Eram indispensáveis e necessários à plena
evolução da entidade humana. Em sua origem básica não eram menos
espirituais do que a fé do fanático e a intuição do místico. Mau, porém, foi o uso
que se fez deles, como também foi mau o extremo desequilíbrio a que eles
compeliram aquela entidade.

Soou a hora de despertarmos para o que fizemos a nós mesmos, para o que nos
fizeram uma Ciência unilateral e um gélido intelectualismo, e procurarmos um
equilíbrio que repouse sobre eles, sim, mas também sobre a fé e a intuição. E
visto que temos tanta coisa para pôr num dos pratos da balança, e tão pouca
coisa para pôr no outro, agora se exige de nós uma concentração de esforços
elevados, uma premência de consciência na questão do desenvolvimento
espiritual. O homem moderno necessita de uma contrapartida espiritual para o
avanço externo fenomenal das duas últimas centenas de anos, porque nem
todas as majestosas e impressionantes consecuções da Ciência aplicada podem
esconder o vazio interior da sua vida. Precisa de aviões e de automóveis, sim,
mas precisa ainda mais de satisfações superiores e de uma mudança de
orientação mental. Precisa fazer novas avaliações, descobrir idéias incomuns,
criar novos pensamentos, expressar atitudes generosas, fazer experiências
dispendiosas e, acima de tudo, precisa de um novo dinamismo espiritual. A sua
civilização deveria equilibrar as justas pretensões do céu e da terra. Não se trata
de uma necessidade teórica sem importância, senão, nessas tensões da crise
mundial, de uma necessidade urgente e prática. Nunca, até hoje, foi tão
importante para o homem haurir nas fontes divinas o alimento para a sua mente
e para o seu coração. De outro modo, a torre de Babel que a Ciência, a
Civilização, a Economia e a Política vêm construindo juntas, correrá o risco de
desabar e esmagar os seus adoradores.

Amiúde se pergunta por que as religiões existentes foram incapazes de conter a


difusão do materialismo. Isto se deve, em parte, ao fato de serem tão velhas e,
por conseguinte, até certo ponto, desvitalizadas e desprovidas de inspiração. Se
tiverem de ser negadas as trágicas apreensões da nossa era, isto só poderá
fazer-se através do nascimento de um novo impulso espiritual. Se isto acontecer
dentro ou fora das velhas religiões e dos novos cultos, ou dentro e fora deles ao
mesmo tempo, o fato não terá a importância que lhe querem dar os religiosos
fanáticos. Nenhuma religião, nenhum culto, nenhum grupo conseguiram, até
agora, monopolizar as inspirações e revelações de Deus, a graça e a salvação
do Eu Supremo. O importante é que esse impulso nasça no coração dos
homens. Pois, afinal, prevalecerá o que eles sentem profunda, secreta e
particularmente dentro em si mesmos. Concedeu-se à humanidade uma trégua
de vinte anos entre as duas primeiras guerras mundiais, a fim de que ela
emendasse os seus métodos e aprimorasse as suas metas, a fim de que ela
renunciasse aos erros passados. A incapacidade de aproveitar essa
oportunidade caro lhe custou. A segunda paz traz a mesma oportunidade e a
mesma trégua. A presunçosa satisfação com uma vida na ignorância do
propósito mais elevado da existência não pode prosseguir indefinidamente.
Precisa atingir o ponto culminante. Não está muito distante a hora em que o
gênero humano terá de acordar para essa finalidade e tomar consciência dos
primórdios da verdade espiritual ou arrepender-se do seu descaso. Os que
tapam os ouvidos ao desafio contemporâneo da vida, porque ele lhes perturba a
corrente constante da existência, a nada escaparão. Bem é que todos os
condutores de homens e todos os diretores do pensamento aprendam a ler
corretamente os sinais dos acontecimentos. Tremendos e novos sucessos
jazem, quais sementes, enterrados no solo deste século. Estes pertencem, com
efeito, à própria natureza dele. O seu aparecimento está assegurado.

O Homem — Animal, Intelectual e Espiritual


Os movimentos violentos, muito mais bramantes de paixão do que promotores
de pensamento construtivo, que constituíram um fenômeno que abalou o mundo
inteiro e que se mascaram como novas religiões para os jovens, levantam-se,
em parte, porque as velhas religiões se recusam a enfrentar corajosamente as
tendências dos dias que correm e, em parte, porque os velhos sistemas já não
satisfazem às novas necessidades. Essas fés aceitaram a concepção do homem
como um animal raciocinante, e a História já nos mostrou como isso é perigoso
quando aceito como a concepção mais elevada possível. Se a existência do
corpo é tudo por que devemos zelar agora e tudo o que devemos esperar no
futuro, até que ele se desfaça em pó, a estúpida loucura e o violento crime da
humanidade serão perfeitamente desculpados.

O animal desenvolve o uso dos seus cinco sentidos. Em seu corpo animal, o
homem tem o mesmo uso. Mas ele se alça acima disso por diversas diferenças
importantes: a sua faculdade da fala, a sua postura física erecta e o fato
dramático de ser, na esfera das operações mentais, capaz de conseguir o que
animal algum conseguirá. Quem quer que examine, pela primeira vez, um
cadáver na sala de dissecção, constatará que o cérebro do animal humano,
estruturalmente, é mais complicado do que todos os outros. Mas isso não é tudo.
Se o nosso examinador analisar também a qualidade do cérebro, observará que
a sua superioridade é pronunciada. Por quê? Porque a grande diferença entre o
homem e o animal é a diferença de mente. Nenhum animal é capaz de
compreender o que um homem compreende, nem tem, como o homem, a
capacidade de sentir fome intelectual.

A vista de uma águia e a ligeireza de um veado são muito superiores às do


homem. Entretanto, a inteligência raciocinante e a imaginação criativa do homem
são muito superiores à inteligência instintiva de qualquer animal e muito mais
valiosas do que ela. Pois a sua inteligência lhe faculta inventar um engenhoso
telescópio, que lhe permite ver até onde a águia não pode ver, e a sua
imaginação lhe propicia a possibilidade de recriar o mundo físico à sua maneira
e, assim, construir um assombroso avião, em que voa mais depressa do que a
mais veloz das aves. O seu poder de raciocinar e a sua capacidade de
premeditar um curso de ação, imaginando-lhe as prováveis consequências,
também o extremam.

Os animais, os pássaros, os peixes e os insetos podem, todos, fruir de grosseiros


prazeres físicos, mas são incapazes de gozar de prazeres estéticos, como os
que proporcionam a Pintura e a Música. Este é um privilégio humano exclusivo.
As suas possibilidades capacitam ainda mais o homem para sobrepujar o animal
de forma totalmente diferente, pois o conduzem a um plano muito mais elevado.
Nele, pela primeira vez, a vida principia a refletir sobre a própria significação e
atinge, assim, o pensamento metafísico. Não existe outro animal, além do
humano, que possa raciocinar abstratamente e sentir a precisão de compreender
a verdade e arredar-se do erro, julgar as aparências e apreciar a realidade. E
tudo isto porque o homem pertence a uma espécie que se encontra num plano
inteiramente diverso do de todas as outras. A espécie humana progrediu e
chegou mais perto da capacidade de reconhecer a própria entidade metafísica,
e esse raciocínio é um dos sinais da sua progressão. Não é apenas o poder de
tomar consciência de si mesmo como ser intelectual que o coloca acima do
animal; é, sobretudo, o poder de tomar consciência de si mesmo como ser
espiritual. Se a posse do pensamento abstrato distingue o homem e faz dele um
ser mais elevado, ligando-o a um cérebro capaz de abarcar o universo e penetrar
alguns mistérios da vida física, a posse da intuição lhe dá condições de desvelar
a alma sagrada. Se os animais não podem segui-lo aos reinos situados além da
sensação física, aos reinos da arte criativa e do pensamento abstrato, como
poderiam segui-lo aos reinos que ficam adiante desses dois — à sublime
experiência mística e ao reverente sentimento espiritual?

Se o homem não fosse, realmente, mais que um animal, como querem os nossos
materialistas, estaria perfeitamente satisfeito com a sua finitude mental e os seus
apetites físicos. O esquilo encarapitado num galho daquela árvore, que olha para
mim, está satisfeito. Mas o homem, não. Por quê? Porque qualquer coisa dentro
dele o impele a buscar o Além, insta com ele para que se eleve ao Mais. E essa
“qualquer coisa” é nada menos que a presença não descoberta da sua alma
divina. Não basta ser prático. O castor também é uma criatura prática, mas a
vida mais alta, que nenhum castor poderá conceituar, extrema dele
verdadeiramente o homem.

O cientista que considera a religião como sinônimo de superstição, e que se vê


tão-somente corpo, encontra-se num estado lamentável. Perdeu quatro valiosas
características que elevam e, entre outras, distinguem a criatura humana das
criaturas animais: a fé num poder superior invisível, a humildade e a reverência
à simples idéia desse poder, e a capacidade de orar a ele. Freud, por exemplo,
denunciou a crença religiosa como uma ilusão de que os homens se livrariam
numa sociedade mais evoluída e, todavia, ele próprio alimentava a ilusão de que
a Ciência por si só poderia proporcionar toda a orientação de que o homem
precisava. Quantos homens, que em outro tempo pensaram como Freud,
continuam a pensar assim, depois que a tenebrosa experiência da guerra
científica lhes revelou a pobreza interior e os fez cair de joelhos, num desamparo
total, ou numa prece agoniada?

Nesse sentimento de veneração religiosa, de adoração íntima e de aspiração


pessoal dirigidas a um Poder e a uma Mente invisíveis, acima de si próprio, o
homem galgou alturas a que animal algum logrará segui-lo. Nenhuma outra
criatura sobre a terra, além da criatura humana, é capaz de criar, receber ou
meditar o conceito de um Deus, e muito menos a idéia do seu próprio ser
espiritual. E o que é mais, só ele pode passar do sentimento intuitivo para o pleno
florescer da experiência mística do seu Eu Supremo, que os homens denominam
a alma interior. É isto que o liga à existência suprema, e é um raio dela, a Mente
Universal, que os homens chamam Deus. O homem ou a mulher podem
concebê-la, mas o pavão ou o leopardo não podem. O vago eco distante, a
abafada indicação da existência da alma no fundo do seu coração, é uma
distância intransponível, que o separa dos animais. Manifesta-se de maneira
dupla. Em primeiro lugar, há uma consciência moral, um sentido do certo e do
errado, um desejo de optar pelo bem ou rejeitar o mal e a capacidade de fazê-
lo. Em segundo lugar, há a capacidade de compadecer-se,
desinteressadamente, de outras criaturas. Qual é o animal que se condói
abnegadamente de outros animais? Existem alguns, mas são raríssimos.

Para que esses pensamentos não nos deixem com um complexo muito grande
de superioridade, rebatamo-los lembrando que existem vários pontos em que o
animal se mostra a uma luz mais favorável do que o homem. Dois nos bastarão.
A placidez de uma vaca tem sido objeto de menções desdenhosas de vários
escritores e, no entanto, o morador das cidades, tensamente nervoso e
semineurótico poderia proveitosamente trocar a sua tensão por esse atributo
repousante da vaca. A incapacidade dos seres humanos de agirem de acordo
com os seus conhecimentos ou as suas crenças, seja isso devido à fraqueza da
vontade, à hipocrisia convencional ou a motivações inconscientes, é
desconhecida no mundo animal, onde a auto-expressão é espontânea e perfeita.

Entretanto, o reino animal representa um estádio evolutivo para as ondas de vida


que sobem do reino vegetal, mas um estádio regressivo para os que já se
encontram no reino humano. A luta totalmente egoísta pela sobrevivência do
mais apto, o uso de uma violenta força assassina contra outras criaturas, só para
sustentar e nutrir a existência, são naturais e apropositados no animal, porém
imorais e despropositados no homem. Atributos supostamente humanos, como
a cólera, a cobiça, o ódio e o desejo de vingança, na realidade, são atributos
animais. Na guerra encontram a sua pior e mais cabal expressão. À medida que
o homem evolver, compreendendo as suas possibilidades realmente humanas,
cairão do seu coração essas possibilidades inumanas e a guerra será banida
das suas atividades. E à proporção que ele sentir a paz dentro em si, essa
mesma paz se estenderá sobre a terra.

Criaturas domesticadas, como o cão no Ocidente e a vaca no Oriente, aprendem,


através da sua associação com o homem, a entender inteligentemente algumas
das suas perguntas, outras tantas das suas palavras e muitas das suas ordens.
Isto é puramente acidental, mas ilustra a lei do desenvolvimento.
Seguindo uma falsa orientação de teorias científicas refugadas, e enredadas nas
teias do próprio pensamento, as fés ateísticas interpretaram mal também a
natureza pensante, que associam à animalidade do homem. A mentalidade
delas presume de científica mas é, na realidade, pseudocientífica. Rejeita
precipitadamente o místico por supersticioso, o metafísico por insensato, e a
ambos desautora assim que ouve falar neles. De tal modo se impacienta com a
sua suposta insubstancialidade que se recusa até a discuti-los, quanto mais a
investigar-lhes os fatos, o que uma verdadeira ciência deve fazer. O irmão
gêmeo delas é o tipo de misticismo que não quer libertar-se das superstições
que, por tanto tempo, quase estrangularam a própria tradição. A verdade só
deformará a beleza ou negará a intuição quando deixar de ser verdade. O
materialista ou o cientista que não consegue percebê-lo, falha na vida. Mas
tampouco o místico que ignora o fato e coloca mal a fé no intuito de assegurar a
intuição consegue fazê-lo. Assegura-lhe apenas a aparência.

O orgulho arrogante que vem de um intelecto bem desenvolvido é um poderoso


obstáculo no caminho que conduz à verdade filosófica. Ministra ao ego uma
presunção acerca da própria importância que o impede de prestar a humilde
obediência ao Eu Supremo, pré-requisito indispensável à auto-revelação deste
último. Se o estranho mistério que se esconde dentro da vida e dos homens tem
zombado das mentes mais agudas, é porque eles tentaram impor suas próprias
condições à sua solução, em lugar de aceitar as que inerem inexoravelmente a
ela. Os métodos usados e as faculdades necessárias são basicamente tão
diferentes na espécie que a Ciência encara o estudo do misticismo como
improfícuo. É verdade que o caráter severo dos critérios científicos ultrapassa a
total realização do fanático e do místico; mas isso não se verifica,
necessariamente, através da oposição a eles, senão através da total diferença
de condições que governam as experiências espirituais.

Quem quer que atente imparcialmente para as disputas intelectuais do nosso


tempo não tardará em conhecer que o intelecto, por si só, não oferece certeza.
O intelecto pode apresentar uma defesa plausível da crença de que todas as
coisas na vida e no universo são guiadas por uma Mente Infinita, para bons fins,
ou pode apresentar uma defesa, igualmente plausível, da crença contrária. Só a
intuição dirá, definitivamente, que a crença é verdadeira. Só os profetas e
místicos — se estiverem plenamente desenvolvidos — poderão chegar à certeza
e conhecer que ela é verdadeira. Uma concepção mecanizada e sem Deus do
universo não aproximou os nossos modernos da certeza. Pelo contrário, acabou
por aproximá-los da dúvida e da confusão. Não há outra estrada que confronte
a Ciência, senão a que leva do fato físico à verdade metafísica, da observação
feita pelos sentidos à iluminação encontrada pela mente. A Ciência deve erguer-
se de resultados concretos para o significado abstrato desses resultados, isto é,
da Física materialista para a Metafísica mentalista. Só assim poderá completar-
se.
Existe um mistério na mera existência do homem, e muito mais na existência do
mundo. Ninguém que sinta realmente ou pense profundamente deixará de
reconhecer-lhe a presença. O materialista foge dela. O místico a examina. O
filósofo a explica. Quando o homem principia a refletir vigorosamente pode
adotar a concepção materialista de si mesmo e da vida. Mas quando ingressa
na fase da maturidade, abandona, por força, essa concepção superficial.

Quem quer que peça à razão não iluminada o que ela não tem competência nem
qualificação para dar cai, pura e simplesmente, numa auto-ilusão. Pois é o
próprio pensamento, quando trabalha mais intensamente, quem lhe diz que a
natureza da alma ou a realidade do mundo não podem ser conhecidas pelo
pensamento! O Eu Espiritual só pode revelar-lhe a sua natureza pela intuição, e
não pelo pensamento, embora o pensamento possa ser usado como trampolim
para chegar à intuição. O primeiro passo, por conseguinte, é estabelecer uma
diferença, não de espécie mas de qualidade, entre esses pensamentos, que são
discursivos, e os pensamentos intuitivos. Os primeiros são comuns e cotidianos,
os segundos, incomuns e infrequentes.

O pensamento se confunde, ao passo que a experiência se contradiz. Toda a


confusão que provém da retenção de uma massa de idéias contraditórias e toda
a tensão que decorre da tentativa de conseguir pelo esforço próprio o que o eu
pessoal nunca poderá conseguir desajudado, conduzirão, um dia, à exaustão
mental e emocional. Isto, por seu turno, obriga o eu a deixar-se levar, e
proporciona um solo favorável ao advento da intuição. Quando a reflexão
compreender as próprias imperfeições, compreenderá também a necessidade
de calar no ponto mais distante a que chegou. Nesse ponto, terá de pedir a ajuda
de uma técnica, como a ioga oriental ou a meditação ocidental. Esta é apenas
uma parte do preço e o prelúdio da iniciação do homem na busca que conduz
diretamente ao centro sereno no interior da sua mente oscilante.

O pensamento e a reflexão terão de caminhar aqui com suma delicadeza.


Nenhum sistema mental, nenhum edifício construído intelectualmente poderão
fazê-lo. Não obstante, ao pensar no que está além de si mesmo, se for
escrupulosamente honesto e firmemente humilde, o intelecto poderá acabar
aniquilando o próprio poder tirânico. O pensamento razoado completa a sua
missão mais elevada quando se obriga a reconhecer as próprias limitações,
quando percebe que as suas idéias mais liberantes não podem liberar-se, e
quando, daí por diante, coloca os seus serviços à disposição da mística
contemplação do Impensável. Pode dizer-nos que, embora esteja além da nossa
compreensão concebível, o Eu Supremo não está além da nossa experiência
possível. Temos de encontrar a verdade não só em nossa reflexão, mas também,
e mais ainda, debaixo dela. Pois é divino o silêncio do qual se ergue a própria
função. O curso que terá de ser tomado pela nossa inteligência racional, quando
procurar compreender a vida, terá de começar com o mundo, continuar com o
homem e terminar em Deus.
Que seja possível, por um processo de reflexão abstrata, atingir um
conhecimento situado além da própria reflexão, talvez pareça paradoxal. Mas
não é isto realmente o que se pretende. A reflexão pode levar-nos à sua própria
fonte, mas ali terá de deter-se. Aponta para o que está além de si mesma, mas
não fornece a compreensão do que a transcende, senão indireta. E consegue-o,
dissolvendo-se no sítio de sua origem, depois de realizada a tarefa; mas só o
fará introvertida, concentrada e sustentada.

A Intuição Além da Reflexão


“Por que devo acreditar em Deus? Por que devo viver de modo que não perturbe
o bem-estar dos outros?” Não ajudado pela revelação ou não orientado pela
intuição, o intelecto jamais cumprirá a tarefa de responder adequadamente a
essas perguntas, nem perceber “o por quê, o donde e o para onde” da existência
humana e cósmica. Sozinho, é impotente para julgar com exatidão essas
questões, precisa pedir auxílio — primeiro o auxílio do sentimento intuitivo,
depois dos estados místicos e, finalmente, da visão filosófica. O máximo que ele
pode fazer é responder a outra espécie mais grosseira de perguntas.

Essa atitude em relação ao uso e ao valor do raciocínio parece desconcertar


alguns estudiosos que vêem contradição em nossa aprovação e condenação
alternadas do seu uso, em nossa estima e desestima alternadas do seu valor.
Essa aparente instabilidade de nossa parte exige uma pequena explicação.
Quando o pensamento lógico se separa das realidades da experiência, nós o
condenamos. Quando constrói baseado em fatos investigados, nós o apoiamos.
Onde não é possível a penetração de pensamento algum, queremo-lo imóvel.
Onde o pensamento de um gênero metafísico especial conduz ao limiar da
verdadeira intuição, queremo-lo ativo. Dessa maneira, não existe incoerência
nos nossos pronunciamentos.

Os valores criativos logrados pela pesquisa intelectual são conservados e


preservados no conhecimento transcendental superior, em lugar de serem
refugados como imprestáveis ou dispensados como estorvos, como o fazem
amiúde místicos unilaterais ou semidesenvolvidos, mas não se lhes permite que
ergam uma barreira à possibilidade humana. Se bem o verdadeiro discernimento
não possa ser mero produto do exercício intelectual por si só, mas deva emergir
de algo que transcenda o próprio intelecto, esse exercício tem o seu lugar e o
seu valor. Ajuda a dissipar ilusões, a conter a superstição, a avaliar e disciplinar
as emoções e a explorar territórios não frequentados pelo caminho do
sentimento intuitivo e da experiência mística. A razão analisa e interpreta
intelectualmente o que a intuição já conhece. Liberta assim a intuição e lhe
proporciona a satisfação racional. Ocupa uma posição particular e desempenha
uma função particular, mas não exaure as possibilidades do homem. Quando
este compreende que a razão e a intuição precisam trabalhar uma com a outra
e uma pela outra; quando compreende que elas não são irreconciliáveis; e
quando deixa de considerar-lhes incongruente a aliança, o homem tem tudo a
ganhar. Assim como a razão é essencial, na qualidade de controle disciplinar do
sentimento intuitivo, assim também o sentimento intuitivo é essencialíssimo, na
qualidade de controle disciplinar da razão. A não ser assim, o pensador estará
apenas acrescentando o seu acervo de construções intelectuais.

Mas conquanto a razão deva controlar o sentimento, não se lhe pode permitir
que o substitua. Isto seria um erro. Pois a mais bela flor do jardim do homem, a
intuição, outra coisa não é senão o sentimento purificado do seu egoísmo e
iluminado pelo Eu Supremo. Idéias excelentes podem perder-se no espírito
público, através da associação histórica com palavras intencionalmente mal
empregadas. Hitler projetou uma sombra, por exemplo, sobre a palavra
“intuição”.

O materialismo é uma ilusão intelectual. Quanto mais inteligente se julga o seu


adepto, por motivo da sua adesão, tanto mais se ilude a si próprio. E quando
mais profundamente se afunda nisso, tanto mais se vai paralisando a sua
intuição. O intelecto sem intuição só é uma bênção para o homem até certo
ponto, pois além desse ponto se converte em verdadeira maldição, que o
persegue. Se, através da escravização a hábitos anteriores, ou através do
domínio exercido por um intelecto lógico, o homem se recusa a dar tento dos
sentimentos intuitivos que sobem à tona, provenientes do eu não-ego, e a
obedecer-lhes, esses sentimentos se tornarão cada vez mais débeis e acabarão
deixando-o de todo. Quando a intuição fala à sua maneira silenciosa e sutil, mas
não é reconhecida pelo que é, haverá um vago mal-estar durante algum tempo,
algumas apreensões, talvez até algum conflito. Mas se ela não for obedecida até
determinado momento, a sua voz deixará de ser ouvida e a vítima do ego terá
de comer os frutos da sua desobediência. Quando o homem obedece aos
ditames da intuição mais íntima, em lugar de seguir a sugestão de outrem,
caminha direito. Mas quando cede aos outros e faz o que os outros esperam,
desejando ou aconselhando ao arrepio da intuição, esta última, enfraquecida,
principia a desampará-lo. Se atender à intuição, confiar nela e obedecer-lhe, ela
o dirigirá para o que ele tem de melhor e o protegerá contra o que ele tem de
pior.

A tremenda luta da razão contra a paixão, da intuição contra a sugestão, da


verdade contra o interesse pessoal, da individualidade contra a massa, e da
contemplação contra a convenção é uma luta sem fim. Mas é também uma luta
honrosa. Não devemos, não podemos abrir mão do direito de pensar nem do
poder de intuir por nós mesmos. É, ao mesmo tempo, um erro e um pecado
escolher o caminho mais fácil. Testemunhamos, em nosso próprio tempo, as
suas terríveis consequências no caso de nações inteiras.
A civilização nos ministrou os meios de comunicar o pensamento de maneiras
que teriam assombrado os nossos maiores, mas não se preocupou muito em
proporcionar-nos os meios para cultivar o pensamento intuitivo. Podem inventar-
se máquinas para dar-nos os primeiros, mas só o homem é capaz de utilizar os
segundos. Podemos telefonar de Nova Iorque a Bombaim, mas o valor do que
dissermos será a verdadeira prova do nosso progresso. E começaremos
realmente a dizer alguma coisa que valha a pena quando aprendermos a ser
dóceis e receptivos à mais fraca das intuições, mantendo-nos leais a ela contra
as cautelas exageradas e a excessiva prudência do intelecto amedrontado.
5
O Ego em Evolução

Nós, que vivemos na crosta externa de um planeta que segue o seu caminho,
rotando, pelo espaço sem fim, pertencemos à mais trágica e à mais crítica de
todas as eras. Por isso precisamos começar a procurar-lhe o significado para
nós. Descobrindo o que é e reorientando a nossa vida de acordo com o nosso
descobrimento, poderemos transformar a era iminente na mais abençoada de
todas mas, se deixarmos de fazê-lo, poderemos facilmente transformá-la na pior.

Que o universo tem um significado e que a vida humana não é um simples errar
do nada para o nada, afirma-o decidida, a Filosofia. Embora ofereça, em sua
plenitude, uma sabedoria demasiada sutil, uma moral demasiado elevada e uma
mística demasiado estranha para que o grosso da humanidade se interesse por
ela e, muito menos, para que a compreenda e viva de acordo com ela, isso não
quer dizer que ela seja inútil para os homens ou que não tenha mensagem
alguma para eles na crise mais grave de toda a sua vida. Embora não peça a
ninguém que se transforme num filósofo de espírito maduro, embora não rogue
a ninguém que estude a Filosofia capaz de trazer a luz, pede que lhe ouçam a
mensagem sobre a atual situação da humanidade.

A palavra “filósofo” significa hoje, com demasiada frequência, um mero


especulador mental, que frequentou um curso superior dessa especulação ou
leu muitos tratados sobre ela. Dilatou-se, como tantos outros termos antigos,
transformando-se numa palavra guarda-chuva, capaz de cobrir coisas
muitíssimo diferentes. Poder-se-á, porventura, descobrir um meio que diferencie
sucintamente a palavra “filosofia” das teceduras acadêmicas rotuladas com ela?
Recusamo-nos a renunciar ao uso de uma palavra cuja alta e honrosa derivação
é revelada pelas suas raízes gregas: “o amor da sabedoria”. Que os homens e
o tempo lhe tenham degradado o uso é lamentavelmente exato, mas essa é mais
uma razão por que ela deve ser resgatada, restituindo-se-lhe o significado
original. Aqui está reservada, como os orientais ainda a reservam, para o imo da
cultura mais elevada do homem, que desceu, mais silenciosa e menos conhecida
do que as formas exteriores, através das idades, entre os poucos que se
interessavam por ela em todos os continentes, em intuições e experiências
religiosas, metafísicas e místicas.
Há, e só pode haver, uma única verdade universal e externa. Porque o Real
existe sempre e nunca desaparece, o Verdadeiro existe sempre e nunca
desaparece. Nenhum profeta a revela jamais pela primeira vez, nenhum vidente
a descobre. Todos a redescobrem. Ela não muda nem evolve; só muda e evolve
a sua forma de apresentação. Mas antes de poder manifestar-se em nosso
mundo, precisa encontrar mentes humanas suficientemente preparadas para
recebê-la e suficientemente desenvolvidas para compreendê-la e ensiná-la.
Esses homens apuradamente sensíveis são os profetas inspirados, os videntes
autênticos, os verdadeiros filósofos da História.

Esta sabedoria é realmente tão antiga que soa totalmente nova. Como é irônico
que os primeiros princípios da cultura humana se tenham transmudado nos
últimos princípios! Os seus ensinamentos receberam uma nova importância,
uma recente dignidade, que lhes foram conferidas pela tremenda necessidade
da nossa geração. O filósofo que acompanha com os seus conhecimentos
especiais e a sua visão mais aguda o drama mundial que está sendo
representado em nossos tempos, sabe que forças mais do que humanas lhe
estão determinando o curso supremo e vê que leis mais altas lhe estão
modelando o fim. Ele poderá não pretender à onisciência, mas pode pretender
conhecer alguma coisa sobre assuntos que, embora importantíssimos para a
vida humana, são amiúde descuradíssimos pelos seres humanos.

A crise com que hoje defronta o mundo é uma coisa que ele nunca precisou
enfrentar até agora em tão ampla escala. A maioria dos homens se sente
impotente diante desses eventos catastróficos, que se sucederam uns aos
outros tão ligeiros nos últimos anos. A mente humana está tão perturbada que
não consegue apreender-lhes adequadamente o significado. Temos de
perguntar a nós mesmos por que tais sucessos históricos sem precedentes, tais
invenções revolucionárias, tais iníquas maquinações e tão tremendo fermento
mental vieram agitar a humanidade precisamente neste ponto e em tão larga
escala em sua carreira secular. Por que não se manifestaram antes? É um erro
procurar paralelos históricos para as situações atuais. Logo se tornará evidente
que a crise de hoje não só é única em sua tremenda área, mas também é única
de um modo muito especial. Não estamos apenas no fim de um ciclo histórico
da vida humana, estamos também no fim de um ciclo cósmico. O primeiro já
aconteceu antes e voltará a acontecer depois, mas o segundo é uma situação
sem paralelo em tão ampla extensão durante os tempos posteriores à Atlântida.
Eis aí por que a História humana atingiu o seu período mais importante e o
destino humano o seu período mais decisivo nos anais de que se tem notícia.

O século XX assistiu a um número maior de inversões do pensamento, da


conduta e do governo humanos do que qualquer outra época. Viu o plácido
egoísmo do formal, do ortodoxo e do convencional sacudido mais depressa do
que nunca. Em nenhum outro período, além desse nosso meado de século,
poderia ter-se desenvolvido tão tremenda combinação de forças. Em nenhum
outro período poderia ter ocorrido, de maneira tão clara, uma luta tão dramática
e universal entre os poderes do bem e as forças do mal. Entretanto, em nenhum
outro período foi tão possível ao homem comum aprender as verdadeiras leis
que governam a vida, e de forma tão racional.

Toda a população deste globo está passando coletivamente por uma transição
total entre uma espécie de vida e outra, que ainda precisa substituí-la. Quer
adotemos um ponto de vista materialista, ou um ponto de vista místico, quer lhe
chamemos o jogo das forças ambientais visíveis ou a completação dos desígnios
invisíveis da Mente Universal, o resultado é o mesmo: todos terão de concordar
em que uma velha ordem está-se dissolvendo, e uma nova ordem está
nascendo. Tudo tem o seu lugar na divina Idéia Universal. Os grandes e
sombrios sucessos da nossa geração também devem ter algum significado
naquele pensamento, mas isso não significa que eles nos sejam enviados
arbitrariamente. Nós mesmos, em grande parte, os atraímos sobre nós, sob a lei
universal da evolução e a eterna lei da compensação, que constituem a essência
daquela Idéia. O conhecimento dessas leis nos obriga a olhar por um prisma
diferente para o sofrimento engendrado e, consequentemente, com resultados
diferentes.

As leis cósmicas existem, pois, se não existissem, tudo estaria em confusão. Se


o sol despontasse hoje poderia não despontar amanhã. A não existirem tais leis,
o uso do livre arbítrio humano não teria sentido. A vida humana só recebe a sua
plena significação quando esse arbítrio pode ser exercitado. Tais leis expressam
a vontade de Deus e, na medida em que fizermos conformar-se a elas a nossa
vida individual, estaremos fazendo a vontade de Deus. Por conseguinte, bem é
que o homem pergunte, em sua prece, qual é essa vontade e procure conhecer,
por intermédio da inteligência, que leis são essas.

Toda uma era está sendo encerrada, daí a desintegração de valores e


instituições. Os seus próprios graves defeitos, o seu próprio atraso moral e o seu
próprio feio materialismo lhe consumiram o corpo como ácidos corrosivos.
Estamos presenciando uma imensa liquidação, de proporções planetárias, de
formas exteriores, falsas idéias, instituições hipócritas, atitudes egoístas e
estagnações espirituais, ainda que os canais e as forças dessa liquidação sejam,
eles próprios, tão maus que acarretam, durante algum tempo, um pior estado de
coisas do que o anterior. Pois o bom está sendo desintegrado ao lado do mau,
o verdadeiro está sendo varrido com o lixo e o belo também está sendo
destruído. Nesta era de transição, quando as forças evolutivas pressionam a
humanidade e atuam sobre ela, tanto de dentro quanto de fora, as características
morais predominantes estão sendo, em toda parte, implacavelmente obrigadas
a mostrar-se como realmente são, e sem disfarces. E em toda parte os homens
estão colhendo, com dramática inevitabilidade, as consequências a que
conduzem tais características. No fim será tão impossível para eles esconder o
que desejam quanto evitar o que merecem. Incumbe à lei da recompensa neste
século ajustar inexoravelmente as contas de todos os grupos e interesses que
foram dominados pelo ego animalístico. A História tornou-se dramaticamente
apocalíptica. Este é, com efeito, o “dia” (isto é, o período) de juízo de que fala a
Bíblia, o tempo em que os pratos da justiça estão em plena operação para todas
as raças, todas as classes, todas as nações e todas as religiões. Estes são os
pratos em que a estrutura edificada pela humanidade, e a própria humanidade,
estão sendo pesados, medidos e aferidos.

Mas a operação dessa lei é apenas um dos fatores da nossa complexa situação.
Pois não só o processo de ajuste mundial é responsável por tantas sublevações
contemporâneas, mas também o processo de desenvolvimento mundial é
responsável por tantas mudanças atuais. As forças impessoais do primeiro
produzem choque, as do segundo, surpresa. O progresso material fenomenal
dessa era moderna deve-se, em parte, à aceleração do ritmo que sempre
acompanha a última fase de uma tendência evolutiva e, em parte, ao caráter
centrífugo do ímpeto que, por detrás dessa tendência particular, alcançou a sua
expansão final e, consequentemente, a sua expansão maior. O fervilhante
fermento do nosso tempo continua. É um período de constante tumulto e de
mudança incessante. Por quê? Porque a pressão evolutiva de forças ocultas em
ação neste planeta está agora impaciente por desviar-nos de um passado
obsoleto para um futuro criativamente novo.

De ordinário, a natureza humana tem mudado no passado com a máxima


gradatividade e com a máxima lentidão, mas as pressões da vida nos tempos
que correm mostram a necessidade de um ajustamento mais rápido. Nem todas
as forças implícitas nessa transição são facilmente perceptíveis, exceto para
mentes intuitivas e percepções clarividentes. As consequências da sua atividade
não serão sentidas enquanto esse fato não assumir uma forma mais clara e mais
nítida, mas serão até mais momentosas do que as que já se manifestam. O
estímulo para o atual período histórico de desenvolvimento humano vem tanto
de dentro quanto de fora, do mundo invisível e do mundo físico. A pressão interna
faz-se sentir em toda parte. O mundo procura enfrentar às cegas os seus
problemas; é incapaz de enfrentá-los com êxito porque não lhe agrada perceber
que uma velha época histórica está-se dissolvendo celeremente, que
acontecimentos perturbadores e desintegrantes estão preparando o caminho
para uma época nova que, dentro em pouco, forcejará por nascer, e à qual ele
terá de adaptar-se convenientemente. A guerra e a paz são apenas o portal de
uma nova era, muito embora essa mesma era ainda se encontre no extremo de
uma longa avenida.

A força de um novo ciclo está lentamente encetando o seu trabalho. A sua


pressão está compelindo os homens a enveredarem por novas avenidas de
investigação, a ansiar por mais ampla consciência da vida, ainda que a sua
imaturidade os leve, muita vez, a confundir o mal com o bem, a mentira maligna
com a benéfica verdade. Se assim não fosse, por que as multidões da Ásia
despertaram do seu longo letargo e principiaram a aproveitar com avidez as
novas oportunidades de aprender a ler e a escrever, para se tornarem cidadãos
mais instruídos do mundo? Por que os menos privilegiados dos cinco continentes
têm insistido tanto em exigir uma vida econômica melhor? Por que as terras que
dormiam num atraso medieval, despertadas pela guerra e pela crise, foram
obrigadas a franquear o espírito a idéias novas e piores, assim como a idéias
novas e melhores? Porque o fermento universal está agitando tanto o mal quanto
o bem, há tanto tempo latentes no espírito dos homens. Só poderão decifrar a
charada do nosso tempo os que lhe possuírem a chave, segundo a qual a velha
ordem do pensamento materialista, as velhas maneiras de encarar a vida, estão
sendo trazidas rapidamente à superfície em suas formas mais extremas, apenas
para serem, afinal, feitas inexoravelmente em pedaços pelo choque de eventos
surpreendentes.

Os homens são meros joguetes nesse tremendo processo, e não podem


controlá-lo nem detê-lo. Que o curso dos acontecimentos é maior do que os
homens, que a tendência do destino do mundo escapa ao controle dos
indivíduos, ilustra-o a história dos nossos próprios tempos. Nem o próprio Hitler,
com toda a energia notavelmente dinâmica que sabia provocar em si mesmo e
inspirar nos outros, poderia alterar essa inevitabilidade. Historiadores guiados
unicamente pelo intelecto lógico e pela observação externa engendraram a
ilusão de que qualquer pessoa particular é tão importante e tão poderosa que é
capaz de alterar o caráter e o destino do seu tempo, ou mesmo o espírito e a
fortuna da sua nação. É verdade que o advento de todo movimento coincide com
a carreira de algum homem notável. Mas tudo o que ele faz, tudo o que pode
fazer, é proporcionar em si mesmo as condições por meio das quais as forças
cármicas e as tendências evolutivas poderão atingir os seus fins para a época
ou para o povo dele. É inevitável que, se for usado como instrumento, as suas
metas pessoais coincidam com esses fins nessa ocasião. Cumpre ao seu gênio
percebê-lo e preparar-se para isso.

As forças cármicas e os processos evolutivos em atividade são imponderáveis


ocultos, que fogem ao controle de qualquer indivíduo. Se virmos um determinado
homem afeiçoando aparentemente o destino contemporâneo, isto não passará
de aparência. Um homem assim será mero instrumento de poderes mais altos,
sejam eles divinos e sagrados, sejam infernais e diabólicos. Por conseguinte,
quando surgem em cena homens capazes de grande liderança, mais cedo ou
mais tarde possuirão uma influência condizente com a sua grandeza. É apenas
externamente exato que os homens são anteriores aos movimentos, que as
épocas notáveis da História foram inauguradas por pessoas notáveis, mas é
realmente exato que eles são os pontos focais expressivos desses movimentos
e dessas épocas. Todo grande movimento, criativo ou destrutivo, sempre
pareceu ser obra de um só homem — fruto de um líder — mas o que lhe
impulsionou o nascimento, e lhe deu forças para viver e realizar a sua obra, veio
de fora do homem. Não é o indivíduo isolado na direção dos negócios que
remodela a vida de um povo, senão as forças ocultas da evolução e as forças
históricas do destino, que encontram vazão adequada para o seu trabalho nesse
indivíduo. Pois não são apenas as suas ambições e os seus desejos pessoais,
as suas capacidades e o seus defeitos, que ditam o curso da história do seu
povo, mas também as operações inexoráveis dessas duas poderosas molas-
mestras — o destino auto-suscitado e a Idéia Universal evolutiva.

Em resumo, todos os heróis e todos os ditadores, a despeito da sua ilusão de


haverem criado um movimento ou uma revolução, são realmente canais para
forças impessoais, na proporção em que representam os seus papéis
espetaculares no drama do mundo. O destino joga a última carta, o trunfo
vencedor, como sempre. A História só poderá ser apropriadamente
compreendida numa base dupla — a pessoal e a impessoal. A primeira aponta
para os propósitos, as mentes e os talentos dos homens que mais figuram nele,
a segunda para as grandes forças universais que os utilizam. Nos tremendos
acontecimentos que se desenrolaram cm todo o mundo nos últimos anos,
abundam as provas de que novas forças estão entrando na mente dos homens
e despertando-lhes a aprovação ou a oposição inconscientes. Mas atrás de
todas as questões secundárias e de todas as ramificações mais indignas, atrás
da luta colossal entre as forças relativamente boas, que os puxam para cima, e
as forças relativamente más, que os arrastam para baixo, está-se impondo a
vontade da Idéia Universal.

Nada poderia ser mais anormal do que a era das novas e rapidamente mutáveis
condições em que vivemos. Parece-nos difícil que o passado se nos imponha
com demasiado vigor quando ele é tão inadequado para os novos problemas.
Os nossos olhos são obrigados a concentrar-se mais no presente e no futuro, a
olhar mais para a frente do que para trás. Como em tudo o mais, aqui se faz
mister um duplo cálculo. As contas da História têm um deve e um haver.
Precisamos de coragem e iniciativa para separar-nos das coisas más e
desgastadas; precisamos de sabedoria e calma para conservar as coisas boas
e úteis.

As pessoas chegaram quase a fazer urna religião da sua civilização. Assinalar-


lhe as deficiências, assim como predizer-lhes as consequências se não forem
remediadas a tempo, é cometer sacrilégio e blasfemar em presença do seu
Deus. Entretanto, essa mesma civilização exibe sintomas suficientes de haver-
se aproximado dos últimos limites do materialismo, com consequências
aterradoras para si mesma. Não existe outra saída verdadeira senão uma reação
contra essa posição extrema, não existe alívio real senão voltar-se automática e
espontaneamente para a direção oposta, isto é, para a sua natureza espiritual.
A insuficiência do intelecto não iluminado na vida prática revelou-se-lhes cada
vez mais, de modo que lhes é preciso afastar-se dele e voltar-se para o intuitivo
que existe dentro deles, simplesmente porque não existe outra direção para a
qual possam voltar-se.

O caminho da evolução humana não é uma linha reta, mas uma espiral
ziguezagueante, que salta de um lado para outro, para cima e para baixo. Esse
ciclo de desenvolvimento humano alternado é histórico e pode ser encontrado
em todo o passado do homem. Dessarte, certas tendências ou movimentos,
como o materialismo, surgem como fenômenos iterativos da História. A evolução
do ser humano é assinalada por um movimento espiral, que o traz
reiteradamente de volta a condições correspondentes, embora não idênticas.
Nem todas as porções da humanidade estão no mesmo lugar nesse movimento.
O caráter espiralado do ciclo explica por que algumas nações ou raças parecem
estar subindo e outras caindo, por que algumas são fracas e indefesas quando
já foram fortes e dominadoras, por que algumas são inertes e atrasadas, ao
passo que outras são ativas e determinadas.

O mundo passou por ele e está agora na última volta do arco descendente da
fase do materialismo excessivo. A reação já principiou em nosso próprio tempo,
sob a dupla pressão dos acontecimentos externos e das diretrizes internas do
Poder Superior, ou melhor, do próprio Eu Supremo do homem, exemplificando a
vontade de Deus para esta época. Essas influências espirituais atuam sobre a
humanidade em toda parte, mas atuam mais através dos corações do que
através de organizações oficiais. Existem em países cujos poderes governantes
são abertamente materialistas e irreligiosos, tanto quanto em países em que os
poderes governantes não o são. Se a evolução humana estivesse a cargo do
homem apenas, ou apenas do acaso, é possível que isso não tivesse acontecido,
mas ela é obrigada a obedecer a leis universais.

Durante vinte anos após a primeira guerra mundial, o Carma concedeu à


civilização uma longa oportunidade para colocar a casa em ordem. Ela mostrou-
se incapaz de fazê-lo. O período vital para a humanidade, o período que pode
ser aproximadamente denominado crucial, durou cerca de doze meses antes e
dezoito meses após o término da guerra. Se o caos ocorreu, então, em alguns
setores do mundo de após-guerra, a crise prevaleceu em outros. A esperança
em muitas terras e a ruína em outras assinalaram esses anos iniciais de paz,
necessariamente cheios de sugestão confusa e movimento experimental, de
rápida mudança e descontentamento articulado — tudo em rápida sucessão.
Como uma velha árvore, a velha era estava sendo arrancada pelas raízes. Mas
todos tinham consciência de que em algum lugar os esperava uma tremenda
transformação ou um colapso tremendo. O tempo urgia. As decisões precisavam
ser tomadas à pressa. A tendência espiritual dessa geração, e
consequentemente o seu destino físico, foram em grande parte decididos no
correr desses dois anos e meio. Foi então que se modelou,
pormenorizadamente, a futura configuração do presente e do próximo destino do
mundo.
Esse segundo período do após-guerra, à sua maneira, foi tão importante quanto
o primeiro. Pois da sabedoria ou da necessidade das decisões pessoais, que
têm sido e estão sendo tomadas agora, da coragem ou da covardia espirituais
reveladas por chefes e chefiados ao mesmo tempo, dependem a felicidade ou a
desgraça de milhões de pessoas. O primeiro passo para curar as misérias
presentes é modificar o nosso pensamento pessoal e nacional, deixar de pensar
em termos de materialismo e começar a pensar em termos de espiritualidade,
abandonar o egoísmo encarniçado e lançar-se à cooperação mútua, aligeirar a
ênfase dada às necessidades físicas e aumentar a ênfase concedida às
necessidades espirituais. A humanidade chegou ao ponto decisivo de sua jovem
existência. Ela deve preparar-se para assumir a responsabilidade da maturidade.
Precisa imprimir uma direção mais nobre a toda essa tremenda atividade
dinâmica, uma significação mais profunda a toda essa impetuosa energia. A
mudança que as forças evolutivas da Natureza estão solicitando de nós é uma
mudança drástica mas, se for aceita e levada a efeito, será a nossa melhor
garantia de vitória sobre as forças destrutivas.

Uma calma percepção das limitações normais da humanidade e a sua aceitação


filosófica não conduzem, por força, a um sinistro e paralisante pessimismo. Pois
está sempre em andamento um colossal movimento evolutivo, que a Natureza
guiou e ativou, com infinita paciência, até o seu ponto presente. Podemos
compreender que a humanidade esteja em plena marcha ascensional, por mais
lentamente que se mova e por mais numerosos e tristes que sejam os seus
lapsos e retrocessos. Alguns mudam mais depressa do que outros, mas nenhum
homem continua a ser o que era há dez anos. Se se conceder a inevitabilidade
da mudança, ter-se-á de conceder também a incapacidade de voltar para trás e
de ser-se o que se foi outrora.

Simplesmente por isso lhe ser impossível, o homem não permanecerá uma
criatura estática. Cumpre-lhe ir para a frente — ou degenerar. Mas o seu
movimento para frente é duradouro, ao passo que o seu movimento para trás é
apenas temporário. Pois o que está sempre a empurrá-lo e a permitir-lhe a
evolução é uma força que sempre existe dentro em si. E essa força outra não é
senão a força do seu eu superior, da sua alma divina. Esta é a secreta energia
que o ergue para cima e lhe ativa o desenvolvimento. Se a sua evolução
dependesse tão-somente do capricho do seu eu pessoal, seria um processo
incerto e, não raro, irrealizável. Que o misterioso poder que pertence ao seu Eu
Supremo é a verdadeira força motriz da sua evolução constitui a melhor garantia
da sua consecução final.

Considere-se que as numerosas células vivas, que compõem os tecidos do


nosso corpo, evolverão um dia e se transformarão em outros tantos seres
humanos. A onda espiralada da evolução é infinita, e conduz o minusculamente
pequeno para o inimaginavelmente grande.
Nestes tempos terríveis, a busca do Eu Supremo tem um valor destacado.
Inteiramente à parte dos seus resultados pessoais, o conhecimento de que leis
mais altas ainda regem o mundo e de que as forças do mal estão condenadas à
autodestruição, salva, os que o possuem, do desespero e lhes incute esperança.

A Crise do Ego
Assinalou-se num trabalho anterior que uma mudança tremendamente
acelerada é a tônica do atual período. Por mais que nos desagrade a interrupção
do pensamento e da conduta, não podemos escapar às mudanças — tanto às
boas quanto às más — que nos estão sendo impostas. Precisamos reconhecer
um desafio nessa pressão insistente e invisível e adaptar-nos ao bem que há
nele assim como rejeitar o mal que também há nele.

Milhões de pessoas tiveram as suas vidas desarraigadas durante a guerra.


Foram cruelmente arrancadas aos seus ambientes familiares, impiedosamente
separadas, durante anos, dos seus velhos lares e afastadas das suas
comunidades, de que faziam parte integrante. Quantas perderam, ou lhes foi
furtado, quase tudo o que possuíam — a vida, a saúde, a terra, as casas, o
dinheiro, os negócios, os móveis e até a maior parte das suas melhores roupas!
Foram não só cruelmente despojadas das coisas, mas também, em muitos
casos, separadas, à força, de esposas, pais ou filhos. Revelaram as estatísticas
que, só na Inglaterra, mais da metade dos civis se mudou para novas residências
durante a guerra. As lembranças do passado outrora confortável tornaram-se
torturas de saudade, ao passo que as amenas esperanças de futuro se
converteram em desamenas antecipações. O destino mais fácil era, muitas
vezes, o dos obrigados à mudança em razão do trabalho, e não aos que
mantinham conexões com as forças armadas; muitas vezes, porém, sucedia o
contrário.

Por que haveria essa lei da mudança de dominar o mundo das formas físicas
bem como o mundo dos negócios humanos? Por que não se pode criar e manter
para sempre uma forma social permanente, uma existência individual estável?
Para podermos responder, seja-nos permitido penetrar a estrutura secreta de
cada átomo. Que é o que vemos? Uma vibração incessante. Penetremos, a
seguir, em cada mente humana. Ali veremos o perpétuo nascimento de uma
progênie de idéias. Esta é a sua verdadeira natureza. Mas esses fatos
permanecerão apenas como meias verdades se não forem associados ao fato
principal de que, por detrás do átomo, está o eterno Silêncio de Deus; por detrás
da mente está o testemunhante Silêncio do Eu Supremo.

Por mais amiúde que se tenha repetido a História no passado, ela hoje não se
repetiu. Pois a situação agora é única. É uma crise mundial, e não apenas uma
crise continental ou nacional. Interessa a toda a humanidade e não apenas a
uma porção dela. Foi a primeira vez em que surgiu uma situação assim. Esse
evento externo está de acordo com o extraordinário evento interno, que assinala
um momento decisivo na evolução espiritual do ego humano. O conflito exterior,
que afeta materialmente a humanidade, condiz com o conflito interior, que lhe
perturba o eu subconsciente. É mais necessário do que nunca, entre os tumultos
e perigos de hoje, compreender alguma coisa da Idéia divina inerente ao
universo, e cooperar inteligentemente e de bom grado com ela. Estes estudos
têm, portanto, uma importância não compreendida pela maioria das pessoas.

A Mente Universal não trabalha exatamente como um arquiteto humano, pois


não está separada dos seus materiais ou das suas atividades. Por conseguinte,
quando se usa nestes escritos a expressão “Idéia divina”, esta não deve ser
concebida como um plano arquitetônico nem como um desenho pictórico, senão
como a necessidade inerente por cujo intermédio a manifestação segue
determinado caminho e não um caminho diferente. Tudo no cosmo está
passando por vários estádios de desdobramento. E porque o cosmo se origina
da substância divina, todas as possibilidades desse desdobramento, desde a
mais baixa até a mais alta, são inerentes a ele. Não precisam ser planejadas. Já
estão ali como parte da sua natureza mais íntima.

Todo homem que lançar um olhar retrospectivo à própria vida descobrirá que
esta caminhou para a frente em certos períodos notáveis, cada um dos quais era
expressão de determinada tendência física ou mental. Toda nação que fizer o
mesmo fará idêntica descoberta acerca da sua história coletiva. E por ser a vida
interior que, afinal, se manifesta na exterior, por ser a Idéia implícita que modela
o caráter e a forma de cada época, será altamente proveitoso mostrar com
clareza à nossa consciência a Idéia especial que está nascendo, quando toda
uma época se desintegra tão obviamente diante dos nossos olhos. Precisamos
analisar e julgar a história contemporânea pela sua conexão secreta com uma
crise evolutiva especial, que o intelecto obscurece e só a intuição revela.

Não é preciso proceder a um exame muito rigoroso dos fatos para descobrir que
a evolução humana se opera em três fases sucessivas: a física, a intelectual e a
espiritual. Se a entidade humana quiser desenvolver as suas capacidades, terá
de fazê-lo através de uma individualidade centrada em si mesma, que combina
as duas primeiras. Esta é uma fase natural e necessária da sua história. A Idéia
divina da evolução humana tem um lugar para a centralidade própria da
personalidade pois, mercê desse desenvolvimento da egocentricidade, dessa
intensificação da consciência separativa, a entidade humana se diferencia de
todas as outras. É necessário ao progresso do homem que este inclua a atitude
extrovertida e a egocêntrica. Durante algum tempo ela tem uma finalidade útil
em seu desenvolvimento. As várias capacidades do corpo físico e as
potencialidades da psique mental-emocional são postas em relevo por ela.
Da vida desconhecida do passado não lembrado do homem lhe vem o legado
de poder conhecer e fazer muito mais do que pode conhecer ou fazer qualquer
animal. Os instintos egoístas e possessivos, os apegos materialistas e
extrovertidos da natureza humana não se encontram ali em virtude de uma
degeneração de sua parte, mas em razão do seu próprio desenvolvimento. São
resultados naturais da expressão das suas capacidades e faculdades latentes,
da expansão da sua consciência, a partir de fases mais primitivas, através de
uma procura de vida individualizada. São uma parte da evolução rítmica, que é
um atributo da divina Idéia Universal.

De que outro modo poderia a Natureza formar o ego do homem, se a sua vida e
a sua consciência animadoras não tivessem tido uma experiência
suficientemente ampla, se não lhes tivesse sido facultado jornadear através dos
corpos da víbora, do tigre, da vaca e do cavalo por exemplo, ganhando os
atributos e a consciência que tais corpos poderiam manifestar? Eles foram não
apenas úteis senão totalmente necessários à feitura do ego, do “eu sou”.

Quando esse centro finito de consciência terminou a preparação em outros


reinos da natureza e principiou a sua vida como ego humano, o desenvolvimento
da natureza egoísta era necessário e útil à sua meta suprema. Isto lhe
proporcionou, através do desejo, valiosos motivos de atividade e, durante as
primeiras fases e as fases intermediárias daquela vida, foi a sua força e a sua
glória. O ego precisava dilatar o seu campo de poder e de experiência e expandir
a sua esfera de aquisição no curso do seu progresso. A multiplicação dos
desejos e a luta da egocentricidade, com a consequente intensificação da
personalidade e o crescimento e a extroversão das faculdades mentais foram
fases necessárias do seu progresso.

O homem não poderia obter de outra maneira a consciência plenamente


individualizada de si mesmo, dos outros e do meio. Durante o longo curso da sua
história, foi através dessa própria extroversão egoísta que ele gradualmente
manifestou as potencialidades de que o dotou a natureza e, assim, se expressou
e desenvolveu ao mesmo tempo. Era um processo natural e essencial, que lhe
trouxe a experiência necessária e o resultante conhecimento da sua
personalidade e dos seus poderes. Era uma fase indispensável do
desenvolvimento aquela em que o seu ego crescesse em força e se expandisse
em consciência.

Impelidos pelo desejo e necessitados de experiência, os jovens egos ansiavam


por atividade. Desapontados em seus desejos ou saciados de experiência, ou
interiormente compelidos para a busca da verdade, os velhos egos ansiavam por
descanso. Quantas séries de existências terrenas, quantas ondas de sucessivas
encarnações, separam o primeiro grupo do segundo! A única razão pela qual a
grande massa da humanidade não conseguiu crescer espiritualmente mais
depressa não foi uma razão pela qual possamos incriminá-la. Ela não tivera
tempo suficiente, nem conhecera as experiências mais ricas, que chegam com
o tempo. Dúzias de novos renascimentos eram e são necessários para lograr a
consciência mais profunda e as percepções mais apuradas, que distinguem as
pessoas maduras.

Até o ponto atual do seu desenvolvimento constituía função apropriada e útil do


homem adquirir capacidades e posses, diferenciar-se através do egoísmo. Ao
fazê-lo, porém, ele foi perdendo cada vez mais o seu parentesco espiritual com
a Natureza e a sua orientação intuitiva. Esse ponto médio da sua evolução é
aquele em que o intelecto desperta e se desenvolve, e aí está por que é o mais
perigoso. Pois aqui o ego se mostra mais robustamente individualista, mais
teimosamente materialista, mais cheio de egoísmo, mais aferrado ao uso da
astúcia em benefício próprio e, portanto, mais nocivo aos outros. Muitos egos
que se encarnaram em corpos contemporâneos alcançaram esse limite extremo
da individualização, mas foram os mais relutantes em dar a meia-volta que a
evolução agora solicita. Recusam-se a juntar-se à próxima tendência, que é para
a harmonia, a paz e a cooperação com outros, para a ajuda e o serviço mútuos,
para uma concepção do mundo mais espiritual e menos sensual.

A evolução espiritual da raça humana, em parte, é uma luta para sobrepujar os


vigorosos obstáculos das suas próprias tendências egoístas, animalísticas e
extrovertidas; em parte, uma disciplina do intelecto esmagador da intuição. Não
há nada errado nessas tendências por si mesmas e quando ocupam o seu lugar.
Mas quando dominam inteiramente a consciência, dão origem ao egoísmo
extremo e ao cínico materialismo. É um resultado inevitável das fases passadas
e presentes que o excessivo apego ao lado animal e físico da vida surja dentro
dela e que o egoísmo e as más ações surjam nas relações entre os egos, que o
mal se torne tão ativo quanto o bem e até, em certos períodos, mais ativo do que
o bem. Uma criatura má é simplesmente uma criatura insuficientemente
evoluída. Esse compacto espessamento do egoísmo, esse apego extrovertido à
personalidade física é inevitável no desenvolvimento da entidade humana. Não
podem ser contidos. Mas eles, assim, naturalmente reforçam o próprio egoísmo,
e as próprias atitudes anti-sociais. Isso, finalmente, produz embates com outros
egos. Começam a pecar e, consequentemente, a sofrer. Os males que viajam
no trem desse egoísmo, como a atitude competitiva que, mais tarde, se converte
em atitude combativa, e a aquisitividade que se transmuda em agressividade,
não podem ser evitados. Levadas, porém, muito longe, essas atitudes derrotam
o próprio objetivo de toda a evolução. O verdadeiro mal só aparece no reino
humano, em que a união do intelecto humano com o desejo animal produz
criaturas capazes de maldades de que nenhum animal é capaz. Atingiu-se agora
uma fase em que isto precisa ser detido e em que a meta suprema precisa ser
relembrada — a meta de elevar a consciência do ego à consciência do Eu
Supremo. Isto não precisa ser feito em toda a sua plenitude; basta a mais simples
e elementar recordação, como a que sugere a religião popular.
O homem surgiu agora de corpo inteiro no teatro da Natureza e os necessários
instrumentos mentais para efetuar-lhe a espiritualização já foram desenvolvidos,
mas estão sendo agora mal empregados em propósitos amiúde antiespirituais.
As mais altas oportunidades ensejadas pelo nascimento físico são malbaratadas
em vaidades, mal empregadas em pecados ou descuradas em outras
preocupações. O ego é como uma criança que deseja permanecer para todo o
sempre na fase da infância. Mas a vida não permitirá que isso aconteça. Soou o
momento em que ele deverá cruzar o limiar da responsabilidade espiritual adulta.
Terá de enfrentar os sérios problemas da existência, o porquê e o para quê da
sua presença na terra.

Quando nos referimos aqui ao ego humano, é mister compreender que fazemos
referência ao seu estádio evolutivo tal e qual se encontra no maior número de
seres humanos que habitam este planeta. Isto é, a referência não visa à pequena
minoria, ora encarnada, que já ultrapassou esse estádio, mas à maioria, que se
acha, em sua maior parte, no ponto médio da evolução.

Ele só poderá continuar palmilhando a atual estrada se pretender destruir-se a


si próprio. A sua progressão neste planeta já atingiu o clímax final de
individualização. Para poder evolver, terá de acrescentar, daqui por diante, os
controles, as verificações e os equilíbrios compensatórios de outra meta. Deverá
abrir mão do excessivo egoísmo pessoal e da materialidade intelectual, que o
alçou ao plano da sua capacidade atual, mas que, desequilibrada, o cegou
também para os seus melhores interesses e o mais verdadeiro conhecimento. O
seu crescimento foi uma fase especial, essencial apenas a um determinado
período. Esse período, agora, está-se encerrando abruptamente.

Hoje, as necessidades da entidade individual são inevitavelmente diferentes. A


fim de tornar-se homem precisou desenvolver o egoísmo. A fim de ultrapassar o
homem, terá de submergir o egoísmo. Só então poderão ser seguramente
melhoradas ea luta desapiedada e a história cruel das relações humanas. A fase
seguinte do seu progresso reside na prática equilibrada da auto-ajuda e da
acomodação aos outros, na cultivação da fé espiritual e da intuição. Afastou-se
muito dos protozoários e chegou a um ponto na escala evolutiva em que se
tornou imperativa uma reviravolta considerável em outra direção. Ele terá de dar
o grande passo para a frente no sentido de uma compreensão mais elevada da
própria existência. E cada dia procrastinado estará chamando novos
sofrimentos. A má direção das suas próprias forças físicas e intelectuais chegou
perigosamente perto de ser um mal total. A espécie Homem se aproxima da mais
crítica das curvas fechadas de sua existência interior e exterior. Com o século
XX no meridiano, essa auto-adoração, essa intelectualidade materialista e esse
excessivo voltar-se para fora começa a perder o valor evolutivo.

As forças animais agressivas do ego estão fazendo um esforço desesperado


para manter o antigo domínio. O que vemos à nossa volta toda, em parte, é uma
manifestação visível das invisíveis convulsões por que ele está passando. A sua
própria resistência feroz se reflete na situação internacional. Se tanto os chefes
quanto os chefiados persistirem em ignorar a nova orientação, as suas
convulsões poderão tornar-se agônicas e as civilizações que eles construíram,
desintegrar-se com eles. Nesse estado de extrema extroversão e agressivo
egoísmo, milhões de pessoas se tornaram completamente cegas ao propósito
mais alto da vida humana. Consideram o homem apenas um animal pensante,
a luta moral entre o certo e o errado uma simples questão de oportunidade e
conveniência, o anelo de bondade mera condição patológica mórbida.
Muitíssimos outros seres humanos foram cair ainda mais longe. Pois disseram:
“mal, sê tu o meu bem”.

Por ter a humanidade no passado vivido num círculo vicioso de dominação e


consequente sofrimento do ego, esse círculo agora precisa ser rompido. O
desdobramento da individualidade através de uma série de vidas nesta terra
chegou ao ponto culminante. Conduziu, inevitavelmente, a uma situação em que
a força e a violência do “eu” devem ser refreadas, para que ele não se mortifique
constantemente, a si e aos outros, pela cegueira excessiva, pela ganância e pela
possessividade. Embora toda criatura viva possua o egoísmo na forma da
autopreservação, só o homem o levou a tais extremos socialmente perigosos,
pois só ele introduziu no seu serviço a astúcia intelectual. Esse egoísmo chegou
a um ponto em que terá de submeter-se, daqui por diante, às verificações e
controles do seu superior, ou provocará o mais grave perigo de destruição para
a humanidade.

O desregrado apelo da entidade humana à sua animalidade combativa e à sua


personalidade egoísta está sendo desafiado e atacado por forças mundiais e
convertido em causa do seu próprio sofrimento psíquico. A tremenda tensão que
lhe surgiu na consciência em virtude da sua resistência interior a essa pressão
evolutiva, que atuava não só de dentro pelas influências espirituais, mas também
de fora através dos acontecimentos históricos, foi excessiva para muita gente.
Desequilibrou-lhe a psique e provocou muita semi-insanidade. O ponto crítico foi
alcançado, o ponto mais distante do seu extravio; além desse ponto, essa gente
corre o perigo de perder quaisquer qualidades espirituais que ainda lhe restem.
Ao desenvolver e inflar o egoísmo, afastou-se ela cada vez mais da origem divina
do seu ser. Está sendo agora levada a excessos, que resultam no ateísmo
difundido, no egoísmo agressivo e na franca imoralidade, de tal sorte que surgiu
o perigo da completa auto-destruição. A agressão do ego animal e a perfeição
do intelecto inferior já foram tão longe quanto poderiam ter ido no presente ciclo;
urge que comece a sua atenuação. Se um número demasiado pequeno de
indivíduos e nenhuma nação estiverem voluntariamente dispostos a iniciar o
processo, as forças do destino cooperarão com os outros fatores para deter a
tendência atual de maneira ainda mais drástica. O choque desses eventos para
o sistema nervoso induziria estados de espírito e até concepções da vida
diferentes dos que prevaleciam anteriormente. Dessa maneira, a compulsão
evolutiva está sendo exercida sobre o ego pessoal extrovertido e inflado, para
que ele abandone a atual posição e retome o caminho do regresso.

Sabemos que, fisicamente, este é o período mais emocionante da História.


Saberemos que é, espiritualmente, o mais crítico? A humanidade foi conduzida
às encruzilhadas da sua vida encarnada. Precisa deter-se e refletir. Soou a hora,
na jornada cósmica do ego, em que lhe impende decidir se dará ou não meia
volta para encarar com a sua alma divina e, depois, principiar a obedecer-lhe.
Chegou ao termo do seu ciclo evolutivo mais severo. Não lhe será permitido
aprofundar-se ainda mais na treva. Alçar-se à luz, ele não quer. Forças atuantes
não só dentro, mas também fora dele, empenham-se numa guerra titânica para
guiá-lo, bem e mal. Ele chegou ao período climatérico da sua longa história. A
aproximação dessas encruzilhadas evolutivas, de fato, é uma das mais
poderosas influências que contribuem para a atual crise mundial. Os
acontecimentos se modelam tão constantemente que a situação precisa ser
enfrentada; exigem-se tão a miúdo decisões momentosas, que elas não podem
ser retardadas nem as suas exigências ignoradas. Ela tanto poderá responder a
esses ideais morais e a essas crenças não materialistas, que os mestres
espirituais sempre colocaram à sua frente, como essenciais à conduta e ao
pensamento retos, como poderá rejeitá-los.

Tudo isso é o resultado da tremenda torção evolutiva da consciência e da


reorientação da mente que o ego relutante está sendo instado a manifestar. O
resultado é embate e conflito dentro dele mesmo e, porque a pressão também
está sincronizada com as operações do destino cármico, embate e conflito em
sua vida externa. As guerras e as crises, as revoluções e as fomes são, ao
mesmo tempo, símbolos exteriores e consequências naturais da sua
desesperada resistência. Entre os primeiros efeitos da mudança evolutiva
interna, ao lado da nobreza, da bondade e da abnegação, todo o mal do caráter
da humanidade foi arremessado à superfície, todas as paixões mais tenebrosas
foram liberadas. O horror e a violência, a concupiscência e a cobiça, o medo e o
ódio, a inveja e o despeito foram abertamente glorificados. Mas isso é a noite
antes da aurora, a luta desesperada da fera acuada, que existe no homem.

Os nossos próprios pecados e a nossa indolência, os nossos erros e o nosso


materialismo, nos mandaram um Destruidor. Deus ainda terá de mandar-nos um
Libertador. Hitler surgiu como figura gigantesca no centro do palco do mundo,
armada de um chicote, que brandia à direita e à esquerda, entre os próprios
compatriotas como entre toda a Europa. Seria um grande erro acreditar que o
mundo foi punido apenas pelo pecado de Hitler. Não foram os resultados dos
pensamentos egoístas e dos sentimentos negativos, das paixões animalescas e
dos atos imorais de um homem só, senão os resultados acumulados de muitos
milhões de homens, que se fizeram sentir na catástrofe que esmagou mais de
um continente inteiro. A longa e insuportável agonia dos horrores e atrocidades
dos tempos de guerra, o amargor e o sofrimento, merecem aqui uma reflexão
especial. Em seu tamanho e em sua causa, em sua singularidade e em sua
técnica, a guerra foi o acontecimento proeminente da história externa das
nações. Entretanto, foi simplesmente uma parte da crise mundial geral, muito
embora fosse a parte mais vívida, mais violenta e mais dramática. As suas
sinistras pressões iniciaram o processo de forçar atitudes cooperativas e fusões
sociais dos indivíduos e das classes na maioria dos países, mas a tensão
relaxada do início da paz inverteu o processo e assistiu a novos regressos de
atitudes egoístas.

Nas ilusões do ego e na sua ignorância da verdadeira natureza do que se


exprime pelo pronome pessoal “eu”, estão a origem não só do mal que ele faz,
mas também da ignorância que revela. No seu egoísmo sem freios está o pior
conselheiro da humanidade. Enquanto o seu bem pessoal for para ele a mais
importante de todas as considerações, enquanto ele não perceber que os
interesses dos outros devem ser considerados no mesmo plano dos seus,
enquanto ele, sempre que os dois colidirem, sacrificar os segundos em favor do
primeiro, em lugar de equilibrá-los sabiamente, ocorrerão sucessos e
experiências que, através da dor e da decepção, tentarão ensiná-lo a emendar
esse erro. Se, em sua longa carreira passada, não havia mal em que ele
procurasse satisfazer aos seus interesses, expandindo o seu domínio e
fortalecendo a sua posição, a nova ordem evolutiva é colocar-se sob o domínio
do eu superior e equilibrar os próprios interesses com o interesse comum. O
apego desordenado aos seus interesses, aos seus valores e às suas opiniões,
em que ele incorreu, assinala o limite extremo de uma longa fase de
desenvolvimento.

O ego pessoal inflado está em toda parte — na Política e na religião, na arte e


nos negócios — tentando resistir às forças internas e externas, que procuram
reduzir-lhe a tirania e desfazer-lhe o egoísmo. Ele se obstina, não querendo sair
da sua posição. Essa é uma das razoes por que a Filosofia reitera que nem a
Economia nem a Política resolverão jamais, adequadamente, os problemas da
humanidade, nem sequer os seus problemas materiais, que são, no fundo,
problemas espirituais. Seja qual for a esfera de atividade humana que
contemplamos, ali encontraremos o ego pessoal defendendo-se perversamente
e chocando-se agressivamente com outros egos. Os seus desejos e posses, as
suas ambições e preconceitos são as verdadeiras metas que ele ambiciona obter
ou reter, atrás da fachada grandíloqua que ergue frequentemente. Isso tanto é
verdade em relação às esferas políticas e econômicas quanto em relação às
esferas sociais e religiosas. Daí que a Filosofia deixe a outros a tarefa de
assegurar reformas externas e se dedique a expor e eliminar a tirania do ego.
Ela ensina aos homens que o que parece o caminho mais comprido — o
aprimorarem-se — é, ao cabo de contas, o mais curto para a meta de aprimorar
o meio. Assim chega às verdadeiras causas; os reformadores limitam-se a
chegar aos efeitos. Aqueles que não se aproximam da verdade sobre a vida (isto
é, Filosofia), atraídos pelo próprio fascínio interior, aproximar-se-ão um dia por
necessidade de autodefesa nas lutas da existência. Esse dia chegou. Os que
ainda não o reconheceram — e são inumeráveis — não passam de escapistas,
que se escondem da realidade mas, provavelmente, serão arrancados aos seus
esconderijos pela mão áspera do Destino.

Quem quer que tenha olhos para ver reconhecerá que a guerra deveria ter sido
um período de tremendo despertar, a fim de compensar a sua terrível
devastação. Era inevitável que esse despertar assumisse, até agora, um cunho
político e econômico. Mas a este se seguirá um despertar religioso e intelectual.
A humanidade não deveria ter tentado voltar ao velho modo de vida materialista
anterior à guerra. Teve nas mãos a oportunidade de optar entre um caminho
novo e pior e um caminho novo e melhor. Poucos deixaram de ser presos no
remoinho dos acontecimentos contemporâneos e, portanto, de sofrer-lhes a
influência, benéfica ou maléfica. Os que passaram por terríveis transes,
sofrendo-os na própria carne ou vendo os outros sofrê-los, tiveram uma
experiência tão drástica que lhes deixou no caráter uma impressão indelével. As
experiências do último decênio deveriam tê-los conduzido a um ponto de vista
mais elevado ou mais baixo, porém diferente daquele que era o seu antes de
iniciar-se o período. A crise mundial deveria ter levado os pensamentos desses
homens a uma posição que até à geração anterior se teria afigurado tão
idealisticamente avançada ou tão degenerativamente repugnante que lhe teria
parecido inconcebível e inimaginável neste século.

Numa era de transição, em que os acontecimentos se sucedem tão rapidamente,


como a nossa, e de sucessos tão titânicos quanto os que ocorreram durante a
nossa existência, fora tolo considerar os problemas apenas à luz do que foi. As
avaliações de antes da guerra já não têm valor para os tempos do após-guerra.
Se um homem ou uma nação descobrirem que enveredaram pelo caminho
errado, a única atitude sensata que lhes resta é desandar o caminho percorrido
e voltar à estrada certa. Urge tomar uma nova direção. Isso, contudo, raro se faz
— tais são o ímpeto do passado e a pressão do hábito. Uma das escoras mais
vigorosas do ego é o hábito, a memória automática da mente e da natureza
sensível, que sustenta e preserva o passado egoísta ou o passado errado,
trazendo-o para o presente, que arma e equipa o intelecto em seu domínio sobre
a intuição ou em sua resistência contra ela. Por detrás do mal e da aflição da
guerra e da crise há este bem — o fato de nos despojarem de hábitos que nos
algemam a um modo de pensar evolutivamente obsoleto, a atitudes demasiado
pessoais e a mentiras convencionais hauridas na sociedade, na civilização ou
na tradição. A renúncia a elas faz parte do que queria dizer o Místico da Galiléia
quando nos pediu que renunciássemos a nós mesmos. Uma idéia curiosa como
essa, de que precisamos renunciar a nós mesmos a fim de nos acharmos, deve
surgir como um paradoxo irritante aos olhos da intelligentsia, e terá,
necessariamente, de assumir a forma de uma parábola desataviada para os
simples. Mas não devemos fugir ao paradoxo; trata-se, na realidade, de um
manto que recobre a espécie mais profunda e, portanto, mais valiosa de
pensamentos.

O ego humano precisa fazer o primeiro esforço tímido no sentido de renunciar à


própria soberania em favor do divino Eu Supremo, ou será arrastado, pelo
destino implacável, na mesma direção. A necessidade de uma mudança de
pensamentos e sentimentos como prefácio à mudança da trágica sina da
humanidade é uma condição absoluta. O arrependimento precisa ser ativo, é
mister que a mudança do coração transpareça na mudança de vida. Cumpre que
as emoções negativas sejam refreadas, que cessem as más ações, que se
discipline a natureza animal, e que os exercícios espirituais comecem a sujeitar
a preguiça espiritual. Impende que o caminho da humanidade principie agora a
conduzir-nos de volta à consciência — ainda que escassa — do eu mais alto. De
bom ou de mau grado, urge que ela contorne esse ponto crucial e modifique a
direção da sua vida interior. Uma mudança dessa natureza supõe
necessariamente a penitência e por ela se expressa. Consequentemente, a
suprema mensagem espiritual, hoje em dia, é um chamado à contrição. Aqueles
que responderem sinceramente a ele serão “salvos”, mas aqueles que se
recusarem a dar-lhe atenção, aqueles cujo ego se rebela contra a visão mais
elevada da vida, estar-se-ão condenando a novos e piores sofrimentos.

Certos tipos de líderes fanáticos representam uma seção facilmente


reconhecível deste último grupo. Os seus cegos adeptos são, de fato, infelizes;
não há lugar para se manter permanentemente uma posição assim na era que
está nascendo. Eles estão tentando defender um forte condenado, aproxima-se
o termo do seu tempo, seja através da auto-rendição, seja mediante uma
catástrofe externa, pois as forças evolutivas são inexoráveis.

Tal é o processo de reorientação que, ao ser atingido um ponto da História não


muito distante, se desenvolverá, cada vez mais, na psique humana, tal é a
passagem de um egoísmo materialista antiquado para uma consciência
espiritual que se inicia. À medida que se processar esse desenvolvimento
evolutivo, o ego será cada vez menos vítima dos sentidos e da animalidade e,
por conseguinte, cada vez menos materialista em sua maneira de pensar. As
novas tendências influirão não só em sua qualidade de consciência, senão
também em suas atitudes morais.

Em épocas de crise social e, mais especialmente, num tempo de imensa


transição cíclica como o nosso, quando está iminente uma reviravolta evolutiva
do ego, os homens nem sempre evoluem lentamente, passo a passo, no sentido
da alta verdade espiritual; alcançam-na, porém, súbita e dramaticamente.
Experimentam-na com toda a força de uma revelação não apregoada. Muito
embora já se tenha iniciado um período de acentuado despertar intelectual e
social, será mister um período mais longo de tempo para que se atinja o ponto
culminante do despertar espiritual. A mente ainda terá de percorrer alguma
distância para poder admitir sequer a possibilidade da mudança, e uma distância
ainda mais longa para poder discernir com presteza os primeiros sinais do seu
acontecer. Seria um erro acreditar-se que tal mudança se pudesse operar tão
abruptamente que se patenteasse em súbito aperfeiçoamento de toda a gente.
O que vai acontecer é que a inspiração para esse súbito aperfeiçoamento se
manifestará, em virtude da tremenda pressão de certas situações que serão
criadas mais tarde pela crise mundial. Entretanto, não haverá, nem poderá haver,
compulsão alguma sobre quem quer que seja para aceitar a inspiração e agir de
acordo com ela. Cumpre que o ego humano se decida a seguir espontaneamente
a orientação divina, antes que se tornem evidentes os benefícios externos dessa
maneira de agir.

O Desafio Interior da Crise


Se refletirmos, por um momento, sobre o obsoletismo atual das idéias dos físicos
do século XIX acerca da estrutura do átomo e, portanto, acerca da natureza do
universo físico, chegaremos à conclusão de que já fizemos um grande progresso
em relação à falsidade do materialismo científico do século passado. Não
obstante, conquanto haja desaparecido, em grande parte, a base científica do
materialismo, não desapareceu a sua base industrialista. Isso explica, em parte,
por que a massa geral do povo nos países “adiantados” ainda pensa e age como
se ela fosse verdadeira. A camuflagem religiosa sob a qual essa base não raro
se esconde não lhe altera a natureza real. Ela não só é antiquada, como também
exibe todos os erros que frequentemente exibe o conhecimento científico
antiquado. Se as plenas implicações do que foi desenvolvido em Psicologia, em
Psicobiologia e na Física nuclear pudessem ser cabalmente compreendidas
pelos ateístas, estes se sentiriam compelidos a abandonar a sua crença
negativa. As investigações subatômicas de um grande cientista como o falecido
Lorde Rutherford revelaram-se metafisicamente favoráveis às doutrinas não
materialistas. Mas, por não dar o devido valor ao pensamento metafísico, o
próprio Rutherford não percebeu que elas revelavam a maneira pela qual a
matéria esconde as energias de uma realidade não física ou, como nos disse,
de uma feita, um vidente oriental altamente iluminado, quando lhe falamos sobre
a pesquisa atômica, “as energias daquele ser infinito e eterno — a Mente
Universal, Deus”.

Na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos, não poucos intelectuais


influentes, que conduziam outrora o pensamento para o ceticismo, o cinismo e o
niilismo, viram-se conduzidos, por um processo subsequente do próprio
raciocínio, baseado nos dados ulteriores que ora se conhecem, a negar o
materialismo a que o mesmo raciocínio, a princípio, os levara, e a renunciar à
antiespiritualidade que foi o seu fruto original. É mais do que irônico, é trágico,
que a ciência que primeiro destruiu a crença religiosa na existência de uma
realidade além da realidade material, comece agora a fornecer as provas
necessárias à sustentação dessa crença. Por haver chegado tão tarde a ajuda,
a civilização moderna está correndo o risco de destruir uma grande porção de si
mesma, em parte graças às armas militares que a Ciência lhe pôs nas mãos e
graças, em parte, ao materialismo mental que a Ciência criou, fruto da sua antiga
ignorância. A história de muitas civilizações passadas está escrita hoje na água
e na areia; duas mãos estão sempre trabalhando na redação dessa trágica
narrativa, sendo a primeira a que todos vêem — a mão do homem; e sendo a
segunda, a que poucos vêem — mão irresistível de um poder mais elevado.

Durante um tempo demasiado longo, a maioria das pessoas cuidou que a busca
de um propósito mais alto na vida não fosse tão importante quanto a busca de
vários propósitos inferiores; talvez nem tivesse importância. Era preciso que
essas pessoas chegassem, através de um choque, à consciência de que nada
mais substitui o propósito superior. As guerras e as crises mundiais lhes
proporcionaram o choque. O repentino aparecimento da bomba atômica no
cenário mundial é um símbolo da rudeza com que nos foi lançado o desafio. Este
propõe à humanidade a opção entre a sobrevivência e a destruição. Para
sobreviver, contudo, faz-se mister que ela modifique as suas velhas idéias. O
descobrimento final era indispensável para assustar e alarmar a humanidade
como nunca se fez, para despertá-la e obrigá-la a encarar o fato de que as velhas
maneiras de lidar com certos problemas são hoje inúteis. É um lembrete da
futilidade do preguiçoso aferro a idéias marcadas com o materialismo que há-de
passar. Através da bomba atômica, o intelecto humano está ingressando no
mundo psicoelétrico que existe atrás do átomo, mas o está fazendo
prematuramente, antes de estar preparado para isso ou de ser digno de fazê-lo.
O Poder Mundial não é apenas criativo, é destrutivo também, como o revelam
as tremendas mudanças registradas em corpos celestes e no nosso planeta
Terra, mudanças que ocorreram no passado e tornarão a ocorrer no futuro.
Mexer com ele sem estar moralmente preparado e espiritualmente capacitado
para fazê-lo bem, é insensatez. O intelecto que instiga o homem torna-se tão
perigoso para ele, quando não possui nenhum conhecimento das leis espirituais
que governam a vida, quanto se lhe torna proveitoso acompanhado desse
mesmo conhecimento. O progresso físico e intelectual já foi suficientemente
longe e deveria ser detido por enquanto, até que o progresso espiritual e moral
restaurasse o perdido equilíbrio. A crise está-se avizinhando de nós. Num
determinado ponto, os resultados não somente nos embargarão o cego avanço
para o poder científico e técnico não controlado por uma atitude ética em relação
ao mencionado poder, mas também nos mostrarão que não somos tão fortes
que possamos viver sem recursos espirituais.
A nossa definição da guerra é demasiado limitada, demasiado física. Pois a
guerra visível é apenas um efeito, uma expressão do que já existe no nível
mental, sendo a verdadeira causa a guerra invisível de pensamentos e
sentimentos. Enquanto um grupo de homens se enche de ódio ou carranqueia,
furioso, para outro grupo, enquanto esses homens lançam recriminações e
denúncias histéricas, criam as condições mentais que, sustentadas por um
período suficiente de tempo, desenvolvidas com suficiente intensidade, e
retribuídas pelos adversários, poderão, um dia, refletir-se em luta aberta ou até
em guerra física. Isto poderia acontecer mercê de uma lei inevitável, ainda que
a própria guerra fosse temida e indesejável. Tais forças expressam animalidade
e têm lutado pelo poder diante dos nossos mesmos olhos e buscado controlar a
própria vida da humanidade. No entanto, esse conflito interior é apenas uma
expressão universal do que vai por dentro do homem individual. E é por isso que
não pode ser resolvido exclusivamente no plano da redistribuição política, nem
apenas no plano da guerra militar. Toda e qualquer pessoa que se recuse a
tentar resolvê-lo dentro de si mesma, o que só poderá fazer disciplinando a sua
natureza inferior e voltando-se, com fé e amor, para o seu ser superior, estará
tendo o seu quinhão de responsabilidade, ainda que diminuto, pela situação
desalentadora do mundo. Duas estradas se abrem diante de cada indivíduo na
crise de hoje, como em todas as grandes crises de sua vida. Uma o conduzirá,
cada vez mais, para junto do seu Eu Supremo, outra o apartará cada vez mais
dele. As exigências que lhe faz esta época são tremendas em confronto com as
de épocas anteriores. Não lhe é dado adaptar a época a si próprio, mas cumpre-
lhe adaptar-se à época. Um período de transição como esse não se presta à
obstinação intelectual nem emocional.

Os problemas da crise mundial não podem ser evitados e precisam ser


enfrentados de uma forma ou de outra. O problema de aprender a viver tem de
ser abordado de novo, e não mais tratado com leviandade, como em tempos
normais. Esse problema está sempre com o homem, mas só quando lhe é
apresentado com tamanha insistência e de maneira tão acabrunhante é que ele
se dá conta de que poderá vogar de soluções improvisadas à pressa e, portanto,
insuficientes, para uma nova crise depois de outra ou, então, procurar soluções
inteiramente novas. Quando a excessiva imersão nos meios da existência, isto
é, o corpo com as suas paixões e apetites, o ego com as suas emoções e
intelecto, se torna tão descomedida que o homem esquece a própria finalidade,
ou seja, a integração com o seu verdadeiro ser, as forças do destino e da
evolução começam a pressioná-lo para que ele procure libertar-se dessa
imersão (que é uma forma de materialismo). A forma assumida pela pressão, em
regra geral, é o sofrimento. A humanidade nunca poderia ter sido arrastada a tais
profundezas de aflições e padecimentos e obrigada a suportar tanta coisa que
parece insuportável numa visão retrospectiva, não fossem as grandes fraquezas
do seu caráter e as falhas do seu discernimento.
A fúria idiota de duas guerras mundiais puniu a civilização pelos seus erros. Os
efeitos dessas guerras ensinaram a algumas pessoas alguma sabedoria e
virtude, mas ensinaram também a muito mais gente muito materialismo e muito
mal. É preciso, naturalmente, que decorra algum tempo para que o significado
de uma experiência alcance, na consciência, a própria experiência. Mas ainda
que se admita uma coisa dessas, o que foi aprendido por muitos não é suficiente
ou não é correto. Se tivessem aprendido, com a ajuda dos sofrimentos, a eliminar
as causas originais desses mesmos sofrimentos; se tivessem renunciado aos
seus erros e emendado as suas concepções, a História teria seguido um curso
melhor. O vazio de uma atividade de toda a vida unicamente votada a propósitos
materialistas, e a futilidade de uma concepção da vida exclusivamente limitada
à satisfação do ego e dos sentidos, acabam sendo, afinal, a única retribuição
que se lhes depara. Hoje, mais do que nunca, existe a necessidade de se
encontrar um sentido para a vida. São essas crises alternadas que, de fora,
fazem pressão sobre eles nesse sentido. E eles são obrigados a enfrentar a
iniludível alternativa: ou viver num mundo mais razoável e mais reverente e
encontrar a verdadeira paz, ou resvalar outra vez para o velho caos anterior à
guerra e encontrar novas lutas. A necessidade urgente, a insistente exigência
feita pelas forças evolutivas é um corajoso rompimento com maus hábitos e
crenças falsas em todos os níveis — espiritual, intelectual e secular. Só isto
poderá salvá-los das desastrosas consequências da prática de novas loucuras.

Estamos numa encruzilhada moral. É chegado o grave momento da escolha. É


verdade que o mundo esteve enfermo inúmeras vezes e precisou ser curado.
Mas a sua enfermidade de hoje tornou-se crítica. E assim como a crise em que
hoje nos debatemos se prolongou supliciantemente, assim também
progressivamente se agravou. Quanto mais demorarmos para tomar o remédio
da verdade, tanto mais doentes ficaremos. Esse remédio nos compeliria a
encarar cada vez mais a nossa situação com absoluta imparcialidade. Pois as
causas da tribulação humana olham para o coração do homem e vêem o seu
egoísmo moral; olham para a mente do homem e lhe contemplam a ignorância
espiritual. Todos os gêneros de frustrações, todas as condições de malogro,
todas as espécies de decepções vieram ensinar-nos que a nossa maneira de
viver é errada.

Hoje em dia, mais do que nunca, a vida é um desafio, pelos acontecimentos por
que somos responsáveis, pelo destino que nos foi imposto, e pelo padrão da
Idéia Universal, para que nos advirtamos da nossa ignorância espiritual e
abramos mão da nossa auto-admiração. O homem que não encontrou a sua
origem espiritual e o seu destino mais alto pode ser desculpado, mas o homem
que não tentou encontrá-lo é censurável.
A Necessidade que Tem o Homem de um Poder Superior
Vemos hoje, em toda parte, que o ser humano se compreendeu mal e mal
interpretou a vontade da Mente Universal nesta era. E porque há um preço que
deve ser pago por todos os erros, vemos, em toda parte, a tribulação humana e
o sofrimento humano. A maneira de escapar a essas aflições está sendo
desesperadamente buscada, mas raro é encontrada... pois está sendo buscada
na direção errada. Só existe uma forma apropriada de escapar, e esta consiste
em corrigir a má interpretação e eliminar a má compreensão. Para isto se faz
mister uma dramática mudança de atitude moral, uma ampla renúncia da visão
materialista e uma rápida inversão da indiferença espiritual. Uma mudança na
maneira de pensar é a primeira condição para assegurar a mudança da situação
do mundo. Ao mudar-se a si mesmo, o homem dá o primeiro passo no sentido
de mudar o seu meio e, ao mudar o seu meio, dá o segundo passo no sentido
de mudar-se a si mesmo. Pois o primeiro passo para a mudança própria há-de
ser mental, e não físico. Ser-lhe-á, portanto, mais proveitoso nestes tempos
difíceis sujeitar o orgulho e ser perfeitamente franco consigo mesmo, ainda que
para isso tenha de envergar o hábito mental da penitência e cobrir-se de cinzas
emocionais. É preciso que a sua atitude mental faça meia volta. Urge que ele
atente para aquele inspirado convite, “Arrependei-vos — e sereis salvos”. Essa
tem sido a mensagem divina para todas as épocas parecidas, mas é
especialmente aplicável à época presente. O homem tem vivido uma vida
materialista, que é apenas meia vida.

O único remédio para o caos mais recente em que o mundo inteiro se precipitou
é também o mais velho de todos. Aqueles que esperam a proclamação de
receitas milagrosas esperam em vão. A verdade que está à nossa beira é tão
velha quanto o próprio gênero humano, com uma diferença: o rosto que ela exibe
é novo, e os trajos que ela ostenta são talhados à feição deste século. Há alguns
milhares de anos, a escritura sagrada da Índia, o Bhagavad Gita, já proclamava
que existe paz e prosperidade na Terra para os que aprenderem e seguirem as
leis da vida interior.

Dizer que os poderes superiores criaram uma crise do destino humano com a
finalidade de obrigar os seres humanos a enfrentar o desafio interior é proferir
uma verdade. Dizer que a História e a conduta humanas a criaram é proclamar
outra verdade. É necessário juntar essas duas metades para se obter a verdade
inteira sobre os escuros acontecimentos que saltearam a humanidade. Toda e
qualquer tentativa que fizer o homem para salvar-se, mas que seja apenas
externa e não interna também, estará fadada ao fracasso. Isto precisa ser
relembrado por todos os povos, porque todos os povos foram surpreendidos pela
situação desafiante do mundo, muito embora a sua responsabilidade particular
seja menor em certos casos, e maior em outros. Não são apenas os europeus e
os americanos que estão sendo reptados agora pelas suas criações, senão
também os hindus e os chineses, herdeiros das mais velhas civilizações do
planeta. Não somos dos que exaltam o Oriente como o único refúgio da
espiritualidade e zombam do Ocidente como o poluído refúgio do materialismo.
Cada hemisfério tem os seus próprios erros para emendar, cada qual se
desgarrou do caminho ordenado por Deus e, consequentemente, ambos estão
sendo envolvidos na crise. Todos os povos, todas as raças, chegaram a um
ponto em que a estrada palmilhada já o não pode ser, em que tanto o avançar
quanto o retroceder são impossíveis. Que farão eles, então? A resposta óbvia, a
única correta, é saírem da estrada falsa e enveredarem por uma estrada nova.

O destino supremo do mundo — distinto do seu destino imediato — é tornar-se


mais espiritualizado, e não menos. Todo homem que acreditar nisso
compreenderá que a sociedade é tão boa ou tão má quanto os indivíduos de que
ela se compõe, que não existe magia alguma capaz de fazer uma boa civilização
de maus indivíduos, uma nova ordem de ouro dos velhos caracteres de chumbo.
Acreditará, por conseguinte, na necessidade de um esplêndido caráter para
guiar um povo, muito mais que de slogans baratos. Buscará orientação entre
homens que acreditam nisso também, e não entre os que crêem no materialismo,
que tudo ensombra escuramente. Aí está por que a Filosofia inculca, para
qualquer reforma duradoura da sociedade, a necessidade da reforma humana.
Eis aí por que não existe hoje tarefa mais nobre do que difundir esse
conhecimento acerca do próprio homem, que pouquíssimos possuem e de que
muitíssimos precisam. Este é um serviço até mais prestante que o de reformar a
sociedade em que ele vive, se bem a reforma seja perfeitamente adequada e
absolutamente necessária em seu lugar. A tarefa não consiste apenas em
reafirmar que, sob a lei da compensação, recebemos de volta os resultados das
nossas boas ou más ações, nem apenas em apregoar a um mundo ignorante e
cego que o Eu Supremo existe e é o valor supremo; nem ainda apenas em
mostrar que ele é uma realidade experimentável e não uma fantasia imaginada
nem um conceito especulativo, senão também em sustentar, diante do mundo
indiferente e presumido, que a vida do Eu Supremo deve ser trazida para a
própria vida cotidiana e prática deste mundo.

Por fim, a humanidade será induzida a recorrer aos seus verdadeiros mestres
espirituais, depois que todos os outros guias a tiverem levado para a ruína
material e a destruição mútua. Nenhum outro refúgio além desse terá a
humanidade malferida. A idéia de que os ensinamentos deles não têm utilidade
para homens do mundo, versados nos fatos da vida, e cientes das transigências
que supõem os assuntos mercantis e políticos, é uma ilusão, que data da origem
dos padecimentos desnecessários e evitáveis do homem. O maior dos erros,
com efeito, é considerar esses guias como visionários destituídos de senso
prático. A visão que eles têm do que está acontecendo à sua volta nunca é
circunscrita por mesquinhas considerações pessoais. Tendo-se despojado de
visões acanhadas e mofinos preconceitos, tendo aprendido a pensar nos
assuntos humanos em termos largos e através de extensas perspectivas, que
se prolongam pelo tempo fora, tendo transcendido as limitações de um enfoque
puramente intelectual e adotado um enfoque intuitivo, encontram-se em boa
posição para compreender o curso da história passada e discernir o sentido
oculto dos sucessos presentes. Podem satisfazer à necessidade, profundamente
arraigada, da mente humana de descobrir uma significação mais digna para a
vida de hoje. Por conseguinte, a filosofia deles não é irrelevante para as
atividades objetivas e os interesses práticos dos homens. Conhecem as
verdadeiras causas das angústias da humanidade e os seus verdadeiros
remédios.

A declaração de leis eternas e a revelação de padrões universais precisam ser


refeitas. Quanto mais cedo descobrirmos a existência de leis espirituais que não
podem ser burladas, tanto melhor para nós. Nunca, até hoje, foi tão necessária
e, ao mesmo tempo, tão desdenhada a função que o sábio filósofo, o profeta
religioso e o vidente místico poderiam exercer na sociedade. Não lhes
reverenciamos a sabedoria, nem a revelação, nem o governo, pois só cultuamos
a perícia mecânica do engenheiro, a capacidade de amealhar cabedal do
comerciante, o talento do artista que nos diverte e proporciona fugas da
realidade. Os velhos mestres espirituais, com a sua aguda capacidade de
enxergar o lado interno das coisas, e a sua certeza a respeito da verdade, só
porque se tratava da experiência deles e não da sua opinião, formulavam apenas
preceitos morais contra todas as feias emoções e paixões, sobretudo o ódio.
Hoje em dia, as leis científicas do poder do pensamento precisam ser
proclamadas para explicar tais preceitos e para advertir-nos de que os estados
mentais e emocionais negativos se refletem na luta física, na guerra, nas
dificuldades, na doença

e até no infortúnio. Quando, por exemplo, o homem perde o equilíbrio com


tamanha facilidade que se deixa dominar pela cólera à menor provocação,
expõe-se a inúmeros perigos — tais como lutas, doenças, acidentes e perda de
amigos.

A guerra foi um aviso para começar de novo e um lembrete de que o Dia do Juízo
está próximo. Sem embargo, de todo o seu mal indiscutível surgiu algum bem.
Nas horas de trágica necessidade, tantas vezes trazidas pelo conflito universal,
grande número dos que tinham levado uma existência vazia, frívola ou
materialista, se sentiu levado, por instintos até então suprimidos, a procurar
ajuda externa ou amparo transumano. Hoje a humanidade está chegando a um
fim de linha, em que os seus problemas, como ela mesma o reconhece,
assumiram proporções quase insolúveis. Os seus líderes mais avisados
principiam a confessar que ela necessita de ajuda de fontes alheias a ela mesma,
que o poder humano desajudado da sabedoria e da força espirituais não é
suficiente para lidar com esses imensos problemas explosivos. E ela está vendo
como, em seu próprio tempo, uma civilização que se desenvolve rapidamente,
não iluminada por um conteúdo espiritual, terá de acabar em tragédia. As
penosas contradições, que sempre foram inerentes ao materialismo, surdiram,
flagrantes, à superfície durante o clímax sanguinolento da crise mundial. Elas
obrigaram muita gente a olhar para além dos próprios recursos, à cata de força
e direção. Para onde mais poderiam olhar, senão para a Religião, o Misticismo,
ou a Filosofia? Os acontecimentos lhes abriram um caminho no coração, por
onde pôde entrar um impulso espiritual, menos obstruído pelos obstáculos que
outrora bloqueavam a passagem. Um mundo em crise descobriu que, sem uma
orientação superior, só existe perplexidade. Estes são tempos críticos e
momentosos. Somente os valores espirituais se destacam como as únicas
coisas valiosas e duradouras. Não existe outra esperança para a humanidade
atual além desse esforço sincero e arrependido por elevar-se. Precisamos
encontrar um modo mais espiritual de olhar para a vida ou, em caso contrário,
pagar a penalidade por não podermos fazê-lo. Ninguém pode deter-se. Faz muito
tempo que o mundo vem lutando contra a verdade mas, afinal de contas, não lhe
restará outra alternativa para safar-se das suas dificuldades senão aceitá-la.

A divindade dentro de nós, o Eu Supremo, está sempre lá, até mesmo quando
descremos dela, e a sua presença é a razão por que, mais cedo ou mais tarde,
terá de haver uma reação na vida humana no sentido dos valores espirituais.
Somente ao compreender vividamente a nossa insuficiência humana e a nossa
humana impropriedade, tendemos a voltar-nos para eles em busca de ajuda,
amparo e força. Quando sentimos profundamente a imperfeição dos nossos
conhecimentos, a incerteza e as limitações da nossa felicidade, a fraqueza e a
perversidade do nosso caráter, podemos sentir-nos suficientemente humilhados
para voltar o rosto contrito e implorativo em busca do nosso eu superior, a rogar-
lhe lenitivo. É assim que somos realmente capazes de progredir. A necessidade
de progredir de um gênero inferior de vida para um gênero superior nunca foi tão
urgente quanto hoje. Precisamos aprender a lição do filho pródigo, guardá-la
bem no fundo da nossa mente e vir rezar, como pecadores penitentes, diante do
poder superior.

Quando o homem contemporâneo lança os olhos para a cena contemporânea,


sente-se agoniado pela sua violência. Quando olha para o interior de si mesmo,
à procura de conforto para a sua alma, sente-se perplexo diante do seu silêncio.
Àquele que objeta e afirma: “Nada sabemos acerca de um Poder Superior e
perdemos a capacidade de crer na sua existência”, a resposta é que existe um
meio pelo qual ele poderá descobrir, pela própria experiência interior, a verdade
sobre a existência do Poder Superior. Mas terá de seguir esse meio e empregar-
lhe os métodos. “Batei e abrir-se-vos-á” não significa que um ato só é bastante.
Supõe, ao contrário, uma série de atos. Nem significa que o bater em porta
errada ou de maneira errada produz o abrir-se que se deseja. Esta simples
sentença de Jesus, fruto evidente da sua profunda percepção das leis universais,
encerra todo um curso de instruções.
A fé que reconhece, humilde, a existência de um poder superior é um verdadeiro
instinto plantado no coração da humanidade. É sustentada pelo uso
apropositado da Razão, muito embora possa ser sufocada pelo uso
desequilibrado do intelecto. Que ninguém se envergonhe de ajoelhar-se para
rezar, nem se enfade por sentar-se a meditar. Porque um homem professa uma
fé semelhante ou pratica a comunhão com a própria alma, disso não se segue
que, assim fazendo, ele revele pouca inteligência. Por que haveria o homem
moderno de deixar às mulheres a fé religiosa e a prática mística? Não houve,
porventura, no passado, uma inumerável galáxia de astros históricos que extraiu
dessas fontes mais profundas a força para realizar grandes feitos? Retamente
compreendidas, a fé e a prática não debilitam o homem nem lhe narcotizam a
mente; são apenas a religião supersticiosa e o falso misticismo que fazem isso.
Aquelas, antes exaltam a mente e acalmam o coração. A reverente adoração de
um poder superior, ou a íntima comunhão com ele, é indispensável à vida
humana mais plena.

Um grande e sagrado mistério jaz encerrado no ruidoso fracasso e na crise


aflitiva do mundo. Quando a humanidade se vê com as costas voltadas para um
muro intransponível, quando cuida haver chegado ao limite máximo dos
desastres, quando a esmaga a agonia do desamparo total, ela está próxima,
muito próxima, da Porta. Se, nesses momentos, ela reorientar os seus
pensamentos no mais sincero abandono de si mesma ao Divino e na mais
completa humildade do ego; se ela, outrossim, aceitar calmamente o
menosprezo de todas as coisas terrenas que a sincera reflexão sobre a sua
situação deverá propiciar-lhe — terá chegado ao clímax do seu sofrimento
exterior e da sua íntima derrota. Se, fazendo as suas preces com paciência,
arrependimento, desejo de reforma e aceitação do propósito mais alto da vida,
estender os braços no escuro e suplicar a volta da Paz, não suplicará em vão. O
Eu Supremo entrará em ação e tomará posse da mente consciente, ao menos
por alguns momentos memoráveis. O alívio surgirá misteriosamente e mãos
salvadoras se estenderão para ela. Sobrevirá a coragem e ser-lhe-á dada a força
para suportar o imutável, prometendo assim um coração tranquilo no meio de
uma vida tormentosa.
6
O Homem na Tribulação
e na Felicidade

Existem, pelo menos, seis coisas cujo rápido atingimento e cuja ininterrupta
continuação todos desejamos inconscientemente, mas que nenhum de nós
encontra jamais em sua plenitude. Desejamos: a felicidade sem mescla de pesar,
a vida não quebrada pela morte, a saúde não entristecida pela doença, a
liberdade não estorvada por restrições, o conhecimento não atribulado por
perguntas e a harmonia com todas as outras pessoas.

O trágico enigma que a vida nos depara e que precisa ser resolvido, para que
possamos, um dia, conhecer a paz, é que a natureza instintiva do homem o
instiga a procurar a felicidade, mas a sua vida interior mostra sofrimento e
pecado, a sua mente pensante mostra conflito e dúvida, o meio que o cerca finge,
às vezes, dar-lhe felicidade, mas não a dá nunca. Dá-lhe, em lugar dela, prazeres
ocasionais, mas logo lhe traz mágoas e dor, que lhes vão na alheta ou surgem
como o seu fundo de quadro. Como poderá alguém ser hoje feliz, perguntar-se-
á, se é assim a maior parte da sua existência? Qual é, pois, a sua mais alta
felicidade, e onde poderá encontrá-la?

De mais a mais, torturada pelos terríveis sucessos que presenciou a nossa


geração, ferida pela guerra e acabrunhada pela crise, a inteligência exige que
eles sejam, pelo menos, compensados por um propósito superior. E exige uma
resposta à pergunta seguinte: “Qual é a função do sofrimento na vida humana?”
Todas essas perguntas já não se destinam, tão-somente, aos que se interessam
pela Religião e pela Teologia. Destinam-se a todo o gênero humano, cuja
existência e cujo futuro se tornaram tão incertos e arriscados.

Tudo o que nos acontece pode ser considerado de duas maneiras diferentes.
Não existe nenhum acontecimento doloroso na vida de um homem, nenhum
contacto tão penoso com outra pessoa, que não possam ser considerados de
dois pontos de vista e que, então, não tenham alterados o seu caráter e a sua
importância de acordo com o prisma por que foram encarados. Cada resultado
pode ser correto mas, por si mesmo, não pode ser completo. De um lado, há o
enfoque prático, pessoal, óbvio e imediato. De outro, o enfoque metafísico,
impessoal, profundo e supremo.

Pondo de parte quanto se diz, o fato é que pouquíssimas pessoas estão


realmente em condições de contemplar a sua vida e a sua fortuna com o
autêntico alheamento exigido pelo enfoque metafísico. Pois a nossa visão
natural e humana delas se baseia em nossas reações finitas, em nossos sentidos
limitados, em nossas percepções de curto alcance. No meio da angústia pessoal
é fácil perder a perspectiva. Três exemplos o mostrarão com suficiente clareza.
Em primeiro lugar, raríssimas vezes nos detemos para pesar as nossas aflições
e confrontá-las com as de outros homens. Em segundo lugar, quando nos
sentimos inclinados a murmurar contra o áspero destino, raríssimas vezes
contrapomos as nossas dificuldades às nossas vantagens ou as nossas
deficiências físicas às nossas possessões espirituais. Em terceiro lugar, quando
a nossa situação pessoal se nos revela vantajosa, muitas vezes nos
contentamos com as coisas como elas são mas, quando isso não acontece,
sentimo-nos descontentes com o mundo como ele é. A insuficiência da nossa
atitude comum em relação às experiências e aos acontecimentos, é que as
nossas perspectivas são demasiado curtas; separamo-las da sua relação com o
problema mais amplo do próprio universo. Não conseguimos ver as tribulações
presentes de um ponto de vista metafísico de longo alcance. As verdades
enunciadas pela Filosofia, por mais compreensivamente que se enunciem,
podem parecer frias e tristes — na ocasião — a quem está sentindo
profundamente uma angústia pessoal ou está transtornado pela perda de um
ente querido. Talvez não ofereçam consolo ao homem que sofre. Entretanto, não
podem ser negadas pela sabedoria da mente até mesmo quando a limitação do
coração se recusa a recebê-las. Tudo depende da posição em que nos
colocamos. Se a vida é um fardo constante para alguns, é uma luminosa
inspiração para outros. Não tem nada de curioso o fato de que a mesma
dificuldade que enerva um homem robustece outro; que a mesma decepção que
torna mais egoísta aquele torna este mais compreensivo; que a mesma
dificuldade que embota uma inteligência desperta outra; que o mesmo ambiente
que degrada uma pessoa estimula outra pessoa a sobrepujá-lo e, assim, a
evoluir. Um revés ou um desapontamento que fazem de um homem uma criatura
dura e amarga para com os seus semelhantes, fazem de outro uma criatura mais
branda e mais suave. A mesma experiência, que multiplica os erros dos néscios,
corrige os dos prudentes. “Tolo é aquele que esquece a lição da Crise assim que
ela passa”, escreveu Ratnasekharasuri, sábio e velho mestre hindu da fé jaina,
há quinhentos anos. A dura realidade e a áspera verdade dessas palavras ainda
nos são necessárias hoje.

Nós nos ressentimos, naturalmente, do caráter penoso de certas experiências e


pomos em dúvida a sabedoria que no-las acarretou, ainda que possamos
reconhecer, em momentos mais calmos, que elas realmente concorreram para
afeiçoar-nos o caráter ou para aguçar-nos a inteligência. Uma atitude filosófica
justa, contudo, exige que ponhamos em confronto esses ressentimentos com a
prazenteira apreciação com que saudamos as experiências agradáveis. No meio
de um torvo e cruel tormento não podemos enxergar-lhes a utilidade nem a
justiça mas, na calma perspectiva do tempo, que chega muito longe, podemos
vê-las como parte da divina direção que nos conduz à meta verdadeira. Se
determinada espécie de experiência desagradável é necessária ao
desenvolvimento do nosso caráter, e se a vida finalmente no-la dá, ela não deve
ser enfrentada apenas com ressentimento e depressão, se for indispensável que
nos entreguemos a tais luxos negativos supérfluos, senão com análises
construtivas e com a vontade de torná-la proveitosa de alguma forma. Se a
prosperidade criou em nós um orgulho arrogante, que acabará por acarretar-nos,
afinal, a queda, a pobreza talvez crie a humildade que talvez possa salvar-nos.
A perda da fortuna, a perda da saúde ou a perda de amigos são extremamente
desagradáveis, mas são, às vezes, mestres competentes disfarçados. Sempre
que isto for assim, será um erro chamar-lhes os males da vida; pois são, mais
corretamente, as adversidades da vida.

Quando pudermos olhar, imparcial e indiferentemente, para a nossa própria


pessoa, os dissabores e os fardos que viajam com ela assumirão uma aparência
diferente. Com os nossos pontos de vista limitados, desejamos que existam
apenas o que denominamos situações agradáveis, mas a Inteligência Infinita,
com o seu infinito ponto de vista, é mais sábia. Uma felicidade pessoal contínua
nem sempre é a melhor vida, mesmo no caso de ser alcançável, o que não é.
Por menos populares que sejam estas concepções e por mais intragáveis que
se mostrem ao paladar, a menos que o nosso pensamento seja governado mais
pelos desejos pessoais do que pelo fato observado, não teremos, afinal, outra
alternativa senão aceitar as conclusões oferecidas pelo ponto de vista superior,
ainda que as aceitemos com relutância e tristeza.

Muitos sofredores não vêem em sua perda ou em sua dificuldade a lição


depurante que podem aprender; entendem, pelo contrário, que isso lhes
prejudica absurdamente a vida material e moral. Existe, com muita frequência,
uma aparente justificação para a atitude deles, mas é apenas uma justificação
superficial. Sob a precisa operação da lei cósmica, a vida não lhes teria
proporcionado nada disso se eles, na verdade, não o tivessem merecido ou se
isso não lhes fosse necessário. Para compreender o que nos está sucedendo
individualmente e o que está acontecendo coletivamente à humanidade,
precisamos recorrer não só aos conceitos comuns, sociais, políticos,
econômicos, e outros, de que se utiliza o historiador, mas também a dois
conceitos especiais, empregados por uma verdadeira filosofia. São eles: a
fatualidade da lei da recompensa (carma) e a suprema irresistibilidade da
evolução espiritual (o caminho prescrito para o homem pela Mente Universal).
Foram explicados em livros anteriores, mas o seu significado se esclarecerá
gradativamente, através do emprego e da aplicação que aqui faremos deles.

Tanto os homens quanto as nações são disciplinados pelas tristes


consequências dos seus próprios atos, ou pelas necessidades do seu
crescimento interior. O destino que predetermina tantas das nossas aflições nós
o merecemos, em parte durante a vida presente, em parte durante as vidas
anteriores, ou então, totalmente durante a primeira ou as últimas. Não somos
punidos por um Deus que se mantém distante das nossas lutas e alheio aos
nossos padecimentos. Somos punidos pelos nossos próprios pecados,
deficiências, erros de julgamento, incapacidades ou desequilíbrios. O que
fizemos na vida de outros será feito, afinal, em nossa própria vida, quando o
castigo natural da lei produzir o seu efeito. Começaremos a eliminar as nossas
aflições assim que começarmos a eliminar a nossa ignorância das leis e da sua
influência sobre a vida — antes, não.

O sofrimento parece inútil quando força a concentração única e exclusivamente


sobre a própria dor, quando desperta o ressentimento e cria o desespero. Como,
então, poderá favorecer-nos o progresso espiritual? Esta crítica não passa de
uma visão superficial. Através do sofrimento estamos sempre logrando alguma
coisa de valor instrutivo ou redentor. As leis divinas não cessam de impelir tudo
e todos para a frente e para cima. Caminhamos pouco a pouco, apesar das
nossas vidas. Mas caminhamos através da dor e do sofrimento gerados pela
cegueira, pela incapacidade e pelo egoísmo. Os erros que cometemos
acarretam resultados que, por seu turno, acarretam dúvidas acerca de nós
mesmos, acerca dos outros, acerca das nossas crenças e atitudes. Dessa
maneira, a vida tende a corrigir a nossa concepção do mundo, pois os nossos
atos se baseiam, inconscientemente, nessa concepção.

Quantas vezes uma dificuldade aparente dissimulou uma boa fortuna próxima?
Quantas vezes a frustração e a decepção externas provocaram a consolação e
o desenvolvimento internos? Quantas vezes uma prova crucial de caráter se
ocultou sob o disfarce de uma boa ou má fortuna e uma excelente oportunidade
se escondeu num assunto aparentemente trivial ou pouco promissor?
Acontecimentos trágicos e terríveis, que se afiguram totalmente maus na ocasião
em que ocorrem, parecem, mais tarde, benefícios disfarçados. Quando o
sofrimento, como o bisturi do cirurgião, é aplicado a uma parte podre do caráter,
a operação poderá ser tão duradouramente benéfica quanto poderá ser
temporariamente penosa. A experiência da perda exterior propicia ao homem o
ganho interior. É um acontecimento desagradável, mas é também um estímulo
instigador de reflexões. Se o sofrimento que se segue à má ação desacorçoa
dramaticamente qualquer tendência a essa má ação e pitorescamente lhe coíbe
a repetição, precisamos deixar de olhar para o prazer como o único bem e para
a dor como o único mal. A força cósmica, que ilude as mentes não desenvolvidas
e fá-las enxergar, nas informações que os sentidos lhes fornecem sobre as
coisas, a verdadeira natureza dessas coisas, reflete-se na força mais bruta que
ilude a mente desenvolvida, fazendo-a tomar por boas as más situações e por
más as boas situações. Somos espiritualmente míopes. Nem sempre sabemos
o que é bom para nós, nem sempre vemos a mão amiga nas decepções que nos
desviam de um erro néscio e pernicioso ou de uma atitude inconveniente.
Nenhum dicionário nos ensinou, até agora, o verdadeiro significado da dor, do
prazer, da felicidade e da tristeza. Não existe situação tão má que o filósofo nela
não encontre algum bem, nem situação tão boa que ele não lhe descubra algum
mal. Acontece apenas que o que ele talvez queira dizer com esses termos se
baseie numa concepção de longo alcance, demasiado longo, de fato, para ser
apreciado pela massa das pessoas convencionais.

É verdade que a vida, às vezes, depara até a pessoas boas tribulações e


decepções. Para essas pessoas, ver um amigo querido ou um parente chegado
praticarem desatinos que redundarão, para eles, em pesar e desapontamento, e
sentir que não há nada que possam fazer para evitá-lo, é uma experiência
particularmente triste. Mas também é verdade que isso lhes traz, contanto que
se resignem a aceitá-lo, a compensação de juízos mais seguros e a consolação
de valores mais altos. Ou quiçá algumas horríveis experiências as fizeram
compreender o fato de que a sua atitude era inadequada para explicar e
enfrentar todas as circunstâncias. Nesse caso, o sofrer e o sofrer cegamente até
que brade a razão rebelada e a emoção interrogue, num desespero, não é
destituído de significado evolutivo, pois obriga à revisão necessária dessa
atitude, ao necessário desenvolvimento de novas capacidades, ou a um
indispensável aprofundar-se da compreensão.

Entretanto, nem todos os sofrimentos são merecidos; nem todos se abatem


sobre nós como castigo ou retribuição. Alguns nos são impostos em decorrência
da lei evolutiva, graças à vontade e à sabedoria infinitas do Eu Supremo, para
ajudar-nos, como pessoas isoladas ou como nações inteiras, a desenvolver um
caráter melhor, a fazer que evolvam novas qualidades, a fomentar a inteligência.

É muito frequente que não vejamos os benefícios dos nossos sofrimentos senão
depois de muito tempo. Às vezes, num estado de espírito purificado,
conseguimos preencher as lacunas de um padrão tecido entre um ato passado
e uma circunstância presente. Às vezes, porém, não o conseguimos. Nesse
caso, é possível que possamos fazê-lo muitos anos depois, quando uma porção
maior do padrão de toda a nossa vida já se desenrolou. Ai de nós! a educação
que recebemos através de nossos erros e de nossos malogros nos parecem, às
vezes, chegar tão tarde que já não pode ser aproveitada nesta existência,
quando só ao chegarmos à meia-idade ou à velhice somos capazes de
compreender as suas lições. A realidade, contudo, é que as levaremos conosco
para o nascimento seguinte. Serão aqueles que repetem velhos erros e voltam
a cometer velhos pecados insusceptíveis de cura pelas dolorosas lições da vida?
Na verdade, não é isso o que acontece. É uma infelicidade que eles geralmente
não saibam, na ocasião, que estão incorrendo nesses erros de julgamento,
desvelando essas falhas de caráter, ou cometendo esses pecados. Com efeito,
só depois de alguns anos, muitas vezes, é que fazem o espantoso
descobrimento. É igualmente uma infelicidade que outros aprendam as suas
lições a um preço muito alto e aprendam amiúde as lições erradas nas fases
mais precoces e limitadas da sua experiência.

O grau em que aprendem com o sofrimento pode ser muito reduzido. Donde se
colhe que o tempo, uma grande porção de tempo, é imprescindível. Isto é, eles
precisam voltar reiteradas vezes à terra. Esse resultado educativo não pode ser
conseguido com uma experiência apenas. Trata-se, necessariamente, de um
resultado cumulativo, logrado através de experiências inumeráveis, que se
estendem por muitas vidas. O que os homens ganham em crescimento espiritual
em circunstâncias comuns e numa vida só é, frequentemente, tão infinitesimal
que propendemos a crer que aquela encarnação foi desperdiçada, se olharmos
apenas para ela. Se olharmos, porém, para a longa fieira de encarnações,
veremos com clareza que aquela, na realidade, deve ter contribuído para o
ganho apreciável que se lhe observa. Talvez não vejamos o que a natureza
provocou neles pelos processos da experiência por que os fez passar quando
esta é tão diminuta mas, não obstante, ainda está lá.

Todo ego passa por inúmeros nascimentos, nos quais aprende, gradualmente,
mas inevitavelmente, a arte de viver. Essas experiências destinam-se a libertar
a virtude latente, a desvelar a sabedoria latente, a desenvolver o poder latente,
e a ampliar a consciência, tanto intuitiva quanto intelectual. Mas não fazem tudo
isso de uma vez só. Daí que o ego se sinta confuso e perplexo diante da sua
aparente falta de propósito, da sua suposta crueldade. Entretanto, acabarão por
fazê-lo, sem dúvida. O tempo possui um valor misterioso e transmuda os pesares
mais profundos em amena sabedoria. Por detrás de efêmeras experiências se
ocultam lições eternas. No instante da iluminação, quando se percebe, afinal, a
necessidade do sofrimento, da frustração ou da adversidade, a mente sujeita a
sua amargura e mitiga a sua dor. Percebe, então, que a Idéia divina aqui está
para ampará-la, e não para assustá-la.

Para o homem que forceja por tornar-se espiritualmente consciente, as


tribulações proporcionam estímulo ou oposição. O generoso esquecimento de
um velho ressentimento alça-o a um plano mais elevado. Se ele conseguir
disciplinar suficientemente os sentimentos emocionais, para manter o ego
afastado por um momento, e voltar os olhos para os seus tormentos e desgostos
mais profundos, para as suas dificuldades e derrotas, compreenderá que eles e
elas têm um significado e um propósito. Dessa visão serena e desprendida,
inferirá a existência de um sentido, de uma ordem e de uma inteligência em todo
o mundo. Compreenderá, então, que a sua desalentadora experiência não foi
em vão, e que as raízes dessas experiências se encontravam, em grande parte,
nas necessidades do seu desenvolvimento ou nos defeitos do seu caráter. Essas
situações angustiosas se encontram no caminho de todo homem, tanto do que
está prestes a atingir a sua meta, quanto do que ignora a própria idéia dessa
meta. Precisam ser encaradas impessoalmente, estudadas e compreendidas,
para que possam ser superadas por intermédio da sabedoria, em lugar de se
repetirem através da ignorância. São mestres, embora sejam mestres caros.
Usadas com acerto, são maneiras de aprender lições desagradáveis, porém
necessárias, e de aprimorar valores baixos ou inferiores. Ensinam um
determinado aspecto da verdade e, dessa maneira, estimulam o progresso.

A humanidade nada a jusante de uma corrente formada pelas suas próprias


lágrimas. O verdadeiro propósito das trocas da experiência, com mudanças da
fortuna passando de sucessos prazerosos para desgraçados acontecimentos,
são as idéias que sugerem, as atitudes que provocam, as características que
dela extraem e as reavaliações para as quais a dirigem.

Precisamos aprender a disciplinar os sentidos, reeducar o caráter e desenvolver


a inteligência. Se a reflexão ainda não nos induziu a fazê-lo, a dolorosa
experiência nos constrangerá inevitavelmente a refletir na sua necessidade.
Afinal de contas, se uma experiência dessa natureza nos faz perceber
claramente e nos obriga a notar conscienciosamente que carecemos de certas
qualidades essenciais, e nos coloca no caminho da reabilitação, está
contribuindo para o nosso progresso. Como, então, poderá ser má? Não será
melhor passar por ela como se tivéssemos de passar por uma escola de
treinamento, ainda que isso envolva uma purgação das nossas deficiências e
dos nossos erros? Ela é necessária enquanto certas lições continuam não
aprendidas, e enquanto ela ensina onde o argumento falha. Se nos faz ver as
consequências de uma escolha mal feita, justifica o direito a um lugar para si no
plano universal das coisas.

Soou a hora de nos associarmos conscientemente às duas leis da compensação


e da evolução. Podemos basear a nossa maneira geral de viver no interesse
egoísta, nos surtos da emoção, na astúcia calculista ou no ocioso vogar ao sabor
das circunstâncias. Em consequência disso, poderemos encontrar benefícios
momentâneos, mas não os encontraremos permanentes. Ou podemos baseá-la
na Filosofia. Se o fizermos, deixaremos de parte o velho jogo do ensaio, do erro
e do sofrimento e começaremos a viver pelo entendimento. Nesse caso, não
será o inesperado, senão o esperado, que nos acontecerá. Se um homem puder
olhar impessoalmente para a própria existência presente e analiticamente para
a própria história passada, principiará a nascer-lhe a compreensão e, mais tarde,
da compreensão, o domínio. Aquele para o qual a busca da excelência moral e
da sabedoria prática é algo mais que uma frase encontrará, tanto nas boas
quanto nas más fortunas da existência, auxílios para a consecução dos seus
propósitos. Verá os erros que cometeu, as causas psicológicas que o levaram a
cometê-los e as consequências externas que eles acarretaram; e, vendo-o,
sofrerá. Se esse sofrimento insculpir em sua mente uma atitude nova e mais
alevantada, não será considerado como algo que deve ser evitado, senão como
algo que deve ser aceito. Se, ao percebê-lo, o homem cooperar consciente e
deliberadamente com o processo de gestação, triunfará sobre ele. Do sofrimento
assim encarado com propriedade sacará o homem um poder intensificado para
controlar o seu eu inferior e uma realçada capacidade para compreendê-lo. E
toda experiência nova passará a ser como que o azeite para a chama do seu
crescente entendimento.

Mas ele só chega a esse resultado porque modifica a sua atitude, adotando a de
um sôfrego aprendiz e trocando a egoísta interpretação da vida por uma
interpretação impessoal. Para outros, o sofrimento poderá trazer uma
consciência entorpecida mas, para um homem assim, trará um ciclo de novo
crescimento. Sempre que uma grande angústia lhe envolver a vida pela primeira
ou pela quarta vez, seja ela provocada pela não anunciada reviravolta da fortuna
ou pela ansiedade não prevista de acontecimentos surpreendentes, seja
produzida pela malfeitoria de um ser humano ou pela trágica notícia de uma carta
escrita, seja uma dolorosa moléstia ou um fracasso tremendo, ele,
instintivamente, fará a si mesmo perguntas como estas: “Por que foi que isso me
aconteceu?” ou “Por que entrou em minha vida essa pessoa?” e, a seguir,
refletirá imparcialmente, com frieza e com vagar, até poder descobrir-lhe a
significação física ou interior. Pois a vida não teria acrescentado essa angústia
à sua experiência se ela não lhe fosse devida, o que quer dizer, se ele não a
tivesse merecido ou não tivesse precisão dela. Uma análise filosófica desse jaez
lhe mostrará amiúde que algumas causas existentes dentro dele são
responsáveis por muitos acontecimentos externos. Despertado pelo sofrimento
para a necessidade de eliminar defeitos ou cultivar qualidades imprescindíveis
e, portanto, de aprimorar-se, o homem transmuda o sofrimento em benefício.
Compreende, então, que todo defeito de caráter ou falha de julgamento acabam
redundando num deficit de felicidade. O problema de fazer escolhas certas ou
tomar decisões sábias não é fácil.

O homem pode ajudar a mudar o curso do próprio destino alterando a forma do


seu caráter, da sua inteligência e do seu talento, ou modificando a forma, a
energia, a saúde e o estado do seu corpo. Se se aceitar, inerte, tal e qual é, terá
de aceitar também que se cumpra o seu destino. Quando a lei da recompensa
lhe planeja o fadário com duras condições de vida ou infortúnios não desejados,
o homem se desagrada dessa dureza. Se, todavia, enquanto tenta melhorar as
condições ou afastar os infortúnios, o homem aceita de bom grado a lei como
justa, revela sabedoria e encurta o período de sofrimento.

Quando um sofredor chega à conclusão de que não lhe é possível corrigir um


mau ambiente, nem desfazer o enredo de um mau carma, cumpre-lhe corrigir a
maneira pela qual os encara. Quando não pode ajustar de pronto as
circunstâncias exteriores, pode e deve ajustar o eu interior. Quando não lhe é
dado desembaraçar-se de um ambiente desarmonioso pelo emprego integral de
intensos esforços e de inspirada imaginação, precisa aprender a contemplá-lo
com outros olhos. É o uso que ele faz dos seus sofrimentos que lhes determina
o valor. Ao reconhecer que as suas faltas o castigam e que as suas fraquezas o
atraiçoam, ao assumir uma atitude sábia e impessoal em relação às suas
dificuldades — sejam quais forem os seus sentimentos pessoais — pode
transformá-las em vantagens. Se deixar, contudo, que esses sentimentos o
arrastem, envolto em amargura, ódio, ressentimento, maldade, medo ou
egoísmo, elas permanecerão como desvantagens. Não é apenas o
procedimento não escrupuloso e o mal causado aos outros que acarretam a
retribuição final. Pensamentos amargos e sentimentos rancorosos, idéias
negativas e emoções desequilibradas influirão não só na qualidade do caráter
de um homem, mas também, se forem suficientemente vigorosos e prolongados,
influirão na qualidade da sua fortuna. Ele poderá ver-se assoberbado de males
que, de outro modo, não o salteariam. Ainda que se criassem e alimentassem,
certas inimizades não o tocariam ou, se o tocassem, lhe morreriam aos pés. Se
a experiência da vida fez dele um homem acrimonioso, pode ter a certeza de
que a sua maneira de encarar a vida tem alguma relação com esse infausto
resultado.

Quando as negativas da mente alcançam certo grau de força, certa profundeza


de intensidade, ou quando a sua repetição se estende por um período suficiente
de tempo, é possível que a elas se acabe seguindo uma manifestação física. Os
atos do homem são, em grande parte, predeterminados e a sua fortuna, em
grande parte, predestinada por um poder ou criatura que outros não são senão
ele mesmo. Ele pode encarar o infortúnio como derrota final e resvalar pela
vertente do desespero. Ou pode tomá-lo como um primeiro desafio e alçar-se ao
ápice da determinação. No fim, é o que ele pensa sobre isso que importa. A sua
atitude para com tais acontecimentos não é menos importante do que os próprios
acontecimentos. O pensamento criativo vem primeiro; os resultados visíveis vêm
depois. Quanto melhor a qualidade do primeiro, tanto maior será a satisfação
com os últimos. Isto não é mero sonho, mas sólida realidade. A experiência
propõe o pensamento e a História lhe afirma a verdade. Mussolini guardou um
revólver carregado numa gaveta da sua escrivaninha durante vários anos, pronto
para dar cabo da própria vida a qualquer momento, se os acontecimentos lhe
corressem muito mal. Até que ponto essa prolongada concentração sobre a idéia
da morte com um tiro contra si mesmo teve alguma relação com o fato de vir ele,
afinal, a morrer dessa maneira?

Não existe homem algum que não consiga melhorar, até certo ponto, o seu
caráter e as suas condições e, frequentemente, a própria saúde. Existem sempre
forças criativas latentes dentro dele, capazes de elevá-lo, esperando ser
aproveitadas e empregadas no seu progresso e a seu serviço. O jovem Disraeli,
já aos quinze anos de idade, gostava de utilizar a sua imaginação criativa e
figurar-se Primeiro Ministro da Inglaterra, posição que ele, ao depois, atingiu.
Quando um homem — e até um povo inteiro — se vê presa de terrível aflição, a
debater-se em conjunturas desesperadas, tendo feito tudo o que se poderia fazer
sem atinar com o modo de contornar a situação, talvez valha a pena pensar num
método de buscar alívio, universalmente usado entre os antigos, mortos há muito
tempo, e ainda empregado, até certo ponto, pelos orientais. Volte-se ele para o
ascetismo por algum tempo, “cubra-se de sacos e de cinzas”, para usarmos a
pitoresca expressão bíblica, e por esse enfraquecimento do orgulho espiritual do
ego e pela humilhação da sua auto-suficiência, conseguirá pela oração, invocar
a ajuda de forças superiores. Uma expressão assim do seu próprio desamparo
se tornará mais eficiente acompanhada de orações penitentes, de jejum e de
controle da paixão, ou através de uma dieta restrita e outras disciplinas. Este
procedimento filosófico é heróico e poucos, talvez, serão capazes de segui-lo,
mas os resultados são quase sempre bons e, às vezes, até milagrosos.

Com todos os seus erros e todos os seus pecados, a humanidade pode tirar
proveito dos seus sofrimentos, do seu sangue e das suas lágrimas, e estender a
mão para aprender a grande verdade, segundo a qual um processo divino de
compensação e justiça governa realmente o mundo. A incapacidade de
compreender essa lei cósmica e o descaso por obedecer a ela são responsáveis
por um número maior dos seus infortúnios do que qualquer outra causa isolada.
O fato terrível é haver tanta gente que não acerta de perceber a existência de
um elo entre os seus pecados e as suas atribulações, desperdiçando-se
aparentemente a sua dolorosa experiência. Esse malogro ocorre porque tais
pessoas se deixam iludir pelo ego cego e levar por emoções inferiores. É uma
verdade, conquanto frequentemente obscurecida por uma nuvem de
sentimentos acrimoniosos, que a decepção das expectações pessoais e a
frustração dos desejos terrenos são, amiúde, uma das maneiras pela qual a vida
procura educar o ego e disciplinar-lhe o caráter. A incapacidade de percebê-lo,
na realidade, não esperdiça a experiência, pois a mente subconsciente a
absorveu e guardou. Ao mesmo tempo, de uma forma ou de outra, ela será
digerida e adquirirá significação, ainda que escassa.

Em sua luta por alcançar o que acredita desejável, o homem pratica o mal ou
comete erros. Mais tarde, os resultados se refletem de volta sobre ele, traduzidos
em pesares e dificuldades. Não é estranho nem acidental que as mesmas
penosas combinações de circunstâncias pareçam repetir-se na vida de tantas
pessoas diferentes. O homem, de ordinário, não se sujeita à voz da razão nem
obedece às inspirações da intuição. Para poder adquirir elevação, precisa
primeiro adquirir experiência. A sua longa evolução se opera proporcionando-
lhe, de fora uma área cada vez maior de experiência e, de dentro, um
aperfeiçoamento cada vez maior da consciência. O conflito das emoções
humanas ajuda-o a aproximar-se da intuição divina; a luta das humanas idéias o
ajuda a aproximar-se da divina inteligência. No fim, ele acaba compreendendo
que não existe outra maneira de superar o sofrimento senão pela vitória sobre o
mal, pela remoção da ignorância ou pelo desenvolvimento da capacidade. O bem
é o único poder real, e o mal é um fenômeno inconstante como a nuvem. Ao
curvar-se diante do mal ou ao contentar-se com a ignorância, o homem atrai
sobre si o sofrimento e o resultado final do sofrimento é obrigá-lo a voltar o rosto
para o bem, para o verdadeiro e para o real. Ele não pode viajar para sempre
com uma felicidade provisória e uma salvação substituta. As experiências da
vida têm significado, propósito e instrução para ele. A encarnação terrena lhos
proporciona e, assim, dá-lhe os meios de autodesenvolvimento. Se esse
propósito for alcançado, o sofrimento que acompanha intermitentemente as
experiências só poderá ser denominado mal por quem tiver das coisas uma visão
estreita e limitada. Ele obtém conhecimento à custa desse chamado mal, e logra
experiência à custa desse sofrimento. Vivendo as existências, que se repetem,
na Terra, ele vai acumulando experiências e passa do erro à verdade. Todas,
igualmente boas e más, ao cabo de contas, são um meio para desenvolver o
caráter, alimentar a inteligência e desvelar a intuição, cujos frutos lhe permitem
acumular as tendências, conhecimentos, instintos e atitudes que fazem dele o
que é. Mais do que isso, a sua consciência, finalmente, se abre num plano mais
elevado.

A natureza dirige as suas operações com essa finalidade. A vida não é tão
monotonamente fútil quanto parece. O sofrimento de cada entidade se
transforma num meio por cujo intermédio esta evolui e assume uma forma mais
elevada da própria vida. Se puder encarar cada experiência como uma
oportunidade para adquirir sabedoria e, dessarte, aproximar-se da iluminação
final, nada que lhe acontecer será desproveitoso e tudo poderá conduzi-la a um
engrandecimento mental ou moral. E, o que não é menos valioso, ela se
aproximará também da verdadeira felicidade, cuja busca, consciente ou
inconscientemente, é a mais magnética de todas as suas motivações. Mas se
formos céticos e não acreditarmos que uma lei moral nos governa a existência
ou que um propósito espiritual foi estabelecido para a nossa realização, iludir-
nos-emos completamente acerca das nossas experiências. Jubilaremos com
sucessos que, mais tarde, nos trarão sofrimentos ou lamentaremos sucessos
que hoje nos propiciam uma coibição do mal e, portanto, de atos perigosos.

Será sensato deplorarmos experiências passadas se, ao mesmo tempo,


tentarmos aprender as lições que elas ensinam mas, sem esse esforço, a
deploração será tola. No primeiro caso, converteremos obstáculos em degraus
para subir. No segundo, açoitamo-nos desnecessariamente. Podemos utilizar as
angústias que nos advieram dessas experiências para queimar as impurezas do
ego, ou podemos deixar que elas as aumentem. A escolha é nossa.

Quase todas as pessoas pensam em melhorar a sua fortuna, poucas pensam


em melhorar-se a si mesmas. Não que a Filosofia contraponha uma coisa à
outra, pois reconhece que as esferas são diferentes, mas destaca a insensatez
de ignorar valores mais elevados. Todos os homens criam certos valores para si
mesmos, porém, a evolução lhes impõe outros. Enquanto estiverem demasiado
obcecados pelos próprios objetivos imediatos e não curarem dos supremos
objetivos da própria vida humana, sofrerão as consequências inevitáveis da sua
obsessão. Todos os outros erros decorrem, inexoráveis, deste, o erro
fundamental. Se desejarmos o bem de outro homem, o melhor que poderemos
desejar-lhe não é o aumento da fortuna, mas o aumento da sabedoria; não é
uma saúde melhor, mas uma consciência mais intuitiva do seu Eu Supremo.
Porque, de posse das duas — sabedoria e consciência — ele se verá também
em melhores condições para alcançar as outras — fortuna e saúde.

A Escola da Experiência Dolorosa


Tantíssimas pessoas perguntam por que Deus permite que tão vasta crise
mundial oprima a humanidade e que a horrível ameaça de uma terceira guerra
mundial a engolfe. Dizem que tanto a crise quanto a guerra estão prenhes de
males e sofrimentos e tão pontilhadas de escuras forças perversas e duros
pecados desumanos, que o efeito geral parece ser apenas o de brutalizar e
aviltar a espécie humana. Quanto mais pioram as condições mundiais, tanto
mais pensam alguns, em seu desespero, que Deus não faz caso da humanidade,
ou até que Deus não existe. Onde, indagam eles, estão os sinais da evolução
espiritual nesses acontecimentos? Não poderemos dar uma resposta correta a
tais indagações se não elucidarmos em nossa mente a confusão que elas
supõem, e que não é senão o resultado de uma concepção unilateral,
centralizada no ego — seja ela a concepção do materialista grosseiro, seja a do
fanático religioso não esclarecido.

Muitíssimos se sentiram movidos, pela compaixão que lhes inspiraram criaturas


sofredoras, a descrer e até a odiar um Deus que permite sofrimentos assim. Não
permitamos, porém, que eles se apressem tanto a despojar Deus de sua
decantada bondade. Não permitamos que acreditem também, com o seu
limitado, finito e escuro entendimento, que a Inteligência Infinita é capaz de errar.
Não sugerem, acaso, reflexões anteriores que uma parte, ao menos, do pesar e
da dor da vida não é desprovida de sentido nem de propósito na Idéia divina?
Ocorrerá, porventura, alguma vez, à mente dos que duvidam que a atitude
normal em relação ao sofrimento, como em relação à morte, não é a atitude que
essa Inteligência assume em relação a eles? Que o ser uma experiência penosa
realmente má (ou boa) depende, em grande parte, do caráter ou da situação da
pessoa que está passando por ela? Que quando pedem, numa oração, o alívio
da experiência como se esta fosse um mal, estão atribuindo características
humanas ao Espírito Supremo e, assim, afirmam inconscientemente conhecê-
lo? Se eles pudessem ter alguma concepção do Poder Infinito com as suas
mentes limitadas, esta não poderia deixar de ser, na melhor das hipóteses, mais
que a mera ilusão do Poder, uma vez que este último é totalmente inconcebível
para o pensamento humano.

É um fato, admitido em toda parte, que a tensão nervosa a que as pessoas têm
sido submetidas pela crise atual gera o medo, a desesperança e até o
desespero. É também um fato que, para certos seres humanos, é natural
buscarem uma forma de escapar mergulhando ainda mais profundamente numa
vida sensual e frívola e, para outros, encontrá-la em devoções religiosas ou
místicas. O primeiro grupo escolhe o caminho mais fácil para o ego, mas a fuga
que encontram é ilusória e superficial, ao passo que o segundo grupo prefere o
caminho mais difícil para o ego, porém, afinal, mais proveitoso. Aqueles que não
enveredam por nenhum desses caminhos, nem pelo terceiro, que seria o
mergulhar em esperanças político-econômicas, também ilusório e superficial,
embora de maneira diferente, caem numa obtusa e entorpecida apatia.

Se uma das finalidades da vida humana sobre a terra é desabrochar


espiritualmente e se uma seção da humanidade é levada, pelas pressões da
crise e pelos sofrimentos da guerra, a procurar o desabrochamento, por que não
haveria a Mente Universal de permitir esses drásticos acontecimentos? A mesma
Natureza que nos dá suaves e balsâmicos verões também nos dá frios invernos
árticos. As mesmas leis universais que nos trazem a soalheira do meio-dia
também nos trazem a treva da meia-noite. O mesmo Poder que está conduzindo
a humanidade criança, com os seus passos trôpegos, para a autocompreensão,
também lhe está permitindo que tropece e se machuque, pois só assim a
humanidade aprenderá a caminhar. Quem poderá negar que pelo menos uma
parte da humanidade precisa do açoite do sofrimento para atuar como lição em
sua educação moral, ou como castigo dos seus cegos pecados, ou ainda como
estimulante para despertá-la da estagnação e fazê-la encetar o movimento
evolutivo? Os que se derem ao trabalho de procurar as realidades debaixo das
aparências poderão até ver, nesses mesmos acontecimentos mundiais, a
justificação do zelo da Mente Universal pela humanidade e uma demonstração
da Sua presença no mundo.

Tentar, por qualquer maneira, fugir aos sucessos devastadores, que parecem
avançar furtivamente, cada vez mais próximos, sem incluir a maneira de buscar
sinceramente realizar o propósito espiritual de sua vida na terra, é viver numa
felicidade ilusória. A indiferença do homem à silenciosa súplica da Verdade, e o
seu deslocamento do centro espiritual do seu ser, não pode durar para sempre.
Foram necessárias as perigosas tensões de uma guerra sem precedentes para
oferecer ao mundo a segunda oportunidade de uma grande iniciação, que
poderia e deveria ter sido um processo purificador para os que se tinham
aferrado em demasia às coisas terrenas e não se haviam dado ao trabalho de
indagar das razões por que estavam aqui. Visto que a dor e o sofrimento nunca
são bem recebidos e raras vezes são bem compreendidos, a voz da aflição se
ergueu num longo lamento e ecoou por todo o planeta. A todos estava sendo
oferecido um novo ensejo de auto-regeneração, mas poucos o perceberam em
sua consciência superficial! Não somente pode o sofrimento intenso ajudar a
despertar uma nação letárgica, ou um indivíduo inerte, a fim de cumprirem os
seus deveres negligenciados mas também, se for excessivamente prolongado,
poderá tender a despertar o poder latente da vontade.

Fora absurdo declarar que toda aflição serve aos propósitos do destino. Depois
de termos feito o desconto das calamidades oriundas dos nossos erros e
pecados; e também daquelas com que o Eu Supremo força o nosso
desenvolvimento individual ou coletivo; e depois de termos feito o desconto das
que são as consequências naturais da interdependência do gênero humano, que
nos afetam através da fragilidade e das imperfeições alheias, força será
reconhecer, não obstante, que ainda resta uma proporção de calamidades que
não são, absolutamente, produzidas por nós. De onde vêm elas, então? Posto
que o sofrimento dos seres humanos seja amiúde um indício de que eles se
desviaram do caminho reto, parte dele coincide sempre com a própria existência
humana. A aflição a que os seres humanos se acham expostos talvez não seja,
necessariamente, consequência do carma pessoal. Pode ser consequência do
fato de serem humanos. Quem quer que compreenda essa asserção já terá
compreendido uma quarta parte dos ensinamentos de Buda. Quando ele
apontou para o precaríssimo equilíbrio sobre o qual repousa toda a felicidade
humana, apontou para um fato salutar. A verdade dos seus ensinamentos acerca
do caráter essencialmente doloroso da vida é geralmente disfarçada pelos seus
prazeres e distrações. Mas só se torna aparente às pessoas em geral quando é
manifestamente exibida às suas consciências por horrores ou tragédias, como
os da guerra. A nossa geração tem tido o trágico caráter da existência posto em
áspero relevo. Ela entreviu, vagamente, por sua própria e penosa experiência, o
que a Filosofia sempre conheceu claramente pela sua tranquila reflexão. Entre
muitas outras coisas, a guerra e a crise constituíram ousadas e inesquecíveis
demonstrações do fato de que o sofrimento está inseparavelmente aliado à vida
neste mundo. Está, com efeito, para sempre conosco, se bem que numa escala
que não se impõe nem impressiona. É tão familiar que propendemos a
permanecer não tocados pela sua existência normal. Apenas os sumamente
reflexivos, que amam a verdade ou buscam a paz, reparam na sua presença
indefectível, e procuram também alguma solução mais profunda do seu
significado ou uma fuga duradoura do seu fardo. Onde está a alegria que não é,
mais cedo ou mais tarde, entremeada de tristeza? Uma felicidade que não se
apresente mesclada, em algum ponto ou em algum momento, com a tribulação,
jamais se encontrará em parte alguma da terra.

As vicissitudes da fortuna e da riqueza, do prazer e da dor, fluem e refluem para


todos os homens, tanto para os que pretendem ser filósofos quanto para os
outros. Ninguém pode alterar essa lei natural, assim como ninguém se atreve a
ignorá-la. Essa torturante alternativa constitui a experiência humana geral. Mas
enquanto os filósofos tentam conservar a mente estável através de todas essas
mudanças, os outros não tentam ou não podem fazê-lo. E isto acontece porque
os homens cuja felicidade só existe em companhia das coisas externas, não
encontraram felicidade alguma. Pois esta fugirá assim que fugirem essas coisas.
Se o prazer se converte, finalmente, em dor, se a alegria passa a ser um
manancial de tristezas, a felicidade que lhes advém dessas emoções é
tristemente limitada e pateticamente ilusória. Nós, povos mais jovens do
Ocidente, precisamos começar a aprender o que os povos mais velhos do
Oriente aprenderam há muito tempo, através das suas religiões e filosofias.
Estamos sendo levados à insatisfação com grande parte da vida terrena em si
mesma e, independente das suas circunstâncias, a uma percepção da
impossibilidade de encontrar paz e felicidade apenas entre as coisas terrenas.
Temos andado apaixonados demais pela atividade por amor da mesma
atividade, demasiado fascinados pelas coisas e possessões físicas,
exageradamente amarrados aos nossos desejos mais baixos para dar tento
sequer de uma concepção que possuísse o mais leve sabor de pessimismo
oriental ou de alheamento ascético. Não conseguimos ver que nenhum
progresso científico nas circunstâncias externas da vida e nenhum adiantamento
prático nos arranjos externos da vida poderiam ser suficientes, por si mesmos,
para trazer-nos alguma satisfação duradoura. Se outros homens não interferirem
no nosso contentamento, se nele não interferir a própria Natureza, o Destino,
com as suas incertezas e as suas mudanças, interferirá. Precisamos aprender
que, em algum ponto dentro em nosso coração, devemos passar da
dependência exclusiva das coisas exteriores para uma dependência maior das
coisas interiores, se quisermos conhecer a verdadeira satisfação. Temos de
criar, dentro de nós, um estado de espírito que, por si só, nos proporcione a paz
e a felicidade que o mundo, afinal, tantas vezes nos nega. Sem embargo de tudo
o que foi dito, porém, ainda precisamos recordar-nos de que dizer a homens
sufocados pelo calor nos trópicos ardentes que a vida é sofrimento, como o disse
Buda aos hindus, pode significar a transmissão de uma aceitável sabedoria, mas
dizer a mesma coisa a euro-americanos impacientes, ambiciosos e amantes do
conforto, talvez signifique dizer tolices inaceitáveis.

Aquele que reconhece que o poder existente por detrás da vida é benéfico e que
até os males da experiência são aproveitados para o máximo bem evolutivo,
converte-se facilmente num sonhador otimista. Por outro lado, aquele que
reconhece que esta terra não é a nossa verdadeira morada, que toda a
experiência humana é marcada pela transitoriedade, pela imperfeição e pela
mudança, facilmente se transforma num observador pessimista. Um terceiro tipo
geralmente começa com a presunção de que a vida terrena é uma fonte de
prazeres, mas acaba frequentemente na velhice persuadido de que ela é uma
fonte de tristezas.
O filósofo, contudo, não permite que a sua crença na bondade suprema da vida
o empurre para um otimismo extremo, nem consente que a sua crença na
insatisfatoriedade final da vida o empurre para um extremo pessimismo.
Intelectualmente, une e equilibra os dois pontos de vista; espiritualmente, atinge
a percepção da base sublime e sem pesares da vida. Isto o eleva acima não só
da superficialidade do otimismo, mas também da melancolia do pessimismo, e
mantém-no em permanente paz interior. Será possível lograr uma felicidade que
não seja limitada pelo acaso e que nunca diminua, seja qual for a mudança das
circunstâncias? A Filosofia responde que, se seguirmos até o fim o seu
quádruplo caminho, lograremos, sem sombra de dúvida, essa felicidade.

Quer em estados de espírito reflexivos, inspirados pela Arte, pela Natureza e


pela leitura, quer em momentos de absoluto relaxamento provocados pela
extrema satisfação, algumas pessoas sentem vagamente que deve de haver
alguma espécie de ser, maior e mais nobre, do que este tristemente limitado ser
terreno, que é o único que elas conhecem. Mas só quando o sofrimento ou a
privação destacam o tremendo contraste entre ambos, é que os seus
sentimentos se inclinam a ventilar a questão de fazer ou não alguma coisa nesse
sentido e, assim, dar asas ou não ao desejo cuja cabal expressão é o caminho
que leva ao descobrimento da alma, a busca do Eu Supremo.

A morte é a única coisa absolutamente certa na vida. Faz mais de mil anos que
Shankara, o sábio hindu, observou ser realmente néscio o que desperdiça o
precioso ensejo de lograr a salvação que lhe oferece o seu nascimento como ser
humano, e não o aproveita. Entretanto, durante a nossa passagem da infância
para a adolescência e desta para a maturidade e a velhice, absortos como
estamos nos cuidados pessoais e nos prazeres físicos da existência, raramente
julgamos necessário empreender uma busca dessa salvação superior, que
provém do conhecimento da verdade impessoal acerca da nossa existência aqui
e da nossa rendição a essa verdade. Isto acontece porque a vida terrena nos
amarra de pés e mãos e a ignorância espiritual nos fecha os olhos. Mas, no fim
nos será tão impossível deixar de lançar-nos a essa procura quanto deixar de
comer. Pois é uma necessidade inexorável do nosso ser interior. Quer o
queiramos, quer não, estamos caminhando, de qualquer maneira, para a vida
governada espiritualmente, mas, se o não fizermos de bom grado, fá-lo-emos às
arrecuas — com todas as desvantagens de um movimento dessa natureza!

Existe, de um lado, um áspero e longo caminho para a verdade e existe, de outro,


um caminho áspero e curto. O primeiro é o caminho em que somos ensinados
pelo tempo, pela pressão evolutiva da Natureza e pelos resultados dos nossos
pensamentos e dos nossos atos. O segundo é o caminho em que nos lançamos
à busca direta da verdadeira meta. O primeiro desvela lentamente o significado
das partes da sua experiência que são aflitivas. O segundo procura,
deliberadamente, chegar-lhes às raízes e impedi-las de continuar crescendo.
Podemos fugir da tristeza de várias maneiras, inclusive a de esconder-se a
pessoa na recusa em acreditar que ela possa, um dia, tocá-la também; mas à
semelhança de um fantasma, ela volta para assombrar-nos. Ou podemos
enfrentá-la, estudá-la e compreendê-la, através da percepção filosófica, quando
ela será interiormente vencida para sempre e exteriormente evitada, sempre que
possível.

Quando, em virtude de existências pré-natais mais elevadas, um homem é capaz


de seguir um curso mais puro, mais sábio e mais espiritual, mas se recusa a
fazê-lo, o Eu Supremo, de uma ou de outra forma, acabará intervindo e
determinando-lhe o regresso. Pode liberar uma série de acontecimentos
mutáveis, derivados do carma, que lhe mostrarão, vívida, repentina e
vigorosamente, a insensatez do seu curso atual. Ou lhe oferecerá oportunidades
atraentes, uma depois da outra, mas rematando sempre cada experiência com
a decepção, a desilusão ou a dor. Ou pode fazê-lo perder tudo numa catástrofe
e, assim, pela primeira vez, encontrar-se. Um resultado revolucionário desse
gênero, naturalmente, não é verdadeiro apenas para o indivíduo destinado a
empenhar-se na busca durante a presente encarnação; é verdadeiro para toda
a humanidade em todos os tempos. Ou, às vezes no ponto culminante dos seus
maiores êxitos, às vezes nas profundezas dos seus maiores prazeres, fará que
esse homem, ao qual, outrora, fora concedido o privilégio de entrever o Real —
ainda que fugazmente — perceba, a súbitas, as limitações do êxito ou a
insatisfatoriedade do prazer. Esse pensamento lhe acudirá como uma intuição
continuamente repetida, que o deprime mentalmente e lhe paralisa a ação. Será,
de fato, uma momentosa mensagem que o salvará ou destroçará para o resto
dessa encarnação.

Todas as variadas experiências da existência, as satisfações e as decepções


igualmente, nos são proveitosas quando nos instigam a procurar uma resposta
para a seguinte pergunta: “Qual é o propósito mais alto da vida?” Quando
descobrimos que, juntamente com as alegrias que trazem, essas experiências
no mundo exterior causam dano aos nossos sentidos e ferem os nossos
sentimentos, e que essa alternação é seu componente inevitável, estamos
intimamente preparados para a idéia de procurar a duradoura felicidade do Eu
Supremo.

Quão poucos são os que podem mostrar-se mais fortes do que as alegrias da
vida! Entretanto, são eles também os capazes de sobrepor-se às tristezas da
vida. São tantos os que procuram apaixonadamente as sombras da existência e
deixam escapar-lhe a substância mística, tão poucos os que se põem a refletir
sobre a sua jornada humana! Essa reflexão mostrará que só buscamos a
felicidade porque não a possuímos e, todavia, entendemos dever possuí-la. Esta
afirmativa é tão exata no que concerne ao mais brutalizado e animalizado dos
homens quanto no que diz respeito ao mais requintado e adiantado. Sente-se
que a necessidade é soberana. Por quê? Responde a Filosofia: “Porque a
essência real da personalidade é a alma divina. Porque essa alma existe
continuamente num estado de perene felicidade. Porque ainda que
encontrássemos tudo o que desejamos física e intelectualmente, continuaríamos
descontentes, continuaríamos procurando a felicidade, pela simples razão de
não termos ainda encontrado a alma propriamente dita. Porque inconsciente e
indiretamente sabemos disso e, portanto, continuamos a esperar e continuamos
aferrados à vida, a despeito de todos os sofrimentos e lutas que ela nos traz.
Porque sempre que observamos quão inumeráveis são as criaturas, humanas
ou animais, que se apegam desesperadamente à vida, até nas mais horríveis
condições, observamos também a prova de um reconhecimento subconsciente
de que a encarnação terrestre possui um valor, um propósito e um significado
que transcendem os seus valores, propósitos e significados imediatos”.

Quão pouco, nessa fase imatura da busca entre as coisas externas, sabem os
homens que os tesouros de bem-aventurança, satisfação e posse estão
realmente neles mesmos! A sensação de serem incompletos, inacabados e
imperfeitos os excrucia; grande parte do seu desassossego nasce disso. Mas,
se bem possam experimentar vários meios de atenuá-lo, se bem possam
procurar satisfação em diferentes caminhos, não podem vencê-lo senão
encetando a busca final. Embora imaginem estar procurando a felicidade através
do corpo físico, estão-na buscando, efetivamente, através da mente espiritual.
Isto é assim e precisa ser assim em virtude da constituição da própria natureza
deles. E é por isso que, satisfeito um desejo, surge outro para substituí-lo.
Dessarte, todo bêbedo sedento de novas bebidas tem, com efeito, num nível
físico e inferior de desenvolvimento, sêde da bem-aventurança do Eu Supremo.
Todos os homens estão empenhados nessa busca do segundo eu, mas a
maioria está empenhada inconscientemente. Vai empós dessa satisfação
estável de diferentes maneiras transitórias. Quão poucos compreendem que a
sua necessidade do eu divino é uma necessidade permanente! A maioria deseja
desfrutar a vida a seu modo, que amiúde depende inteiramente de coisas
externas ou de outras pessoas, não ao modo filosófico, o qual, posto inclua essas
coisas ou pessoas, independe, todavia, interiormente delas. Só se dissipam os
desejos perturbadores e só se alcança o repouso emocional quando se atinge a
meta.

A serena felicidade da alma nunca poderá ser rompida pela angústia e pela
aflição da sua sombra, a pessoa. Nenhum pesar e nenhuma paixão, nenhum
medo e nenhuma dor poderão penetrá-la. Essa parte do seu ser que permanece
no céu é o Eu Supremo. A parte que desce para sofrer e lutar na terra é a
personalidade. Ambos estão indissoluvelmente ligados, embora a ignorância só
veja a pessoa. A separação, na consciência, do Eu Supremo é a causa
fundamental, ainda que oculta, da busca perene da felicidade a que se lança o
homem, agora numa coisa ou através de uma pessoa, logo em outra coisa ou
através de outra pessoa. Mas jamais encontra uma felicidade não estorvada por
um infortúnio, que a acompanha ou lhe sucede. E como poderia encontrá-la, se
ela não existe em nada e em ninguém fora dele? O seu anseio nunca será
satisfeito enquanto não for dirigido para o Eu Supremo transcendental e não for
satisfeito por ele. Através de todos os seus sucessivos aparecimentos em corpos
diferentes, o homem busca a totalidade, a benigna felicidade e a bendita
realização da união com a sua natureza superior. Quando descobre, e finalmente
o aceita, que as coisas terrenas são transitórias e contraditórias, que o
prazenteiro está ligado ao penoso, e por isso faz da sua uma busca consciente,
diz-se que ele se lançou à Busca.

Finitas e limitadas, todas as formas de vida neste mundo envolvem sofrimento.


Mas a vida no mundo celestial, que não é um sítio distante mas um estado
interior, que se pode encontrar até mesmo antes da morte, é gloriosamente livre
e, portanto, sem sofrimento. As seis coisas mencionadas na primeira página
deste capítulo, sempre desejadas mas nunca encontradas na terra, são tão
esquivas precisamente porque pertencem ao céu. Mas o céu é um estado de
espírito. É, com efeito, o espírito em seu mais puro ser. Entretanto, o homem
ainda pode alcançá-las aqui e agora, enquanto as buscar na região do
pensamento e do sentimento, e não se restringir à região da carne e do sangue.
“A causa da felicidade ou do infortúnio outra não é senão o próprio eu da pessoa;
é uma idéia da mente”, ensina Krishna, o mensageiro divino, em outro antigo
texto hindu, o Srimad Bhagavata.
7
A Vontade do Homem e
a Vontade de Deus

Os fanáticos religiosos chamam a Deus “O Misericordioso”, mas seria igualmente


correto empregar o epíteto contrário, “o Sem Misericórdia”. Pois se eles se
sentem gratos a Deus pelas coisas agradáveis e sucessos afortunados,
deveriam sentir-se logicamente gratos também pelas coisas desagradáveis e
acontecimentos infaustos. Mas não se sentem. Seria mais avisado, por
conseguinte, deixar de atribuí-los, tanto uns quanto outros, a Deus, e principiar
a atribuí-los à sua verdadeira fonte, que se encontra, quase sempre, dentro deles
mesmos. As pessoas que pedem a bênção divina, seja diretamente a Deus, seja
por intermédio de um dos santos de Deus, geralmente a pedem em forma de
benefícios materiais e vantagens mundanas. Essas pessoas não se dão conta
de que as bênçãos divinas tanto podem ser mandadas em forma de desgraças
físicas e infortúnios terrenos, quanto através de maneiras mais agradáveis. Uma
reflexãozinha impessoal acerca do curso dos acontecimentos passados talvez
possa permitir-lhes o bem no mal aparente. Com a intuição de um poeta
espiritual, Keats escreveu numa carta: “Você não vê quão necessário é um
mundo de penas e dificuldades para instruir uma inteligência e fazer dela uma
alma?”

Os que hoje sofrem são os que buscarão amanhã. Quando não quiser abrir-se
de boa mente, o coração talvez tenha de ser golpeado para permitir o ingresso
de Deus. Quando a vida de um homem desnorteia, o ego talvez tenha de ser
mortificado. Pois somente ao bruxulear da sua própria regra pessoal flamejará
uma regra mais divina. O método de atração humana da Mente Universal e,
portanto, de desenvolvimento humano, a misteriosa terapia da sua graça
sagrada, supõe o emprego do sofrimento como uma de suas características. Se
a mão do homem é responsável por tão grande parte de sua aflição ou da aflição
alheia, a mão de Deus deverá ser, finalmente, responsável por toda ela. Pois a
sabedoria divina instituiu as leis que, por seu turno, dispõem que o homem terá
de passar pelo reino das tribulações antes que a paz lhe descanse sobre o rosto.

Só poderemos apreender o significado do sofrimento quando tivermos dele uma


visão total, assim das partes brilhantes como das partes escuras. Algumas
pessoas, como Mary Baker Eddy, percebendo-lhe corretamente a irrelevância
no plano mais elevado, nega-lhe incorretamente um lugar, seja ele qual for, na
Idéia divina. Outros, como Charles Robert Darwin, persistem em olhar apenas
para a parte sombreada do quadro e em relembrar a terra por suas feras
selvagens e as suas lutas biológicas, e não pelo alimento que ela, solicita, lhes
dá ou pelas flores que, generosa, lhes proporciona. Ambos a vêem numa
perspectiva limitada. Outros ainda, que teimam em falar na crueldade da
Natureza para com o homem, deveriam perguntar a si mesmos se ela, alguma
vez, chegou sequer a igualar a crueldade do homem para com o homem. Se há
demasiada crueldade nos arranjos da Natureza para que o homem os aprove
plenamente, reflita ele que talvez não houvesse outra maneira de fazê-los para
que as metas da Natureza fossem alcançadas. Se o seu coração continua a
protestar, permita ele que a sua cabeça se incline, sabendo que está em
presença de uma sabedoria indescritivelmente infinita. Não fossem benévolas as
leis que governam este universo, e não haveria esperanças para a humanidade.
Mas, ao contrário, existem todas as razões para a esperança suprema.

Cumpre lembrar que os males e as dores da vida têm uma existência fugidia e
são relativos ao bem e às alegrias da vida. A própria existência deles é, afinal,
controlada pelas leis divinas e usada para o trabalho universal divinamente
baseado. Tais complementaridades e relatividades seguem-se, por força, assim
que esse trabalho recomeça a cada renovado período cósmico. Como poderia
vir a existir qualquer universo sem que viessem com ele, ao mesmo tempo, o
bem e o mal, a luz e a treva, a alegria e a tristeza? A dualidade é o lado inevitável
e trágico da sua manifestação. A existência de um oposto é a consequência
necessária da existência do outro. Os que bradam por um mundo sem dor não
compreendem que estão pedindo também um mundo sem alegria. O fluxo e o
refluxo entre os opostos da alegria e da angústia, da posse e da perda, dão ao
homem um sentido de valores que ele não teria em grau tão vívido de outro
modo. A experiência de um gênero proporciona um equilíbrio necessário à
experiência do seu contrário. Isto o ajuda a formar uma justa estimativa da vida
do corpo e dos valores terrenos, uma percepção mais verdadeira da sua
transitoriedade e, assim, o aproxima da consciência da vida espiritual.

Recusar um lugar ao sofrimento no plano divino quando o julgamos tão-somente


pelos nossos sentimentos humanos finitos, equivale a apoucar a nossa avaliação
da sabedoria divina. Vemos apenas a parte e lamentamos o mal e a dor que a
ensombram. Não há lugar para essas sombras feias no sublime Eu Supremo;
elas pertencem exclusivamente ao mundo das aparências. Aqui existem,
tragicamente; lá não poderiam sequer existir. Eis aí uma situação paradoxal. Elas
não podem ser negadas, como as negam alguns sonhadores, mas a realidade
que existe por detrás delas, o Poder original que existe por detrás do próprio
universo, é bom no sentido mais elevado. Pudéssemos nós contemplar o todo e
descobriríamos que o Benéfico e o Beatífico nunca foram destronados. O homem
não iluminado ouve apenas a angústia do mundo, ao passo que o filósofo ouve,
ao mesmo tempo, a angústia e a melodia escondida atrás dela. A dor e a aflição
não representam toda a verdade da vida. A dor é uma eterna Bem-aventurança
temporariamente perdida. A aflição é uma Paz eterna momentaneamente
obscurecida. O Amor, um dia, apaziguará o tumulto humano; a luz inundará a
treva do mundo. Há uma sabedoria infinita inerente à Idéia cósmica, que o
tumulto e a sombra podem ocultar momentaneamente das nossas percepções,
mas que jamais obliterarão.

A Mente Universal é a origem da Vida. O nosso não é um universo morto, mas


um universo vivo, porque é um universo mental. Todo movimento criativo deste
maravilhoso cosmo é um monumento em honra da Mente oculta, cuja presença
o suscitou. Em toda parte se encontra a expressão do seu gênio. Sendo apenas
uma, e não duas ou três, a Mente só manifesta uma espécie de inteligência. Não
é mais alta em alguns planos e mais baixa em outros. Em toda parte, em todos
os pontos do seu cosmo, e por detrás da vida de cada uma de suas criaturas, a
Mente suprema, infinita, onisciente, está trabalhando. E porque é inteligência
infinita, produz uma Idéia Universal infinitamente inteligente. Existem, de fato,
provas esmagadoras de que isto assim é. Se a razão exige um princípio
ordenado por detrás das operações da Natureza, tanto a intuição do místico
quanto a visão interior do filósofo o encontrarão. O homem não pode dilatar os
seus conhecimentos do trabalho interior da Natureza sem sentir crescer, ao
mesmo tempo, a reverência pela sua estupenda sagacidade. A sua existência
por detrás das coisas faz calar a mente assombrada até quando se descobrem
os primeiros sinais, e muito mais quando se patenteia toda a sua presença.

O mal e o sofrimento do mundo não podem, de maneira alguma, eximir-se do


seu conhecimento nem furtar-se à sua soberania. Quando, mesmo não podendo
compreender a angústia nem fechar os olhos ao terror, o homem se persuade a
aceitar a lógica da sua existência e, assim, a aceitar o universo também,
conhecerá uma grande paz. Será tão difícil desenvolver essa capacidade de
aceitação quando a razão lhe mostra uma sabedoria infalível em tanta coisa
compreensível para ele, quando a intuição lhe diz que o amor reside no mais
profundo coração do raio de Deus — a alma — e quando a revelação o informa
de que tudo, afinal de contas, será para o melhor nas coisas que ele não pode
compreender?

Muitos objetam que grande parte do sofrimento não alcança o seu propósito
porque não leva consigo a sua lição à superfície, que o castigo não reconhecido
nem compreendido perde o efeito moral e falha em sua finalidade beneficente.
Essa crítica se aplica especialmente às consequências diferidas de atos
praticados em nascimentos anteriores, embora se esqueça de que todo aquele
que se dói de precisar pagar pelos erros cometidos em existências pregressas,
sobre as quais nada sabe, e cujo pagamento portanto, considera injusto, sempre
aceitará, sem a menor objeção, as vantagens e benefícios que lhe advêm das
boas ações praticadas nessas mesmas existências.

A primeira resposta é que, se o sofrimento fosse o único método que se aplica


ao ego para o seu desenvolvimento espiritual, a Idéia divina poderia ser acusada,
com justiça, de ser mais brutal do que educativa. Mas a evolução da mentalidade
e do caráter de um homem se processa numa dupla direção. Trabalha do
exterior, através do meio, e trabalha do interior, através do coração. Daí que, a
par com a experiência do sofrimento, exista também a amável instrução para
explicar-lhe o significado. Isto é dado externamente por mestres humanos,
através de religiões e filosofias, e internamente pela própria alma, através de
intuições diretas e raciocínios válidos. Uma vez que a adversidade e a dor só
ensinam uma sabedoria negativa, subsiste a necessidade de se obter uma
compreensão criativa da vida. Por isso, alguns dos que se altearam às
culminâncias da visão interior são enviados de volta ao mundo ou vêm
espontaneamente, ou são trazidos de planetas superiores para mostrar a outros
os caminhos e verdades mais positivas. O sofrimento, por si só, não instrui o
homem nem conduz à reforma do caráter. O seu trabalho precisa ser
complementado e completado, tanto pelo esclarecimento vindo de dentro,
quanto pelo esclarecimento vindo de fora. No primeiro caso, a qualidade do
pensamento e da intuição que ele traz para o sofrimento contribui para os seus
efeitos educativos. No segundo, a qualidade do ensinamento espiritual que ele
recebe e a leitura espiritual a que se entrega têm o mesmo resultado. A sua
própria reflexão sobre isso, ou sobre as lições de outros homens a esse respeito
põem em relevo as suas lições. Profetas inspirados, mestres, sábios, santos,
filósofos e místicos surgiram entre nós em todos os séculos e uma parte da sua
missão é precisamente tornar claras essas lições. Os homens não se interessam
por prestar-lhes atenção simplesmente porque não estabelecem conexão entre
o pronunciamento impessoal delas e as suas próprias vidas pessoais. É, porém,
dever e responsabilidade deles, e não do mestre, estabelecer a conexão. As
falhas da sua interpretação inconsciente do significado da vida terão de ser-lhes
indicadas por novos sucessos dolorosos, quando não se mostram inclinados a
permitir que elas lhes sejam indicadas por mestres humanos.

Isto conduz à segunda resposta, de que a própria obscuridade de qualquer elo


causal entre o pecado e o sofrimento, ou entre a ignorância e o sofrimento, ou
entre a incapacidade e o sofrimento, é intencional e deliberada. Pois compele o
sofredor a formular a si mesmo a seguinte pergunta: “Por que me aconteceu
isto?” Ao procurar a resposta satisfatória, ele desvelará, pouco a pouco, a
intuição e desenvolverá a inteligência. O sofrimento passa, mas essas
faculdades permanecem. Toda a situação torna-se, assim, um estratagema para
arrancá-las ao estado latente e desempenha uma parte importante na sua
evolução geral. O sofrimento só será o seu mestre enquanto ele não se dispuser
a aceitar o ensino externo dos profetas, dos videntes ou dos sábios, assim como
o ensino interno da reflexão correta e da intuição. Se não quiser atentar para
nenhum desses divinos mestres, terá de atentar para as desagradáveis
consequências das suas más ações ou das suas deficiências pessoais. Se não
quiser emendar em si mesmo as faltas que produzem os desacertos intelectuais
e as iniquidades éticas, se se recusar a aprender com a História e a Religião,
com os dotados de visão interior ou inspirados por revelações, ou a lição de que
a prática do mal não aproveita, ou a necessidade de desenvolver o que lhe falta
e, se não for capaz de aprender de nenhum outro modo, a vida não terá outro
recurso senão ensiná-lo por meio da angústia pessoal ou da ignominiosa
humilhação.

É profundamente significativo que a Cruz, emblema da tristeza e da dor, seja


também, de fato, o emblema da salvação. Todo homem está aqui na Terra para
tornar-se consciente do seu eu superterreno. Enquanto não cumprir a sua tarefa,
será conduzido através de variadas experiências em muitos nascimentos,
experiências pontilhadas, a intervalos, de dor, pesar e decepção, porém
matizadas, de onde em onde, com alegria, prazer e satisfação, para tornarem a
vida suportável. Ele, por certo, a cumprirá a despeito de todos os lapsos e de
todos os reveses, porque a lei eterna, o princípio vivo do seu próprio ser, o
obrigará a fazê-lo. E o acabará fazendo, conscientemente, porque descobrirá
que é esse o único caminho para a desejável felicidade. O divino Eu Supremo
não o persegue no sentido em que uma criatura apaixonada persegue o objeto
da sua paixão. Mas também não se deixa ficar alheio e indiferente. Permanece,
sereno, no coração, esperando para saudar-lhe o regresso, sabendo que o seu
poder de atração magnética o atrairá, e que a instrução e o sofrimento acabarão
por fazê-lo cônscio da sua presença. A paciência é incomensurável exatamente
porque o amor é incomensurável. O amor divino só é limitado pela compreensão
e pela receptividade do homem. E por ser um amor incrivelmente paciente, não
o obrigará a desvencilhar-se da sua escravidão às atrações terrenas,
desvencilhamento que é a primeira forma a ser assumida pela compreensão e
receptividade mencionadas. Uma salvação a que ele tivesse sido constrangido,
em que o seu livre arbítrio não tivesse desempenhado parte alguma, e para a
qual ele não tivesse cooperado, não seria uma verdadeira salvação.

“O remédio de todas as tuas dificuldades é a lembrança de Mim” disse um profeta


do Oriente-Médio. A única coisa que se pede de todo homem é que se volte,
mude a direção da sua visão e encare com o Eu Supremo. Todos estamos
destinados a participar da sua iluminação. Assim que o homem tiver descoberto
essa presença, sentido essa inspiração, capitulado diante desse poder, este o
conduzirá serenamente através de todas as dificuldades e todas as crises, de
todas as vergastadas e convulsões que a vida possa deparar-lhe. Nessa
liberação do eu de seus próprios desejos, ele encontrará a plenitude do eu, a
verdadeira satisfação que os mesmos desejos inconscientemente procuram. E
compreenderá, com o tempo, que este é o alto propósito para o qual veio ao
mundo e que todos os mais propósitos lhe consumiram mais tempo e mais
energias, iniquamente, do que mereciam.

A busca humana da felicidade, com muita frequência, é frustrada por alguma


hedionda circunstância, condição, falha ou defeito físicos. A entidade humana é
levada, afinal, para o não físico, isto é, para a Religião, o Misticismo e a Filosofia.
E assim chegamos ao imensurável valor delas para o homem (em grau
ascendente) e às importantes consequências da sua concepção pessoal do
mundo. Pois nós ganhamos do sofrer, como do viajar, em parte o que levamos
a ele. A nossa falha conduta na vida é o resultado natural da nossa falha
concepção da vida. Sem a direção do ensino espiritual, confundimos as nossas
poucas oportunidades, desperdiçamos os nossos preciosos anos e
malbaratamos as nossas limitadas energias. Mas quando principiamos a pautar
a nossa conduta pelos seus princípios, começamos a dissolver as desarmonias
pessoais. Uma compreensão espiritual da vida, que alcança a sua melhor forma
na Filosofia, mitiga a dor e aligeira a luta da vida. Em horas de dificuldade ou de
perigo, na agonia das emoções ou da carne, encontramos pequeno ou grande
alívio deixando que a mente se apodere das suas grandes verdades e medite
nelas com ardor. Mas em todos os momentos elas podem ser cogitadas com
muito proveito. O seu estudo empresta uma forma significativa ao fluxo das
mudanças da vida que, de outro modo, não teriam sentido nem teriam propósito.

Erros Comuns Acerca da Vida Renunciada


Nada na perspectiva apresentada nas páginas anteriores deverá deixar lugar à
indiferença ou à insensibilidade no resultado prático, nada deverá impedir quem
quer que seja de estender a mão compreensiva e auxiliadora aos sofredores.
Nem se inferirá delas que a Filosofia anda à cata do auto-sofrimento, da
autoprivação, do automartírio; quem o fizer, incindirá em grave erro. Pois ela não
se cansa de relembrar que, se existem aflições e dor no movimento da vida,
também existem graça e misericórdia, perdão e amor no coração da vida. Nada
do que até agora se escreveu deverá induzir ninguém à falsa conclusão de que
deve deixar de cultivar a compaixão pelos que sofrem, nem recolher a mão que
se adianta para aliviar o sofrimento.

Os mensageiros do Ser Infinito, como Jesus e Buda, não poderiam ter trazido a
piedade e ensinado a bondade se esse mesmo Ser fosse realmente cruel. Se
eles já não sofriam em si mesmos, sofriam pelos outros. A dor era vicária. Não
obstante, é preciso notar que os seus pensamentos se dirigiam muito menos
para o corpo das pessoas do que para a sua mente e o seu coração: e que a sua
comiseração olhava muito menos para os padecimentos físicos do que para a
ignorância mental; para as causas passadas por alto do que para os meros
efeitos.
Uma verdadeira filosofia mística não aperta alegremente ao peito as dores da
vida. Reconhece que, embora seja, essencialmente, um estado interior, a
felicidade não pode ser separada de todo dos estados exteriores; que o
materialismo, que não faz caso da vontade humana e de quanto pertence à
circunstância humana, é tão desequilibrado quanto o idealismo, que faz
exatamente o contrário; e que, se a espécie de resposta que damos ao mundo
externo é importante, o que o mundo externo nos faz não é menos importante.

Uma verdadeira filosofia mística também não vê com bons olhos a atitude que
insiste em padecer tormentos porque sempre os aceita como o decreto inevitável
de Deus, nem a outra que espera, de braços cruzados, que Deus venha libertá-
la das suas dificuldades. Muitos líderes místicos orientais, e até alguns
ocidentais, ensinaram acertadamente a virtude de deixar que Deus dirija o
universo, não tentando interferir nas suas operações, e a sabedoria da opinião
de que Deus sabe, melhor do que nós, como dirigi-lo. Como direta consequência
disso, adotaram e pregaram o culto do completo indiferentismo social e pessoal,
com a total resignação a todos os acontecimentos como expressões da vontade
de Deus. Ensinaram aos seus adeptos a submissão, ou aquiescência, a todos
os eventos, sejam de que natureza for, recomendando-lhes que se abstenham
de interferir no curso dos acontecimentos por meio de algum suposto serviço
prestado à humanidade.

Um conselho assim, irrestrito e incondicional, de cega submissão a todas as


circunstâncias, porque elas são a vontade de Deus, às vezes é judicioso, mas
às vezes é perigoso. A história da Religião é eloquente nesse ponto. Quantas
vezes toda uma classe de egoístas sacerdotes, servindo aos interesses de um
grupo desacreditado ou de um monarca despótico, intimou homens sofredores
e mulheres atormentadas a que não tentassem aliviar as suas tribulações
presentes, senão que as suportassem sem resistência, por serem elas a
expressão da vontade de Deus! Quantas vezes, energias que poderiam ter sido
dirigidas para a melhoria de situações, permaneceram desempregadas na
esperança inútil de agradar a Deus! Essa fraca atitude foi, durante muito tempo,
explorada na Índia para proclamar a casta — a princípio um arranjo sensato e
flexível — como instituição ordenada por Deus e rigidamente inalterável, como
também foi aproveitada na Europa medieval, quando se supunha que todo
homem houvesse nascido no lugar e na classe que lhe eram apropositados,
acima dos quais não se lhe ensejava oportunidade alguma de altear-se.

A Filosofia admite livremente que algumas circunstâncias, eventos e sucessos


são, por certo, guias divinos para nós, sejam eles agradáveis ou penosos, e será
mais prudente, afinal de contas, não lhes resistir. Mas também diz que outros
têm uma origem diabólica e é mister sem dúvida, resistir a eles. A não ser assim,
poderão induzir-nos ao erro e ao desastre, ou animar os seus responsáveis à
prática de novos crimes. Além disso, alguns acontecimentos são o doce fruto de
um bom destino e, por conseguinte, representam a oportunidade que deve de
ser apanhada. Outros, todavia, são o fruto amargo de um mau carma e, portanto,
representam armadilhas, laços, ciladas ou apuros dos quais é preciso que nos
guardemos cautelosamente. A atitude correta é flexível; não consiste em assumir
rigidamente, em todos os momentos, uma disposição fatalista para converter-se
em prêsa passiva dos acontecimentos, nem uma atrevida determinação de
dominá-los em todos os instantes.

É evidente que ninguém pode ter a sua vida inteiramente nas próprias mãos.
Todos estamos seguros nas mãos do Eu Supremo. Mas o conselho tantas vezes
dado aos aspirantes pelos fanáticos e místicos de cederem a todos os
acontecimentos como sendo as realizações da vontade de Deus, de se
resignarem sem qualquer esboço de resistência ao que quer que aconteça e a
tudo o que vier, por ser manifestação de egoísmo ignorante fazer o contrário,
não é aceito pela Filosofia sem algumas alterações. É verdade, sem dúvida, que
existem situações em que não resta outro recurso a ninguém senão sujeitar-se
humildemente à vontade de Deus, na fiúza de que a sabedoria divina está ligada
a elas. E também é verdade que, ao cabo de contas, Deus dirige todas as
circunstâncias, todos os sucessos, no sentido de promover a intenção divina em
relação ao universo. Mas isso não justifica que toda a gente aceite cegamente
os acontecimentos que sobrevêm em suas existências como sendo a vontade
imediata de Deus. Pode ser que o não sejam. Podem ser a vontade do homem.
O erro dos que querem que nós nos submetamos universalmente a todos os
eventos aflitivos e maus porque representam a vontade divina, é esquecer que,
se nos submetermos sem inteligência, sem espírito crítico e sem compreensão,
se não estudarmos o significado ou a lição que há por detrás de cada
experiência, Deus poderá mandar-nos, reiteradamente, as mesmas tribulações.
Pois o que realmente nos envia tantas experiências não é senão a lei divina da
recompensa.

As nossas tragédias e dificuldades não nos acontecem por acaso. Uma lei divina
nos traz a maioria delas como reação aos nossos próprios pensamentos
indignos, como a correlação com os nossos desejos inadequados e os nossos
atos insensatos, ou como a consequência de nosso próprio desequilíbrio
pessoal. Essa lei não forja uma lei fatalista de ferro fundido em torno de nós. O
que ela faz é criar uma situação que, não nos esqueçamos, se originou dos
nossos pensamentos e atos anteriores, e se desenvolverá de determinada
maneira se nada fizermos, dali por diante, para que se desenvolva de outro
modo. A simples aceitação das penosas consequências de um mau carma não
basta. A resignação passiva ao decreto inflexível da vontade de Deus é
incompleta. Precisamos acrescentar entendimento à aceitação, compreensão à
resignação. Aliás, sofreremos cegamente e nos privaremos de grande parte do
proveito que se oculta por detrás da nossa dor. A inerte aceitação, por parte dos
candidatos a devotos e místicos religiosos, dessas más condições como sendo
sempre a vontade de Deus só pode ser caracterizada como um sinal patético da
sua falência intelectual. O resultado prático é que eles consideram o deixar-se
ficar sentados sem fazer nada, isto é, esperando indolentemente que as coisas
lhes caiam do céu, como a espécie mais elevada de conduta humana. Os perigos
que cercam essa atitude passiva são sérios. E não é menor o perigo de
abandonarem a sua vida ao mero acaso e a sua vontade à mera circunstância.

Os extremados advogados da não resistência ignoram a necessidade evolutiva


de cultivar tanto a inteligência quanto a vontade. A maneira pela qual encaramos
as situações externas e os acontecimentos mundanos depende não só desses
dois fatores, mas também do nosso status moral. A total aceitação de cada
situação, e a passiva resignação a ela, por acreditarmos que a vontade de Deus
se exprime por ela, nos quita a oportunidade de desenvolver a inteligência e
exercitar a vontade. Mas uma atividade dessa natureza faz parte da divina Idéia
evolutiva para a humanidade. A cega aceitação de qualquer acontecimento, a
apática submissão diante de todas as situações, e o piedoso abandono ao mal
remediável significam, realmente, a não cooperação com essa Idéia — o que
vem a ser precisamente o contrário do que pretendem os seus advogados!
Quando o célebre místico sufi AI Hallaj foi visitado por Ibraim Khawwas,
perguntou ao seu visitante: “Ó Ibraim, durante os quarenta anos de tua conexão
com o misticismo, que foi o que lucraste com ele?” Respondeu Ibraim: “Fiz
particularmente minha a doutrina de entregar passivamente a Deus o provimento
de todas as minhas necessidades materiais”. Ao que AI Hallaj retrucou: “Pois
desperdiçaste a tua vida”.

O emprego adequado da inteligência pode impedir-nos de incorrer em erros


gravíssimos. A resignação puramente mecânica à vontade de Deus poderá, em
certas ocasiões, provocar a autodecepção, favorecer a indolência, e justificar o
egoísmo, ao passo que a sábia resignação é sempre discriminativa, reflexiva e
profunda. Se possuirmos a espécie certa de resignação, uma resignação que
não impede o esforço inteligente, essas situações difíceis serão honestamente
enfrentadas e encaradas com sinceridade. Inteligentemente analisada e
enfrentada com acerto, cada nova experiência da situação humana converte-se
num bem para o caráter humano, uma aguçadora da humana inteligência. A
resignação que a Filosofia aceita e enfaticamente inculca é perceptiva e não
cega. Não considera Deus como um déspota glorificado, nem a vontade de Deus
como um decreto arbitrário. Aceitando o preceito de Platão dirigido a Aristóteles,
“Certifica-te de que o castigo infligido por Deus aos homens não é tirania, senão
correção e instrução”, usa a inteligência para descobrir o que é que no caráter
necessita dessa correção e o que é que na mentalidade necessita dessa
instrução. Recusa-se a vogar, fatalistamente, à mercê dos acontecimentos.
Rejeita a afirmativa de que estes são, necessariamente, a vontade de Deus e,
portanto, imutáveis ou não devem ser mudados.

Enquanto que, de um lado, repudia esse místico indiferentismo, de outro a


Filosofia repudia a auto-suficiência humanística, exemplificada nos que
desprezam a consecução interior do místico. Embora assinale os erros
intelectuais, éticos e práticos do misticismo, destaca com ênfase muito maior os
erros do materialismo enfatuado, perigosamente envaidecido das dramáticas
consecuções científicas. Enquanto aconselha a compreensão do que existe por
detrás do evento, ensina a tirar do íntimo a vontade e a força para suportar o que
não pode ser remediado.

A guerra e a crise mundiais desferiram golpes devastadores contra as crenças,


outrora vaidosas, de que o intelecto, sem o auxílio de nenhum poder superior e
de nenhuma luz mais divina, tem sabedoria suficiente para construir na terra uma
feliz utopia. Tanto a idéia mística entorpecente de deixar tudo a cargo de Deus,
quanto a arrogante idéia materialista de fazer tudo por intermédio do homem,
são extremos inaceitáveis. A Filosofia ensina que só na união de ambas e na
sua consequente modificação mútua se encontra a atitude correta. Advoga ao
máximo o exercício da vontade humana, a contínua aplicação dos
conhecimentos humanos, científicos e outros, à melhoria da vida em todas as
direções. Mas, ao mesmo tempo, procura compreender qual é a vontade divina
em relação a nós em cada situação e advoga a entrega dos resultados de todos
esses esforços à vontade superior. Desiste de toda ansiedade inútil acerca dos
resultados e, assim, conserva a paz interior, mas não abre mão dos esforços
capazes de produzir ou modificar esses resultados. Assinala que o problema de
fazer que trabalhem juntos, em harmonia, o preceito que nos ensina a entregar
tudo a Deus e a inteligência que nos ordena que afeiçoemos a vida pela vontade,
só poderá ser resolvido se mantivermos uma mentalidade flexível. A sua
aceitação da fatualidade da inteligência infinita, que impregna e governa assim
os eventos cósmicos como a existência humana, conduz a uma paz e a um
contentamento que poderão ser facilmente confundidos com a inércia ou a
indiferença, a covardia ou o debilitamento, a indolência ou o fatalismo. Pelo
contrário, reclama o esforço pessoal e inculca a responsabilidade pessoal; mas
diz também: “Não aplique esse esforço em nenhuma direção inútil, porque
votada à decepção, nem insensata, porque conduz à insatisfação”. Impõe limites
ao desejo e ensina a estultícia do excesso.

O corrosivo desassossego do apetite insaciável destrói toda a paz do espírito;


diz a Filosofia que devemos saber quando é preciso pôr-lhe fim, e que
precisamos praticar a abnegação necessária a fazê-lo. Toma o cuidado de
assinalar que a sabedoria de deixar passar e renunciar é, essencialmente, uma
sabedoria interna, que pode ou não ter consequências exteriores. Admite que o
passo final consiste em limitar os nossos desejos, deixar de seguir a tendência
comum e irrefletida de multiplicá-los interminavelmente mas, ao mesmo tempo,
mostra que essa admirável simplificação não significa que precisemos
necessariamente impor-nos o desconforto.

Uma atitude para com a vida de natureza tão negativa quanto a que propõe o
extremo ascetismo não satisfaz ao homem moderno. Sem embargo, as suas
necessidades espirituais não são menores, são até maiores que as do homem
medieval. Não será melhor que ele busque alguma coisa que esteja dentro do
seu alcance razoável, alguma coisa que o enalteça e exalte enquanto ele
continua trabalhando proveitosamente no mundo? Poderá viver com tanto
conforto e ser tão moderno quanto quiser, bastando-lhe estabelecer um
equilíbrio entre as necessidades modernas e as metas espirituais. A pobreza não
é a única porta aberta para a purificação. O melhor caminho recomenda uma
síntese seletiva do físico e do espiritual, uma prudente conciliação de tendências
até agora divergentes. Reconhece que o verdadeiro mal não está propriamente
nas posses físicas, senão no apego mental a elas. Compreende a importância
de pensamentos como este: “O homem é o que ele pensa em seu coração”.

Nem os lazeres e luxos dos ricos são necessariamente antiespirituais. Poderão


sê-lo, e o são na maioria das vezes, mas não é indispensável que o sejam. O
homem prudente deve acautelar-se contra os perigos da riqueza, sim, mas não
precisa, por isso, deixar de apreciar-lhes os valores! Nem todas as autoridades
sobre o misticismo hindu, o qual, segundo se supõe, sustenta o ponto de vista
contrário, o fazem. O Siva Samhita, antigo e respeitado texto gravado em folhas
de palmeiras, reza: “O dono de casa deve também exercitar-se na ioga, que as
suas riquezas e condições de vida não são obstáculo a isso; se estiver livre do
apego a elas, obterá os sinais do bom êxito”. A busca do conforto físico e o
desejo de acumular posses são necessidades naturais e não são más por si
mesmas. Só se tornam más quando se lhes permite que dominem o coração do
homem e lhe absorvam desproporcionadamente o tempo. Nesse caso, passado
algum tempo, as forças cármicas determinarão o restabelecimento compulsório
do equilíbrio perdido.

É digno de louvor, e não de censura, o esforço dos homens no sentido de


melhorarem a sua posição no mundo. O desejo e a procura de maiores
quantidades de posses terrenas são perfeitamente válidos. Não há nada de mal
nas coisas físicas por si mesmas. A ninguém se pedirá que se torne
desnecessariamente miserável em nome da autodisciplina intelectual, nem que
se submeta a degradações intoleráveis em nome da resignação espiritual. O
ideal filosófico do equilíbrio sadio o impede, ao passo que a sua exortação para
o auto-aprimoramento se opõe a isso. Esse ideal oferece uma visão mais plena,
mais bem equilibrada. Sujeita os desejos, mas recusa-se a fazer um fetiche da
ausência de conforto.

Mas adverte o homem de que a vida possui coisas mais belas, mais vitais e mais
duráveis. Se ele persistir na monomania das posses e na obsessão das
posições, perderá essas coisas mais belas. O mal só começa quando o homem
permite que as posses e posições lhe insensibilizem a mente, quando não
impede que elas lhe obstruam o propósito espiritual interior da sua vida sobre a
Terra. Buda talvez tenha chegado a extremos ao ensinar que até as coisas
materiais agradáveis da vida, postas em confronto com os seus antecedentes e
as suas consequências, eram na verdade desagradáveis e deviam, portanto, ser
evitadas. É evidente que precisamos simplificar a vida em algum ponto e
submetê-la, se quisermos ter paz algum dia, e também é evidente que, sendo
incessante, desequilibrada ou feita sem ética, a busca de posses deixa de ser
válida.

O mesmo se pode dizer do gosto pelo prazer sadio, da necessidade do


divertimento que relaxa e do desejo de um leve entretenimento. Todos são
naturais e corretos. Não há mal nenhum na satisfação dessas necessidades
humanas. À diferença do ascetismo extremado, a Filosofia não as despreza e, à
diferença do extremo materialismo, não lhes exagera o valor. Que mal haverá
nelas enquanto forem consideradas meros acessórios e não a principal
finalidade da vida, elementos secundários e não os principais? O homem precisa
delas quando lhe faltam os meios filosóficos para conservar a sanidade mental
e o equilíbrio.

Somente quando levadas ao excesso ou procuradas demais, quando se


transmudam em narcóticos para aliviar-lhe o trabalho de refletir sobre a vida,
quando lhe divertem a atenção das tragédias e aflições que deveriam preparar
tais reflexões, é que elas se tornam perigosas e o aproximam da mesma
insanidade e do mesmo desequilíbrio contra os quais deviam defendê-lo.
Quando isso acontece, o desejo esbraveja no coração do sibarita voluptuário e
a desarmonia lhe estraga a existência exterior. A única maneira, então, que ele
conhece de escapar é aumentar a pilha comburente de prazeres, que poderão
empurrá-lo para o vício puro e para a loucura nociva. Quando se dá ao prazer
um valor demasiado alto, a retribuição interior é inevitável: a felicidade durará
enquanto durar o prazer. Os hedonistas que só consagram os seus afetos a
coisas que se desfazem, escassamente cônscios da desolação interior e da fátua
incerteza das suas vidas douradas e envernizadas, não compreendem que o
lazer que poderia ser dedicado não só a conseguir a relaxação e o divertimento
necessários, mas também a cumprir a finalidade da encarnação e a lograr algum
entendimento, alguma disciplina e alguma paz, é literalmente malbaratado na
procura de prazeres ociosos ou sensuais. Mas a retribuição mais pesada surge
quando se encara a suprema Realidade como a suprema trivialidade.

Os tormentos de um mundo arremessado ao caos de uma grande guerra não


estavam longe de uma retribuição dessas. Para muitos homens e mulheres,
antes que ela arrebentasse, os valores de um propósito mais elevado,
praticamente, não existiam. Eles não acreditavam na Mente imortal, o que é
perfeitamente crível, mas acreditavam na Matéria perecível, o que é
metafisicamente incrível. Não compreendiam que, ao se aferrarem à realidade
da Matéria, estavam-se aferrando às mais ilusórias dentre as concepções do
homem. Consequentemente, meneavam os seus turíbulos diante de ídolos sem
valor. Uma concepção enganosa dessa natureza só poderia redundar numa
perigosa e dolorosa desilusão. Havia um esqueleto a sorrir nesse festim,
sacudindo, sarcástico, as mãos ósseas num gesto de advertência.

As escuras agonias que a vida é capaz de apresentar-nos, podem e devem ser


enfrentadas com uma tranquila confiança no poder que tem a alma de vencê-
las, psicologicamente, praticamente, ou de ambos os modos. Mas esse poder
precisa ser procurado, encontrado, crido e obedecido. Se conservarmos
prudentes, bons e corajosos os nossos pensamentos, ele nos abroquelará,
sempre interiormente e talvez exteriormente, contra as setas mais agudas da
vida. E isto é verdade quando elas nos são desferidas não só pelo áspero
destino, mas também pela maldade humana. Até nas mais negras situações
esperamos frequentemente pelo melhor. Pois esta, na realidade, é o eco tênue
da nossa compreensão da mensagem do eu superior, a saber, que a sua bem-
aventurança, e portanto o que há de melhor para nós, está sempre à nossa
espera. Há aí um paradoxo.

Encetamos a procura da felicidade interior quando sentimos a profunda


melancolia de descobrir a transitoriedade e a limitação implícitas em toda a
beleza e em todo o prazer da vida. Rematamo-la quando descobrimos a
profunda alegria da eterna formosura da alma implícita na própria melancolia.
Sofremos hoje tão-somente para sermos felizes amanhã. O sorriso tranquilo do
Eu Supremo deve ser conquistado pelo nosso empenho em abrir um caminho
através do vale das lágrimas derramadas. A nossa sabedoria mais profunda
confere a única serenidade duradoura e, no entanto, nasce no meio das mais
cruéis agonias. O indivíduo mais evoluído em qualquer comunidade é também o
mais feliz. Renunciou às atitudes passadas, afastou-se do ego e, no fim, tudo
deu certo. Entretanto, se se pudesse ler a crônica secreta dos seus nascimentos
pretéritos, a grande extensão dela inevitavelmente o destacaria como tendo
passado por uma completa experiência de angústias. Todas as aflições que
prestaram a sua valiosa contribuição ao desenvolvimento da consciência e à
expansão da inteligência foram, afinal, pela misericórdia da Natureza, totalmente
delidas da memória. Quando o ego apartado rompeu as cadeias, renunciou ao
isolamento e voltou ao sagrado pai, escondido dentro e atrás do seu próprio ser,
descobriu que fora, até então, ensinado pelo sofrimento apenas para poder, dali
por diante, ser ensinado pela bem-aventurança.
8
O Mal em Nosso Tempo

Os acontecimentos dos últimos decênios proporcionam, nada mais e nada


menos, do que um comentário visível às mensagens que profetas inspirados
como Jesus, Krishna e Buda tiveram o privilégio de transmitir. Os tempos sem
precedentes que vivemos provam tão-só, com fatos terríveis, o que esses
homens pregaram com palavras. Provam que a descrença religiosa e a
tendência materialista de toda uma geração, o duro ceticismo que lhes degradou
os valores e lhes pôs a nu os instintos, oferecem uma base demasiado insegura
para a vida humana.

O materialismo — e com essa palavra pretendemos designar não só a doutrina


abertamente confessada e grosseiramente óbvia que corre sob esse nome, mas
também as suas formas inconscientes e disfarçadas — tem sido a desgraça do
nosso tempo. A impressão total de todas as formas que ele assumiu — e elas
podem ser encontradas nas esferas científicas, políticas, educacionais, literárias,
artísticas, eclesiásticas e legais também — é horrível. O fim de tudo isso é a
figura aterradora e a capacidade vulcânica de destruição da bomba atômica. É
a consequência natural da crença na supremacia final do pensamento intelectual
levado aos seus extremos lógicos e não equilibrado pela intuição espiritual. Na
guerra, o mal humano sempre aparece em sua pior forma e os seus efeitos em
sua forma mais difundida. Com o descobrimento da bomba atômica, o caminho
que conduz à completa autodestruição de uma grande parte da civilização está
agora escancarado. Nada na história se compara a essa terrível situação.

Não basta compreender o trágico e, ao mesmo tempo, histórico significado


desses acontecimentos que sacodem o mundo. Precisamos também
compreender-lhes o significado religioso, metafísico e filosófico implícito. E,
como já ficou dito, isto não pode ser feito adequadamente se não projetarmos
sobre eles a luz de doutrinas, como a da inevitabilidade da evolução espiritual e
a da fatualidade da lei da recompensa. Pois sem elas é muito difícil explicar por
que a sociedade está como está. A situação psicológica criada pela crise e pela
guerra e que se expressa na trágica situação física, só pode ser
convenientemente compreendida à luz destas e outras verdades correlatas. Os
iníquos pensamentos e emoções, as más paixões e ações da humanidade
precisam quinhoar da responsabilidade. A sua civilização recebeu, sem dúvida,
as recompensas de um egoísmo míope, pois viu tantas coisas materiais, que
lutou por conseguir, bem como tantos ideais, que lutou por atingir, desmoronados
em suas mãos.

A maioria das pessoas presume que só o bem tem o direito de mostrar-se ativo
na terra. Portanto, a presença de tanto mal lhes desconcerta a mente. Parece
que esse mal, abundante demais e contínuo demais, não se ajusta
adequadamente a um plano de inspiração divina. O crime e a violência dos
últimos tempos, o horror e o choque da história recente levaram muita gente que
antes a ignorava a meditar sobre a questão do mal. Uma geração que ouviu uma
propaganda iníqua, que presenciou iníquas atrocidades e observou movimentos
inescrupulosos tendentes à dominação do mundo, teria de ter o cérebro muito
mole para não concluir que alguma influência maligna está operando nos
assuntos humanos e que forças malignas estão manifestando, no meio dessa
geração, as suas conturbadoras atividades. A existência — não menos que o
poder — do mal patenteou-se tão abertamente, e tão selvagemente, e tão
insistentemente aos seus olhos nos últimos tempos que aqueles que,
influenciados por extravagantes teorias otimistas, outrora fechavam os olhos
para ele, viram-se forçados a abri-los e a reconhecê-lo. Um ato assim, retardado
e perplexo, é penoso.

A concepção materialista do mal considerava-o como um subproduto dos meios


físicos e das circunstâncias temporárias, que seria corrigido pela simples
correção dessas coisas físicas. Mas o tipo de mal que tanto prevalece em nosso
tempo, glorifica a brutalidade por amor da própria brutalidade, justifica a
opressão por amor do opressor, exalta a cobiça, ridiculariza a religião e
escarnece da consciência, tanto pelo prazer que lhe proporcionam tais
atividades quanto pelas suas recompensas. Os homens que o praticam amam-
no tão intensamente quanto os santos amam a Deus. Já não se pode sustentar
sensatamente, como até aqui têm sustentado os materialistas dialéticos e
racionalistas, que as circunstâncias externas, sozinhas, são suficientes para
explicar o caráter desagradável dessas criaturas perniciosas. Evidencia-se, pelo
contrário, que a iniquidade da conduta humana se origina do fato de ser o mal
um elemento real nos seres humanos, independente do meio e das
circunstâncias humanas. É deplorável mas, infelizmente, é também exato que
esse elemento se faz valer com maior facilidade e maior frequência do que o
bem. A perversidade histórica da natureza humana, a sua constante inclinação
para o mal, desalenta o filantropo.

A Filosofia não encara o problema com indiferença, como alegou o colaborador


do Times de Londres que fez a crítica de The Wisdom of the Overself (A
Sabedoria do Eu Supremo), senão com seriedade. Nada que se escreveu
naquele livro levava a intenção de negar a horrível realidade do mal, a constante
atividade do mal, a terrível devastação que ele provocou na história humana e a
sua pavorosa realidade nas vidas humanas.
Que se permitisse à humanidade cair nas suas medonhas profundezas parece
indicar uma falta de bondade na divina Idéia do mundo. Os homens não devem
ser censurados por contestar a bondade divina e duvidar da divina sabedoria.
Eles fazem, frequentemente, a seguinte pergunta a si mesmos: Por que há de o
Poder Superior (que eles chamam Deus e que, na realidade científica, é a Mente
Universal), tão universalmente considerado como benéfico, permitir que esses
males e esses horrores ameacem a humanidade? Mas deveriam formular
também a si mesmos a pergunta seguinte, a saber, se a Idéia Universal poderia
ter realizado completamente o seu elevado propósito em relação à humanidade
sem permitir tais experiências? Se ela tenciona trazer toda entidade humana à
plenitude da autoconsciência moral, intelectual e espiritual, a esfera de
experiências, que a entidade deve poder percorrer com toda a liberdade, terá de
ser suficientemente ampla e, portanto, suficientemente contrastante, para atingir
a sua meta. Se se tivesse limitado essa esfera à ausência do mal, se se
houvessem restringido as espécies de experiência apenas ao que nós
conhecemos como o bem, teria sido impossível a plena consecução da
autoconsciência humana. Afinal de contas, isto é uma questão não só de moral,
mas também de conhecimento. Não há, com efeito, outro modo capaz de
propiciar à humanidade todas as condições necessárias ao desenvolvimento de
todas as suas faculdades. O simples fato de permitir a Mente Universal a
existência do mal deveria mostrar que este tem um lugar temporário, inevitável
ou utilitário, na economia das coisas.

Nenhum modo de vida consciente poderia ter sido inventado que proporcionasse
a felicidade perfeita e a bondade sem mistura e ensejasse, ao mesmo tempo, as
variadas experiências e os diversos estados necessários ao desenvolvimento
dos conhecimentos, da inteligência, do caráter e da espiritualidade do ser
humano. Se bem algumas facetas desse desenvolvimento pudessem ter sido
obtidas por uma monótona experiência unilateral, propiciando apenas o
aprazível desfrutar da vida, partes importantes da psique teriam ficado,
necessariamente, não tocadas por ela. Somente ministrando um curso de
experiências mutáveis, que palmilhassem um caminho mais amplo e mais
variado e também incluíssem os opostos do sofrimento e do mal, poderia
conseguir-se a plena e completa evolução do homem. A lembrança da treva
passada de ignorância lhe acentua a apreciação da luz atual do conhecimento.
O vívido contraste entre as duas condições torna-o muito mais consciente do
significado e do valor da condição superior. Sem a experiência de ambas para
se complementarem, ele não distinguiria o bem do mal, a bem-aventurança do
sofrimento, a realidade da aparência, a verdade da falsidade. Como se lhe
poderia, por exemplo, lograr a ampliação espiritual da consciência sem as
condições produtoras do sacrifício e da abnegação? O bem só se torna
significativo em contraste com o mal, que é, na realidade, a negação do bem. A
consciência do som como som precisa estar sempre acompanhada da
consciência do seu oposto e diferenciador, o silêncio. Não poderia existir
manifestação alguma de um universo sem esse jogo de contrários. Assim que o
Um se fez Dois, começou. Daí que o nascimento e a morte apareçam em toda
parte no universo, o prazer e a dor no homem!

Heráclito de Éfeso comentou judiciosamente que Homero errara ao dizer: “Oxalá


desaparecesse essa luta entre deuses e homens”, pois não vira que estava
realmente desejando a destruição do universo e que, se a sua prece fosse
atendida, todas as coisas teriam perecido. Todo biologista cujos estudos foram
além da superfície das coisas conhecidas sabe o que todo metafísico deveria
saber, isto é, que o processo do mundo, inevitavelmente, é uma atividade e uma
luta entre forças criativas e forças destrutivas. O cosmo não poderia estar
continuamente vivo se não estivesse também morrendo continuamente. A luta
dessas forças opostas é um eterno movimento, que se reflete no nascimento de
estrelas majestosas e na morte de minúsculas células. Somente um universo
estático e imóvel teria podido evitá-lo. Para que o homem não fosse um robô
mecânico, foi preciso que ele tivesse uma vontade livre, dentro dos limites
impostos pela sua natureza e pelo propósito universal. Foi preciso que se lhe
outorgasse o poder de escolha. E para que ele pudesse ter liberdade para
escolher o bem, era mister que também tivesse liberdade para escolher o mal.
Que ele agiria mal, que entraria em conflito com os seus semelhantes, e que
chegaria a contrapor a sua insensatez à sabedoria de Deus, estava previsto
desde o princípio: era, com efeito, uma decorrência inevitável do haver ele
iniciado a sua vida consciente prêsa da ignorância e do desejo. Através da
experiência, acabaria aprendendo a agir corretamente e essa fase escura da sua
carreira desapareceria. Somente pela experiência com o mal é que o valor do
bem poderia ser adequadamente compreendido.

Deus deu ao homem liberdade suficiente para elaborar o seu destino, e visto que
existem, ao mesmo tempo, o bem e o mal misturados em sua natureza, quando
o volume do mal assume proporções agigantadas e a sua força cresce, produz
inevitavelmente consequências como as que hoje o ameaçam. Entretanto, esta
não pode ser a única e bastante explicação da sua situação atual. Uma vez que
o seu livre arbítrio não pode operar no interior do vácuo, é preciso que haja outras
forças em ação dentro do seu meio, modificando-o, influenciando-o, e até, por
fim, dirigindo-o. Há de haver um tipo qualquer de modelo grosseiro no universo,
a que as suas próprias atividades, finalmente, se ajustarão. A menos que
topemos com algum vislumbre desse modelo, não seremos capazes de
compreender suficientemente por que tantos milhões de pessoas,
aparentemente boas e decentes, devam estar expostas ao sofrimento e às
aflições resultantes das perversas atividades de outros homens. Mais ainda,
quando a própria civilização está tão sombriamente ameaçada por tais
atividades.

Que o próprio livre arbítrio do homem foi o criador de tão grande parte dos males
e das aflições do mundo, é óbvio. Que com o seu aprimoramento moral essa
deplorável situação se aprimoraria é igualmente óbvio. Mas a própria situação
não poderia ter surgido senão pela permissão e dentro da concepção da Mente
Universal. Onde haverá uma liberdade mais do que parcial para o homem
quando, desde o começo, ele é obrigado a aceitar, sem possibilidades de
escolher, certa raça, certo país, determinada família, determinado status
econômico, um estado de saúde ou de doença e uma abundância ou uma falta
de energia, de intelecto, de vontade e de intuição? Dessa maneira, grande parte
do curso e uma parte do fim da sua vida são ditadas pela Natureza, pelo destino,
por Deus. Nenhuma entidade humana determinará o seu curso com inteira
liberdade. Nenhuma entidade humana se desviará do plano cósmico com
absoluta independência. A liberdade de todas as entidades humanas é limitada,
como é dependente o seu poder. O homem nunca possuiu, não possui agora e
nunca possuirá o livre arbítrio absoluto. Acima da sua própria vontade flutuante
está a inexorável vontade cósmica. Todo o seu desenvolvimento individual é
apenas parte do plano evolutivo para o próprio cosmo, e é controlado por esse
plano. Não cabe ao seu capricho interno nem ao acaso externo a decisão acerca
do resultado desse desenvolvimento.

Se todo o cosmo é uma emanação da Mente Divina, que, embora


misteriosamente transcendente, também é significativamente imanente, não
poderá haver força nem entidade dentro dele que não esteja fundamentalmente
arraigada na beneficência, na sabedoria e na serenidade da divindade. Ela pode
ter a sua origem obscurecida, pode parecer, pensar e agir iniquamente, mas só
o fará com a permissão e o consentimento de Deus. Por conseguinte, não é
apenas o emprego ignorante e iníquo, feito pelo homem, do seu livre arbítrio que
explica o mal humano e o sofrimento humano, mas também a própria Idéia
cósmica. E isto é alguma coisa que lhe foge ao controle e está além da operação
da sua vontade. Os males e a dor que lhe ensombram a existência foram
sancionados e incluídos no método do seu desenvolvimento interior.

Este é o mundo de Deus; não poderia ser de mais ninguém. Há de ser,


finalmente, uma expressão da sabedoria de Deus. Por conseguinte, quando
encontramos nele coisas e pessoas, acontecimentos e espetáculos que nos
afrontam porque são mais diabólicos do que divinos, a reação de instintiva
repugnância é bem humana, mas a deficiência está em nossa faculdade visual,
o desprazer está na limitação do nosso entendimento e não pode estar em
nenhum outro lugar. Em toda parte há sinais de que o poder divino trabalha em
nosso meio. Mas é claro que olhos que não estejam espiritualmente abertos não
poderão vê-los. Fora melhor que lastimássemos a presença da nossa cegueira
do que a ausência da atividade de Deus. O que podemos ver no estado atual do
mundo e na história passada depende do que somos dentro em nós mesmos.
Se formos moralmente tortuosos, consideraremos tortuosas também quase
todas as pessoas que conhecermos. Se não pudermos encontrar nenhum
significado mais profundo em nossa natureza, nenhum propósito mais alto em
nossas vidas, não veremos propósito nem significado no mundo que nos rodeia.
O descobrimento de um eu divino em nosso coração será um dedo apontado
para a presença de uma mente divina por detrás de todo o universo a que
pertencemos.

À medida que a entidade humana evolui em conhecimento e em consciência,


modifica a sua concepção do que é ou não é o mal, assim como modifica a sua
concepção do que é ou não é desejável. À proporção que vai colocando as
diversas peças do mosaico do padrão universal em seus lugares, de modo que
o todo se torne cada vez mais significativo, à proporção que, a princípio, controla
as emoções pessoais negativas e, mais tarde, delas se desfaz, à proporção que
desenvolve uma vida interior calma e impessoal, a sua própria atitude para com
os males da vida se modifica. A mudança se faz vagarosa e relutantemente mas,
no fim, a entidade já não é capaz de resistir-lhe à feitura. Pois na medida em que
deserta a pequenez do ego e responde à direção do eu superior em outros
assuntos, assim deve responder aqui. A sua modificação mais alta resulta do
descobrimento do seu divino eu, quando a relatividade do mal se torna
perfeitamente clara e a evanescência do ego no fundo de quadro da eternidade
se torna perfeitamente visível.

Se, apenas do ponto de vista mais alto possível, o mal é uma ilusão e o bem é o
oposto do mal, haverá quem pergunte se o próprio bem, nesse caso, não será
uma ilusão também. A resposta é que existem dois “bens”. Existe um bem
relativo, que, sendo o verdadeiro contrário do mal, é ilusório. Existe um bem
absoluto, que é uma qualidade do Poder Vital Uno e Infinito; esse é o verdadeiro
bem. O mal, por si mesmo, não tem existência eternamente real. Em nossa vida
humana comum encontramos contraditada essa afirmativa. Com a nossa
mentalidade humana comum achamo-la incrível. Para torná-la aceitável faz-se
mister uma vida de solidão quase tibetana. O que temos de aprender, conquanto
seja tão difícil de aceitar, é que o pensamento divino do universo não é apenas
perfeito e bom em seu primeiro e em seu último estádios, mas o é também em
seu estádio atual. Se vemos o mundo numa confusão de tragédias e sofrimentos,
de caos e de pecado, a confusão, na realidade, está em nossa visão, em nossa
maneira peculiar de encarar as coisas. Se for difícil compreender esse
enunciado, será proveitoso chegar à compreensão pelo confronto da experiência
da realidade do mal por que passa a humanidade com a experiência de um
pesadelo por que passa o homem adormecido. As medonhas ou odiosas figuras
que lhe surgem no pesadelo estão, indiscutivelmente, presentes diante dele, os
tormentos e terrores que o acometem são, de fato, muito reais para ele.
Entretanto, ao despertar, vê-os a todos como realmente são, reconhece-os como
eram no próprio pesadelo — simples idéias. Do ponto de vista prático imediato
não há dúvida de que o mal é um fator real, difundido, poderoso, mas limitado,
na existência humana. Sem embargo, do ponto de vista filosófico final, não é o
que parece ser. Existe, por certo. Mas a existência é relativa ao corpo humano
com o seu pensar finito. Não se pode negar-lhe a presença mas, ao mesmo
tempo, existe um fator mais alto por detrás dele, como existe um fator mais alto
por detrás do corpo humano.

Desde o princípio se atribuíram papéis tanto ao mal quanto ao sofrimento no


desenvolvimento humano. Eles não apareceram por acaso nem em virtude de
alguma “queda” inesperada. Não foram introduzidos, contra a vontade divina, por
algum poder satânico. O cair em pecado e o experimentar a dor fazem parte da
Idéia cósmica. Não são acidentes cósmicos nem erros cósmicos. A sabedoria
divina trabalha tanto neles quanto em tudo o mais. A falha está na percepção
humana, na impaciência humana, na limitação humana. É a sua qualidade e o
seu grau de consciência que fazem um homem perceber apenas o mal onde
outro percebe o mal e o bem, e compreende que o mal humano é a
consequência, ao mesmo tempo, do livre arbítrio humano e do custo da evolução
humana.

É difícil defender as crueldades da Natureza. A destruição que ocorre no


fervilhante reino animal, e que não desperta a atenção, sobrepuja a destruição
que se verifica no reino humano durante uma guerra mundial, que desperta a
atenção do mundo inteiro. Mas o nascimento de formas vivas em nosso plano
tem de ser seguido pela morte deles naquele plano. Esses dois pólos da
Natureza, o positivo e o negativo, são o corolário inevitável da manifestação
cósmica. Se o intelecto só pode justificar as crueldades da Natureza divorciando-
se de todas as mais belas emoções, não nos esqueçamos de que ele só lida
com o nível físico. A intuição, que opera em nível diferente, descobre que por
detrás de todas as formas exteriores há o espírito interior da Natureza e que uma
presença viva e amante se encontra além do pensamento do homem. Onde o
intelecto encara com amargura a Natureza, a intuição permanece suave e
serena. Conclui, e não pode deixar de fazê-lo, que, a existir tamanha bondade
no coração oculto da Natureza, deve de haver algum bom propósito na superfície
das coisas.

Todos os erros e todos os males aparentes têm um lugar racional na ordem


cósmica, tanto os sofrimentos quanto as alegrias. A ordem não é menos
divinamente controlada por causa da sua existência. Eles não são o resultado
de um acidente no funcionamento universal, nem são a consequência de um
equívoco no divino planejamento.

O cosmo é apreendido como totalidade única na consciência infinita da Mente


Universal. Esta última, em seu infinito conhecimento, previu todos os cursos
prováveis e todas as possíveis consequências da conduta humana. Mas também
sabe que a corrupta humanidade de hoje será, num distante amanhã, a
humanidade enobrecida. Estaríamos justificados em denunciar o pensamento
divino como inteiramente perverso e absolutamente impiedoso se o fim da
existência humana fosse como esta sua atual fase transitória, ou fosse um jogo
incerto e arriscado. Mas o fim é glorioso, a sua consecução, uma certeza, o
processo, meritório. Pois é um autêntico desdobramento, vindo de dentro, de
atributos, capacidades e estados de consciência, que refletem algo do divino.

Se existe tão-só um único princípio supremo de Ser no cosmo, se todas as coisas


e todas as criaturas emanaram dele, o que nas atividades desse cosmo
denominamos mal, e o que denominamos sofrimento, devem também ter
emanado dele. Mas sendo esse Princípio Supremo o único que sempre existiu,
disso se segue que o mal e o sofrimento em indivíduos são apenas aparências
transitórias, destinadas a viver intermitentemente e, depois, a dissipar-se de
todo. Não existe dor, nem mal, nem tribulação na própria essência eterna das
coisas, na unidade absoluta da vida, como observou com justeza Mary Baker
Eddy. Só quando aparecem os processos de manifestação do tempo e só
quando se diferenciam seres inumeráveis, é que a existência deles se torna
possível. Pois só então principia a dualidade dos contrários. Nada pode ser
trazido à realidade sem trazer, necessariamente, a possibilidade do seu
contrário. Só podemos formar idéia da luz formando, ao mesmo tempo, idéia da
escuridão. Se a luz possibilita a treva, o amor possibilita o ódio, a alegria
possibilita a dor e o bem possibilita o mal. Quando se permite aos seres
manifestados que possuam desejos e exercitem a vontade — como é preciso
que aconteça para que não sejam robôs — permite-se também, inevitavelmente,
a luta potencial com finalidades egoístas. Sempre haverá o mal num ponto
qualquer do cosmo manifestado, porque sempre haverá uma sombra na luz do
sol. Não havendo sol, não há sombra; não havendo bem, não há mal. Essas
coisas são pressupostas e negativamente presentes em seus contrários. Não
poderemos ter um cosmo manifestado se não tivermos também essa perpétua
relação entre eles.

Mas porque a mudança está impressa na manifestação, nunca é o mesmo mal


que vemos, senão uma nova ilustração dele. As suas velhas formas são
convertidas em bem pelo tempo e pela evolução. Assim, malgrado seu, o mal
aparente pode produzir uma mudança que redunde em bem real e o sofrimento
temporário pode, finalmente, resultar em felicidade estável. O princípio
obstrucionista, a força adversa, o peso morto da inércia, contra os quais
precisam lutar todos os esforços do homem para elevar-se, lá estão porque a
resistência a eles enseja a ocasião para desenvolver o bem. A luta para a qual
o homem é convocado, contra os elementos que lhe resistem, por prolongada
que seja, conduz ao seu progresso. Uma das tarefas atribuídas às chamadas
forças do mal consiste em experimentar-lhe a têmpera estorvando-lhe o
crescimento, em pôr-lhe à prova o caráter espicaçando-lhe os desejos e em
mostrá-lo como realmente é opondo-se aos seus esforços de
autodesenvolvimento. Que é este poder oponente, essa força adversa, afinal de
contas, senão o ego pessoal do homem, a parte inferior e mais baixa dele mesmo
com correspondências no mundo externo mas invisível? A sua presença na vida
dele o instiga a vencer ou a capitular. No primeiro caso, levou-o a trabalhar pelo
próprio aperfeiçoamento; no segundo, levou-o a reconhecer a própria fraqueza.
Mais cedo ou mais tarde, as consequências desagradáveis dessa fraqueza o
induzirão a atracar-se com ele e a desenvolver o seu poder de vontade. Esta é
uma parte da missão do mal, incitar o homem à própria destruição ou
constrangê-lo ao próprio aperfeiçoamento. Imediata e diretamente, poderá
fortalecê-lo ou debilitá-lo. Finalmente, só poderá robustecê-lo.

Até onde nos referimos ao mal humano, é inútil falar na onipotência do Poder
Supremo e, portanto, na sua capacidade de abolir de golpe esse mal. Não se
poderia ter concedido ao homem alguma liberdade de opção sem lhe conceder,
ao mesmo tempo, alguma liberdade para proceder iniquamente, se se
determinasse a fazê-lo. Toda a idéia da evolução humana teria sido inútil se ele
não devesse ser outra coisa senão um autômato escravizado, totalmente
despojado da capacidade de autodeterminação. Na medida em que ele goza de
liberdade, na medida em que o Poder Supremo renunciou à própria onipotência
no indivíduo, mas não no cosmo, limitou necessariamente a própria vontade em
aparência, mas não em realidade.

A noção teológica de que existe uma dualidade fundamental do bem e do mal


correndo à volta do tortuoso padrão do universo e através da emaranhada
narrativa da História, não é certa nem errada; precisa ser interpretada
corretamente. A Filosofia oferece tal interpretação. Não sustenta a existência de
um poder satânico co-igual ao poder divino. Sustenta que Deus não tem nenhum
rival independente e igual. A noção paralela é que o mundo caiu numa aflitiva
confusão, que a obra de Deus tem sido perigosamente sabotada por Satanás, e
que a confusão só pode ser endireitada e o perigo sobrepujado se o homem
acudir em auxílio de Deus. A Sabedoria Infinita e o Poder Infinito caíram,
efetivamente, muito baixo se de fato estiverem premidos por essa necessidade.
A presunção humana atinge o nível da fantasia absoluta ou de coisa ainda pior
tornando-se espiritualmente arrogante ao julgar-se chamada a acorrer “em
auxílio de Deus”. A Infinita Inteligência é também o Infinito Poder. Não estaria à
altura de si mesma se precisasse da assistência de uma criatura finita como o
mofino homem em sua obra cósmica! A única coisa que o homem pode oferecer
é a harmonia do seu propósito com o propósito universal. Mas isto seria em seu
próprio benefício, não em benefício de Deus, como será em sua própria perda,
se não o oferecer.

Não será mais sensato acreditar que a Mente Universal continua a ser o que
sempre foi e que a história do planeta assumiria uma aparência muito diversa se
a pudéssemos ver sem as limitações das nossas finitas percepções e dos nossos
finitos entendimentos? É humano desejar que certas coisas aconteçam e que
certos objetivos se realizem. Deus, entretanto, não é humano. O Ser Infinito não
tem desejos, não tem necessidades e não tem propósitos. Quando estes
parecem existir existem, de fato, para outros. Não atribuamos as nossas
concepções finitas ao Ser Infinito nem as nossas qualidades humanas ao Poder
Absoluto.

O conceito filosófico do mal, muitas vezes, é rejeitado com excessiva


precipitação porque é estudado com pressa excessiva. Ele não será
convenientemente compreendido enquanto não se compreender o seu caráter
duplo. Admite prontamente uma atividade real, disfarçada e difundida, de forças
malignas na história humana. Reconhece-lhes a oposição à evolução espiritual
da humanidade. Mas assevera também que essa atividade é limitada e que ainda
deixa sem explicação a natureza final do mal. Diz que todo mal será, no fim,
obrigado a servir aos propósitos do bem. O primeiro tem apenas uma vida
efêmera; o segundo, uma vida eterna. Se pudermos altear-nos ao nível do Real,
já não seremos capazes de perceber, por si mesmo, o mal transitório.
Percebemo-lo, então, contra um fundo de quadro do bem final. Porque temos
alguma coisa da Mente Universal no mais profundo de nós mesmos, uma visão
adequada do problema terá de incluir ambos os pontos de vista. Existe um bem
relativo e existe um mal relativo, sendo eles contrários necessários. Não existe,
porém, o mal final; só existe o bem final.

Fizemos Progressos?
Se lançarmos a vista para a cena histórica, talvez nos sintamos tentados a negar
que a moral humana tenha realizado algum progresso, e a afirmar que o mal
humano continua totalmente incurável. No que concerne ao caráter, melhorou
ou piorou a humanidade? Purificou-se, mental e emocionalmente, por intermédio
da guerra? Que foi o que ela aprendeu com a calamidade nacional sem
precedentes e com as aflições pessoais? Existirão indícios, em algum lugar
qualquer, de que a bondade está substituindo a maldade? Será mais difícil
manter a integridade moral no mundo do após-guerra do que o era nos dias que
antecederam a guerra? Porventura o fluxo da experiência não operou mudanças
no coração do homem, não estimulou uma duradoura boa vontade entre o
homem e o seu irmão? O mais horrível período da História acaso nada ensinou
sobre o significado espiritual da vida? À medida que a parada da vida
contemporânea desfila diante de olhos cogitativos, essas perguntas se
formulam, insistentemente. Só poderemos responder a elas ventilando diversas
outras perguntas, igualmente difíceis.

O homem não evolve passando calmamente, numa linha ascendente direta, de


um ponto inferior para um ponto superior. Evolve arrastando-se ao longo de um
caminho tortuoso e espiralado, que sobe e desce e dá voltas em torno de si
mesmo. O curso que segue o seu progresso espiritual, mental e moral raras
vezes é direto, é quase sempre ziguezagueante. Não existe na História o
progresso em linha reta. Efetua-se o desenvolvimento através de uma espiral de
subidas e descidas finalmente ascendente. Historicamente, é como a maré,
cujas águas fluem apenas para refluir mais tarde. Difere, porém, de todas as
marés reais visto que, a cada fluxo que avança, toca um ponto além do ponto
máximo do fluxo anterior e, a cada refluxo, não volta tanto quanto no refluxo
anterior. O ciclo parece girar sobre si mesmo mas é, na realidade, uma espiral
ascendente.

Quando essa concepção de pitoresco avanço da vida celular ao ser celestial é


admitida, pela primeira vez, de bom grado, pela mente, propendemos a limitar a
nossa compreensão apenas a essa parte do curso da vida, pois cada uma das
fases do desenvolvimento é finalmente seguida de sua fase complementar de
desintegração e colapso. Em resumo, existe o progresso de um modo geral, mas
é intermitente e é o resultado total de uma longa série de triunfos e reveses. Há
um momento em que ele atinge um ponto crítico, quando a gloriosa meta que
atrai as suas criaturas se revela um abismo, onde elas finalmente se precipitam.
A despeito desse retrocesso periódico, a jornada espiritual da humanidade é
essencialmente progressiva. Cada subida do arco cíclico da evolução é mais alta
que a anterior.

Todos os seus futuros desenvolvimentos jazem escondidos na célula original.


Todo o seu crescimento físico e espiritual através dos séculos, na realidade, é
mais um desdobrar-se do que um evolver. Não obstante, isto só é verdadeiro em
relação às características principais do seu curso vital. Quanto ao resto, há uma
espécie de incerteza e, portanto, uma espécie de liberdade.

O animal obedece, sem hesitar, aos seus instintos físicos, em parte porque não
o perturbam as dúvidas e indagações da razão e, em parte, porque ainda se
acha intelectualmente não individualizado. A Natureza guia-lhe os instintos, e
estes são habitualmente corretos. Mas o homem se encontra em situação
diferente. Está desenvolvendo a faculdade da razão e também está-se
individualizando. Na medida em que isso acontece, perde a orientação da
Natureza e vê-se forçado a depender de si mesmo. Move-se no meio de
nevoentas incertezas e age de acordo com inspirações semicegas, com
consequências que, às vezes, se revelam favoráveis, mas que, frequentemente,
não o são. Por isso caminha pela vida com passos trôpegos, incapaz de ver
claramente, em determinados períodos, para onde se dirige.

Para refletirmos corretamente sobre o assunto, é mister esclarecer o significado


do termo “progresso”. Durante muito tempo, a nossa equivocada e fácil aceitação
das tolices tradicionais lhe emprestou uma acepção errônea ou contraditória. O
retrocesso imposto à sociedade humana pela guerra e por suas consequências
destruiu noções tolas de progresso contínuo, que tanta gente presunçosa
costumava alimentar. Essa gente foi amargamente castigada por seu falaz
otimismo superficial. À proporção que a civilização materialista caminhava de
maneira aparentemente indefinida, para um triunfo cada vez maior, os homens
entraram a duvidar de todas as verdades espirituais que haviam aprendido. Mas
como o sabem agora todos os observadores, a civilização caminhou, na verdade,
para o desastre. Pois não basta estarmos em movimento; precisamos saber para
onde vamos! Porventura não lemos algures “Os que caminham às cegas
perecerão?” Podemos agora deter-nos, penitentes, e confessar que fomos
loucos chegando tão longe e encontrando tão pouco.

A fuga das dificuldades do após-guerra não se efetuará encontrando posições


intermediárias entre pontos extremos, senão procurando novas posições de
preferência às antigas. A sociedade moderna terá de tomar as decisões finais e
irrevogáveis no que respeita à sua direção. Terá de escolher entre aferrar-se
tenazmente ao ego materialista e animalesco, como antes, e desatar-se dele.
Dessa escolha depende o seu destino. A sua adolescência espiritual precisa
terminar, como já terminou, e tão dramaticamente, a sua adolescência
tecnológica.

Darwin e Spencer fizeram rolar a bola da teoria evolucionista com tamanho


entusiasmo que poucos departamentos do pensamento escaparam ao contacto
com a doutrina. Mais tarde, até líderes ou pensadores religiosos jubilaram, em
certos momentos, com a lei do progresso inevitável. Não hesitaram sequer em
fazer que o Poder Absoluto progredisse interminavelmente a par com a sua
criação! Com um otimismo extravagante, quase bêbedo, que alienava os mais
profundamente ponderados, declararam que Deus, o homem e o universo
caminhavam todos para a perfeição! A luta darwiniana pela existência é
verdadeira em relação ao reino animal e ao reino humano primitivo, mas é
apenas meia verdade. O propósito espiritual que inspira essa luta e lhe orienta o
curso é a meia verdade complementar, que precisa ser acrescentada pela mente
humana se esta não quiser iludir-se e cair num materialismo sem esperanças.
Pois a grandiosa evolução da consciência, que se encontra finalmente por detrás
de toda essa evolução de formas, enobrece a visão mundial onde a outra se
limita a degradá-la. O conceito da evolução precisa ser ampliado, aprimorado e
definido.

Não confundamos evolução com progresso. A primeira é um fato permanente da


Natureza, o segundo é um fenômeno temporário na história humana.

Com todas as suas maravilhosas máquinas e substâncias químicas, a Ciência


ainda não solucionou os velhos enigmas da luz e da vida. Descobriu muita coisa
sobre as suas operações e os seus mecanismos, mas quase nada sobre a sua
natureza e a sua essência. Bem se poderia perguntar, por exemplo, aos
materialistas darwinianos como foi possível, alguma vez, o aparecimento de
entidades vivas neste planeta, quando a sua própria ciência afirma que ele teve
um começo tão ígneo, a uma temperatura que esterilizaria todas as células e
germes potenciais de vida que porventura nele existissem. A Filosofia sempre
proclamou o fato de que não existe matéria morta em parte alguma deste cosmo.
Só existe radiância viva, energia pulsante, inspirada e controlada pela mente
inerente e expressando, em toda parte, o ciclo de vida evolutiva, de movimento
de uma forma inferior para uma forma superior e por circuitos em forma de
espiral, de um grau inferior de consciência, inteligência e caráter, para um grau
superior.

Se se perguntar por que o princípio de evolução do caminho espiralado foi


estabelecido pela sabedoria infinita, que se encontra por detrás do universo, a
resposta é que de nenhum outro modo teriam podido as entidades
experimentadas conhecer tão rica variedade de experiências. Ao traçarem o seu
curso circular, caminham de uma direção para a direção diametralmente oposta,
passando por todas as diferentes regiões que existem entre ambas. Caminham
de contraste em contraste, ganhando e perdendo, do verão para o inverno, do
dia para a noite, e assim por diante, movidas por uma lei eterna, que existe tanto
fora quanto dentro delas. O anseio de mudança principia a crescer-lhes no íntimo
até quando a experiência é feliz, se for tão prolongada que se torne monótona.
Isso também explica por que as entidades experimentadas recapitulam formas
anteriores da sua experiência, posto que breve e consisamente. Pois ao voltar
sobre si mesmo, o caminho espiralado precisa repetir-se. E essa repetição não
é apenas física, como no embrião que se desenvolve no ventre materno, é
também mental, como nos primeiros vinte e oito anos de cada reencarnação.

O desejo de felicidade é universal, mas a concepção da felicidade não o é. Todas


as criaturas quinhoam do primeiro, mas por que diferem acerca da segunda? Por
que não surge, espontaneamente, em suas mentes, o mesmo significado
quando ouvem essa palavra? A resposta é fornecida pela doutrina da evolução
psíquica através de repetidas encarnações. Elas diferem umas das outras em
extensão de experiência e capacidades inatas (e, portanto, em suas concepções
e atitudes) porque se encontram em níveis diferentes de vida evolutiva. As
grosseiramente materialistas estão num nível inferior e só podem encontrar
satisfações transitórias em coisas grosseiramente tangíveis. As mais apuradas
acham-se num nível mais elevado e incluíram, na sua concepção da felicidade,
coisas puramente intelectuais ou esteticamente emocionais. Existe um nível
ainda mais alto, em que um número menor de homens e mulheres vê nos
conseguimentos espirituais as mais preciosas, as mais desejáveis e as mais
duradouras formas de satisfação.

Se olharmos apenas para os últimos trinta anos da história da humanidade,


poderemos perguntar a nós mesmos se a evolução se aplica apenas à sua vida
intelectual e física; se, no que concerne à vida moral e espiritual, a doutrina nada
mais é do que um faz-de-conta. A menos de exprimirmos com maior exatidão o
nosso significado do termo, será enganoso adiantar que o mundo revelou ou não
revelou progresso. Os ensaios de Macaulay revelam um extremo otimismo a
propósito do milênio que a Ciência, segundo se supunha, traria à nossa
civilização. Mas Matthew Arnold, analisando o desenvolvimento da mesma
civilização no mesmo período, escreveu sobre ele com o coração conturbado.
Ambos estavam mais ou menos certos de acordo com os seus respectivos
pontos de vista, pois cada qual tinha em mente um gênero diferente de
progresso. O primeiro via o melhoramento físico e logicamente intelectual, e só
se interessava por ele, ao passo que o segundo tinha em mente o melhoramento
moral e intuitivamente intelectual.

É difícil reconhecer o lento enobrecimento do homem se examinarmos apenas


um período limitado. Em certos casos, com efeito, temos visto o processo
exatamente contrário — a sua repentina brutalização — em nosso próprio tempo.
Podemos, portanto, perguntar a nós mesmos se temos tanta certeza quanto
tínhamos outrora de haver progredido. A resposta é evidente em toda parte. As
máquinas e as substâncias químicas progrediram, mas a moral e as maneiras,
não. As habilidades técnicas deixaram para trás o caráter. A cada geração que
passa, pioramos no tocante à fé, à espiritualidade e à reverência pelo poder
superior, porém melhoramos no que tange à capacidade de raciocinar e à
informação mental.

Se tantos sinais exteriores revelam uma tendência, não para a paz e para a
espiritualidade, mas para novos choques por causa de posses materiais e de
poder exterior, é precisamente através desses choques e dos resultados
educativos deles decorrentes que acabaremos passando para a compreensão,
a paz e a espiritualidade. Mas o processo terá de ser lento. Os erros praticados
por um carpinteiro prontamente se revelam em seu trabalho, quer na aparência,
quer no uso. Mas os erros cometidos na conduta da vida podem ser não só
seguidos de resultados muito mais demorados, como também podem ser muito
mais difíceis de se reconhecerem. Isto porque o trabalho verdadeiro do
carpinteiro é julgado pelos sentidos, ao passo que a verdadeira compreensão do
ser humano é aferida pela inteligência. E na evolução do homem, os sentidos
chegaram a um estado de maior desenvolvimento do que a inteligência. Daí que
a experiência, por si só, não traga, como seu fruto, a sabedoria imediata. Só
depois que ela for bem e sinceramente ponderada, bem perscrutada, ou
profundamente intuída de uma forma impessoal, aparece o fruto. Isso demanda
tempo e, todavia, tanto supõe quanto provoca o crescimento.

Aqui está a resposta aos que deploram o fato de que os homens parecem nada
aprender da História, seja ela a sua história, seja a história dos outros, ou, o que
é pior ainda, de que eles aprendem com ela lições inteiramente falsas. O tempo
amadurece alguns frutos, apodrece outros, dá maior sabedoria a alguns homens,
porém maior insensatez a outros. Iludidos pelo egoísmo e cegos pela paixão, há
os que tiram da experiência o sentido exatamente oposto àquele que ela devia
fornecer e, assim, passam a agir iniquamente. Mas o Eu Supremo é
supremamente paciente. Sabe que soará a hora em que a própria experiência
nova com os seus erros e a consequente retribuição, os seus sofrimentos e
consequentes desesperos, se deparará a cada homem com a insistente
exigência de que ele a compreenda. Se a ordem divina do universo lhe ministra
o tempo e os eventos de que ele precisa para crescer, isto não significa que só
poderá contar com eles; uma estrada nessas condições seria demasiado longa,
demasiado tortuosa e demasiado incerta. Para ajudá-lo a encurtar a estrada e
torná-la mais segura e aprazível, ele é levado a acrescentar-lhe o uso correto do
raciocínio, o humilde seguimento de mestres espirituais, e o atendimento
adequado da intuição.

A jornada terrena lhe propicia parte das condições indispensáveis ao


desdobramento dos seus atributos e capacidades latentes. Ele passa
gradualmente da ignorância, através da experiência, ao conhecimento, do
desejo, através do sofrimento, à paz. Os mergulhos no mal e na sombra lhe
proporcionam a oposição por meio da qual pode exercitar a sua vontade para o
bem e aspirar à consciência da verdade. Existe um poder que lhe é inerente e é
utilizado nele pela Natureza, que favorece, ao mesmo tempo, o seu crescimento
mental e o aprimoramento moral da sua espécie. A vida é uma progressão
ordenada, ainda que interrompida, do infinitesimal para o infinito, não só na luta
pela existência física, mas também no desenvolvimento do talento criativo, no
desdobramento da capacidade mental e da consciência, e na percepção do ser
interior.

Os que desejam antecipar esse avanço evolutivo devem fazer o esforço


necessário e sujeitar-se à disciplina exigida com espírito jovial e bem disposto.
Pois a mesma verdade que antigamente nos punia quando desdenhada e
rejeitada, agora nos abençoa quando bem recebida. O mesmo mal que a
princípio nos tenta, mais tarde nos põe à prova. A sua revelação do que somos,
quando ligados às suas consequências, finalmente nos move a buscar o bem.
Ele opera examinando o nosso direito ao supremo tesouro da Vida, a consciência
do Eu Supremo, que tem raízes no divino, tentando o caráter e a fé ou testando
o motivo e a bondade; permite-nos, assim, estabelecer esse direito. Dessarte,
no fim, ele é um instrumento do propósito cósmico para nós e não, como tantas
vezes supomos, o simples inimigo desse propósito. A nossa percepção humana
da vida que nos cerca é limitada e estreita, a nossa concepção dela imperfeita e
eivada de preconceitos. Vemo-la como vemos a parte de baixo de um tapete
enquanto está sendo feito, quando ainda é uma massa informe com um padrão
fragmentário, dificilmente discernível por estar invertido.

Seja qual for a catástrofe que lese a vida física do homem contemporâneo, o
avanço da sua vida espiritual é pré-ordenado e inevitável. Se nos basta observar
o curso sangrento e cúpido da História para compreender que o mal, no homem,
é tão inato quanto o bem, não obstante é verdade que enquanto um cresce em
sentido ascensional, o outro se estiola e acabará caindo ao chão. Durante a
guerra, aqueles que tinham o espírito filosófico foram capazes de conservar-se
esperançosos, sabedores de que a corda do carma estava-se acabando e de
que o mal encarnado, por fim, se acabaria destruindo. A mente poderá resistir
com maior firmeza durante as convulsões contemporâneas, e até impedir que
elas lhe causem dano buscando, e apropriando-se dele pela contemplação da
Idéia divina por detrás das coisas. Isto lhe dará a fé em que a lei moral terá de
prevalecer sempre porque a evolução foi ordenada por Deus. No meio da treva
e do tumulto vastíssimos da guerra, ainda havia a segurança de que as forças
que trabalham apenas para o mal, acabam trabalhando para a sua própria
destruição e que o triunfo do mal é sempre passageiro. Em sua ignorância
metafísica, os líderes do mal não compreenderam as forças da evolução e do
destino, que também estavam trabalhando, não perceberam que eles seriam os
herdeiros sofredores dos seus próprios feitos. As calamidades que acarretaram
para outras pessoas tornaram-se maldições que caíram sobre as suas cabeças.
Não se advertiram de que toda forma de malfeitoria contém em si mesma o
germe da sua reação de retribuição.

Vivemos numa época em que os poderes do mal têm envidado os maiores


esforços para conquistar a dominação do mundo. Vivemos também o suficiente
para assistir ao colossal fracasso da primeira fase desses esforços. A hora da
punição só pode ser adiada; não pode ser burlada nem evitada. “Nem nos céus,
nem no meio do mar, nem se te esconderes nas cavernas das montanhas,
encontrarás um lugar na Terra em que poderás escapar aos frutos de tua má
ação”. Assim falou Buda e a História não se cansa de corroborar-lhe as palavras.
Podemos ver no resultado da primeira fase não só uma impressionante
demonstração do triunfo final do bem sobre o mal, mas também uma
confirmação contemporânea da afirmação feita em The Wisdom of the Overself
(A Sabedoria do Eu Superior) de que existem limites definidos impostos à
atividade do mal.

Diz o ateísta que, embora exista, Deus é impotente para deter o surgimento do
mal ou tão desapiedado que lhe permite a continuação. Diz o filósofo que Deus
existe, possui poder e até demonstra misericórdia, mas essas coisas são
canalizadas através de um universo ordenadamente regulado. Diz ele também
que a permissão com que operam as forças das trevas tem um cordão de
comprimento limitado ligado a elas e que, ao término do seu ciclo, são destruídas
pela retribuição ou se destroem a si próprias.

O Nosso Dever Prático


Se alguém objetar que essa concepção da sanção divina do mal enerva a
vontade para resistir-lhe, responda-se que isso, se se encarar o assunto apenas
do ponto de vista do ego pessoal cego, talvez pareça realmente ser assim. Mas
se se encarar do ponto de vista da alma humana esclarecida, que ama a
verdade, já não parecerá que é assim. A própria verdade pode ser
perigosamente mal aplicada. Isso acontece quando as doutrinas precedentes
são invocadas, por uma lógica falsa, para liberar o homem da responsabilidade
moral. Muito embora elas tentem explicar a circunstância em que os homens
pensam erradamente e agem perversamente, não procuraram justificá-la. Quem
quer que chegue à conclusão de que não é responsável e, portanto, não é
punível, chegaria a uma conclusão antifilosófica, desorientadora e perigosa.
Nada do que aqui está escrito é uma defesa da dócil sujeição ao mal. Nada
coloca o assassino no mesmo nível do santo. Quem quer que ainda pense assim
limitou-se a ler, mas não estudou, estas palavras. O triunfo do mal é apenas um
triunfo aparente, pois o mal é um poder limitado. Se o pecador fosse obrigado a
pecar pelo divino plano ou pela vontade divina, se ele, consequentemente,
viesse a pensar que poderia perpetrar qualquer crime porque o crime é ordenado
por Deus, os fundamentos da moral se desmoronariam e tornar-se-ia ilusória a
crença de que temos liberdade para escolher entre a retidão e a prática do mal.
Isto não seria consentâneo com os ensinamentos éticos de todos os grandes
profetas.

Conquanto no nível da suprema realidade e de acordo com o ponto de vista


dessa mesma realidade, a sabedoria e o amor infinitos imperem soberanos, se
descermos ao nível e ao ponto de vista do mundo fenomenal, somos forçados a
admitir a existência de entidades malignas e forças hostis, que se alimentam do
ódio e da malfeitoria, da falsidade e do mal. Estamos aqui apenas no mundo da
aparência, sim! mas para criaturas cujas percepções se limitam a esse mundo,
estas são terríveis realidades, cujas interferências precisamos combater e a
cujas solicitações devemos resistir.

A Filosofia não nega a existência do mal, apenas a sua absolutez. A ética


filosófica sempre se opõe a ele mas, ao mesmo tempo, lhe assinala a
relatividade. Nunca estamos, em momento algum, sob a necessidade de fazer o
mal e só em certos momentos podemos deixar que ele seja praticado contra nós.
E quando o conhecimento filosófico nos ensina que o mal é uma forma de erro,
procuramos, inevitavelmente, fazer sempre o bem, por mais lamentavelmente
que possamos falhar de vez em quando. É um erro imaginar que, por ser tudo
perfeito na Mente Universal, tudo é consequentemente perfeito para os seres
humanos. Para a sabedoria divina, o mal no movimento universal é algo que flui
da própria natureza da existência separativa, pois isso toma, finalmente, a forma
da auto-afirmação agressiva. O homem que se eleva a esse entendimento não
se isenta, por essa razão, das suas responsabilidades humanas, nem se lhe
outorga permissão para proclamar que todo acontecimento é igualmente
proveniente da vontade divina, ou para renunciar ao seu dever pessoal de resistir
ao mal mental. Porque se diz que o mal no homem se deve à sua ignorância e
ao consequente mau emprego de forças que por si mesmas não são más, como
o intelecto, a energia e a emoção, não nos deixemos iludir, inferindo daí que a
presença do mal, consequentemente, deve ser negada. Pelo contrário, por se
tratar de um elemento que transforma a vida numa arena de intérmino conflito,
deve ser especificamente reconhecido, enfrentado e combatido. Não é uma
contradição lutar vigorosa e incessantemente contra o mal na vida prática e, ao
mesmo tempo, reconhecer filosoficamente a parte que ele desempenha sem o
saber, na Idéia do mundo.

Um homem pode não chegar a compreender por que as coisas devem ser como
são; talvez lhe seja preciso deixar o enigma não solucionado; mas isso não
interfere, necessariamente, na sua atitude prática. Desenvolvem-se os seus
músculos morais todas as vezes em que ele resiste ao mal e o vence. A Filosofia
não estimula o malfeitor a persistir em seu curso mal orientado. Pelo contrário,
adverte-o de que o sofrimento o espera e de que não conhecerá a paz enquanto
não se arrepender. O reconhecimento da vontade divina por detrás das coisas
não conduz, nem se deve permitir que conduza, quem quer que seja a uma
atitude irresponsável para com a vida nem a uma conduta letárgica. Quando
pensamentos destrutivos oprimem os sentimentos de um homem e lhe obcecam
a mente a ponto de torná-lo nocivo aos seus semelhantes, corre à sociedade a
obrigação de tomar medidas preventivas contra ele. A concepção pessimista que
sufoca a iniciativa, aquiesce na imoralidade e induz homens atormentados a se
contentarem com o seu fado, pode servir para confirmar-lhes os atormentadores
em suas malfeitorias. Dessa maneira, fomentará o crime e aumentará o mal do
mundo.

A atitude da resignação fatalista diante dos maus eventos por se acreditar que
sejam a expressão da vontade de Deus é, às vezes, uma atitude heróica e,
outras, covarde, às vezes uma atitude sábia e, outras, insensata. Um julgamento
adequado exigiria um conhecimento não só dos fatores invisíveis, mas também
dos fatores visíveis envolvidos em cada caso particular. A atribuição à vontade
de Deus não transfere, de maneira alguma, a responsabilidade que pertence
propriamente ao esforço humano. O erro aqui está em fazer do homem o agente
e atirar a responsabilidade dos atos aos ombros de Deus. Isso nasce de uma
confusão de pensamento. Só depois que estudamos o mal pelos prismas
combinados da Religião, da Metafísica e do Misticismo; só depois que a Filosofia
ilumina essa confusão com a sua análise penetrante, podemos realmente ter
idéias claras a respeito do assunto. Ao cabo de tudo, ela aconselha o aspirante
a aceitar o mal metafisicamente, mas resistir-lhe praticamente. É preciso que se
faça o primeiro pela origem divina do cosmo, e o segundo, pelo estado imperfeito
da humanidade. Do ponto de vista prático não há outra alternativa senão ver o
mal como mal, ou como ignorância, e tratá-lo como tal. A atitude que ignorasse
o mal nos homens e lhes coonestasse as iniquidades simulando uma grande
caridade angélica, é antifilosófica. Posto que não menos caridosa, a Filosofia
não compra as suas virtudes perdendo o equilíbrio e fechando um olho. Prefere
manter-se sobre as duas pernas e conservar os olhos abertos. Reconhece tanto
o bem quanto o mal nos homens como partes do mesmo quadro. E porque
compreende, não condena.
Na esfera da conduta, o mal não é uma ilusão metafísica, é um fato prático.
Encontramo-lo aqui, em nosso meio, todos os dias e temos de enfrentá-lo da
melhor maneira possível. Não podemos congraçar-nos e muito menos colaborar
com ele. Precisamos desempenhar a nossa parte no interminável conflito secular
travado entre ele e os homens. É preciso lembrarmos sempre que a
reconciliação metafísica com a presença do mal não equivale à resignação
prática diante dele. Vemos que se trata de um acompanhamento inevitável das
primeiras fases da personalidade no universo, mas devemos ver também que é
apenas um acompanhamento temporário. Ele pode estar lá, mas nem por isso
havemos mister ajudá-lo nem prestar-lhe vassalagem. Se lhe compreendermos
a limitação, ele não abalará a nossa fé nem a nossa coragem.

São, portanto, copiosas as razões por que os aspirantes a filósofos, assim como
os leigos, devem trabalhar por vencer o mal e por elevar o caráter da
humanidade. É verdade que a prática da não-resistência pode surpreender de
tal maneira o malfeitor que o dissuada da sua perversa atitude. Isso seria
esplêndido. Mas só aconteceria em certos casos. Na maioria deles tenderia a
produzir idêntico efeito sobre a sua atitude interior, a consciência, mas isso seria
muito pouco e totalmente subconsciente.

O enfoque convencional do problema da guerra talvez tenha de ser


reexaminado. Às suas causas psicológicas terá de atribuir-se maior importância
e a sua conexão com a matança de animais, levada a efeito pelo homem, terá
de ser estudada à luz da lei da recompensa. Foi dito em The Wisdom of the
Overself que a forma mais excessiva do mal animalesco está sendo trazida,
como espuma, à superfície, na época presente, a fim de ser removida com maior
facilidade. Todas as tendências egoístas para matar, a violência e a cupidez, o
ódio e o desprezo, a cólera e a suspeita, o ressentimento e a vingança, que
tiveram as suas piores manifestações nas duas guerras mundiais, encontram na
tremenda força explosiva das bombas atômicas a expressão final. A humanidade
não pode descer além dessa violência assassina. A cega adesão da humanidade
às suas animalescas propensões para a luta e morticínio manifesta-se em dois
feitos terríveis — tirar a vida dos homens na guerra e tirar a vida dos animais na
paz. O primeiro poderia, até agora, justificar-se eticamente pela desculpa de uma
causa justa e da legítima defesa forçada. O último se justificaria, até agora, com
as desculpas da ignorância dietética, das necessidades herdadas e dos hábitos
sociais. Mas o primeiro, às vezes, é evitável e o último, muitas vezes,
desnecessário.

Não precisamos ignorar o mal em nossos semelhantes, pois temos de lidar com
eles num mundo prático, nem podemos ignorar a alma que trabalha em silêncio
dentro deles. O mal passará, finalmente; o bem ficará permanentemente. Se
tivermos precisão de estabelecer relações com eles, cumpre-nos perceber o que
há de errado neles, mas temos de fazê-lo impessoalmente, sem animosidade. A
fraqueza humana que retribui o mal com o mal, que busca a retaliação e a
vingança contra o malfeitor é inaceitável. Precisamos fazer o que a
responsabilidade social exige que façamos em tais casos. Mas não devemos
sujar-nos praticando atos indignos.

Nem devemos entregar-nos jamais ao hábito inútil, mas comum, de condenar os


que nos fizeram mal. Jesus explicou uma das razões para esse conselho: “Pai,
perdoai-os, porque eles não sabem o que fazem”. E Epicteto salientou que o
homem que cultiva o seu poder de olhar por debaixo das aparências, não
censurará os outros. O mau procedimento destes nasce das imperfeições e
limitações da sua psique, do seu estado desequilibrado ou não desenvolvido.
Não podem deixar de fazer o que fazem porque não podem deixar de ser o que
são. E isto, por seu turno, é a herança de toda a experiência passada, de todos
os passados pensamentos deles. O tempo os ensinará. A vida os instruirá. O
sofrimento lhes tirará o veneno do corpo. A lei da recompensa se encarregará
deles e os disciplinará. Quando se tornarem agudamente conscientes do dano
causado a outras vidas e do mal causado à sua própria existência, tornar-se-ão
realmente penitentes e mais discernentes. Isto demanda muito tempo e muitos
nascimentos. Nesse comenos, nós, humanos, podemos aprender a perdoar o
que a própria vida às vezes perdoa. Haveria poucas esperanças para a
humanidade de fuga final da escravidão do mal, se a graça de Deus não entrasse
em algum ponto de sua vida evolutiva ou através de algum homem abençoado.
E isto acontece trazendo a redenção, a liberação e a iluminação. Há amor no
coração das coisas. Há perdão para o homem arrependido. Há esquecimento
para os seus pecados perjuros, mas só até o ponto em que as causas desses
pecados, no interior do caráter do homem, tiverem sido removidas.

A generosa remissão dos pecados, a misericordiosa outorga do perdão é um


fato nas relações entre os próprios seres humanos. Quanto mais não o será nas
relações entre eles e o seu Divino Pai! O perdão dos pecados é um fato, não é
apenas uma esperança, mas é um fato somente para os que aprendem e
aplicam a lição dos seus sofrimentos. Os outros terão de sofrer as
consequências da sua má conduta; de outro modo, o carma, a lei da
recompensa, seria uma lei errática, na qual não se poderia confiar, e a
experiência que ela traz não teria valor algum. Isto porque ela só principia a
operar após o arrependimento dos pecados e a realidade da reforma. A crença
de que o homem, por mais empedernido pecador que tenha sido, pode esperar
o perdão e alcançar a bondade, é verdadeira até para o pior dos homens,
bastando para isso que se arrependa profundamente e modifique os seus
hábitos ignorantes de vida, o seu caráter e a sua conduta.

A lei da recompensa (carma) não é uma lei vingativa. Não expressa, como
acreditam alguns, o preceito hebraico “olho por olho, dente por dente”. Se o
fizesse, não haveria esperança para a humanidade de poder expiar o seu escuro
carma ou escapar da teia emaranhada que ela teceu à roda de si mesma no
passado. A realidade é que, assim que chega à plena compreensão e à profunda
convicção de que a malfeitoria precisa ser abandonada e assim que o seu
caráter, a sua consciência, a sua inteligência e o seu equilíbrio estiverem
suficientemente desenvolvidos, ela se liberta das consequências do mau
passado. Em outras palavras, ao modificar-se a si mesma, ao modificar a sua
mentalidade e os seus sentimentos, cria uma nova e poderosa causa, ao passo
que a própria luz produz o efeito dessa causa, que é pôr fim ao carma sombrio
que ela herdou do passado ignorante. Nesse sentido, há o perdão dos pecados,
que tem um sentido diferente da forma meramente sentimental da racionalização
de desejos que, em círculos religiosos, emprega mal a idéia de perdão.

O passado não pode ser totalmente expungido, ainda que se lhe possa modificar
o legado. Em se tratando de um aspirante, o perdão se aplica apenas a um
pecado específico ou a um grupo específico de pecados. Em se tratando do
adepto, aplica-se à totalidade deles. Pois o primeiro ainda carrega a sua
recompensa não cumprida, ganha por ele mesmo, enrolada à volta do pescoço,
porque ainda está carregando o seu ego. O segundo, porém, está liberado do
seu fardo, porque se libertou do seu cerne oculto, o ego.

Ao lidar com as pessoas que caíram vítimas da sugestão de forças malévolas;


quer continuamente, quer intermitentemente, precisamos lembrar-nos de não
condenar, de não nos ressentirmos, de não odiar. Todos carregamos uma carga
de malfeitorias oriunda do passado remoto e, no entanto, estamos sempre
prontos para pedir perdão dessa pesada recompensa. Se não estivermos
preparados para perdoar aos que nos ofenderam, não teremos o direito de
esperar a remissão dos nossos pecados. Esta, com efeito, é uma lei espiritual.
Todos os que buscam o perdão para si, deveriam seguir a regra do perdão no
trato com os outros. Todas as vezes que tiverem de suportar o ódio dos homens,
concede-se-lhes a oportunidade de aprenderem a ser benevolentes com os
homens. Onde outros só acham veneno, eles encontrarão o seu antídoto.

Não são estas, contudo, as únicas bases para uma atitude assim. Existe outra,
não menos sólida. O pensamento de cada homem contribui com o seu bocadinho
para a provisão do mundo, fá-lo melhor ou pior. Ele é responsável pelos seus
próprios pensamentos e, se estiver no caminho espiritual, deverá procurar
mantê-los construtivos, positivos e harmoniosos, e não destrutivos, negativos e
discordantes. A treva não tem existência positiva por si mesma. É simplesmente
a ausência de luz. Da mesma forma, a ignorância é apenas a ausência de
conhecimento e o mal é simplesmente a ausência do bem. E assim como a única
maneira de afugentar a treva é trazer a luz, quer acendendo uma lâmpada, quer
abrindo uma janela, assim também a única maneira de eliminar o mal do
pensamento do mundo e eliminar a ignorância, que o fomenta, é trazer maior
quantidade de bons pensamentos ao mundo e espalhar por ele maior quantidade
de conhecimentos espirituais.
À proporção que desvela as suas características mais divinas, o homem se
descarta das suas características mais grosseiras. Mediante os próprios
trabalhos no sentido de aprimorar-se, prepara o caminho para a entrada da graça
redentora de Deus. Quando descobre o seu verdadeiro eu, cujos primeiros
atributos são o amor e a sabedoria, descarta-se do mal e do erro. No momento
em que lança de si os véus da ignorância, enxerga através dos maus valores e
volta-se para os bons. Para se conhecer plenamente, terá de conhecer-se como
um raio do sol divino, disseminando luz e expressando bondade. Para
compreender plenamente o mal, terá de amar a verdade pura em lugar das
agradáveis ilusões. E, então, o mesmo mal que era, outrora, um escuro e trágico
enigma para as suas percepções inferiores, desvanece-se como tal diante das
suas percepções superiores, e transmuda-se.

Essa tranquila confiança na bondade suprema do universo baseia-se numa


percepção mais sutil e não deve ser confundida com o otimismo desequilibrado,
que se baseia num barulhento sentimentalismo. O próprio homem é levado a
refleti-lo através da direção espiritual pela revelação, que vem de fora, e pela
intuição, que vem de dentro. Isso lhe favorece a evolução para ela mas não a
assegura. Para tanto basta considerar um fato apenas — a presença, em cada
coração, do Eu Superior, cuja paciência sobreviverá a mil reencarnações de
negação, cujo poder, afinal, sujeitará todos os impulsos animais e todas as
mundanidades calculistas, cujo magnetismo o arrastará irresistivelmente através
de dores e raptos sem conta, pois é o próprio Amor.

Existe uma Idéia implícita na própria ordenação do cosmo. A Ciência começou


a vislumbrar alguns vagos lampejos de fragmentozinhos desse plano. O último
valor da Ciência é a sua revelação da presença de lei no cosmo. Pois lei
pressupõe mente e infere inteligência. Até no ponto a que chegam os atuais
conhecimentos do homem acerca das leis da natureza, evidencia-se a presença,
por detrás delas, de uma espécie de mente unificadora. E também se evidencia
que isso não é indiferente ao seu desenvolvimento.

Nada, nem ninguém, se encontrou jamais, nem poderia ter-se encontrado, fora
do campo infinito de consciência do Ser Infinito. Além disso, nenhum acontecido
poderia ter-se produzido senão dentro do seu campo infinito de lei.

Se todos os homens soubessem quanta sabedoria, quanta inteligência e quanta


ordem perfeitas entraram no cosmo, todos se prosternariam, todos os dias, na
mais profunda reverência diante do Poder existente por detrás delas. Derivemos
de cada fato intuído a firme certeza de que uma lei divina conserva em seu poder
todos os processos do universo, e uma divina mente existe por detrás de todas
as inumeráveis mentes humanas e é a sua origem e a sua meta.

Se alguém vir o universo governado apenas pelo cego acaso, isto se deverá à
miopia dos seus olhos. Foi Remy de Gourmont, distinto crítico literário francês,
quem escreveu: “A verdade é uma ilusão, e a ilusão é verdade. A humanidade
nunca viveu senão em erro e, além disso, não há verdade, visto que o mundo se
acha em perpétua mudança. Se você conseguir construir uma imagem
verdadeira do mundo, essa imagem deixará de ser verdadeira para os seus
netos”. Se de Gourmont houvesse dirigido as suas palavras aos metafísicos que
não reconhecem outro guia mais alto além do que o intelecto pode apurar, teriam
sido assaz corretas. Mas a sua mente superanalítica não se deu conta,
inevitavelmente, do único fato que desafia a análise, o fato de existir uma
realidade oculta que manifesta a sua existência — embora não manifeste a sua
natureza — através da aparência do mundo, e uma lei eterna que governa essas
mudanças intermináveis.

A Filosofia nos ensina que a vida de todo o universo, tanto quanto a vida de todo
homem, é governada pela ordem e não por acidente, pela lei e não pelo acaso,
pela inteligência e não pela insensibilidade. Existe uma direção inteligente por
detrás de cada fenômeno da vida e da Natureza neste cosmo. Não existe
acontecimento, nem criatura, nem nada em todo o universo que não tenha
alguma significação. Isto é assim e tem de ser assim porque todo o universo é o
pensamento da Mente infinita. Em toda parte e sempre a inteligência universal
está presente, trabalhando sem cessar. As leis da Natureza são realmente as
suas leis. E isto é verdadeiro até onde a visão limitada do homem enxerga
defeito, em virtude da presença do mal e da morte. O caos e a confusão, o
acidente e o acaso, a dor e a aflição na existência humana são apenas
aparências passageiras, não são realidade duradoura. Até onde não podemos
conhecer nem ver, como é quase sempre o caso, podemos crer com confiança
que um poder superior está ativando o processo do mundo, para o que se
revelará, finalmente, como os melhores interesses de todas as criaturas e coisas
dentro dele. Ao estudante de Filosofia que persevera, todas as peças desse
modelo de mosaico, que individualmente parecem tão sem sentido e tão
desligadas umas das outras, vão caindo gradativamente em seus lugares e
mostram o maravilhoso significado do todo. Existe sabedoria e bondade no
coração das coisas, e podemos caminhar com fé ainda que a visão nos seja
negada.

A Idéia divina é o resultado da sabedoria divina e da perfeita compreensão. Por


conseguinte, é a melhor possível. E não poderia ter sido diferente do que é sem
que a Mente divina fosse diferente do que é. O universo também não pode ser
outro senão o melhor universo possível. Se não conseguimos percebê-lo, isto
deve ao fato de que a mentalidade finita não se pode compreender a existência
infinita. Se, neste caso, começarmos duvidando da sabedoria de Deus,
acabaremos por aceitá-la. Essa aceitação consciente da ordem divina das coisas
não se verifica facilmente com a maioria dos homens. Na verdade, só se produz
muito tempo depois que a sua razão se queixou pela primeira vez e a sua
emoção pela primeira vez se rebelou contra ela. O ego precisa, primeiro, banhar-
se na graça antes de submeter-se e aceitar. Até em sua aspiração espiritual está
ele procurando sempre resultados rápidos; o eu superior, resultados duradouros.
Daí a paciência eterna com que esse eu contempla os sofrimentos dos seus
filhos e aguarda a sua reclamação. Muitos talvez deplorem essa paciência, que
inspira um respeitoso temor. Entretanto, de nenhum outro modo poderá ele
promover e assegurar, realmente, a autenticidade da evolução do ego. Pois cada
passo para cima que dá este último será, então, espontâneo, extraído do seu
íntimo pela experiência e observação próprias. O seu crescimento não será
artificial e dúbio, senão natural e seguro. O ego tem o direito e a liberdade de
cometer os próprios erros e envolver-se em sofrimentos decorrentes desses
erros, porque precisa integrar-se completamente no eu que o gerou por um
processo tão natural quanto o da semente que se faz árvore.

Não é próprio de pessoas fracas ou covardes aceitarem uma visão impessoal do


universo como essa, nem verem a sua Idéia como sábia e os seus processos
como bons. O homem precisa convocar o herói que existe dentro dele para poder
fazê-lo. A atitude heróica, na verdade, é o preço que ele precisa pagar pela
verdade, a mesma verdade que traz a paz em seu séquito. Quem adota uma
visão de tão longo alcance, quem formula uma concepção da existência de
bases tão amplas, nunca se entregará ao desespero diante da atual angústia da
humanidade, ou da treva contemporânea, do caótico desassossego e do tumulto
fervilhante. Sabe que forças sagradas se interporão cada vez mais na história
deles, a despeito de todos os lapsos ou retrocessos parciais. Pois tudo e todos
vivem inevitavelmente dentro do princípio do ser benevolente.

Experiências amargas e brutais não serão disfarçadas, pois ele talvez não tente
fechar os olhos às forças más e à moral caótica, à tragédia e à degeneração do
mundo que o cerca. Com efeito, ele os verá, até com maior clareza e maior
atenção do que os outros homens, porque os verá em suas próprias raízes na
natureza humana. Não fará de conta, como os idealistas mais suaves, que eles
não existem. Não obstante, a consciência dessas ásperas realidades não
vingará intimidá-lo nem desiludi-lo. Ele sabe que elas, um dia, despertarão mais
homens para a busca do único poder que as poderá vencer, e entrementes,
enquanto eles não despertam, ele próprio deverá manter bem alta a sua vela
gotejante de luz interior. Esta é a sua responsabilidade e ele não lhe fugirá. Isto
é o que ele pode fazer pela humanidade e o que certamente fará.

O lado feio da vida não precisa ser ignorado, como o ignoram alguns místicos e
iogues no Oriente e certos cultos no Ocidente. Essa evasão da sua existência
só pode ser uma covardia moral, um narcótico emocional ou uma embriaguez
intelectual. A Filosofia enfrenta esse lado, com todos os seus males e todos os
seus horrores, e não o nega. Mas também não o aceita.

Que os que desejam servir a humanidade pelos meios ao seu alcance, que os
que podem fazê-lo, procurem distribuir as águas espirituais da vida e o pão
material do homem. Mas, dito isto, que ninguém incorra no erro grosseiro de
acreditar que as leis do universo estão erradas, que os poderes do mal são todo-
poderosos e que a menos que eles intervenham pessoalmente no curso dos
acontecimentos, o resultado será deplorabilíssimo. Não é assim. O universo
prosseguirá, façam eles o que fizerem. A sua administração ainda está em mãos
capazes e benéficas. Deus ainda é a Autoridade Suprema e não precisa pedir a
ajuda de ninguém.

A vaga sensação de que, apesar de todos os sofrimentos e todos os pecados, o


resultado desse drama da raça humana será, afinal, abençoado e feliz, é correta.
Onde hoje vemos o mal num homem, num acontecimento ou num lugar, trata-se
antes da ausência do bem, como o frio é a ausência de calor. Pois o bem
pertence, de direito, à natureza íntima das coisas e nunca pode desaparecer
permanentemente. A mais segura garantia de que o bem está sempre destinado
ao triunfo, por mais adiada que nos pareça a hora desse triunfo, encontra-se
entre os atributos do Poder que sustenta toda existência. Um deles, como o
sentiram todos os místicos que se aproximaram do divino, é o amor. Conhecê-
lo, senti-lo ou crê-lo, é conhecer, sentir ou crer imutavelmente a retidão e a
beneficência suprema das coisas. O místico filosófico afirma que o ódio não é
uma realidade permanente, mas apenas a temporária ausência do amor, e assim
como a treva se dissipa quando surge a luz, assim também se desvanecem as
emoções negativas quando a evolução obriga os homens a despertar e a
reconhecer o amor inerente ao seu eu mais profundo, o Eu Supremo. A
concepção filosófica da vida vê, na presença de uma alma divina no homem, a
segurança adicional de que a sua natureza sensível experimentará, um dia, essa
verdadeira felicidade, que a sua inteligência a conhecerá e compreenderá, e que
o seu caráter evoluirá, finalmente, para um estado de verdade, bondade e
beleza. E é por isso que ela está isenta da melancólica experiência de H. G.
Wells, que precisou substituir, na velhice, o seu tremendo otimismo “científico”
anterior em relação ao futuro da humanidade por um igualmente tremendo
pessimismo “científico”.

A experiência terrena não é um instrumento de tortura, senão um dispositivo de


educação humana. Os seus valores inferiores se transmudam, com o tempo, em
valores superiores, os seus maus valores em bons valores. A imensa multidão
de seres humanos, que passou em procissão sobre a face deste globo girante,
durante milhões desconhecidos de anos, não passou em vão. As leis misteriosas
deste cosmo não permitirão, nem podem permitir, o triunfo final de forças ou
entidades que lhes violam a beneficência essencial interior. Se o aparecimento
do mal individual é uma fase ordenada do desenvolvimento humano, também foi
ordenada para suceder-lhe a liquidação do mal humano. Este é o paradoxo, a
saber, que embora o mal esteja presente em toda parte, não prevalecerá em
parte alguma. A análise do que ele é mostra-o como um conjunto de valores e
qualidades, não um princípio eterno. Que um cosmo divinamente nascido e
divinamente sustentado contenha ilogicamente essas más qualidades, é alguma
coisa que não pode ser compreendida de relance nem julgada à primeira vista.
Em lugar de procurar-lhes a origem no universo exterior, devemos procurar-lhes
a origem em nossa própria consciência interior. Pois elas representam uma
corrupção dos valores humanos, uma alienação do eu superior e uma falsa
direção do livre arbítrio.

O homem mau escreve na água, o ser mau é um rastro na areia. Pois o destino
de um é ser transformado, e o destino do outro é ser esquecido. Em algum lugar,
no exercício da livre escolha humana, um ciclo de pensamento, sentimento e ato
pecaminosos passou a existir. Mas assim como ele teve princípio, assim terá fim.
E visto que ele recomeça de novo em cada indivíduo, no indivíduo termina, não
na espécie. O reino pecador do inferno está dentro de nós. O reino sem pecado
do céu deverá, portanto, ser encontrado por cada um para si mesmo, e deverá
ser encontrado dentro de si mesmo. Que os pecadores poderão, um dia, tornar-
se santos, que a vida má poderá, um dia, transformar-se em boa, não é tão-
somente uma possibilidade que devemos admitir, senão também uma verdade
que é força reconhecer.

Se a atual situação da humanidade nos deprime e se a perspectiva da sua futura


situação nos assusta, ainda assim não devemos abandonar a nossa crença no
triunfo final do bem sobre o mal e na final destruição das forças da destruição.
Não devemos apenas acreditar nisso porque desejamos que assim seja, mas
porque é assim. Nunca nos esqueça que os progressos e vitórias dos poderes
das trevas são apenas ilusórios; parecem reais mas não o são. Ainda que haja
o mal no universo, o próprio universo, apesar disso, é bom. Se os homens
comuns só podem esperar no futuro distante a transformação da treva de um na
luz do outro, o sábio descobre a luz aqui e agora. Vê a ameaça e o perigo dos
tempos quais realmente são, mas sabe que estará tão seguro mais tarde quanto
está agora, porque ele, o verdadeiro eu, não pode ser tocado, não pode ser
atingido por nenhuma ameaça e por nenhum perigo, mas existe além deles. O
universo que ele vê é sempre brilhante. A sua consciência superior lhe
emprestou um aspecto tão diferente que o sábio se harmoniza com ele tal e qual
é hoje, e não como será um dia. Sabe perfeitamente que, se tantas criaturas
dentro do universo têm de passar por uma fase má, o Ser Supremo por detrás
do universo não precisa. Na medida em que ele tiver colocado a sua própria
mente em harmonia e unidade com o bem, percebe que este será sempre mais
do que o mal.

Assim, finalmente, todo homem terá de resolver por si só o seu problema


desconcertante do mal. Ninguém mais poderá fazê-lo por ele, pois terá de
mergulhar nas profundezas da própria consciência, as místicas profundezas em
que reside o Eu Supremo, antes de poder apropriar-se da verdadeira solução.

O verdadeiro filósofo tem consciência de um fato, que lhe é perenemente


ensinado pelo seu Eu Supremo: a verdade acabará triunfando, o bem
sobreviverá ao mal, a tolerância e a bondade sobrepujarão a crueldade
perseguidora, e as tendências espirituais deixarão para trás as tendências
materialistas. Se a compreensão dessas coisas não for do seu tempo, se elas
estiverem escondidas na vida futura, ele aprenderá a adquirir a paciência da
Natureza. Se o desenvolvimento inicial da entidade humana parece necessitar
trazer o mal à superfície de sua vida, o desenvolvimento futuro também necessita
banir da sua vida esse mal.

Já nos próximos dois ou três milênios a civilização se desfará de tantas das suas
más características, incluindo as guerras, e adquirirá tantas outras, mais belas,
que será abençoada por uma nova e jubilosa época em confronto com o seu
estado atual. Assim como o dinossauro e outros monstros reptílicos morreram
quando as condições do planeta já não tinham nada para expressar dessa
maneira, assim o tigre e o abutre morrerão, ao mesmo tempo, fora do homem
como Natureza, e dentro dele como paixão e cobiça. Assim como a toda noite
se segue a aurora, assim o escuro período do materialismo, que hoje culmina
com as suas piores características, será seguido, primeiro por uma breve
transição, em seguida por um período auroral, quando cintilarão os raios
brilhantes de uma era melhor para o homem.
9
Deus É!

O que pode ser escrito nestas páginas tem a sua importância, mas o que, por
força, terá de permanecer não escrito possui uma importância ainda maior. Visto
que tantas afirmativas anteriores dependem da simples afirmação da existência
de Deus, e cairiam por terra com a irrealidade dessa existência, torna-se
necessário dizer algumas palavras em nome do Silencioso.

Se, como diz Bacon, alguém arranhar simplesmente a superfície da Filosofia,


poderá tornar-se ateu. Mas se cavar fundo dentro dela, acabará completamente
convencido da existência de Deus. Visto que um cristal, uma flor e um corpo
humano seguem todos a mesma lei de desenvolvimento por etapas, e visto que
essas etapas e suas formas revelam uma inteligência, por detrás delas,
infinitamente superior à do homem, quem lhe negar a existência fará muito maior
praça de preconceitos emocionais que de penetração intelectual. Se puder
meditar sem preconceitos e com suficiente profundidade sobre a natureza e a
utilidade das quatro estações, o poder criador do sol e as viagens dos planetas,
terá de acrescentar uma lei ao governo inteligente do universo. Não existe acaso
em nenhuma dessas coisas. Se alguém refletir sobre todos os indícios de
intenção de vida aqui, e nas estrelas acolá, e não chegar à crença de que um
poder superior dirige tudo, se chegar apenas ao ateísmo, a mente com que
pondera tais indícios está cerrada pela prevenção, desequilibrada pela emoção,
transtornada pelo sofrimento, demasiado extrovertida pelos sentidos do corpo,
ou defeituosa de algum outro modo.

O mundo não é destituído, como um cadáver, de vida e sentido. Possui ambos.


Existe no interior e atrás de cada um dos seus fragmentozinhos, até quando não
discernidos por nós, uma Mente diretora, um princípio espiritual governante.
Esse princípio onipresente de vida e o poder cósmico criador são um só e o
mesmo — Deus. Tanto nas estrelas quanto nos homens vemos o sinal, ou a
prova, da sua incomparável inteligência e da sua incrível onipotência. As suas
leis estão sempre presentes, mas o sentido humano só as conhece pelos efeitos
que produzem neste mundo de forma, de tempo e de espaço. Se o universo não
fosse governado por leis, se os sucessos e movimentos universais, como o
nascer do sol e o crescer da semente, ocorressem de maneira meramente
casual, dificilmente continuaria existindo. Até aqueles microscopicamente
minúsculos organismos que denominamos células, com as quais se constroem
a planta, o animal e o corpo humano, contêm em estado latente e as
desenvolverá afinal a mentalidade e as características do próprio homem. E o
farão em conformidade com um padrão perfeito, por etapas ordenadas, através
de milhões de renascimentos.

Nada do que aconteceu na história do mundo poderia ter acontecido sem a


sanção final da vontade e da sabedoria da Mente Universal. Sem essa chave
para guiar a razão, o pensamento humano teria de atribuir o que acontece ao
acaso. O universo, então, pareceria sem sentido, a fortuna se afiguraria
grosseiramente injusta, e a própria vida não passaria de uma loucura. Em todos
os reinos da Natureza, a vida seria, com efeito, o joguete de forças brutas,
mecânicas e cegas, como querem os materialistas. Mas, de posse dessa chave,
podemos discernir, no meio de toda a caótica barafunda, a presença de um
propósito divino por detrás da existência humana, de uma ordem racional dentro
do próprio universo, e de uma Mente benéfica como o verdadeiro dirigente de
ambos. Com ela podemos encontrar algum sentido em toda existência e,
sobretudo, na existência humana. Isto já não terá o aspecto de um pontinho
insignificante de espuma no oceano, mas parecerá o primeiro e tênue lampejo
de uma luz eterna.

Que ninguém impugne a infinita sabedoria da Mente Universal simplesmente


porque ela está além do seu entendimento finito ou porque o mal e a dor o
encolerizam. Poderia esse alguém haver predito, depois de examinar ao
microscópio e sem conhecimentos anteriores, que um minúsculo pedacinho de
geléia protoplásmica cresceria e se converteria num homem adulto, capaz de
pensar, amar e adorar? Não obstante, toda planta, todo animal vivo mostra a
presença da inteligência cósmica nas fases progressivas que vão da semente à
flor, ou do feto à criatura plenamente desenvolvida. Essas fases são tão sábia e
tão obviamente organizadas para o fim que têm em vista que não podem resultar
do acaso. O processo evolutivo é tão inevitável, ainda que lento, quanto a volta
do sol. Nada é, nem será, esquecido, pois todo átomo é vivo e tem o germe da
autoconsciência. A velha e nítida divisão entre a matéria morta e inerte e as
células vivas e ativas é antiquada e está-se dissolvendo à luz dos novos
conhecimentos da Eletrônica. Não há energia em parte alguma nem há objeto
que não seja, em essência, uma forma sob a qual aparece a Corrente Vital da
Mente Universal. O material dos nossos mantos de carne já foi mineral, depois
foi vegetal, mais tarde foi animal, agora é humano. O corpo do homem é o
cadinho da Natureza; o pensamento dele, o poder que ela tem de transmutar. O
desdobramento do estado físico para o estado espiritual necessita passar
através desses três reinos, através de diferentes planetas e através da forma
humana, onde os fogos da autoconsciência, acesos em evoluções anteriores,
põem em prática a sua magia assombrosa. Ainda mais, assim como as células
do seu corpo são afetadas pelo que o homem faz a ele e com ele, pelo que pensa
mentalmente e sente emocionalmente, assim o homem é afetado pelo que lhe
faz o planeta. Pois este tem a sua própria meta individual, para a qual está
evolvendo, e por cuja causa, lenta ou repentinamente, modifica as condições
para as formas vivas de todos os reinos que lhe habitam o corpo.

A força vital no homem não poderia ter expressado inteligência humana se não
tivesse, por detrás de si, a inteligência universal, nem poderia expressar a
espiritualidade humana se não existisse um espírito universal que a inspirasse.
Notável biologista britânico, Sir J. Arthur Thompson, afirma: “Depois de um longo
circuito, registra-se um retorno à velha verdade: no princípio era a Mente”. À
medida que se avolumam os conhecimentos do filósofo, intensifica-se-lhe o culto
religioso. Ele se convence cada vez mais da eterna presença da sabedoria
infinita no universo, cada vez mais perdido na contemplação da maravilha que é
a infinita vida universal. Não foram teorias metafísicas, nem sonhos visionários,
nem místicas intuições, nem piedosos sentimentos, senão as suas observações
pessoais, práticas, de primeira mão, que obrigaram o Professor Geley, o
brilhante fisiologista francês, a exclamar: “Porventura toda esta conglomeração
de fatos, trazidos à nossa atenção por diferentes cientistas, não nos ministra a
prova da extraordinária, da assombrosa, da incompreensível, eu diria até, da
milagrosa inteligência da Vida?”

Nenhum homem demonstrou jamais o mesmo grau de inteligência e


sensibilidade artística que demonstra a Natureza. A habilidade técnica que se
fez presente na construção do corpo humano é algo que nos inspira, de início,
um respeitoso temor e, a seguir, reverência. Quem quer que chame a essa
habilidade “força cega” e não perceba a inteligência viva, atuante por detrás dela,
estará revelando a própria cegueira intelectual. A inteligência infinita revela-se
em toda parte a olhos que vêem e a mentes que pensam. Homens que
estudaram Medicina não teriam precisado tornar-se os agnósticos e ateístas em
que tantos se converteram, se tivessem observado mais intuitivamente os
numerosos sinais de uma força superior supervisora do nascimento do corpo
humano, da evolução do feto humano e das atividades do sangue humano. Eles
não tinham o direito de presumir, por exemplo, que, por estarem os
acontecimentos involuntários que ocorrem no sistema nervoso fora do campo da
consciência pessoal, terão de ficar, necessariamente, fora do campo de toda
consciência possível. As reações ao perigo; os reflexos e os movimentos, como
a secreção glandular e a digestão estomacal, que, segundo se supõe, ocorrem
no mundo do mecanismo; o funcionamento automático dos órgãos internos
(como o coração) que mantém o corpo; a atividade que tenta reparar os danos
internos e externos — todas são manifestações de uma inteligência diretora
racional dentro do próprio corpo. Um sem-número de complexas células
sanguíneas nasce, chega à maturação e não tarda a morrer em todo ser
humano. Vivem vidas ativas, com uma finalidade. Entretanto, nenhuma tem
consciência de que existe uma unidade comum, chamada Homem, por detrás
de todo o grupo, assim como ele mesmo não tem consciência dos processos por
cujo intermédio os corpúsculos brancos e vermelhos do sangue realizam o seu
trabalho. Assim a mente contém consciência física, mas pode não se limitar
apenas a uma espécie dela.

Por que as plantas encontram nutrição, os animais alimento, e o homem


subsistência e roupas — todos no corpo deste planeta? Por que a Natureza
provê tão infalivelmente às suas necessidades? A resposta é que a Mente
Inteligente, base implícita de tudo, é a força ativadora do evento universal. Só
depois de pensada e repensada em todos os níveis é que essa idéia se torna
suficientemente clara, a sua importância suficientemente vívida e as suas
implicações suficientemente visíveis. Ela mesma conduz a duas outras idéias.

Primeira, a Mente Universal é a origem de toda existência. Assim como é da


própria natureza do sol irradiar luz, assim também é da própria natureza da
Mente Universal manifestar o cosmo. Segunda, todas as coisas têm Deus por
essência, mas coisa nenhuma revela Deus como essência. A imensidade do
universo é inimaginável. A despeito dos seus continentes e oceanos, a nossa
Terra é menos do que um átomo em relação a essa vastidão assombrosa.
Entretanto, chegamos mais próximos da verdade ao compreendermos que,
embora todo o cosmo seja uma expressão inevitável da Mente Universal, é ainda
uma expressão limitadíssima.

Podemos estar certos de uma coisa — sem embargo de tudo o que possam dizer
em contrário essas testemunhas indignas de confiança, quais sejam, os nossos
sentidos e aquela pupila errática, o nosso intelecto — a saber, que existe uma
ordem cósmica, uma Idéia oculta por detrás do processo do mundo. Mas também
somos partes dessa ordem, desse processo. Daí que a Idéia exista dentro de
nós também como a alma divina.

O que nos contam os sentidos acerca do mundo é sempre invertido pelo que a
alma nos conta. Os sentidos nos dizem que a experiência deles é real, mas a
alma nos diz que é ilusão. Os sentidos nos dizem que somos apenas corpos;
diz-nos a alma que existe algo divino em cada um de nós. Os sentidos nos dizem
que as coisas acontecem por acaso; a alma nos diz que as coisas acontecem
pela sabedoria de Deus.

A Mente Universal é oniconsciente, onisciente e onipresente. O homem não pode


conhecer toda a verdade a respeito de um único fato, só a Mente pode fazê-lo.
Nem pode o ser humano compreender jamais todas as particularidades do
passado e do futuro como pode compreendê-las a Mente Universal. Todas as
espécies possíveis de existência são apreendidas por ela ao mesmo tempo.
Dessarte, a sua consciência é verdadeiramente cósmica, como não o poderia
ser nenhuma consciência finita. Todos os pontos no espaço e todos os
momentos no tempo estão contidos na Mente Universal. Essa capacidade infinita
de experiência está totalmente fora da compreensão imediata do finito intelecto
humano.

E, todavia, em toda parte, os homens procuram arrastar Deus para a sua própria
pequenez! Amarraram à palavra as suas dúbias e falsas imaginações, ou
usaram-na em sentidos diferentes. O significado que aqui se lhe atribui é o de
um Poder supremo e imperecível que está no mundo (e portanto em nós) e, ao
mesmo tempo, transcende o mundo.

Que é esse Poder? É uma Coisa ou uma Pessoa? Não é nem uma nem outra, e
os que pensarem de maneira diversa estarão procurando iludir-se. A Filosofia
sustenta que essa realidade suprema é Mente. Deus é Mente e está em toda
parte. Só mesmo a Mente impessoal poderia estar presente em toda parte num
cosmo ilimitado como este, sustentando todos os tipos de vida pessoal, como
sustenta. As criaturas de Deus só poderiam ser personalizadas; mas Deus, não.
Se o fosse, os planetas não girariam de acordo com a lei universal, mas de
acordo com o capricho de cada um.

Em seu frio desdém das concepções emocionais, os cientistas do século


passado chamaram antropomórfico ao Deus que os religiosos fanáticos, em sua
genuína necessidade de conforto interior, chamavam pessoal. Por essa
divindade antropomórfica se entendia um poder exterior, completamente
separado do próprio homem, e a que este imputava atributos semelhantes, se
bem que grandemente ampliados, aos que ele mesmo possui. Tem sido seu erro
comum atribuir os próprios atributos emocionais superiores — e, às vezes, até
os inferiores — a Deus, esquecido de que ainda são atributos humanos, que não
poderiam, de maneira alguma, pertencer à Mente una, infinita, onisciente e
universal. Esse erro nasceu da sua incapacidade de adorar um Deus impalpável
e impessoal e até de apreender-lhe intelectualmente o conceito. Por isso mesmo
a religião permitiu ao homem, quer como concessão à sua incapacidade, quer
como dogma da sua crença real, adorar a Deus em formas cuja existência era
facilmente apreensível pela imaginação sensual ou pela compreensão
intelectual. Era mais fácil para ambos apresentar uma concepção da divindade
que apenas ampliava o próprio eu humano e lhe reduzia as limitações, porque a
coisa que o homem conhecia melhor era ele mesmo.

A procura de um Deus Pessoal, na verdade, é a tentativa instintiva do ego


pessoal de trazer Deus para o seu próprio nível, o anseio natural da entidade
humana por um Consolador humano glorificado. O homem, pessoa, sente a
necessidade de relações pessoais. Isto é perdoável e apropriado em todas as
atividades humanas, incluindo as religiosas. Mas introduzi-la na tentativa de
penetrar metafisicamente o mais íntimo segredo da sua união com o poder
infinito, é permanecer no berçário e recusar-se a deixar o estádio elementar da
vida espiritual. É insistir em grafar reiteradamente as primeiras palavras da
sabedoria na escola primária da vida.
O homem que sofre pode dizer coisas duras sobre a austera indiferença de
Deus, até mesmo sobre a desconcertante e implacável crueldade de Deus,
assim como o homem feliz pode dizer coisas agradáveis sobre a indulgente
benevolência de Deus. Nenhum dos dois conhece coisa alguma acerca da
verdadeira natureza de Deus e ambos estão simplesmente emprestando a um
ser impessoal atributos pessoais, humanos, ampliados em escala cósmica. É um
Deus feito à própria imagem deles. Todas as censuras que endereçamos a Deus
por haver feito esta ou aquela parte defeituosa do universo, ou por haver
permitido este pecado ou aquela tribulação baseia-se em nosso erro primário de
pensar em Deus como num homem. Um Deus humanizado não é deus coisa
nenhuma. Os homens podem compreender mais facilmente o conceito de uma
divindade parecida com eles, caprichosa, temperamental, vingativa e parcial,
acessível à lisonja e amante dela. Já não compreendem com a mesma presteza
o conceito de uma divindade tão impessoal que não pode ser afetada por
aproximações pessoais, tão impalpável que não pode ser alcançada por
espetáculos aparatosos.

Onde quer e quando quer que estas páginas tenham criticado o dogma de um
Deus Pessoal, elas o fizeram tendo em mente o homem glorificado e
magnificado, a criatura arbitrária, ciumenta, vingativa e injusta, que deve ser
lisonjeada com louvores ou afastada com temores. O poder que sustenta o
cosmo, a mente que está por detrás dele, é infinita, suprema e eterna. Como
poderá ser pessoal, se uma pessoa é capaz de pensar em objetos fora de si
mesma, ao passo que esse poder jamais poderia fazê-lo? O homem glorificado
da religião esotérica é um Deus finito, ao passo que o ser absoluto da filosofia
esotérica é um ser infinito.

Sem embargo, os que acreditam apaixonadamente num Deus Pessoal têm uma
base incriticável para a sua crença criticável: aqueles que sentem
fervorosamente a Sua presença não se enganam em sua experiência. Essa base
é o Eu Supremo, a origem desse sentimento é o Eu Supremo também. Pensar
no Poder Vital Uno e Infinito como o Tudo, é pensar em Deus; pensar nele como
em si mesmo, é pensar no ego; pensar nele como naquilo em que se fundem os
três estados da vigília, do sonho e do sono profundo, é pensar no Eu Supremo
transcendental.

Assim como o homem sente um ego dentro de si, assim também esse ego
pessoal, em momentos exaltados, pode sentir uma Entidade viva atrás e dentro
de si. Somente nesse sentido essa Entidade é o seu Deus pessoal. Foi para essa
Entidade que Jesus dirigiu a sentença inicial do Sermão da Montanha: “Pai
nosso, que estais no céu”. A palavra Pai indica e expressa aqui uma espécie de
relação pessoal. Trata-se, portanto, de um paradoxo, Deus é pessoal e
impessoal ao mesmo tempo, surgindo como o primeiro nas mentes dos que
precisam dele como tal, mas sendo o último em essência.
Enquanto o homem procurar um Deus feito à sua imagem, jamais encontrará
realmente a Deus. A mente humana cria os seus próprios deuses, que são, afinal
de contas, meras concepções suas, embora por detrás de todos eles ainda exista
a realidade sobre a qual se baseiam. A inteligência que cresce e a ética que
evolve produzem uma idéia sempre mais elevada de Deus.

Enquanto o homem não puder compreender, no interior da própria consciência,


a sua proximidade de Deus, toda e qualquer idéia que ele formar de Deus será
uma ajuda útil, senão uma necessidade prática, a inspirar-lhe os esforços, a
influenciar-lhe os motivos e a guiar-lhe as atitudes. E é preciso que ele ame essa
Idéia se quiser, um dia, amar o que está além de todas as idéias, o Absoluto que
está além de toda relatividade.

Sir Arthur Keith queixou-se, de uma feita, de que, ao ler as palavras “Deus é um
Espírito infinito e eterno” nenhuma imagem visual lhe surgia na mente, e de que,
ao ouvir as palavras “o Espírito Santo”, tentava, em vão, apreender a imagem
mental formada pelo sacerdote que as pronunciava. Mas como poderia uma
concepção abstrata assumir uma forma pictórica? Como poderia a imaginação
sonhar mistérios em que os sentidos não podem registrar absolutamente nada?
Somente a faculdade metafísica será capaz de aproximar-se deles, se bem
também não possa penetrá-los profundamente. E a queixa de Sir Arthur Keith
revelava a sua infausta deficiência no tocante a essa faculdade, limitado e peado
que era pelo seu especialismo científico, brilhante e unilateral.

No mesmo ato de revelar a sua existência através do universo, a Mente Universal


esconde a própria verdade. Quando a divindade assume o aspecto de alguma
forma que conhecemos ou imaginamos, deixa de ser divindade. Quando Deus
começa a aparecer, desaparece. Todo quadro artístico, toda metáfora verbal que
podem ser usados para representar o Real, só o desfiguram. Até a mais próxima
e a mais verdadeira das concepções humanas — a de um vazio total, do Espaço
sem forma — pode ser facilmente mal interpretada. O “Vazio Supremo”, como
lhe chamam os místicos orientais, nada mais é que um adminículo para indicar
à mente a direção certa. Todo símbolo é apenas um servo do Divino. Nenhum
servo deve ser tomado pelo amo. Antigamente era difícil acreditar que todo este
vasto e variado cosmo pudesse ser rastreado até um estado de Nada aparente.
As novas pesquisas sobre a energia atômica tornaram fácil acreditar que o
Vácuo pode ser o contrário do que parece, pode ser, de fato, o Real. Nenhum
cientista viu jamais um átomo, pois os seus olhos são fracos demais. Não o são,
porém, os seus delicados e engenhosos aparelhos eletrônicos. Eles lhe dão
conta, indiretamente, da presença, mostram-lhe fotograficamente o caminho, de
energias tremendamente dinâmicas e misteriosas, no interior da estrutura
atômica onde os seus sentidos não encontram coisa alguma. Numa tentativa de
relacioná-los, ele usa os poderes da imaginação para elaborar explanações, e
os poderes de reflexão para formular equações matemáticas. Até esse ponto, e
dessa maneira, ele é obrigado a dilatar a sua visão e tornar-se metafísico.
Alguns poderão inclinar-se a duvidar-lhe da existência, outros poderão negá-lo
categoricamente, mas ninguém será capaz, algum dia, de despojar do seu
mistério a Origem Infinita e Absoluta. Existem verdades que, repetidas, se
tornam rançosas, mas esta não é uma delas. É o Desconhecido porque é o Só,
o Único, o Uno, sem segundo. Não existem duas realidades, e por isso lemos na
Bíblia: “Ele é Deus; não há ninguém mais além dele”. Se a primeira causa deste
mundo fosse nascida de alguma outra coisa, seria também a segunda causa —
um cálculo numérico matematicamente impossível.

Os homens apenas lhe tocaram as aparências e nunca lhe apreenderam a


natureza verdadeira e essencial. Inclinar a cabeça e confessar a sua ignorância
da verdadeira natureza desse Poder é algo que o maior sábio deve fazer tanto
quanto o mais inculto dos selvagens. Não é apenas uma humildade dignificada,
é também a sabedoria prática que o induz a proceder assim. Conhecendo que
até as melhores dentre as percepções humanas são tão estreitas que não podem
abranger o que deve permanecer para sempre fora delas, sabe que é mais
proveitoso aplicá-las onde elas possam esperar adquirir conhecimentos. Ele não
poderia ser o que é — único em todos os sentidos — se pudesse ser conhecido
diretamente e trazido ao alcance da experiência pessoal.

Ao princípio supremo de todo ser chamamos MENTE. Ao princípio supremo


deste mundo manifestado de coisas e criaturas, chamamos Mente Universal.
Mas ao passo que o primeiro está além da expressão ou do alcance intelectual,
é único, ilimitado, absoluto, e sempre imóvel, o segundo existe em relações com
o universo e com o homem. É qualitativamente descritível, individual e sempre
ativo. Para o filósofo, a palavra DEUS significa o primeiro, para o teólogo e para
o místico, o segundo. A MENTE permanece só em sua unicidade, ao passo que
a Mente Universal está sempre em relação com o mundo, que é seu produto. A
segunda é um aspecto do primeiro, um Deus eterno no tempo e por um tempo,
mas a MENTE é Deus para sempre fora do tempo e do espaço. Entretanto, a
despeito da concepção que delas tem o pensamento humano, as duas não são
entidades totalmente distintas.

Jamais compreenderemos o verdadeiro conceito intelectual de Deus enquanto


não compreendermos, primeiro, a dupla natureza do divino Mistério. Em seu
aspecto mais abstrato e mais remoto, é o Vácuo imensurável e que tudo
transcende, a que não se podem atribuir atributos nem qualidades. É também,
todavia, em seu aspecto mais concreto e mais próximo, a Vida e a Mente,
animadora e em toda parte imanente, do universo. Assim sendo, Deus, ao
mesmo tempo, é o Nada e o Tudo.

“Eu sou o que sou” foi a resposta de Deus a Moisés no Sinai quando o Seu nome
foi perguntado. Esta frase é desconcertante até compreendermos que ela quer
dizer que Deus está além da expressão, além da descrição e da definição. Na
realidade, significa: “Eu sou o Inominável!” “EU SOU”! A resposta declaratória
que Moisés recebeu é a única afirmação positiva a respeito de Deus que já se
pôde fazer! Deus é! Todos os outros enunciados terão de ser expressos
necessariamente em termos negativos, todos os outros só poderão dizer-nos o
que Deus não é.

O Tempo e a Salvação
A Mente, a Divindade, está além de todo pensamento e fora de toda imaginação.
Não podemos ter dela uma concepção correta além da que podemos formar por
analogia com a nossa própria experiência humana, o conceito do tempo sem fim
e do espaço sem limites e de uma Mente que coexiste com eles. Costumamos
pensar no tempo colocando-o em três compartimentos separados — o passado,
o presente o futuro. A idéia comum faz dele um contínuo, figurando-o em forma
de uma linha reta, que vem do passado, passa pelo presente e continua no
futuro. A idéia correta do tempo é uma relatividade, e a sua figura correta é o
círculo. Num círculo não existe passado absoluto, nem presente absoluto, nem
futuro absoluto: eles serão inteiramente relativos ao ponto em que começamos.
Além disso, o círculo não tem começo absoluto nem fim absoluto; ele é tão
relativo quanto é relativo o tempo.

Tudo, desde a célula microscópica, passando pelo homem, até o sol gigantesco,
segue um padrão preconcebido desse desenvolvimento tortuoso, erguendo-se,
a modo de espiral, a níveis cada vez mais altos. E isto se aplica não só ao seu
corpo exterior, mas também à sua vida interior e à sua consciência.

Quando se compreenderem adequadamente as implicações do princípio do


caráter sem começo e sem fim do cosmo, compreender-se-á também que a
nossa era histórica de uns poucos insignificantes milhares de anos deve ser
posta em confronto com uma era pré-histórica de milhões e milhões de anos.
Porque os ciclos planetários que precederam o nosso passaram em condições
de vastas e destrutivas sublevações da Natureza, os seus eventos foram
esquecidos e os seus registros se obliteraram. Entretanto, em nossa ignorância
e arrogância, continuamos a estimar os valores evolutivos numa base
insuficiente. A narrativa desconcertante do tempo que nos é contada pelos
registros manchados de lágrimas, que tão inadequada e imperfeitamente
passam por história, nos deixam perplexos somente porque não sabemos como
o homem vivia, pensava e sentia no passado distante, antes que a narrativa
tivesse sido posta por escrito. Até os sóis e as estrelas passarão: tudo é efêmero.
Só o misterioso Nada, do qual vieram, permanecerá. Pois só Deus realmente é.

A série de ciclos cósmicos não tem fim. A Mente infinita não decidiu tornar-se
criativa de repente. Sempre o foi e sempre o será. Toda a infinidade deste cosmo
é uma espécie de espelho, que reflete a infinidade de que ele provém. Toda a
Natureza é apenas uma parábola da realidade primeva, que a transcende.
A Mente cósmica encerra o pensamento do mundo. Nós humanos, somos uma
parte desse pensamento e, em grau limitado, partilhamos dele. O universo é uma
idéia na mente de Deus. Mas é também uma idéia que está sendo
experimentada numa infinita variedade de modos por uma infinita extensão de
tempo. Por conseguinte, todas as entidades vivas são diferentes umas das
outras — seja uma planta no chão, seja um ser humano sobre o chão. Considere-
se que cada rosto é afeiçoado individualmente, que não existem, em todo o
mundo, dois rostos iguais. Não existem, na totalidade da Natureza, duas coisas
iguais, nem dois seres iguais, como também não existem duas impressões
digitais iguais em toda a galeria de impressões digitais humanas. Não é
surpreendente que, enquanto a experiência de todo homem que compreende o
seu Eu Supremo é identicamente a mesma, e a identidade que ele descobre em
nada difere da que todos os outros descobrem, não existem dois homens sequer
que tenham sido formados pela Natureza segundo o mesmo modelo? No corpo
e na mente, na fisiologia e nas faculdades, na palma da mão e na sola do pé, na
emoção e no pensamento, a diversidade impera sobre mais de 3 bilhões de
entidades humanas que existem sobre a terra! Não existe forma na Natureza
que seja uma cópia exata de uma segunda forma, não existe acontecimento que
seja uma cópia exata de um acontecimento anterior. Isso mostra como é
infinitamente variada a tentativa da Idéia Infinita de expressar-se e a sua infinita
existência através do homem e do mundo.

Do ponto de vista humano, a característica mais importante da Mente Universal


é a sua aptidão criativa. Vemos surgir para a existência, por meio dela, o cosmo
infinito e sem limites, com os seus universos, as suas galáxias e os seus
sistemas solares. Foi explicado em The Wisdom of the Overself como essa
habilidade criativa inere à própria natureza da Mente Universal. Ambas são, de
fato, tão inseparáveis que isso constitui uma lei eterna e imutável. A aptidão
criativa é a característica mais importante do ser humano. Manifesta-se numa
série de maneiras, quer através do ato cego da auto-reprodução ou do ato
plenamente consciente da criação intelectual, quer na produção inspirada dos
artistas ou no engenho mecânico dos inventores. A energia criativa revela-se
também no destino do ser humano, que, benéfico ou maléfico, este está fazendo
todos os dias. E nas mãos de cada indivíduo está o permanecer ele na escuridão
e na ignorância ou o penetrar no reino da luz, da paz e do poder.

A manifestação do cosmo se repete infinita e eternamente, como reflexo da


natureza infinita e eterna da Mente Universal. O mundo é limitado e finito, ao
passo que a Mente Universal é ilimitada e infinita. A Mente Universal não poderia
fazer outra coisa senão cumprir a lei do seu ser misterioso. Desvelou uma
insinuação da própria infinidade ao desvelar um universo infinito, e da própria
eternidade ao desvelar um universo eterno. Daí que não devamos interpretar
erroneamente o conceito usado em Matemática de uma tediosa e interminável
repetição do finito como o verdadeiro infinito. Não é a intérmina continuidade do
tempo, senão a sua total ausência que é o verdadeiro eterno. Quem quer que
imagine que o infinito é uma grandiosa totalidade matemática, que se pode
alcançar amontoando uma dimensão incrível depois da outra, labora em erro.
Pois todas as dimensões, todas as figuras se relacionam com o espaço ou com
o tempo mensuráveis. O verdadeiro infinito é desprovido de espaço e de tempo.
Em sua essência pura, a Mente não pode ser incluída na categoria de espaço
porque não podemos medir-lhe as dimensões, nem pode ser incluída na
categoria de tempo porque não podemos medir-lhe a duração.

A Mente Universal nunca perde parte alguma de si mesma quando projeta o


universo. Na realidade, nada é retirado dela e nada, na realidade, é acrescentado
a ela. Isto acontece porque ela é realmente infinita. Através de um universo de
formas finitas, o infinitamente Informe só pode sugerir, mas nunca atingir uma
expressão adequada. Por conseguinte, não existe parte alguma em que ela não
esteja, como não existe parte alguma em que ela realmente esteja. Isto é um
paradoxo. Mas se quisermos obter uma compreensão intelectual da Mente
Universal, somos obrigados a pensar por meio de paradoxos. Daí que as várias
formas deste mundo contribuam para a forma de todo o cosmo, mas não
possam, por si mesmas, constituí-lo, pois até a totalidade delas está muito longe
de consegui-lo. A Infinidade de todas as infinidades tem um valor que lhe é
próprio, que transcende toda reunião possível de valores menores — por mais
completos que sejam.

Só a Duração Infinita é real. O movimento circular do planeta e as mudanças


tiquetaqueantes do relógio apenas medem o tempo, não o fazem. O tempo de
vigília se desvanece em sonhos como se fosse um simples nada, pois os
acontecimentos de um dia são vividos como que num lampejo. A experiência da
sucessão do tempo é feita para nós pela mente; por conseguinte, o próprio tempo
deve ser mental. Vemos objetos distribuídos no espaço e experimentamos
eventos ordenados no tempo. Não sabemos que os nossos órgãos dos sentidos
impõem a natureza particular dessa experiência em virtude da maneira por que
eles mesmos são construídos, que a nossa consciência do mundo é inteiramente
relativa a eles.

Há o que quer que seja aterrador para a pessoa centralizada em si mesma,


nascida e criada na cidade, na idéia da procissão de eternidades que se movem
sem cessar através da Duração Infinita. Para ela, é quase impossível apreender
o significado da Duração Infinita e do Espaço Infinito porque ela vive de um
momento para outro, numa constante procura de movimento e atividade, no meio
de um ambiente refreado e circunscrito. O significado se revela quase
imperceptivelmente e de modo perfeitamente natural a uma pessoa dotada de
maior misticismo, que tenha sido criada em imensos espaços desertos ou no
vasto ermo aberto, porque a imobilidade e o silêncio tremendos reagem sobre
ela.
Quando a mente humana resolver parte do mistério hieroglífico que lhe governa
a própria relação com o tempo, terá resolvido, no mesmo instante, o mistério
ligado da religião. O Eu Supremo não está no tempo, embora coopere com a
consciência do tempo do seu fruto — a pessoa a cuja existência ele preside. Que
uma parte do ser humano possa existir simultaneamente fora do tempo, é uma
afirmação ininteligível para a mente humana. É pouquíssimo provável que essa
idéia possa sequer começar a penetrar a consciência de muita gente em nossa
época atormentada. É difícil aceitar a verdade de que, debaixo dos horrores e
agonias do século haja uma vida divina de bem-aventurança, de serenidade, de
amor e de bondade. Pois os olhos não podem enxergar-lhe a beleza, os ouvidos
não podem ouvir-lhe a música, as mãos não podem tocar-lhe a realidade, nem
o intelecto concebe facilmente alguma relação entre as duas ordens de vida.

A Mente sempre foi e sempre será. O corpo está hoje aqui e amanhã
desaparece, e aqueles que nesciamente insistem em identificar-se apenas com
ele terão de mudar dia a dia e acabar perecendo com ele. Mas aqueles que se
identificam sabiamente com a Mente também, compartem da sua existência
infinitamente contínua. Que quis dizer Jesus ao afirmar: “Antes que Abrãao
fosse, eu era?” Quis dizer que, ao identificar-se com o eu do Cristo, o seu Eu
Superior, o seu Eu eterno, ele se identificava com alguma coisa que sempre fora
e sempre seria, com um ser eterno e imortal. Quis dizer que os que só
conseguiam personalizá-lo, que só alcançavam pensar nele como o Jesus
humano, imerso no tempo e morrendo com o corpo, não poderiam compreendê-
lo e não o conheciam como ele realmente era em seu eu superior.

“É chegado o dia da Salvação”, anunciou Paulo, o apóstolo cristão, que jamais


conhecera Jesus o homem, mas conhecera Cristo, o Eu Supremo, que iluminava
o homem. Pois a salvação não está somente no futuro aprazado, mas também
no eterno Agora — que não é idêntico ao presente oportuno. É conquistado pelo
esforço difundido ao correr dos anos, mas a sua feliz culminação chega de
repente e sem esforço. Nesse momento, o recém-chegado pode sorrir para si
mesmo, compreendendo que a sua busca visava a alguma coisa que ele já
possuía e que, na realidade, sempre possuíra. E percebe então que o eterno
Agora do que perpetuamente é se relaciona, de certo modo inexplicável, com o
“agora” fugidio do que perpetuamente flui; que a aparência se acha tão
sacramental e intimamente em comunhão com a realidade que as duas
permanecem misteriosamente abraçadas.

“Eu sou o que é, o que foi, o que será”. Estas palavras, que refletem a
grandiosidade da Eternidade a meditar sobre si mesma, eram reverenciadas
pelos egípcios, que as esculpiram sobre o santuário do templo de Sais. Foram
reverenciadas por Beethoven, que as escreveu num cartão, emoldurou e
conservava sempre à mesa onde compôs a sua música imortal.
Há uma proveitosa lição prática que se pode tirar desses fatos. O homem deveria
forcejar por obter uma visão mais plena da vida, abraçando o ponto de vista
deste observador além do seu atual ponto de vista. Uma alteração dessa
natureza lhe permitiria não só ser um ator no palco da vida, como o é
presentemente, mas também um espectador. Desempenharia, assim, um duplo
papel, sendo, paradoxal e simultaneamente, o observador do seu mundo e o
observador do observador do seu mundo! O primeiro observador reagiria ao
ambiente, mas o segundo se limitaria a ver-lhe as reações. O primeiro é o ego,
o segundo é a alma. O primeiro, ativo, evolve através do padrão que lhe foi
estabelecido pelo segundo e, assim, sem querer, aponta para a existência real
do segundo. Por isso mesmo é um exercício salutar e necessário para o
aspirante à meta do filósofo, a consecução do místico ou a coroa do devoto
religioso praticar constantemente, tomando os eventos perturbadores,
emocionantes, importantes ou alegres de sua vida, à proporção que ocorrem, e
considerá-los por um prisma muito diferente do prisma pelo qual os encara
habitualmente o homem que a nada aspira. E deveria fazê-lo não só
impessoalmente, mas também como se eles já pertencessem ao passado, como
se fossem apenas lembranças. Deveria mirar a serenidade ou a segurança com
que, de ordinário, só é capaz de olhar para os anos que há muito se foram.
Recorde ele e aplique a doutrina mentalista de que o tempo não tem sentido
quando afastado da sucessão dos seus pensamentos, de que é apenas uma
idéia imposta à sua consciência e de que ele pode lançar antenas para a origem
dessa idéia, para o que por si mesmo está fora do tempo. Para que ele possa
libertar-se da dominação do tempo terá, necessariamente, de libertar-se da
dominação do presente também. O que dele se requer é que se eleve
calmamente, interiormente desapaixonado, e sublimemente suspenso acima da
sua evanescência.

Se esse exercício de converter, pela imaginação, o presente no passado for feito


duas vezes por dia, será suficiente para produzir bons frutos sem, todavia,
interferir nas obrigações cotidianas. Um ponto essencial é que ele seja iniciado
abruptamente; é preciso que tenha a força do inesperado. Um resultado prático
será conferir, debaixo de todas as suas reflexões habituais sobre o tempo, o
sentido de um poder imenso que, vindo de baixo, o apóia e sustenta
incansavelmente. A vitória sobre si mesmo o ajudará também a libertar-se, até
certo ponto, do domínio enganoso do ego. Tenderá a exaltá-lo acima das
perplexidades da sua existência terrena e fixar-lhe os pensamentos numa ordem
mais elevada de ser em conjunto, em que a paz reina, eterna. Embora essa
ordem pareça tão distante dele, não está fora do seu alcance. Aplicando o
pensamento perseverantemente a essas atitudes e focalizando-lhes firmemente
a verdade até que o seu sentido libertador o penetre de todo, a pouco e pouco o
efeito tranquilizante delas lhe saturará todo o ser. Desempenhando o papel de
Testemunha da própria vida, ele começa a descobrir o que significa realmente a
paz interior. Depois, se juntar o exercício a certas disciplinas das paixões e
negações do corpo, deixará de imaginar que vive apenas inteiramente no tempo,
pois os lampejos do seu verdadeiro eu, que ele verá, lhe revelarão que não existe
tempo em que ele possa viver.

O homem que não se cansa, mas leva até o fim essa busca do Sem-Ego pelo
ego, descobre que, enquanto o corpo age, atarefado, no tempo, a mente se
imobiliza no eterno. Essa nova consciência permanece com ele pelo resto dos
seus dias. Diz-lhe a experiência que este é o significado da solene declaração
do Novo Testamento, segundo a qual “já não haverá tempo”. Dessarte, estando
já de posse do futuro, não necessita planejá-lo. Tendo galgado, pelo degrau do
passado, a plataforma da iluminação, não quer descer novamente. Vendo o
presente como um sonho, não deixa que se dissipe a vigília. Aqui encontra ele o
reparador eterno-agora, a libertadora eterna-liberdade. Aqui os cuidados
gerados pelo tempo se calam e as vidas aprisionadas aos lugares se libertam.
Aqui há felicidade sem causa externa, amor sem pessoas, verdade sem
pensamento. Aqui está a terra natal de que provieram todos os homens e a que
eles, secretamente, ainda pertencem.

Todo o planeta se torna em imagem para o homem que compreende. As


grandiosas paisagens naturais passam a ser um emblema da beleza divina. Os
mares arfantes e os rios fluentes convertem-se num lembrete do poder protéico
que tem o Uno de assumir todas as formas imagináveis como o Muitos. O céu
azul muda-se numa insinuação da total ausência de formas do Absoluto. A
incessante rotação de dias e noites, estações e anos, indica a eternidade do Eu
Supremo. Dessarte, a terra, a água, o ar, o movimento planetário e o movimento
solar falam ao homem d’Aquele que os transcende.

Deus e o Homem
Ninguém pode medir o poder infinito e ninguém pode pesá-lo. Ninguém pode
tocá-lo com as mãos nem contemplá-lo com os olhos. Entretanto, alguma coisa
que emana dele misteriosamente assume forma em nossa experiência. Eis aí a
verdadeira razão por que homens em todos os séculos e em todas as terras
deram-se ao trabalho, e impuseram a si mesmos o sacrifício, de empenhar-se
na busca desse poder. A doutrina filosófica da Essência de Deus repousa sobre
os sólidos fundamentos das declarações dos que, tanto no Oriente quanto no
Ocidente, tanto nos tempos antigos quanto nos tempos modernos, tiveram êxito
nessa busca e se aproximaram de Deus. A sua verdade foi conhecida dos
sábios, dos maduros e dos inspirados de todos os períodos, em todas as partes
do mundo, e verificada por eles. O que eles fizeram e conheceram aponta o
caminho para todos os outros fazerem e conhecerem. Pode ser difícil, pode exigir
muitas existências de esforços, mas não é prerrogativa especial e exclusiva
deles. Eles se destacam como símbolos para toda a raça humana, dizendo-nos
o que realmente somos e para onde vamos. Se as pessoas atentassem para os
seus escritos, lhes aproveitassem os conselhos e aplicassem o que aprendem
às suas próprias vidas, o resultado seria que, em lugar de destruir a fé, as
dificuldades a aprofundariam.

Como milhões de árvores que estão todas enraizadas na mesma terra, milhões
de mentes humanas estão enraizadas no mesmo ser universal. Tudo e toda
criatura que existe no universo deve o próprio ser ao Ser não diferenciado, a
Mente. Se declararmos, portanto, que existe algo divino imanente em todos os
homens, não estaremos declarando um absurdo. Não basta a quem quer que
seja olhar para o próprio corpo e dizer que viu um homem. É mister que olhe
também para as misteriosas profundezas da sua mente. Assim como o
Ordenado não pode provir do Caótico, assim o Consciente não pode provir do
Inconsciente. Se a primeira verdade significa que o universo é governado
divinamente, porque a sua ordem indica uma divina inteligência eterna, a
segunda verdade significa que o homem tem raízes divinas, porque a sua
consciência indica a divina onisciência. A derradeira verdade da vida humana,
assim como da existência universal, é que ela é tão-somente o eco de um
murmúrio emitido pelo poder único e invisível — Deus. Tudo o que alguém pode
saber acerca de Deus é o que pode encontrar em si mesmo, em sua essência.

Deus está tão entrelaçado com o homem que não é possível separá-los. Não se
aplica apenas a místicos arrebatados, mas também aos homens comuns, a frase
verdadeira do poeta Tennyson: “Mais próximo está Ele que o respirar, mais
próximo que as mãos e os pés”. Todas as vezes que ouvem ou vêem alguma
coisa, que a tocam, provam ou cheiram; todas as vezes que a recordam ou
raciocinam sobre ela, é a mente quem realmente o faz. E isto, quando
analiticamente rastreado ao seu caráter supremo, é a base universal indivisa de
toda experiência e de todo pensamento, de toda vida e de toda existência —
Deus. As suas sensações e os seus pensamentos podem estar associados a
crenças materialistas sobre a natureza da mente, mas isto não lhes altera o
caráter fundamental não materialista. Se duvidam da existência divina, só estão
em condições de fazê-lo porque empregam o que é, na realidade, um poder
divino! O pensamento interno do eu e a experiência externa do mundo não se
ergueriam se não tivessem por base esse princípio fundamental da Mente. O
próprio poder de pensar, por cujo intermédio negam a Deus, é, por si mesmo,
uma manifestação de Deus dentro dos próprios eus. A negativa só é
paradoxalmente possível porque Deus existe. O que eles efetivamente negam é
uma criatura da sua imaginação. De que maneira forças destituídas de
inteligência podem produzir seres inteligentes; de que maneira energias cegas
são capazes de produzir energias que têm um propósito: eis aí duas perguntas
a que os materialistas não respondem satisfatoriamente.

É razoável que um ser que raciocina, como o homem, exija uma razão para a
sua existência. Mas os que foram levados pelo ateísmo à negação da sua
natureza espiritual, iludiram-se. Tomam erroneamente o primeiro exercício do
seu poder pela mente pela sua suprema capacidade madura. Sem tal
capacidade, esses homens não poderão ser recriminados se vierem dizer-nos
que o espírito é uma ilusória miragem. Entretanto, não devemos crê-los. Se isso
fosse verdade, estas páginas nunca teriam sido escritas, porque não haveria
sobre o que escrever. Nem centenas de místicos escritos se ergueriam do
passado para silenciar-lhes o erro nos lábios. E outras centenas ainda surgirão
do futuro velado.

O motivo por que o homem foi subitamente dotado de uma alma em determinada
fase da evolução é uma pergunta para os fanáticos religiosos. Ela foi criada pelas
suas afirmativas, de modo que a eles compete responder. Para o mentalismo, o
homem nunca deixou de ter alma. Onde quer que haja vida há mente. E a vida
se estende, a partir dos minerais, através de todos os reinos da Natureza. O
nascimento e a morte, o vir e o ir de toda criatura individual dentro da Natureza,
são governados por um poder superior, a que ela está inseparavelmente ligada.
Gerações de seres seguiram-se umas às outras como as ondas de um oceano.
Para onde? Todo esse impressionante movimento de vida cósmica, toda essa
tremenda interação de criaturas sem conta em estrelas incontáveis tem apenas
uma só e suprema direção, ainda que inconsciente: o redescobrimento do eu
vivo existente em Deus.

Aquele que sabe realmente pensar, no sentido mais profundo da palavra,


compreende que é preciso haver uma fonte infinita de todo o universo, e de toda
a vida que existe no universo, e de toda a consciência que existe nessa vida. As
dificuldades do homem que sofre nascem, em última análise, do fato de se haver
ele separado, no que concerne à fé e à consciência, dessa fonte. Quando deixa
de adorar a Deus, ele passa a adorar o seu pequenino ego. A sua incapacidade
de associar os dois fá-lo sofrer pelo antagonismo da Natureza. Julga-se em sua
cegueira, auto-suficiente — sem perceber que, desde o momento em que tenta
fazê-lo, está hostilizando o próprio poder, do qual depende. Essa ignorância
torna-se insanidade. O seu interesse na vida termina com o ego, que passa a
ser o centro do seu universo. Interpreta-se mal a si mesmo e interpreta mal as
suas experiências. Afligem-no dificuldades — muitas evitáveis — desde que
nasce até que morre, pagando assim o preço pesado da sua ruptura com a fonte
da própria vida e da própria mente. Ao exaltar o ego finito, ao separar-se da sua
origem infinita, comete o seu maior erro e persegue uma ilusão depois de outra.

Tal é a situação do homem nos dias que correm. Muito embora a realidade que
existe por detrás dessas ilusões esteja à sua volta e em seu interior, a sua
relação com ela é idêntica à de um cego com o brilho fascinante de uma fieira
de pérolas que jazem em suas mãos. O ego pessoal e físico entra a acreditar
que representa tudo o que há nele, caindo assim na maior das ilusões, quando,
durante todo o tempo, a vida e a consciência do Eu Supremo são a causa da sua
própria existência e expressão. É esse terrível alheamento espiritual que se
encontra no fundo de quase todos os pecados e sofrimentos humanos. Afinal de
contas, como pode haver paz para alguém se a sua natureza inferior ainda o
escraviza, ainda lhe perturba as relações com outros, ou lhe rompe as relações
com o seu eu mais divino?

Somente o sol pode suportar a mais apropriada comparação com o Eu Supremo.


Nunca poderá ser realmente coberto por trevas nem aclarado por outro orbe; e
assim também o Eu Supremo nunca é realmente coberto pela ignorância da
pessoa nem aclarado pelo conhecimento que dele tem a pessoa. O sol ilumina
tudo o mais e, assim, faz conhecidos os outros objetos; da mesma forma, a
verdade, como diz o texto sânscrito, é “O que, conhecido, faz tudo o mais
conhecido”.

Na alma divina de todo ser humano há perfeita paz e inalterável bondade,


mesmo quando na pessoa existe um corpo enfermo e uma mente perversa. No
eu superior são permanentes a doçura e o amor, até quando em sua projeção
se mostram, às vezes, avareza e ódio. O sentimento do homem pode entregar-
se inteiramente às más paixões, mas o ser mais íntimo do homem nunca se
entrega. Permanece inviolado. Os seus pensamentos podem ser subjugados,
mas o seu verdadeiro eu não é tocado. O domínio do mal pertence apenas ao
nível das aparências transitórias, não às realidades permanentes. Se
pudéssemos penetrar com suficiente profundidade na alma de um homem — por
pior que ele fosse — descobriríamos que é fundamentalmente bom. A base da
natureza de toda a gente é a bondade. O mal não passa de espessa camada de
pensamentos e tendências sobrepostas a ela. O homem que ele parece ser é
uma coisa; o homem que ele realmente é, debaixo das aparências, é outra. A
coordenação dos dois, tal e qual está expressa no enunciado, “Eu e meu Pai
somos um”, traz harmonia e felicidade. Com ela, a pessoa entra no reino dos
céus.

Toda a órbita da vida do homem é assediada por uma terrível contradição. De


um lado, ele vê que tudo e todos são efêmeros e perecíveis. De outro, persegue-
o a esperança de que a vida tenha mais alguma coisa escondida debaixo do seu
véu. Sente-se para sempre impelido a procurar esse Mais. A explicação é
simples. Tanto o que ele vê quanto o que espera são verdadeiros; cada um
explica o outro. Pois o mundo e o homem são manifestações finitas do Ser
Infinito; consequentemente, a parte busca, afinal, a sua origem como a água
procura ascender ao próprio nível.

Quão necessário é recordar o princípio fundamental e não o perder de vista entre


todas as prementes provações e fardos pessoais de hoje! Quão essencial é
recordar, quando os sucessos contemporâneos nos desalentam, que em nosso
ser mais íntimo existe o verdadeiro, o singelo, o sereno, o sublime Eu Supremo!
Ele de nós quer o amor e, em troca, oferece fartos benefícios de paz, segurança,
compreensão, ajuda e força. Até quando, durante a guerra, a humanidade
realizava o seu destino mais sangrento, a eterna Testemunha o descobriu, e lá
estava, nos corações de todos os combatentes, Aquilo que é a essência de toda
piedade — a abençoada e benigna presença espiritual que finalmente redimirá
os seus filhos pródigos.

Se o cosmo, de certo modo, é a expressão da Mente infinitamente sábia, não


pode deixar de ser bom em seu significado central e em seu resultado final. Pois
onde está o homem sábio que também não é um homem bom? E se uma
entidade finita tão limitada quanto a humana é boa em seu melhor nível, quanto
mais não o será a entidade infinita ilimitada, Deus! Em suas mais elevadas
percepções do universo, o vidente místico descobre que a idéia diretora que
existe por detrás dele é uma idéia significativa, e que a presença orientadora
dentro dele é uma presença amiga. Descobre que nem ele, nem qualquer outro
homem, está completamente só. Há uma presença divina que existe, conhece e
zela. Há um Poder, invisível e universal, imortal e original, inefável e
transcendental, que a todos cerca e sustenta, através do seu representante em
todos — o Eu Supremo.

Vítimas desta civilização intranquila e conturbada, as massas não conseguem


ler o verdadeiro significado das suas vidas, mas o vidente iluminado, que se
deixa ficar em quiescente atitude de espírito ao pé do formoso Iago do seu ser
interior, lê-o de golpe. A consciência filosófica da corrupção da humanidade está
sempre associada à consciência tranquilizante da evolução da humanidade; a
tristeza que lhe provoca a difusão do mal está sempre mesclada à esperança
que lhe advém do bem final. Se é excelente, e até essencial, formular a pergunta,
Que sou eu? é ainda melhor acrescentar a pergunta, Para que estou neste
mundo?

Depois que tivermos visto a última cidade e percorrido o último país; depois que
tivermos palmilhado as ruas de todos os sítios históricos e quase dado a volta
ao planeta, teremos ainda de voltar, por força, à pergunta: “Qual é o significado
da nossa vida neste mundo?” É mister que cesse por um momento o movimento
circunferencial, é mister que se detenham os pés irrequietos. Pois terão sido, em
sua maior parte, malbaratados os anos que não foram gastos na viagem em
direitura às verdadeiras respostas a essas perguntas; que têm sido votados
totalmente, e não apenas parcialmente, a este globo de terra, e não às sérias
reflexões acerca dos motivos por que nascemos sobre ele.

A menos de compreendermos por que estamos aqui na Terra, poderemos


cometer erros palmares. Gastamos todas as nossas energias em necessidades
físicas ou apetites animais, em trivialidades sociais ou divertimentos
evanescentes, em curiosidade intelectual ou metas fúteis; ou em trabalhos sem
fim, cujas recompensas empregamos apenas na aquisição dessas coisas.
Gastamos e lidamos por conseguir um corpo sadio, um corpo bem alimentado,
um corpo bem vestido. Isso é bom, mas serão essas metas fins em si mesmas?
Acaso nos impedirão as roupas, a comida e a robustez física de praticar um erro
estúpido ou de seguir rumos criminosos, que terminam invariavelmente em
sofrimentos ou em desastres?

Não estamos aqui apenas por amor do corpo, mas muito mais por amor da alma.
Temos de alimentar, vestir e abrigar o corpo unicamente porque ele pode ser o
instrumento da obtenção da consciência mais divina. Com efeito, a nossa
existência física se gasta em menos de um décimo do período da nossa
existência superfísica. Precisamos trabalhar para granjear o dinheiro necessário
ao alimento, ao vestuário e ao abrigo do corpo, só para que, no fim, ele possa
levar-nos pela estrada que conduz a Deus. A carne, de fato, se movimenta por
amor da alma. A vida cotidiana nos proporciona condições por cujo intermédio o
ego forceja por altear-se acima de si próprio. Quando nos lembramos de que a
importância vital desse eu superior sói ser subestimada e insuficientemente
compreendida pela Política, pela Economia e pela Sociologia, temos de
compreender quão incompleto há de ser o entendimento delas e, por
conseguinte, quão imperfeitamente poderão elas desempenhar as suas tarefas.
Os homens que não têm interesse por objetivos mais alevantados, que não têm
fé em propósitos espirituais, que não têm reverência pelo ideal que enaltece,
cairão, por força, na ofensa moral e na rebeldia intelectual, que é o materialismo.
Os materialistas poderão dizer o que quiserem, mas não se pode construir com
êxito uma civilização proveitosa sem um ideal espiritual. A libertação das
misérias da necessidade econômica pode ser boa mas, sem a libertação das
misérias da cegueira materialista, resvalará para o fosso do perigo. A
organização da vida humana que passa por alto a meta suprema do nascimento
humano, que é compreender a divindade em cada coração, apenas se arrisca.
Eis por que uma das obrigações da entidade humana é descobrir o seu lugar e
o seu significado na Idéia planetária. Pois o seu plano básico não pode ser
alterado por ela. Até as chamadas conquistas da Natureza, levadas a efeito pelo
homem, são, na realidade, parte dessa Idéia, posto que ele o não saiba. O seu
alardeado livre arbítrio é muito limitado. Não obstante, a crença de que o
universo existe para a própria evolução do indivíduo só é parcialmente errônea.
Se existe para os propósitos da Natureza, que o indivíduo é obrigado a
coadjuvar, é a sua própria cooperação final e voluntária com esses propósitos
que lhe põe em relevo as melhores potencialidades e as conduz a uma magnífica
eflorescência.

Esse problema da relação entre a experiência pessoal e a experiência humana


total, de que ela é apenas uma parte, suscita perguntas e respostas. O homem
terá de olhar para longe e compreender o papel e a meta de toda a humanidade
neste planeta se quiser compreender o seu papel e a sua meta. Terá de encarar
larga e amplamente os acontecimentos particulares e relacioná-los com as
operações impessoais da lei universal, emprestando-lhes assim um padrão,
pois, de outro modo, eles não teriam sentido, e encontrando para eles um lugar
na ordem universal das coisas, pois, de outro modo, eles seriam insignificantes,
injustos e insensatos. Terá de ver a suprema direção dos seus próprios esforços,
bem como a dos esforços da sociedade. Terá de ver um quadro impessoal de
tudo, um quadro mundial. A vida, então, deixará de ser caótica, as fortunas
pessoais deixarão de ser confusas e a experiência se tornará ordenada e até
santa. Pois essa é a ordem de Deus. Compreender a vida é perceber essa
ordem. Ser feliz é cooperar de boa mente com ela.

O ser humano desempenha o papel de simples célula na consciência e na vida


da Mente Planetária. Existem milhões de “células” dentro dela, dentro da alma
do universo. Mas dentro do próprio corpo do homem existem outros tantos seres
menores, desempenhando um papel semelhante em relação a ele. Dessarte, a
aptidão criativa da Natureza está sempre e em toda a parte em ação. Essa
infinita variedade de vida, de mente, de movimento e de atividade, todas dirigidas
para finalidades racionais e intencionais, é Deus em auto-expressão. A própria
infinidade revela ao homem, claramente, a natureza infinita de Deus. A sua
operação sem término lhe revela a inexaurível criatividade de Deus. Qual é o
significado desses fatos biológicos? Eles significam que tudo e todos se
encontram relacionados com alguma coisa ou alguém, que é preciso descobrir
a natureza correta dessa relação para que se possa lográ-la com êxito e que,
enquanto o homem não enxergar a sua relação com o seu Eu Supremo de um
lado, e com o seu eu inferior de minúsculos microrganismos do outro, viverá em
desarmonia consigo mesmo e em conflito com o universo.

O conhecimento pessoal e direto desses fatos proporciona, até no meio dos


males e horrores do século XX, uma esperança inabalável no futuro da
humanidade. A menos que os seus educadores e líderes, os seus guias e
governantes aprendam a descortinar os seus espantosos problemas à luz direta
ou refletida desse conhecimento, que Jesus viu e Buda inferiu pelo raciocínio, as
soluções, o mais das vezes, lhes fugirão enquanto eles tatearem no escuro. Não
é de utilidade apenas para vadios ociosos e meros sonhadores. Corretamente
exposto e convenientemente compreendido, pode ser colocado por qualquer um
em relação com as lutas e porfias deste áspero mundo. Tem valor prático direto
para este mundo na medida em que oferece os únicos princípios em que se pode
basear a ação reta e com que se pode alcançar a verdadeira prosperidade. A
sua prática abate o egoísmo e exalta a virtude, pacifica a violência e dissolve o
ódio. É um conforto para os que outrora brincaram com a vida quando esta era
boa para eles e que, ao depois, lhes mostrou o seu segundo e medonho rosto.

A situação da raça humana hoje em dia parece tão escura que os pessimistas
perguntam, “Onde está Deus?” e “Deus se interessa realmente pela
humanidade?” Qualquer um pode tentar responder a essas perguntas escorado
numa visão superficial do mundo. Mas somente uns poucos estão capacitados
para responder a elas por haverem explorado os mais íntimos recessos do seu
próprio ser psicológico e descoberto o seu parentesco com Deus. São os poucos
que possuem a perfeita segurança, por haverem testemunhado a própria
experiência, de que esse íntimo eu é divino, está ligado a Deus. Através desse
eu são capazes de entender uma partezinha das intenções de Deus para com a
raça humana. Consequentemente, possuem também a perfeita segurança de
que essas intenções são benévolas, apesar de todas as aparências em contrário.
Para os que perderam a fé em virtude do curso trágico dos acontecimentos
mundiais, a resposta deles encerra esperança.

O poder divino não está ausente do mundo nem de nenhuma situação que possa
desenvolver-se no mundo. A lei divina controla todas as situações. É verdade
que existem homens maus entre nós e forças más que trabalham por detrás
deles, mas eles nunca poderão governar realmente o mundo, nunca poderão
determinar completamente o curso que a vida da humanidade tomará. A vontade
de Deus sempre se fez e sempre se fará. Nenhuma vontade menor poderá
triunfar. E foi a vontade de Deus quem estabeleceu, para a humanidade, o curso
que conduz da treva à luz, da ignorância ao conhecimento, da maldade à
bondade, da impotência ao poder, e, acima de tudo, da animalidade selvática à
humanidade racional e, dali, à espiritualidade intuitiva.
10
A Voz do Profeta

Trabalhando apartado da intuição e divorciado da consciência, subjugado pelos


desejos, pelas paixões e pelos egoísmos; ensoberbecido pelo orgulho e pelo
auto-engano acerca dos seus alardeados poderes; figurando a Ciência como o
Messias a caminhar de mãos dadas com a Psicanálise, o intelecto conduziu
muitos homens e mulheres sofisticados, antes da guerra, natural e
inevitavelmente, a um cínico materialismo e a uma “liberação” que, na realidade,
é apenas uma busca de prazeres. Cuidaram eles que as circunstâncias sociais
e as emoções do corpo são as forças supremas a que responde a vida humana.
Julgaram que o caráter humano fosse, sobretudo, o produto do meio físico e da
hereditariedade. Desprezou-se a Religião como se fosse somente um incidente
na história da mente humana, ou um mero capricho da mesma história;
transformou-se a Metafísica numa criada da sua própria concepção do mundo,
desolada, vazia, amoral, e o misticismo foi de todo em todo ignorado. Não
obstante, viver adormecido na ignorância do ego, existir sem a crença ou sem a
compreensão de que uma alma divina existia em sua origem, continuar
presunçosamente satisfeito com a indiferença comum, e repousar nessa ilusória
segurança, era jazer estirado numa espécie de túmulo espiritual. Os incapazes
de compreendê-lo, incapazes de compreender o sentido mais profundo da
própria experiência e do próprio eu, metiam a riso ou contemplavam indiferentes
as sinceras tentativas para redespertar o sentido divino intuitivo da humanidade.

Receberam um choque tremendo quando lançaram a vista às enormes áreas de


dor e às profundezas de maldade que a guerra fez surgir. Ali estava um
fenômeno diante do qual as suas teorias complacentes tiveram de recuar,
inseguras e perplexas. Ali estava uma civilização, baseada em grande parte na
prática de sanções materialistas, que atraíra sobre si um desastre esmagador. A
guerra demonstrou a insuficiência de todas as concepções materialistas, que
atribuíam a existência de aflições humanas única e exclusivamente a más
condições econômicas ou simplesmente a repressões, frustrações e perversões
psicológicas. Essas causas poderiam explicar alguns dos males da humanidade,
mas não poderiam explicar as monstruosidades de crueldade e criminalidade na
imensa escala continental em que então se perpetraram. A total incapacidade da
sociedade moderna de manter a paz, a lastimosa inaptidão da civilização
moderna para impedir que seres humanos se convertessem em feras vorazes,
humilharam e deprimiram muitos deles. Mas também instruíram alguns. Pois só
então, quando as penosas consequências de uma concepção materialista do
mundo e as ações mal orientadas que dela derivam tiveram, afinal, o efeito de
um bumerangue, entraram essas pessoas a refletir sobre a insuficiência da
primeira e a insensatez das segundas. E concluíram que se haviam absorvido
de tal forma nos assuntos terrenos que se tinham esquecido da existência de um
assunto extraterreno.

Seria verdade, afinal de contas, que, não dirigido por Deus e não fortalecido por
forças divinas, o homem só poderia meter os pés pelas mãos? Dar-se-ia o caso
que as religiões tradicionais de todos os povos, durante todos os tempos, não
tinham estado a iludir-se a si mesmas nem aos outros, mas continham,
efetivamente, alguma verdade? Assim, os intelectualmente mais humildes
principiaram a voltar-se, contritos, para caminhos ignorados. Assim, do seu
sentido do malogro colossal da sabedoria humana desajudada despertou um
novo ímpeto espiritual. E, assim, eles expiaram os seus pecados, educaram as
suas mentes, e santificaram os seus corações num sentido muito mais
verdadeiro do que o sentido ortodoxo e convencional. Viram, por fim, que, se se
mantiverem afastadas da vista as misteriosas realidades ocultas da existência,
não poderiam esperar pelo melhor, e teriam de esperar o pior, da própria
existência. Isto vinha demonstrar o dito filosófico segundo o qual “o materialismo
pode capturar o pensamento e o sentimento do homem, mas não pode retê-los”.
Tal é a história espiritual de um limitado número de pessoas apenas. Se tivesse
sido a história de todas as pessoas, como seria hoje diferente o futuro delas!

Não basta que os líderes da humanidade concentrem o seu tempo e as suas


energias na superação da crise militar, econômica e política. Eles não deviam
cometer o erro de ignorar os princípios mais elevados e esquecer-se de procurar
a ajuda divina. E porque foi a crise moral que produziu essas exterioridades,
homens e mulheres necessitam de mais espiritualidade, isto é, mais religião,
mais misticismo e mais filosofia, e não menos, em nome da pseudopraticidade.
Precisam de um ou dois componentes desse trio, ou de todos eles, porque
dessas fontes flui o senso moral, a consciência de uma distinção entre o certo e
o errado, o dever sentido de autocontrole em relação aos seus semelhantes, e
de não os prejudicar, e o sentimento de compaixão pelos outros. E também
precisam deles, para redimir a fé e restaurar a esperança.

A verdade espiritual, afinal de contas, é uma parte essencial da cura das


moléstias da desilusão e do desalento, da infelicidade, da preocupação e do
pecado, que se abateram sobre o mundo. Esse fato tem sido ignorado em razão
de questões competidoras ou obscurecido em virtude das explorações humanas.
O seu atrativo reside, em última análise, na aceitação intuitiva sentida no fundo
do coração, e a sua configuração deve ser encontrada ali porque ali está o Eu
Supremo. O instinto religioso tem sido um instinto elementar e, portanto,
persistente em todo o correr da história enormemente longa do homem. Tem
sido encoberto e disfarçado, posto de lado ou aparentemente sufocado, às
vezes, mas nunca foi realmente morto. E como poderia tê-lo sido se no próprio
centro do seu ser existe sempre o espírito divino no interior do homem, que
guarda e garante a redenção final!

Se não existisse uma alma divina dentro dele, os seus ideais seriam fúteis e
inúteis. É isto que dá uma secreta realidade aos seus esforços no sentido de
aprimorar-se e aos seus anelos de aperfeiçoamento social. Há um mistério não
revelado no coração do pior indivíduo. Pois cada qual encerra um raio da Mente
universal, que impregna todos os homens, muito embora também lhes fuja! É a
presença da divindade dentro dele, por mais encoberta e por mais
profundamente escondida que possa estar, que dá uma espécie de ideal em
seus melhores momentos e o torna insatisfeito com o que é agora. É essa
presença que o leva a atribuir diferentes valores a coisas diferentes e a estados
de espírito diferentes, à medida que ele, inconscientemente, se aproxima da
consciência dela. Acima de tudo, ordena-lhe que siga a religião.

É preciso dizer o que se entende por religião. Poderia significar o fato de


pertencer a uma organização pública histórica como a Igreja de Roma, ou de
aceitar um sistema de doutrinas a respeito de Deus, do homem e do universo,
como o hinduísmo, ou de experimentar um estado emocional, como a conversão
ao metodismo. Ou poderia significar uma fé particular em Deus de um indivíduo
sem compromissos. Para as nossas finalidades, basta dizer que os homens lhe
sentem a necessidade quando tentam ir além das primeiras impressões
sensoriais da sua existência, que a religião pura é a crença do homem num poder
secreto e invisível, mais alto do que ele, que a religião popular organizada
deveria significar essa crença simplificada e adequada às massas, e que
ninguém tem necessidade de expressar a sua fé juntando-se a alguma
organização, se não quiser fazê-lo. São as seguintes as funções apropositadas
da religião: primeira, instilar em seus crentes a fé num poder superior, e sustentá-
la; segunda, fazê-los comungar com esse poder e inculcar-lhe o culto dele;
terceira, melhorar-lhes o caráter e enobrecer-lhes a conduta; e quarta, desafogar
a angústia emocional.

Qualquer religião pública oferece o primeiro passo para levar pessoas a uma
vida de suprema significação. Os seus benefícios atingem todas as classes. Os
simples e ignorantes têm tanto direito de ser servidos quanto os evoluídos e
cultos. Ela foi estabelecida, com efeito, em primeiro lugar, para o benefício da
multidão. A sua obra ensina aos homens não só que Deus existe, mas também
qual é a sua relação com Deus; não só explica as consequências psicológicas
dessa relação, mas também inculca a moral de que eles precisam. A religião é
a fonte mais difundida, mais popular, e a mais elementar de procedimento
virtuoso. Por conseguinte, é o meio mais valioso de elevar a sociedade. Se ela
não fizer mais nada além de oferecer um baluarte prestimoso contra os
remanescentes da extrema bestialidade do homem, já será necessária e estará
justificada. Este é o seu dever iniludível, pois uma fé em Deus que não produza
pelo menos isto, só poderá ser uma fé hipócrita e, consequentemente, pior do
que inútil.

Os que dizem que a Religião fracassou, a pretexto de que ela não conseguiu
evitar a guerra, julgam com demasiada rapidez. Pois qual teria sido o
comportamento do homem durante os anos de paz se as restrições morais da
religião — por mais fracas que fossem — tivessem sido totalmente inoperantes?
Admitamos que exista manifestamente algum fracasso, mas a justiça nos obriga
a aduzir que foi um fracasso apenas parcial. Se o mundo assistiu, nos trágicos
sucessos do nosso tempo, ao triunfo temporário de forças desconhecidas do mal
sobre o planeta, e se examinarmos as causas desse malogro parcial,
chegaremos à conclusão de que a primeira é que a religião não tem sido fiel a si
mesma. As suas funções reais têm sido contrariadas com demasiada frequência
pelos seus ofícios tradicionais. É um fato que a religião sincera ensina os seus
devotos a esquecer preconceitos e a vencer animosidades e, por certo, não a
lembrar-se dos primeiros nem a alimentar as segundas. Maomé, por exemplo,
pregou democraticamente a fraternidade de todos os homens. A maioria dos
seus seguidores, indignamente, só aceitou a fraternidade dos maometanos.
Assim, os seus ensinamentos degeneraram com o tempo. A história de todas as
outras religiões — cristianismo, judaísmo, hinduísmo ou budismo — está
profunda e escuramente manchada de pensamentos irreligiosos e práticas
infiéis.

Uma segunda causa é que as pessoas modernas, sobretudo as pessoas mais


jovens, querem investigar por sua conta, usar o seu próprio julgamento e não
aceitar cegamente como verdade religiosa o que quer que lhes digam. O tempo
em que as teologias tribais poderiam satisfazê-los está desaparecendo
rapidamente diante dos nossos olhos. Essas coisas não podem competir com as
necessidades de mentalidades que estão crescendo. Dois fatores tremendos
invadiram, cada vez mais, o cenário dos últimos cem anos: a ciência e a
democracia. As características mentais do homem moderno foram
inevitavelmente afetadas e alteradas por elas, ao passo que a sua vida externa
foi ajudada em certos sentidos e prejudicada em outros. Ele quer, ao mesmo
tempo, compreender as coisas racionalmente e compreendê-las por si mesmo.
É mais capaz de receber e compreender uma fé quando esta lhe faz menores
exigências à cega credulidade e maiores exigências à inteligência racional. Ele
está-se desvencilhando de concepções antiquadas e formas cristalizadas, à
proporção que essas mesmas concepções e formas se esboroam mercê da sua
incapacidade de adaptar-se às necessidades do período. A influência dos
hierarcas eclesiásticos vem-se desvanecendo e o poder das autoridades pias
tem-se dissipado. As promessas das escrituras já não atraem os jovens e as
ameaças sacerdotais já não os intimidam. Estes podem ser tolos, mas chegam
até a ridicularizar o passado porque não tinha automóveis nem rádios! Daí que
as crenças e os dogmas, as instituições e os ofícios, que dependem da sanção
do passado, recebam também, automaticamente, o seu quinhão desse ridículo.

Em certa época da história religiosa da sociedade, o humanismo e o racionalismo


a libertaram das superstições, das corrupções e das degradações da religião
degenerada e, assim, operaram como fatores punitivos. Não é, de maneira
alguma, essencial à salvação de quem quer que seja acreditar que a Terra e ele
foram feitos por Deus em seis dias de vinte e quatro horas. Nem é essencial para
ele tentar sentir uma sincera reverência quando os rituais se tornaram vazios, os
dogmas sem sentido ou grotescos, as entonações litúrgicas mecânicas, e os
códigos morais fossilizados. Na realidade, é um direito que lhe assiste e uma
obrigação que lhe corre resistir à exploração hierárquica e reconhecer a fácil
degeneração em hipocrisia que desfigura a história da religião.

Não se imagine que estas críticas partam de um zombeteiro inimigo da religião.


Ao contrário, elas procedem de amigo sincero. O próprio Jesus não entendia que
fosse um erro ou um desperdício de força denunciar frequentemente a hierarquia
rabínica pelos seus processos hipócritas, nem Buda a hierarquia bramânica
pelas suas práticas supersticiosas. Mas porque o amor a Deus e não o ódio aos
homens lhes motivava a crítica, esta era sempre construtiva.

Assim que tiver satisfeito a essa necessidade corretiva, a oposição à religião se


torna um fator regressivo. A mesma faculdade da razão crítica que arranca o
homem à superstição grosseira e assim lhe dá visão mental, também o conduz
para o materialismo científico e o priva da visão intuitiva. Trata-se de um remédio
eficaz quando a sua fé religiosa adoece, mas ele não pode viver apenas de
remédios. Ninguém será realmente sadio se for fisicamente robusto mas
espiritualmente débil, se for emocionalmente vigoroso mas eticamente
paralisado, e se estiver vivo em sua natureza animal, porém morto para a sua
natureza angélica. Quando ele declara, como declarou Freud, que “Deus é uma
ilusão, a religião uma doença e o sentimento religioso uma neurose patológica”,
ele mesmo precisa ser tratado como alguém que está sofrendo gravemente de
delírios e neuroses. Ao perder a qualidade sobre a qual repousa o próprio
propósito da sua encarnação terrestre, a qualidade de sentir veneração por algo
além do seu pequenino ser, ele está perdendo o sentido da possibilidade de uma
existência superior para si e da presença de um poder mais alto no universo —
apenas para ganhar, em troca, um vazio e sombrio materialismo.

Se os perigos, para a entidade humana, dessa difusão do materialismo são a


paralisia da intuição e a restrição da consciência, os perigos para a sociedade
humana são a perda do impulso moral e a deterioração da consciência moral.
Na medida em que as velhas religiões apoiam e promovem essas coisas, elas
ajudam as pessoas, mormente as pessoas comuns. Na medida em que elas
perdem terreno e as influências que as substituem não apoiam nem promovem
valores morais, o estado de coisas passa a ser anárquico, regressivo e escuro.
É um fato histórico que o colapso religioso é assinalado e acompanhado por
sublevações sociais. Quando a irreligião floresce e se dissipa a moral, quando
se deterioram os aspectos humanos da sociedade ainda que se multipliquem as
suas inovações técnicas, nenhuma paz real e nenhuma duradoura prosperidade
são possíveis. Para compreender-lhe a necessidade, bastar-nos-ia figurar qual
seria a situação de um país de onde fosse erradicada toda e qualquer religião.
Com todos os seus defeitos, abusos e sensaboria, uma religião popular
organizada faz que farte o bem e tem, de ordinário, bastantes influências
benéficas para justificar-lhe a existência. Quando os princípios morais já não
determinam a conduta, quando a invocação ética é posta de parte como obsoleta
maçada e a sua base religiosa é denunciada como droga narcótica para as
massas, sobrevém uma situação perigosa. Os efeitos da descrença na
existência de um poder divino patenteiam-se de muitas maneiras diferentes, mas
a pior de todas é o caos moral e a confusão que então prevalecem, a brutalidade,
o egoísmo e a falsidade que se tornam aceitáveis quando se imagina que não
existem princípios punitivos governando o mundo. Isto, por seu turno, se origina
da descrença em qualquer outra realidade que não seja a da Matéria. O homem
paga um preço muito pesado por esse desenvolvimento unilateral dos seus
próprios poderes de reflexão.

A religião pura é divina e permanente, mas as instituições, os dogmas e as


hierarquias religiosas sofrem em razão da fragilidade humana e da deterioração
provocada pelo tempo. As formas históricas que a religião assume podem estar
inficionadas de erros grosseiros, superstições polidas, explorações egoístas e
antigas hipocrisias, mas a essência pura e permanente que elas encerram lhes
justificam a existência e lhes confere a sua melhor influência. O devoto pode
dispensar essas formas, mas não pode dispensar essa essência. O cético que
perde a fé nos ensinamentos errôneos acerca de Deus e da alma, indiscriminada
ou inconscientemente perde a fé nos ensinamentos verdadeiros que os
acompanham. Ao afastar-se, desiludido, da servil veneração da autoridade
eclesiástica, ele também se afasta da humilde veneração do próprio poder
superior — o que é um erro profundo e perigoso. Bem é que ele se tenha
cansado de ser irracional. Mas não é bem que ele, por isso, se torne irreverente.
E, fugindo ao perigo de ser desencaminhado pelos outros, ele cai no perigo de
desencaminhar-se a si mesmo.

E é por isso que os seus objetivos reprimidos, os seus propósitos secretos e as


suas aspirações semibanidas continuam a atormentar o homem que não está
totalmente bestializado ou materializado, senão enredado na armadilha de aço
do mecanismo da civilização moderna. Mas eles operam indiretamente, eles são
as molas mestras por detrás das emoções e das atividades que parecem ser de
um caráter muito diferente. Seja através da bebida ou do esporte, seja através
do cinema ou do sexo, o dente humano de engrenagem, acionado sem
misericórdia, de uma era desequilibrada da máquina procura escapar do ego
tirânico. Quantos homens e quantas mulheres não se encontram na situação
infeliz de ansiar pela vida espiritual, embora o façam inconscientemente, pois
não compreendem o seu próprio anseio! A civilização moderna tendeu a suprimir
esses vagos anelos ou, na melhor das hipóteses, a deixar a sua existência e a
sua importância num estado de semi-reconhecimento, de modo que eles se
estenderam, como terra fofa e arável, debaixo de lava vulcânica congelada.

A Religião Deveria Expandir-se


Onde o representante da religião oficial desaponta a sua gente, o seu lugar é
tomado por outros. O poeta inspirado foi um dos pregadores ativos do século
passado, como o artista iluminado foi um dos missionários dos últimos tempos.
O cientista de pendores metafísicos está sendo procurado por luz, cada vez
mais, em nossa própria época. Tudo isso, sem dúvida, é muito bom a seu modo,
mas acontece que a Poesia, a Arte e a Ciência não são religião. Cada uma delas
é capaz de dar ao homem algum apoio interior para a sua vida, mas nenhuma
pode dar precisamente o que só a religião dá. As abstrações e os fatos científicos
não podem, por si sós, alimentar satisfatoriamente a alma do homem. O
intelectual moderno, ou o seu eco proletário, acaba ficando semimorto de fome
com uma dieta assim. Busca o sustento que lhe falta na Arte, no prazer, no
entretenimento, ou no esporte. Estes, por certo, o ajudam e ele, com efeito,
amiúde os considera suficientes para satisfazer à sua necessidade. Mas, sendo
elas o que são, as necessidades transcendentais de sua alma nunca serão
realmente substituídas por sucedâneos.

É forçoso desenvolver um meio de satisfazer, de maneira moderna, ao


sentimento de reverência. Isto não significa necessariamente a criação de uma
nova religião nem a adoção de uma religião exótica. Não poderia significar nada
mais do que um novo e ampliado entendimento das velhas religiões. O Ocidente
poderia salvar a sua vida interior que está prestes a perecer voltando ao que
Jesus efetivamente ensinou. Adequadamente compreendido e corretamente
exposto, o cristianismo é um tanto ou quanto diferente do eclesiasticismo e, sem
dúvida, mais inspirado. Tal é a servidão comum a frases e palavras, que qualquer
referência à religião é incontinenti convertida numa referência à rígida ortodoxia
ou ao sectarismo estreito. No entanto, as grandes convenções da vida religiosa,
as suas idéias, métodos e formas tradicionais, não estão presas para todo o
sempre por cadeias de ferro. O homem pode afeiçoá-las de modo que se
adaptem ao seu lugar e à sua época. A atitude religiosa e a meta religiosa não
podem ser alteradas e devem permanecer as mesmas para todas as pessoas e
por todos os séculos. Mas as suas maneiras e os seus meios podem ser
alterados e não podem deixar de sofrer a influência das mutáveis circunstâncias.
A religião só começará a demonstrar a sua utilidade no cenário moderno quando
os seus responsáveis principiarem a torná-la pertinente à idade moderna,
adequada às necessidades modernas, atenta à crise moderna, sensível à
tragédia moderna. Isto feito, ela voltará a exercer a sua função benéfica. É mister
que se torne uma instituição flexível e progrida a par da vida e da mente do
próprio homem. De nenhuma outra maneira poderá ela servir melhor à
humanidade. Desgraçadamente, a história passada e os sinais presentes
mostram que os que deveriam ser os primeiros a compreendê-lo são, quase
sempre, os últimos. Por ser a lição desagradável a eles, não se mostram
inclinados a recebê-la.

Um grande erro cometido por esses representantes ortodoxos oficiais é que eles
são, frequentemente, os primeiros a se oporem a qualquer manifestação do
espírito vivo de Deus entre os homens e os últimos a aceitá-la. Se as pessoas
forem obrigadas a procurar alhures o apoio religioso, se tantas dentre elas
sentem a necessidade de algo novo, é porque não conseguem encontrar ajuda
em nenhuma outra parte.

Nós, os modernos, nos envaidecemos de haver chegado, com o nosso


desenvolvimento, muito além das mentalidades acanhadas, ignorantes e
supersticiosas do passado. Mas estas eram, afinal de contas, os defeitos de
algumas virtudes, e ao desembaraçar-nos dos defeitos, também nos
desembaraçamos das virtudes. Pois o acanhamento provinha de uma fé
religiosa mal colocada, a ignorância de um reconhecimento demasiado teimoso
das limitações do intelecto humano, e a superstição de uma intuição não criticada
de que o mundo físico não era o único mundo do ser.

Já houve quem insinuasse que a união das velhas crenças tradicionais ou a


imposição de uma crença única seria a melhor solução para o problema religioso
do homem moderno. Aqui o sentimentalismo dominou a razão e o desejo é pai,
mãe, tio e tia do pensamento! A humanidade está constituída de maneira tão
vária que isto seria muito mais um estorvo do que uma ajuda. O temperamento
que encontra satisfação emocional nas formas sacramentais impressionantes do
catolicismo romano, por exemplo, encontrará inanição emocional na ausência
nua e interior de formas do quacrismo. E que encontrará o selvagem, com os
seus tabus, as suas danças e as suas magias, na companhia do quacre, com a
sua silenciosa adoração da Presença Invisível?

As exigências espirituais de diferentes categorias de humanidade são tão


variadas, em resultado das suas imperfeições, que é melhor esperar com
paciência o crescimento natural da sua mentalidade e do seu caráter do que
obrigar todas as categorias a se encaixarem numa única estrutura férrea de
unidade manufaturada. Os cismas em partidos e as divisões em seitas
continuarão a ocorrer de qualquer maneira. Isto porque a fé pode vagar com o
criador de um grupo tão extensamente quanto a imaginação pode viajar com o
criador de outro; raras vezes é a intuição sustentada pela investigação ou a
inspiração divina é mantida independente da opinião humana. O ego se insinua
furtivamente aqui também, como em toda parte. Essas tendências separatistas
não devem ser deploradas e, enquanto existirem, terão de ser também
reconhecidas. Uma conglomeração mecânica das antigas religiões existentes é
impraticável em qualquer grande escala e, portanto, em qualquer escala útil, e
nunca poderia satisfazer a todos os gostos.

A tentativa de impor uma unidade artificial a religiões organizadas rivais seria tão
insensata quanto é provável que seja mal sucedida. Não sejamos sonhadores
fúteis e não peçamos à humanidade uma unidade que a sua própria variedade
nunca poderia dar-nos. Não esperemos que ela concorde com uma única religião
universal que removeria a necessidade de todas as outras religiões, nem lhe
peçamos que viva numa fraternidade universal, que só seria alcançável depois
que se houvesse atingido uma sobre-humana perfeição moral. A crença de que,
para pôr em prática uma nova utopia dessa natureza basta apenas executar um
ato qualquer muito simples ou esboçar na véspera um gesto qualquer, ou juntar-
se a algum movimento espiritual, é um erro intelectual que obstrui o caminho dos
que desejariam melhorar a sorte da humanidade. Esse idealismo excessivo não
é a sua força, como eles supõem, mas a sua fraqueza. O desejo de fraternidade
entre as crenças é muito mais sábio e muito mais digno de louvores do que o
desejo da sua unificação.

Se a harmonia entre os homens é, de certo, parte da meta suprema, trata-se,


essencialmente, de um fato interior, e não de um fato exterior. Precisa existir
internamente, ou não existirá de maneira alguma. Nenhuma organização,
nenhuma instituição poderão fazê-la assim, nem são necessárias à sua
existência. Por conseguinte, só poderá ser encontrada nos indivíduos. Para ser
real, é mister que cresça sozinha, oriunda da compreensão do fato de que a
desarmonia é a causa de constantes dificuldades e sofrimentos, bem como o
efeito da ignorância espiritual. Entrementes, urge acentuar mais a santidade
interior do que a observância exterior, conhecer suficientemente a história
comparada das religiões para saber que Deus falou a muitas raças e ter bastante
largueza de espírito para reconhecer que existe mais de uma bíblia e mais de
um líder espiritual. O estudo da religião comparada muito faz para eliminar a
intolerância e atenuar a prevenção. Por seu intermédio, os princípios
fundamentais comuns à maioria das religiões — e, portanto, os mais verdadeiros
— são apresentados e a sua universalidade é proclamada.

Para que a religião, quer encerrada nos velhos credos familiares, quer contida
nos novos cultos estranhos, se torne moralmente poderosa, terá de absorver
algum conhecimento asiático. O século XIX, que assistiu à expansão do
capitalismo e dos transportes, ao desenvolvimento da maquinaria e do comércio,
assistiu também à introdução do pensamento asiático na Europa e na América,
e do pensamento europeu na Ásia. A situação geral do homem é tão trágica que
já é tempo de algumas das idéias orientais mais vitais deixarem de ser
consideradas como plantas estranhas, anormais ou exóticas. A necessidade que
ele tem dos seus frutos na reorientação de si mesmo, na reconstrução da
sociedade e na reinterpretação das suas escrituras, é urgente e profunda. Pois
apenas uma mudança em seus pensamentos e valores poderá trazer-lhe o
aperfeiçoamento que será valiosíssimo. Com o Oriente, aprenderá ele a dar
ênfase a duas idéias que mostram que os ideais de autodisciplina e auto-
aprimoramento são, de fato, práticos, sensatos e necessários. Primeiro, que a
lei da recompensa (carma) lhe trará, finalmente, de volta o que quer que ele dê
de si; segundo, que a alma divina não só está sempre presente nele e em todos
os seus semelhantes, mas também pode ser conhecida. Se, ao aceitar a
segunda verdade, ele pensar que Deus não está tão distante e tão remoto, mas
está aqui, agora, dentro dele e dentro dos outros, ele terá muito maiores
probabilidades de aperfeiçoar-se e de enobrecer os seus tratos terrenos. E
depois de persuadidos da primeira verdade, as pessoas agressivas tenderão a
abandonar as falsas concepções que os levam a acreditar que poderiam
realmente tirar proveito da guerra que movessem a outros. Porque tanta peçonha
tem sido vertida na mente humana durante tantos anos, necessita-se
urgentemente de um soro neutralizante. Estas idéias sustentam a dignidade da
vida humana, proclamam as divinas potencialidades que ela contém, e inculcam
a realidade da ordem moral.

As lutas da guerra embaraçaram os fios do carma oriental e ocidental. A imensa


população do Extremo-Oriente e do Oriente-Médio entraram num contacto de
comunicação, já hostil, já amistoso, com raças ocidentais numa extensão nunca
antes conhecida historicamente. A consequência disso é que não só os povos
brancos precisam fazer um esforço para compreenderem os povos amarelos e
os povos pardos, mas também que estes últimos precisam fazer o mesmo
esforço para compreender os brancos. Por mais desajeitado que seja, é preciso
inevitavelmente que se faça uma aproximação no sentido desse entendimento.
O estudioso de religião comparada, que estuda a cultura do Oriente par a par
com a do Ocidente, tende a libertar-se da prevenção ambiental. Cumpre que o
mundo inteiro amplie a sua visão religiosa. Força é que o Ocidente, um dia, se
incline diante da sabedoria oriental, pois o seu irmão mais velho tem uma
herança de conhecimentos espirituais que ele precisa aprender a respeitar e
reverenciar. A mente admirável exemplificada nos escritos de Platão, nas
perguntas de Sócrates, no pensamento de Spinoza e nas peças de Sófocles,
não é dessemelhante da que está exemplificada na cultura oriental em seu
melhor nível.

Dir-se-ia que precisamente na ocasião em que se faz sentir uma verdadeira


necessidade de expandir a concepção ocidental sobre esses assuntos aceitando
empréstimos e presentes do Oriente, precisamente quando o próprio anseio
reprimido do Ocidente por equilibrar o seu alto desenvolvimento prático com uma
cultura intuitiva e mística tenha sido precipitado pela crise que se verifica na
mente consciente, o próprio Oriente está cedendo, cada vez mais, ao feitiço do
progresso material e, consequentemente, está-se afundando, cada vez mais, no
materialismo. Essa situação foi provocada pela sua grande vetustez. Pois não
basta apresentar grandes livros escritos há milhares de anos; seria preciso que
hoje se apresentasse também uma grande civilização. A contradição entre a
sublime literatura do Oriente e a sua atrasada situação física é trágica, a sua
retificação é um ato necessário, mas o modo de retificá-la, muitas vezes, não é
judicioso.

Nós, os ocidentais, deveríamos aproveitar o que pensaram, ensinaram e


conheceram os mais formosos espíritos do Oriente; deveríamos recorrer, ampla
e humildemente, à sua sabedoria, pois isto enriquecerá o nosso próprio acervo
e alargará a nossa perspectiva. Mas deveríamos fazê-lo sem ilusões. Conquanto
uma expansão dessa ordem ajudará a nossa civilização, e não a enfraquecerá,
como querem os fanáticos, não será suficiente, por si mesma, para renovar
espiritualmente a nossa civilização. Isso só será possível se a nossa civilização
realmente despertar, se ela ouvir a voz dos seus próprios profetas vivos, e se ela
seguir uma versão moderna da busca religiosa secular suportável entre as
realidades da sua situação, e em contacto com elas. Tamanhos são os perigos
dessa situação que fora melhor iniciar uma nova tradição viva do que emaranhar-
se na velha tradição decadente.

O moderno investigador, nascido num país ocidental e educado em sua


atmosfera individual, sente-se puxado por duas tendências conflitantes. Existe a
atração do Oriente, onde as tradições do misticismo são tão ricas e os seus
mananciais são tão desenvolvidos e vivos como em nenhum outro lugar. E existe
a atração do seu próprio Ocidente nativo, cuja racionalidade científica e cuja
praticidade física ele aprendeu a considerar axiomaticamente necessárias ao
viver civilizado. Esses puxões de direções diferentes tendem a cindir-lhe a
vontade e a confundir-lhe a mente. Qual é o seu dever espiritual? Responde a
sabedoria que não há necessidade de entregar-se a nenhum desses dois
puxões, pois o verdadeiro será trabalhar criativamente com os dois. A própria
vida lhe cometeu hoje a incumbência de ajuntá-los harmoniosamente de tal
maneira que cada qual complete o outro e concorra para o resultado final.

A revelação divina é tão acessível hoje quanto o foi ontem, tão ao alcance do
Ocidente quanto do Oriente. Nenhuma raça especial, nenhuma nação
determinada, a detém com exclusividade. É universalmente potencial e, se
encetar convenientemente a tarefa, o habitante do hemisfério ocidental poderá
convertê-la numa realidade, embora talvez um pouco menos prontamente do
que o habitante de um mosteiro hindu. Não permita ele que o estorvem aqueles
que insistem numa tradição meramente local, numa expressão especificamente
racial, num ponto de vista historicamente limitado, ou num partidarismo
rabidamente sectário. O que está presente em toda parte não pode ser
monopólio de uma raça, de um povo e, muito menos, de uma seita. Os ocidentais
poderão encontrar a raiz de sua alma em Deus — embora, porventura, com
maior dificuldade que os orientais — se o quiserem. O Eu Supremo revela a sua
presença a todos igualmente. O fato de homens como Sócrates, Lao Tzu e
Emerson, que viveram em terras tão vastamente separadas como a Grécia, a
China e a América, terem obtido essa mesma abençoada revelação significa que
a verdade é tão acessível num lugar quanto em outro, que ninguém precisa, na
verdade, viajar até o Oriente para encontrá-la, e que, se se puser a procurá-la
na direção certa — isto é, dentro em si mesmo — poderá ficar em casa e, assim
mesmo, encontrá-la.

Não obstante, seria um grave erro acreditar que a Filosofia considera uma
religião tão boa quanto outra. Não é assim. Ela admite as diferenças na verdade
intrínseca de várias religiões, mas diz que temos de ascender além das formas
exteriores de todas as religiões para encontrar a verdade pura. Além disso,
totalmente e pragmaticamente, sustenta que existe, de ordinário, uma religião
que se adapta melhor a um determinado homem em sua fase especial de
desenvolvimento, muito embora essa mesma religião não se adapte tão bem a
outro homem. Seja qual for o método, a idéia ou a instituição que ajuda
eficazmente certo tipo de indivíduo a adotar uma vida espiritual, ela não deve ser
dispensada como desvaliosa por um tipo diferente de indivíduo só porque não o
atrai e não pode ajudá-lo de maneira alguma. Ele deverá ser tolerante, ainda que
se afaste, indiferente, lembrando-se de que esse método, essa idéia ou essa
instituição ainda poderá ser útil a uma terceira pessoa.

Essa tão necessária tolerância universal está começando a manifestar-se, ainda


que levemente, em decorrência do estudo sem prevenção da religião
comparada, essa mesma filha do estudo anterior de línguas orientais nas
universidades do Ocidente. O seu estudo alterou favoravelmente a atitude de
ocidentais inteligentes em relação a outras crenças. Estas últimas já não são
arrogantemente denunciadas como sendo de todo falsas. Além disso, um
conceito mais nobre da beneficência e da justiça divinas conduziu à
compreensão de que outros povos não poderiam ter sido deixados — num
mundo ordenado — sem luz, sem ajuda, sem revelação e sem guia. Entretanto,
é apenas o estudante de Filosofia que pode chegar ao estudo da religião
comparada de uma forma genuinamente sem prevenções. Pois é só ele que
chega com o preconceito expulso do intelecto disciplinado e com o favoritismo
afastado da emoção purificada. A recompensa é o seu descobrimento de que a
fonte suprema de todas as verdades religiosas autênticas é uma e a mesma —
o eu superior do homem — e que isso explica por que as melhores idéias dessas
verdades são comuns a diferentes povos e em diferentes épocas. Na plenitude
do seu próprio tempo, com o crescimento que decorre dos seus esforços e com
a maturidade que lhe solidifica a experiência, esse fato se firma em seu espírito
como sendo tão completamente óbvio que ele poderá perguntar a si mesmo, em
certas ocasiões, por que toda a gente não o vê. Ele lhe ensina que todas as
religiões são estimáveis, seja qual for a crença a que ele se ligou ou a de que
ele se libertou.

Como são poucos os que se detêm a pensar que a religião por eles adotada e
que eles acreditam verdadeira poderia ter assumido outra forma se eles tivessem
nascido em outro país! Como são poucos os que pensam que as mesmas
consolações e a mesma ajuda, a mesma orientação e o mesmo apoio que lhes
ministra a sua própria religião, também ministram a outros povos outras religiões!

Quantos milhões de pessoas têm apenas uma ligação censitária com a religião
que professam! Que utilidade haverá em apontar para o grande número de fiéis
desta ou daquela igreja; não seria muito melhor indagar em que consiste a fé
desses pretensos crentes? Será uma fé vital, que influi poderosamente em seus
pensamentos, em seus sentimentos e em suas ações, ou é tão-somente uma fé
vazia, puramente nominal e o mais das vezes morta? A vaidosa herança de
opiniões ancestrais, por mais limitada, deficiente ou mesmo falsa que seja, é
talvez mais notável na esfera da religião do que em qualquer outra. Homem
nenhum pode tornar-se um verdadeiro cristão — nem um verdadeiro hindu ou
um verdadeiro budista — pelo acaso do nascimento ou pela formalidade do
batismo. Só pode tornar-se religioso através da reflexão, sentindo a realidade da
fé e obedecendo às suas injunções morais. O resto não passa de uma vasta
sugestão social, que, se bem possa enganar a humanidade, jamais enganou o
Eu Supremo, que a tudo assiste. Não são tanto as suas opiniões quanto as suas
ações, não é tanto a sua crença quanto o seu caráter que evidenciam a aceitação
da religião por qualquer homem. A sociedade deixa-se enganar facilmente nesse
assunto, mas o mesmo não acontece com as leis e forças superiores. A razão
deveria dizer-nos que, sejam quais forem os poderes que existem, estes não nos
julgarão pelas nossas profissões formais de fé religiosa mas, antes, pelos nossos
pensamentos e pela nossa conduta.

A Luz do Místico
Escrevemos anteriormente que o malogro parcial da religião ocorreu porque ela
não foi fiel a si mesma. Mas essa infidelidade, por seu turno, verificou-se porque
ela deixou de compreender-se correta e luminosamente. Esse ponto precisa ser
esclarecido.

Quase toda a maldade do mundo nasce da trágica ignorância dos homens e não
da maldade repulsiva dos homens. Essa ignorância decorre, por sua vez, do
costume que eles têm de identificar o eu apenas com o corpo, ignorando-lhe
completamente o lado maior e mais divino. A separação que existe na
consciência entre o ego e o Eu Supremo é fatal. É a causa de todos os pecados,
de toda a ignorância, de todas as dores e de todos os males do homem. Para
neutralizar essa ignorância e, gradativamente, eliminá-la, Deus, na verdade, tem
mandado mestres religiosos, místicos e filosóficos a fim de iluminar os três
estratos diferentes da raça humana. Entregues a si mesmos, sem a direção de
instrutores espirituais e divinos despertadores, os homens se deixariam ficar no
torpor da ignorância e morreriam na baixeza do animalismo. De per si, a
inteligência não consegue formar-lhes o caráter e aguçar-lhes a inteligência. É
mister que a sua experiência lhes seja explicada — algo da sua significação
interior precisa ser-lhes revelado. O sofrimento deles tem de ser mitigado por
palavras compadecidas e a fé, que eles sentem vagamente, sustentada por
instruções ministradas.

No aparecimento, a espaços, de um mestre espiritual, um profeta religioso ou


um divino curador, podemos enxergar uma fonte dessa instrução. Do silêncio
divino parte, intermitentemente, O Verbo. É proferido, não pelo céu, senão pelos
lábios de um homem. Não é tão-só um som ouvido ou um documento escrito; é
também um poder criativo e transformador. Aquele que profere ou escreve O
Verbo torna-se o fundador de uma nova religião, o profeta de uma nova
inspiração. A sua tarefa consiste em decifrar cuidadosamente, se nos for lícito
expressá-lo dessa maneira, uma mensagem recebida em cifra transumana e
apropriar-lhe a linguagem. Tal é a suprema inteligência que tem o mundo sob o
seu domínio, que as suas operações ajudam a humanidade promovendo-lhe o
nascimento, como, quando, e onde ele é necessário. Às vezes, ele vem, como
veio Jesus, de um planeta mais evoluído. Um indivíduo assim é como um general
na guerra contra o mal. Ele trabalha para derrotá-lo. O seu aparecimento entre
nós em intervalos periódicos é tão sábio quanto necessário. Nem isto, nem a
difusão final da sua influência é acidental ou dependente da escolha pessoal de
quem quer que seja. Ambos são divinamente ordenados através das forças que
orientam a evolução humana e da lei da recompensa universal.

O profeta ou o vidente pode esperar que o seu conselho seja rejeitado por todos,
com exceção de uns poucos, mas ele pode ser ainda orientado no sentido de
expressá-lo formalmente. Se o for, tal expressão terá mais do que um valor
pessoal. Erguer-se-á em relação simbólica com o povo desatento. Será uma
espada de dois gumes, que teria podido salvar, mas que será usada para julgar.
O seu trabalho pode ser anunciado discretamente a princípio — pode até não
ser notado por algum tempo, como a obra de Jesus escapou à observação de
todos os historiadores contemporâneos, com exceção de Josephus. Ele próprio
reuniu umas poucas centenas de seguidores, e Buda apenas uns poucos
milhares, embora os ensinamentos de ambos alimentassem milhões nos séculos
subsequentes. Confúcio foi grandemente ignorado, conquanto os seus
ensinamentos se tornassem parte do sistema educacional chinês durante dois
mil anos. Nos primeiros dez anos da sua missão profética, Zoroastro não
encontrou outro discípulo além do seu próprio primo.
Os verdadeiros discípulos, mais do que os seguidores nominais dos grandes
líderes messiânicos do mundo foram sempre uma insignificante minoria. Isto
ocorria, em parte, porque os escassos meios de transporte e os primitivos meios
de comunicação não permitiam, antigamente, que uma mensagem divina se
difundisse com rapidez. Hoje em dia, ela poderá espalhar-se muito mais
depressa e para o mundo inteiro. Sem embargo disso, ainda é preciso
compreender, lastimosamente, a impossibilidade de que os sonhos de uma
milagrosa conversão, da noite para o dia, de toda a humanidade, com que os
não iniciados e os sentimentais gostam de brincar venham a realizar-se. O que
Jesus não pôde fazer, o que Buda não conseguiu, ninguém mais, sem dúvida,
poderia executar. Esses grandes luzeiros envoltos em carne humana puseram
em movimento a terrível inércia espiritual da humanidade, é verdade, mas o
movimento foi diminuto. Os poucos sensíveis responderam vigorosamente,
como sempre, mas os muitos que tinham o espírito voltado para a matéria,
escassamente foram tocados.

Poucas pessoas compreenderam que a obra de um profeta se realiza


essencialmente dentro de um período limitado após o seu próprio aparecimento
na terra e não perdura para sempre. Pois a sua tarefa fundamental é dupla:
plantar alguma coisa no coração dos homens, uma dádiva da sua graça, que
será transmitida através dos séculos em ondulações cada vez mais amplas;
proferir ou escrever uma mensagem verbal que prudentemente provê às
necessidades do momento, às formas de pensamento das pessoas e aos
antecedentes históricos da época. A força assim difundida atinge o seu zênite e,
em seguida, principia a enfraquecer e a refluir. Em seu zênite, triunfa o espírito,
mas em seu nadir impera a letra. No primeiro caso temos a verdadeira religião e
os homens lhe sentem a inspiração, mas no segundo temos frequentemente o
seu arremedo e os homens lhe sentem o vazio. O profeta possui realmente o
poder de conferir a graça, ao passo que, volvidos alguns séculos, muitos dos
que falam em seu nome quase sempre carecem dele. Esta é uma das razões
por que a religião se evapora durante o longo correr dos séculos, de modo que
as pessoas, em sua maior parte, só obtêm dela o seu último resíduo.

Hoje, os princípios originais das grandes religiões foram tão alterados, a sua
eficácia moral foi tão acentuadamente diminuída, a sua influência antimaterialista
foi tão lamentavelmente enfraquecida, que a necessidade de uma vasta
renovação interior em todo o mundo e entre todas as classes é incontestável.
Quando o credo professado por um homem já não é uma chamejante convicção,
mas uma fria conveniência, a necessidade de uma nova dinâmica é indiscutível.
É comum, todavia, o erro de ter por axiomático que esse tipo de interesse
compete às pessoas especialmente piedosas, excêntricas ou solenes, como se
a lamentavelmente mínima atenção que se dá comumente aos assuntos
espirituais fosse um sinal de sadia normalidade e excelente equilíbrio. Afinal de
contas, não incumbe apenas ao discípulo da Busca a procura e o encontro da
felicidade do Eu Supremo, mas a toda a gente. Só que, em se tratando de toda
a gente, a incumbência parece imposta de muito longe e é apenas vagamente
ouvida, de modo que se julga erroneamente o seu local de origem.

Deus traçou um caminho evolutivo para o homem que o conduz do que há de


mais baixo em seu caráter para o que há de mais nobre, e que se destina a alçá-
lo muito acima do nível da animalidade inconsciente. Ele, por fim, terá de
percorrê-lo; nisso não lhe resta liberdade de escolha. De ordinário, porém, a
velocidade da marcha depende dele em grandíssima parte, e ele poderá fazê-la
tão vagarosa ou tão ligeira quanto quiser. A religião é o primeiro passo nessa
direção certa mas, mais cedo ou mais tarde, ele terá de prosseguir em sua
jornada e percorrer todo o caminho, o que quer dizer que ele precisará passar,
em seguida, pela fase da experiência mística pessoal e interior. A primeira e
última exigência que a religião faz à humanidade é a fé — simples e
incondicional. Não há nada errado nisso. Toda mãe, com razão, faz idêntica
exigência aos filhos pequeninos. O homem religioso acredita que um poder
divino existe e tudo sustenta. Mas a sua fé pode mudar, entibiar-se ou
desaparecer de todo sob a dura pressão de acontecimentos desfavoráveis ou de
argumentos céticos. O místico não se satisfaz com essa situação. Vê a
necessidade de uma relação mais íntima com Deus. E através da negação de si
mesmo, da autodisciplina e da meditação obtém-na, encontrando um reflexo do
poder divino no mais profundo do seu próprio eu, e sentindo claramente provada
a existência desse poder através da sua própria experiência íntima. Não precisa,
para convencer-se, da sedução de coisas externas, pois procura a sua verdade
inteiramente dentro dos seus pensamentos e dos seus sentimentos. Onde a
religião deriva a sua principal sanção da autoridade externa, o misticismo deriva
a sua principal sanção da experiência direta. Que essa passagem é ascendente
e progressiva, não se discute. E é essa a passagem que muitíssimas pessoas
precisam fazer em nosso tempo.

Embora sejam, certamente, valiosos e necessários, o conhecimento religioso e


os seus esforços preparatórios deixam ainda insatisfeito o mais alto objetivo da
existência humana. O círculo um tanto limitado dos que não se satisfazem com
um conhecimento meramente preparatório da vida mais elevada, mas querem
adquirir-lhe as verdades através da sua própria compreensão interior, assim
como os que se sentem vigorosamente impelidos a subir de uma fase inferior a
um ponto um pouco mais próximo do cume do conseguimento espiritual, poderão
ver as suas aspirações realizadas se concordarem em pagar um preço mais
elevado com a moeda do autotreinamento e da autodisciplina. Assim se fazem
dignos da iluminação plena e pessoal pelo Eu Supremo.

Quando pessoas de todos os níveis de caráter e inteligência, procedimento e


intuição são atirados juntos em sociedade, cria-se o problema de conciliar uma
fé simples para as massas com uma fé complexa para os poucos capazes de
absorvê-la. A maioria não pode ir além dessa simplicidade, mas não deveria
obstruir o caminho dos que podem. Por outro lado, estes últimos não deveriam
transformar o misticismo num assunto aristocraticamente exclusivo para
algumas pessoas privilegiadas, privando grande número de pessoas dos seus
mais altos benefícios. Se é um erro oferecer conhecimentos às pessoas antes
que elas possam absorvê-los, é igualmente errado deixar de oferecê-los na
medida em que elas podem fazê-lo. A solução desse problema exige um
processo de filtragem, que proporcionaria todas as oportunidades aos ansiosos
por progredir, mas que não confundisse os que não revelassem a mesma
ansiedade.

Os sábios trazem à baila a religião como escola para a ascensão espiritual do


homem. A casta sacerdotal tende a transformá-la numa prisão. Ela é instituída
para fazê-lo progredir lenta, porém gradualmente. As organizações humanas,
mais tarde, principiam a usá-la para manter o homem em estado de
subserviência. As experiências evolutivas da vida lhe dão uma responsabilidade
cada vez mais íntima, isto é, individualizam-no mentalmente. Não obstante,
certos eclesiásticos de vistas curtas julgam poder conservar-lhe o caráter e a
inteligência presos em tenazes artificiais. A vida procura de um estádio a outro
de percepção espiritual. Eles, todavia, procuram limitar-lhe a meta sagrada a um
estádio só. O devoto religioso deveria ter permissão, e até ser animado a isso,
para dar o passo capaz de levá-lo ao misticismo, para mudar do culto de um
Deus remoto e antropomórfico à comunhão com uma alma profunda, divina e
interior, assim que se sentir preparado para ela. Ao invés disso, geralmente o
tolhem de dar esse passo. E isso acontece porque não se compreende que o
misticismo não é inimigo da religião. É um progresso, mas não é um progresso
que afaste o homem da religião.

Quando a religião institucional tem condições para conseguir a largueza de


coração que lhe permita manter-se aberta, como uma porta, à religião mística, e
não se enclausure como se fosse uma prisão, todos, inclusive ela mesma, serão
ajudados pela renúncia. As necessidades contemporâneas o exigem
particularmente. A tensão destes tempos é tamanha que até os orgulhosos e os
sofisticados, os sensuais e os ignorantes, são incapazes de arrostá-la. A
necessidade de alguma coisa que possa dispensar paz, esperança, força e luz
ao seu confuso eu interior está começando a fazer-se sentir.

A Filosofia não chama os homens pedindo-lhes que ponham a religião de lado,


nem a menospreza pedindo-lhes que tratem a religião como se fosse uma
inutilidade. A religião é para todos, inclusive os filósofos. Mas a Filosofia pede
aos homens que estendam a sua religião além do sectarismo, que lhe purifiquem
a prática e que lhe aprofundem a compreensão. Coroa o que o misticismo expõe
e consuma o que a religião promete, conquanto, ao mesmo tempo, emende os
erros e elimine as limitações de ambos. Nunca se opõe à religião — e como
poderia fazê-lo, se a religião autêntica nasce do próprio solo da Filosofia? — mas
apenas à degeneração e às corrupções da religião, assim como nunca
desmerece o misticismo — cujas práticas de meditação são parte do seu próprio
princípio essencial — mas apenas as formas extravagantes e néscias que o
misticismo tende a assumir. Como a finalidade e a perfeição pertencem
exclusivamente ao ponto de vista do Todo não atingido, ela afirma que todos os
pontos de vista anteriores são úteis enquanto provisórios apenas e tornam-se
imperfeitos como pontos de vista finais.

Uma vez que a compreensão cresce à proporção que o ponto de vista se eleva,
um mestre religioso explica a experiência de maneira elementar e o professor
místico a explica de maneira mais avançada. Debaixo da superfície convencional
da religião e coberto pelos seus imponentes rituais, existe, escondido, um
conteúdo místico. Quando princípios elementares religiosos são apresentados
como verdades místicas supremas, os resultados são lamentáveis. Eles passam
gradativamente da incompreensão e da superstição para a absurdeza e a
intolerância. E esta surge porque os não iniciados confundem incriticamente os
níveis de referência intelectual, porque eles não estabelecem uma nítida divisão
entre o que pertence à esfera da observação exterior e o que pertence à esfera
da vida interior.

Ainda mais inauspicioso, porém, do que os crentes religiosos fizeram ao fato


místico foi o que lhe fizeram os próprios pretensos místicos e os professores
místicos desequilibrados. O estudante cauto, que deseja conservar a sua
sanidade mental e chegar ao verdadeiro conhecimento precisa ser avisado de
que o reino dos estudos místicos está orlado de atalhos ocultos e ensombrado
de tolas superstições. Dele se tiraram verdades e associaram com muita
necedade. Essa mistura foi propagada por movimentos fantásticos, cultos tolos,
líderes charlatães e dúbias sociedades secretas. Os que nunca se submeteram
a nenhuma disciplina intelectual, quer durante o curso da sua educação formal,
quer durante o seu autodesenvolvimento, podem tender facilmente a acreditar
no que é puramente fantasioso ou no charco da mania religiosa. O investigador
inteligente deverá palmilhar com cautela esses campos, pois ali medram,
luxuriantes, ervas daninhas. Tenha ele sempre em mente que, se quiser aceitar
a crença num poder superior, poderá fazê-lo sem precisar aceitar, ao mesmo
tempo, uma multidão de perigos, superstições, charlatanices e ilusões. Só
mesmo quando se atém firmemente à prova científica do fato prático observado
poderá ele abrir um caminho seguro através da teoria exposta com eloquência.

Nenhum ridículo matará as estudadas pretensões, a loucura ou a fraude desses


cultos. Os seus crédulos seguidores levam-nas demasiadamente a sério, tão a
sério, de fato, que não tardam a perder o seu senso de humor. “Nada tem tanto
êxito quanto o excesso”, era o sutil conselho de Oscar Wilde. E eles tomam-no
ao pé da letra. Serão eles, nesse caso, meros simplórios cujas faculdades
críticas ainda não se desenvolveram e engolem todas as histórias e princípios
fantásticos? A resposta paradoxal, ao mesmo tempo, é sim e não. Muitos o são,
mas outros revelam alguma inteligência em suas profissões e em seus negócios,
e só se tornam divertidamente ingênuos quando assistem a conferências
pseudomísticas ou lêem literatura psicológica semi-insensata.

Esses ensinamentos contêm uma curiosa mistura de verdade e fantasia; daí a


dificuldade que, às vezes, encontramos na avaliação dos movimentos existentes
por detrás deles. Uma das razões por que eles dominam a mente das pessoas
é que, a par com os seus exageros e as suas falsificações, e a despeito deles,
frequentemente contêm elementos úteis. Alguns são o resultado inevitável dos
esforços do homem para escapar quando as peias da ortodoxia religiosa se
tornam intelectualmente penosas.

Muitos aderem a esses cultos levados pela esperança, e neles permanecem pela
força do hábito. Outros estão apenas satisfazendo à sua paixão pela sensação
e imaginam estar satisfazendo à sua paixão pela verdade. Quando o milagre
prevalece sobre o místico, há o risco de se perder o verdadeiro valor deste
último. Quando o mistério predomina sobre o misticismo, abundam as
dificuldades e multiplicam-se os perigos. Quando o bem místico assim degenera,
não conduz à esplêndida iluminação a que poderia ter conduzido, mas leva uma
vida acrobática, a um coração murcho, a uma indefensibilidade moral e a uma
verdadeira atrofia intelectual.

Não admira, portanto, que tantas pessoas inteligentes, cultas ou práticas sorriam
escarninhas ou riam, zombeteiras, quando alguém faz referência a idéias
místicas e, sobretudo, idéias orientais, pois estas se acham invariavelmente
associadas, em suas mentes, com grupos fantásticos e esquisitos ou grosseiras
explorações de charlatães. Ninguém que tenha frequentado um círculo mais
extenso do que o círculo estreito desses pequenos cultos sectários poderá negá-
lo com justeza, assim como ninguém que tenha viajado pelo grande mundo fora
poderá deixar de observá-lo dentro da sua própria experiência. Nem poderá
negar que exista uma rábida orla semilunática em torno da adesão a esses
cultos, que é suficientemente grande para levá-los ao ridículo. O verdadeiro
misticismo sofreu, com efeito, em consequência do status por via de regra
suspeito, que lhe é indiscriminadamente atribuído. O desprezo ou a indiferença
em que os estudos místicos ocultos e iogues são tidos por tanta gente; a
zombaria a que estão sujeitos os mestres, as organizações e os profetas; as
charlatanarias e as explorações que. são praticadas por muitos dentre eles para
edificação dos crédulos; a incapacidade de influenciar, guiar ou dirigir a vida
pública no sentido de melhorá-la; todos estes são fatos que encerram uma lição
manifesta para os compreensivos. Indicam que há algo errado com muitos dos
líderes e com muitos dos seus seguidores, ao mesmo tempo. Revelam que é
insensato aceitar incriticamente quaisquer conceitos fantásticos ou quaisquer
afirmações exageradas promulgadas em nome do ocultismo, do misticismo ou
da ioga, e que tudo, afinal de contas, será posto à prova não só para que se lhe
determine a verdade intelectual, mas também para que se lhe constatem os
resultados morais e práticos.
Não foram poucos os autores místicos, não só dos tempos antigos ou medievais,
mas também dos nossos, que cultivaram a arte de dar largas à própria fantasia.
Em alguns casos, sem dúvida alguma, a intenção, simplesmente e bem
intencionadamente, era impressionar os leitores e despertar-lhes o interesse ou,
em outros casos, expressar simbolicamente o que teria sido difícil para mentes
imaturas compreender literalmente. Os seus escritos, contudo, exercem um
efeito lamentável, em certos lugares, sobre os que ainda têm o espírito medievo
ou que ainda não alcançaram a maturidade intelectual. Pois se lhes aplicarmos
os vários testes de credibilidade, tais como a análise crítica, a plausibilidade
racional, a experiência passada ou o conhecimento científico, seremos
obrigados a reconhecer que, embora se encontrem grandes verdades nesses
escritos, neles se encontram também grandes tolices, mormente quando se
supõe que eles descrevem literalmente sucessos históricos. Os que, todavia, o
desejarem, poderão continuar lendo e estudando essa literatura, pois ela ainda
encerra um precioso conteúdo, mas é preciso que o façam com cautela.

Tudo isto é deplorável, mas não torna menos valioso nem menos verídico o que
há de verdadeiro nas idéias místicas. Deveria fazer que os estudiosos, vigilantes,
se acautelassem. E deveria, ainda mais, assinalar-lhes a necessidade de
encontrarem o caminho para um terreno mais seguro. Este é proporcionado pela
Filosofia, e só nela poderá ser encontrado. Aqui aprendem eles a cultivar
deliberadamente as qualidades de um justo equilíbrio mental e de um apropriado
equilíbrio emocional. Isto redunda em célere repugnância pela exageração
imoderada e a rejeição instintiva de entusiásticas afirmações incompetentes.

A religião se apropria melhor às massas, como o misticismo, seu nível mais


elevado, se apropria melhor às pessoas mais sensíveis, e assim como a
Filosofia, o seu nível mais alto, se apropria melhor às pessoas mais sensíveis e
mais inteligentes. Os homens sábios, que inventaram sistemas de religião e
técnicas de misticismo, fizeram-no com o intuito supremo de conduzir o
aventureiro humano, passo a passo, dos estádios inferiores aos estádios mais
elevados da espiritualidade. Posto que a vida superior do homem comece e
termine com a religião, eleva-se ao misticismo e vai ainda mais longe, até chegar
à Filosofia, antes de voltar-se sobre si mesmo e reavivar de novo a humilde
adoração de Deus. A Filosofia inclui e contém a religião, como um culto de
adoração, mas não se limita à religião. As suas fronteiras são muito mais amplas,
as suas explorações muito mais profundas. A fé religiosa não pode realizar o
trabalho da experiência mística nem esta, por seu turno, o da intuição filosófica.
Os três não estão no mesmo nível. Isto poderá ser melhor compreendido se se
disser que um homem pode ser religioso sem ser místico. Ele pode até, embora
com menos frequência, ser místico sem ser religioso. Mas não pode ser
realmente filosófico sem ser religioso e místico, ao mesmo tempo.

Se a religião absorve a fé de um homem, a metafísica o seu intelecto, e o


misticismo a sua intuição, a Filosofia não só lhe absorve toda a natureza, mas
também a absorve em sua maior intensidade. A religião apresenta a verdade
pictoricamente, o misticismo a apresenta intuitivamente, a metafísica a
apresenta intelectualmente, mas a Filosofia se transforma na verdade em todas
as partes do ser e da vida. O código religioso de conduta refreia e disciplina as
paixões mais baixas, os instintos agressivos e os desejos egoístas do homem,
mas não os sujeita adequadamente. Só o código filosófico, que inclui um
treinamento de todo o ser, incluindo o ser corpóreo, pode fazê-lo. O método
científico interroga a Natureza pela observação e pela experiência. O método
religioso reverencia a Natureza como a obra de Deus. O método místico
introverte os sentidos e ignora a Natureza de todo em todo para contemplar a
Deus. O método metafísico empenha-se em reflexões abstratas sobre ela. O
método filosófico encerra, completa e equilibra todos eles, acrescentando-lhes o
desdobramento de uma visão transcendental e uma atividade divinizada.

A Filosofia rejeita o proselitismo. Não aceita convertidos. Os homens são


lentamente educados para a sua concepção através da própria intuição, do
próprio pensamento, e da própria experiência. Quando ouvem as idéias
informes, que lhes crescem na mente, expressas com clareza e expostas com
autoridade, e quando a expressão tem o cunho da verdade e o fascínio da
afinidade para eles, estão, finalmente, prontos para ela. Somente quando a
experiência externa e o crescimento interno deles estiverem suficientemente
formados, é que ela principia a satisfazer-lhes às necessidades. Por isso mesmo,
o filósofo não propaga as suas idéias. Limita-se a quinhoá-las. Elas geralmente
encontram recrutas entre os que não se arreceiam de novas concepções e que
se sentem robustecidos quando obtêm novas visões do curso dos
acontecimentos e da natureza das coisas.

Isto, porém, não quer dizer que todos viajamos em demanda da Filosofia pela
mesma estrada descrita. Esta foi a estrada tradicional até a época moderna, mas
a arremetida ascensional do intelecto e a acelerada individualização do ego
produziram alguma mudança. Embora muita gente ainda se valha do enfoque
antigo e medieval através da religião e do misticismo, uma crescente minoria
transpõe os umbrais filosóficos, vinda de direções muitíssimo diferentes: da
Ciência, do ateísmo, da Psiquiatria, dos regimes de saúde, dos sistemas de
tratamento neuropático e pela fé, etc. Até certo ponto e de certo modo, um
enfoque dessa natureza purificou-os fisicamente, ou curou-os emocionalmente,
ou preparou-os mentalmente, o que, por seu turno, os tornou mais receptivos à
voz da Filosofia e mais preparados para ela. É possível à nossa era produzir uma
combinação equilibrada de Ciência, religião, metafísica, misticismo e as artes
curativas, como nenhuma outra era anterior teria podido fazê-lo. Tendo por base
a Filosofia da verdade, seria alguma coisa de que a humanidade poderia,
finalmente, depender, pois essa base tem sido posta à prova desde a mais
remota Antiguidade e tem emergido, triunfante, da investigação dos séculos em
fora. A sabedoria dos sábios é a sabedoria dos séculos. Nunca poderá perecer.
Por quê? Porque todo pensamento humano, todo sentimento humano, toda
experiência humana, quando conduzidos ao seu término mais afastado, pelos
movimentos evolutivos espiralados, tem voltado e precisa voltar a ela.

O que os homens mais iluminados da História encontraram nas mais íntimas


profundezas do seu ser, pode ser novamente encontrado em nosso próprio ser.
O que eles aprenderam, nós poderemos aprender. Os seus esforços não
exauriram as possibilidades humanas, nem os seus descobrimentos puseram
fim a elas. Temos de acreditar nisso, não só porque nos sustenta numa época
fatigada e desiludida, mas porque acerta de ser verdade. Nem uma pessoa em
mil lhes segue hoje o exemplo. Isto não é razão para que os poucos que a
apreciam pelo seu verdadeiro valor não tentem fazê-lo. Precisamos lembrar-nos
de que Deus não morreu com o passado, mas continua vivo: que a voz dos que
voltaram da presença de Deus pode ser ouvida em lábios vivos e não apenas
nos lábios dos que morreram e que o passado cultua; que nenhum período teve
jamais o monopólio da revelação, da inspiração e da iluminação divinas. Todo
livro que nos ajude a perceber verdades espirituais é um livro escritural, muito
embora tenha sido escrito em pleno século XX, e sem embargo do que as
pessoas convencionais, egoístas ou irrefletidas possam dizer a seu respeito. Os
que se recusam a atribuir autoridade e santidade ao presente vivo, traem assim
um pessimismo espiritual injustificável e não justificado. O que ensinou os povos
mais antigos ainda está hoje conosco e pode ensinar-nos também. A Mente
Universal está tanto por detrás das nossas mentes finitas quanto estava naquela
ocasião. A História não pode limitar a sua ação a um período determinado ou a
um determinado indivíduo. Ele está presente em todos os homens e, portanto, é
acessível em todos os momentos.

Seja a nossa adoração dessa Mente total, inteligente, pura e direta. Total, porque
todo pensamento daqui por diante é santo. Inteligente, porque há uma clara
compreensão de que a vida divina não se alienou nem afastou, mas habita a
própria raiz da vida do adorador. Pura, porque em troca não se exigem quaisquer
benefícios pessoais, senão os de natureza espiritual. E direta, porque os
símbolos cerimoniais e as colgaduras intelectuais, as vagas insinuações e os
intermediários humanos da religião pública são deslocados por uma sagrada
visão particular.

Se existe uma só mensagem que a Filosofia transmite aos viandantes na terra é


que realmente existe esta Mente Universal em que as nossas mentezinhas estão
misteriosamente enraizadas e que é a inspiradora de quanto é benigno e nobre,
sereno e belo em nossos pensamentos e sentimentos; que a plena consciência
reverente da sua presença e consciente cooperação com a sua vontade,
realizarão o propósito supremo da vida humana e trarão a medida extrema da
felicidade humana. Depois que essa mensagem lhe adentra profundamente o
coração e depois que ele a recebe receptivamente em sua mente, o homem
descobre que a esperança, o sentido e o proveito foram gloriosamente
devolvidos à vida. Como uma grande estrela que fulge sozinha acima da
escuridão, está sempre ali para conduzi-lo aonde outros erram sem propósito
diretivo ou tropeçam e caem na noite não cartografada.
11
Os Nossos Recursos
Interiores

No âmago do seu coração sem paz, a humanidade vive assustada pelo espectro
da bomba atômica. Até um ponto indeterminado, porém, ela segue o caminho
convencional e esconde de si mesma a extensão do seu medo. A consequência
dessa atitude enganosa é a produção de tensão nervosa, da psiconeurose e até
de enfermidades físicas. O número dos que padecem de sérias neuroses não se
conta por centenas, mas por milhões, não se limita a uma só classe, mas
difunde-se a todas as classes. O estado continuado de alarma público e medo
particular durante os bombardeios da guerra e as disputas da paz afetou também
a sanidade de mentes mais fracas.

O medo é um sentimento nativo e, portanto, não é um sentimento para ser


cultivado, mas possui alguma utilidade quando consegue despertar as pessoas
e mostrar-lhes a necessidade de enfrentar a situação calamitosa que o criou, e
quando as obriga a fazer alguma coisa nesse sentido. Como advertência da
necessidade de ação, a sua voz deveria ser ouvida. A psicologia barata que,
embora pregue uma vida sem medo, reprime essa advertência sob uma capa de
otimismo sem realismo e de confiança sem fundamento, presta apenas um
desserviço. Assim como o homem que luta pela vida na água fluida aprecia
intensamente o valor da terra sólida debaixo dos pés, assim também a
tranquilidade de um período de verdadeira paz entre as nações é mais
intensamente apreciado quando os produtos da guerra científica expelem os
seus pavorosos horrores. A oportunidade de um pacífico mundo novo só poderia
advir de uma humanidade mudada e reflexiva, profundamente cônscia das lições
dos sofrimentos do tempo da guerra em seu passado recente. Nesse momento
é que os líderes e os liderados deveriam olhar profundamente para a sua
situação e determinar-se firmemente a investigar as verdadeiras causas dessas
guerras que se repetem e exercer a ação correta para eliminá-las. Que isto não
foi feito suficientemente no passado, ou não foi feito como o deveria ter sido, é
agora mais do que evidente.

As pessoas não sabem, mas deveriam ser instruídas nesse sentido, que tudo o
que acontece em todo o mundo é um quadro, em tons exagerados, do que está
acontecendo no interior delas mesmas, em grau variável. Alguns mais, outros
muito menos, entregaram suas vidas interiores ao domínio da animalidade e do
materialismo conjugados e, todavia, não o sabem. Dessarte, a mesma regra,
porém de modo mais espetaculoso e mais cruel, está tentando
desapiedadamente tomar conta de suas vidas exteriores. Trouxeram consigo os
remanescentes de vigorosas propensões do estádio animal da sua existência, e
aduziram a isto um intelecto astuto, mal dirigido e egoísta, derivado do estado
humano presente. Os animais matam porque têm fome, mas os homens são
piores, na medida em que a posse da qualidade da estúcia os leva a matar ou
torturar por outros motivos também. Violentas energias e paixões explosivas
fazem muito barulho em seus corações. Desejos que arrastam para baixo
prendem-nos entre presas aguçadas. Instintos agressivos perambulam como
tigres e suspeitas tenebrosas rojam como víboras no interior das suas mentes
conscientes ou subconscientes. Cobiças egoístas têm um firme habitat em suas
atitudes. Ódios, acrimônias e lascívias agitam-se por dentro e são fomentados
por fora.

Inevitável e inescapavelmente esses pensamentos bestiais assumem forma


exterior e surgem as lutas históricas. Como poderá a verdadeira paz entrar no
mundo enquanto a mentalidade da luta feroz não o tiver deixado? Nenhuma lei,
nenhum governo, poderão pôr freio, até certo ponto, às suas expressões em
ação. O estadista poderá regulá-los dentro de certos limites, mas não passará
disto. Sempre que essa mentalidade puder dominar, não somente envenenará o
ser interior, mas também contribuirá para a experiência exterior. A cólera sentida
hoje poderá manifestar-se amanhã no plano físico como um acidente em que o
seu portador, caindo, se machucará — este é apenas um incidentezinho que
ilustra a importância do autocontrole e o valor do pensamento reto.

Onde quer que as pessoas tenham de viver juntas num lar, ou trabalhar juntas
num campo, numa fábrica, num escritório ou numa firma, a presença de uma
única personalidade agressiva e indisciplinada entre elas bastará a criar
dificuldades ou a provocar brigas. Por aí podemos perceber os benefícios que a
insistência de todos os guias espirituais no autotreinamento e no auto-
aperfeiçoamento pode acarretar ao viver social. Isto ensina os homens a alçar-
se à sua natureza superior e a manter sujeita a sua natureza inferior. Na medida
em que eles forem capazes de fazer uma coisa dessas, a sociedade se
beneficiará com eles. Mas na medida em que as advertências dos profetas são
menosprezadas e a sabedoria dos filósofos é posta de lado, manifestam-se a
discórdia, as lutas e as guerras.

Quando a emoção descontrolada se precipita na direção errada, seja na cólera,


na lascívia, no ódio ou no orgulho, ela tende também a fugir com a paz e a
felicidade. Torna-se um perigo para a pessoa e para a propriedade. Os que mais
preponderam entre os complexos maus, que, sob a lei da recompensa,
acarretam sofrimento quando ativados, são os agressivos, os violentos, os
explosivos e os egoisticamente passionais. As pessoas que querem conservar
essas causas das suas dificuldades simplesmente porque são naturais ou
familiares, mas não querem experimentar as próprias dificuldades, que a elas se
seguem, inexoráveis, adotam uma atitude ilógica. Enquanto as iras e as
concupiscências, os ódios e as lubricidades não morrerem no coração dos
homens, os conflitos e as contenções persistirão em suas vidas. E essa morte
das paixões primitivas só se verificará com a entrega total do ego ao Eu
Supremo. Os que o procuram não são muitos: os que o conseguem,
pouquíssimos. A paz na terra é um nobre sonho; a sua plena realização está
muito distante (se bem a sua realização limitada não esteja) enquanto um
número maior de pessoas não vier a procurá-lo neste, que é o único caminho
verdadeiro e duradouro. Cada indivíduo precisa lidar com a sua natureza inferior
por si mesmo e em si mesmo, precisa opor-lhe o intelecto, em lugar de fazer que
o intelecto se sujeite a ela. Isto feito, não somente ele aproveitará, mas também
todo o seu povo.

A humanidade precisa aprender a governar as suas violentas paixões negativas,


as suas emoções agressivas e os seus hostis pensamentos destruidores,
precisa começar a lutar contra si mesma se quiser, um dia, abster-se de lutar
contra os outros, precisa crescer, perder a sua maturidade emocional
adolescente e elevar-se, deixando de lado as suas atitudes infantis, totalmente
egocêntricas. A busca da paz dentro de si mesma deve preceder e, assim,
inevitavelmente, criar a paz no mundo sem paz. O desequilíbrio universal, em
parte, é o resultado da incapacidade de reconhecer que não basta ser
fisicamente maduro, que ainda é necessário ser emocional, intelectual e
espiritualmente maduro.

É um fato evidente que a vida espiritual está fora da visão e além do poder de
muita gente hoje em dia. Se perquirirmos as causas disso, chegaremos à
conclusão de que essa gente se escravizou por tanta maneira à sua natureza
inferior, tornou-se tão suscetível às sugestões e aos ambientes externos
materialistas, que só as coisas que ela pode tocar, sentir e ver com os seus
corpos têm para ela alguma realidade ou algum significado. Só essas coisas
atraem essa gente, e não as coisas mais belas da mente e da intuição, nem os
ideais mais sublimes da intuição.

O que a sabedoria dita e a experiência endossa é que, para a humanidade poder


conhecer um mundo melhor será preciso que melhores pensamentos e melhores
sentimentos da humanidade sejam o prelúdio dessa desejável condição. A
noção de que ela poderá ter uma ordem melhor de sociedade sem se preocupar
em melhorar-se primeiro, é uma noção ociosa. E para que o começo seja real e
não um começo simulado, a reforma há de começar com o caráter humano. Pois
do seu longo passado, ela trouxe um resíduo de qualidades de sentimentos que
pertencem naturalmente ao reino sub-humano, às feras selvagens e vorazes do
jângal. Foi a sua combinação com o intelecto frio e impiedoso que deu em
resultado os homens megalomaníacos, desordenadamente ambiciosos, os
quais, por seu turno, conduziram tantos outros pelas estradas da discórdia, do
egoísmo e do ateísmo para o que, afinal, só pode ser o desastre e a condenação.

As suspeitas e os temores revelados por esses líderes, que representam as


forças do mal em nosso tempo, a psicótica intensidade dos seus ódios, que são
em parte o resultado da situação contemporânea e, em parte, contribuem para
essa situação, são o reconhecimento instintivo, ainda que inconsciente, da
derrota e da condenação finais do que eles tentam expressar ao resto do mundo
e impor a ele. O que está faltando às suas concepções da situação é não só a
fé em valores superiores, mas também a fé na idéia de poderes superiores. Eles
estão, há tanto tempo e tão profundamente, embriagados com o êxito do
desenvolvimento material e com as consecuções na aparente sujeição da
Natureza, que se tornaram vítimas de um ego ensoberbecido, proponentes da
completa capacidade da vontade humana de zombar da Ética e de negar o
espírito quando caminham na direção das suas metas. Mas os dramáticos
acontecimentos do século XX lhes mostrarão a tremenda ilusão que é realmente
essa alardeada capacidade, pois o nosso planeta não é uma coisa morta, senão
uma coisa viva. É o corpo de uma Mente viva, inteligente e poderosa. Ela
acabará sacudindo do seu sistema e da sua superfície os venenos morais e
mentais que ameaçam tornar-se totalmente destrutivos para os seus próprios
filhos, da mesma maneira que um corpo humano lança de si o seu sangue
empeçonhado através de erupções da pele. Aqueles que recusam deixar-se
infectar pelos caracteres negativos e pelas forças adversas do nosso tempo, que
buscam o conhecimento das leis espirituais da existência e procuram obedecer
a elas, estão proporcionando a si mesmos, dessa maneira, parte de uma forma
de proteção contra quaisquer perigos em que essas forças possam tentar
envolver toda a humanidade.

A trágica impotência que sente o indivíduo particular e só à proporção que a


maré dos acontecimentos avança sinistramente, a aparente inutilidade da luta
contra tais sucessos, esmaga a emoção e moteja de qualquer preocupação pelo
destino pessoal. Em face dessa formidável corrente que caminha para a
autodestruição, o homem, em sua solidão e em sua pequenez, parece ter
pouquíssima valia. Dificilmente poderá ser censurado por levantar as mãos,
resignado, ao chegar à conclusão pessimista de que, faça o que fizer, o resultado
dos eventos mundiais permanecerá imutável, de que, por mais que ele ou os
seus semelhantes tentem influenciá-los, a amplitude do que lhe é dado fazer é
demasiado pequena para ter alguma importância, e de que, ainda que faça o
máximo que lhe permitem a sua situação e o seu status, chegará à conclusão de
que será sempre um esforço reduzido, de um alcance limitadíssimo na melhor
das hipóteses.

Visto ser manifestamente impossível aos governos — a despeito de todos os


seus admiráveis esforços — exercer o poder protetor de deuses, todo homem
deveria procurar por si mesmo as suas fontes adicionais de ajuda. Por mais
necessários que possam ser os seus preparativos políticos e militares de defesa,
os seus próprios preparativos espirituais não são menos necessários. Não seria
ele mais prudente, mais clarividente, ampliando os seus sustentáculos e
envidando os seus próprios esforços adicionais e pessoais no sentido de
salvaguardar-se? Não deveria ele desenvolver os seus recursos individuais e
encontrar maneiras e meios suplementares para cuidar de si mesmo? Se os
acontecimentos nacionais externos estão fora do seu alcance, não o está a sua
vida particular interna. Aqui, pelo menos, as suas opções e repressões podem
imperar, aqui ele possui liberdade pessoal e imediata. Se o seu destino exterior
parece rígido, o seu destino interior não o é. Onde as dificuldades do mundo
fogem, cada vez mais, ao controle até dos que se acham em condições de
contribuir para os negócios públicos, um indivíduo sem importância, que sente
não poder fazer nada nesse sentido, pode fazer muita coisa no que diz respeito
à sua reação pessoal a esse estado de coisas. Pode tomar isso nas mãos e
moldá-lo ou modificá-lo. Mentalmente, por certo, embora fisicamente um pouco
menos, isso ainda está dentro de alguma medida de controle. Ele pode
considerá-lo como a sua oportunidade criativa para fazer um trabalho muito
necessário sobre si mesmo. Se pouco pode fazer para trazer paz ao mundo,
pode fazer muito para trazer paz a si mesmo. Não poderá, por si só, salvar a vida
exterior da civilização, mas poderá, por seu empenho, salvar a sua própria vida
interior. Se não lhe é dado trazer tranquilidade à sociedade, está em suas mãos,
pelo menos, tentar trazê-la a si próprio.

Os nossos tempos são uma intimação a todo indivíduo para que se salve, uma
ordem promulgada para que ele busque o seu refúgio interior e não arrisque tudo
o que tem, desorientadamente, contando apenas com a proteção política e
militar. Cada qual precisa operar uma mudança externa e interna em seu modo
de vida e não contar apenas com os outros para que velem por ele e o conduzam
a bom recado através dessa crise. Cada homem terá de suportar sozinho a parte
mais profunda da sua ansiedade. Ninguém poderá suportá-la por ele, nem
sequer ajudá-lo a suportá-la, por mais que ele se iluda imaginando que isto está
sendo feito. A vida, o grande mestre, coloca-o nesse isolamento para mostrar-
lhe o rosto da sua psique. Sábio é o homem que aproveita a revelação e conhece
a própria fraqueza e a própria força, a própria ignorância e o próprio
conhecimento, a própria frustração e a própria suficiência.

Ouve-se falar, com frequência, da idéia em círculos religiosos de alguma nova


abordagem das massas, de alguma oração nacional especial, ou de alguma
chamada geral ao arrependimento. A idéia, em si, é boa, mas não basta para
superar a crise. Cada indivíduo precisa ainda equipar-se. Precisa começar
despertando e aceitando algumas porções da verdade espiritual elementar. Não
lhe é preciso, para fazê-lo, juntar-se a nenhum grupo, nenhuma instituição,
nenhum credo, nenhuma religião e nenhuma organização, nem, por outro lado,
lhe será preciso deixar qualquer grupo, organização ou religião a que ora
pertença. Tais mudanças são menos importantes do que a sua crença de que
uma boa vida é, de certo modo, o caminho da satisfação, e a prática de más
ações, de certo modo, é o caminho do sofrimento. Se ele conseguir persuadir-
se a acreditar nessa lei da recompensa e na existência de algum Poder Superior
por detrás dela, e se ele fizer algum esforço no sentido de aprimorar o seu caráter
e desdobrar os seus recursos interiores, tudo isso serão armas e armadura para
a sua defesa na crise.

É imperativo para as pessoas capazes de discernimento aprenderem a ter


alguma confiança em si mesmas e encetarem o desenvolvimento dos próprios
recursos. Tais individualistas têm o melhor futuro, pois só eles serão capazes de
reconhecer o verdadeiro chamado à salvação. Mas os outros, que se alojaram
firmemente em suas rotinazinhas, propendem a aceitar apenas teoricamente um
conselho realmente espiritual. Muitos deles dificilmente quererão aplicar-lhe as
medidas práticas à sua própria existência pessoal. Por conseguinte,
acrescentarão ajustamentos às injunções que lhes parecerem desagradáveis e
farão reservas acerca dos ideais que se lhes afigurarem desconcertantes.
Somente uns poucos terão a coragem moral de afastar-se das atrações do
sensualismo e do conforto burgueses e pesados, que hipnotizam toda uma
civilização e de rejeitar a fatuidade auto-admirativa que paralisa as verdadeiras
intuições espirituais ou as perverte, convertendo-as em pseudo-intuições.

Aquele que desperta para o fato de que o desafio contemporâneo é um primeiro


lugar individual e somente em segundo lugar um desafio social, talvez não seja,
a princípio, capaz de encontrar um meio de afeiçoar a sua vida exterior mais de
acordo com o ideal da sua vida. Mas se quiser pesar o que deseja com o que
precisa sacrificar para obtê-lo, descobrirá frequentemente que incidiu no erro
comum de tomar o ambiente habitual pelo ambiente indispensável. O homem
comum não dá tento do quanto é presunçosa a sua concepção, assim como não
sabe que a sua presunção oferece resistência à intuição mística do interior e aos
ensinamentos da verdade do exterior.

Até há pouco tempo era costumeiro relegar os partidários do misticismo ao asilo


da credulidade, da fraude e até da loucura. Num certo número de casos
individuais, os críticos estavam perfeitamente justificados em fazê-lo, pois
quando o pretenso místico perde o seu curso reto, desvia-se facilmente para
uma dessas aberrações. Mas condenar por atacado todo misticismo somente
por causa da lamentável situação de uma parte dele, é injusto e constitui, por si
mesmo, um método desequilibrado. As pessoas que se intitulam sensatas,
normais e práticas em todo o mundo são, na verdade, menos capazes de
enfrentar a crise do que algumas das chamadas sonhadoras tolas, anormais e
destituídas de espírito prático, e apelidadas de maníacas, fanáticas e
excêntricas. E, todavia, isso não é tão estranho, afinal de contas. Quando
homens como Jesus, Buda e Sócrates apareceram pela primeira vez, eles e os
seus adeptos foram cognominados de maneira semelhante. Eles também foram
os hereges do seu tempo, simplesmente porque se recusavam a congelar-se no
materialismo autodestrutivo da sociedade convencional.

As pressões sociais podem impedir um homem de viver em conformidade com


idéias que as contrariam. Se ele não quiser abandonar a comunidade, terá de
abrir mão das suas idéias, modificá-las ou escondê-las. Um ajustamento
compulsório dessa natureza não é bom para os seus nervos nem para o seu
caráter. É um comentário irônico sobre a natureza da nossa civilização que tanta
coisa que é de perene veracidade nas idéias místicas e tão conhecida dos
antigos asiáticos, impressione muitos modernos como sendo tão nova, ou
porque nunca tenham ouvido falar nela, ou porque, tendo ouvido falar nela, eles
a ignoraram completamente.

Idéias estranhas e desconhecidas desse gênero, que colidem com as idéias há


muito tempo esposadas pela sociedade ou perturbam as que foram recebidas
por convenção, surgem contra a natureza humana, cuja primeira resposta
instintiva é contradizê-las. Isto ainda se verifica até quando houve fatos, provas
e indícios solidamente estabelecidos. Tal é o poder de um hábito de uma vida
inteira e a força de uma opinião preconcebida! O reformador que procura
sobrepujá-los escala uma íngreme ladeira. Só os chamados fanáticos e
excêntricos se dispõem a ouvi-lo. Os demais que também o ouvem fazem-no
malgrado seu, quando têm a mente desesperada ou o corpo quebrado.

Não é agradável nadar contra a corrente da sociedade em nome de um


individualismo místico; na verdade, é algo heróico, algumas vezes. A idéia de
modificar os hábitos rotineiros e de livrar-se de tendências adquiridas durante
toda uma vida, apavora e enfada a maioria das pessoas. Estas se tornaram
vítimas dos hábitos que prevalecem à sua volta e as próprias tendências
assumiram existência assim psicológica como física, convertidas em fixações
profundamente arraigadas no interior da mente subconsciente. Entretanto, o
sofrimento estará à espera dessas vítimas se elas insistirem em permanecer
prisioneiras do seu próprio passado cediço e não se acomodarem à concepção
diferente agora exigida. Por que haveriam elas de obstinar-se em conservar as
condições passadas de pensamento ou os padrões ancestrais de resposta
sempre que estes se revelassem incapazes de satisfazer às exigências
presentes?

Todo homem se acha, até certo ponto, sob a tutela das massas. A todo momento
influem nele sugestões recebidas da multidão. Ele é mais ou menos um escravo
— escravo das formalidades sociais, escravo das instituições estabelecidas,
escravo de códigos convencionais e escravo da opinião pública. Se bem essa
escravidão fosse muito pior em outros tempos, mesmo em nossa época pouca
gente pensa, sente e age plena e livremente de acordo apenas com a sua
vontade individual. É mais provável que o homem pense, sinta e aja, em grande
parte, de acordo com o que lhe tiver sido sugerido por outras pessoas. Daí que
ele dificilmente viva a sua própria vida independente ou obedeça ao seu próprio
eu interior mas, como toda a gente, vive a vida da multidão. Ainda que alguma
parte da sua atitude para com a vida seja inata, a maior parte não o é. É-lhe
imposta pela instrução e pelos ensinamentos que recebeu, pelos ambientes
cujas influências ele aceita e pelos padrões convencionais a que ele se
conforma. Quando uma concepção do mundo é tão amplamente afeiçoada pela
sugestão externa, a necessidade de pensar por si mesmo torna-se, ao mesmo
tempo, uma virtude primária e um fator necessário da saúde mental.

A multidão humana está emergindo da adolescência e, aqui e ali,


semiconscientemente, está-se preparando para a sua maioridade. Novas
esferas de experiências estão-se abrindo para ela. Urge que ela aceite parte da
responsabilidade de pensar por si mesma, que lhe advém com a aproximação
da maturidade. Ela se encontra hoje numa posição intelectual que é muito
diferente daquela em que se encontraram todos os seus antepassados. Já não
é o simples agarrar-se da criança aos vestidos da autoridade e o acatar
cegamente as determinações do seu líder. Ela, hoje, precisa começar a descobrir
o seu caminho por si mesma e a compreender por que segue essa determinada
direção. A História ingressou numa época em que as massas precisam começar
a descobrir por si mesmas e em si mesmas a verdade que, antigamente, lhes
era transmitida e, muito adequadamente, era aceita por elas, em cega confiança,
de outros homens. Agora é mister que elas se preparem para abandonar esse
adolescente depender de outros. O destino já não lhes permitirá que dependam
indevidamente e apenas do amparo da autoridade externa; — elas precisam
aprender também a depender da sua própria e crescente inteligência. Uma
criança que for sempre carregada pela mãe, desde a infância até a maturidade,
nunca aprenderá a caminhar e se tornará, na realidade, fraca demais até para
ficar em pé. É forçoso que ela tente, e tropece, e até caia, às vezes, antes que
os seus membros possam ser usados com eficiência.

Se a vida se tornar exclusivamente autoritária, se o homem da massa se sujeitar


a ter todo o seu pensar, todo o seu responder e todo o seu viver levado a cabo
por outros, acabará ficando demasiadamente enfraquecido ou debilitado para
pensar, responder e agir por conta própria. Pois quando é incapaz de ter um
pensamento que não tenha recebido de fora, quando não toma uma única
decisão sua, mas vive recorrendo aos outros para que a tomem por ele, como
poderá crescer? Todos precisam agora começar a libertar-se das sugestões
raciais que lhes foram impostas, precisam começar a assumir, por esforço
próprio, as suas atitudes individuais para com a vida. Já não é sem tempo que o
homem revele, ainda que vagamente, alguns dos atributos da maturidade que
auroresce. Precisa começar a pôr de parte a passiva aquiescência irrefletida e
tornar-se mais responsável pelas suas próprias crenças e pela sua própria vida.
Uma das primeiras coisas que o estudante de Filosofia descobre como
consequência dos seus estudos semânticos é a tremenda influência que a
sugestão exerce na vida humana, e um dos primeiros problemas que ele enfrenta
é separar os hábitos, os pensamentos e as emoções de outras pessoas dos seus
hábitos, pensamentos e emoções. Isso, todavia, é difícil, porque eles são quase
indistinguíveis dos seus — ambos funcionam juntos dentro do seu coração e
sobre ele. Idéias e impulsos nascidos dentro dele têm de misturar-se com os de
origem externa e até de ser submergidos por eles.

Nenhum professor é realmente indispensável, muito embora todos eles sejam


sempre úteis. A Vida e as suas experiências, a Natureza e os seus silêncios, a
Reflexão e as suas conclusões, a Meditação e as suas intuições, proverão ao
que busca o de que ele necessita. Cumpre-lhe encontrar nas lutas e nas
dificuldades da vida um ginásio em que possa exercitar a sua razão e
acrescentar a sua capacidade, e não uma desculpa para buscar o conforto de
segunda mão de uma sociedade sobre cujos ombros são colocados todos os
fardos. Pois ele está aqui essencialmente para revelar as suas próprias
faculdades de intuição e inteligência; ele está aqui essencialmente para obter
uma compreensão da existência para si e por si mesmo. Além disso, ele deve
compreender que as dores e os sofrimentos da vida ajudam a purgá-lo dos seus
apegos e a suscitar o seu conhecimento latente de que este mundo do vir-a-ser
será sempre imperfeito, de modo que ele possa voltar o rosto para o mundo do
ser que é sempre perfeito.

A evolução, ao mesmo tempo, é um fato tremendo e uma força sempre


premente. Impele toda vida para a frente e para cima. Mas esse duplo movimento
não pode realizar-se sem ultrapassar e negar os seus estádios anteriores. Por
isso mesmo, o homem precisa libertar-se das antigas servidões. Precisa
começar a procurar em si mesmo, em seus próprios recursos, latentes e
maravilhosos, a ajuda de que precisa. Pois tudo isso é o primeiro passo para o
passo final, encontrar a divindade dentro de si mesmo, o que, afinal de contas,
é o supremo e grandioso objetivo das suas encarnações terrestres.

É necessário, contudo, não incidir em erro aqui. O que se quer dizer é que,
enquanto o egoísmo do ego deve agora ser atenuado, a capacidade do ego de
julgamento individual, ao mesmo tempo, tem de ser aumentada.

Onde Está a Fortuna do Homem?


Moralmente, todo homem tem liberdade para utilizar a ameaça de uma possível
aniquilação precoce como pretexto para resvalar à devassidão e à embriaguez,
mas ele tem a mesma liberdade para utilizá-la como acicate que o mova a
diligências mais altas, que o dotarão de uma armadura interior. Este século, mais
do que qualquer outro, tem acumulado o prazer humano externo com todo o
auxílio da Ciência e, não obstante, mais do que qualquer outro, tem sentido,
ironicamente, a perda da felicidade humana. O desejo das frívolas atividades,
tão difundido hoje em dia, seria mais sadio se fosse equilibrado e moderado. Mas
quando se torna, como tantas vezes o vimos tornar-se, desequilibrado,
desordenado, e extrovertidamente escapista, deixa de ser sadio. É agradável
folgar e divertir-se, mas isso não é o bastante, por si mesmo, a constituir o
propósito da vida. Sem um objetivo mais elevado para redimi-la, uma vida assim,
na verdade, é uma vida malbaratada.

O nosso tempo reluta em despertar para o fato de que o sofrimento humano é


um fato eterno e inevitável, impresso no caráter de toda existência humana, e
não apenas aparecendo ocasionalmente. Pois se ele assim despertasse, teria,
consequentemente, a necessidade de despertar para a necessidade de
encontrar um método de fuga interior à dominação exterior do sofrimento. Todas
as suas sublevações formam um pungente lembrete de que este mundo é
apenas um acampamento de passagem e não um lar permanente. Um
melancólico reconhecimento da transitoriedade da vida terrena e da insuficiência
dos valores terrenos faz parte da atitude do indivíduo que haja despertado. Disto
lhe decorre a decisão de limitar as suas ambições, de simplificar os seus desejos
e de contestar os hábitos do seu ambiente. A partir daí principia ele a executar a
momentosa reviravolta, olhando para dentro de si mesmo à cata de ajuda, de
paz, de estabilidade e de liberdade. Pois que lhe adianta possuir tantas coisas
se ainda não se possui a si mesmo, que lhe adianta ser dono de tantos recursos
exteriores e de tão escassos recursos interiores? Que utilidade haverá em correr,
exagitado, de um lado para outro, mas nunca sair à procura da própria alma?

Tamanha é a insegurança da era atual que somente os poucos que encontraram


a própria alma e, com ela, a paz interior, descobriram a segurança autêntica.
Quem quer que esteja disposto a arriscar-se na vida vertiginosa do mundo crente
de que nela encontrará a felicidade duradoura, engana-se redondamente. A
única coisa que ele poderá encontrar são uma felicidade passageira e
satisfações momentâneas.

Essa crença de que, se puderem encher a sua vida de coisas, pessoas e


acontecimentos, terão realizado o objetivo da vida e, por conseguinte, atingido a
felicidade, é o erro que tanto escora a atividade social dos modernos povos
ocidentais. Equivocados no tocante à natureza do seu verdadeiro bem, o fim de
todos os seus esforços é, inevitavelmente, a frustração, o descontentamento ou
a desilusão. Nem uma multidão de coisas — por mais úteis ou mecânicas que
sejam — nem uma multidão de pessoas — por mais ricas, amantes ou
importantes que sejam — serão suficientes para dar ao coração o que este
realmente, embora inconscientemente, procura. Os que têm coisas para viver
em quantidade suficiente ou os que passaram com facilidade por entre as
circunstâncias, poderão, durante algum tempo, sentir-se suficientemente
satisfeitos consigo mesmos e com o mundo externo, mas isso será apenas por
algum tempo. Outros estão correndo de uma satisfação pretensa e diferente,
mas decepcionante, para outra, começando cada experiência com a patética
ilusão de que será a definitiva, mas rematando-a com o pesaroso conhecimento
de que não o é. São incapazes de atentar para a voz de uma sabedoria
incomensuravelmente mais velha do que eles. Mas aqueles que sofreram
frustrações, privações e infortúnios, cujas esperanças morreram e cuja coragem
se acabou, cuja decepção é profunda e permanente, poderão querer escapar de
si mesmos ou do mundo. São eles os que mais frequentemente têm ouvidos
para ouvir e ouvem a voz dessa antiga sabedoria mais prontamente.

É verdade que algumas pessoas se dão conta do vazio espiritual que existe
dentro delas, embora as suas salas estejam cheias de trastes, os seus armários
de roupas e as suas dispensas de comidas. Entretanto, estão de tal maneira
desindividualizadas que continuam a multiplicar as suas necessidades materiais
por sugestão de vozes expressivas. A idéia de fazer uma pausa no meio dessa
atividade febril e ilusória que não traz felicidade real, e de começar a ouvir a
palavra dos inúmeros e inspirados mestres espirituais, que mostraram o único
caminho para essa felicidade, é uma simples idéia num vácuo. Não se aplica à
cotidiana rotina da vida. Outros sofreram mais e possuem menos e estão, por
consequência, um pouco mais cônscios da necessidade interior. Sem embargo
disso, a mundanidade governa a maioria dos continentes hoje em dia a tal ponto
que eles pouco se interessam por qualquer esforço que não ofereça um lucro
rápido e que não se lhes afigure pessoalmente vantajoso. O esforço inculcado
por um ideal cujo lucro está muito distante e cuja vantagem é unicamente o bem-
estar interior, oferece poucos atrativos.

Aqui e ali, todavia, os indivíduos estão começando a despertar para o fato de


que a moderna civilização oriental, com a sua intérmina multiplicação de
necessidades, é menos conducente à paz de espírito do que a civilização oriental
antiga, mais simples, com todos os seus reconhecidos obstáculos, desvantagens
e inconvenientes. Como poderão as pessoas conhecer a paz interior quando
sucumbem, indefesas, continuamente, às sugestões vindas de todos os cantos
para aumentar os seus desejos? Abaixo de um certo máximo e acima de um
certo mínimo de posses, não existe nenhuma necessidade real delas. A paz
interior só é possível àqueles que desprezam não somente a pobreza do
pauperismo, mas também as riquezas da superfluidade.

As pessoas que se deslumbram com a posse de coisas ao mesmo tempo que


descuram da posse de si mesmas revelam-se emocional e intelectualmente
pouco crescidas, uma raça de meninos e meninas espiritualmente pequenos,
preocupados com pequenos brinquedos. Estadeiam a sua adolescência
espiritual ao se deixarem levar pela atividade, pelas posses, pela excitação, pelo
conseguimento externo e pelo sucesso mundano. Sobrestimam essas coisas e,
em sua luta por adquiri-las, deixam fugir as oportunidades de conquistar a paz
de espírito. Estão continuamente radiantes a cada conquista, apenas para
deixar-se dominar, mais tarde, por arrebatamentos e insatisfações, desarmonias
e agitações. Não é pessimismo nem derrotismo assinalar as insuficiências desse
modo de vida. Com todas ase suas atividades e todas as suas conquistas, que
foi o que eles realmente fizeram? Construíram uma civilização que está sendo
ameaçada de todos os lados, além dos perigos internos que também a
ameaçam. E que foi o que realmente obtiveram? Obtiveram um mundo de
sempre crescentes frustrações, cobiças, caos, violências, invejas, ódios e
intranquilidade.

Acumulam propriedades, das quais se orgulham e às quais se apegam. O prazer


ministrado por tais aquisições logo transmuda os luxos em necessidades, o que
é pelo menos discutível no tocante à sabedoria, mas também converte valores
morais sadios em falsos valores materialistas, o que já não o é. Quanto mais
cedem às sugestões implantadas pelo seu meio ambiente, tanto mais se enchem
de desejos os seus corações e tanto mais se inquietam. A complexidade da vida
moderna, sobretudo da vida moderna ocidental, fez que as suas vítimas
perdessem a capacidade de discriminar entre o que é meramente supérfluo e o
que é realmente indispensável.

O significado dessa meta, que nada tem que ver com o ascetismo heróico, deve
ser cuidadosamente especificado. O desejo é a força propulsora da vida. A sua
manifestação e o seu desenvolvimento dentro da entidade humana são parte do
plano evolutivo para essa entidade. É necessário, nos estádios iniciais e
intermediários, ressaltar várias capacidades latentes. É necessário, nos estádios
avançados, em que ele assume as formas da ambição pessoal e da aspiração
cultural, ressaltar outras capacidades ainda de uma espécie mais sutil. O seu
lugar na vida não é um mal, e muito menos um acidente. Durante as fases do
desenvolvimento do ego pessoal do homem, os seus desejos pelas coisas que
o encerram são certos e naturais. Ele precisa utilizá-los, apegar-se a eles,
satisfazer necessidades e ambições. Mas quando, durante as últimas fases do
seu aparecimento planetário, ele percebe que não foi enviado à terra apenas
para lograr o aprimoramento físico e o conforto corporal, senão também para
alcançar uma meta mais alta e cumprir um destino mais elevado — a realização
espiritual — o propósito mais elevado e, consequentemente, o mais importante
desse aparecimento precisa complementar e modificar o propósito inferior e
preliminar. Antes, essas coisas, esses apegos e esses desejos eram úteis e
necessários a ele. Depois, só o são na medida em que as necessidades
intermináveis se distinguem das necessidades essenciais. É inevitável que
chegue o momento em que, com a experiência mais amadurecida e a reflexão
mais madura de um lado e o sofrimento mais amargo e a decepção mais
profunda do outro, o seu desejo natural seja obrigado a desvalorizar os seus
objetivos e, consequentemente, a refrear as suas próprias atividades. Isto não
significa que se deva renunciar a eles exteriormente, senão que o homem deve
disciplinar-se e disciplinar o seu apego a eles.
Uma vida de gostos simples em si mesma e por si mesma tende a favorecer a
tranquilidade interior. Somente começando a simplificar é que o homem pode
voltar a uma existência mais natural e, por conseguinte, a uma existência mais
natural e mais sadia. Além do grau de necessidade real, as coisas podem tornar-
se em obstáculos, e ele talvez tenha de começar a afastar-se delas. Ele precisa
examinar a sua vida e interrogar os seus desejos, a fim de verificar até onde
algum deles interfere na realização das aspirações espirituais ou lhe toma o
tempo de que ele necessita para os seus exercícios de relaxação e de
meditação. Isto terá de ser seguido, inevitavelmente, por um reajustamento
ascético, uma aprendizagem para passar sem ele e não se incomodar. A vida é
demasiado curta para que valha a pena ser gasta em conforto corporal mas em
estagnação espiritual, se o exame revelar ser essa a situação. A certa altura da
sua vida, o homem tem necessidade de desapegar-se dos seus apegos, precisa
dizer às coisas e até às pessoas que reivindicam entrada em seu coração: “Até
aqui e não mais”. Ele pode exercitar-se no sentido de tornar-se interiormente
dissociado de relações sem se tornar exteriormente muito frio em relação a elas.
Sentir-se interiormente livre e alheado e não ser possuído por coisas nem por
pessoas é um estado que pouquíssimos ocidentais compreendem, e muito
menos experimentam.

Não é necessariamente das coisas que ele deve separar o seu coração, mas sim
dos dominantes desejos dessas coisas. Uma mudança de atitude dessa
natureza pode ou não levar a um desvencilhar-se de posses. As suas principais
circunstâncias interiores e as suas circunstâncias exteriores determinarão se isto
é ou não é necessário. Pode surgir dentro dele a necessidade de simplificar a
sua vida lidando com um menor número de coisas, ou pode não ser possível,
em face da sua posição no mundo, fazer até isso. Não tem importância. O que
importa sobretudo é o que o mantém aprisionado no ego; os pensamentos e os
sentimentos expressos em desejos, que estão sempre pedindo mais e mais, e
nunca estão satisfeitos com o que têm, ou nunca estão resignados ao que já
têm. A propriedade pode ficar como uma corrente a tilintar à volta dos seus
tornozelos ou converter-se numa força para o auto-aperfeiçoamento e para
maior utilidade. O que importa não é o que ele possui, senão o que pensa e o
que sente em relação ao que possui. Por conseguinte, não é tanto através do
gesto exterior de renúncia às coisas que ele faz um autêntico progresso
espiritual, quanto através de uma mudança da atitude interior em relação a essas
coisas.

O alhear-se do mundo não supõe necessariamente as emoções, embora isso


aconteça amiúde. Podemos ainda sentir alguns apegos e, no entanto, estarmos
realmente alheados, contanto que procedamos assim, em vontade e em atos.

Aqueles que falam em sacrifício e alheamento mas que nunca tiveram posses
ou posições a que pudessem renunciar, falam com demasiada facilidade. Eis por
que opiniões como as seguintes são ampla e firmemente sustentadas: “Creio ser
uma impossibilidade a obtenção da tranquilidade filosófica sem riquezas; e meto
a ridículo as opiniões dos filósofos que se gabam de paz interior no meio da
penúria: e ouço-lhes as afirmativas com incredulidade”. Essas palavras foram
escritas, há mais de um século, na Itália, pelo Marquês Francesco Guasco.
Como poderia alguém ter eliminado as dúvidas do cético fidalgo? Nenhum
argumento é tão sólido e convincente quanto a experiência pessoal. Nada mais
poderá levar um homem a acreditar que os sábios e místicos que sentiam e
proclamavam essa paz mental, a despeito das suas humildes condições
externas, não estavam dizendo mentiras nem sofrendo de alucinações. Eles
haviam encontrado a verdadeira felicidade interior e os incrédulos não estariam
dizendo tanta bobagem se, em lugar de opor objeções à sua exequibilidade, as
opusessem à sua dificuldade.

Ensina a Filosofia que o fato supremo da existência de qualquer homem não são
as suas circunstâncias nem é a sua fortuna. É ele mesmo. Os ambientes vão e
vêm como a maré; os ventos do destino e da fortuna levantam-se e abatem-se
irresistivelmente; mas através de todas as mudanças, o pensamento do “Eu”
tudo domina. E a primeira tarefa da vida humana é construir o caráter, ampliar o
conhecimento, expandir a consciência e, acima de tudo, reconhecer-se,
reconhecer o seu “Eu”, como enraizado num estado superior do ser. A sua
segunda tarefa é adquirir experiência. Ela sente prazeres e dores, adquire
dinheiro e cria uma família, na realidade, como meio para a primeira.

Os únicos indivíduos pacíficos são aqueles que interiormente se retiraram — e,


às vezes, exteriormente também — para seguir um modo melhor de vida, que
se recusaram a submeter-se a uma atividade que não tem outra meta mais
elevada senão apenas a sua própria continuação, que estabeleceram uma meta
de atingimento espiritual fora e dentro da meta do atingimento físico.

Não se deveria pedir ao trabalhador ocidental que imite o faquir oriental e procure
o estado de absoluta ausência de desejos. Ele quer viver bem e, por isso, precisa
ter alguns desejos. O desejo, como já se disse, tem o seu lugar adequado e a
sua utilidade na vida. Não obstante, ele deveria reconhecer a natureza transitória
das coisas, dos prazeres e das posses terrenas e, consequentemente, procurar
também Aquilo que proporciona satisfação duradoura. Ele não deveria limitar os
seus desejos apenas a essas coisas, a esses prazeres e a essas posses, mas
deveria acrescentar-lhe também o desejo do atingimento espiritual, do auto-
aprimoramento e da paz interior. Cansado das contradições inerentes às metas
sensuais, ele deveria começar a cultivar também as metas supersensuais.
Deveria ingressar na busca da autocompreensão espiritual, uma busca cuja
meta é um estado único e incomparável. Somente isto ministra a paz que
transcende todos os desejos e que provém do altear-se a criatura acima deles.
São João refere-se a ela em seu capítulo IV, 14: “aquele, porém, que beber da
água que eu lhe der, nunca mais terá sede”. Isto, no entanto, não poderá ser
conseguido a não ser que ele viva não só para as reais necessidades e os
prazeres disciplinados do corpo, mas também para os valores intangíveis que
não podem ser medidos pelos padrões terrenos. Ele pode apreciar corretamente
e saborear a posse de um rádio e de um automóvel, se o quiser, mas não deverá
tornar-se tão obcecado por essas pertenças meramente físicas da vida que não
saiba compreender-lhes o valor e o lugar quando cotejados com as coisas
espirituais.

Um mundo sofredor e atormentado necessita da silenciosa mensagem dessa


sabedoria, mas só um mundo humilhado propenderá a atentar suficientemente
para ela. O mundo precisa dela, mas só uns poucos percebem que a Filosofia
não é alguma coisa que se adapte apenas aos sonhadores, senão que está em
condições de sobreviver a todos os testes de todas as experiências. Uma lição
notável da guerra catastrófica e da paz caótica é que a segurança e a paz
precisam ser encontradas primeiro dentro de nós mesmos. Se isto for feito,
poderemos então carregá-las conosco aconteça o que acontecer externamente.

Estes são tempos ansiosos e difíceis para os quais precisamos de um apoio


interior independente das circunstâncias externas. Precisamos pedir e obter a
assistência da parte divina do nosso ser. Pois necessitamos do poder adicional
que nos ministram os valores superiores e os melhores princípios, se quisermos
atravessar em segurança este período difícil. Está sempre pronto, à mão, um
recurso infalível, está sempre presente um poder benéfico. Se acreditarmos na
realidade, na consciência superior, na inteligência e na graça do Eu Supremo;
se acreditarmos que essas coisas realmente existem e não são meros conceitos
intelectuais manipuláveis num jogo especulativo, teremos de acreditar também
que o Eu Supremo pode ajudar-nos em nossa hora de precisão. Para certificar-
nos de que isso é assim, precisamos realizar a experiência. Precisamos
depositar nele a nossa fé mais plena e fazer-lhe o nosso apelo mais profundo,
que terá de ser assim em atos como em orações. Precisamos voltar o rosto para
a nossa casa. Precisamos deixar de olhar para aqueles que também estão em
dificuldades e deixar de apoiar-nos neles, lembrados de que tudo o que é
humano poderá falhar-nos afinal, ao passo que tudo o que é divino representa,
para todo o sempre, um refúgio autêntico, semelhante a uma rocha. O melhor
que procuramos está ao alcance da nossa mão, porque o Eu Supremo está
dentro de nós mesmos. Pode ouvir-nos a prece sincera e pode conceder-nos a
sua graça benigna. Precisamos, portanto, fazer o esforço e contar com as
próprias qualidades mais divinas que nos são inerentes, com as nossas próprias
potencialidades sagradas e com a nossa própria individualidade mística.

Se acreditarmos que Deus é maior do que o homem, precisaremos acreditar


também que o eu espiritual, que é o nosso elo com Deus, sabe tudo acerca do
homem. Visto que o nosso próprio conhecimento da vida é reconhecidamente
inadequado e imperfeito, não seria prudente e sensato remeter os nossos
problemas básicos a esse ser superior, ao Eu Supremo? Enquanto agirmos
unicamente baseados em nossa própria iniciativa e de acordo com as nossas
próprias e fracas luzes, só poderemos depender dos limitados e, não raro,
falazes recursos do falso eu exterior. Assim que reconhecemos humildemente
essa situação, e nos arrojamos aos pés do poder superior, buscando comunhão
com ele e rogando-lhe que nos guie, chamamos em nosso auxílio os seus
recursos, bem maiores. Releva advertir, contudo, que a resposta a um rogo
dessa natureza pode não chegar imediatamente, sendo, amiúde, revelada pouco
a pouco, através do correr dos meses ou dos anos, que talvez tenhamos de
esperar um pouco enquanto as nossas súplicas perseverantes nos saem do
coração. Mas vale a pena esperar e, na realidade, é a única coisa que vale tanto
esperar em nossa vida.

Através da adoção de atitudes como essa reconhecemos a existência de um


poder superior e solicitamos a sua ajuda, ou mesmo a sua proteção, durante as
nossas dificuldades. Existem centenas de milhares de soldados, marinheiros,
aviadores, e civis, que se viram em situações perigosas, em que a morte violenta
ou uma horrível mutilação pareciam extremamente prováveis, e que se voltaram
para o poder superior, numa prece ou num gesto de resignação, com um fervor
que nunca haviam sentido antes. Conheciam o seu desvalimento como
indivíduos e descobriram o que significa ter fé, esperança e confiança na Mente
que existe por detrás do universo; alguns deles aprenderam, durante a guerra,
pela primeira vez, o quanto lhes era valioso o apoio interior que poderiam haver
dela.

Toda crise que mostra com nitidez quão miseravelmente pequeno é o


entendimento humano, toda catástrofe que revela com clareza quão
lamentavelmente fraca é a força humana, é uma oportunidade para que nos
voltemos em piedosa humildade para o eu superior em busca de ajuda e de
orientação. Para aqueles que estenderam a vista pelo mundo e só lhe
enxergaram as lutas e o caos, as idéias filosóficas podem trazer uma esperança
e uma confiança renovadas na eterna certeza da realização do propósito de
Deus. Para aqueles cujas vidas estão cheias de dificuldades e desalentos,
poderão trazer nova orientação e nova ajuda ou, pelo menos, a fé na existência
de uma ordenação divina do universo. Para aqueles que estão desejosos de
aceitar a liberação, que ele oferece, do medo, do ódio e de outras qualidades
negativas, já não mostra a vida sobre a Terra como uma colcha de retalhos, mas
como um padrão. Para todos afirma que o movimento da raça humana, a
despeito das aparências em contrário, é um ajustamento ao bem no final.
Embora enderece uma mensagem admonitória ao mundo contemporâneo,
também profere pensamentos que alevantam e conselhos práticos. Na medida
em que alguém se inteira da sua enunciação das leis superiores e se mantém
dentro delas, esse alguém está-se protegendo.
12
A Busca

Naquele mundo superior do ser em que habita o Eu Supremo, nenhum mal pode
penetrar, nenhuma paixão pode promover agitações. Descemos da sua bondade
absoluta para a treva e o tumulto, para o pecado e a violência desta terra como
quem desce do paraíso para o purgatório. O tremendo contraste entre a sua
sublimidade moral e tamanha degradação nos condenaria à perpétua tristeza um
elo entre os dois. Mas o elo realmente existe. Todo ser humano é capaz de
encontrá-lo e seguir a Busca secular e, dessa maneira, alcandorar-se à
consciência do seu eu superior.

Todas as pessoas estão empenhadas em pequeninas buscas que têm objetivos


triviais ou sérios como suas metas; só o homem que aproou o navio da sua vida
para a Grandiosa Busca tem por meta nada menos do que a realização do
propósito de Deus em relação a ele. Quando o homem desperta finalmente para
o fato de que a sua vida tem sido uma luta interminável consigo mesmo e ameaça
continuar assim, ele pode indagar por que isto deve ser assim e o que pode fazer
para pôr fim a isso. Uma indagação dessa natureza acabará por levá-lo,
finalmente, às próprias portadas da Busca.

Existem aqueles que nunca ouviram falar formalmente nessa misteriosa Busca
mas que, não obstante, perceberão alguma coisa ou até muita coisa da nossa
intenção, ainda que eles não sejam rapidamente capazes de aceitar-lhe a
verdade ou ceder diretamente às suas admoestações. Sem embargo disso, em
outro sentido mais amplo, isso será suficiente. O desafio terá sido lançado. Um
dia, mais cedo ou mais tarde, seja na carne, seja fora dela, haverá, sem dúvida,
recordação.

O que ele significa, portanto, é o seguinte: que o buscador se antecipa ao


processo evolutivo fazendo por si mesmo, tão depressa quanto possível, o que
a Natureza fará pelos outros homens tão devagar quanto possível. Ele pratica a
auto-escultura ao longo das linhas traçadas para ele por orientação intuitiva e
revelação exterior até que o Ideal se transforma no Real. Ele trabalha por
modelar-se, exatamente como o escultor trabalha por afeiçoar o mármore tosco
numa estátua expressiva. Conhece a verdade do que lhe ensinaram, tanto a
intuição quanto a revelação, assim como pelas amplas oscilações da
experiência, que a felicidade e o caráter, a visão interior e a força que dão à vida
os seus verdadeiros valores, ele mesmo terá de criar com o que encontrar dentro
de si. Todas essas qualidades já ali existem latentes, mas é forçoso que ele as
revele pelo esforço voluntário. Percebe, em seus momentos mais criteriosos, que
lhe é preciso deixar de esperar que a felicidade lhe venha de fora de si mesmo
e que, se ela tiver realmente de vir, terá de vir do seu interior. E descobre que,
para tornar possível uma coisa dessas, cumpre-lhe lutar perseverantemente com
o caos de sentimentos contraditórios que se interpõem entre ele e o Ideal.

É evidente que a ação expressa o pensamento. Mas já não é tão evidente que o
fazer seja também a conclusão do ser, que o que fazemos seja uma
consequência do que somos. Aqueles que acreditam que a Filosofia se perde
em sonhos ou se imerge em abstrações, equivocam-se. Ela não só formula a
pergunta “Que é a verdade?” mas também “Como devo viver?” e que outra
pergunta poderia ser mais prática do que essa? Tanto o europeu quanto o
americano são, essencialmente, homens práticos e quando descobrem que
certo ensinamento não é apenas teórico, mas também se aplica à sua rotina de
todos os dias, que não só dá aos seus adeptos uma compreensão do propósito
interior da vida, mas também uma paz incomum, muito poder sobre si mesmo e
algum sobre o meio ambiente, é mais provável que ele o contemple com olhos
favoráveis. Aqui está, portanto, a sua oportunidade histórica, pois ele não
somente é muito superior a todos os outros, mas também pode, particularmente,
animá-lo, fortificá-lo, e guiá-lo durante esses anos de crise em cujo vórtice
remoinhante toda a humanidade se acha agora inexoravelmente presa.

O homem capaz de discernir não deveria precisar nem de engodo nem de


recompensa para viver como deve viver, visto que o seu bem-estar externo e o
seu conforto interno são ambos ajudados por isto, a sua verdadeira felicidade é
construída ou ampliada. A Filosofia não é apenas uma questão teórica. Depois
que se familiariza com os principais ensinamentos, o estudioso da Filosofia
precisa fazer um esforço para aplicá-los ao seu viver cotidiano. Ele descobriu
essas verdades pelo emprego da intuição e da razão. Agora precisa pô-las à
prova pelos estalões da experiência — tanto emocional quanto física. Aceitá-las
é uma coisa, fazer que elas operem em si mesmo e em sua vida, é outra.
Enquanto não passarem dos seus lábios para o seu viver, serão apenas imagens
refletidas num espelho. Toda esta soberba disciplina, que lhe é preciso alcançar
paciente e dificultosamente, será consagrada à tentativa de aprimorar-se.

Está visto que, se ele aceitasse os padrões convencionais e mundanos de


pensamento, sentimento e moral, certos problemas talvez não se lhe
antolhassem. Mas ele estabeleceu para si mesmo um ideal muito mais elevado.
Que ele, de vez em quando, não conseguirá viver de acordo com esse ideal é
muitíssimo provável, pois ele, afinal de contas, é humano; faz-se mister, porém,
que ele não aceite os seus malogros com fátuo desvanecimento. Ao contrário,
precisará tentar expungi-los, expungindo-lhes as causas inerentes e os
desastrosos resultados. Isso exige a disciplina do eu e, às vezes, até a
suportação de padecimentos emocionais. O que quer que se ganha com
excessiva facilidade pode perder-se com facilidade excessiva. Isto é verdadeiro
no que diz respeito aos prazeres e satisfações do mundo. Mas os prazeres e
satisfações espirituais, que provêm do autodomínio na esfera do pensamento,
da emoção e do corpo, e que se conquistam após árduas lutas, esforços e
trabalhos, ficam e não passam.

Aquele que estende as mãos para a rútila paz da Alma, não as estende em vão.
Mas talvez não lhe sinta o calor ao primeiro movimento, nem ao décimo, a menos
que ele esteja disposto a trabalhar pelo que deseja. A quem quer que aceite esse
conhecimento não será necessário dizer que, mais cedo ou mais tarde, a pouco
e pouco ou através de um súbito jorro, ele terá de manifestar-se num
reajustamento prático e correspondente da vida. Dos abençoados momentos de
intuição, oração ou contemplação deverá surdir a ativa inspiração para viver, e
dos estudiosos momentos de reflexão metafísica deverão surgir os princípios
corretos de vida. Em todas as situações, ele deverá tentar aferrar-se a esses
princípios e aplicar as verdades fundamentais, pois, assim fazendo, não terá
razões para arrepender-se, mais tarde, do que fez.

Descobrir-lhes o propósito mais elevado na terra é uma coisa, consagrar a


existência a esse propósito, é outra, mas muita gente se recusa a fazê-lo por lhe
parecer impossível a realização de tão alevantados ideais. O caminho, longo,
não é familiar, o seu termo se afigura um pináculo inacessível, e os obstáculos
en route são copiosos e formidáveis. Ao erguer os olhos para ele, o aspirante
poderá perceber que o seu sentimento de inferioridade recresce, poderá sentir-
se desacorçoado, e cuidar que a jornada é superior às suas modestas forças e
à sua breve existência. Poderá duvidar da sua capacidade de escalar o trajeto
ascensional que tem à sua frente, como duvidou Tao Yuin Ming, ao exclamar,
pesaroso, quinze séculos antes: “O céu está além das minhas esperanças”.

Mas um pessimismo dessa ordem é em demasia extremo, desavisado e


desnecessário. Ainda sabendo que, muito provavelmente, jamais alcançará o
Ideal, isso não deve tolhê-lo de lutar por atingi-lo. Ainda que não tenha
surpreendentes conseguimentos para mostrar, apesar de todos os seus
esforços, ainda que o seu progresso seja tão lento que pareça decepcionante,
ele terá, pelo menos, a satisfação de saber que tem o rosto voltado para o destino
correto e que os seus pés já estão a caminho da salvação. Se ele encontrar a
direção certa e mantiver o rosto voltado para a meta, não precisará desalentar-
se com a lentidão do seu progresso. Thomas Carlyle escreveu, numa carta: “Se
o homem for sincero em suas intenções e em seus esforços por cumpri-las, terá
lavrado o tento, quer tenha sido bem sucedido, quer não”.

Todos os homens, ao estabelecerem a sua meta, podem fazer algum


progressozinho em direitura a ela durante o período da sua existência. Os
benefícios e recompensas resultantes do avanço não são destituídos de valor.
Se eles o fizerem, conhecerão a satisfação de poder arrostar o pior que
porventura venha a suceder-lhes muito melhor do que se o não tivessem feito.
Os que consideram o auto-aprimoramento como superior à sua capacidade, não
deixem, pelo menos, de tentá-lo, hesitantes, passo a passo; qualquer tentativa
será muito melhor do que cruzar os braços. Se eles derem os primeiros passos
paciente, perseverante, corretamente, estarão, dessa maneira, expressando o
seu interesse pelo Eu Supremo, e o Eu Supremo expressará, então, o seu
interesse por eles. Eles podem ser animosos. Existem ainda outras metas no
meio do caminho que leva à meta suprema. Pode dar-se que poucos cheguem
algum dia a alcançá-la, mas o certo é que muitos lograrão valiosos benefícios
pelo simples fato de tentarem atingi-la. Muito embora jamais acreditem poder,
um dia, erguer-se em pé no cume do conseguimento nesta encarnação, poderão,
ainda que só por alguns momentos, penetrar-lhe a formosa atmosfera. Até isso
é de grande valia.

A esperança é o poder que persuade uma microscópica célula protoplasmática


a arriscar a sua sorte no jogo evolutivo da vida, e finalmente a eleva à forma de
um enorme elefante. É o misterioso sopro de mágica que toma de um malogro e
o transforma num êxito. É a respiração que principia de uma criancinha e a
respiração que se vai de um cadáver. É o raio transfigurador de luz do sol que
redime a trivialidade da mais mesquinha existência. É o derradeiro bem do
homem, mas um dos melhores, pois aquele que possui a esperança haure novas
forças da queda interior e do fracasso exterior.

Finalmente, os que contemplam de longe a Busca, que encaram os seus


conseguimentos como coisa que não podem esperar para si, as suas lidas como
algo superior às suas forças e às suas circunstâncias, ainda podem estudar com
proveito os ensinamentos e familiarizar-se com eles. Se tiverem fé nas idéias e
as aceitarem com sinceridade, isto não deixa de ter algum benefício presente
para eles, ao mesmo tempo que cava os alicerces nesta vida de porvindouras
lições em alguma existência futura.

Que significa esse progresso espiritual? Significará, porventura, ter mais e mais
visões, raptos ou estranhos sucessos? Não! Significa que, a cada ano que
passa, o homem sentirá maior domínio de si mesmo, maior aperfeiçoamento do
seu caráter, estará mais atento e mais obediente às suas intuições, mais
devotado ao seu eu superior. Depois que tiver estabelecido o seu ideal, o
aspirante será incumbido de julgar-se, de tempos a tempos. Sabe ele muito bem
que não poderá viver, imediata e plenamente, em harmonia com ele, e, pelo que
é do seu conhecimento, talvez nunca, em toda a sua vida, venha a viver
plenamente em harmonia com o seu ideal. Sem impedimento disso, porém,
precisa apresentar a si mesmo, periodicamente, o pensamento do que é
necessário ser feito pois, dessa maneira, lhe será possível manter à distância a
vaidade e a presunção.
O esforço, ou até a oposição da experiência mundana, as suas dificuldades e
aflições, tanto quanto as suas alegrias e consecuções, ministram um teste
rigoroso tocante à extensão e à seriedade com que ele considera a Filosofia da
verdade como um guia prático da vida. Até o primeiro vento forte de uma
circunstância inesperada o ajudará na sua aferição.

A Busca, na maior parte das vezes, serpenteia através de uma longa e lisa
planície mas, outras vezes, percorre altíssimas e difíceis montanhas. Não são
raros os transvios nem improváveis os passos em falso. O viandante talvez tenha
de passar por estados de tentação e de luta, de prova e de derrota, de combate
e de triunfo. Talvez tenha de negociar a sua passagem à roda dos matacães
colocados em certas etapas do seu caminho, ou sobre eles. Deverá estar
preparado para suportar reiteradas decepções de antecipação exagerada e
experimentar frustrações inevitáveis de esperanças prematuras.

Se se perguntar “Quanto tempo será necessário para seguir essa Busca até que
a meta seja atingida?” a única resposta possível será que enquanto o Eu
Supremo for apenas uma idéia, não conhecida e não experimentada em todos
os momentos do dia, durante a vigília ou durante o sono, a Busca terá de ser
seguida. A medição desse período numa escala de anos terá de variar
necessariamente de acordo com os indivíduos. Todos partem de pontos
diferentes de partida, de níveis diferentes da sua condição atual. Não é possível
estabelecer período algum. Vêem-se os homens avançando por algum tempo,
detendo-se por algum tempo, desviando-se do seu caminho por algum tempo, e
renunciando de todo em todo à Busca por algum tempo. Ou caminham devagar
em alguns períodos e celeremente em outros. Tanta coisa se exige deles que é
perfeitamente compreensível que tão poucos atinjam a meta.

O homem traz, em sua encarnação, certo número de impulsos propulsores, tanto


conscientes quanto inconscientes, mas estes não se manifestam todos ao
mesmo tempo. Principiam a influir nele em idades diferentes, de tal sorte que o
seu caráter, as suas intenções e os seus atos raro seguem a mesma linha
durante todo o correr dos seus anos. É na meia-idade que as aspirações
espirituais sepultadas dessas passadas encarnações, bem como do início da
virilidade, reaparecem e exigem satisfações. Consequentemente, grande
número de aspirantes à Busca é arrebanhado entre as fileiras dos que
alcançaram ou ultrapassaram os quarenta ou os cinquenta anos de idade. É
amiúde verdade que o homem, na metade da sua vida, se sinta acutilado pelo
pungente remorso de haver encetado a sua Busca demasiado tarde para fazer
muita diferença em sua experiência, demasiado tarde para esperar uma
consumação feliz, demasiado tarde para ter a força necessária à criação de
novos hábitos de pensamento e de ação. A tristeza da frustração pode tomar
conta dele. Entretanto, ele deveria reconhecer que a meia-idade lhe trouxe
também algumas qualidades valiosas que antes não possuía. Trouxe-lhe certo
equilíbrio entre a paixão e a razão, entre as emoções e o pensamento, entre o
corpo e a mente, e entre os ideais e as realidades. Trouxe-lhe uma discriminação
mais sábia no trato das idéias, das atitudes, das pessoas, dos eventos e do meio
ambiente. Trouxe-lhe uma revisão global dos valores e da experiência, o hábito
de pensar duas vezes e um reconhecimento mais claro da natureza irreal e,
portanto, da natureza mentalista da própria existência. Tudo isso o favorecerá
na Busca. Poucos jovens o possuem. Se ele já não tem entusiasmos
adolescentes, excitações juvenis, históricas presunções, é apenas porque estas
foram substituídas por algo melhor — calmas apreciações, admirações justas,
sadias e equilibradas. Com a idade, as paixões perdem a sua força no comum
dos homens ou se submetem melhor à disciplina nos aspirantes. Essa mudança
surge como uma tragédia para os primeiros, mas como um alívio para os
segundos. Os jesuítas não confiam a um homem a plena condição de membro
da sua Ordem — e, portanto, os conhecimentos, os poderes e as
responsabilidades que acompanham essa condição — enquanto ele não
completar quarenta e cinco anos de idade.

Resta ainda o fator benéfico, porém misterioso, da graça do Eu Supremo, que


símbolo nenhum pode representar convenientemente. As suas operações são
impredizíveis, mas a sua fatualidade é certa. Por um esforço da espécie
adequada, juntamente com a oração e o serviço, é possível invocar essa graça.
Dessarte, não é apenas com a sua força pessoal que ele deve contar. Poderá
receber inspiração e assistência para fazer o que de outro modo lhe seria
impossível fazer, bastando para isso que as procure no lugar certo. Finalmente,
se ele teve a felicidade de sujeitar-se mentalmente a alguém que se aproximou
intimamente do Eu Supremo ou que o compreendeu com êxito, mas que, nesse
processo, não perdeu a sua compaixão pelos outros nem fugiu aos sacrifícios
que supõe o acorrentar os pés ao serviço da humanidade, a recompensa é
finalmente segura. A graça do amo não será negada quando se tornam
adequadas as condições da sua recepção.

Inteireza e Equilíbrio
Não visa apenas a meta da Busca a fazer do homem uma pessoa sábia,
disciplinada e, no sentido mais verdadeiro, prática, senão também, ao mesmo
tempo, uma pessoa inteira e equilibrada. Isto, com efeito, é importantíssimo. A
direção para a qual a vida nos empurra é o alcançamento da inteireza — o corpo,
a mente, os sentimentos e a intuição deverão converter-se num canal
harmonioso, através do qual o Eu Supremo pode expressar-se sem obstruções.
Entre os que seguem os ensinamentos místicos, existe um número substancial
de criaturas que se revelam, pela ausência de equilíbrio em seu caráter e na
maneira pela qual conduzem os seus negócios, verdadeiros casos
psiconeuróticos. Como tais, e durante algum tempo, necessitam dos serviços da
terapia mental e emocional, que poderá, de fato, prepará-las para os serviços da
Filosofia e torná-las mais capazes de aproveitar-se deles. É realmente aflitivo
encontrar esses casos citados em críticas adversas e em comentários rudes a
cultos místicos, e quando o fato é que elas ingressaram no misticismo já
padecendo de neuroses, ou tiveram agravado o seu mal pelos métodos tolos ou
pelo ridículo desequilíbrio desses cultos. O verdadeiro misticismo, como o que
faz parte da Filosofia, procura manter o seu equilíbrio e conservar o seu bom
senso, a sua racionalidade e a sua praticidade, durante todo o seu curso. É muito
menos atraente para os neuróticos desordenados e muito mais para as pessoas
sensatas ou cultas, a maioria das quais se teme de ingressar num reino
aparentemente duvidoso de idéias e experiências.

Existem quatro funções distintas da personalidade humana, quatro atividades


separadas no interior da psique humana — o pensar, o sentir, o querer e o intuir.
Esses quatro elementos da psique precisam tornar-se ativos em seus níveis mais
elevados e, ao mesmo tempo, conservar-se equilibrados em sua atividade. Na
verdade, todo o trabalho da Busca se revelará um longo curso no desenvolver e
no equilibrar as três faculdades mais usadas e, em seguida, projetar sobre elas
a luz da faculdade intuitiva e fazer que lhe obedeçam. Quando apenas uma ou
duas dessas funções do ser são ativas e as outras não o são, ocorre uma falta
de equilíbrio. Se o intelecto agir sem a orientação, o freio ou o controle da
intuição, e da emoção, ele, sem dúvida, se desencaminhará, cometerá erros e
chegará a conclusões erradas. Se a emoção ignorar a razão e for insensível à
intuição, será, decerto, transformada no joguete do seu egoísmo e na vítima dos
seus desejos. Se os ensinamentos espirituais forem levados apenas ao intelecto
ou apenas às emoções, e não à vontade serão, até esse ponto e nesse sentido,
estéreis.

A maioria dos aspirantes tem um desenvolvimento desigual. Uma parte ou outra


da psique é deficiente. Um deles pode ser um homem muito bom mas, ao mesmo
tempo, muito tolo. Outro pode ser muito intelectual, mas também muito sem
intuição. Cada iluminação, na medida em que ocorre, é um chamado para corrigir
essa desigualdade e visar à inteireza. O fato de poucas pessoas conseguirem
essa harmonia da psique e de constituir a maioria uniões mal ordenadas de
desenvolvimento adulto em alguns sentidos e desenvolvimento infantil em
outros, é mais uma razão para que o aspirante fervoroso se decida a examinar-
se com sinceridade de tempos a tempos e utilize os resultados em tentativas
decididas para atingir a inteireza. Cada vislumbre momentâneo do Eu Supremo
deveria levar a esse fim.

Essa necessidade de uma personalidade desenvolvida e equilibrada não nasce


apenas de causas metafísicas, mas também de causas psicológicas. Para que,
por exemplo, se há de prescrever a meditação a uma pessoa que já seja tão
introvertida que não consegue arcar com as suas circunstâncias pessoais? Isso
servirá apenas de afastá-la cada vez mais da capacidade para ajustar-se à vida
e para enfrentar os seus problemas corajosa e convenientemente, e da
disposição para arrostar as suas realidades externas. Um homem assim já é um
escapista, e a prática da meditação só servirá para torná-lo ainda mais escapista
do que nunca. E não será escapando para novas ilusões ou para uma meta
fictícia que ele encontrará o verdadeiro caminho para si.

A Filosofia acredita na necessidade do desenvolvimento integral e harmonioso,


estabelecendo-se um equilíbrio recíproco entre a razão, a intuição, a emoção e
a ação na totalidade da personalidade humana. O seu propósito não é unilateral.
Recusa-se a fortalecer o caráter deixando o corpo fraco ou a fortificar a razão e
deixar os sentimentos em desacordo com ela. A síntese filosófica reúne todas
essas tendências diferentes sem interferir em suas funções separadas. Isto se
faz conciliando-as, em lugar de colocá-las umas contra as outras, reconhecendo
a multiplicidade de toda existência manifestada. O estudioso procura
correlacionar as suas várias tendências e mantê-las harmonizadas, não
permitindo que nenhuma delas se rebele e usurpe o trono da soberania. Ele
precisa usar e unir antíteses aparentes.

Quando ele compreende a interdependência de todos esses lados diferentes da


sua natureza, relaxa a tensão de mantê-las em perpétuo conflito. O seu ser
interior já não se desentende consigo mesmo. A sua vontade já não se destrói a
si mesma por suas próprias atrações e repulsões. As suas emoções já não estão
dilaceradas e divididas por exigências conflitantes. Ele não se agarra a um
pêndulo que ora oscila para um lado, ora para outro. Ele não se inclina para
nenhum lado especial pela ignorância de outros lados, não alimenta algumas
qualidades negligenciando todas as outras. Logra um caráter perfeitamente
equilibrado, que não pende demasiado para cima ou para baixo atirando-se a
extremos intelectuais, nem vai muito longe em seus estados emocionais, e
conserva discriminadamente um senso adequado de proporção em todos os
seus atos. Todas as diferentes partes da sua natureza, todas as variadas
faculdades do seu ser, trabalham unida e equilibramente no sentido de lograr o
simples escopo de tornar-se um todo. Dessa maneira, ele poderá conquistar um
equilíbrio satisfatório através dos seus esforços e das suas ações, ainda que isso
só lhe venha com o passar dos anos.

A Filosofia não altera o seu caráter integral, mas permanece tal e qual é quer
esteja ocupada com pensamentos ou empenhada em silenciá-los, quer esteja
orando genuflexa ou trabalhando nos campos. A prática das suas exortações, a
inteireza e o equilíbrio são três elementos essenciais que ela procura cultivar,
mas não são os únicos. A eles é mister acrescentar alguns outros, que não são
menos, senão até mais importantes: a reeducação dos sentimentos, a oração, a
relaxação e a meditação. Aqueles que buscam por essa diligência restaurar a
própria integridade, remover as próprias imperfeições e atingir a própria
consciência espiritual, estão-se colocando na melhor posição possível para
ajudar outros a fazerem o mesmo por si próprios.
A resposta do eu superior ao chamado humano é dada sob as restrições da
sabedoria. Não serve de instrumento ao nosso sentimentalismo nem está
disposta a reforçar-nos o egoísmo. A paz que tanto vale não pode ser havida
sem produzir o seu custo equivalente. Haverá, necessariamente, uma luta
desinteressada para que a sujeição aos sentidos se transfira à alma, e para
tornar os hábitos pessoais mais condizentes com as leis superiores.

Não interessa à Filosofia lisonjear o homem nem servir de instrumento à sua


vaidade. Por conseguinte, inicia o lado prático da sua disciplina apontando-lhe
os defeitos, as falhas e as deficiências, e abrindo-lhe os olhos, finalmente, para
as fraquezas, as incapacidades e os complexos que, até então, se mantiveram
inconscientes ou disfarçados. A fim de prosseguir com segurança por esse
caminho, o homem precisa ser curado de obsessões fanáticas e de
irracionalidades convencionais. Ele poderá pensar que a erradicação de falhas
pessoais tem pouco ou nada que ver com o descobrimento do verdadeiro eu,
mas isto não é exato. Essas mesmas falhas se originam da falsa concepção do
“eu” que lhe bloqueia o caminho para esse descobrimento, uma concepção que
o leva a identificar-se com emoções que ele herdou de reencarnações animais
e de primitivas reencarnações humanas.

Existem adeptos do misticismo que se utilizam disso como de um escapismo,


que esperam, por algum mágico poder, lograr uma transformação de si mesmos
e de suas vidas sem precisar fazer nenhum grande esforço nem submeter-se a
nenhuma árdua disciplina. Três doutrinas místicas exercem especial fascínio
sobre eles, que delas se aproveitam constantemente para evitar esse esforço e
essa disciplina, esse trabalho indispensável sobre si mesmos. Adota-se uma
concepção fatalista da lei da recompensa (carma) para justificar-lhes a
estagnação ou o malogro. Adota-se uma concepção infantil da relação com um
amo para lançar-lhe aos ombros toda a responsabilidade pela sua vida ou
problemas terrenos e pelo seu progresso espiritual. Adota-se, finalmente, uma
concepção demasiado pessoal da doutrina da graça a fim de buscar o favoritismo
de Deus e sustentar o ego.

Um sem-número de pretensos iogues, cuja imaginação bordeja facilmente o


terreno da louca fantasia e cuja vaidade os faz cuidar-se mais adiantados do que
realmente estão, deixam-se ficar como aranhas numa teia, tecendo uma trama
de pensamentos inteiramente egoístas e, em seguida, envolvendo-se
completamente nela. Resvalam a experiências alucinatórias e a falsas visões,
ou se transformam em recipientes de mensagens falazes de fontes imaginárias
— todas nascidas de pré-concepções não justificadas, de expectativas
desautorizadas e de sugestões egoístas oriundas da má aplicação da leitura de
livros e do comparecimento a conferências. Retrocedem para hábitos
descuidados e desleixados, tornam-se menos alertados e menos inteligentes,
menos fatuais e menos úteis, menos responsáveis e menos práticos. Embrulham
as suas idéias com informações sem valor ou enganosas, obtidas por algum
meio “psíquico” ou pseudo-intuitivo. Não se deve, portanto, ignorar nem
esquecer a necessidade de usar de cautela e de assumir responsabilidades
quando se tenta a prática da meditação. Esta poderá trazer muitas bênçãos se
for procurada apropositadamente e no momento azado, porém não de outro
modo. Por conseguinte, as pessoas que praticam a meditação mística como
hábito, devem praticá-la corretamente ou não devem praticá-la. Aqueles que a
praticam erradamente ou antes de estarem preparados moralmente ou
psicologicamente equilibrados para fazê-lo, receberão acaso alguns benefícios,
mas receberão prejuízos muito maiores. Desvitalizam o corpo físico e
desbaratam a vida física. É preferível esperar que os sentimentos e a razão, a
imaginação e a discriminação, sejam levadas a um sadio equilíbrio. Nem todas
as pessoas se prestam à meditação, e as que não se prestam sempre
encontrarão o suficiente para desenvolver-se em outras direções, que as
prepararão para ela afinal. Entrementes, a simples relaxação será útil.

Se a imagem divina está sempre dentro de nós, a luz que ela projeta e o calor
que emite são, inúmeras vezes, grande ou totalmente obstruídos por muros
interpostos, não podendo, assim, chegar à nossa consciência superficial. Que
muros são esses? São as tendências materialistas, os apegos excessivos, a
excessiva extroversão, a natureza desequilibrada, os sentimentos violentos, os
maus pensamentos, os corpos peados e empeçonhados, as paixões
desatinadas e, sobretudo, o ego indisciplinado. Por conseguinte, para tornar-se
consciente dessa luz, o aspirante precisa refinar as emoções, governar os
instintos, e, dessa maneira, fortificar o caráter. Ele deve encetar a prática de
exercícios de introspecção mística, iniciar o estudo da metafisica da verdade e,
através dessa auto-educação, adquirir o conhecimento dos significados mais
profundos do eu e da vida, das leis divinas e universais da evolução e do destino
humanos. Cumpre-lhe cultivar os sentimentos religiosos e as intuições místicas
pelo esforço regular, através da prece e da meditação. O propósito de toda essa
árdua purificação é arrancar as peias dos pés da vontade e da mente e, assim,
ensejar-lhes a oportunidade de mover-se livremente pelo reino do Eu Supremo.
Se ele for paciente e estiver disposto a esperar, a resposta a todas as perguntas
que refervem no coração do buscador será encontrada um dia, contanto que ele
se empenhe nessa autopurificação enquanto espera.

Regenerando o Corpo
A Esfinge se deitou no deserto para avisar todos os candidatos à iluminação que
lhe passavam por entre as patas dianteiras, ou debaixo delas, de que lhes era
mister sujeitarem a sua natureza inferior. Eles não poderiam deixar a área
externa do templo oculto e obter acesso às suas “Câmaras de Poder” enquanto
isso não tivesse sido suficientemente feito. Mas a natureza inferior e a mente
inferior só abrem não do seu domínio depois de muita luta. Isto requer um
treinamento da vontade, uma negação dos apetites e uma disciplina do corpo
que, embora não seja agradável no começo, assim acaba sendo.

Nenhum homem tem liberdade absoluta de vontade e de escolha em sua


conduta exterior. Nenhum homem pode fazer exatamente o que lhe apraz. Isto
é tão verdadeiro no caso do filósofo quanto no caso do néscio. Todos os homens
são limitados por alguma circunstância e condicionados por alguma situação fora
de si mesmos. Mas se não existe nenhuma liberdade real, plena e perfeita de
vontade e de escolha para homem algum, nenhuma decisão da mente ou ato do
corpo por que ele seja exclusiva e integralmente responsável, existem, não
obstante, duas formas diferentes de submissão que se acham franqueadas a
ele. É-lhe facultado escolher entre ser o servo do seu eu superior ou o escravo
da sua natureza inferior. Onde está a liberdade de arbítrio de um homem que se
deixou escravizar por ódios, cóleras e luxúrias mesquinhas, engendradas pelos
desatinos ou pelas toxemias do corpo. Homens que não se libertaram dessas
paixões escravizantes e da inconsciência espiritual, gabar-se-ão, mesmo assim,
com orgulho, da sua liberdade simplesmente porque possuem direitos de
cidadania.

A libertação da vontade à sujeição à natureza inferior conduz, por si só, a uma


suficiente iluminação mental para mostrar ao aspirante quão falsa é a liberdade
que parece acompanhar a obediência a essas paixões. É intolerável para o
homem que pensa a idéia de deixar-se escravizar por apetites que já não são
naturais e por paixões que lhe destroçam a paz.

Nenhum homem que tem a mira posta numa meta superior a si mesmo tem
probabilidades de evitar malogros da vontade. Pode deixá-los passar durante
algum tempo, mas não pode cruzar os braços por muito tempo, pois, nesse caso,
o hábito da inércia ou do derrotismo talvez se instale imperceptivelmente dentro
dele e lhe frustre novos esforços. A certa altura, é preciso que ele deixe de ser
indulgente para com as suas frustrações e principie a tomar a decisão de seguir
um curso de disciplina. A enfatuada aceitação da sua própria fuga diante da auto-
disciplina física e emocional, é uma das razões por que ele deixa fazer
progressos notáveis. Se ele e todos os outros buscadores que se queixam de
fazer pouco ou nenhum progresso se desvencilhassem da sua indolência e
empreendessem alguma disciplina real do corpo e um adestramento das
emoções, compreenderiam que o primeiro passo prático é fazer alguma coisa no
sentido da reforma de si mesmos; teriam, então, menos que lamentar. De mais
a mais, muitas vezes lhes é imprescindível iniciar vigorosas mudanças físicas se
quiserem tornar mais ativa e mais acurada a sua receptividade instintiva. Uma
disciplina dessa natureza terá de incluir a purificação do corpo e a alteração dos
seus hábitos segundo as chamadas diretrizes ascéticas, durante algum tempo,
já como preliminar, já como acompanhamento de qualquer trabalho mental que
venha a ser tentado. Sem isso, este último se perde no simples sonho ou, às
vezes, até na ilusão.
Ver-se-á que existe um lugar para o ascetismo na existência filosófica, mas é um
lugar sereno e sadio. Ao invés de ser usado para ferir ou destruir o corpo, usa-
se para o desenvolver e aperfeiçoar. Em vez de pôr-lhe a saúde em perigo,
promove o mais elevado estado de boa saúde. Esse trabalho de melhoramento
físico e de purificação emocional e passional é exigido, com muitíssima
frequência, à guisa de preparação.

Necessitamos de uma nova concepção da austeridade e da penitência, de uma


nova estimação do ascetismo e da abnegação. Precisamos indagar por que
ocuparam eles o seu lugar na vida espiritual tão longa e amplamente. O ideal
místico sempre esteve historicamente associado ao ascetismo.

O verdadeiro propósito do ascetismo tem sido frequentemente mal interpretado,


tanto pelos seus adeptos cegos quanto pelos seus críticos superficiais. Não se
trata de um repúdio do corpo como ilusório por negligência e indiferença, como
também não se trata do desprezo do corpo como inimigo por uma lenta tortura;
trata-se de uma tentativa de colocar o corpo em seu devido lugar como servo da
totalidade do ser do homem, incluindo o seu ser espiritual.

Conquanto muita coisa se possa dizer em favor das disciplinas, sistemas e


rotinas rígidas da maioria das instituições monásticas, como estratagemas para
apartar os homens da vida mundana e para uni-los a uma vida santa; conquanto
elas possam apropriar-se à generalidade dos aspirantes de feitio religioso, elas
não se adequam confortavelmente aos aspirantes de índole filosófica. Estes
últimos precisam crescer como crescem as plantas e as flores, com o sol a fazer
que as suas folhas e as suas pétalas se distendam. Elas precisam de um ar mais
livre, de uma abordagem menos organizada e mais individual. Elas requerem
regras menos numerosas e regulamentos mais fáceis, menos clausura e menos
vida comunitária.

Quando são inteligente e convenientemente aplicadas, as disciplinas ascéticas


se voltam contra o domínio da mente pelos sentidos, de modo que a primeira se
encontre em liberdade para voltar a sua atenção para dentro, a fim de explorar
os seus mais puros escaninhos. Infelizmente, porém, elas vieram a significar a
negação dos sentidos do homem pela mente, mas também a sua auto-
supliciante flagelação deles. A Filosofia não recomenda de maneira alguma um
ascetismo que busca tornar a vida tão desagradável quanto possível a pretexto
de estar, assim, tornando a vida tão virtuosa quanto possível.

A meta direta de um regime de disciplina filosófica é preparar o caminho para o


renascimento espiritual, penitenciar-se da sensualidade e do egoísmo da
conduta passada e preparar o corpo, as emoções e a mente para o influxo de
forças mais altas e correntes mais santas. A sua meta indireta é eliminar a
doença e dar saúde e vigor ao corpo. É mister reconhecer que o chamado estado
normal do homem civilizado, na realidade, é desnatural e mórbido; que a
reeducação da mente e o treinamento do corpo, que a Busca provoca, são, em
verdade, processos terapêuticos; e que essa tentativa de lograr harmonia com o
Eu Supremo, efetivamente, é um esforço curativo. Quem quer que viole as leis
higiênicas do seu corpo e do seu ser, terá, finalmente, por imposição da
Natureza, de sofrer as consequências da violação.

Aquele que permanece desinteressado pela vida humana e indiferente ao corpo


humano, naturalmente não faz tentativa alguma para compreender o mundo de
que o corpo faz parte, e que ele considera como mau ou como ilusório.
Consequentemente, não tem revelação nem visão interior que lhe expliquem a
natureza, as leis e os desenvolvimento evolutivos deles. O problema de viver
pacificamente no corpo e arcar com as suas moléstias e as suas paixões, não
se resolve pela proclamação da natureza ilusória do seu caráter.

O estudioso que está procurando esse conhecimento superior não só não será
capaz de assimilá-lo além da sua capacidade pessoal, mas também não o será
de valer-se dele mais do que lhe permitem as suas deficiências. Por exemplo, o
seu desequilíbrio ou a sua insensibilidade, os seus maus hábitos corporais ou as
suas indisciplinadas condições emocionais penetrarão no que ele aprender e o
deformarão. Por via de regra se estabelece certo grau de autocorreção mental e
emocional e de purificação física, à guisa de pré-requisito, antes que esse
conhecimento possa ser-lhe plenamente transmitido. Esse trabalho sobre si
mesmo exige certa dose de severidade para consigo mesmo. Por conseguinte,
as práticas disciplinares são, muito justamente, uma parte das primeiras fases
do método místico. A própria Filosofia as incorpora e não faz objeção a elas. Só
faz objeções à exagerada importância que lhes é atribuída, e a sua adoção em
extremos ascéticos.

Exemplos típicos de ascetismo exagerado e desarrazoado, que ela rejeita


totalmente são: a recusa do Cura d’Ars de aspirar o perfume das rosas; a inflição,
por Suso, de torturas horríveis ao próprio corpo por meio de instrumentos de
ferro, camisas de crina e até pregos pontudos; o faquir maometano que mora,
come e dorme entre os túmulos de um cemitério; Madame Guyon enfiando
pedras aguçadas e calhaus dentro dos sapatos quando se dispunha a sair a
passeio!

É a mais árdua das lutas para o aspirante vencer as suas paixões, governar os
seus desejos e controlar os seus pensamentos. Disse Buda que o homem que
se vencia a si mesmo era maior do que o conquistador de cidades. O esforço
que isto supõe, com efeito, é tão grande que deve, necessariamente, estender-
se por muitas e muitas reencarnações. Existem algumas maneiras práticas,
pelas quais o aspirante pode tornar a luta mais curta e o triunfo mais fácil. A
primeira purificação a que ele se obriga é a do corpo. A prática dessa antiga
técnica desvela os verdadeiros instintos do corpo e, até certo ponto, dos próprios
sentimentos, instintos que foram profundamente sepultados debaixo do
materialismo convencional da sociedade, da civilização e da tradição. Presta-se
a um triplo propósito: penitência, purificação e cura. A redução, ou até a própria
eliminação, da gula à mesa, do comer carne, do tomar bebidas alcoólicas e do
fumar são indícios desse progresso.

A gula é mais um erro em matéria de higiene do corpo do que um pecado em


matéria de procedimento moral. Consiste em levar à boca uma quantidade maior
de comida e bebida do que a que o corpo realmente precisa para conservar a
saúde e o vigor, ou na ingestão de artigos de dieta que são nocivos ao corpo.
Essa transgressão das suas leis deverá acarretar, inevitavelmente, com o passar
do tempo, por efeitos cumulativos, uma perturbação do seu funcionamento
adequado ou uma manifestação de enfermidade. A acumulação desse material
indesejável ou discordante acaba influindo na saúde, nos nervos, nas emoções
e na mente de maneira obstruente ou degradante. Uma forma eficaz de reduzir
a acumulação é o jejum, praticado de vez em quando e apenas por curtos
períodos.

Não é absolutamente necessário ao homem privar nenhuma criatura viva do


próprio corpo para sustentar a sua carne. A Natureza ministrou-lhe tudo o de que
ele precisa em forma de cereais, vegetais, frutas e produtos do leite.

No século IV, quando São João Crisóstomo escrevia, dizia ele que “nós (os
líderes cristãos) praticamos a abstinência da carne dos animais a fim de subjugar
os nossos corpos... a desnatural ingestão de carne é de origem demoníaca... a
ingestão de carne é causa de poluição”. Não nos esqueçamos de que o autor
dessa defesa do vegetarismo, na opinião de Santo Agostinho, era o mais
autêntico e o mais eloquente advogado literário cristão do seu tempo.

O chamado homem normal enche o corpo de resíduos tóxicos comendo mal e


por falta de limpeza interior. Isso, por sua vez, enche-o de apetites mórbidos e
contínuos desejos. O homem realmente normal saboreia integralmente as suas
refeições, mas jamais comerá por comer, e nunca ingerirá mais alimento do que
o necessário ao corpo para sustentar as suas funções.

Ele pode manter relações sexuais, mas não as manterá tão-somente por ordem
do corpo, nem apenas movido pelos sentidos inflamados, nem ainda por simples
sugestão de outra pessoa, vítima da mesma ordem e dos mesmos sentidos. Não
permitirá que a preciosa destilação da sua essência vital seja continuamente
gasta na debilitante satisfação dos próprios apetites, nem que a preciosa
liberdade do seu coração e da sua mente se submeta à escravidão sexual. Não
se deixará cegar pelo êxtase físico produzido pelo ato sexual, lembrado da
reflexão metafísica de que se trata apenas de uma contrafacção breve,
lastimável e incerta do êxtase produzido pela elevação espiritual. Breve —
porque em poucos minutos se dissipa. Lastimável — porque o seu custo,
frequentemente, é muito superior ao seu valor. Incerta — porque as pessoas em
que ela se origina poderão vir a cansar, a desamar e até a Odiar umas às outras.
É mais imediato e talvez mais escravizante do que os êxtases produzidos pela
criação ou pela apreciação artística e intelectual, mas estes custam menos e
duram mais. Não obstante, a energia sexual é uma forma baixa, limitada, da
energia criativa da Mente Universal. O prazer que ela proporciona é um eco
abafado, cujo som original pertence a uma região divina. Eis por que ele é tão
procurado.

O aspirante não deveria permitir que o mórbido, o negativo e o tóxico viessem a


penetrar-lhe o corpo ou a mente. O propósito dos regimes ascéticos é múltiplo,
mas os seus propósitos primários são purificar o corpo e as emoções e devolver-
lhes a verdadeira saúde. Aquele que voluntariamente reforma os seus hábitos
de vida, introduzindo neles certos exercícios de extensão, contração e distensão
e exercícios respiratórios, modificando a rotina e a dieta diárias, em obediência
ao princípio e em desafio ao apetite, consegue, como resultado mais alto,
aprimorar a forma física e robustecer a força moral.

É necessário limpar o corpo das suas impurezas e curá-lo das suas disfunções
até certo ponto, ao lado da limpeza emocional e mental, de modo que a
personalidade possa abrir-se para as forças do Eu Supremo sem outra obstrução
além da que está sempre presente e é a mais formidável de todas — o ego. Urge
que alguma purificação preceda e possibilite a regeneração. A incapacidade de
compreendê-lo pode ser uma das razões por que os que praticam a meditação
mas não curam do equilíbrio nem da purificação deixam amiúde de fazer os
esperados progressos no sentido de captar vislumbres do Eu Supremo.

Somente por meio do desenvolvimento da sua experiência e do amadurecimento


da sua compreensão virá o homem a inquirir a natureza do seu desejo e a limitá-
lo aos interesses da Busca. Pois só então perceberá ele que já não basta avaliar
as coisas do ponto de vista apenas do prazer ou da dor que elas proporcionam.
Através do desenvolvimento que o tempo e a experiência, a razão e a reflexão
lhe propiciam, ele principia a expulsar do seu coração os apetites glutões e os
mórbidos desejos que a toxicidade do seu corpo cria para ele.

Na reforma, na ascensão, e na perfeição da sua vida moral e emocional, ele


pode valer-se de certas ajudas físicas que poderiam facilitar-lhe acentuadamente
o esforço. Essa reeducação dos instintos e apetites, das paixões e dos nervos
do corpo é auxiliada pelo uso de pressões, tensões, abstenções, limpezas e até
de violência construtivamente dirigidas contra eles. A maneira mais rápida de
fazê-lo é despertar a vontade como um ato de sagrada devoção, a prática
determinada e regular de exercícios criativos psico-físicos, que canalizam a força
existente por detrás dele para a saúde, a virtude e a proficiência.

Desse purificar do corpo de carne, como parte do esforço total para abrir caminho
à entrada do elemento intuitivo, será mais fácil a passagem para a purificação
da natureza dos sentimentos. Encontrar a tranquilidade interior e a saúde exterior
do corpo é cavar os mais seguros alicerces de qualquer outra felicidade que a
vida possa proporcionar.
Reeducando as Emoções
No passado, a vida emocional do buscador era, na maior parte, uma resposta
instintiva aos sentidos, um processo cego em que ele era frequentemente
arrebatado em seu próprio prejuízo. Não havia nesse processo nenhuma
verdadeira liberdade de vontade, senão uma liberdade imaginária. Agora, porém,
alguma luz incide sobre toda a cena. Doravante, as emoções serão libertadas da
escravidão que as mantém sob o jugo dos sentidos, serão orientadas no sentido
de servir aos melhores interesses do buscador, pela sua própria vontade
superior, serão enobrecidas, refinadas e espiritualizadas.

A pessoa infantil petulante, cuja atitude emocional é adolescente, precisa


desenvolver-se e transformar-se num adulto mais maduro, mais equilibrado e
mais autodisciplinado para que os exercícios místicos possam ser levados
adiante com proveito. O neurótico cujas emoções ainda se encontram num plano
infantil, que dá caminho ao pânico e aos acessos de cólera, que explode em
paroxismos histéricos à menor provocação, deveria compreender que a sua
tarefa imediata não é desenvolver poderes místicos, mas, antes, desenvolver
virtudes morais. O Eu Supremo lhe recusará um vislumbre de Si mesmo
enquanto ele não as desenvolver. É mais importante para ele construir o caráter
do que deixar-se ficar sentado e meditar, em cata de sensações psíquicas. Se o
não fizer, será facílimo para o ego cercá-lo de uma miragem emocional, formada
de amor, ódio, sentimentalismo, medo, bem-aventurança simulados, ou de
qualquer outra coisa que sirva ao seu propósito no momento, e assim impedir-
lhe o progresso ou obrigá-lo a retroceder.

Quem alimenta um agravo, por exemplo, que cultiva o sentimento de ter sido
lesado e sente ressentimento contra a pessoa que julga responsável por isso,
interrompe o seu próprio progresso espiritual. Não pode lidar com a penosa
situação sem ceder à sua provocação, expressar as suas emoções inferiores ou
evidenciar os seus indignos atributos. Ele atribui esse resultado à falta de
desenvolvimento espiritual em outros, quando deveria recriminar-se a si mesmo.
Essa evasão de responsabilidade é um velho truque do ego. Mas ninguém é
mais responsável pelos seus triunfos e reveses do que o próprio ego.

O ego se mascara tão completa e tão especiosamente que não se dá conta do


quanto isto o prejudica. Não cometa ele o erro de esconder as suas falhas de si
mesmo. São as emoções negativas como a maldade, a malevolência, a
inimizade, a mesquinhez, a intolerância, o fanatismo, o mau-humor e a
belicosidade que fazem a força do ego quando este se recusa, obstinadamente,
a ceder à voz silenciosa do Eu Supremo. Essa insensatez de sustentar o ego em
lugar de reconhecer-lhe a culpa, coloca obstáculos desnecessários em seu
caminho e mantém à distância a graça da alma. Os seus juízos serão errôneos,
as suas metas serão fantasmas e a sua vida será salteada de infortúnios quando
ele insiste em defender o ego em lugar de censurá-lo. Será preferível que ele
transfira o objeto do ressentimento para o seu próprio ego pela decepção de toda
uma vida que este lhe proporcionou, e pelo dano de toda uma vida que este lhe
causou. Quanto mais se tornar ele consciente das suas falhas, tanto mais poderá
esperar da vida. Quanto mais depressa reconhecer os seus equívocos, tanto
melhor será o seu futuro comparado com o seu passado. Quanto menos ansioso
se mostrar de melhorar os seus vizinhos, e quanto mais ansioso se revelar de
aprimorar-se, tanto maiores serão as probabilidades de que venha a fazer ambas
as coisas. Enquanto outros perdem tempo e se prejudicam procurando
desculpas para os seus defeitos, o zeloso estudante filosófico aperfeiçoa o seu
tempo e se ajuda a si mesmo procurando maneiras construtivas de emenda. Ele
precisará de humildade para reconhecer as próprias deficiências em lugar de
enlevar-se nas deficiências de outras pessoas, mas a recompensa será
proporcionada.

Toda provocação pelas faltas, pecados ou erros de outras pessoas lhe enseja a
oportunidade de praticar a expulsão de reações negativas a ela. Quanto mais
irritante for, tanto mais deverá ele sorrir por causa da maior oportunidade que
assim lhe é concedida. Poderá também considerá-lo como um teste. Uma
situação provocativa deveria ser considerada como ocasião proveitosa para
começar um trabalho interior, sem permitir que a reação negativa comum se
manifeste primeiro. Assim, a impaciência e a irritabilidade por ter de ficar
esperando num encontro marcado podem ser afastadas pela imediata
declaração de que a pessoa possui paciência infinita e pela lembrança do Eterno
Agora, com a sua infinita aceitação da Vida. Sem embargo disso, a prudência a
aconselha a evitar os lugares, as pessoas e as situações capazes de despertar
a sua natureza inferior. Essas coisas são melhor enfrentadas pelos fortes do que
pelos fracos, pelos maduros e purificados do que pelos jovens, imaturos e
imoderados. Se a pessoa souber, por exemplo, que a propensão para a cólera
é uma das suas falhas, procederá com prudência evitando as situações que
podem provocar-lha, enquanto não tiver adquirido algum domínio do eu.

Essa conquista da emoção pessoal é uma parte importante da tarefa do


discípulo. A própria vida lhe ministrará ensejos de verificar até que ponto
conseguiu chegar nessa direção. São oportunidades de renunciar a um ponto de
vista inferior em favor de um ponto de vista mais elevado, oportunidades de
alevantar, purificar ou despersonalizar os seus sentimentos, quando estes são
de natureza negativa. Essa negação de si mesmo lhe trará recompensas
espirituais proporcionadas em termos de progresso permanente. Tais
oportunidades se manifestarão de maneira mais conspícua em conexão com as
suas relações com outras pessoas. As diferenças, os atritos e as desarmonias
que poderiam surgir em outras condições de ambos os lados estarão agora
limitadas a um lado só, que não é o seu. Ele permanecerá frio, senhor de si,
desagastado e tranquilo quando poderia sentir-se tentado a proceder de maneira
diametralmente oposta. Basta que ele pense profunda e calmamente por um
pequeno espaço de tempo para ver que muitos desses chamados sentimentos
humanos e atitudes humanas são, de fato, indesejáveis; e para ver que não deve
submeter-se-lhes à tirania nem desculpar-se por experimentá-los simplesmente
por serem tão comuns e tão difundidos. Pondere ele que é a despeito das faltas
e das fraquezas deles que gosta dos seus amigos ou ama os que lhe estão
próximos e lhes são caros. Não gostaria deles nem os amaria menos se as
mesmas falhas ou fraquezas viessem a desaparecer. Pelo contrário, haveria de
querer-lhes ainda mais. E se isto é verdadeiro pelo que respeita a falhas e
fraquezas meramente humanas, haverá de sê-lo muito mais pelo que respeita a
falhas e fraquezas mais baixas, às grosseiras animalidades e aos
ressentimentos que põem em relevo o que há de pior na humanidade.

A parte dele que se modifica com as marés emocionais, que receia, deseja, se
acabrunha e rejubila alternadamente, não pode ser eternamente preservada,
nem em vida nem depois da morte, pois a Natureza continuará a sujeitá-la à lei
da evolução, continuará a submetê-lo a experiências que, conferindo-lhe a
consciência das próprias e insatisfatórias limitações, não lhe permitirá encontrar
a paz enquanto não deixar de repousar, desvanecido, sobre elas.

Não será, porventura, desumano, não será até um tanto ou quanto louco,
objetarão alguns, pedir a um homem que adote uma atitude em relação à sua
própria vida pessoal parecida com a do químico que observa os elementos num
laboratório? Poderá, acaso, tornar-se alguém tão totalmente alheado, tão
completamente frio, tão inteiramente impassível e tão incomovidamente analítico
em relação às experiências e aos sucessos que mais lhe interessam? Ora, essas
perguntas revelam uma concepção errônea da disciplina filosófica. Para ajudar
a esclarecer o assunto, seja-nos permitido formular a nós mesmos outra
pergunta. Por que será tão mais fácil examinar o passado do que examinar o
presente para ver o ponto em que erramos, para discernir a verdadeira
oportunidade da ocasião enganosa, e para extremar os amigos verdadeiros dos
falsos amigos? O mentalismo responde que é porque o ego pessoal interfere
com maior facilidade quando estamos realmente envolvidos em alguma situação
do que quando podemos observá-la à distância. E isto, por sua vez, acontece
porque a emoção predomina em nós no instante de qualquer acontecimento,
porque nós, excitados, julgamos tratar-se de uma realidade material. Entretanto,
depois que ele se recolheu a uma lembrança, que é um pensamento,
inconscientemente principiamos, com frieza e sem nenhuma excitação, a aceitá-
la como tendo sido um pensamento desde o início. Vendo-o como tal, podemos
adotar uma atitude mais calma e mais alheada em relação a ele. A calma com
que somos capazes de encarar o passado é deliberadamente cultivada pelo
filósofo ao encarar o presente. A própria essência da sua atitude é um tranquilo
sentimento impessoal. O sentimento é um motivo tão forte da vida humana que
nunca pode ser morto mas, quando é egoísta, precisa ser dominado. E isso é
tudo o que a Filosofia pede de um homem.
O sentimento humano não é chamado a eliminar-se, mas é chamado a elevar-
se. A emoção humana não deve ser destruída, mas deve ser compreendida e
guiada. Ninguém pode dar-se ao luxo de ignorar o sentimento, mas deve, sem
dúvida, harmonizar-se com ele. Pois ele proporciona o calor que dá energia à
vida. Proporciona a força propulsora, mas é preciso também que se veja para
onde é dirigido. A sua força não substitui a segurança da direção certa. Para
lograr essa visão protetora, o homem necessita, ao mesmo tempo, da direção
da razão e do estímulo da intuição. Necessita, igualmente, da luz da inteligência,
e dela necessita mais que de calor. Ela lhe diz a direção em que deve caminhar.
Se ele tomar a direção errada, a sua situação se tornará mais perigosa. Será
preferível que o calor se origine da sua luz; nesse caso, ele caminhará direito e
caminhará bem. Por conseguinte, cumpre que a fé emocional seja enfreada pela
reflexão racional. À maioria, basta seguir cegamente os seus sentimentos, mas
o estudante, lembrado de que a Filosofia não pode dar lugar a mistificação
alguma, precisa interrogar os seus sentimentos. Se verificar que eles o estão
conduzindo numa direção certa, ele os seguirá com o mesmo entusiasmo dos
outros. Mas terá a satisfação adicional de ver para onde vai. Não se trata de
expulsar todos os sentimentos do seu coração. Trata-se, antes, de expulsar tudo
o que é indigno do sentimento e repelente para ele, tudo o que é baixo, negativo,
vil, destrutivo, egoísta, agitado e neuroticamente autocomiserativo ou
sentimental.

Sim, o sentimento subsiste, mas purificado, enobrecido, exaltado, acalmado e


tornado filosoficamente verdadeiro. Com efeito, enquanto os seus sentimentos
não forem despertados, o aspirante não conhecerá o Eu Supremo, mas impende
que sejam sentimentos elevados de devoção, de reverência, de veneração e de
amor, de uma espécie para a qual o amor terreno poderá, quando muito, apontar,
mas à qual jamais poderá equiparar-se. É mister que a Busca desperte nele a
sua emoção mais intensa, o seu sentimento mais profundo. É mister que eles se
mesclem com o seu intelecto, a sua intuição e a sua vontade no serviço que
todos prestam à Busca. Consequentemente, não pode ser uma coisa fria, nem
uma coisa sem vida. O verdadeiro filósofo não é feito de pedra, nem é destituído
de coração, mas todo esse sentimento não se acha espalhado numa centena de
diferentes direções. É dirigido para a única coisa que mais o atrai, para o Eu
Supremo. Ele não é insensível, frio, nem desumano, mas expressa tão-só as
mais altas emoções, ou melhor ainda, ele é emocionalmente livre. Para
compreender o quanto é desejável um estado dessa natureza, basta-nos
contrapor a sua durável serenidade à tumultuosa emotividade do neurótico, do
histérico e do psicopata.

A emoção é um fator tão poderoso na vida humana e tão valioso na ação


humana, que seria insensatez pedir a alguém que a dispensasse. A Filosofia não
pede uma coisa dessas. Pede, porém, um equilíbrio adequado entre a emoção
e a razão e uma sensata coordenação entre a emoção e a intuição. O que a
maioria dos homens não vê é que o seu verdadeiro inimigo está mais
frequentemente dentro do que fora deles. Pois é manifestamente mais difícil
raciocinar calmamente acerca de uma situação do que senti-la emocionalmente.
A emoção, por si só, é neutra. Não é um mal que deva ser debelado. Pode aliar-
se a uma idéia má, mas também pode aliar-se a uma boa idéia. A disciplina
filosófica exige-lhe a submissão quando ela se une a uma idéia falsa ou má pois,
nesse caso, pode acorrentar um homem a essa idéia. Por isso, o discípulo, que
precisa viver com maior cuidado do que a maioria das pessoas, terá de
estabelecer a distinção entre as emoções inferiores e as emoções superiores.
Terá de desacorçoar um grupo e incentivar o outro. As emoções inferiores devem
ser firmemente governadas pela razão, as superiores devem aliar-se
harmoniosamente a ela. Todas devem ser mantidas sob controle por uma
persistente disciplina que o discípulo se imporá a si mesmo. Requintadas pela
intuição, exaltadas pelo propósito moral, elas constituem um poderoso ativo em
seu empreendimento espiritual mas, se se permitir que oscilem, sem freio, de um
lado para outro ou que venham a dominar o pensamento e a vontade,
representarão um passivo lamentável. Ele não deve ser facilmente estimulado.

Três métodos práticos para limpar e acalmar as emoções podem ser


proveitosamente incluídos em todo regime. O primeiro é tirar proveito da força
do hábito. Assim, o hábito de enlevar-se descomedidamente na beleza da mulher
acaba conduzindo ao desejo da mulher, ao passo que o hábito de enlevar-se
com frequência na beleza da alma acaba levando ao desejo da alma.

O segundo método consiste em fazer uso do pensamento oposto, da idéia


contrastante. Ele deve tomar uma qualidade moral que represente exatamente
o contrário da fraqueza que o perturba. Em sua meditação diária, porá essa
qualidade ou traço desejado diante dos olhos da sua mente e se imaginará
possuidor dela, identificando com ela o seu caráter. O poder criativo dessa
concentração surgirá no correr do tempo, pois essa idéia se infiltrará em sua
mente nos momentos ociosos em que esta volta, instintivamente, aos seus
desejos e paixões à vista de algum estimulante externo.

A firme decisão de limpar a mente, seguida do esforço prático de destruir todo e


qualquer mau pensamento ainda em botão, é o terceiro método, que tem ajudado
muitos aspirantes. Se o interessado se ativer ao método, este produzirá
resultados positivos. Até num período de alguns meses, a melhorada condição
da sua mente será perfeitamente notável mas é preciso não esquecer que o bom
êxito do método depende de se arrancar cada pensamento no exato momento
em que nasce e não esperar que se transforme numa planta robusta para depois
atacá-lo.

O aspirante deve aprender a acalentar a emoção certa, porém repelir o falso


sentimentalismo. Feito isso, o emocional já não será o néscio, ao passo que o
intelectual já não será o ineficaz.
A repressão das emoções perdulárias, ou mesmo a sua subjugação por meio de
camisas-de-força racionais, torna-se recomendável sempre que elas conseguem
afastar um aspirante da procura do Ideal. Faz-se mister, com efeito, cultivar algo
do estóico. Quando, finalmente, se alcança dominar a paixão pela inteligência e
governar, finalmente, a emoção pela impessoalidade, em ambos os casos
através do canal da vontade, o homem que o logrou está livre de um sem-número
de ansiedades desnecessárias e a salvo de muitos perigos evitáveis. A sua vida
exterior seguirá, então, o seu curso mais tranquilamente e mais seguramente, à
proporção que a sua vida interior desfrutar de maior serenidade e de maior
liberdade que a dos outros homens.

Muitas pessoas existem para as quais uma vida assim, de independência


interior, se afigura aterradora e repulsiva. Não percebem elas que a sua própria
escravização não criticada à amargura e ao desejo, ao ódio e à ignorância, à
cobiça e ao preconceito, a sua própria e desvanecida crucificação do Ideal é, na
realidade, o aterrador e o repulsivo. Ou elas a declaram inumana, padronizando
o homem, dessa sorte, pelo que nele é vil, em lugar de padronizá-lo pelo que
nele há de melhor. O fraco que de pronto cede a um impulso sensual, que não
cogita sequer de entrar em conflito com ele, vive apenas para o momento. Não
cura de deter-se um pouco para pensar no por quê da sua existência. O fato de
que o melhor da vida só pode ser granjeado por uma disciplina da vida é algo
que sabem outras pessoas além dos filósofos. Existe um prazer proporcionado
pelos resultados dessa disciplina que é conhecido dos que flutuam com os
instintos e com os sentidos. Quando a Busca inculca o cultivo de uma vontade
mais firme em certas direções, seria uma tolice fazê-lo num espírito de casmurra
obediência. O fim desse cultivo só pode ser um prazer mais verdadeiro assim
como um prazer mais novo.

Assumir uma posição dessa natureza contra a comum e constante identificação


de si mesmo com os impulsos e as emoções do seu ego é, mais cedo ou mais
tarde, um ato necessário da parte de um aspirante à luz espiritual. Se ele repetir
esse ato um número suficiente de vezes, verificar-se-á, dentro da sua vida
interior, uma espécie de fissura. Haverá um eu que observa e um eu observado.
Isso talvez não seja sempre evidente, mas será claramente evidente em
momentos críticos e em situações importantes. Em suma, ele estará sob a
orientação do seu Eu Supremo, sentindo-lhe a aura mais exterior. As dificuldades
que outrora se lhe deparavam para extremar-se da sua natureza inferior e o
pavor de desligar-se do seu ego poderão tê-lo desacorçoado de encetar sequer
a Busca, mas contra isso ele pode agora calcular a alegria de seguir-lhe as
injunções obviamente sábias, a satisfação de estudar-lhe a história, os
antecedentes e as ramificações, e a recompensa de aproximar-se, pouco a
pouco, da condição supremamente desejável do domínio de si mesmo. À
proporção que a vontade se torna mais forte e o tubo intestinal mais limpo, torna-
se mais fácil o processo de auto-espiritualização.
13
O Silencioso Chamado
do Eu Supremo

O homem do século XX vive numa época surpreendente, que,


frequentissimamente, prefere o chamado clangorante do saxofone ao silencioso
chamado do espírito. Passa a maior parte dos seus dias na busca agitada de
coisas insignificantes. Vagueia, ansioso, à procura de multidões, mas é incapaz
de poupar um segundo na procura da quietude em que, diz-nos o Velho
Testamento, poderá encontrar Deus.

Por inclinação e educação o ocidental é um extrovertido. Os seus pensamentos


estão sendo constantemente puxados de um lado para outro, os seus
sentimentos são provocados pelo meio e pelos acontecimentos. Ele se deixa até
embriagar de tal maneira pelos seus próprios feitos que não pode deixar de fazer
alguma coisa qualquer. Essa extroversão desequilibrada, essa contínua
preocupação com o aspecto físico da vida que é a moderna existência humana,
representa para as massas, muito amiúde, uma necessidade, mas representa
para as classes mais afortunadas uma escolha deliberada. Esse desejo
impetuoso de manter-se ativo, essa ânsia de submeter-se a uma série constante
de atividades ou compromissos, esse tremendo ritmo de hoje, que conserva, já
o corpo, já a mente das pessoas continuamente em movimento, são agravados
pela áspera pressão e pelo rouco ruído da vida citadina contemporânea.

A intensificação do viver físico obceca as energias modernas e intoxica as


mentes modernas. Acrescentada às torturantes experiências do tempo da
guerra, pelas quais passaram tantos milhões de pessoas durante esta década,
endurece os nervos e produz um materialismo insensível. Enche a atmosfera de
tensões sem fim. Os traumas resultantes têm produzido inevitavelmente uma
safra de psicoses desagradáveis e de neuroses atormentadoras, de infelizes
desorientações mentais e de desalentadoras exaustões nervosas. São hoje mais
numerosas as pessoas neuróticas do que em qualquer outro período da história
humana. E constituem o subproduto inevitável não só de uma guerra
devastadora, mas também dos ambientes mecanizados do século XX e das
complicadas pressões da vida. Se a serenidade já teve, um dia, algum valor foi,
seguramente, nesta época, em que a violência, a destruição, o tumulto, a
mudança, o caos e o fluxo lhe sublevam as águas conturbadas. A vida é agora
tão agitada que existe uma necessidade real de algum remédio para as neuroses
de guerra e as ansiedades da paz, de um antídoto para as pressões e tensões
psicológicas sem precedentes da crise mundial.

É perfeitamente comum vermos o homem não relaxado dar-se pressa de


executar os seus programas cotidianos o mais depressa possível e permanecer
nervosamente tenso enquanto não conclui as suas tarefas. Dir-se-ia que ele
estivesse empenhado numa caçada vertiginosa e interminável, reiniciada todas
as manhãs com impaciência e açodamento para levar a cabo as tarefas
imediatas. Ele dá a maior importância ao tempo regulado pelo relógio e não à
correção intuitiva. A turbulência da sua vida interior e a trivialidade dos seus
interesses mundanos lhe malbaratam os anos limitados e revelam insânia
comum ou inanidade pessoal. Utiliza os seus programas de atividades criados
por si mesmo como escusa para adiar o repouso espiritual, e, na maioria dos
casos, o adiamento se prolonga pelo resto da sua vida. Nas condições
existentes, o simples trabalho de atender aos pormenores da existência é tão
pesado que uma quantidade excessiva do seu tempo e da sua força é tomada
pela interminável pequenez dos mesmos pormenores. Estes são tão
complicados que até uma simples concentração na vida espiritual é cercada de
obstáculos artificiais. Assim sendo, ele se prende à circunferência do eu e nunca
tem tempo para atingir-lhe o centro.

O homem moderno se ocupa justificadamente em ganhar dinheiro, mas quando


a sua ocupação se transforma em preocupação, quando ela se torna tão
extremamente ditatorial que o tolhe de pensar nas metas mais altas da vida, ou
quando o gasto do que ele ganha o impede, ele está cortejando provações e
dificuldades que poderão sobrevir de inesperadas direções. O trabalho de
alimentar, vestir e abrigar o seu corpo poderá tomar grande parte do seu tempo
e a maior parte da sua energia, mas não deverá obstar a que ele se entregue ao
trabalho mais elevado de encontrar a própria alma.

O desassossego, a pressa e a excitação nervosas dos nossos tempos não


deixam lugar senão a uma vida de sensações fugidias e breves impressões.
Nessas circunstâncias, as coisas profundas e duradouras principiam a
desaparecer, e as coisas superficiais e sensuais começam a altear-se
preeminentemente acima delas. O amor é substituído pela lascívia, a reflexão
ponderada pela mera curiosidade, e os homens encalçam traiçoeiros fogos
fátuos, que os conduzem a pauis onde eles afundam e sofrem. Em toda parte se
vê o espetáculo do homem a fugir para onde ele afunda e sofre. Em toda parte
se vê o espetáculo do homem a fugir da verdadeira vida e a aconchegar de si a
sua mera e ilusória aparência, porque isso é mais fácil do que submeter-se-lhe
às exigências e aceitar-lhe os reajustamentos. Entretanto, ele não parece
compreender que é o verdadeiro escapista.
Notável tendência deste século, mais pronunciada sem dúvida no Oeste
moderno do que em outras áreas, é a de procurar encher a experiência diária
com o maior número possível de sensações. Essa tendência desenvolveu-se a
um ponto fantástico e contribuiu, por certo, para o aumento fenomenal, em
nossos dias, de casos médicos de hipertensão sanguínea e de prematuros
colapsos cardíacos. As implacáveis pressões do programa diário do homem do
século XX obrigam-no a realizá-lo correndo e, assim, a desgastar-se. O
insensato que inicia as suas atividades ou movimentos nessa correria
desesperada para terminá-los, que faz um esforço violento para exaurir-se antes
da hora, não compreende que terá de pagar, mais cedo ou mais tarde, pela sua
insensatez. Devemos lamentar o fato, mas o caso é que as boas intenções não
levam consigo garantia alguma contra esse erro no viver e contra os sofrimentos
que ele necessariamente acarreta. Assim como a necessidade desesperada do
introvertido não são mais pensamentos, senão mais atos, assim a desesperada
necessidade do extrovertido não são coisas que ele possa fazer, mas alguma
coisa que o ajude a abster-se de agir.

Quando a doença obriga um extrovertido extremo a recolher-se ao leito, a não


fazer nada, a permanecer imóvel, poderá ser-lhe realmente benéfica
possibilitando maior ativação dos seus poderes de reflexão e de intuição, que,
assim, lhe serão mais úteis. Essa reclusão forçada entre os lençóis influi não só
no corpo do inválido mas também na sua mente. Concede-se-lhe a oportunidade
de adquirir uma nova perspectiva do curso de sua vida e um novo equilíbrio dos
seus julgamentos. Ele se encontra de posse de uma dádiva inestimável — o
ensejo de reavaliar esses julgamentos, uma pausa em seu curso e a
oportunidade de examinar mais profundamente a significação não só dos
acontecimentos passados desse curso, mas também das circunstâncias
presentes e das possibilidades futuras. As pressões começam, então, a perder
um pouco do seu peso e as premências a perder um pouco da sua rapidez. Aqui,
debaixo dos lençóis, ele realmente se relaxa — talvez pela primeira vez em
muitos anos — e o Eu Supremo, que não pôde forçá-lo a meditar sobre os
propósitos da sua vida por meios mais agradáveis, consegue-o afinal pela
doença desagradável.

Quantas pessoas descobrem que a doença é um período em que a relaxação, a


reflexão ou a oração lhes são como que impostas, com resultados que influem
beneficamente nos anos restantes da sua vida! Quantas vezes o repouso exigido
pela moléstia permite a atividade irrestrita das forças curativas da Natureza a fim
de remediar o que foi provocado pela desobediência às leis higiênicas do corpo!
Dessa maneira, a Natureza equilibra o dano físico que lhe foi causado.

Se o corpo fica doente porque a sua higiene apropriada não está sendo
respeitada, porque as leis que lhe governam o funcionamento sadio estão sendo
transgredidas, a doença, nesse caso, pode revelar-se útil na medida em que
desperta o doente para a necessidade de viver corretamente e de reformar os
seus hábitos físicos. Isto deveria induzir o médico — o qual, a propósito, segundo
a recomendação de Hipócrates, o fundador da medicina européia, deve ser
filósofo também — a refletir sobre o grande número de enfermidades que são,
na realidade, uma busca de refúgio contra o próprio desequilíbrio, desleixo ou
auto-envenenamento do eu. E o médico deveria refletir ainda mais sobre a
grande percentagem de moléstias que poderiam ser prevenidas se se pudesse
fazer que as pessoas interessadas compreendessem os sinais de perigo que a
intuição lhes ministra, advertindo-lhes que se recolham, durante algum tempo, a
um simples repouso ou retiro espiritual, fugindo às excessivas tensões do
trabalho, da paixão, da preocupação e da emoção negativa, ou de hábitos
defeituosos no comer e no beber.

Quando a incapacidade de reconhecer a natureza correta desses sinais provoca


a enfermidade e o repouso compulsório do paciente, que se vê obrigado a
guardar o leito, este depara com a oportunidade de uma reconsideração,
possivelmente negligenciada há muito tempo e muito atrasada, da base de sua
vida e dos padrões que a governam. Se ele, todavia, se recusar a aceitá-la, se
estiver demasiado alcançado pelo sofrimento físico ou se às suas emoções
estiverem demasiadamente centralizadas nele mesmo, a moléstia,
naturalmente, não fará outra coisa senão prejudicá-lo.

Não obstante, é paradoxal o fato de que a mesma enfermidade capaz de


promover a relaxação e a reflexão numa pessoa, levando-a, assim,
indiretamente, a uma breve iluminação espiritual, poderá também estorvar essa
iluminação em outra pessoa. A lei geral que preside a essa manifestação estatui
que o corpo deve achar-se em estado de saúde para que a mente receba a
iluminação corretamente e sem empeços.

E como se tanto tumulto, tanta agitação e tanta pressão não bastassem, um


número excessivo de criaturas se afasta e isola da Natureza mercê das
circunstâncias artificiais da vida contemporânea nas cidades, assim como em
decorrência de uma forma errônea de pensar e de regimes de vida falhos.
Ninguém deve surpreender-se de que tudo isso tenha resultados sérios e
danosos do ponto de vista filosófico. Vivendo em tais condições, os homens
tendem a perder a fé religiosa que lhes resta ou, então, nunca chegam a
conhecer a intuição mística. Essas condições os impedem de encontrar o tempo
necessário para pensar, por iniciativa própria, na sua vida, nos problemas
interiores, nas metas superiores e na significação mais profunda dessa mesma
vida. Destroem neles a capacidade de pensarem por si mesmos como
indivíduos, e lhes diminuem consideravelmente a aptidão para levar os seus
pensamentos a um estado concentrado. Trabalham destrutivamente contra a
quietude de sobremão deliberada da atitude espiritual.

Até muitos aspirantes espirituais tendem a aceitar as sugestões das pessoas


que constituem a sociedade à sua volta que não estão interessadas na mesma
busca nem, muito menos, empenhadas nela. Em resultado disso, o aspirante
cria para si dúvidas fictícias. Encontra-se sem tempo para estudar e pensar, para
quedar-se em silêncio ou meditar, e sem energia para desviar a sua atenção do
curso externo dos acontecimentos. Dessarte, não existe outra escapatória para
ele senão tornar-se individualista.

O homem ocidental explorou e sujeitou a maior parte da superfície do planeta;


entretanto, não explorou sequer um décimo do seu eu interior. Porque ele fez de
uma vida sempre em movimento, impacientemente enérgica e ambiciosa, a vida
ideal, ele, mais do que os outros, precisa corrigir essa unilateralidade. As suas
agitações e atividades podem ser virtudes aos seus olhos, mas provocam
sorrisos entre os orientais, que ainda se conservam fiéis à sua herança interior
e reservam tempo suficiente para a adoração, a meditação, o silêncio e a solidão
todos os dias, e que assim conservam uma vida interior como o núcleo da vida
exterior. O hábito ocidental de tentar manter ocupado o tempo todo gera o
desgaste dos nervos e a confusão moral. O remédio consiste em arranjar um
lugar na rotina cotidiana para aprender a arte da quietude mental. É mister que
se insiram nessa rotina intervalos do mais completo repouso mental e físico. O
anseio reprimido do ocidental pela paz interior preparou-o para o advento dessas
doutrinas psicológicas e métodos místicos que podem agora ajudá-lo a ajudar-
se. E que existe um reconhecimento inconsciente dessa necessidade de
assegurar um melhor equilíbrio pela adoção de práticas de relaxamento
evidencia-se agora pela popularidade cada vez maior granjeada pelos cultos que
advogam tais práticas.

Como é diferente a atitude do homem relaxado que a tudo atende e vive cada
momento de sua vida tranquila e concentradamente! Ele possui uma serena
sensação de lazer, uma sensação incrível para aqueles cuja atitude é a de quem
quer que todas as horas sejam ocupadas. Ele vive de acordo com o seu próprio
ritmo, sem se importar com o ritmo de uma sociedade frenética e desequilibrada.
Toda a sua vida se escoa num andamento diferente, sem pressa, pacífico e
aprazível. Nela existem até horas sem finalidade, que seriam uma sandice para
o moderno ocidental. Entretanto, ele não é um tunante nem um vadio. A direção
geral da sua vida tem um propósito bem definido, as suas atitudes e as suas
ações têm uma significação que se oculta debaixo da superfície.

O exercício da calma não perturbada em quaisquer circunstâncias é uma ajuda


positiva em todos os sentidos. Dela advém naturalmente um exato discernimento
dos valores e um juízo equilibrado. Existem momentos na maioria das vidas de
grandes tribulações ou de grandes tentações, quando os controles podem ser
facilmente destroçados, mas isto é muito menos exato quando se cultiva a calma.
O homem relaxado nunca permite que a cólera o domine de tal modo a propósito
do que quer que seja que ele possa perder o domínio de si mesmo. Os seus
julgamentos, naturalmente, serão desapaixonados e desinteressados — e não
condicionados pelos seus desejos. As suas apreciações dos problemas mais
acesamente controvertidos serão equilibradas e justas, e terão muito maiores
probabilidades de ser corretas e razoáveis. Ele jamais fará uma crítica negativa
sem fazer, ao mesmo tempo, uma sugestão positiva.

Como poderá o homem moderno dissolver a sua intranquilidade e encontrar uma


paz interior tão desejável? Poderá fazê-lo encontrando-se a si mesmo. Terá de
começar com um antídoto para a sua excessiva extroversão. E poderá encontrá-
lo, eficacíssimo, na prática deliberada da introversão, quer na relaxação, quer na
meditação, quer em ambas, como um exercício cotidiano. Como são poucas as
pessoas que têm hoje uma vida mística dessa natureza! Cansada de guerras e
empanturrada de extroversão, a geração atual precisa estar preparada para
acolher a verdade filosófica e a prática mística. Ela já tentou, por muito tempo,
viver sem um propósito superior. Isto sempre se baldou no passado e está-se
baldando hoje. A prolongada imersão em exterioridades começou a produzir, nos
indivíduos mais sensíveis, um mútuo retrocesso à vida espiritual.

A existência moderna, todavia, encerra distrações em demasia para permitir o


fácil conseguimento da paz interior sem uma luta abnegada para alcançá-la. Que
é o que pode ser feito pelos que são forçados a aceitar o seu quinhão dos
cuidados e das pressões da vida cotidiana? A idéia de impor uma súbita pausa,
ainda que temporária, a toda essa atividade febril constitui, para algumas
pessoas, uma idéia desagradável e irritante. Entretanto, é precisamente isso o
que a Filosofia lhes ordena que façam. Elas tendem a absorver-se de tal maneira
em interesses mundanos e prazeres sociais, em atividades pessoais, que uma
passividade que as afaste totalmente de tudo isso lhes parece algo trivial, vazio,
inútil e aborrecido. É forçoso que os aspirantes se apartem, de tempos a tempos,
de suas obrigações comuns e que observem, durante esses períodos, se estão
cometendo erros ou tolerando fraquezas, que façam o inventário das passadas
experiências e das idéias presentes e que indaguem do melhor curso de
desenvolvimento futuro. Isto pode ser feito, com suma eficácia, em tranquilos
retiros campestres ou em pacíficas praias do litoral. Mas não se faz com
facilidade nas grandes cidades barulhentas.

Quase todos os homens têm precisão desse período de retiro porque quase
todos necessitam, às vezes, de uma folga nas dificuldades e lutas da vida, de
modo que possam reunir as suas forças antes de prosseguir no esforço por arcar
com elas. Precisam procurar lugares a que possam recolher-se em secreto,
fugindo ao barulho da cidade, em intervalos de pacífico afastamento do
burburinho citadino. Isto deve ser feito não como fuga à vida do mundo, mas
como preparação para ela. Eles deverão afastar-se quando a sua inspiração
interior lhes ordenar que o façam, quando a necessidade íntima desse retiro se
tornar premente e as circunstâncias exteriores o permitirem.

Todos os aspirantes deveriam utilizar tais intervalos para aprender mais acerca
do que realmente são e acerca do que realmente é a vida. Regressarão depois
às obrigações do mundo, mergulharão na atividade mundana e ali porão à prova
os seus conhecimentos, praticarão a sua discriminação e expressarão os seus
ideais. Necessitam retirar-se de vez em quando, seja por meia hora, seja por um
mês, a fim de retemperar as suas forças e concentrar os seus sentimentos na
Busca. Nesses retiros, hão mister de solidão para criar a sua própria atmosfera
mental, de liberdade para obedecer às instigações interiores da sua natureza
espiritual, e de aspiração para relaxar-se, e para purificar e enobrecer os seus
sentimentos.

O retiro periódico das incertezas dos negócios do mundo para as certezas dos
negócios do espírito, das distrações da vida na cidade para a paz das solidões
da Natureza, é uma norma excelente. É verdade que todos sentem a
necessidade de escapar quando o excesso de trabalho ou o excesso de
preocupações os oprimem exageradamente, ou quando o excesso de contactos
e o excesso de afobação nas cidades os levam a olhar com enternecimento para
o campo e para a solidão. Nessas ocasiões, uma trégua na agitação é benéfica,
ou melhor, é necessária. Mas, recomenda a Filosofia, sê razoado com o teu
retiro. Faze-o ocasional no tocante à frequência e limitado no que concerne à
duração. Afasta-te de tempos a tempos, mas afasta-te apenas por um período
limitado. Se bem a Filosofia aprove os recolhimentos ocasionais à ociosidade do
quietista como meio temporário para um fim mais amplo, não aprova a
ociosidade do quietista como fim em si mesmo. Ela nunca diz: encontra uma
escapada permanente e sê um permanente escapista. Uma vida bem equilibrada
exige uma forma equilibrada de retiro. É tão eficaz procurar uma coisa dessas e
permanecer um leigo quanto passar a vida inteira em instituições escapistas e
transformar-se em monge.

Não é preciso recolher-se a mosteiros para executar esse autotreinamento;


qualquer pessoa pode praticá-lo em sua própria casa. Às vezes, poderá até
praticá-lo melhor, pois a vitória sobre as oposições e o domínio das dificuldades
lhe darão uma força provada que mosteiro algum lhe poderá dar. Lecionando
Anathapindika, um multimilionário do seu tempo que desejava renunciar ao
mundo, Buda, muito embora fosse o arquiapóstolo da renúncia do mundo, disse:
“Digo-te que permaneças em tua posição na vida e te apliques com diligência à
tua empresa. Não são a vida, nem a riqueza, nem o poder, que escravizam os
homens, senão o apego à vida, à riqueza e ao poder”. Quando um homem se
mostra interessado em retirar-se para sempre do mundo, pode estar
obedecendo a uma autêntica necessidade interior que, naquele determinado
estádio, lhe favorecerá o verdadeiro progresso. Mas pode ser também que ele
esteja obedecendo, não a uma necessidade autêntica, senão a um tímido receio
de ver-se enredado nos negócios da humanidade conturbada. Nesse caso, ele
terá apenas transferido o seu egoísmo de um estado positivo para um estado
negativo. Como não se exercem pressões sobre ela, a sua virtude se torna uma
coisa enclaustrada e enfraquecida.
Onde o recolhimento ocasional para retiro durante períodos mais longos de
tempo é totalmente impossível, o recolhimento cotidiano para retiro durante
períodos mais curtos raras vezes é impossível. Eles podem durar desde quinze
minutos até um dia inteiro. E oferecem a oportunidade de se tomarem férias
benéficas das rotinas cotidianas e das distrações mundanas.

A Aventura da Meditação
Nesta era enérgica, quem quer que atribua um alto valor ou um valor mais alto à
prática da relaxação e da meditação, arrisca-se a ser julgado néscio ou fanático.
Uma das principais ilusões dos homens modernos, hauridas nos sorvedouros
urbanos, é que, se eles fizessem essas pausas diárias em sua vida estariam
perdendo alguma coisa em razão do tempo roubado aos seus negócios. Pelo
contrário, se a pausa for real e sincera, eles estarão ganhando alguma coisa na
própria esfera em que ocorreria a suposta perda. A simples introdução de curtos
intervalos da mais completa relaxação no regime diário de atividade pessoal é
suficiente para produzir resultados acentuadamente benéficos. Sob as pressões
da civilização moderna, eles são uma necessidade biológica. Qualquer homem
trabalhará mais e melhor; sentir-se-á menos cansado e conservará maior
vitalidade se reaprovisionar as suas forças por meio dessa redisposição das suas
horas. Assim, na realidade, ele nada perderá perdendo esses poucos minutos
tirados do seu trabalho ou dos seus prazeres. São-lhe indispensáveis esses
oásis no deserto da jornada da vida. O pensamento e o sentimento acolherão
com alegria essas breves e belas libertações do fardo da existência comum. A
triste ironia, porém, é que tanta gente está tão preocupada com as suas
preocupações que não é capaz de poupar tempo para o que poderia ajudá-la a
suportar melhor as suas preocupações. É em seu próprio prejuízo que não lhe
acode o desejo de relaxar-se ou de meditar. E se ela pudesse compreender as
fases mais profundas da vida espiritual, compreenderia que a idéia comum de
que a nenhuma atividade do corpo significa nada feito ou nada ganho, é
desmentida pelos satisfatórios resultados da meditação. A noção, menos
comum, de que a inatividade do intelecto significa a mesma inutilidade, é
desmentida pelos resultados inesquecíveis da contemplação. A propósito, essas
duas não são idênticas, e sim uma fase mais baixa e outra mais alta da mesma
prática.

Podemos ver agora a profunda sabedoria que se ocultava por detrás da injunção
dos antigos legisladores religiosos de guardar um dia sabático de repouso por
semana. Esses homens sábios da Antiguidade viviam gizando métodos para
lembrar ao homem o seu verdadeiro propósito na terra. Este propendia a
enredar-se completamente nos desejos terrenos e nos assuntos físicos, e a
esquecer o que devera ser o seu desejo supremo — o descobrimento da sua
alma divina e a comunhão com ela. Era por isso que eles o instruíam, inculcando-
lhe a necessidade de substituir as coisas do mundo pelos assuntos espirituais e
pelos negócios transcendentais, e instituindo um dia especial da semana para
essa finalidade. De sete em sete dias, era-lhe recordado o objetivo superior de
toda esta obra, para cujo fim supremo ela era apenas um meio temporário.
Cumpria-lhe ser sério e até grave, e descartar-se da frivolidade nesse dia, porque
a morte era uma sombra sempre presente. Um dia de repouso lhe deixava
alqueivada a superfície vazia da consciência, para que fosse mais fecunda ao
depois; proporcionava aos níveis mais profundos da mente azo de apresentar o
seu conhecimento intuitivo e voltava o pensamento para o sagrado propósito
supremo de toda vida humana.

A mesma necessidade, ou obrigação, é ainda mais urgente neste nosso século


XX. Pois a invenção moderna, que poderia ser empregada para propiciar maior
lazer às atividades espirituais, é utilizada, na verdade, para frustrar esse objetivo.
Com a ajuda de automóveis, trens e até de aviões, e com os recursos
ministrados pelos lugares de entretenimento e de esportes, o dia sabático se
passa no meio de prazeres transitórios. Um dia como esse deveria ser
assinalado pela rededicação da vida ao mais sublime dos ideais aceitos e pela
reexposição da fé em seu caráter essencialmente espiritual. É o momento
apropositado para se pensar no futuro, para se refletir no passado e,
conseguintemente, para operar as mudanças aconselháveis no pensamento, no
plano e na prática. É o momento em que o homem deve tornar a inspirar-se com
atitudes básicas. Nesse dia, ele deve entregar-se à oração, ponderar sobre
princípios fundamentais, reflexionar sobre metas, recordar inspirações, ler livros
inspirados e praticar meditações. Deverá reestimar o seu valor como portador de
algo divino em seu coração. Deverá, finalmente, cogitar e ter consciência da
relação que existe entre ele mesmo e Deus.

O fluir da existência cotidiana em trabalhos ou lazeres, de ordinário, desvia a


mente do seu propósito mais elevado e mantém-na em movimento, entre um
assunto e outro. Essa contínua dissipação das energias psíquicas e das forças
vitais do eu impede qualquer afastamento da atenção de concentrar-se no
esforço por voltar a si. A tentativa de poupar certo número de minutos das vinte
e quatro horas do dia para o único propósito de inverter o fluxo da atenção,
fazendo-o passar da agitação ao repouso e dos sentidos para a alma, é a mais
importante em que pode empenhar-se qualquer homem. Aquele que se desculpa
pretextando não poder encontrar nem mesmo esse breve período, deveria
indagar da sua consciência se toda a sua atividade comum, tanto no trabalho
quanto no lar, é realmente tão necessária como parece. Se a consciência lhe
disser que sim, se ele não puder fazer mais do que faz, então lhe bastará manter
a correta atitude para com os assuntos externos e conservar constantemente no
fundo de sua mente o pensamento da busca espiritual. A verdade, contudo, é
que pouca gente se encontra, de fato, numa situação tão infortunada.
Nenhum homem poderá dizer justificadamente que tem tido uma completa
experiência da vida se não conheceu nenhuma experiência espiritual durante a
sua vida. Para que ele se torne melhor equilibrado, o homem ocidental precisaria
entregar-se não só à vida ativa, mas também à vida contemplativa. Os exercícios
de meditação deveriam ocupar um lugar definido e assegurado nos hábitos euro-
americanos. As práticas místicas não deveriam restringir-se a umas poucas
pessoas que, por isso mesmo, são havidas por anormais, excêntricas ou
esquisitas. Deveriam ser postas em uso por um grupo mais amplo. Quem quer
que consagre a elas um período do seu dia e as sustente com um esforço sincero
para reformar o seu modo de vida, poderá sentir, um dia, dentro em si mesmo,
a presença de uma individualidade mais pura, de um eu espiritual. Esse hábito
diário de excluir da atenção os assuntos pessoais ou de destacá-los da emoção,
de manter a mente afastada das trivialidades, das tentações e dos atritos do
mundo, ao mesmo passo que a deixa mergulhar mais profundamente na
abstração, condu-la a conseguir e saborear uma trégua às pressões da vida, do
trabalho e das pessoas.

O homem que aprende a arte de recolher-se ao interior de si mesmo para tocar,


não os estratos mais sombrios do subconsciente do ego, senão a parte mais
profunda do ser espiritual, aprende a possuir tanto a tranquilidade quanto a
felicidade à sua disposição. Na medida em que cava mais profundamente a sua
mente, ali encontra poderes abençoantes de cura e pacificação. Uma preliminar
dessa silente contemplação irradia a sua disposição e o seu espírito pelo resto
do seu dia.

Os degraus mais interiores do próprio ser da mente são os graus mais próximos
do Eu Supremo. É em razão desse fato que o valor da meditação mística é único.
Pois arrasta a consciência do meditador cada vez mais para dentro, cada vez
mais para o estado divino que é o seu cerne. Enquanto a mente esquadrinhar
regiões alheias a ele, o supremo segredo do mundo lhe escapará. Pois o primeiro
passo dado pela Mente cósmica primordial foi para fora, para a manifestação do
mundo, e isso aponta para a direção interior em que o nosso derradeiro passo
deve ser dado: isto é, o interior da própria mente.

A mente humana é perenemente curiosa. Quer saber mais e mais. Entretanto,


nunca pode saciar finalmente essa curiosidade nem satisfazer a esse anelo.
Tudo o que ela consegue reunir é finito e limitado, incompleto e insuficiente — e
assim deverá permanecer. Quando ela, por fim, despertar para esse fato, mais
cedo ou mais tarde se abalançará à busca. Depois, quando finalmente lograr
voltar-se e contemplar-lhe o interior, sentir-se-á imobilizada de infinita satisfação
e todas as suas perguntas perderão a sua razão de ser.

Vemos as coisas à nossa roda, mas não vemos a luz que possibilita o ato de ver.
Experimentamos o movimento dos pensamentos, mas não o que torna possível
esse movimento. Pois assim como precisamos pressupor a existência da luz a
fim de ver uma coisa, assim precisamos pressupor a existência da mente a fim
de conhecer um pensamento. Enquanto a consciência individual estiver
inteiramente absorta na contemplação dessa apresentação pictórica que ela
denomina o “mundo”, não terá consciência do próprio ser, continuará a ser um
mistério não desvelado para si mesma. Não sabemos que os mesmos
pensamentos que constituem o mundo da nossa experiência transitória, ao
mesmo tempo nos afastam do mundo da eterna realidade. Eis por que é
soberana a necessidade do místico afastamento delas. A finalidade da
meditação, quando culmina na contemplação, é a aquietação de toda atividade
mental, de modo que a própria Mente, manancial e condição dessa atividade,
possa ser conhecida em seu estado original. A prática, por fim, leva o artista a
encontrar o belo, e o místico a encontrar o divino dentro de si mesmo. Este é o
propósito mais alto. Dessarte, isso os conduz do materialismo ao mentalismo,
que ensina a verdade a respeito da “matéria” e desvela a realidade por detrás de
suas múltiplas aparências.

Existe uma Mente no homem, imensuravelmente superior à sua mente comum.


Se, nos momentos de quietude e em suas disposições tranquilas de ânimo, ele
aguardar, paciente, as suas inspirações e obedecer a ela, e se, nesses
devaneios de total relaxação ele esperar, atenta mas positivamente, que o Eu
Supremo lhe revele a sua presença, ele poderá adquirir compreensão, poder e
orientação incomensuravelmente superiores aos que está habituado a conhecer.

A força perde o controle quando não a dirigem a sabedoria e a calma; a verdade


complementar é que o conhecimento é mudo enquanto não é posto em ação. A
figura agachada do iogue sentado em tranquila meditação e descansando
debaixo da fronde refrigerante de uma palmeira, silencioso e imóvel como uma
estátua de pedra, é fascinante para alguns ocidentais atormentados. É uma
testemunha reflexiva e não um personagem ativo no jogo da vida, os seus olhos
estão fitos, entrefechados num olhar imóvel, e a sua mente está prêsa a um
mundo em que não existem perguntas aflitivas nem problemas incômodos.
Poderá, contudo, o iogue trazer esse mesmo alheamento à mesma espécie
turbulenta e azafamada de vida que o ocidental comum é obrigado a levar?

O homem chega mais perto da sanidade mental e de uma vida plenamente


equilibrada quando começa, interrompe ou remata o seu dia sentado erecto com
as palmas das mãos cruzadas sobre os joelhos, a respiração calma e ordenada,
os olhos entreabertos ou cerrados, e os pensamentos concentrados, pelo maior
espaço possível de tempo, na Mente que é, ao mesmo tempo, o sublime
manancial e o misterioso sustentáculo do seu ser; e quando haure,
deliberadamente, força moral e uma visão previdente dos seus momentos de
meditação a fim de encetar o seu trabalho de todos os dias, na fábrica ou no
escritório, no tribunal ou no hospital, na fazenda ou no navio; e se ele, então,
procurar executar o seu trabalho com zelo eficiente e eficaz praticidade, tanto
ele quanto o mundo sairão lucrando. Ele terá suficiente alheamento filosófico
para discernir, no próprio meio das suas atividades externas e das suas
ambições terrenas que elas são tão transitórias quanto a espuma. Ele tentará
cumprir a sua obrigação no meio da azáfama do mundo, e cumpri-la bem, mas
não descurará da obrigação mais alta que ele aprende da quietude que se oculta
misticamente atrás dessa azáfama. Ele se disciplinará diariamente, mas sendo
o Eu Supremo a fonte dessa disciplina, esta se manifestará cada vez mais
espontaneamente e sem esforço nem procura. Através desse regime lhe será
finalmente possível atingir um estado em que as dores e os males da vida
cotidiana possuem escasso poder de ferir. Os próprios erros serão
imediatamente convertidos em oportunidades de crescimento.

A civilização só se justificará quando os homens do mundo se tornarem místicos


e quando, ao mesmo tempo, os místicos redescobrirem o mundo. Na espécie de
período em que hoje vivemos, dominado pela Economia e pela Política, pelo
materialismo e pela violência, o misticismo está inevitavelmente separado da
vida mundana. As mentes mais tranquilas reagem contra o seu tumulto retirando-
se das cidades. Os espíritos mais delicados reagem contra a sua violência
recolhendo-se à solidão. As mentes intuitivas reagem contra o seu materialismo
absorvendo-se no estudo e na contemplação. O misticismo não pode encontrar
uma posição em que se apoie e alia-se ao escapismo. Mas conquanto se veja
obrigado a fazê-lo agora em legítima defesa, tempo virá em que ele será
obrigado a inverter o processo, seguindo certos acontecimentos. Passado o
clima de violência, exaurido o materialismo, o misticismo terá de voltar ao serviço
ativo e os seus chefes começarão a sentir a necessidade de trabalhar no mundo
exterior e a orientação necessária a esse trabalho. Eles, então, encontrarão um
lugar para si mesmos numa sociedade que, em sua antiga disposição, não tinha
lugar para eles. Nesse momento, a vida pública passará a ser inspirada pelas
suas revelações.

Quando uma grande contemplativa espanhola, Santa Teresa, penetrou


finalmente o fascínio encantador da sua própria experiência mística, observou:
“Este é o fim daquela união espiritual, que dos seus trabalhos podem ter nascido
obras”. O que ela descobriu no transcurso do seu próprio desenvolvimento
prenunciava o que será finalmente encontrado em nosso próprio século pelos
místicos inteligentes, em contraste com os místicos egoístas e neuróticos. Eles
terão de formar idéias claras e precisas acerca das implicações práticas e dos
valores sociais do misticismo durante um tempo de convulsão mundial.

Chegará, com efeito, a hora em que o homem extrovertido terá de encontrar uma
nova compreensão de si mesmo e, simultaneamente, trazer paz interior aos seus
nervos combalidos. Faz séculos que ele vem interrogando o universo inteiro, é,
portanto, inevitável que ele comece também a interrogar-se a si.

É difícil dizer, precisa e acuradamente, como principia alguém a saber que esse
poder sublime, o Eu Supremo, existe dentro de si próprio: a revelação é uma
revelação composta. Consiste numa certeza metafísica, num sentimento intuitivo
e numa experiência mística — tudo apontando para um algo indescritível, que
por si só, dentre todas as coisas, existe por seu próprio direito independente; que
tem como sua própria natureza, um ser sem causa, eterno e perfeito.

Tome-se a afirmativa de Jesus: “O reino dos céus está dentro de vós”. O


significado dessas formosas palavras é translúcido. Quem procurar o que quer
que seja eclesiástico atrás delas estará per o tempo. Elas ordenam
manifestamente a todo homem que atente, em silencioso devaneio, para as
sublimes indicações do seu ser oculto, isto é, praticar a quietude mental e entrar
em contemplação. Assim que reconhecer que a Mente Divina, esteja ela onde
estiver também neste universo infinito, está, com certeza, dentro dele, o homem
deixa de vagar nas trevas e começa a caminhar na luz. Deus deixa de ser, então,
um Ser indiferente e distante, que precisa ser propiciado num estado abjeto de
medo ou lisonjeado em labiosa mendicância, mas uma sublime presença eterna
que deve ser procurada em seu próprio coração — e ser procurada nobremente,
com alegria, reverência, humildade e amor. No fim, os ensinamentos religiosos
a respeito da alma precisam não só fundar-se na experiência pessoal autêntica
dos líderes, mas também conduzir à experiência pessoal dos adeptos, sem o
que se revelarão insuficientes.

A alma, essa misteriosa entidade que é totalmente inexistente para muita gente,
e cuja busca é uma quimera para a maioria das pessoas, acabar-se-á revelando
a única que ficará quando todas as outras desaparecerem. Se o pensamento de
um homem for sempre dirigido para os objetos da sua experiência e nunca
desviado para a consciência que possibilita a experiência, será inevitável que
esses objetos assumam uma significação e uma realidade em si mesmos e por
si mesmos apenas. O que quer dizer que o homem se tornará materialista.
Entretanto, o Eu Supremo é o de que proveio a sua própria consciência. Não
deverá ele, porventura, proporcionar a si mesmo o diário ensejo espiritual de
entrar em contacto com o Eu Supremo, com o seu eu mais íntimo?

Ele poderá palmilhar, de um extremo a outro, os cinco continentes para estar em


comunhão com os seus mais hábeis cientistas, mas se ele também não viajar
por dentro de si e comungar com o seu próprio eu divino, o segredo da vida
continuará a fugir-lhe. Ele perderá o mais importante se não entrar no templo
invisível do seu próprio coração. Ali habita a alma, ali o raio de Deus alcança o
indivíduo, e só ali pode fazer-se o satisfatório descobrimento do que ele
realmente é. Essa é a tarefa fundamental — adquirir consciência do divino que
existe em si. Todas as outras são secundárias e terciárias. Cumpre que ele se
estabeleça na consciência do Eu Supremo por si mesmo e para si mesmo.
Nenhum outro homem poderá fazê-lo por ele. E o labor da Busca em purificação
e meditação é indispensável a esse propósito.
Um Exercício Prático de Relaxação
As práticas de meditação foram descritas em alguns dos livros anteriores do
autor, The Secret Path (O Caminho Secreto), The Quest of the Overself (A Busca
do Eu Supremo) e The Wisdom of the Overself (A Sabedoria do Eu Supremo) e
não é preciso repetir aqui essas descrições. É, todavia, aconselhável recordar
aos leitores a advertência feita naqueles livros. Urge que fique bem claro para
eles que a mediunidade espiritualística não constitui, de maneira alguma, meta
que deva ser buscada pelos aspirantes à Filosofia e que, se a sua prática da
meditação lhes revelar indícios de que os está levando a esse resultado, deve
ser abandonada. Eles não estão preparados e devem aplicar os seus esforços
na direção do auto-aprimoramento.

A prática indiscriminada de exercícios de passividade e negatividade psíquica e


mediunidade por pessoas que conhecem pouco ou nada sobre as forças que
estão invocando, é deplorável. Mas, de modo diferente, a mesma crítica deve
ser aplicada aos que cultivam superficialmente os exercícios místicos sem
atender às leis morais e às múltiplas condições que governam o misticismo. A
meditação é apenas uma parte do enfoque total que se faz mister na busca do
Eu Supremo. O trabalho relativo ao equilíbrio apropriado da psique, ao
fortalecimento do caráter e à eliminação dos traços negativos, é ainda mais
importante. Pois é, ao mesmo tempo, uma salvaguarda para assegurar
resultados corretos e um meio de evitar sofrimentos desnecessários.

Quando falecem a inteligência, o bom senso, o discernimento e a discriminação,


e se acham vigorosamente presentes as emoções neuróticas, as tendências
histéricas e o egoísmo pessoal, quando pouca ou nenhuma tentativa se faz para
disciplinar o caráter, para eliminar os sentimentos destrutivos como a cólera e o
ódio, os poderes que podem ser desvelados pela meditação revelam-se, às
vezes, mais perniciosos do que benéficos. Surge, então, o perigo dos colapsos
nervosos, das alucinações, do amor próprio exagerado e da insânia. Por isso
mesmo, os antigos manuais de ioga estatuíam que a purificação deve preceder
ou acompanhar a meditação.

As técnicas práticas dos métodos de relaxação ainda não foram descritas e


podem-se agora resumir-lhes os elementos essenciais. O estudante pode iniciá-
las adotando uma atitude mais serena em relação às pessoas e aos
acontecimentos, de um modo geral. Isto é uma questão de assimilar um pouco
de Filosofia. Em seguida, poderá passar ao exercício propriamente dito,
deitando-se de costas, numa postura supina, cerrando os olhos e conservando
toda a sua energia muscular e nervosa. O corpo e a mente interagem
mutuamente. Um corpo relaxado tende a provocar o relaxamento da mente,
assim como a mente excitada tende a induzir o corpo à excitação.
A relaxação lhe dará o tônico de que ele precisa e o repouso que requer mas,
para colocar o corpo num estado mais receptivo, o exercício deve ser prefaciado
por uma respiração profunda e rítmica, iniciada assim que o estudante se deita
de costas. As suas mãos repousarão frouxamente entrelaçadas sobre o plexo
solar. O ar é um transportador de força vital e a maneira pela qual é inalado afeta
o corpo e elimina o cansaço muito rapidamente. Esse exercício rítmico requer
uma inalação silenciosa e muito lenta, contando-se um, dois, três, quatro e cinco.
Ao exalar, o estudante repetirá mentalmente a mesma contagem. É a
consistência do ritmo equilibrado e medido que atrai a vitalidade do ar para o
corpo e lhe harmoniza as funções. É preciso que o estudante sature a própria
mente com esse ritmo. Com o tempo, os pulmões obedecerão automaticamente
a ele e a atenção estará tão absorvida que se identificará

com ele. As inspirações devem ser longas, profundas, lentas e uniformes, e não
espasmódicas nem forçadas. A diminuição do ritmo da respiração resultará
numa diminuição da tensão. Uns poucos minutos dessa prática preliminar
difundirão vitalidade, em ondulações, por todo o corpo. O estudante pensará na
Força Vital Una que impregna todo o universo, existe em toda parte, enche todo
o espaço, se contém em todas as criaturas, saturando-as, inclusive ele mesmo
e a humanidade inteira. Em seguida, imaginará que essa força está sendo
atraída do espaço para a sua cabeça, fluindo uniforme e ritmicamente pelo lado
direito da cabeça, depois pelo mesmo lado do tronco, até percorrer toda a perna
direita; em seguida, sobe pela perna esquerda, passa pelo lado esquerdo do
tronco e volta à cabeça. Esse fluxo circular deve ser repetido algumas vezes,
deixando-se que a corrente descanse na cabeça durante algum tempo ao cabo
de cada circuito. Nenhuma parte do corpo deverá eximir-se do fluxo benéfico.
Tudo isto se faz com os olhos fechados.

O passo seguinte consiste em erguer os dois braços e deixá-los cair de repente,


pela ação do próprio peso, como se tivessem subitamente morrido. Faz-se o
mesmo com as pernas. A seguir, o estudante examinará mentalmente todo o
corpo, da cabeça aos pés. Descobrirá que alguns músculos estão
inconscientemente contraídos e tensos. Deverá libertá-los dessa contração
sempre que der com ela e da tensão nervosa sempre que a sentir. Os membros
deverão estar confortavelmente frouxos. Cumpre-lhe tomar o cuidado todo
especial de afrouxar qualquer esticamento das mãos ou da espinha e relaxar o
nó de músculos entre os ombros e a nuca.

O perfeito exemplo humano do repouso é a criancinha adormecida. Os hábitos


civilizados de vida acarretaram o artificialismo. As roupas, os móveis e os
métodos modernos de trabalho interferiram nos meios naturais de descanso e
chegaram até a pervertê-los. Contraem os músculos quando não há nenhuma
necessidade de fazê-lo e com isso, desperdiçam energia e esgotam a bateria do
corpo.
Uma prática benéfica suplementar, para quem quer que esteja empenhado em
contínuo trabalho físico ou permanente atividade mental, consiste em tirar,
repentina e deliberadamente, um ou dois minutos de cada hora, se estiver em
condições de fazê-lo, e passá-los na posição supina, completamente flácido e
completamente alheio ao que quer que esteja fazendo no momento. Quando isso
é impossível, uma breve interrupção, no meio da manhã e no meio da tarde, na
mesma posição de imobilidade, será quase tão proveitosa quanto a prática
anterior. A quantidade de energia conservada pela reversão a esse estado de
relaxamento entre esforços de trabalho talvez seja infinitesimal em qualquer
momento dado, mas torna-se considerável quando medida na escala de meses
e anos. O que o homem indisciplinado gasta, sem o querer, em contrações
desnecessárias ou excessivas de certos músculos, e em movimentos
exagerados de todo o corpo, sem falarmos nos movimentos inconscientes das
mãos ou dos pés, mostra até que ponto ele é vítima de maus hábitos.

Os exercícios de relaxamento também podem ser praticados quando a pessoa


está às voltas com muitas espécies de problemas. Uma mente exagitada por
algum acontecimento perturbador ou pela fadiga nervosa logrará um melhor
enfoque do problema que a atormenta se recorrer a essa postura flácida e sem
vida e, ao mesmo tempo, obrigar o corpo a respirar rítmica e lentamente, ou
ainda se se valer desses curtos e estimulantes períodos de folga da opressão.
Se esbarrar em qualquer uma das múltiplas dificuldades da vida, provocadoras
de ansiedade, de medo ou de aflição, o estudante deverá praticar a técnica física
sempre que lhe for possível, ou a técnica mental de relaxamento e de completa
calma, quando essa possibilidade não existir. Deverá suspender todo e qualquer
juízo sobre a situação, lembrando-se de que a manifestação de medo, por
exemplo, já é, na realidade, a formação de um juízo. Deverá abster-se de
quaisquer considerações sobre o assunto e não pensar nele enquanto não puder
colher o primeiro fruto emocional da prática feliz da relaxação, a saber, uma
grande redução dos estados de medo, preocupação ou cólera.

A aplicação dessas técnicas a uma situação difícil ou ameaçadora não é uma


forma de escape. Que o homem deve encarar diretamente os fatos é um
conselho filosófico óbvio. Não deve, porém, encará-los quando está tomado de
pânico, aterrorizado ou tão conturbado que não consegue atinar com a melhor
saída. Deve, isso sim, encará-los depois que a prática da relaxação lhe acalmou
os nervos e os sentimentos, lhe restaurou o equilíbrio, lhe sacudiu as tensões e
lhe fortaleceu o julgamento. Ele estará então, seguramente, mais forte e mais
sereno e, portanto, mais capaz de lidar com os seus problemas. Estará até mais
sábio e, nesse caso, mais confiado e mais corajoso também. Nada se terá
perdido no que concerne ao tempo, pois, mediante uma abordagem dessa
natureza, será capaz de tomar decisões mais rápidas e, se for preciso, agir mais
depressa.
No caso da prolongada relaxação que é o próprio sono, todo homem teria muito
a ganhar se fizesse um exame da sua atividade diária e perguntasse a si mesmo,
como Pitágoras aconselhava aos seus discípulos que o fizessem: “Que fiz eu?
Que deixei de fazer que devera ter feito?” Os resultados dessa interrogação
deverão ser utilizados em renovadas tentativas de autodisciplina. Constitui
prática igualmente útil empregar uns poucos minutos logo após o despertar para
examinar-se ou preparar-se. É uma boa ocasião para pensar um pouco — por
pouco que seja — em colocar-se em harmonia antes de recomeçar e levar
avante as rotinas diárias.

Tudo o que se escreveu até aqui sobre o libertar a emoção e o pensamento de


qualidades negativas e sobre o seu treinamento no que respeita à meditação e
à relaxação levava a mira em conduzir a um resultado espiritual. Esse processo
preliminar, na maioria dos casos, é inevitável para a consecução de tal resultado.
Assim como o lavrador precisa gastar muito tempo preparando cuidadosamente
a terra e semeando convenientemente as sementes se quiser ter uma boa
colheita, assim o aspirante precisa preparar as condições adequadas e
desenvolver as qualidades necessárias se desejar uma autêntica experiência
mística. Mas seria uma injustiça para com a Busca permanecermos totalmente
silenciosos sobre o seu resultado físico. A ciência médica principiou, com algum
atraso, a pesquisar a origem psicossomática das moléstias, e está sendo
obrigada a chegar, um tanto ou quanto relutante, à conclusão de que as
moléstias físicas podem ter uma causa psicológica.

A saúde física é uma coisa que só podemos controlar parcialmente pela


obediência às leis da higiene física. Pois o estado do corpo está
inseparavelmente ligado ao da mente. Ambos interagem e exercem uma
influência recíproca um sobre o outro. Os maus pensamentos, os sentimentos
feios ou as paixões desordenadas podem não se traduzir imediatamente em
perda da saúde física ou em acidentes desagradáveis, mas acabarão fatalmente
por fazê-lo.

Os pensamentos podem beneficiar a saúde ou danificá-la, podem ajudar as


funções do corpo ou estorvá-las. O homem que sente a força de uma desolação
a ponto de experimentar uma angústia intolerável, comerá e não digerirá a
comida, permanecerá desnutrido, ficará fraco e magro. “O corpo é influenciado
pela agonia mental como a água num jarro pelo ferro em brasa mergulhado nela”,
afirmaram, há cinco mil anos pelo menos, os sábios hindus do Mahabharata.
Existem os que atribuem a melancolia de Hamlet ao mau estado do seu fígado,
mas seria preciso que eles também indagassem se o mau estado do seu fígado
não se devia à sua melancolia.

Os maus pensamentos podem reproduzir-se em tecidos enfermos. O transtorno


emocional pode ser a causa oculta da enfermidade física. As atitudes morais não
são destituídas de valores práticos. Os processos mentais podem ter resultados
físicos. A relação entre o pensamento e o sentimento e a moléstia é rastreável
— os pares não podem ser separados. O homem que mantiver uma disposição
emocional negativa, durante um período de tempo suficiente, mais cedo ou mais
tarde a descobrirá refletida num estado físico negativo. Se for uma disposição de
excessiva crítica dos outros, poderá provocar-lhe uma secreção exagerada de
bile: a consequência será a criação de um estado bilioso. Se este se prolongar
suficientemente, acabará acarretando uma disfunção permanente do fígado. E
se à crítica se acrescentar o ódio, impregnando-lhe para sempre a mente, por
uma operação direta da lei da Natureza, o seu sangue acabará fatalmente
envenenado. Outros sentimentos negativos, como a cólera e o azedume, a
frustração e o ódio, a inveja e a cobiça, quando suficientemente fortes e
suficientemente prolongados, poderão converter-se, com o tempo, em doenças
físicas.

A corrupção dos pensamentos e dos sentimentos do homem — processo longo


e lento — redunda, com o tempo, na corrupção do seu corpo e dos seus órgãos.
Aviltando os primeiros, ele deteriorou os segundos. Em seus primeiros tempos
os agentes curativos eram desconhecidos, porque desnecessários.

Se é possível que os pensamentos e as emoções negativas perturbem o


funcionamento do corpo, por que não será possível que as positivas o
favoreçam? Se a mente, sem o querer, pode criar a doença, não se dará que ela
possa, conscientemente, criar a saúde? A lógica impõe uma resposta afirmativa.
Sem embargo, se é uma verdade pouco conhecida, porém assaz necessária,
que muitas moléstias podem ser rastreadas até a sua origem psíquica, será
fantástico afirmar que todas elas podem ser assim rastreadas. A higiene física
tem o seu lugar e a sua importância, as suas leis e os seus princípios.

Momentos de Iluminação
Uma diferença entre a adoração mística e a adoração religiosa é que, na
primeira, há um esforço no sentido da união, através da meditação, com o poder
superior, ao passo que, na última, há um esforço no sentido de comungar com
ele, através da oração. Na segunda, a separação entre o adorado e o adorador
se reconhece e mantém, ao passo que, na primeira, faz-se uma tentativa para
eliminar a separação. Toda espécie de adoração é necessária à vida espiritual e
nela tem o seu lugar. A convicção de que existe um “Outro”, um poder diferente
do seu e superior a ele possui o devoto religioso. A convicção de que esse
“Outro” é idêntico ao seu eu mais íntimo possui o meditador místico. A meditação
proporciona, afinal, um sentido de grande força, porque o meditador se aproxima
da união com o seu eu superior, parte de cuja força principia, então, a penetrá-
lo. A oração, por outro lado, graças ao sentido da distância entre o devoto e
Deus, mantém-no humilde e fraco. Com efeito, a prece não logrará o seu
propósito se for pronunciada por alguém que se sinta cônscio da própria força e
da própria sabedoria, cheio de entono e de confiança em si. Para que ela tenha
alguma eficácia, terá de ser pronunciada com um sentimento de contrição, de
fraqueza, de dependência e de humildade. A devoção religiosa é uma atitude
correta para todos os seres humanos. Como raios do sol espiritual, cumpre-lhes
adorar a sua fonte; imperfeitos, impende-lhes amar o ser perfeito.

Todas as meditações devem ser prefaciadas por intensa devoção, aspiração


fervente, adoração amante e humilde oração. Urge que as emoções se envolvam
profundamente nessa busca. O pensamento que se desenvolve a si mesmo é
necessário, mas a oração que a si mesma se humilha é imprescindível. O
principal valor de qualquer espécie de adoração religiosa é a extensão em que
ela repentinamente chama a mente das suas preocupações com os assuntos
mundanos para o humilde reconhecimento da sua própria relação com o
manancial divino. Todo homem tem o direito de orar ao seu Eu Supremo.
Quando se inclina mentalmente em humilde e silenciosa adoração, ele está
obedecendo a um instinto sadio e reivindicando o que é seu.

Às vezes, durante os períodos de relaxação, prece ou meditação, mas, às vezes,


fora desses períodos, o aspirante conhecerá momentos, disposições, horas e
até dias de grande elevação, serena exaltação ou extática inspiração. Trata-se,
na verdade, de vislumbres, quer de perto quer de longe, já claros já coloridos
pelo ego, do Eu Superior. Tais momentos, ricos de sentimento e de profunda
compreensão, perduram na lembrança e nunca se esquecem. Emprestam outra
dimensão à sua vida. Pale passará a estimar esses vislumbres infrequentes,
essas breves iluminações, como detentores dos melhores dentre todos os
valores da vida para ele.

Ligado a esses lampejos está tudo o que os mais inspirados cultores de todas
as artes tentam encontrar e exprimir. É o puro espírito da beleza. Fala-lhes à
intuição e, através deles, à intuição de toda humanidade, cujo mais alto
desenvolvimento é assim favorecido.

A feliz experiência do Eu Supremo pode vir, ou não, rapidamente, mas sempre


vem de repente. Num momento, o estudante é o seu eu comum e egoísta, a lutar
com os seus pensamentos inquietos e os seus sentimentos turbulentos e, no
momento seguinte, o ego se aquieta de inopino e todas as faculdades se
apaziguam. A única coisa que ele tem a fazer é não resistir à divindade que está
tomando posse dele, recebendo-a com amor e não porfiando com ela. A
mudança colhe-o de surpresa pelo seu inesperado. Pode ser precedida de uma
curiosa e feliz premonição. Pode ser também precipitada, marcada ou ajudada
por um importante acontecimento externo, ou por uma série de acontecimentos.
Mas quer isso aconteça, quer não, ele terá plena consciência de um movimento
fora do centro habitual dos seus sentimentos, pensamentos e atos, que ocorrerá
num centro novo, situado num plano totalmente diferente e superior.
A iminência dessa experiência será marcada por vários outros sinais. Suspende-
se o intelecto; a vontade, o julgamento, a memória e o raciocínio resvalam
suavemente para uma branda inatividade temporária. Uma profunda serenidade,
até então desconhecida, apodera-se dele, e uma calma dulcíssima pousa sobre
ele. Nesses momentos de radiosa beleza, o passado mais amargo se eclipsa e
a mais feia das histórias se resgata. Com a mente firmemente segura pelo Eu
Supremo numa atmosfera de exaltação, as mortificações e os encargos da vida
mal se ouvem bater às portas da atenção; as dificuldades de toda uma vida
reduzem-se a nada, os temores do futuro se convertem em trivialidade. A visão
do mundo se alarga, enobrece e ilumina, e já não é totalmente demarcada por
interesses vulgares. Levantam-se, por um momento, alguns dos véus que
escondem a verdade. A idéia de que possui um eu superior, a convicção de que
é fundamentalmente uma alma, irrompe em sua existênciazinha com grande
força reveladora, e ele sente que está emergindo no centro de uma luz gloriosa,
após uma sombria jornada através de um longo túnel escuro.

Raro e maravilhoso sucesso será o entregar-se o Eu Supremo total e


perpetuamente a um homem. Na maior parte das vezes, ele se entrega apenas
por um curto período de tempo. O vislumbre é fugaz, porque o ser humano ainda
está muito despreparado para permanecer duradouramente numa ordem de ser
tão elevada. A resplandecente experiência é gloriosa e memorável, mas o
homem recua diante dela porque se sente ofuscado pelo seu brilho. E não pode
retê-la porque não está equipado para fazê-lo.

É comum a queixa de que as exaltadas experiências do Eu Supremo não são


contínuas e fogem inteiramente ao domínio do aspirante. O Eu Supremo parece
deixá-lo e a perda o devolve ao seu eu comum. Esses fenômenos não estão
sujeitos à sua vontade. Não lhe é dado, por si mesmo, repeti-los. As visitas
celestiais chegam sem que ele saiba como, e partem da mesma maneira
misteriosa. Ele nunca será capaz de observar com precisão a mecânica desse
movimento. Isso indica que elas lhe são concedidas por obra e graça do Eu
Supremo, ou pela graça de um homem iluminado. Por serem elas tão
excepcionais, fora loucura exigir-lhes a repetição, mas andará bem avisado
quem trabalhar por ela. Quem já viu a meta, lhe sentiu a sublimidade, lhe
discerniu a realidade, lhe desfrutou a beleza e lhe conheceu a segurança, tirará
da experiência a força de que precisa para efetuar a árdua escalada. Deverá
considerar o curto vislumbre ao fulgor delas, o melhor dos seus momentos, como
um plano de trabalho. Terá de refazer-se mais uma vez de acordo com a imagem
mental colocada à sua frente. A diferença entre a idéia e a realidade deverá
envergonhá-lo e, assim, instigá-lo constantemente a uma nova tentativa, deverá
induzi-lo a esforços mais sérios, mais frequentes e mais severos, e deverá
despertar-lhe redobrado desejo de auto-aperfeiçoamento. Mostrou-lhe as suas
mais belas possibilidades de virtude; cumpre-lhe agora realizá-las. Todos os
elementos da personalidade precisam ser ajustados aos elementos mostrados
pelo vislumbre, assim como a própria personalidade total terá de entregar-se a
ele. Pode ser que num lampejo que durou apenas alguns minutos esteja a origem
de um trabalho de vários anos.

A delícia desse momento exaltado e a fragrância dessa visitação celestial


subsistirão na memória por muitos e muitos anos depois que ela se tiver
dissipado. A influência sobre o após-vida e o pensamento será tão longa e
benéfica quanto ela mesma tiver sido curta e bela. A experiência não tardará a
delir-se, mas a lembrança da sua certeza permanecerá. Isto servirá de
intensificar e dilatar o seu amor e a sua atração por ela, e de proporcionar-lhe
formosas lembranças para o amparar e sustentar fiel à busca nos anos fatigantes
e morosos de luta e de treva.

A esse eu divino assim vislumbrado passará ele, dali por diante, a endereçar
todas as suas orações, através da sua recordação buscará valimento, confiado
nele porá por obra todas as suas tentativas, à sua luz caminhará pelas estradas
da vida, e pedirá graças à sua compaixão.

Muitas vezes se pergunta por que esse eu interior se esconde tão ardilosamente,
por que é ele tão completamente esquivo, tão distante da vista e da busca
humanas? Por que se nos antolham tantas dificuldades para encontrá-lo? A
resposta é que os maiores tesouros são os que se guardam com maior cuidado.
Mas é também porque o Eu Supremo não pode envergar trajos de pensamentos
egoístas e formas animalescas sem falsificar o seu verdadeiro caráter. Nós é
que precisamos desfazer-nos dessas limitações para podermos aproximar-nos
dele.

Deus não tem a intenção de esconder-se para sempre dos filhos cuja própria
existência é o resultado da atividade divina. A pouco e pouco, e à proporção que
eles aprenderem a utilizar os seus dotes naturais enquanto crescem, se
aproximarão inevitavelmente do Eu Supremo, o deputado que Deus lhes enviou.
Nada lhes é negado, exceto o que não pertence à fase determinada por que eles
estão passando. Eles terão de manifestar todas as suas faculdades de
sentimento, de pensamento e de vontade, mais tarde de intuição, disciplina e
equilíbrio sob a regra da intuição. Isto feito, a revelação se fará seguramente, e
o Eu Supremo, espontaneamente, outorgará a sua luz, a princípio através de
vislumbres, mas, por fim, plena e finalmente.

O Eu Supremo é a alma do homem, a sua conexão com o Poder Absoluto. Uma


parte dele vive, sofre e goza no tempo e no espaço. A outra parte, misteriosa,
quase desconhecida, transcende-a de todo e vive serenamente livre das suas
mutações. Nas profundezas do seu ser essencial, todo homem é uma emanação
da Mente Universal. Por conseguinte, é mais divino do que imagina, mais
sagrado do que parece e mais sábio do que julga. O esforço que ele faz não gera
a consciência transcendental, não a cria. Eterna e imortal, sempre esteve ali, na
camada mais profunda da sua mente. O que ele faz é penetrá-la e compreendê-
la. O seu ego finito não se acha tão completamente separado da Mente Universal
infinita que não haja sequer a mais indireta relação entre eles. Existe esse elo
sagrado do Eu Supremo, através do qual e no qual o ego pode entrar à presença
divina. É a individualidade mais alta, o eu permanente que existe nele.

Mas a imortalidade do Eu Supremo, embora eterna pelos nossos padrões


terrenos, está ainda sujeita à abertura e ao fechamento do ciclo cósmico. É ainda
uma parte do cosmo manifestado da Mente Universal, cujo desaparecimento na
Mente assinala também o seu próprio desaparecimento. É impossível à
imaginação humana conceber a duração de uma era cósmica. Tão vasta é ela
que pode ser tomada como sinônimo de eternidade. O Eu Supremo vive durante
uma dessas Eras e ao depois, com o recolher-se da Mente Universal e do seu
cosmo de todas as coisas e de todos os seres, à latência total, desaparece no
Vácuo final. E só voltará a manifestar-se após a aurora de um novo dia cósmico.

Quando experimentamos a Mente através dos sentidos, nós lhe chamamos


matéria. Quando a experimentamos através da imaginação ou do pensamento,
chamamos-lhe idéia. Quando a experimentamos como ela é em seu próprio e
puro ser, chamamos-lhe Espírito, ou melhor, Eu Supremo. Isto é visão interior,
essa espontânea compreensão de que a Mente é para todo o sempre, quer como
Vácuo, quer como mundo. Após uma bela intuição, uma extática meditação
mística, acredita o místico ter recebido uma visita do Eu Supremo. Este, porém,
nunca poderá visitá-lo realmente, porque realmente nunca se separou dele. É
uma eterna presença, que está sempre com ele. O que se move, o que muda, é
o pensamento. Atente ou não o homem, ouça ou não, o Eu Supremo diz,
perpétua e silenciosamente: “EU SOU!”

Somente ali, na consciência que é completamente auto-suficiente porque


completamente real, é efetivamente possível pronunciarem-se as palavras: “Eu
sou!” Pois em todos os estados inferiores o homem só pode dizer: “Eu sou este
corpo”, ou “Eu sou estes pensamentos”, ou ainda “Eu sou estas emoções”. Eis
aí por que o que o homem não iluminado denomina Eu é, na realidade, outra
coisa. E é por isso que ele precisa aprender a arte de abstrair-se do não-eu, se
quiser lograr a paz da verdadeira realização.

O que tudo isto tem que ver com o estado crítico dos assuntos do mundo atual
há-de estar assaz evidente. A conexão depende, ao mesmo tempo, da verdade
da natureza do homem e do propósito da sua encarnação. A reunião de homens
e mulheres que denominamos sociedade não está menos sujeita à necessidade
de afeiçoar a sua vida de acordo com essa verdade e esse propósito do que
qualquer indivíduo isolado. Sócrates chorou diante da corrupção e da ignorância
de Atenas como Jesus chorou diante da corrupção e da ignorância de Jerusalém.
Os homens passam toda a sua vida mergulhados no erro quando poderiam
passá-la à luz da verdade. Fazem o mal quando poderiam fazer o bem. O
resultado é o sofrimento quando poderia ser a paz. Quando todas as principais
decisões de sua vida são tomadas num estado de ignorância espiritual, que
outros resultados, senão desastrados, se poderiam esperar? É um momento
amargo — e a consciência do seu erro se abate dolorosamente sobre eles —
quando descobrem que os objetivos pretendidos os conduziram a um beco sem
saída e que as ambições alimentadas só lhes deixaram cinzas nas mãos.

O materialismo é inevitável como fase temporária da tentativa do homem para


compreender os fatos da vida. Aos que desejam escapar às pressões e tiranias
do materialismo contemporâneo, a Filosofia oferece o meio mais eficaz e a
estrada mais segura. Ajuda a compreender a verdadeira relação entre o divino e
o humano. E lhes permitirá compreenderem as suas possibilidades potenciais.

O problema mais importante de cada nação é a ignorância humana das leis


divinas. Ninguém negará que o crime, a sordidez e os remanescentes da
animalidade, expressos em brutalidade e violência, existem na vida humana,
mas não é preciso repisar o assunto. O mal na natureza humana é um fato para
todos os propósitos práticos, por mais relativo e ideacional que possa ser para
as finalidades metafísicas. Se bem o sábio em seu pináculo mental possa
enxergar em toda parte a bondade divina, o sábio em suas relações físicas com
os homens não pode passar por alto os escuros elementos da estrutura ética
humana. Daí precisarem os aspirantes à Filosofia julgar até onde deverão
acompanhar as correntes do seu tempo e em que ponto precisarão resistir a
elas. Se outros procedem mal, tenham eles o prazer de proceder bem. Se outros
são néscios e egoístas, tenham eles a satisfação de ser sábios e altruístas. Se
a humanidade está despencando ladeira abaixo, comecem eles a subir ladeira
acima.

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