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Mundo Russo

Chapter · March 2012

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João Pedro Fróis


University of Lisbon
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Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

MUNDO RUSSO
PУCCKИЙ MИP
Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

MUNDO RUSSO
PУCCKИЙ MИP

Editor responsável
Vladimir Shatalin

Coordenadores Editoriais
Elena Bulakh
António Eduardo Mendonça

Edições Colibri
Título: MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP

Edição: Edições Colibri

ISBN: 978-989-689-207-4

Depósito legal n.º 341 264/12

Lisboa, Março de 2012


ÍNDICE

Apresentação da Publicação................................................................... 7

I. Estudos:

História e Cultura

Páginas de História da Rússia: Ivan IV, Vassilievich, o Terrível,


Larysa Shotropa.................................................................................... 9
Breve Exposição dos Períodos da Formação da Língua Russa,
Vladimir Pliassov ................................................................................29
A Diversidade Linguística da Rússia Contemporânea,
Elena Bulakh e António Eduardo Mendonça ......................................45
Leão Tolstói – (des)mitificação da História e as suas Leituras,
Ana Prokopyshyn ................................................................................55
Princípios Programáticos e Estéticos do Cubo-Futurismo da
Rússia, Nadejda Machado ...................................................................69
Observatório Astronómico de Lisboa. O espólio documental
científico, Halima Naimova.................................................................91

Literatura

As Musas de Pushkin, Maria Teresa Neves Ferreira ..........................97


Os Evangelhos Segundo Lev Tolstói: em Torno de Os Meus
Evangelhos, Ana Matoso................................................................... 121
Algumas Notas sobre a Personagem de Anna Arkadievna
Karénina, Pedro Gonçalves Rodrigues............................................. 145
6 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

A Arte de Vanguarda: Maiakovsky ou a Núvem de Calças,


Maria Helena Guimarães................................................................... 155

Ivan Bunin e o Sentido da Vida, Jayanti Dutta................................. 171

À Descoberta da Literatura Russa Contemporânea – Caça ao


Mamute, de Tatiana Tolstaia, Cristina Mestre.................................. 181

Um Romance Invulgar (Nikalai! Nikalai!, de José Rodrigues


Miguéis), Jayanti Dutta e Luís Rafael Gomes ................................... 193

Psicologia e Pedagogia

I – Nota Introdutória ao Livro Imaginação e Criatividade na


Infância (1930) de Lev Semenovich Vygotsky, seguido de
A Criatividade Literária no Periodo Escolar (Lev Semenovich
Vygotsky), João Pedro Fróis.............................................................. 203

Os Efeitos Pedagógicos, Psicológicos e Formativos de Interven-


ções Culturais nas Aulas de Russo para Público Português,
Oleg Chumakov................................................................................. 231

II. Tradução:

Exclusivo António Pescada:


O Sonho, de Boris Pasternak ............................................................ 241

Os Irmãos Karamázov – Primeiro capítulo, de Fiódor Dos-


toievski .............................................................................................. 242

O Pescador e o Peixinho Dourado, de Alexander Sergeevich


Pushkin (trad. Halima Naimova) ...................................................... 249

O Gordo e o Magro, de Anton Tchekhov


(trad. Marina Khabenskaya) .............................................................. 254

Apresentação da Agência Federal da Rússia


«Rossotrudnichestvo» ..................................................................... 259
ПРЕЗЕНТАЦИЯ ИЗДАНИЯ

Сборник учебных материалов «Русский Мир» (Mundo Russo)


включает публикации преподавателей и аспирантов высших учебных
заведений Португалии по различным дисциплинам, входящим в
учебные планы по изучению русского языка и культуры, а именно: по
истории и культуре русского языка, литературе, дидактике,
переводоведению.
Данное издание содержит эксклюзивную презентацию отрывков
ранее неопубликованных переводов на португальский язык
произведений русской классической литературы известного
переводчика Антониу Пешкада. Печатается с согласия издательств
«Sextante Editora» и «Relógio d'Água».
Сборник призван, в определенной мере, компенсировать
отсутствие необходимого количества учебной и методической
литературы по преподаваемым дисциплинам. Рекомендован для
студентов изучающих русский язык, культуру, литературу и историю
России, широкого круга научных работников и всех лиц, углубленно
изучающих русский язык.
«Русский Мир» публикуется при поддержке Федерального
агентства по делам Содружества Независимых Государств,
соотечественников, проживающих за рубежом, и по международному
гуманитарному сотрудничеству «Россотрудничество».
APRESENTAÇÃO DA PUBLICAÇÃO

Mundo Russo – Cadernos de Estudos de Língua e Cultura Rus-


sas inclui artigos produzidos por docentes e investigadores de instituições de
ensino superior portuguesas – textos de diferentes áreas (nomeadamente,
História, Cultura, Literatura, Didática e Tradução), que têm como denomi-
nador comum temas ligados ao Mundo Russo. Nesta edição, contamos tam-
bém com a pré-publicação exclusiva de dois trabalho do tradutor António
Pescada – divulgação gentilmente autorizada pelas editoras Sextante e Reló-
gio d'Água.
Esta coletânea destina-se principalmente aos estudantes que frequentam
unidades curriculares de Língua, Cultura, Literatura e História Russas, pro-
curando compensar, em certa medida, a escassez de literatura científica e
pedagógica nas áreas mencionadas. Poderá também ser útil a um vasto leque
de investigadores e docentes cujo objecto de estudo se estende ao universo
russo.
Mundo Russo tornou-se possível graças ao patrocínio da Agência Fede-
ral da Rússia para os Assuntos da Comunidade dos Estados Independentes,
Сompatriotas Residentes no Estrangeiro, e a Cooperação Humanitária Inter-
nacional "Rossotrudnichestvo".
PÁGINAS DE HISTÓRIA DA RÚSSIA 1
IVAN IV, VASSILIEVICH, O TERRÍVEL

Larysa Shotropa

Этот материал является главой из цикла


«Страницы русской истории»,
подготовленный для португальских
студентов, изучающих русский язык, а
также для всех желающих узнать в
доступной форме о главных событиях
русской истории. Жизнь и эпоха
царствования Ивана Грозного представляет
большой интерес для португальцев, однако
литература на эту тему на португальском
языке немногочисленна. События
представлены больше в виде рассказа, чем
исторической статьи.
Ключевые слова: Иван Грозный, Россия,
царь, царствование, бояре.

Ivan IV Vassilievich (25.08.1530-


-18.03.1584) começou a governar em
1533, com o título de Grande Príncipe. Em 1547 foi coroado como o primei-
ro Czar da Toda a Rússia. Foi uma das figuras mais controversas da história
russa, um governador sábio e talentoso, reformador e filósofo… E ao mesmo
tempo um tirano sanguinário, o homem que transformou a sua capital num
imenso cadafalso, que deixou mergulhar o seu próprio país num caos total e
em represálias monstruosas. Porque é que isso aconteceu? Quem foi este
homem, o fundador do Grande Império Russo, o czar que teve um impacto
ambíguo não somente na história russa, mas em todo o curso dos aconteci-

1 Versão romanceada.
10 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

mentos históricos? Qual foi o papel dele na elevação e na decadência do


Estado Russo? Tentaremos entender a época, os acontecimentos, as causas
que delinearam o rumo histórico da Rússia, da Europa e da Ásia.
Conta a lenda, que na altura em que Ivan IV veio ao mundo, a Moscó-
via2 estava a ser atormentada por uma forte tempestade. Naqueles tempos
remotos, isto era considerado um mau sinal, que mais tarde se viria a concre-
tizar…
Estava-se no século XVI. O que se passava em volta da Rússia daquela
época? Havia também “tempestades”, mas diferentes e muito mais perturba-
doras, muito longe do Kremlin – palácio construído por Ivan III, avô do futu-
ro czar apavorante (e que também tinha a alcunha de Terrível). Passava-se
tudo fora da Rússia, ainda isolada e misteriosa para a Europa, tal como a
Europa era algo desconhecido para os russos.
Longe das fronteiras russas, travavam-se guerras santas, esvaziavam-se
igrejas, os sacerdotes pegavam em espadas, erguiam-se cadafalsos… As
Reformas, Lutero, Calvino, as maldições dos Papas, as descobertas do Novo
Mundo pelos portugueses e espanhóis… A vida fervilhava na Europa.
E, em simultâneo, no Oriente, onde acabava a civilização europeia,
algures na enigmática escuridão da Ásia, surgia um outro “Novo Mundo” – a
colossal Rússia.
O pai de Ivan, Vassily, há longos anos que não tinha filhos. O desejo
era enorme e o czar, cheio de tristeza e ansiedade, ordenou a encarceração3
da sua esposa estéril, Solomonida, num mosteiro. Atrás das grades, Salamo-
nida amaldiçoou-o, a ele, e à sua futura descendência.
Vassily casou com Helena Glinskaia, a bela filha de um grão-senhor
lituano, que se tinha refugiado na Rússia. A corte russa ficou assustada ao
ver o seu governador tão apaixonado por uma nova mulher, a ponto de rapar
a barba4 para ficar mais agradável para a sua amada. Pelos cantos do palácio,
os boiardos5 cochichavam, maliciosos. Ninguém gostava da nova czarina. Até
nos mosteiros, os monges declararam o casamento de Vassily depravado.
Mas o czar estava feliz: Helena cumpriu o seu dever: deu à luz um
menino, que havia de se chamar como o seu lendário avô – Ivan. Assim veio
ao mundo Ivan IV.

2 Principado de Moscovo (sec. XIV-XVII), também denominado como Russi. Depois da


conquista dos khanatos de Kazan, Astrachan, terras da Bashkiria, reunião com a Ucrâ-
nia e a conquista da Sibéria, tornou-se no maior império daquela época.
3 Ao longo de vários séculos, a prática de encarceramentos nos mosteiros, que se asse-
melhavam às prisões, de pessoas indesejáveis da alta sociedade, era frequente na Rús-
sia.
4 Na altura, o uso da barba era obrigatório.
5 Senhores feudais russos.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 11

O czar tinha-se tornado um pai atento e


carinhoso. Mas não lhe fora dado desfrutar da
sua felicidade: Vassily faleceu inesperada-
mente, de uma morte muito suspeita, quando o
filho tinha completado somente três anos de
idade. Parece que se tinha comprido a maldição
de Solomonida. Mas será que fora a maldição
que o tinha morto, ou o veneno dos boiardos?
Como era o único herdeiro, o pequeno Ivan
teve de se sentar no trono. Nunca, até então, a
Rússia conhecera um czar tão novo. Na verda-
de, quem governava era a sua mãe, a viúva, a
(Vassily III,
pai de Ivan IV) bela Helena Glinskaia. Uma mulher à frente de
um estado como a Rússia daquela altura, ainda
por cima estrangeira, era algo impensável para os boiardos, principalmente
para os das famílias mais poderosas. Por isso, logo no início da regência da
czarina, regressou à corte a insubordinação dos boiardos e começaram a
tecer-se conspirações. Mas Helena soube agir, fez tal como lhe tinha ensina-
do o seu falecido marido: mandou prender todos os possíveis pretendentes ao
trono, os dois irmãos de Vassily – Andrey e Iury, os representantes das mais
poderosas famílias da Rússia, e nem o seu tio Glinsky escapou. Todos foram
para mosteiros e prisões e a maioria nunca mais voltou a ver a luz do sol;
padeceram à fome ou foram estrangulados pelos guardas. Assim, o medo e a
ordem foram restaurados.
Mas, parece, a maldição de Solomonida pairava no ar. Passados cinco
anos após a morte do czar Vassily, a nova de idade e saudável czarina Hele-
na faleceu repentinamente. (Passados quinhentos anos, os cientistas irão
encontrar nos restos mortais da czarina um elevadíssimo teor de mercúrio;
portanto a morte da czarina fora explicada. Aliás, na altura da sua morte não
havia dúvidas em relação às causas de uma morte tão subida).
No enterro da sua mãe o czar, órfão de oito anos, chorava amargamente
e agarrava-se à mão do seu tutor, Telepniov. Este tinha de tomar conta do
pequeno Ivan. Mas passou somente uma semana e, por ordem dos boiardos,
Telepniov foi preso e encarcerado numa prisão subterrânea, onde acabaria
por morrer à fome. O pequeno czar Ivan ficou mesmo sozinho.
Entretanto, foram libertados os sobreviventes da purga da czarina Hele-
na. O sonho antigo dos boiardos, de se apoderarem da Rússia, parecia-lhes
prestes a ser realizado. Mas o ódio que nutriam uns pelos outros era dema-
siado grande para se juntarem e destronarem o pequeno Ivan. Passavam
semanas e meses a discutir quem deveria ter mais poder, quem estava na
posição mais alta na longa escala genealógica. E, em simultâneo, roubavam,
sem escrúpulos e sem vergonha, os cofres dos antepassados do Ivan.
12 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Negligenciado, esquecido por todos, Ivan crescia nos quartos afastados


do palácio, na escuridão e no frio, onde passava quase todo o tempo a ler.
Possessor de uma excelente memória, aprendeu de cora Bíblia, leu tudo o
que havia escrito em russo ou traduzido para o russo, tornando-se um dos
mais instruídos e cultos governantes da Europa. Nada lhe passava desperce-
bido, reparava e fixava tudo o que se passa-
va à sua volta. O menino, que fora humi-
lhado e maltratado, iria lembrar-se depois
de tudo (aliás, foi esta a sorte e o caminho
de muitos futuros ditadores cruéis).
Ivan dava-se conta que tinham sido
eles, os boiardos, quem matara a sua mãe, e
que também eles lhe tinham retirado a sua
ama Agrafena e a tonsuraram num mosteiro
longínquo. Encarceraram e mataram todas
as pessoas que lhe eram próximas, deixan-
do-o completamente sozinho.
Mas ele continuava a ser o czar – o
(Helena Glinskaia, herdeiro de seu pai. A primeira lição que já
mãe de Ivan IV) tinha aprendido era que os boiardos que o
rodeavam roubavam mais que os cofres
reais. Atreveram-se a roubar-lhe o poder, dado por Deus à sua linhagem. O
ódio e o desejo de vingança estavam bem presentes no fundo do seu coração.
Ivan estava certo de uma coisa: desde sempre, a sua família estava predesti-
nada a salvar o povo russo da desordem dos boiardos.
Os antepassados de Ivan tentaram apoderar-se da Moscóvia, mas perde-
ram as batalhas todas e regressaram para suas terras, nas margens do rio
Ross. Foram os próprios boiardos da Moscóvia que pediram aos príncipes de
Ross para os governarem. Soa estranho, mas só para quem não nasceu nem
viveu na Rússia. Fartos das guerras internas e da desordem reinante, os
boiardos decidiram que era melhor chamar um estrangeiro, um estranho,
para a governação: melhor um estranho do que um deles. O pedido foi aceite
e a grande linhagem dos Riurikovichi6 instalou-se na Rússia. Ivan sabia que
tinha nas veias o santo sangue dos seus gloriosos antepassados e desde
pequeno, esfomeado e abandonado, acreditava na sua sagrada missão. Tam-
bém estava convicto de que seria ele o primeiro czar russo coroado.

6 Considera-se que o fundador da linhagem da dinastia Riurikov fora Riurik I (meados


do séc. IX) príncipe de Novgorod (862 – 879). A maioria dos historiadores defende a
hipótese da sua origem normanda.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 13

O tempo passava imperceptivelmente. Ocupados em discussões e bata-


lhas uns com os outros, os boiardos não repararam que o menino tinha cres-
cido e se transformara num adolescente. Deixaram-no escapar…
“O lobacho cresceu” – diriam eles depois. Não se apercebiam, nem
imaginavam que o “animal” crescia enquanto eles roubavam e se odiavam.
Não era um lobo, era um tigre, que iria gostar de brincar com as vítimas
antes de as matar e que tinha paixões selvagens.
Na véspera do novo ano (1544), um dos mais influentes boiardos da
corte, Andrey Shuysky, como de costume, atreveu-se de dar ordens a Ivan
num tom autoritário. E foi, então, pela primeira vez, que Ivan se enfureceu.
Não fora dado ao famoso príncipe entrar no novo ano: a 29 de dezembro o
seu corpo jazia nas travessas do palácio. Ivan, sorrindo, explicava aos boiar-
dos que tinha dado ordens para encarcerar o príncipe, mas os soldados per-
ceberam mal e esfaquearam-no logo à saída do palácio.
Tornou-se óbvio que a partir de então era ele quem iria governar, pois já
tinha treze anos. Só nesta altura é que os boiardos entenderam quem real-
mente estava à sua frente e ficaram apavorados. O descaramento, o desdém e
o desprezo desapareceram, dando logo lugar à bajulação e a serventia.
Regressou à corte real o boiardo Fiodor Vorontsov, exilado por
Shuysky. Ivan adorava-o desde a sua infância e ficou muito feliz ao vê-lo de
volta. Mas o jovem czar sabia que tinha possuir o poder total e, para isso,
não deveria haver obstáculos nem clemência. Tinha de se afirmar como
autoridade total. Por isso, um mês após o regresso de Vorontsov, num impul-
so de ira, Ivan mandou executá-lo. Os tempos eram assim: aqueles que ainda
no dia anterior estavam na desgraça, no dia seguinte encontravam-se em
glória e depois, quem sabe? podiam ser empalados. Todos sabiam que o czar
odiava os boiardos. Por isso os habitantes da cidade de Pskov vieram quei-
xar-se do seu governador. Inesperadamente, toda a raiva de Ivan caiu sobre
os queixosos: como se atreveram eles, uns escravos miseráveis, a queixar-se
do seu amo? Tinha sido ele, Ivan IV, a nomeá-lo! O próprio czar lhes quei-
mou as barbas e mandou que fossem executados. Assim era Ivan: ele era o
Poder, incutia medo e ninguém sabia o que se passava na sua cabeça e qual
iria ser o seu passo seguinte.
Naquela época, pela sua maneira de viver e pelos seus atos, Ivan assimi-
lava-se com o jovem Nero. Um bando de cavaleiros – Ivan rodeado de com-
panheiros de pândega – voava ululando por Moscovo, tentando atropelar
quantas pessoas pudesse. Como se se tratasse de uma caçada, encurralavam
as mulheres mais bonitas e traziam-nas para o palácio, onde as violavam. Era
um simples jogo… Matava, mandava para a prisão ou para os mosteiros,
sem julgamento e sem querer ouvir algum conselho. E, num coro subservien-
te, todos os boiardos cantavam glórias às brincadeiras do jovem czar.
14 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Mas, de repente, aconteceu uma transformação milagrosa. Ao completar


dezassete anos, Ivan foi coroado na Catedral Uspensky7. Realizou-se o gran-
de sonho – apareceu na Rússia o primeiro czar coroado. Isto sucedeu a 16 de
janeiro de 1547. Ivan quis manter ainda o título antigo, o de Grande Prínci-
pe. A partir daí era aclamado como Czar e Grande Príncipe de toda a Rússia.
Após duas semanas realizou-se um outro evento importante na vida do
Ivan, e também na história da toda a Rússia: o casamento de Ivan. O jovem
czar não casou com uma estrangeira – as lições do pai e do avô estavam
demasiado vivas na sua memória. Na Rússia tinha-se medo dos estrangeiros,
todas as desgraças e as calamidades eram supersticiosamente ligadas a eles.
Por isso Ivan decidiu casar com uma mulher russa. Os boiardos e o Metropo-
lita apressaram-se a glorificar esta inesperada e cautelosa sabedoria do czar.
De todas as partes da grande Moscóvia foram trazidas as mais bonitas
mulheres. O jovem czar tinha apenas que escolher. E ele escolheu a Anastá-
cia, a filha de um dos boiardos da família Romanov8. Foi ela a primeira da
dinastia dos Romanov a entrar no palácio real. A paz e o amor substituíram
as bebedeiras e as crueldades de Ivan. Mas não sabiam os recém-casados,
nem podiam adivinhar, o que a sorte lhes tinha reservado.
Em Moscovo, no verão daquele ano, ocorreu um incêndio sem prece-
dentes. Dantes, a cidade tinha estado em chamas muitas vezes, mas nada se
comparava a um incêndio de tal tamanho. Decorria o mês de julho, seco e
quente. Depois do incêndio, aconteceu aquilo que normalmente se espera: o
povo esfomeado, que ficou sem nada, começou a procurar culpados. Espa-
lhou-se o boato de que a cidade tinha sido incendiada pela bruxaria, e não
por alguém desconhecido, mas pelos familiares do jovem czar – os que res-
tavam das famílias polacas9. Apercebendo-se do perigo eminente, o tio de
Ivan, Grigry Glinsky, refugiou-se na Catedral Uspensky, que não tinha sido
colhida pelas chamas. Dentro da Santa Igreja, pensava ele, ninguém lhe fazia
mal. Mas foi cometido o sacrilégio e a multidão ensandecida despedaçou o
infeliz conde mesmo no chão da catedral.
Depois a massa enfurecida foi à aldeia Vorobiovo onde se encontrava a
corte do czar (as chamas não pouparam nada, até o Kremlin ardeu). O povo
queria o sangue dos restantes membros da família Glinsky. Os miseráveis e
assustados boiardos, imploravam ao czar para os entregar. Mas, como verda-
deiro neto do seu avô Ivan III,10, o czar já sabia o que havia de fazer.

7 A principal catedral da Rússia ao longo dos séculos. Em 1933, por ordem de Estaline,
foi explodida, sendo construída em seu lugar uma piscina. Em 1996, a catedral foi
reconstruída e novamente se tornou a catedral ortodoxa central da Rússia.
8 A dinastia dos Romanov iria governar a Rússia durante mais de três séculos. Pedro o
Grande, Ekaterina II e o último czar Nikolai – são só alguns dos representantes dessa
dinastia de czares russos;
9 Recordamos que a mãe de Ivan, Helena Glinskaia, era polaca;
10 Recordamos que a alcunha do avô do czar, Ivan III, era “O Terrível”.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 15

Inicialmente, foi dito à multidão que Ivan não se encontrava lá. Depois,
quando as pessoas já se tinham acalmado e começado a dispersar, Ivan deu
asas a toda sua raiva. Os boiardos permaneceram apavorados e temeram
aquela raiva ao longo de toda a vida do terrível czar. Exaltado, deu ordens
para disparar contra a multidão e para apanhar os fomentadores. Os soldados
disparavam alegremente e apanhavam as pessoas em fuga. Logo tudo se
acalmou. E nos dias seguintes, pedindo desculpa e glorificando o czar, os
condenados iam para o cadafalso.
Exatamente na altura do grande incêndio, apareceu na vida do czar um
simples sacerdote, Silvestre, que teve a coragem de lhe falar como igual e
que ao longo de treze anos seguintes o influenciou significativamente, junto
da sua religiosa mulher. Silvestre disse a Ivan que o incêndio não era outra
coisa senão o fogo divino dos céus: assim eram pagos os pecados cometidos
ao longo dos anos anteriores, as execuções injustificadas, as violações e todo
o mal que o jovem czar tinha feito. E, se não parasse, o fogo iria engolir toda
a Moscóvia.
Silvestre parecia um vidente. Como um pai intimida a criança desobe-
diente, assim o sacerdote intimidava o czar de dezassete anos. E este último
cedeu, mas só por momentos. Ivan continuava a ser o Poder, enquanto Sil-
vestre era a sua “cabeça”. Uma grande ajuda vinha da parte de Anastácia.
Naquela altura, Ivan vivia cheio de paixão pela sua jovem mulher, que era
alegre, bonita e muito religiosa. Ela salvara-lhe a alma. Os “tempos de Nero”
já eram do passado. O amor, a paz, o perdão e a leitura do Evangelho – nisso
e disso vivia Ivan IV. Era sábio, responsável pelo seu povo, perfeito e puro
de corpo e alma. O casamento com Anastácia, os treze anos de vida em
comum, ficariam como um dos melhores períodos da história da Rússia.
Os boiardos reuniam-se na Duma11, mas não eram eles que governa-
vam. O czar juntou um grupo de homens jovens, de famílias russas distintas,
mas também de famílias humildes, assim como um dos seus melhores ami-
gos, Aleksey Adashev e ainda Silvestre. Eram eles os bons conselheiros do
jovem czar. Seguiram-se grandes reformas. Foi elaborado o novo Código do
Estado de Moscóvia, tentando regularizar as relações com a igreja; abriam-se
escolas, tentava-se melhorar a vida.
Em 1550, Ivan IV dirigiu-se com um discurso histórico ao povo. Este
discurso não foi proferido no palácio, e não foi dirigido aos boiardos, como
acontecera outrora; Ivan falou ao povo moscovita. Falou com o coração e
com muita paixão. Parecia que se encontrava em frente de toda a nação rus-
sa. Naquele discurso, Ivan pediu ao seu povo que se unisse na paz e no amor,
que fossem perdoadas as ofensas, que se esquecessem as maldades até então
cometidas. O czar anunciou-se defensor de todos aqueles que sofriam das
injustiças dos mais poderosos. Chorava lágrimas sinceras e o povo, ajoelha-

11 Parlamento russo.
16 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

do, também chorava de alegria. A czarina sentia-se feliz e os boiardos suspi-


raram de alívio – não houve tempestade, foi tudo esquecido, o czar tornara-
-se humilde, piedoso e generoso.
Mas os boiardos não o
conheciam. Não, ele não perdoou
nada e nunca se esqueceu da sua
infância infeliz, do frio e da fome
que passou, do assassínio da mãe
e do massacre na catedral. Sabia,
muito bem sabia ele, quem tinha
feito tudo aquilo. Eram eles, os
odiados boiardos. Ivan não
conhecia o que era o perdão. E
era, de facto, um perfeito ator,
tendo usado este seu dom cénico
até à hora da morte. Dentro do
czar sempre viveu um leão, sim-
plesmente naquela altura tinha
(Silvestre, Anastácia e Adashev)
apenas vinte anos, era feliz e
deixava-se influenciar facilmente pelo sacerdote Silvestre e pela amada
mulher. Durante mais de dez anos a fúria selvagem foi dominada. Mas
algum dia havia de se libertar.
Por enquanto, as reformas avançavam: na justiça, elaborou o novo
Código de Leis do Estado Moscovita. Quanto à igreja, Ivan achava muito
injusto que uma boa parte (a terceira parte de terras férteis) ficasse no domí-
nio dos mosteiros e das igrejas, que enriqueciam mais e mais. Depois de
várias reuniões e disputas, Ivan quase alcançou o seu objetivo: a partir de
1551, a igreja não podia adquirir mais terras sem o consentimento do poder
estatal. Mas as terras que já tinha, ficaram em seu poder.
Apesar de quase ter ganho, Ivan ficou amargurado: nunca esquecera
como os sacerdotes tentavam enganá-lo e forçá-lo a mudar de ideias. E tam-
bém reparou em outra coisa, talvez mais notável: não houve medo. Estavam
todos muito à vontade, a expor abertamente as suas ideias e a defender as
suas posições. Isso é que Ivan não podia ignorar. Mas tinha de seguir o rumo
escolhido e, calando a mágoa, seguiu em frente. O czar exigia a passagem de
todas as terras das mãos dos padres para o estado. Mas não conseguiu. E
quando Ivan estava à beira de uma cólera indomável, Anastácia e Silvestre
conseguiram acalmá-lo, dizendo-lhe que não podia ir contra a igreja, que era
um sacrilégio. Ivan estava em minoria e, desta vez, cedeu.
Decorria o ano de 1552. Os territórios do leste e sul da Rússia encontra-
vam-se sob o domínio dos tártaros, que faziam frequentes ataques até às
profundezas das terras russas. Este jugo dos nómadas tornar-se-ia insuportá-
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 17

vel e Ivan decidiu marchar contra o khan de Kazan12. Ao lado do czar mar-
chava o seu primo, o príncipe Vladimir Staritsky, cujo pai acabara de pade-
cer na prisão (encarcerado por ordem da mãe de Ivan). Cedendo aos pedidos
de Silvestre, Ivan redimiu a culpa, não só libertando o primo, mas também
aproximando-o de si e tornando-o como um irmão.
Então chegou o grande dia para toda a Rússia – o dia da batalha pela
cidade de Kazan. No início, Ivan dirigiu-se com um discurso pacífico ao
khan e aos habitantes da cidade: propôs-lhes renderem-se em troca da vida e
da liberdade. Mas o corajoso khan respondeu: “Ou morremos todos ou
defendemos as nossas terras”. Então Ivan ordenou o ataque.
O exército russo entrou com poucas perdas na cidade, pois os espiões
tinham feito explodir o armazém das munições e os soldados entraram pelas
brechas das paredes. Já estavam eles a aproximarem-se de palácio do khan
quando aconteceu o inevitável: a cidade de Kazan era riquíssima e os guer-
reiros do czar, esquecendo-se de batalha, começaram a pilhar. Ivan conhecia
bem o seu exército e tentou prever tudo: atrás dos guerreiros ia o exército
especial com as espadas desembainhadas, para não permitir a “vergonha
perigosa”. O czar só não anteviu que estes últimos também se puseram a
saquear. Os tártaros começaram a contra-atacar e os russos estavam prestes a
bater a retirada. Precisamente nessa altura, nas portas da cidade, apareceu
Ivan com o novo reforço e assim decidiu o fim da batalha. Os russos foram
muito cruéis, não deixaram ninguém vivo à sua frente. Dizem os historiado-
res que os corpos chegavam à altura dos murros da cidade. Só o khan foi
apanhado e deixado vivo. Depois, num gesto de humilhação, Ivan batizou-o.
Assim fora obtida uma das mais importantes vitórias daquela época. Em
honra da conquista de Kazan, Ivan mandou construir, na Praça Vermelha, a
bela catedral, o símbolo de Moscovo, mais conhecida sob o nome de Vassily
Blajenny.
É relevante saber o que se passava naquela época para compreender a
importância da vitória obtida. O relinchar dos cavalos – o som assustador das
incursões tártaras, a que se seguiam incêndios, mortes e escravidão – passou
para a história. Começara o fim do jugo tártaro, que deixou vestígios de san-
gue asiático nas veias de descendentes das mulheres violadas. Ao longo de
muitos anos, como testemunho disso mesmo, nasceriam crianças russas
morenas e de olhos asiáticos. Pela primeira vez, o Ocidente levantou-se con-
tra o Oriente. E, também pela primeira vez, a Ásia recuou. Pela primeira vez,
depois da ocupação tártara, veio um czar novo, forte, que conseguiu libertar
o seu povo e pôr fim ao horror que subjugava as terras russas. Com lágrimas
de alegria, o povo russo glorificava o czar Ivan.

12 Cidade situada nas margens do rio Volga.


18 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Depois seguiu-se Astrakhan13. Ivan conquistou-a também. Entretanto,


mesmo antes da conquista de Astrakhan, houve um acontecimento alarmante
que, aliás, depressa foi esquecido. Mas este acontecimento, mais tarde, reve-
lou-se fatal para muitos. Tudo começou quando, de repente, o czar adoeceu e
a sua doença foi anunciada como mortal.
Os boiardos estavam convictos que a alma de Ivan já ia para os céus.
Naqueles instantes, o primo do czar, Vladimir Staritsky14, que fora salvo da
morte certa na prisão pelo próprio Ivan, e a mãe deste, davam banquetes,
festejando antecipadamente a anunciada morte do czar! Como se não fosse o
soberano russo e familiar deles a estar no leito da morte, como se fosse a
acontecer algo feliz! A alegria era imensa e já se estava a falar no novo czar
que seria, obviamente, Vladimir Staritsky.
Ivan era um grande ator como, aliás, vários tiranos o eram. Nunca nin-
guém saberá se realmente ele tinha adoecido ou se fingiu: este mistério foi
sepultado juntamente com ele. De qualquer forma, a doença mortal, que
começou misteriosamente e da mesma maneira acabou, ajudou-o a entender
e pôr à prova muita coisa.
Estando “mortalmente doente”, o czar convocou os boiardos para jurarem
fidelidade ao seu filho pequeno. Então os boiardos, que há pouco tempo ainda
se apresentavam como escravos humildes e servos devotos ao seu czar, mos-
traram quem na verdade eram: muitos não quiseram jurar fidelidade ao peque-
no príncipe. Cada vez mais se ouvia pelos cantos do palácio onde jazia o czar
“doente”: “Não queremos um menino de fraldas. Queremos ver no trono Vla-
dimir Staritsky!” – diziam eles. Nos quartos escuros e em vozes baixas, prepa-
ravam uma conspiração não somente aqueles que odiavam o czar e toda a sua
família, mas também os que o amavam. Pois temiam que, ao ficarem com o
pequeno príncipe, perdessem a proteção até aí oferecida por Ivan. Por isso, a
maioria jurou fidelidade a Vladimir Staritsky. Bem sabiam eles que, após a
morte de Ivan, o filho seria imediatamente estrangulado.
E foi assim a “conspiração ao lado da cama do czar” – nome dado pelo
próprio Ivan. No entanto, os mais inteligentes estavam calados. A história
tinha-lhes ensinado bastante: sempre tinha razão aquele que não dizia nada,
nem contra, nem a favor. Ficaram todos à espera: pelos vistos, o czar tinha
os dias contados.
Mas aconteceu o impossível: num belo dia, ao chegarem ao palácio real,
os boiardos encontraram Ivan na sala do trono, com um ar saudável e sem
marcas de qualquer doença. O czar, sorrindo, disse que Deus fora misericor-
dioso e o tinha curado completamente.

13 Outro território tártaro, à norte do mar Cáspio;


14 Na linhagem real, Vladimir Staritsky era o segundo, a seguir ao filho do czar, que
naquela altura era ainda bebé. Portanto, seria ele, Staritsky, quem iria subir ao trono,
caso o Ivan falecesse;
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 19

Logo após esta milagrosa cura, Ivan e a família partiram para o mostei-
ro Kirilo-Belozersky – para comemorar a sua saúde restabelecida. No cami-
nho de volta ocorreu algo fatal: a ama deixou cair no rio o pequeno príncipe
herdeiro, que se constipou e acabou por falecer ainda longe do Kremlin. Mas
o destino foi benevolente em relação a Ivan, pois a amada Anastácia iria dar
à luz mais dois filhos, Ivan e Fiodor.
Tinham passado cinco anos após a “doença” de Ivan. Já fora conquista-
da Astrakhan e Ivan sonhava com mais conquistas. Silvestre propôs começar
uma nova campanha, desta vez contra a Criméia, que estava nas mãos dos
tártaros. Os conselheiros do czar apoiaram-no, dizendo que o país estava
farto da escravatura dos khans e que tinha de se pôr fim às incursões dos
nómadas uma vez para sempre.
Os tártaros da Criméia invadiam com frequência as terras russas: sem
acender fogueiras, sem descanso nem comida, eles atacavam inesperadamen-
te depressa nos locais onde ninguém os esperava. Ardiam as cidades saquea-
das, ficavam as aldeias vazias e milhares de mulheres e crianças loiras eram
levadas para serem vendidas para a escravidão. As praças turcas de escravos
estavam cheias de belas mulheres e rapazes loiros de olhos azuis. Os comer-
ciantes, ao verem a fila longa de escravos, perguntavam-se: ”Será que ainda
ficou alguém naquelas terras?!”
Mas em vez de atacar a Criméia, Ivan escolheu a Livónia15, que lhe
podia dar saída para os mares nórdicos e abria caminho para a Europa, para o
Ocidente. As terras da atual Estónia, em tempos, pertenceram aos antepassa-
dos de Ivan, aos cavaleiros da ordem Teutónica. Agora a Livónia constituía
uma presa apetitosa para a Suécia, para a Dinamarca e ainda para Rech Pos-
polita16. Por isso, o czar russo decidiu atacar primeiro.
A recusa de invadir a Criméia foi explicada por Ivan por temer que a
Turquia, que apoiava o khan da Criméia, entrasse em guerra com a Rússia.
Os conselheiros do czar ficaram muito admirados e desapontados ao repara-
rem na teimosia do Ivan, pois já davam a guerra no Sul (da Criméia) como
decidida. Diziam eles que, se atacassem a Criméia, sim, realmente haveria o
perigo de a Turquia entrar em guerra. Mas, por outro lado, se atacassem a
Livónia, seria muito mais arriscado, pois nesse caso a Rússia entraria em
guerra com a Suécia, com a Dinamarca e ainda com a Rech Pospolita – o
exército europeu contra o qual o exército russo, mal instruído e pouco disci-
plinado, não seria capaz de se defrontar.
Ivan sabia que eles tinham razão, mas revoltou-se contra os conselhei-
ros indesejados, que lhe tinham retirado o poder e não o deixavam decidir
pela sua própria cabeça. Basta! Já chegava da humilhação de tantos anos.
Tratavam-no como se fosse o seu igual ou como se fosse uma criança. A

15 O território da Estónia, Letónia e Lituânia;


16 Federação de união entre o Reino Polaco e Lituano (1569-1795);
20 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

partir daí seria ele a tomar as decisões. A liberdade que os boiardos tinham
tido nos anos da juventude do czar havia de acabar!
Tudo o que fora calado ao longo de anos, explodiu! Todos sentiram a
fúria do czar e ouviram o grito de cólera: ”Livónia!”.
Lá, já se esperava os russos. Desde que Ivan conquistara as terras tárta-
ras, na Livónia pressentiu-se que a seguir se virava para norte. Por isso,
decidiram não vender armas aos russos e não deixar que os armeiros passas-
sem a trabalhar para o czar.
Com a decisão já tomada, Ivan quis dar um espetáculo: convidou os
embaixadores da Livónia para um grande banquete. Fez-se imensa comida,
as mesas estavam cheias, não havia lugar para mais pratos, trazia-se vinho
sem fim…Mas os que serviam à mesa passavam ao lado dos hóspedes. Os
embaixadores esfomeados estavam rodeados de russos a comerem e a bebe-
rem, mas nada lhes davam a eles. Depois foram mandados embora, com
gritos e assobios.
Logo após a partida dos embaixadores ofendidos, Ivan avançou com o
seu exército multinacional: para além dos russos, haviam nele tártaros e
homens de várias tribos conquistadas. Os cavaleiros fecharam-se nos caste-
los e fortificações, deixando o povo à guarda da sorte. E os asiáticos, selva-
gens, incendiavam, pilhavam e matavam tudo o que lhes aparecia à frente,
violavam mulheres e logo lhes abriam as barrigas. Assim começou a guerra
com a Livónia, que durou mais de vinte anos.
Pouco tempo depois do início desta guerra, Ivan sofreu um dos maiores
e mais atrozes golpes da sua vida: morreu Anastácia17. A morte da sua ama-
da mulher dividiu a governação de Ivan: assim como o seu casamento fora o
início de uma grande e boa época, a partida da Anastácia representava o
princípio de uma nova época na história russa e do aparecimento de um czar
novo, até lá desconhecido. A morte de Anastácia revirou o rumo de toda a
Rússia.
Anastácia morreu depois de uma doença. Mas o czar, que viu tantas
maldades praticadas pelos boiardos, suspeitou que ela tivera sido envenena-
da. Contudo, quando ela faleceu, não houve acusações.
Naquela altura Ivan não se atreveu a dizer ou a investigar nada. Sentia
um sofrimento e uma tristeza incalculável. Desapareceu o único ser que ele
foi capaz de amar e que o entendia e o amava. A Anastácia não tinha medo
dele, ela amou-o verdadeiramente. As mulheres que se vão seguir na vida do
Ivan terão medo.
Pouco tempo depois da morte da Anastácia, começaram as tragédias.
A primeira vítima foi o Silvestre, o eterno sacerdote e o mestre da alma
de Ivan. Este era capaz de encontrar razão para tudo: fosse a morte de uma

17 Os restos mortais de Anastácia descansam na Catedral Arkhanguelsky, no território de


Kremlin, junto com os da mãe e da avó de Ivan IV.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 21

criança doente, uma seca ou uma chuva, – em tudo Silvestre via o castigo
divino e mandava rezar. Enquanto Ivan era novo e tinha a Anastácia, muito
religiosa, ao seu lado, obedecia sempre. Mas agora fartara-se. Não, Ivan não
se atreveu a matá-lo: simplesmente enviou-o para o mosteiro Solovetsky, de
onde raramente alguém regressava com vida.
Ao longo dos anos, Ivan teve um amigo, um conselheiro preferido, pes-
soa de confiança, considerado quase seu irmão: Aleksei Adashev. E até ele
foi morto. Todos os companheiros de Ivan padeceram: alguns foram direta-
mente para o cadafalso, outros foram exilados para mosteiros longínquos,
outros morreram envenenados. Na sua fúria, o czar ultrapassou o seu lendá-
rio avô – Ivan III, o Terrível – a partir desse tempo a história conheceria
apenas um czar terrível, Ivan IV.
Ivan sofria profundamente, à sua maneira mas a vida obrigava-o a pen-
sar no futuro. Por isso, poucos dias após o enterro de Anastácia, enviou a sua
embaixada ao rei polaco, Siguizmund, pedindo a mão da sua irmã em casa-
mento, o que lhe foi recusado. Então Ivan virou-se para outro lado, para o
Cáucaso e casou-se com a princesa Cherkessa Maria. O czar tinha de pensar
apenas em interesses de estado: na união com o príncipe caucasiano, pai de
Maria, que possibilitava uma melhor defesa dos tártaros, que de vez em
quando invadiam as terras do sul da Rússia.
Para a corte real voltaram os tempos de outrora: as bebedeiras, as
orgias, as torturas e o sangue – muito sangue, por todo o lado. Os boiardos
de dinastias e com raízes lendárias eram mortos uns atrás dos outros. Eram
assassinados até na hora de oração, nas capelinhas e até nas igrejas – para
Ivan não existiam locais proibidos. A intenção era de mostrar a todos que
não havia poder maior que o poder do czar. Nem Deus Todo Poderoso, nem
o diabo podiam salvar alguém apontado por Ivan. Havia só um único poder –
o do déspota Ivan.
Ainda aconteceu algo que arrancou o último sentido humano que resta-
va algures nas profundidades da alma do czar: um dos mais fiéis e dos mais
próximos de Ivan, o príncipe Kurbsky – traiu-o, fugindo para o inimigo, o rei
polaco (nessa altura a Polónia já estava em guerra com a Rússia). Ivan ficou
ainda mais abandonado e, consequentemente, mais cruel. “Se o melhor de
todos foi capaz de me trair, o que posso, então, esperar dos outros?” – pen-
sava ele. E decidiu: todos os boiardos são traidores. Matava por suspeita, por
prazer, sem julgamentos, por vezes mesmo no seu palácio. (nem se fala das
caves e prisões subterrâneas horríveis, onde se praticavam torturas impossí-
veis de imaginar).
Assim se seguiram os anos...
Ao mesmo tempo, Ivan continuava a ser ator. Em 1564, uma estranha
procissão saiu do palácio do czar. Fora anunciado que Ivan Vassilievich ia
rezar. Mas nunca dantes ele ia rezar daquela forma: junto com Ivan encon-
trava-se a sua mulher, a “escura” Maria, os seus filhos: Ivan e Fiodor, os
22 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

criados, que carregavam todos os haveres, o tesouro e o arquivo. Dessa


comitiva também faziam parte os conselheiros do passado mais fiéis (ainda
vivos), a quem fora ordenado que levassem as suas mulheres, filhos e cria-
dos. Entretanto, Ivan já tinha outros conselheiros preferidos, que no futuro
iriam realizar todas as suas “obras” sangrentas e obscuras.
Ninguém sabia para onde ia o czar e, claro, ninguém se atrevia a inter-
rogá-lo.
Apenas passado um mês a caravana de trenós chegou à mais afastada
aldeia de caça dos czares russos, Aleksandrovskaia Sloboda. De lá, Ivan
enviou para Moscovo as cartas, por ele escritas ao longo da viagem, duas das
quais foram lidas na praça Vermelha para todo o povo. Na primeira, Ivan
incriminava os boiardos de traições, da morte de Anastácia, da tentativa de o
matarem, a ele e aos seus filhos – a lista de crimes e de nomes era enorme.
Na segunda, o czar mencionava que o povo não tinha culpa das ações dos
boiardos, mas que ele, Ivan, não queria voltar a viver em Moscovo e respirar
o mesmo ar que os boiardos traidores. Por isso, tinha sido obrigado a aban-
donar a sua cidade querida e a andar pelo mundo fora.
Horrorizado, o povo ouvia as cartas. O pavor não consistia no facto de
tantos boiardos, até então respeitados, serem nomeados como traidores. O
horror consistia em ficar sem o czar (a Moscóvia não tinha czar há cerca de
um mês). Os russos podiam imaginar o país sem pessoas, sem ninguém, mas
ficar sem o czar – era algo impensável. O povo começou a pedir, até a exigir
o regresso de Ivan. De seguida, foi escrita uma petição, com súplicas de
regresso e juramentos de devoção eterna, e uma delegação de sacerdotes foi
encontrar-se com o czar. Suplicaram-lhe muito e, depois de uma longa medi-
tação, Ivan cedeu, mas com uma série de condições. Antes de começar todo
aquele espetáculo, ele tinha calculado e pensado em cada pormenor. Tudo o
que Ivan exigisse tinha de ser aceite. E assim foi..
Quando o czar regressou a Moscovo, o primeiro passo que deu foi divi-
dir o país em duas partes: Oprichnina e Zemchina. Em que constava esta
mudança? Foi um processo complicado mas, simplificando, pode-se dizer
que Oprichnina era a “terra dos bons e honestos” sem boiardos traidores.
Estes últimos foram expulsos das suas casas e terras para as zonas que se
chamavam Zemchina. A pilhagem de casas abandonadas, os incêndios e as
violações apoderaram-se de Moscóvia. Mas os historiadores chegaram à
conclusão de que não sofreram todos os boiardos: foram perseguidos somen-
te aqueles que eram próximos do sobrinho e inimigo do Ivan – do Vladimir
Staritsky, que tentara ocupar o trono, enquanto ele, Ivan, seu soberano e tio,
estava “mortalmente doente” (como já mencionámos).
Aleksandrovskaia Sloboda foi apontada como a capital de Oprichnina.
A partir desta altura iniciaram-se as execuções em massa, já havia algum
tempo prometidas. Foram levadas para o cadafalso famílias inteiras de con-
des, príncipes e boiardos. Pais e filhos eram decapitados em frente uns dos
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 23

outros. Mas ainda haviam de chegar os tempos em que a morte por decapita-
ção seria desejada, pois ao sangrento czar esta forma de morrer parecia
demasiadamente “leve” e então inventaria torturas mais incríveis.
Criando a Oprichnina, o czar inventou para ela uns tristes símbolos:
cada cavaleiro pendurava uma cabeça de cão e uma vassoura à sua sela.
Aquilo simbolizava: primeiro, encontrar a traição e varrê-la para mais longe
possível; segundo, defender o czar e ser-lhe fiel assim como o cão é fiel ao
seu dono. Os soldados de Oprichnina tinham o poder total e eram tudo: a
defesa estatal, a polícia secreta – ao todo, eram seis mil pessoas, escolhidas
pelo czar. Nenhum deles podia ter qualquer tipo de ligação de sangue com os
de Zemchina.
No estrangeiro, não se podia saber do massacre que ocorria no país: os
embaixadores eram obrigados a dizer que nada estava a acontecer e que, se
alguma notícia chegasse à Europa, não passava de uma mentira.
Oprichnina, para além das pilhagens e mortes, trouxe ao país o sentido
de medo eterno: ninguém sabia o que se poderia seguir, o que poderia passar
pela cabeça do czar, por que motivo iria ele matar ou perdoar. E ainda nin-
guém percebia para que fora criada essa Oprichnina de sangue e selvajaria.
O que viria a seguir?
Ivan criou um jogo novo: o jogo dos frades. Juntou os soldados de
Oprichnina, de quem mais gostava, a quem deu a roupa de frades; ele pró-
prio assim se vestia considerando-se o superior deles. Rezavam como se
estivessem num mosteiro e, interrompendo as orações, torturavam os infeli-
zes incriminados por culpas inventadas e sem sentido18. Depois de passar
algum tempo nas caves, nas câmaras de tortura, Ivan regressava muito satis-
feito e continuava a rezar. Dizem as crónicas que, de vez em quanto, Ivan
rezava com sinceridade, com lágrimas e súplicas, pois tinha consciência
daquilo que fazia. Mas isso acontecia apenas em momentos de fraqueza, que
rapidamente passavam, e o czar continuava dedicado à sua obra: criar um
estado obediente e subjugado ao medo. O poder do czar era total e nem o
Metropolita era capaz de salvar alguém da morte. A submissão tinha de ser
total e para se certificar disso, Ivan mandou os seus “cães” para Moscovo.
Estes levaram as mulheres dos boiardos para a capital de Oprichnina. As
mais bonitas eram violadas primeiro pelo czar e pelo seu filho mais velho –
também Ivan, e de seguida divertiam-se os oprichniki19. Depois as mulheres
foram devolvidas aos maridos. Muitas suicidaram-se, sem conseguirem
ultrapassar a vergonha, mas os maridos, rangendo os dentes, ficaram cala-
dos, nada disseram: tinham medo.

18
Esse tempo vai-se repetir, já em meados do século XX, quando milhares, milhões
morriam sem culpa alguma, por ordem de outro ditador sangrento, Estaline, que con-
siderava Ivan IV seu professor.
19
Soldados fieis ao czar, em Oprichnina.
24 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Seguidamente Ivan quis vingar-se da sua família: chamou o sobrinho,


Vladimir Staritsky, acompanhado pelos seus próximos e estendeu-lhes, sor-
rindo, taças com veneno. Em silêncio, todos beberam. A sua bela cunhada,
chamada pelo povo como “segunda Anastacia”, as suas tias e primos – todos
morreram.
Após a matança das famílias, chegou a vez de aniquilação de cidades
inteiras. Ivan escolheu a cidade de Novgorod. Porquê Novgorod? Quando
nem sequer havia Moscovo, aquela já era uma Grande Cidade, que mais
tarde parecia fazer concorrência à capital. Mas isso apenas se supunha, na
verdade, não havia nada. O czar tinha de inventar algo, e assim o fez: pare-
ceu-lhe que em Novgorod existiam muitos adeptos de Vladimir Staritsky.
Para ir contra uma cidade do próprio estado, tinha de haver um motivo sério.
E, claro, foi inventado: numa carta secreta, “apanhada” por acaso, dizia-se
que os governadores daquela cidade procuravam aliados na Polónia para
derrubar o czar. Começando a marcha contra Novgorod, Ivan transformou
em deserto tudo o que lhe aparecia à frente: várias aldeias, as cidades de Klin
e Tver20, arderam na totalidade. Ivan podia incendiar também Novgorod,
mas quis ter um espetáculo e teve-o: mais de mil pessoas de cada vez eram
trazidas, torturadas e mortas. Mães com as mãos atadas e com filhos, tam-
bém eles atados, eram afogados no rio Volga, milhares por dia. Diz-se nas
crónicas que morreram mais de sessenta mil pessoas. Matando, Ivan não se
esquecia de rezar. Depois de Novgorod seguiram-se outras cidades, mas a
matança em Novgorod ficará para sempre como uma das mais atrozes em
toda a história russa.
Ivan viu os soldados de Oprichnina a pilhar e a matar sem medo e aper-
cebeu-se de que não tinham medo de nada, sentiam-se à vontade, pois fora o
próprio czar quem lhes proporcionara aquela liberdade. Por isso, depois de
voltar de Novgorod, Ivan virou-se contra eles: foram incriminados por darem
apoio a Novgorod na tentativa de união com a Polónia! Os próprios assassi-
nos estavam a ser acusados de conspiração com as suas vítimas! Foram
erguidas milhares de forcas ao longo da parede do Kremlin. Não houve mul-
tidão para este “espetáculo”: as pessoas, assustadas e inseguras, decidiram
que tinha chegado a vez de Moscovo. Mas, por ordem do czar, o povo teve
de aparecer à força: não podia haver “espetáculo” sem espectadores. Foi lida
a sentença e os primeiros cem culpados foram trazidos para a frente do czar.
Só que as forcas não estavam destinadas a estes infelizes, que ao longo de
três dias foram torturados de formas mais selvagens. Ivan sabia que os que
torturavam hoje, amanhã estariam no lugar das vítimas. Porque o medo
deveria ser total. Como escreveu um historiador: “Ele podia matar, mas já
ninguém se admirava. As pessoas já estavam habituadas às mais incríveis

20
Cidades russas antigas
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 25

mentiras, às mais horríveis torturas. Já ninguém tinha força para pensar,


havia apenas um desejo – sobreviver”.
O poder tornou-se absoluto e era esse o objetivo de Oprichnina. Agora,
Ivan podia fazer reformas, impor leis, matar, perdoar e nem uma voz se
levantava contra.
Seguiram-se mais mortes, mais sangue e mais torturas. No meio disso
tudo, o czar “adoeceu” da sua “obra”: começou realmente a acreditar em
traições e conspirações, chegando a matar o seu filho mais velho. Mais hor-
rível vingança contra si próprio não podia haver. A história de que Ivan
matou o seu filho com uma bordoada mortal é, na verdade, uma lenda. O
czar espancou o filho tão fortemente, que no século XX os antropólogos não
conseguiram restabelecer o rosto do príncipe: de tal forma estava desfigura-
do o crânio.
O filho do czar sobreviveu à violência do seu pai ainda uns dias e só
depois morreu. Para matar assim, deveria haver motivos graves. Um medo
maníaco tinha-se apoderado de Ivan, e ele suspeitou do próprio filho! A
semelhança física com o pai, a vontade de ficar à frente do exército na Livó-
nia, as ideias e os atos semelhantes ao do Ivan – tudo deu asas à imaginação
do czar, que presumiu que o seu filho queria ocupar-lhe o lugar no trono.
Ivan era de estatura baixa e já ia numa idade avançada, mas o seu filho,
cheio de saúde e de um físico forte, nem sequer se opôs, deixou-se espancar
até à morte. Só quando o czar viu o filho deitado numa poça de sangue é que
acordou e se apercebeu do que tinha feito: na sua loucura, tinha matado o seu
herdeiro e deixado a Rússia sem governo, o que significava que, depois dele,
quem subia ao trono era o outro filho, Fiodor, por quem o czar tinha pena e
ódio: um baixote sem caráter, sem interesse pelos assuntos de estado e sem
capacidades mentais. O outro filho – Dimitri, que oito anos após a morte do
pai veio a ser esfaqueado em Uglich21 – ainda se encontrava no berço.
Até ao fim da sua vida, Ivan sonhou com o filho morto; chamava-o
constantemente nos sonhos, deitava-se e acordava a pensar no príncipe Ivan,
chorava e rezava. Foi esse carão castigo divino por tudo que o czar fez ao
longo da sua governação. Desesperado, anunciou que já não queria mais
dirigir o país e que se ia retirar para um mosteiro. Mas todos se lembravam
dos espetáculos e farsas dados do passado e ninguém acreditou. Vieram
pedir-lhe para ficar… e ele ficou.
Ainda houve algumas vitórias: em 1583, o exército dos cossacos,
comandado por Ermak, conquistou a capital do khan Kuchum. A Sibéria
caiu sob o domínio da Moscóvia. A Rússia transformou-se no maior império,
com riquezas infinitas. Mas a guerra da Livónia terminou com o fracasso
absoluto: a Rússia perdeu vastos territórios e milhares de vidas humanas..
Nos seus últimos anos da vida, Ivan ainda pôde ver o resultado do seu reina-

21
Uma das mais antigas cidades russas.
26 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

do, as falhas de muitas das suas iniciativas na política interna e externa; a


divisão do país entre Zemchina e Oprichnina fora um dos maiores erros de
toda a sua governação. Em 1578 pararam as execuções e quase ao mesmo
tempo o czar ordenou a elaboração dos “sinodiki”, “listas da memória”, onde
constavam os nomes de todos os executados. Estas listas foram enviadas
para os mosteiros e igrejas, para que se rezasse pelas almas dos mortos.
Em 1584, Ivan IV, o Terrível, adoeceu de verdade. Antes de falecer, a
seu pedido, fora tonsurado como frade. Numa triste solidão, sem que alguém
pudesse chorar sinceramente a sua morte, cheio de remorsos mas, ao mesmo
tempo, ainda repleto de maldade, partia Ivan para o mundo do além sob o
humilde nome de Iov.
Mesmo ao vê-lo sem respirar, os boiardos temiam anunciar a morte,
com receio que fosse novamente um dos jogos de Ivan. Pensavam que, de
repente, ele podia “ressuscitar” milagrosamente, recomeçando as represálias.
Mesmo morto, Ivan metia medo.
Assim, só com 54 anos, apagou-se a estrela de Ivan IV Vassilhevich,
Grande Príncipe e Czar da Toda a Rússia. Mas para a História ele não ficará
apenas como um tirano. Ele foi um dos mais cultos homens da sua época,
dono de uma memória fenomenal e de uma erudição teológica sem compa-
ração, autor de cartas filosóficas, de cânticos religiosos e compositor. Para
além das reformas agrárias, jurídicas, militares, estatais e teológicas, Ivan IV
promoveu a organização de impressão de livros em Moscovo; por ordem do
czar foram construídas várias catedrais, entre as quais a mais famosa é a bela
Catedral Vassily Blajenny, na Praça Vermelha, em Moscovo.
Depois da morte e do enterro do czar espalharam-se boatos de que Ivan
não falecera devido a doença, mas fora envenenado pelos boiardos, fartos
das maldades do czar. Já no século XX, os
antropólogos encontraram nos restos mortais
de Ivan uma elevada quantidade de mercúrio.
Mas isso podia ter sido causado pelos medica-
mentos que o terrível czar tomava antes da
morte por causa da doença.
Fiodor, o segundo filho de Ivan, subiu ao
trono. Mas não era ele quem governava o país:
na verdade, eram finalmente os boiardos,
desejosos de poder. Passados 14 anos, Fiodor,
que não tinha um filho-varão, foi encontrado
morto22. Entretanto, o seu pequeno meio-
-irmão já tinha sido morto em Uglich, em
1591. (Fiodor Ivanovich,
segundo filho de Ivan IV)

22
Como viria a ser descoberto, a morte fora provocada por uma elevadíssima dose de
mercúrio.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 27

A Rússia ficara sem czar. Seguiam-se os anos da governação do


autoproclamado czar Boris Godunov, depois chegariam os tempos da
Smuta23, a época de aparição de vários “Dimitrios”24, a época dos mentirosos
e falsos, dos que queriam ocupar o trono do Kremlin. Seguiu-se a invasão e a
ocupação polaca… Veio o período de destruição completa do Estado Russo.
Os tempos de horror de Ivan pareciam agora a época de um benfeitor.
Assim foi a vida, cheia de tormentos, de crimes, de conquistas e de res-
sentimentos de Ivan IV. Será que poderia ter sido outro e vivido de outra
maneira? Foram os próprios boiardos e as condições daquela época que o
obrigaram a ser assim, cruel e sanguinário. Do seu ponto da vista estava
certo daquilo que fazia, tinha a
convicção de que a sua missão
era santa e só assim salvaria a
Rússia. As reformas empreen-
didas, a libertação de jugo
tártaro, a conquista da Sibéria,
foram, sem dúvida, muito
importantes e tiveram um
impacto muito positivo para
toda a nação russa (até hoje).
Ivan IV morreu aos 54 anos.
Será que, se a sua vida não se
tivesse apagado tão cedo,
haveria mais reformas e con-
quistas? Ou, pelo contrário, um
terror e medo ainda maior se
teriam apoderado da Rússia?
Para isso não há respostas.
Mas uma coisa é certa: apesar
de, atualmente, Ivan IV, Vassi-
lievich, ter a alcunha de “terrí-
vel” e ser representado pela
sua parte mais negativa, o
povo russo ainda ao longo de
vários anos o denominava como “o Beato”, “o Benfeitor”, “o Corajoso” e,
respeitosamente, “o Terrível” ou “o Temível”. Mas na história, que difere da
memória humana, ele havia de ficar só como Ivan IV – o Terrível.

23
Tempo que se seguiu à morte do Ivan IV, quando o país ficou sem o czar legítimo,
apareceram vários “czares”falsos e a Rússia foi ocupada pela Polónia; o desespero, a
pobreza deste tempo não tinham comparação em toda a história russa.
24
Pessoas que diziam ser o “príncipe Dimitrii”, o verdadeiro herdeiro do trono russo,
que milagrosamente se tinha salvo, em Uglich.
28 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Bibliografia
Mussky, I.A., (2000). Sto velikikh diktatorov [Os 100 maiores ditadores]. Mos-
covo, Veche;
Radzinsky, E., (2007). Zagadki liubvi [Enigmas de amor]. Moscovo, ACT,
pp. 79-135;
Ryjov, K., (1998). Vse monarkhi mira [Todos os monarcas do mundo]. A Rús-
sia. Moscovo, Veche;
Sakharov, A.N., (2006). Istoria Rosii [História da Rússia]. Moscovo, Astrel,
vol.1º pp. 362-389.

Sites
http://www.tonnel.ru/?l=gzl&uid=132)
http://vivl.ru/grozny/grozny.php
BREVE EXPOSIÇÃO DOS PERÍODOS DA FORMAÇÃO
DA LÍNGUA RUSSA

Vladimir Ivanovitch Pliassov

В данной статье даётся краткий обзор основных этапов в развитии языка и


письменности у восточных славян, формировании национальной языковой нормы
на фоне исторического процесса консолидации русской народности в нацию.
Ключевые слова: древнерусский язык, русский язык, национальный, восточные
славяне, берестяные грамоты, койне, докирилловская письменность.

Introdução

No mundo existem, aproximadamente, mais de três mil línguas vivas.


Há também línguas antigas, não faladas, que desempenham um papel ativo
na cultura dos povos contemporâneos. Qualquer língua, sendo o instrumento
de comunicação do Homem é também um meio para indexar o conhecimen-
to, organizar e transmitir a informação. A língua é a mais remota memória da
humanidade, acompanha a sua evolução, a sua história e todo o seu percurso
civilizacional. Os dados histórico-etimológicos de uma língua guardam, por
vezes, mais reminiscências do que outros aspectos da monumentalidade
arqueológica e cultural dos povos. Efetivamente uma língua dá ao investiga-
dor notícia sobre o relacionamento das comunidades humanas com outros
grupos étnicos, sobre o universo das ideias e das instituições e de um modo
geral sobre a interação das determinantes geográficas e demográficas.
O grau diferencial entre as línguas está longe de ser igual. As línguas
agrupam-se e ramificam-se em conjuntos ligados entre si pelos diferentes
vínculos e afinidades. Certos grupos de línguas têm maior (ex.: eslavo e
báltico) ou menor (ex.: o latim e o grego antigo) semelhança. No grupo esla-
vo, estão muito próximos entre si o russo, o ucraniano e o bielorrusso, por-
que têm a sua origem no russo antigo. Estas línguas têm divergências, porém
não impedem a intercompreensão entre os respectivos falantes quando con-
tactam uns com os outros.
30 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

A Língua Russa na Família das Línguas Eslavas


As línguas eslavas contemporâneas pertencem à vasta família das lín-
guas indo-europeias e organizam-se em três ramos principais:
– oriental (russo, ucraniano e bielorrusso);
– ocidental (polaco, checo, eslovaco, alto sorábio e baixo sorábio);
– meridional (búlgaro, macedónio, servo-croata e esloveno).
Todas estas línguas prolongam uma velha língua eslava de parentesco
comum, são condicionadas na sua génese pela mesma origem, uma língua
anterior, que se pode denominar de língua protoeslava e que se formou antes
da nossa Era, aproximadamente, há 2500 anos.
Nem a língua indo-europeia, nem a língua protoeslava guardam memó-
ria de registo escrito, porque, naquela época, os falantes dessas línguas ainda
não conheciam a escrita. Estas línguas foram reconstruídas pelos linguistas
com a ajuda do estudo histórico-etimológico e comparativo das línguas indo-
-europeias vivas e mortas.
A peculiaridade característica das línguas eslavas é a relativa afinidade
entre elas, aparentemente mais efetiva e disponível para o convívio interlin-
guístico do que em outros grupos de línguas, como por exemplo: germâni-
cos, neolatinos e outros. A sua afinidade revela-se em todos os aspectos da
língua: no sistema gramatical (declinação e conjugação), no sistema sintác-
tico (construção das orações) e nos recursos lexicais. Encontram-se muitas
características comuns na formação das palavras. Em todo o caso, é oportuno
notar que nas línguas eslavas contemporâneas existem bastantes diferenças
essenciais. Por exemplo, as línguas russa e búlgara distinguem-se pelos sis-
temas de declinação e conjugação. A língua búlgara deixou de ter declina-
ção, mas mantém quatro formas antigas do pretérito que se perderam nas
outras línguas eslavas. Há também certas diferenças ao nível da estrutura
sintática e do sistema fonético e verifica-se mesmo uma inteira separação na
representação gráfica. O russo, o bielorrusso, o búlgaro, o macedónio, o sér-
vio e o ucraniano usam o alfabeto cirílico com variantes notórias. O mesmo
acontece em alguns povos da antiga União Soviética e na República da
Mongólia. Nas outras línguas eslavas usa-se o alfabeto latino.1

A Língua do Estado da Rússia Antiga


Os mais numerosos de todos os povos eslavos eram – Antes (o termo
bizantino Άνται)2 – os antepassados dos Eslavos orientais. No século VI,

1
No presente artigo não foram apresentados os exemplos ilustrativos das línguas esla-
vas, por não ter sido possível reproduzir os caracteres correspondentes.
2
Os Eslavos orientais, como povo formado, foram descritos pela primeira vez pelos
Bizantinos em meados do século VI.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 31

ocuparam grande parte da região do curso inferior do rio Dniepre e do rio


Dniestre, no sul, até ao lago Ládoga, no norte, e dos Cárpatos, no sudoeste,
até ao alto Volga. Segundo a opinião do conceituado historiador russo B.A.
Rybakov, os povos eslavos do Leste europeu eram constituídos, na antigui-
dade, por uma população tribal representada por cem a duzentas tribos, não
muito grandes, com diferentes graus de desenvolvimento cultural e econó-
mico e falando dialetos muito parecidos uns com os outros. As diferenças
linguísticas acentuaram-se entre os séculos VI e VIII, na altura em que os
Eslavos orientais começaram a fragmentar-se e a dispersar-se, povoando
novos territórios da Europa de Leste. Porém, a sua língua, no que se refere
ao sistema gramatical, à fonética e ao léxico, manteve alguns dos traços
gerais herdados da língua protoeslava.
A língua russa antiga desenvolvia-se pelas suas próprias regras e, a par-
tir do século VI, assumiu algumas particularidades, as quais começaram a
distingui-la das outras línguas eslavas meridionais e ocidentais. Do sistema
fonético ficaram características como, por exemplo, a sonoridade das vogais
nas combinações de tipo: оро, оло, ере, ело (корова, молоко, дерево,
шеломъ), ou: ро, ло no início de palavra (робота, лодья), a alternância da
consoante д com a consoante ж (ходити-хожу) etc. Aumentou e recriou-se
o vocabulário, sobretudo por influência e assimilação dos povos e grupos
étnicos não-eslavos, através dos contactos de fronteira e vizinhança. Como
resultado, apareceram palavras que não se encontram nos outros grupos esla-
vos: утъка, радуга, сапогъ, багоръ e outras. As alterações ocorreram tam-
bém no sistema gramatical. Assim, a desinência do velho eslavo – омь, no
instrumental do singular de masculino e neutro, passou para – ъмь (городъмь,
селъмь); os casos oblíquos de forma completa dos adjetivos começaram a ser
formados segundo o modelo das formas dos pronomes demonstrativos:
нового, новому, по новой (compare: того, тому, по той), etc.
Os Eslavos orientais, na primeira metade do primeiro milénio da nossa
Era, viveram numa sociedade primitiva e patriarcal. A partir dos séculos VI
a IX, verifica-se a desintegração da sociedade primitiva e a transição para o
feudalismo. Desenvolveu-se a pecuária, os ofícios separaram-se da agricultu-
ra, surgiram diferentes produções: fundição de ferro e de cobre, arte de for-
jar, olaria e joalharia. Rapidamente desenvolveu-se o comércio, o qual incen-
tivou os contactos entre os povos das terras mais afastadas. Nos locais das
velhas povoações surgiram as cidades. A comunidade tribal cedeu o lugar à
comunidade territorial, unida pelos laços da vida económica além dos laços
de parentesco.
Estes territórios eram governados por príncipes (kniázes), que tinham ao
seu serviço um corpo guerreiro (drujína), e que dariam mais tarde origem à
alta nobreza russa. Aos príncipes submetiam-se os latifundiários ricos –
boiardos, descendentes da aristocracia tribal. A população que vivia neste
território pagava, anualmente, o tributo ao príncipe. O território chamava-se
32 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

principado (kniájestvo) e lá viviam várias tribos dos Eslavos orientais e


outras etnias entretanto russificadas.
Pouco a pouco, foram surgindo as uniões tribais, que se congregaram
em super uniões, as quais apresentavam uma forma rudimentar de estrutura
de Estado. Segundo uma das mais antigas crónicas russas, a Narração dos
Anos Passados, compilada por volta de 1113 d.C., nos séculos IX e X no
território da Antiga Rússia existiam doze uniões tribais: os Polianos, os Dre-
vlianos, os Severianos, os Dregovitchianos, os Krivitchianos e Polotchanos,
os Radimitchianos, os Viatitchianos, os Eslovenianos do lago Ilmen, os
Dulebanos, os Croatas Brancos, os Tivértsis, os Ulitchianos.
A partir dos anos 80 do século IX começou o processo de integração ou
"ajuntamento" (não muito diferente do resto da Europa Ocidental) dos terri-
tórios habitados pelos Eslavos orientais, processo que durou até ao fim do
século X e que representava tanto o desenvolvimento do novo sistema das
relações político-económicas, como uma necessidade vital na organização da
defesa eficaz contra a ameaça militar constante por parte dos vizinhos não
russos.
Como resultado, foi formado o Estado da Rússia Antiga unido e centra-
do em Kiev, razão pela qual este Estado medieval foi mais tarde denominado
Rússia de Kiev3 e assim permaneceu durante quase trezentos anos. Paralela-
mente a este processo, os Eslavos orientais fundiram-se, formando um grupo
étnico mais ou menos unificado que viria a ser chamado povo russo antigo,
ao mesmo tempo que adotavam a designação Rus (Rus') ou Terra (=Nação)
Russa para os territórios onde habitavam.
A mudança das condições socioeconómicas e geopolíticas dos Eslavos
orientais deu um novo rumo ao desenvolvimento da língua russa antiga. No
fim do século VIII e até mais tarde, ocorre o processo de fusão das particula-
ridades idiomáticas locais. Neste processo, desempenhou um papel impor-
tante o chamado coiné de Kiev.
Unindo, praticamente, todas as terras dos Eslavos orientais, Kiev tor-
nou-se o centro cultural, económico e político do Estado da Rússia Antiga.
Nesta cidade acumulou-se gente de diferentes territórios russos e a lingua-
gem falada de Kiev seria extremamente heterogénea. Porém, com o tempo
homogeneizou-se aí uma língua especial que unificou todos os dialetos utili-
zados, no chamado coiné, onde alguns traços foram assimilados dos dialetos
de Sul e outros de Norte e de Nordeste.
Esta língua comum, graças ao seu carácter neutro, distribuiu-se por
todo o território nacional, num quadro de grande intercâmbio, com destaque
para o cumprimento de diferentes funções institucionais, do estado e da acti-

3
O historiador russo S.M. Solov'yev (1820-1879) na sua obra “História da Rússia desde
os Tempos Antigos”, dividiu a história russa em vários períodos, atribuindo-lhes
designações atualizadas, embora um pouco artificiais.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 33

vidade religiosa de pregação e cerimónias de culto; e satisfez as largas


necessidades de comunicação linguística entre o centro e as províncias.
Durante os séculos X a XIII, na língua russa antiga ocorreram mudanças
inovadoras. Foram alterados os sistemas fonético e gramatical. Assim, ocor-
reu a palatalização de consoantes que precederam vogais anteriores; perde-
ram-se as vogais super breves ъ e ь: кратъко > кратко, правьда > правда,
etc. Na gramática alterou-se o antigo sistema de declinação dos substantivos,
desapareceram as formas do Dual4: дъва рядá; o Infinitivo substituiu o Supi-
no5: воеватъ > воевать; simplificou-se o antigo sistema do Pretérito por
perda do Imperfeito, do Mais-que-perfeito e do Aoristo6 a favor de uma forma
universal do Pretérito Perfeito diferenciado pelos Aspectos verbais; etc.
Enriqueceu-se o vocabulário por via da formação de novas palavras
assim como: русь (русьскыи, русичь, русинъ), къняжество, смьрдъ,
сабля, стягъ, рукавицы, слюда, дешевыи, рокотати, entre outras, e locu-
pletou-se com estrangeirismos oriundos do eslavo eclesiástico, do grego, do
turco, do fino-úgrico e do escandinavo. Este influxo transformador deve
associar-se ao desenvolvimento das relações culturais, económicas e políti-
cas da Antiga Rússia com outros povos.
As palavras gregas e eslavas eclesiásticas, na sua maior parte, integra-
ram-se na língua russa antiga, depois da adesão ao cristianismo do modelo
bizantino, através da literatura teológica e da prática litúrgica. Juntamente
com os termos religiosos entraram também os nomes de objectos do quoti-
diano, de animais, de plantas, nomes próprios, termos da cultura e da ciên-
cia: попъ, монахъ, монастырь, игуменъ, ангелъ, евангелие, икона,
философия, грамота, тетрадь, адъ, баня, фонарь, кровать, теремъ,
корабль, парусъ, уксусъ, буйволъ, кипарисъ, кедръ, Елена, Евдокия,
Софья, Георгий, Александръ, etc.
As palavras turcas e fino-úgricas entraram na língua russa antiga,
acompanhando o uso de novos objectos do quotidiano, roupa, comida,
nomes geográficos, de peixes e de animais (turcas: арба, лачуга, чуланъ,
жемчугъ, арканъ, тулупъ, сарафанъ, бисеръ, коврига, кумысъ, каганъ,
etc.; fino-úgricas: сани, нарты, тундра, пурга, моржь, etc.).
Entraram na língua russa antiga as palavras e os nomes próprios escan-
dinavos (вира, крюкъ, ларь; Игорь, Ольга, Олегъ, Аскольдъ, etc.). Naquela
altura os grupos mi1itares e os mercenários varegues7, os quais mais tarde

4
Número duplo que indicava duas pessoas ou coisas.
5
Forma nominal dos verbos que, usada como substantivo, designava o resultado da
acção.
6
Tempo verbal que indicava uma acção simples sem ideia de duração, ocorrida em
época passada.
7
Varegues significa em nórdico antigo Vikings.
34 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

foram eslavizados culturalmente, desempenharam um papel com alguma


interferência na vida dos Eslavos orientais.
Pouco a pouco desapareceram os dialetos tribais e em seu lugar desen-
volveram-se os dialetos territoriais. Estes factos são testemunhados pelos
documentos escritos, nos quais os velhos nomes tribais foram substituídos por
nomes locais. Assim, nas crónicas os Krivitchianos começaram a denominar-
-se de Pskovitchianos (da cidade de Pskov), os Eslovenianos do lago Ilmen
tomaram o nome de Novgoródtsis (da cidade de Novgorod), os Viatitchianos
chamaram-se Riazántsis (da cidade de Riazan), etc. Os dialetos territoriais
durante muito tempo mantiveram certas diferenças na fonética (por exemplo, o
som [g] pronunciou-se diferentemente no Norte e no Sul) e no léxico (por
exemplo, a palavra lobo pronunciou-se no Norte como volk e no Sul – como
biriúk), porém, no sistema gramatical não existiram diferenças substanciais.
Em meados do século XII, atenuou-se a importância de Kiev enquanto
centro político nacional e começou o desmembramento do Estado da Rússia
Antiga em vários principados autónomos (cerca de quinze). Assiste-se então
ao desenvolvimento da organização feudal, da consolidação dos poderes
locais e também do crescimento e do fortalecimento das cidades, que se
transformaram em centros da política e da economia locais. O regime políti-
co daquela Rússia lembrava uma confederação de estados independentes
unidos por alguns interesses comuns em matéria de política externa. Os mais
importantes desses principados correspondiam aos territórios das seguintes
regiões: Kíev, Tchernígov, Nóvgorod, Smolénsk, Riazán, Galícia e Volínia,
Vladímir e Súzdal.
A limitação territorial política e económica de cada principado tinha
contribuído para a formação das características próprias da vida, da cultura e
da língua dos Eslavos orientais. Emergiram as discrepâncias entre certos
grupos de dialetos. Com base na união dos dialetos tribais, unidos num prin-
cipado, formou-se um falar local. Nos documentos escritos reflectiram-se
intensamente quatro destes dialetos: o de Nóvgorod, o de Smolénsk, o de
Rostóv e Súzdal, e o de Kíev. No início, as diferenças idiomáticas manifesta-
ram-se só em certos elementos fonéticos e lexicais, mas com o avançar do
tempo, em algumas partes da Rússia Antiga, aumentaram as diferenças foné-
ticas, lexicais e gramaticais, as quais criaram condições para a formação de
idiomas eslavos orientais autónomos.

A Formação das Línguas dos Povos Russo, Ucraniano e Bielorrusso


As condições para o desenvolvimento dos três idiomas eslavos orientais:
russo, ucraniano e bielorrusso, começaram a ser criadas nos séculos XII e
XIII. O isolamento feudal de certas regiões da Rússia Antiga agravou-se em
resultado da invasão militar tártaro-mongol (séc. XIII-XV), o que levou a
sérias perturbações entre as ligações dos diferentes territórios eslavos de Leste.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 35

O enfraquecimento das terras russas fora aproveitado pelos feudais


polacos, lituanos e húngaros. A Lituânia e a Polónia ocuparam a Rússia
sudoeste e oeste. A Rússia de Transcarpátia foi ocupada pela Hungria.
Por conseguinte, a partir do século XIV, começou o processo da nova
unificação dos territórios dos Eslavos orientais e a formação dos três povos
com seus próprios idiomas: russo no Nordeste; ucraniano no Sudoeste; bie-
lorrusso no Oeste.
A língua do povo russo começou formar-se a partir dos dialetos falados
nos territórios das regiões centradas nas cidades de Rostóv, Súzdal e Vladí-
mir, com alguns traços particulares da fonética e da morfologia da Rússia
do Norte. Gradualmente, devido às suas condições geográficas, económicas
e políticas, Moscovo tornou-se o centro da unificação territorial russa na luta
pela independência contra os invasores tártaro-mongóis. Afluíram a Mosco-
vo gentes com proveniência das diferentes regiões russas, tanto do Norte,
como do Sul, que representavam vários dialetos regionais. No falar moscovi-
ta dos séculos XV-XVI atenuaram-se as variantes dialetais mais acentuadas
e formou-se a linguagem comum (o chamado coiné) que caracterizou toda a
Rússia do Nordeste.
Na fonética predominou a redução das vogais átonas [a] e [o] por [a]
(вода – vadá, она – aná, трава – travá) originárias do Sul. A pronúncia nor-
tenha da consoante oclusiva sonora г ensurdeceu-se para [k] (круг – [kruk]),
vencendo a consoante fricativa do Sul, bastante difundida naquela altura.
Mais tarde, o próprio falar moscovita influenciou os sons dialetais do Norte.
Por exemplo, o som [g] foi alterado em som [v] na desinência das palavras
terminadas em – ого [-ovo].
O coiné moscovita sofreu um processo de normalização e sistematizou-
-se na primeira metade do século XVII. Assumido como idioma do centro
cultural e social, começou a difundir-se nos outros territórios e em breve se
tornou a língua de referência falada e escrita. De uma forma dialetal, trans-
formou-se na língua nacional da Rússia, fixando uma estrutura moderna,
muito próxima da língua que os russos hoje falam.
Simultaneamente, com a formação do povo russo, com novas condições
políticas e socioeconómicas, formaram-se o povo ucraniano e o povo bielor-
russo com as suas línguas próprias.
O povo ucraniano que habitava os territórios da Rússia de Sudoeste,
entre os quais as terras de Kíev, Pereiaslávl, Tchernígov, Podólie, Galícia,
Volínia, Transcarpátia e Bukovína, iniciou a sua consolidação enquanto
povoou na zona do rio Dniepre Central, onde estava situada a cidade de
Kiev. Os primeiros traços característicos da autonomização do idioma ucra-
niano, na origem do qual estava o dialeto kievano-poltavo, começaram a
manifestar-se nos séculos XIV-XV.
O povo bielorrusso formou-se nos territórios da região ocidental da
Rússia, entre os quais, as terras de Pólotsk, Túrov, Pinsk, Slutsk e outras.
36 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Nos séculos XIV-XV assinalaram-se os traços principais do idioma bielor-


russo, com os quais se vão caracterizar posteriormente.

Consolidação da Língua Nacional Russa no Período de Desenvolvimento


do Povo Russo como Nação

No século XVII, começou a formar-se a nação russa. Naquela altura,


acentuou-se o intercâmbio mercantil entre as regiões e organizou-se o mer-
cado único de toda a Rússia. Na segunda metade do século XVII, a Rússia
venceu a limitação económica dos territórios isolados e começou a funcionar
como um único sistema económico. Desta maneira, a unidade política,
alcançada anteriormente, consolidou-se com a unificação económica do país,
o que criou condições importantes para a transição do povo russo para uma
nação, concluindo-se este processo com o desenvolvimento do capitalismo
no século XIX.
A língua russa nacional cresceu à base do uso quotidiano e literário do
povo russo e desse espaço de comunicação recebeu todas as suas particulari-
dades idiomáticas. Entretanto, na época da unidade nacional, começaram a
desenvolver-se outras tendências na língua. No período do desmembramento
estatal eram fortes os dialetos locais, devido ao isolamento de certas regiões.
Depois, na época da formação da nação, da fusão político-económica e da
liquidação do fraccionamento feudal dos territórios, surgiu a necessidade
histórica de eliminar todos os obstáculos (inclusive os do idioma) que con-
fundiam os membros da nação em formação. Neste período, nota-se uma
unificação de fenómenos linguísticos que contribuiu para a perda dos traços
dialetais locais. O processo do desenvolvimento da língua nacional ia sendo
acompanhado pela consolidação da linguagem através da aproximação do
registo oral do povo ao registo escrito literário.
Durante a toda época medieval havia dois tipos de linguagem literária:
– eslavo eclesiástico, no qual foram feitas as primeiras traduções esla-
vas dos livros gregos do ofício divino dos séculos IX-X, que tinham sido
criadas para as necessidades da igreja cristã;
– literário-popular, quando ainda não se haviam estabelecido normas
linguísticas estáveis, no qual foram criadas obras de carácter profano, em
primeiro lugar, as crónicas e depois a literatura de ficção.
Esta dualidade na escrita foi-se atenuando gradualmente e perdeu qual-
quer relevância, com a afirmação da língua nacional e da linguagem literária.
O início da edição impressa (no fim do século XVI) e a simplificação do
alfabeto (no início do século XVIII) favoreceram a divulgação da linguagem
culta impulsionada pela produção literária em todo o território russo.
No início do século XVII o povo russo ainda não tinha a linguagem
padronizada de uso quotidiano. A partir desta época elaboraram-se as nor-
mas gerais da pronúncia, o uso das palavras, a criação das combinações das
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 37

palavras. Estas normas linguísticas fixaram-se no russo-padrão e, através


dele, influíram no léxico e no sistema gramatical das diferentes variantes
dialetais. A elaboração de gramáticas e de dicionários ofereceu a base neces-
sária para a regularização e posterior normalização da língua.
A língua russa nacional formou-se através da homogeneização das
variantes dialetais numa língua unificada em toda a Rússia, que beneficiou
ainda da consolidação política e económica do estado russo. O factor predo-
minante na formação da língua nacional russa pode atribuir-se ao coiné mos-
covita, que se afirmou no processo de interacção entre dialetos russos do
Norte e do Sul na segunda metade do século XVII. Durante os séculos XVII-
-XIX, a língua russa nacional experimentou um processo de continuado
aperfeiçoamento.
Os russos falam e escrevem hoje numa única língua, enriquecendo-a e
desenvolvendo-a. As mudanças da língua não ocorrem nem ao nível da
essência da estrutura, nem do léxico. Aumentou o vocabulário, desapareceu
a dualidade de linguagem, estabilizaram-se as construções e aperfeiçoou-se a
ortografia.
Actualmente, a língua russa é uma língua nacional da Federação da Rús-
sia e o meio de comunicação entre as numerosas etnias espalhadas no centro,
leste e sudeste da Europa, na Sibéria, no Extremo Oriente, bem como nas
Repúblicas da Ex-União Soviética. O russo pertence ao número de línguas
mais difundidas no mundo – ocupa o 4º lugar e é um dos seis idiomas oficiais
de trabalho na ONU. Por volta de 140 milhões falam língua russa no território
nacional e, mais ou menos, a mesma quantidade utiliza-a no estrangeiro.

A Escrita entre os Eslavos Orientais antes da Cristianização


Actualmente está provado que já existia a escrita entre os Eslavos orien-
tais antes de adesão ao cristianismo do modelo bizantino (no ano 988).
Porém, não sabemos ainda, quando e como ela surgiu e o que representou no
período inicial da sua existência.
Os estudiosos russos, entre os quais D.S. Likhachev e P.Ya. Chernykh,
baseando-se na análise do desenvolvimento socioeconómico do Estado da
Rússia Antiga, nos monumentos históricos e nos achados arqueológicos,
afirmam que a sua origem data do período de Antes (séc. VI-VII). Neste
período os Eslavos orientais estavam na fase da degradação do regime da
comunidade primitiva e da transição para regime feudal. A necessidade da
escrita apareceu juntamente com a acumulação de riquezas e com o desen-
volvimento do comércio. O Estado também tinha necessidade da escrita,
sobretudo para a conclusão de tratados. Com o aumento da consciência
patriótica apareceu a necessidade de fazer anotações de factos históricos.
Surgiu também a necessidade da correspondência particular. Uma série de
textos originais dos séculos IX-X confirmam estas suposições.
38 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Assim, na Vida de S. Cirilo, o Filósofo8, autor do primeiro alfabeto


eslavo que servia as necessidades da Igreja Cristã, conta-se que, enquanto
esteve na Crimeia, na cidade de Korsun (Chersonesus), por volta do ano de
860, encontrou um Evangelho e um Livro dos Salmos escritos em caracteres
russos antigos. Cirilo conheceu ali um homem, um russino, que sabia ler
esses livros e ele próprio aprendeu rapidamente a ler e a entendê-los.
Uma das mais antigas crónicas russas do século XII, a Narração dos
Anos Passados, confirma também, repetidas vezes, a existência de tratados
comerciais e outros que o autor dessas crónicas leu no original, escritos e
compostos muitos anos antes do baptismo da Rússia. Por exemplo, no Acor-
do celebrado pelo Príncipe de Kiev, Oleg, com Bizâncio, no ano de 911,
relata-se que a Rússia e Bizâncio tentaram, por mais de uma vez, verbalmen-
te, mas também por escrito, resolver as questões entre eles. Nesse mesmo
Acordo, fala-se de testamentos escritos, feitos pelos comerciantes russos que
visitaram a capital do Império Bizantino.
Mais um pormenor importante: a datação dos acontecimentos nas cróni-
cas começa a partir do ano 852... É evidente que, pelo facto de ser impossí-
vel reconstruir os acontecimentos exatos dos dois séculos anteriores median-
te o simples recurso a lendas, o seu autor recorreu às anotações históricas
mais antigas. Por isso, supõe-se que a escrita russa já existia na segunda
metade do século IX. Porém, não há qualquer informação sobre a época em
que surgiu ou que tipo de caracteres utilizava. O alfabeto comum (Cirílico)
estabeleceu-se na Rússia no final do século X.
As inscrições encontradas nos vasos, nas lápides, nas paredes de tem-
plos, etc. testemunham o amplo uso da escrita na Rússia Antiga (séc. X-XI).
Essa variada aplicação da escrita resultou do desenvolvimento prolongado da
cultura eslava de Leste no período anterior.
As cartas escritas nas tiras de casca de bétula dos séculos XI-XV,
encontradas nas escavações arqueológicas realizadas nas cidades de Nóvgo-
rod, Smoliénsk, Pskov, Vítebsk, representam acordos, testamentos, promis-
sórias, apontamentos de carácter jurídico e correspondência particular de
negociantes, artesãos e lavradores que utilizavam a escrita na medida das
suas necessidades particulares. Não só os homens, mas também as mulheres
e as crianças utilizavam a escrita. A notícia dessa alfabetização dá testemu-
nho de que o uso da escrita na vida quotidiana russa, no século XI, pelas
várias camadas sociais, era uma necessidade e um hábito.
Apesar de haver muitas discussões, hipóteses, contradições em relação
ao aparecimento da escrita na Rússia, com alguma ignorância e provável
parcialidade dos linguistas que investigam essa questão, pode hoje em dia
afirmar-se, com fidedignidade, que a escrita russa pré-cirílica seria suficien-

8
N.K. Nikol'ski, “Acresce a questão sobre os caracteres russos antigos, referidos na
Vida de Constantino, o Filósofo.”
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 39

temente perfeita, porque só com uma escrita desenvolvida é que os Eslavos


orientais podiam traduzir obras tão complexas como o Evangelho e o Livro
dos Salmos encontrados por Cirilo (Constantino) em Korsun (Chersonesus).
Ao mesmo tempo, pressupõe-se que, em finais do século IX, existiriam
vários tipos de escrita pré-cirílica entre os diferentes povos eslavos que utili-
zavam alfabetos inventados por eles ou aproveitados de povos vizinhos que
já possuíam uma escrita desenvolvida. É normal encontrar o alfabeto múlti-
plo no período de transição para o feudalismo. É indiscutível que Cirilo, ao
compor o alfabeto, aproveitou a longa experiência na escrita dos eslavos.

Desenvolvimento de Novas Formas de Cultura Espiritual nos Antigos


Estados Eslavos e Actividade dos Primeiros Doutrinadores Eslavos

Os primeiros estados eslavos surgiram nos séculos VII-VIII, mas a sua


formação definitiva deu-se no século IX. Surgiram estruturas estatais como a
Grã-Morávia, a Polónia, a Bulgária, a Sérvia e a Croácia. A Rússia de Kiev
tornou-se um dos maiores estados da Europa medieval.
Novos modos de vida, relações políticas e económicas com povos vizi-
nhos exigiram o desenvolvimento de novas formas de compreensão do mun-
do e da cultura espiritual, as quais completariam as tradições populares esla-
vas. Surgiu a necessidade da própria escrita e da cultura livresca. As condi-
ções históricas da vida dos eslavos no século IX deram ensejo a uma série de
reformas estatais, tendo a mais importante reconhecido a nova fé cristã uma
vez que, naquela época, os povos eslavos eram pagãos.
Naquele tempo já existiam duas variantes do Cristianismo, embora o
cisma oficial tivesse ocorrido posteriormente, no ano de 1054. Muitos esta-
dos eslavos escolheram o cristianismo do modelo bizantino. A Igreja bizan-
tina, ao contrário da romana, permitia a realização das cerimónias religiosas
e do ofício divino na língua materna dos povos que praticavam o cristianis-
mo. A Igreja de Roma, naquele tempo, reconhecia o ofício divino apenas nas
línguas latina e grega.
Para as traduções dos livros gregos sobre o ofício divino na língua dos
eslavos, com a finalidade de satisfazer as necessidades da Igreja cristã nestes
estados, foi criada a escrita eslava. Em meados do século IX, as línguas esla-
vas eram gramatical e lexicalmente muito parecidas umas com as outras,
distinguindo-as apenas poucos traços. A língua na qual foram escritas as
primeiras obras eslavas é geralmente designada eslavo-eclesiástica.
Os criadores de um dos primeiros abecedários eslavos e os primeiros
tradutores dos textos canónicos do grego para a língua eslava foram dois
irmãos: Constantino (que recebeu o nome de Cirilo, depois de vestir o hábito
de monge) e Metódio. Eram naturais da cidade de Soluni (Salónica), situada
no centro de uma colónia grega no território dos eslavos da Macedónia. Por
40 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

isso é que a base da língua das primeiras traduções foi o dialeto destes esla-
vos que, sendo o materno, era o mais conhecido dos autores.
Não sabemos exactamente a naturalidade de Constantino e Metódio, se
grega ou eslava. Alguns investigadores consideram que os dois irmãos eram
eslavos, outros gregos, sendo que ambas as partes fornecem bastantes pro-
vas. Mas o facto é que muitos eslavos, até agora, chamam-se a si mesmos
gregos porque pertencem à Igreja grega.
Metódio, o mais velho dos irmãos, ocupou-se da atividade administrati-
va – no decurso de uma série de anos foi governante de uma das regiões
eslavas no Sudeste da Macedónia ocupada pelo Império Bizantino.
Constantino, o mais novo, era muito instruído e, durante algum tempo,
ocupou-se da atividade missionária. No decurso das suas viagens, travou
conhecimento com as diferentes escritas (hebraica, copta, entre outras) e com
os dialetos dos diferentes povos eslavos (moravos, panónicos, búlgaros). O
trabalho de composição do abecedário eslavo e de tradução de livros religiosos
para a língua eslava foi iniciado nos finais dos anos 50 do século IX.
No ano 863, por encargo do Imperador bizantino Mikhail III, Constan-
tino e Metódio encabeçaram uma missão à Morávia, na qual o papel dirigen-
te pertenceu ao irmão mais novo. Durante a missão prepararam quadros de
sacerdotes de um certo número de habitantes nacionais e continuaram o tra-
balho de tradução da literatura canónica cristã para a língua eslava.
A actividade de Constantino e da sua missão foi recebida com hostili-
dade por parte dos trilingues que defendiam o dogma da legitimidade da
escrita apenas em três línguas: hebraico, grego e latim. Defendendo o direito
dos eslavos, tal como dos outros povos, à sua escrita, os dois irmãos deram
um passo decisivo: dirigiram-se ao chefe da Igreja de Roma a fim de, com a
Sagrada Escritura, dar provas textuais da legitimidade da língua eslava na
escrita. O Papa Adriano II, tendo em conta a elevada autoridade de Constan-
tino e Metódio entre os eslavos, assim como o aumento do poderio dos
jovens estados eslavos, deu aos irmãos o seu apoio oficial, e elevou os seus
discípulos a sacerdotes.
Em Roma, Constantino adoeceu e veio a falecer (a 14 de Fevereiro de
869) com a idade de 42 anos. Pouco antes da sua morte vestiu o hábito de
monge e recebeu o nome de Cirilo. Sob este nome, foi posteriormente cano-
nizado pela Igreja cristã. O Papa nomeou Metódio bispo, para o qual insti-
tuiu um episcopado eslavo especial como o objectivo de consolidar o cristia-
nismo na sua variante bizantina.
Depois da sua morte (em 885), os seus discípulos foram expulsos da
Morávia, o eslavo eclesiástico deixou de ser usado na igreja oficial e as tra-
duções de Constantino, Metódio e dos seus discípulos foram destruídas.
Os discípulos de Metódio, expulsos da Morávia, partiram para a Mace-
dónia, Bulgária e Croácia, onde continuaram o trabalho de criação de livros
na escrita eslava. Na Macedónia, um dos mais talentosos discípulos de
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 41

Metódio – Clemente – fundou uma escola (Escola literária de Ohrid), onde


foram produzidos uma série de manuscritos que continuaram a tradição das
traduções de Cirilo e Metódio. Na Bulgária, o centro da cultura livresca
eslava, localizado na cidade de Preslav – capital no período do reinado do
Czar Simeon (nos anos 893-927), incrementou o desenvolvimento da escrita
eslava. Chamou-se a este período o Século de Ouro da velha escrita eslava.
Ainda na Bulgária, trabalhou o monge Hrabr, autor do tratado largamente
conhecido Ao Redor das Letras, que narra a origem da escrita eslava.

Cristianismo e Difusão da Escrita no Estado da Rússia Antiga

No final do século X, o príncipe de Kiev Vladímir conduziu uma série


de reformas estatais, com o objectivo de fortalecer a sua própria autoridade.
Uma dessas reformas consistiu na adopção da religião dominante na Europa
– o Cristianismo.
Nesta época tinham-se já revelado as duas correntes da religião cristã: a
ocidental, com sede em Roma e a oriental com sede em Constantinopla. O
príncipe Vladímir escolheu a variante oriental, que mais tarde recebeu o
nome de Ortodoxia (em russo Pravoslaviye). Esta escolha confessional foi
determinada por um conjunto de razões fundamentais.
A primeira razão: os povos da Rússia Antiga há muito tempo tinham
contactos económicos, políticos e culturais com Bizâncio. A segunda razão:
aos príncipes russos agradou que o Patriarca (chefe das Igrejas do Oriente),
ao contrário do Papa de Roma, não considerasse o seu poder acima do secu-
lar e estivesse totalmente dependente do poderoso imperador bizantino. A
terceira razão tem a ver com o facto de que a Igreja grega autorizava o ser-
viço divino em língua nacional de qualquer povo.
No entanto, a crónica do ano de 987 aponta apenas para um motivo –
estético. Nesta, diz-se que, para que o príncipe Vladímir tivesse acolhido a
Fé grega, houve um factor decisivo: a narração feita por pessoas, que ele
enviou a diversos países para dar a conhecer as suas doutrinas religiosas,
sobre a beleza das igrejas bizantinas e a condução das cerimónias cristãs.
A Igreja russa conduz a sua história desde 1 de Agosto de 988 (ano
6496 segundo a antiga cronologia). No entanto, algumas pessoas da aristo-
cracia, inclusive a avó do príncipe Vladímir, a princesa Olga, adoptaram a Fé
cristã muito tempo antes. As crónicas informam que o baptismo na Rússia
foi tranquilamente aceite. Porém, o Cristianismo não se estabeleceu logo.
Os Eslavos orientais não lutaram contra a nova religião e receberam no
seu panteão mais um deus. Na Rússia, começava a chamada época da crença
dupla, i.e., apesar de se realizarem missas cristãs, as pessoas continuavam a
rezar aos seus antigos deuses e a oferecer-lhes sacrifícios. Algumas tradições
e ritos pagãos antigos conservaram-se até hoje. Por exemplo, enfeitar a árvo-
42 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

re de Natal na noite de Ano Novo, mascarar-se, pintar-se, acreditar em


sonhos, acreditar no destino e em palpites, tomar decisões por sorteio, etc.
O Cristianismo desempenhou um papel importante na unificação do
Estado da Rússia Antiga, na luta de libertação nacional dos Eslavos orientais
contra o jugo tártaro-mongol, nas relações com os estados europeus e no
desenvolvimento da arquitectura e da pintura; contribuiu, também, para a
criação da literatura original e para a difusão da escrita.
A escrita, que chegou à Rússia no século X, começou a difundir-se
rapidamente não só entre os fidalgos, mas também entre o povo. As crónicas
testemunham que as primeiras escolas surgiram no ano em que a Rússia
acolheu o Cristianismo. Os mosteiros tornaram-se importantes centros da
cultura escrita, junto dos quais funcionaram escolas, onde se ensinava a ler,
escrever, contar e eram transmitidos conhecimentos fundamentais de história
e geografia. No entanto, era dada uma atenção especial ao acesso à língua
literária da Rússia Antiga.
Essa ideia resultou do facto de a nova Fé cristã ter glorificado a alfabe-
tização. Por isso, o próprio príncipe Vladímir, a sua drujina e os seus filhos
começaram a estudar na escola. Já no tempo do seu filho, Iaroslav, a quem
chamavam o Sábio, surgiu a classe docente e começou a reprodução sistemá-
tica de livros.
A alfabetização na Rússia Antiga tornou-se um fenómeno de massas.
Todos estudavam: fidalgos, comerciantes e habitantes simples da cidade. A
escrita era conhecida também nas zonas rurais. Nas paredes das igrejas anti-
gas, construídas longe da cidade, por baixo da camada de estuque, foi encon-
trada uma grande quantidade de graffiti, os quais representavam autógrafos
e, por vezes, frases completas de devotos. Em cada aldeia existiam várias
pessoas alfabetizadas que ajudavam a redigir súplicas (requerimentos), sendo
que estas exigiam determinado estilo de escrita. A escrita serviu as necessi-
dades da Igreja, a correspondência oficial e comercial, usou-se na literatura
histórica, de memórias e de ficção, e usou-se até na correspondência privada.
Naquele tempo não existia papel, escrevia-se em pergaminho que vinha
de Bizâncio e que era muito caro. A gente simples escrevia nas tiras da cas-
ca de bétula, gravando os caracteres na sua superfície lisa.
Depois da aceitação do Cristianismo na Rússia como religião oficial,
chegaram muitos manuscritos de países eslavos meridionais e de Bizâncio,
com os quais rapidamente se familiarizaram, e que copiaram e difundiram
por todas as cidades e aldeias. A escrita e a língua literária tornaram-se um
meio de instrução de massas e de educação moral do povo, uma condição de
progresso e de desenvolvimento da ciência e cultura.
Até ao início do século XIV, os copistas da Rússia Antiga produziram,
pelo menos, cem mil exemplares de manuscritos de muitas páginas. Para
realizar o serviço divino foram precisos cerca de mil textos diferentes – e as
igrejas na Rússia ascendiam à ordem dos milhares. Fica, portanto, à nossa
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 43

imaginação a quantidade de livros existentes em cada igreja. Perto de cada


templo surgiu um círculo de pessoas alfabetizadas que se dedicavam a copiar
livros. A necessidade destes era grande, visto que era impossível memorizar
o serviço divino ortodoxo.
Infelizmente, e até aos dias de hoje, conservou-se cerca de um por cento
da quantidade real de livros antigos que se encontravam em circulação. Estes
livros desapareceram desde as invasões dos povos nómadas e dos massacres
tártaros ou devido aos incêndios. Alguns livros ficaram danificados de tanto
serem lidos (ou como se diz em russo lidos até fazer buracos) e muitos
manuscritos foram ainda roubados.
A escrita dos primeiros apóstolos eslavos, Cirilo e Metódio, chegou à
Rússia com a cristianização, e tornou-se, já no século XI, um instrumento de
alfabetização em massa, que se adiantou em alguns séculos a muitos países
europeus. As obras da escrita russa antiga que se conseguiram salvar estão
cuidadosamente guardadas em arquivos e bibliotecas e são minuciosamente
estudadas por investigadores. Nos últimos anos renasceu, com uma nova
força, o interesse pela história do Estado da Rússia Antiga e ainda hoje se
procuram manuscritos antigos. Muitos dos que foram encontrados ainda não
foram lidos. Todos eles são património nacional do povo russo e testemunho
da atividade criativa dos seus antepassados longínquos.

Formação da Língua Nacional Russa

No século XVIII muitos livros começaram a ser traduzidos. Surgiram, no


entanto, problemas na tradução de termos estrangeiros, pois as palavras russas
não eram suficientes. A utilização de palavras era bastante irregular porque
não havia uma norma geral e a utilização da língua, por parte das várias cama-
das sociais, não era estilisticamente diferenciada. Frequentemente, e por vezes
sem qualquer razão, encontravam-se palavras com sentido vago na escrita.
Todavia, na linguagem falada, essas palavras raramente surgiam.
Nesta época foi fundada a Academia das Letras (1783) que tinha como
objectivo reunir e aperfeiçoar as palavras russas, bem como demonstrar a sua
amplitude e beleza. Foram desenvolvidos a atividade editorial e o comércio
livreiro, criadas bibliotecas públicas e deram-se grandes passos para a instru-
ção do povo.
Era do entendimento geral que, sem a unificação da língua, não era pos-
sível formar a nação russa, fomentar a cultura, a indústria, as relações
comerciais e alfabetização geral.
Neste contexto podemos salientar alguns nomes importantes dos intelec-
tuais russos como Sumarókov, Trediakóvski, Lomonóssov. A.P. Sumarokov
unificou os adjetivos e lutou contra as particularidades da escrita amanuense.
V.K. Trediakovski fez estudos relevantes nas áreas da ortografia e da gramáti-
44 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

ca. M.V. Lomonossov estabeleceu diferenças entre a língua eslava eclesiástica


e a língua russa daquela época, distinguindo três estilos linguísticos.
Entretanto, com o surgimento de temas de teor jornalístico, as fronteiras
entre os vários estilos foram quebradas. No fim do classicismo chegou-se à
conclusão de que os meios da língua não dependem do género literário, mas
do conteúdo.
Nos anos sessenta do século XVIII, formou-se uma nova linguagem
erudita e unificada. Para tal muito contribuíram autores como N.I. Nóvikov,
D.I. Fonvízin, A.N. Radíchtchev, I.A. Krylov, entre outros. Foi esta lingua-
gem que se constituiu como fundamento da língua que viria a preencher o
século de ouro da literatura russa com o génio do "Camões russo" – Alek-
sandr Serguéievitch Púchkin que deu à expressão russa uma identidade
nacional, elaborando, com base nas línguas culta e popular, um padrão que
foi aceite por toda a comunidade nacional. Mais tarde, esse trabalho foi cris-
talizado pelos maiores escritores da civilização russa como Lev Nikoláievitch
Tolstoi, Fiódor Mikhálovitch Dostoievski, Anton Pávlovitch Tchékhov, Ivan
Alekséievitch Búnin, e muitos outros.

Referências Bibliográficas
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gos, referidos na Vida de Constantino, o Filósofo. Notícias de Língua e
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[A origem da linguagem literária e da escrita russas]. Moskva: Uchpedgiz.
A DIVERSIDADE LINGUÍSTICA
DA RÚSSIA CONTEMPORÂNEA

Elena Bulakh
António Eduardo Mendonça

Данная статья посвящена лингвистическому разнообразию современной


России. Помимо государственного языка Российской Федерации в ней
описываются многочисленные национальные языки республик и регионов,
некоторые из которых находятся под угрозой исчезновения. Анализ
производится с использованием генеалогической классификации языков.
Ключевые слова: Россия, лингвистическое разнообразие, языковые семьи,
языки малых народов.

Introdução
Para os nascidos e criados em Portugal, a homogeneidade étnica e lin-
guística parece ser da natureza dos estados contemporâneos, habituados que
estamos à quase uniformidade que nos carateriza. Entre nós sobrevive, é
certo, uma língua co-oficial: o mirandês, essa intrusão asturo-leonesa que
nos ficou deste lado da fronteira, e que hoje goza de proteção jurídica como
idioma minoritário; e de outros dois enclaves linguísticos encontramos tam-
bém menção – um no extremo norte e igualmente de afinidade leonesa, o
guadramilês-riodonorês, outro na borda alentejana, o barranquenho. Só que,
em qualquer um destes casos, a dimensão geográfica e demográfica sempre
foi limitada: eram redutos periféricos, nunca excedendo as centenas ou os
escassos milhares de indivíduos cuja língua materna não seria o português;
meras curiosidades regionais, nada que levasse a nossa percepção a questio-
nar sequer a homogeneidade étnica e linguística do espaço português. E,
curiosamente, só a entrada no país de dezenas de milhares de imigrantes
oriundos do leste europeu, desde finais da década de noventa, nos começou a
habituar a que outras línguas entre nós residissem.
46 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Tamanha uniformidade, porém, é exceção e não regra na Europa e no


Mundo atuais. De facto, a maioria dos estados contemporâneos são pluriét-
nicos e plurilingues, albergando fronteiras adentro uma diversidade de povos
e de línguas muitas vezes nem sequer mutuamente inteligíveis. A questão
poderá ter a ver com o tamanho, pensarão alguns: o nosso curto território
não propiciaria a diversidade, não bastaria para recortar grupos diversos na
origem e no falar. O argumento parece razoável, mas uma breve análise da
geografia europeia revela a sua insuficiência: países bem menos extensos do
que o nosso são até exemplos de plurilinguismo e de diversidade étnicos,
como são os casos da Suíça ou da Bélgica.
Mas é claro que o tamanho conta: basta olharmos para o mapa, e intuí-
mos que seria improvável a homogeneidade dos maiores países que nele se
desenham; dificilmente a sua extensão evitaria incorporar uma variedade de
povos e comunidades, de gentes diversas que a História juntou dentro das
mesmas fronteiras. E em nenhum caso será isto tão evidente como ao abor-
darmos o mais vasto país do Mundo: a Rússia.
Nas páginas que se seguem, vamos então olhar para a extraordinária
diversidade linguística da actual Federação Russa, tentando traçar um quadro
– tão detalhado e tão metódico quanto as fontes e o espaço o permitam, mas
sem pretensões de exaustividade – do seu mosaico linguístico contemporâ-
neo. O trabalho organiza-se segundo a tipologia das famílias linguísticas
mais comummente aceite: primeiro a indo-europeia, com a língua russa à
cabeça; de seguida as famílias uraliana, caucásica e altaica; por último, a
paleosiberiana e a esquimó-aleuta – e salientemos que não iremos aqui dis-
cutir a pertinência ou a solidez tipológica de alguns destes agrupamentos.
Examinaremos assim todas as línguas co-oficiais da Federação, debruçando-
-nos também sobre as pequenas minorias linguísticas, por vezes tangentes à
extinção. Salvo menção em contrário, os números relativos aos falantes
resultam do último recenseamento geral da população realizado na Rússia,
no ano de 2010.
Uma nota do foro ortográfico: aportuguesámos os corónimos e topóni-
mos russos quando julgámos consolidada a sua versão portuguesa; abstive-
mo-nos de o fazer sempre que assim não acontecesse, ou mesmo, num ou
noutro caso, quando as versões propostas nos pareceram mais discutíveis ou
menos felizes – como será o caso da grafia brasileira «Camecháteca», tão
arrevesada que não é fácil distinguir nela a península da Kamchatka…

A diversidade linguística da Rússia contemporânea:


A) Línguas Indo-Europeias
1) A Língua Russa: um dos principais idiomas do mundo contemporâ-
neo e de longe a mais importante das línguas eslavas, contará hoje com cerca
de cento e sessenta milhões de falantes nativos – a que acrescem mais algu-
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 47

mas dezenas de milhões de russófonos, um pouco por todo o planeta (com


particular ênfase nas antigas repúblicas soviéticas e nos destinos históricos
da Diáspora russa). Língua veicular da Federação Russa, é a única com esta-
tuto oficial estatuído pelo poder central – embora a Constituição permita às
diferentes Repúblicas conferirem às respectivas línguas regionais o estatuto
de co-oficiais.
2) Outras línguas da Família Indo-Europeia
I) Osseta: idioma do ramo indo-irânico, falado numa região montanhosa
do Cáucaso central, politicamente dividida entre a Ossétia do Norte-Alânia
(República Autónoma da Federação Russa) e a Ossétia do Sul (região seces-
sionista da Geórgia, independente de facto e como tal reconhecida pela Rús-
sia); em ambos os casos, é língua oficial, a par do russo (e do georgiano na
Ossétia do Sul). Conta cerca de meio milhão de falantes, 90% dos quais do
lado russo da fronteira.
II) Alemão: a partir do século XVIII, colonos alemães estabelecem-se
em diferentes regiões do território russo; na sua quase totalidade, o domínio
da língua original é hoje muito limitado, como se comprovou na chegada a
território alemão dos primeiros imigrantes que aproveitaram a abertura pós-
-soviética das fronteiras.
III) Íidiche: língua das comunidades judaicas asquenazes da Diáspora
no centro e no leste da Europa, poderá surpreender a sua inclusão na família
indo-europeia – mas o íidiche radica no alto alemão, tendo-se autonomizado
no final da Idade Média; à base germânica foram sendo adicionados elemen-
tos hebraicos e eslavos, em grau e frequência variáveis consoante as regiões
onde as comunidades viviam. Outrora comum em todas as áreas de concen-
tração judaica, esta língua estará hoje quase restringida à República Autó-
noma Judaica de Birobidjan, o «Sião soviético» estabelecido em 1934 no
extremo oriente siberiano, junto à fronteira com a China; esta república foi
uma das mais curiosas experiências da política soviética das nacionalidades,
que postulava o direito de todos os grupos étnicos reconhecidos e autónomos
a poderem viver em territórios próprios. Na atualidade, pouco mais de um
por cento da população local é composta por judeus asquenazes, tendo havi-
do nas últimas décadas uma forte emigração para Israel. A língua íidiche
goza de proteção especial na região, havendo escolas que a consagram como
língua materna.
IV) Romani: a dispersão das populações Rom (comummente designadas
por «ciganos») atingiu também o território russo; de acordo com o censo de
2002, havia cerca de 160.000 falantes.

B) Línguas Uralianas: devem o nome aos Montes Urais, que delimitam


Europa e Ásia; em território russo, estão representados vários ramos desta
família:
1) Línguas Balto-fínicas:
48 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

a. Carélio: finlandeses e russos procederam em 1918 a uma divisão


fronteiriça que dividiu a região da Carélia; do lado russo, persistem
atualmente cerca de oitenta mil indivíduos que têm no carélio, pró-
ximo do finlandês, a sua língua materna (tal como, do lado finlandês,
ainda hoje sobrevivem comunidades russófonas);
b. Vepes ou Vepesiano: minoria étnica da Carélia; cerca de 3.600 falan-
tes. Caso excepcional na Federação, recorre ao alfabeto latino adop-
tado quando a região pertencia ainda à Finlândia.
2) Línguas Permianas:
a. Komi (subdividdida em Komi-Permiak e Komi-Zyrian): língua co-
-oficial da República Komi, na borda oeste dos Montes Urais, e fala-
da também em regiões limítrofes; usada por pouco mais de trezentas
mil pessoas;
b. Udmurta: língua co-oficial da Udmúrtia, situada no extremo leste
europeu, à beira dos Montes Urais, vizinha a sul da anterior; conta
com 460.000 falantes;
3) Língua Khanti: menos de dez mil falantes, e dividida em várias dia-
letos de inteligibilidade limitada.
4) Língua Mansi: vizinha da anterior no distrito autónomo de Khanti-
Mansi, costumava ser com ela englobada numa subfamília ob-úgrica; já terá
baixado da perigosa fasquia dos mil falantes.
5) Língua Mari: co-oficial na República Mari (Mari El), contará mais
de meio milhão de locutores.
6) Língua Mordoviana: co-oficial na República da Mordóvia: cerca de
430.000 locutores.
7) Línguas Samoiedas: conjunto de idiomas minoritários falados em
ambas as vertentes da zona norte dos Montes Urais, todos em situação crítica
ou ameaçada, e limitados aos grupos etários mais idosos; estão documenta-
das pelo menos duas línguas já extintas. Revelam grande proximidade entre
si, indiciando uma separação recente; na sua maioria, só nas últimas duas
décadas foram dotados de escritas próprias.
a. Nganasan: conta com pouco mais de cem falantes;
b. Enet: o censo de 2010 regista apenas 43 falantes;
c. Nenet: cerca de vinte mil falantes, e muito próxima da anterior, que
tem vindo a substituir gradualmente; como curiosidade, há a registar
a internacionalização da palavra que em nenet designa um casaco em
pele, e que já entrou também no léxico português: a ‘parka’...
d. Selkup: menos de dois mil indivíduos.
8) Línguas Sami: correspondem aos povos sami (outrora designado por
“lapões”), que habitam as regiões norte da Escandinávia e a Península de
Kola, no Ártico russo. Esta área linguística forma um continuum onde as
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 49

línguas vizinhas são mutuamente inteligíveis, qualidade que se perde quando


os falantes provêm de regiões mais afastadas entre si.
Na parte russa, encontramos apenas pequeníssimas comunidades de algu-
mas dezenas ou poucas centenas de habitantes: em termos demográficos, o
mais falado estes idiomas – o sami de Kildin – não ultrapassará o meio milhar
de indivíduos, havendo casos de línguas extintas e uma outra – o sami de Ker
– da qual em 2010 restavam apenas dois falantes nativos, ambos já idosos.

C) Línguas Caucásicas (também era usado “ibero-caucásicas, designa-


ção hoje caída em desuso): “a montanha das línguas”, chamava ao Cáucaso o
filólogo e académico francês Georges Dumézil (embora a expressão seja
provavelmente de origem árabe); ao estudo dos seus falares e culturas con-
sagrou Dumézil a carreira e a vida. Não haverá outra zona do mundo com tal
variedade de línguas e dialetos: não é raro, no Cáucaso, mudarmos de língua
ao mudarmos de vale; e que o idioma de uma vertente não seja inteligível
para os povoados da vertente fronteira. Para mais, nem todas estas línguas
pertencem à família caucásica – como são os casos do osseta (indo-europeu)
e do carachai-balcar e azeri ou azerbaijanês (túrquicos). O melhor exemplo
da complexidade linguística do Cáucaso é dado pela República Autónoma
do Daguestão, onde a montanha mergulha no Mar Cáspio: ali, para contem-
plar todas as minorias étnicas e linguísticas significativas no território, ao
russo se vieram juntar nada menos de catorze outros idiomas e dialetos co-
-oficiais…
No Cáucaso do Norte, território russo (a sul, estão as antigas repúblicas
soviéticas da Geórgia e do Azerbaijão), identificam-se as seguintes línguas:
a) Abaza: língua co-oficial da República do Carachai-Circássia, refe-
renciada pela sua complexidade fonética (63 consoantes); falada por
trinta e cinco mil pessoas na Rússia (onde recorre ao alfabeto ciríli-
co) e dez mil na Turquia (onde se escreve em caracteres latinos);
b) Adigue: língua co-oficial na República Adigueia; 150.000 locutores;
c) Andi: co-oficial na República do Daguestão; em progressão demo-
gráfica, é hoje falada por cerca de 25.000 pessoas – quando eram
apenas 8.000 no censo de 1925.
d) Avar: a maior concentração de falantes encontra-se na República do
Daguestão, onde goza do estatuto de co-oficial – havendo pequenos
grupos espalhados por outras zonas do Cáucaso; no total, é usada por
perto de um milhão de indivíduos.
e) Cabardino: co-oficial na República da Cabardino-Balcária; cerca de
seiscentos mil falantes;
f) Checheno: língua co-oficial na República da Chechénia, famosa por
más razões; conta à volta de um milhão e trezentos mil utilizadores;
g) Dargínico: co-oficial na República do Daguestão; ultrapassará o
meio milhão de falantes;
50 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

h) Hunzib: dois mil falantes no Daguestão; apesar de serem catorze as


línguas que nesta república disfrutam da condição de co-oficiais, o
hunzib está fora desta categoria;
i) Inguche: língua co-oficial na República da Inguchétia, ultrapassa os
quatrocentos mil falantes.
j) Kumyk: do grupo étnico do mesmo nome, é co-oficial na República
do Daguestão, onde chegou a gozar de um estatuto de língua franca
para a comunicação interétnica; falada hoje por 450.000 pessoas;
k) Lak: língua do grupo étnico do mesmo nome, co-oficial na Repúbli-
ca do Daguestão; regista 120.000 locutores;
Tabassarão: língua do grupo étnico do mesmo nome, co-oficial na
República do Daguestão; perto de 130.000 falantes.
Tsez: língua do grupo étnico do mesmo nome (Daguestão); perto de
20.000 falantes.

D) Línguas Altaicas (grupo polémico e crescentemente questionado),


subdivididas em:
1) Línguas Túrquicas, Turcomanas, ou ainda Turco-Tártaras (são de
evitar as variantes “Turcas” – sendo o turco, língua oficial da Turquia, um
dos idiomas desta família – ou “Turcomenas” – por uma razão idêntica: o
turcomeno é a língua oficial do Turcomenistão ou Turquemenistão):
a) Altai (não confundir com altaica): língua co-oficial na República do
mesmo nome, que ambas devem aos Montes Altai; perto de 65.000
falantes;
b) Azeri ou Azerbaijanês: falada por vinte e cinco milhões de indiví-
duos, numa faixa que se estende da República Autónoma do Dagues-
tão (Rússia) até ao norte do Irão, abrangendo o Azerbaijão e algumas
zonas do interior da Geórgia e do Iraque. De entre as línguas desta
família, é a mais próxima do turco, sendo em regra mutuamente inte-
ligíveis. Caso porventura único, esta língua é hoje escrita em três
alfabetos distintos: cirílico no Daguestão; latino em variante turca no
Azerbaijão, que o adotou no período pós-soviético em substituição
do cirílico; e árabe no Irão.
c) Bashir: língua co-oficial na República do Bascortostão (sul dos
Urais); contará quase milhão e meio de falantes.
d) Cacasse: língua da etnia do mesmo nome, co-oficial na República da
Cacássia (centro-sul da Sibéria); sessenta mil falantes;
e) Carachai-Balcar: língua co-oficial nas Repúblicas Cabardino-
-Balcária e Carachai-Circássia (Cáucaso); falada por perto de trezen-
tas mil pessoas;
f) Chuvache: língua co-oficial na República da Chuvachia, situada na
parte europeia da Rússia; regista um milhão e trezentos mil falantes;
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 51

g) Dolgan: perto de cinco mil indivíduos no extremo norte siberiano;


por vezes classificada como dialeto do iacuto;
h) Nogai: falada por cerca de noventa mil pessoas no sudoeste da Rús-
sia;
i) Tártara: com perto de seis milhões e meio de falantes, é a mais
comum das línguas túrquicas da Rússia; co-oficial no Tartaristão
(parte europeia da Fderação);
j) Tuvana: língua co-oficial na República Tuva (extremo sul da Sibé-
ria); 260.000 falantes;
l) Iacuta: língua co-oficial na República Sakha, designação oficial da
Iacútia (zona centro-norte da Sibéria; com os seus três milhões de
km², é a mais vasta das regiões da Federação); falada por cerca de
450.000 indivíduos.
2) Línguas Mongólicas, com dois exemplos em território russo; são
faladas nas duas únicas Repúblicas Autónomas de população budista da
Federação:
a. Buriata, língua co-oficial da Buriátia – região situada imediatamente
a norte da fronteira com a Mongólia, e que mais não é do que o pro-
longamento do espaço mongol para o interior das fronteiras russas
(tal como a Mongólia Interior o é em relação à República Popular da
China); falada por 440.000 indivíduos.
b. Calmique, língua co-oficial da Calmíquia, república situada na mar-
gem norte do Mar Cáspio – e única região de população budista no
continente europeu; 160.000 falantes. Em rápido declínio até à déca-
da de 1980, foi reavivada durante os anos da Perestroika, numa
dinâmica que persiste nos nossos dias.
3) Línguas Tungúsicas: a par das famílias de línguas paleosoberiana e
esquimó-aleuta, que examinaremos de seguida, são faladas por algumas das
mais ancestrais e remotas comunidades siberianas, de economias baseadas
na pesca, na caça e na criação de renas. São idiomas que, na grande maioria,
se encontram em risco de extinção, tendo até alguns já perdido os seus últi-
mos falantes nativos. Muitas destas populações enfrentam atualmente uma
dupla pressão – exercida pelo russo, língua oficial dominante, e pelas línguas
co-oficiais regionais; assim, por exemplo, os jovens Evens da República
Sakha são escolarizados em russo e em iacuto, remetendo a sua língua nativa
para um cada vez mais restrito uso familiar e doméstico. Alguns destes
idiomas não desenvolveram sequer uma escrita própria, ou apenas a defini-
ram recentemente.
a. Evenki: com uns meros trinta mil falantes, será apesar disso a mais
comum das línguas desta família; usada na Sibéria Central e numa
pequena zona da China.
b. Even: cerca de sete mil falantes, em aldeias da costa da Kamchatka e
do Mar de Okhotsk. Refira-se como curiosidade o aparecimento
52 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

durante o século XX, em algumas aldeias da região ártica onde os


casamentos mistos se tornaram comuns, de um dialecto do russo
com forte influência even.
c. Nanai: cerca de 3900 falantes, parte deles na China. Apesar do redu-
zido efetivo, o futuro da língua parece assegurado pelo dinamismo
identitário que promove a sua aprendizagem em meio escolar e a
publicação de obras em nanai.
d. Oroch: pouco mais de duzentos falantes, segundo o censo de 2002 –
e apenas oito em 2010. É exemplo de uma língua que apenas no
século XXI foi dotada de escrita própria.
e. Orok: menos de cinquenta indivíduos na ilha de Sacalina – e, à data
do último censo, mais três numa ilha japonesa próxima.
f. Udege: moribunda, terá atualmente cerca de cem falantes numa
pequena zona do Extremo Oriente russo.
g. Ulchi: no Extremo Oriente russo, com pouco mais de cento e cin-
quenta falantes, de acordo com o censo de 2010 – quando, ainda em
1989, mais de mil membros deste grupo étnico declaravam falar a
sua língua.

Alguns linguistas incluem na família altaica, como ramo específico, a


língua coreana, falada no espaço russo por uma comunidade de mais de vinte
mil indivíduos que vivem na parte sul da ilha Sacalina; são os descendentes
de imigrantes ali instalados pela então potência colonial japonesa nas déca-
das de 1930 e 1940, e que na ilha acabaram por se radicar, mantendo até aos
nossos dias a sua língua ancestral.

E) Línguas Paleosiberianas ou Paleoasiáticas: formada por defeito, com


base na geografia mais do que na genética, esta família engloba um conjunto de
idiomas cujos traços comuns são questionáveis, havendo linguistas que autono-
mizam os três ramos em outras tantas famílias de pleno direito; segura será ape-
nas a anterioridade destes idiomas em relação aos que hoje predominam na área
siberiana. Todos eles se encontram criticamente ameaçados, uma vez que os
mais jovens tendem hoje a recorrer exclusivamente à língua russa.
1) Nivhke: apresenta apenas uma proximidade lexical, e mesmo essa
limitada, com as restantes línguas paleosiberianas; em rigor, é uma
língua isolada. Conta cerca de 700 falantes nativos na metade norte
da ilha Sacalina.
2) Yukaghir: terá hoje cerca de setenta falantes, em aldeias do Extremo
Oriente russo. Alguns autores enfatizam um distante parentesco com
as línguas urálicas, chegando a propor a definição de uma família
urálico-yukaghir; a questão permanece controversa.
3) Grupo Chukotka-Kamchatka: correspondente a um grupo de pequenas
comunidades no nordeste siberiano, abrangendo no total cerca de treze
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 53

mil indivíduos; incluía alguns idiomas hoje extintos, como o kerek –


cujos falantes adoptaram primeiro a língua dos Chukotkas, maioritá-
rios na região, e presentemente se expressam apenas em russo.

F) Línguas Esquimó-Aleuta: família que alguns linguistas aproximam das


línguas urálicas, constituindo uma família esquimó-urálica, e outros ainda
englobam nas línguas paleosiberianas. Nenhuma destas teses gera consenso.
1) Yupik: subgrupo que abrange as línguas faladas no extremo nordeste
da Sibéria e também em regiões costeiras do Alasca (hoje território
dos Estados Unidos, mas que pertenceu ao Império Russo até 1867);
quinze mil falantes no total da subfamília, menos de trezentos na
Rússia – onde um dos idiomas, o Sirenik, se extinguiu em Janeiro de
1997, com a morte da sua última falante nativa;
2) Aleuta de Medni: a Ilha Medni (ou Ilha do Cobre) integra o arquipé-
lago da Comandante, ao largo da Kamchatka; em 1970, os habitantes
locais foram transferidos para a vizinha ilha de Bering. A língua
local combina elementos russos com a base aleuta, a ponto de alguns
linguistas a considerarem um crioulo; em 2004, restavam cinco
falantes, todos idosos. No total, a subfamília aleuta, dividida entre a
Rússia e os Estados Unidos, não ultrapassará os cento e cinquenta
falantes, e o desaparecimento parece inevitável.

Menção particular merece a língua ket, falada hoje por cerca de duas
centenas de pessoas de uma região da Sibéria Central: será a última sobrevi-
vente das línguas ienisseianas, que uma tese recente – mas crescentemente
aceite – tem associado às línguas dene de povos nativos da América do Nor-
te para formar a família dene-ienisseiana. A comprovar-se a afinidade, seria
o único caso identificado de parentesco entre línguas dos dois continentes.
Extinta em território russo estará a família linguística Ainu (por vezes
incorretamente englobada na família paleosiberiana): correspondia às popu-
lações da metade sul da ilha Sacalina, onde o último falante morreu em
1994, e abrangia também o arquipélago das Curilhas; uma última língua ainu
é ainda falada no Norte do Japão, onde sobrevive na voz de uma escassa
dezena e meia de habitantes da ilha de Hokkaido (embora a sua revitalização
desperte um crescente interesse local). Línguas das ex-repúblicas soviéticas
faladas em território russo: as migrações internas comuns na época soviética
– pois que do Báltico ao Pacífico era um mesmo e único país –, adicionadas
à imigração pós-soviética (provinda sobretudo dos mais pobres de entre os
novos países, como sejam o Tajiquistão, o Quirguistão e a Moldova), resul-
taram na formação de várias minorias nacionais radicadas em território rus-
so: os ucranianos são os mais numerosos, mas também há importantes
comunidades bielorrussas, arménias, georgianas... Na sua maioria, estas
54 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

populações encontram-se hoje fortemente russificadas, tendendo a reservar a


língua materna para usos familiares e domésticos.
E haveria ainda que lembrar os centos de milhares de imigrantes chine-
ses que hoje como que transbordaram para território russo, nas regiões pró-
ximas à fronteira com a República Popular da China: ali prosperam, e ali
mantêm o uso da(s) língua(s) materna(s)…

Em suma: perto de seis dezenas de idiomas, não contabilizando as inú-


meras variantes dialetais. Um mapa de uma riqueza rara, que importa conti-
nuar a estudar e a valorizar.

Referências:
Lähteenmäki, Mika; Vanhala-Aniszewski, Marjatta: Language Ideologies in
Transition: Multilingualism in Russia; Peter Lang, s/ local, 2010

Páginas Electrónicas
* http://en.wikipedia.org/wiki/Languages_of_Russia e páginas do mesmo ende-
reço para as quais tem ligação – consultada em 15/12/2011; foram igual-
mente consultadas as versões portuguesa e russa das mesmas páginas;
* http://int.rgo.ru/news/minority-languages-in-russia-under-threat-of-extinction/
– consultada em 16/12/2011;
* http://www.ethnologue.com/show_country.asp?name=ru e páginas do mesmo
endereço para as quais tem ligação – consultada a 14/12/2011;
* http://www.peoples.org.ru/eng_index.html e páginas do mesmo endereço para
as quais tem ligação – consultada a 14/12/2011;
* http://www.perepis-2010.ru/ http://www.unesco.org/culture/languages-
-atlas/index.php e páginas do mesmo endereço para as quais tem ligação
– consultada a 17/12/2011.
* http://www.unesco.org/culture/languages-atlas/index.php e páginas do mesmo
endereço para as quais tem ligação – consultada a 14/12/2011.
Mapa linguístico da Rússia, parte europeia, © Ethnologue, reprodução autorizada
Mapa linguístico da Rússia, parte asiática, © Ethnologue, reprodução autorizada
LEÃO TOLSTÓI – (DES)MITIFICAÇÃO DA HISTÓRIA
E AS SUAS LEITURAS1

Ana Prokopyshyn

Во "2-ом Послесловии" Л.Н. Толстого к своему великому шедевру «Война и Мир»


([1846] 1997) заложена парадоксальная интерпретация истории с учетом
философской и социальной точек зрения. Говоря о “Силах, которые перемещают
Нации” (см. Gardiner, 1966), мы будем развивать две основные темы: 1) история
как миф или миф, как история 2) как видел писатель исторические события и
какова интерпретация исторической фигуры у Толстого.
Ключевые слова: история, социология, мифы народов.

1. Introdução
Apesar de, comparativamente à sua qualidade de romancista, não ser
(re)conhecido como filósofo, o emblemático Leão Tolstói tem um papel
crítico no seu tempo, que transparece além dos seus romances inquestiona-
velmente sociais e históricos, influentes até aos dias de hoje. Tolstói deixa-
-nos uma reflexão teórica sobre a sociedade e as nações, onde desenvolve
uma profunda repercussão crítica, da qual sobressai um evidente desconforto
em aceitar os métodos de investigação e interpretação histórica convencio-
nais, e uma constante procura de explicação dos fenómenos históricos atra-
vés de leis humanas, com plena consciência da dificuldade que daí advém,
leia-se:

1
Este artigo é uma adaptação resumida de uma comunicação apresentada pela autora no
Congresso Internacional «A Europa das Nacionalidades. Mitos de Origem: Discursos
Modernos e Pós-Modernos, no dia 10 de Maio de 2011, na Universidade de Aveiro,
Portugal. (cf.: http://europe-nations.web.ua.pt/index.htm)
56 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

A nova História repudiou as crenças antigas sem as substituir por teo-


rias novas, tendo a lógica desta situação obrigado os historiadores (…) a
chegarem ao mesmo ponto por outras vias, admitindo assim:
1.º que os povos são governados por indivíduos particulares e,
2.º existe um certo objectivo para o qual se encaminham os povos2 e
toda a humanidade (Tolstói, 1997:573).

É com base neste postulado, brevemente comparado a outras concep-


ções/ interpretações da História Tolstói, que desenvolveremos aqui duas
questões centrais: 1) Até que ponto o seu discurso pode ser considerado miti-
ficador, ou, por outro lado, desmitificador? 2) Onde radica a actualidade e
actuância do pensamento e interpretação da História em Tolstói?
O que defenderemos, e restringiremos a nossa análise a este texto de
cariz filosófico que encerra o grandioso romance Guerra e Paz (1997
[1846]), “2º Epílogo”, há um discurso desmitificador ou desmitificante da
História, mas paradoxalmente, mitificador, no que diz respeito à “Dificulda-
de de Definir as Forças que Movem as Nações” (cf. Gardiner, 1966).

A origem está na força ou é a força que está na origem? Tolstói escreve:


«Uma locomotiva movimenta-se. Pergunta-se: por que anda? Um campo-
nês diz: é o Diabo que a faz avançar. Outro diz: a locomotiva movimenta-
-se porque as rodas giram. Um terceiro: a causa do movimento está no
fumo que o vento arrasta». (Tolstói, 1997:579)

2. O Discurso (des)mitificador de Tolstói


Na ordem da linha seguida nesta breve reflexão, assumimos, portanto,
que, pelo menos neste texto mais filosófico de Tolstói, há um discurso miti-
ficador ou mitificante da História, e, ao mesmo tempo desmitificador/ desmi-
tificante. Sublinhe-se que na produção narrativa ficcional, i.e. no âmago do
romance Tolstóiano, também o encontramos, embora não nos ocupemos
desse tipo de texto aqui3.
Para tratar o discurso de Tolstói como mitificador (ou não), há que, no
entanto, dar a entender qual a interpretação que fazemos da palavra mito, já
que a mesma adquiriu várias acepções ao longo da História da humanidade,
e a sua entrada num dicionário comum é extensa. Referindo algumas inter-

2
Advertimos para o facto de, noutras edições, ao invés da palavra “povos”, encontramos
“nações” (cf. Gardiner, 1966).
3
Do ponto de vista científico, somos obrigados a considerar esse tipo de textos menos
teórico, enquadrando-os numa tipologia diferente: na mitistória (termo datado do séc.
XIX), ou seja, uma narrativa que mescla a História e o mito, mas o mito com a inter-
pretação que primeiramente referimos acima: como lenda, fábula, etc. (cf.
Houaiss:2001).
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 57

pretações do que é o mito – as mais correntes, pelo menos, e que nos interes-
sam na nossa análise – «o relato fantástico de tradição oral, ger[almente]
protagonizado por seres que encarnam, sob forma simbólica, as forças da
natureza e os aspectos gerais da condição humana; lenda, fábula, mitologia
[…]; narrativa acerca dos tempos heróicos, que guarda um fundo de verdade
[…]; relato simbólico, passado de geração em geração dentro de um grupo,
que narra e explica a origem de determinado fenómeno, ser vivo, acidente
geográfico, instituição, costume social etc. ex.: o m[ito] da criação do mundo
[…]; representação de factos e/ou personagens históricos, freq[uentemente]
deformados, amplificados através do imaginário colectivo e de longas tradi-
ções literárias orais ou escritas […]; exposição alegórica de uma ideia qual-
quer, de uma doutrina ou teoria filosófica; fábula, alegoria. ex.: <o m. da
utopia, de More> <o m. da caverna, de Platão […]; construção mental de
algo idealizado, sem comprovação prática; ideia, estereótipo, ex.: <o m. do
bom selvagem>, […] representação idealizada do estado da humanidade, no
passado ou no futuro, [e por último] valor social ou moral questionável,
porém decisivo para o comportamento dos grupos humanos em determinada
época.» [cf. Houaiss:2010].
Praticamente todas as acepções do mito se ligam à antropologia, i.e., à
ciência do homem no sentido mais lato, o que em Tolstói é mais do que evi-
dente, pois este não fala da sua nação nem do seu povo em específico, mas
abarca – ou tenta abarcar – toda a humanidade. O seu ensaio do 2º Epílogo
de Guerra e Paz (1946) é, por assim dizer, uma teoria da História, fazendo
parte do repertório de textos seleccionados por Gardiner (1966) que com-
põem a sua obra Teorias da História, onde figuram nomes como Kant,
Marx, etc. A sua delineação ontológica pode ser resumida nas seguintes
linhas; citemos Tolstói:

Tudo o que sabemos acerca da vida do homem limita-se a uma certa rela-
ção entre a liberdade e a necessidade, ou seja, entre a consciência e as leis
da razão. Tudo o que sabemos acerca do mundo exterior da natureza limi-
ta-se a uma certa relação entre as forças da natureza e a necessidade, ou
entre a essência da vida e as leis da razão. (Tolstói, 1997, 581)

Depois de desenvolvidas as linhas de leitura e explicadas as razões que


nos levaram à análise deste discurso em específico como um discurso para-
doxalmente mitificador e desmitificador, passaremos, então, à análise de
problemáticas basilares que se nos deparam nesse texto: no “Epílogo – 2ª Par-
te”, de Guerra e Paz – título que, por si só, indica duas potenciais fontes de
forças motoras de nações. A primeira surge na primeira linha desse epílogo:

O objectivo da História é estudar a vida dos povos e da humanidade em


geral. Contudo, compreender e abarcar por palavras, descrever, não a vida
da humanidade, mas de um único povo, afigura-se tarefa impossível. Os
58 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

historiadores antigos usavam sempre o mesmo processo para descrever e


abarcar a vida de um povo, um processo aparentemente incompreensível.
Descrevem os actos dos indivíduos que governam o povo, actos esses
que, aos seus olhos, exprimiam os actos do povo inteiro. (Tolstói,
1997:570)

Logo de início nos apercebemos que, apesar de isso não ser dito direc-
tamente, «o povo inteiro» é detentor de força, no sentido em que é relevante
para o processo histórico – aos olhos de Tolstói – “outros” parecem pensar
diferentemente. Nas próximas linhas veremos mais detalhadamente a con-
cepção histórica do pensador russo.
Para as várias leituras de Tolstói destacamos vários autores, cronologi-
camente: Berlin, 1967, Khraptchenko et alii, 1982, Milhazes, 2010 e Barros,
2010, textos que serão evocados sempre que pertinente.

3. O Pensar da História, Segundo Tolstói

Leão Tolstói, face às atrocidades e rebeliões encontradas nos actos des-


critos na História, questiona: «que significa tudo isto? Que impulso levou os
homens a incendiar casas e trucidar o seu semelhante? Quais as causas de
tais acontecimentos? Que força coagiu os indivíduos a agir deste modo?»
(Tolstói, 1997:573)
Na procura de resposta a estas questões, segundo o autor, nevrálgicas
para a concepção actual da História, no segundo epílogo de Guerra e Paz, o
escritor de Iasnaia Poliana onde começa por fazer uma crítica objectiva à
descrição subjectiva dos historiadores do seu tempo:

Em primeiro lugar, o historiador descreve a actividade dos indivíduos


que, na sua opinião, dirigem a humanidade: uns consideram que são uni-
camente os soberanos, os chefes de guerra, os ministros; outros, acrescen-
tam ainda os oradores, os sábios, os reformadores, os filósofos e os poe-
tas. Em segundo lugar, o historiador conhece o objectivo para que o qual
a humanidade é conduzida: para uns, ele é a grandeza do Estado Romano,
espanhol ou francês; para outro, a liberdade, a igualdade e a civilização de
um certo género, desse recanto do mundo denominado Europa. (Tolstói,
1997: 573)

Como o pensador refere, de acordo com a concepção antiga, para res-


ponder a estas questões bastaria atribuir as causas destes movimentos a uma
entidade divina, que, por sua vez, atribuía poderes semi-divinos a homens
destinados fatalmente e quase que involuntariamente – impelidos por força
divina, a dirigir e comandar as nações. Contudo, «a moderna ciência da His-
tória, respondendo a tais questões, diz: (e passo a citar) “Luís XIV era um
homem muito orgulhoso e autoritário; teve tais amantes e tais ministros e
governava mal a França.[…]. Em consequência disso, os cidadãos começa-
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 59

ram em toda a França a decapitar-se e a estrangular-se uns aos outros […].”


Seria Erróneo pensar que isto se trata de uma brincadeira, de uma caricatura
das descrições dos historiadores. Trata-se, pelo contrário, de imagem muito
pálida das respostas contraditórias, que não satisfazem as perguntas minis-
tradas por toda a História.» (Tolstói, 1997, 574 – 575). E Tolstói conclui esta
descrição salientando que se o objectivo da História é a descrição do movi-
mento das nações, dos povos e da humanidade, «antes de falarmos de Napo-
leões, Luíses e escritores» temos de, primeiramente, caminhar no sentido de
dar resposta a uma questão basilar: «qual a força que movimenta os povos?»,
procurando explicar a relação existente entre estas personalidades e o movi-
mento dos povos (cf. Tolstói, 1997, 575).
O problema na descrição Histórica é, segundo o autor de Guerra e Paz,
metodológico; acusando os historiadores de tomar uma série de aconteci-
mentos contínuos, analisando-os uns independentemente dos outros. Para
Tolstói «não existe, nem pode existir, começo de acontecimento algum, mas
sempre cada um provém de outro, de modo ininterrupto» (Tolstói, 1995:
211). Método igualmente importante na falência da descrição histórica rela-
ciona-se com o facto de os historiadores analisarem os actos de um só
homem (de um imperador ou chefe militar, por exemplo), como se tratasse
da soma dos actos de todo um povo: «para estudar as leis da História temos
de modificar por completo o objecto de observação, deixando em sossego
reis, ministros e generais, e investigando os elementos infinitesimais homo-
géneos que conduzem as multidões.» (Tolstói, 1995: 213)
Enquadrando (ou desenquadrando) o discurso de Tolstói no seu tempo,
convém evocar o espírito cientificista do século XIX. Citemos Barros
(2010:124):

Podemos, com razoável precisão, apontar para uma data normalmente


tomada como um marco referencial no que diz respeito à metodologia da
história: a publicação, em 1824, do manual de metodologia histórica de
Ranke, no qual o autor intenta estabelecer as normas da história científica,
diferenciando-a de outros ramos congêneres, tais como: a filosofia da his-
tória e a literatura […]. Baseados em uma própria metodologia e influen-
ciados pelo espírito cientificista do século XIX, acabaram por levar a
ciência da história a uma situação de sectarismo em relação às posições
deterministas que se tornaram predominantes nas ciências sociais. Um
dos efeitos mais paradigmáticos desta prática será o aparecimento de
obras de história totalizantes, nas quais seus autores procuram explicar o
movimento histórico com base na atuação de grandes figuras públicas:
chefes de estado e pessoas proeminentes. Fazemos notar também que este
é o tempo das histórias nacionais, ou seja, o período em que as trajetórias
dos povos são contadas com o intuito de glorificar e reafirmar as histórias
dos Estados-nações europeus, baseadas em uma teleologia inabalável
segundo a qual o progresso é o destino inescapável e inexorável destas
sociedades.
60 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

O escritor russo divide os historiadores em três tipos: nacionais, univer-


sais e culturais – todos eles sem resposta ou solução para a «questão essencial
da História», e que, ao contar um mesmo facto, se contradizem uns aos outros,
aniquilando-se teoricamente. Relativamente aos primeiros, diz o seguinte:

Logo que historiadores de nacionalidades e opiniões começam a descre-


ver o mesmo acontecimento, as respostas por eles elaboradas perdem
imediatamente todo o sentido, uma vez que essa força é apreendida por
cada um destes autores não só de modo diferente, mas também com fre-
quência completamente contraditório. […] Thiers, bonapartista, diz que o
poder de Napoleão se fundamentava na virtude e genialidade do mesmo;
Lanfrey, republicano, na sua velhacaria e mistificação do povo (…).
(Tolstói, 1995: 209)

Já o historiador universal, «não procura a causa do acontecimento no


poder de uma só personalidade, mas na mútua acção conjunta de várias pes-
soas relacionadas com o evento […]. Gervinus e Schlosser, por exemplo,
como também outros, demonstram que Napoleão é fruto da Revolução, (…)
as ideias da Revolução e a mentalidade geral produziram o poder de Napo-
leão. Tal poder, todavia, sufocou as ideias da Revolução e a mentalidade em
geral.» (Tolstói, 1995: 209)
A terceira e última categoria de historiadores apontada por Leão Tolstói
diz respeito aos «denominados historiadores da cultura, seguindo o caminho
traçado pelos tratadistas de História Universal, que por vezes reconhecem
escritores e damas como forças produtoras de acontecimentos, interpreta
ainda essa força de modo inteiramente diverso» (Tolstói, 1995: 210). Adian-
te, de forma irónica, acrescenta: «É possível admitir que Napoleão tinha
poder e que, por tal motivo, se verificou o acontecimento; com certa condes-
cendência, possível será ainda compreender que Napoleão, juntamente com
outras influências, haja sido a causa do mesmo; o modo, porém, como o
livro Contrat Social teve por efeito começarem os franceses a matar-se uns
aos outros não é susceptível de compreensão» (Tolstói, 1995: 210). Justifica,
porém, esta limitação, considerando que, sendo a História escrita por erudi-
tos, é-lhes agradável pensar que «a actividade da sua classe constitui a base
do movimento de toda a humanidade.
Assumindo, portanto, a lacuna na descrição da História pelos vários
motivos apontados, o autor argumenta que «somente admitindo para análise
unidades infinitesimais – as diferenciais da História, ou seja, as tendências
homogéneas dos homens – e conseguindo a arte de integrá-las (pela obten-
ção de somatórios de tais infinitésimos) nos é possível esperar atingir as leis
da História» (Tolstói, 1995: 212).
Entendemos que, desta forma, Tolstói desmistifica o relato histórico,
aproximando-o de um teorema matemático, encarando o processo de interpre-
tação histórico como um processo exacto – termo empregado pelo autor – e,
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 61

através deste processo, procura responder às perguntas que aponta essenciais:


o que é o poder e que força determina o movimento dos povos. E escreve:

1) O poder é a relacionação de dada pessoa com outros indivíduos,


segundo a qual, aquela, quanto mais opiniões, hipóteses e justificações da
acção conjunta que se realiza, formula, tanto menos nesta participa.
2) O movimento dos povos não é determinado pelo poder, nem pela acti-
vidade intelectual, nem mesmo pela união deste ou daquele e desta, como
os historiadores pensaram, mas pela acção de todas as pessoas participan-
tes no acontecimento, sempre de tal modo associadas, que às que mais
directamente no mesmo intervêm, menos responsabilidade compete, e
vice-versa […]. Sob o aspecto moral, o poder é a causa do acontecimento;
sob o poder físico, são-na os súbditos daquele. Como porém, a actividade
moral é inconcebível sem a física, a causa do evento não reside na primei-
ra nem na segunda, mas tão-somente na conjunção de uma e outra (Tols-
tói, 1995: 215).

Voltando à metáfora da locomotiva, Leão Tolstói escreve:

A única noção capaz de explicar o movimento da locomotiva é a de uma


força igual ao movimento visível.
A única noção susceptível de explicar o movimento dos povos é a de uma
força igual ao movimento total dos povos.
No entanto, segundo esta noção, os diversos historiadores apontam forças
completamente diferentes umas das outras, sendo todas elas NÃO
IGUAIS ao movimento visível. Para uns, é uma força inerente ao herói,
da mesma maneira que o camponês vê o diabo na locomotiva; para
outros, uma força produzida por outras forças, como o movimento das
rodas [chefes de estado, etc.]; para os terceiros, o efeito de influências
intelectuais, como o fumo levado pelo vento (Tolstói, 1997, 580).

Concluindo esta fase do seu ensaio, Tolstói resume: «em última análise,
atingimos o círculo do eterno […], a electricidade produz calor; este, electri-
cidade», associando este movimento aos fenómenos históricos: «porque
motivo surge uma guerra ou revolução? Ignoramos; sabemos apenas que,
para a execução deste ou aquele efeito, as pessoas se coligam em certa con-
junção, e todas participam; e dizemos ser assim a natureza dos homens, e ser
isto uma lei» (Tolstói, 1995: 215-216).
Numa secção seguinte do epílogo em análise, o autor desenvolverá uma
análise dos conceitos de necessidade e livre arbítrio. Por questões de espaço
e de tempo não nos ocuparemos aqui destes conceitos morosamente, até
porque sairíamos do âmbito deste trabalho. Contudo, no que compete à fun-
ção destes dois elementos na interpretação do processo histórico que Tolstói
nos afigura, convém destacar a seguinte problemática: «Integrado na vida
geral da humanidade, o homem apresenta-se sujeito às leis que tal vida
determinam. O mesmo homem, porém, independentemente deste vínculo,
62 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

afigura-se livre. Como deve considerar-se a vida passada dos povos e da


humanidade – como resultado de livre ou não-livre actividade humana? Eis a
questão da História» (Tolstói, 1995: 219).
É neste ponto que consideramos o discurso de Tolstói essencialmente
mitificador. Aqui temos o seu conceito de origem do homem – indivíduo uno
e isolado, mas que está por base na construção do seu povo, nação – e que,
paradoxalmente, ou mais forte ainda, num oximoro que figura e situa o
homem, num círculo antonímico de leis da necessidade e de consciência de
liberdade. As relações de dependência com as leis da História e com o seu
semelhante são broto universal. Citemos o autor de Guerra e Paz:

O homem está sujeito às leis da necessidade […] Se os homens provêm


de símios num período desconhecido de tempo, é isso tão compreensível
como terem eles surgido de um punhado de terra em época ignorada (na
primeira hipótese, a incógnita é o tempo; na segunda, a origem), e o pro-
blema do modo como a consciência da liberdade humana se concilia com
a lei da necessidade, a que o homem está sujeito, não pode resolver-se
com a Fisiologia comparada nem com a Zoologia, uma vez que na rã, no
coelho e no macaco somente podemos observar actividade neuromuscu-
lar; no ser humano, porém, não apenas esta, mas também consciência [a
consciência da sua liberdade].
Os naturalistas e seus sequazes, julgando responder a este problema,
assemelham-se a estucadores a quem mandassem rebocar um lado da
parede duma igreja, e que, aproveitando a ausência de um mestre princi-
pal dos trabalhos, num acesso de zelo, cobrissem de gesso as janelas, íco-
nes, retábulos e muros ainda não consolidados. (Tolstói, 1995: 219-220)

Na sua argumentação, Tolstói conclui que, sem excepção, em todo o


indivíduo há uma distribuição proporcional de liberdade e de necessidade.
Casos há, porém, que impelem o aumento ou a diminuição de um dos facto-
res. São estes: 1) a relação do indivíduo com o exterior, 2) com o tempo, 3)
com as causas que ao acto deram origem. Assim, um homem que se esteja a
afogar em alto mar não é tão livre como um homem em terra firme, num
acto de crime, um indivíduo que tenha crescido e educado entre malfeitores
atenua a sua culpa, pois ele é, consequentemente, menos livre dos seus actos,
um homem ligado à família é menos livre que um homem solitário e isola-
do4, etc. «Na História distendem-se linhas de movimento das vontades
humanas; uma das suas extremidades oculta-se no desconhecido; na outra
move-se a consciência da liberdade dos homens no presente, sob o ponto de
vista do espaço, do tempo e da dependência das causas. Quanto mais se

4
Lembremos aqui que, aos 82 anos, Tolstoi sai de casa, isolando-se da família e dos
bens materiais, vivendo uma vida semelhante à de um peregrino. Apesar de o Tolstói
de Guerra e Paz não se ter ainda metamorfoseado, podemos já aqui, pelo menos em
1846, observar as raízes filosóficas e ideológicas da sua transição.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 63

entreabrir em profundidade diante dos nossos olhos esse campo de movi-


mento, tanto mais evidentes são as leis deste último. Depreender e definir
tais leis constitui o objectivo da História.» (Tolstói, 1995: 225).

4. Leituras de Tolstói

Isaiah Berlin (1967), em The Hedgehog and the Fox, reúne fontes
importantes sobre as leituras de Tolstói pelos intelectuais seus contemporâ-
neos. Não nos compete abordar nem listar aqui o repertório de citações, mas
é pertinente notar que a maioria é exaltadora dos seus romances, mas exis-
tem críticas pejorativas quanto à crítica dos seus ensaios filosóficos e inter-
pretação do processo histórico, como podemos ler abaixo:

Turgenev speaks of Tolstoy’s “charlatanism” of His historical disquisi-


tions as ‘farcical’, as ‘trickery’ […], Flaubert, despite his ‘shouts of joy
and admiration’ over passages of War and Peace, is equally horrified: ‘il
se répète! et il philosophise’ he writes in a letter to Turgenev» (...) (I.
Berlin, 1967: 5) Vassili Botkin, who was well disposed to Tolstoy, writes
to the poet Afanasi Fet: ‘Literary specialists… find that the intellectual
element of the novel is very weak, the philosophy of history is trivial and
superficial […]’ (…) ‘It is fortunate for us that the author is a better artist
than thinker’ said the critic Nikolai Akhsharumov, and for more than
three-quarters of a century this sentiment has been echoed by most of the
critics of Tolstoy both Russian and foreign (I. Berlin, 1967:7).

Barros (2010), aponta as críticas ferozes e negativas dos intelectuais do


seu tempo como «mal-entendidos», ou seja, segundo este autor, os críticos
contemporâneos de Tolstói não souberam interpretar o escritor de Iasnaia
Poliana. E é um facto inegável que Gardiner (1966) compila na obra a que
chama Teorias da História, textos de Marx, Vico, Kant e, entre outros, de
Tolstói – discursos fundadores da concepção histórica nacional, que, pelo
teor de aprofundamento tal – o qual leva à abstracção física, os autores são
considerados pensadores universais.
Permitimo-nos citar aqui um excerto do questionário sobre Tolstói dis-
tribuído pela «Revista Soviética» a vários escritores, entre eles, Fernando
Namora, cuja versão integral, bem como os outros inquéritos, podem ser
encontrados em Khraptchenko et alii (1982), “Leão Tolstói e a Actualidade”,
da Academia de Ciências da URSS, num último capítulo que se chama “Os
escritores sobre Leão Tolstói”:

Tolstói tem sido dos escritores da literatura mundial mais lidos e admira-
dos no meu país – por assim dizer, uma das figuras tutelares da nossa cul-
tura, que, aliás, muitas afinidades mostra, quanto à atmosfera humana e ao
modo de a captar e de a exprimir, com a cultura russa.
64 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Aproximação ou coincidência, surpreendentes, tendo em conta tudo o


que, geograficamente nos separa e tendo em conta que só de raro em raro,
os itinerários dos dois povos se cruzaram? Creio que a surpresa não será
tão justificada como à primeira vista poderíamos supor […]. É a obra de
Tolstói um monumental universo literário, fonte inesgotável onde nenhum
escritor pode deixar de ir beber, mas não menos um impressionante
documento humano. E é talvez o que existe de contraditório, emotivo e
patético nesse documento que mais tenha fascinado o leitor português.
[…] Se a sua cabana de camponês instalada no palacete de Yasnaia Polia-
na é reveladora da ânsia de humanidade que sempre o atormentou, toda a
construção do seu edifício literário reflecte, simultaneamente, o «clerc»
que sente e reconhece ser necessário desfazer os casulos intelectuais para
que a mensagem de uma obra literária fecunde a terra de onde brotou.

A colecção Problemas do Mundo Contemporâneo, da Redacção «Ciên-


cias Sociais Contemporâneas» da Academia de Ciências da URSS dedica o
número 20 ao tema que dá título ao número: “Leão Tolstói e a Actualidade”.
Neste número, 12 autores contribuem cientificamente com textos que nos
permitem pontificar o grande escritor e a sua vasta obra com a actualidade.
Entre esses artigos, nomeadamente, no de Berdnikov, intitulado “Manan-
cial de sabedoria para muitas gerações”, podemos ler:

(…) ao escrever Guerra e Paz, inquietava-o, inspirava-o o «pensamento


popular». Ao criar o grandioso panorama da Guerra Pátria de 1812, ele
mostrou, de maneira impressionante o decisivo papel histórico das massas
populares. Esta ideia mestra o romance-epopeia [e acrescentemos, ensaio
filosófico] (Berdnikov in Khraptchenko et alii, 1982: 34).

O próprio ensaísta, citando Tolstói, escreve:

«Abram o jornal da data que quiserem – escreveu ele em 1986 – e sempre


verão um ponto negro, causa de uma possível guerra. Pouco antes de mor-
rer, preparando-se para a projectada intervenção no Congresso da Paz em
Estocolmo, escreveu: «A luta com forças tão desiguais deverá parecer
uma loucura (…) Eles têm dinheiro aos montões, milhões de soldados
submissos; nós temos só uma coisa, mas é a arma mais poderosa do mun-
do: a verdade. (Tolstói apud Berdnikov, 1982: 39)

Tolstói foi, e será reiteradamente lido e interpretado. Referindo algumas


interpretações; Leonid Brejnev no discurso que pronunciou em Tula, em
Janeiro de 1977 diz: «A ideia de que, afinal de contas, são as massas quem
decide nas questões vitais da História, quem determina os destinos dos Esta-
dos e os resultados das guerras, é hoje tão justa como sempre foi. (Brejnev
apud Berdnikov, 1982: 34).
Dando visibilidade a uma interpretação manifestamente diferente, inse-
rida no panorama português sobre a actualidade de Tolstói, foquemos o texto
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 65

de José Milhazes apresentado na sua comunicação no Centro Cultural de


Belém a propósito do centenário da morte de Leão Tolstói; Milhazes
(2010:sp) refere que: «As suas [de Tolstói] ideias filosóficas e morais visam
melhorar a Humanidade em geral, e não apenas a Rússia em particular. O
aperfeiçoamento moral e espiritual dos russos era, para Leão Tolstói, parte
integrante do aperfeiçoamento moral universal. É a ele que pertence a frase:
“o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”».
Na leitura que Milhazes faz de Tolstói em Caminhos da vida, dá-nos o
parecer que a sua opinião do Estado. Acrescente-se; a própria posição face à
cidadania é idêntica:

Não pode um homem que vive no Canadá ou no Kanzas, na Boémia, na


Ucrânia, Normandia, ser livre enquanto se considerar, e frequentemente,
ter orgulho em ser cidadão britânico, norte-americano, austríaco, russo.
Não pode também o Governo, cuja vocação consiste em conservar a uni-
dade de uma união tão impossível e sem sentido como a Rússia, Grã-
-Bretanha, Alemanha, França, dar aos seus cidadãos a verdadeira liberda-
de, nem algo semelhante a ela como é feito em todas as engenhosas cons-
tituições monárquicas, republicanas ou democráticas, E aqui não há
excepções, nem para os estadistas mais bem intencionados.

Nesta visão Tolstóiana do Estado, este e as suas instituições são nega-


dos: a propriedade privada, dos tribunais, do serviço militar e da violência
em geral: doutrina de não-violência e de resistência pacífica, que teve segui-
dores famosos como Mahatma Gandhi e Martin Luther King. Pode-se, por-
tanto, afirmar que as ideias de Tolstói se assemelham ao hinduísmo e ao
budismo, a segunda, como nos informa Milhazes a respeito deste aspecto
biográfico do escritor russo: o budismo era uma «religião que ele conhecia
muito bem e estudou profundamente». Sobre este assunto, o actual corres-
pondente português na Rússia cita palavras de Tolstói, que considera «pala-
vras visionárias do pensador russo», abordando a leitura que Tolstói faz do
Estado português, nomeadamente, da Revolução Republicana de 1910 em
Portugal. «[…] O grande escritor e pensador russo, recebeu a notícia com
alguma dose de humor», diz Milhazes. E continua:

Valentin Bulgakov, um dos secretários de Tolstói, escreveu nas suas


memórias: “Em Setembro (Outubro segundo o calendário gregoriano)
rebentou a revolução em Portugal. Eu contei a Lev Nikolaevitch que,
segundo as informações dos jornais, o rei português Manuel, depois de
fugir do palácio, esteve duas horas escondido numa adega. Tolstói obser-
vou a propósito: – As revoluções são inevitáveis nos Estados modernos. É
como um incêndio, toda a Terra arderá... Chegará a hora e todos eles,
esses reis, esconder-se-ão nas adegas!”.
Porém, ao analisar o carácter “relativamente pacífico da revolução em
Portugal, Tolstói assinalou: “No nosso país, se tal coisa acontecer, não
terá lugar uma revolução portuguesa”.
66 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

A análise que o famoso jornalista faz é a seguinte: «os posteriores acon-


tecimentos na Rússia vieram dar-lhe razão». Milhazes termina os seu texto
com o ditado “ninguém é profeta na sua própria terra”. Para ele, «no caso de
Tolstói, a palavra terra deve ser escrita com letra maiúscula, ser sinónimo de
planeta.» (Milhazes, 2010:sp).

5. Palavras Finais
Julgamos, através desta breve análise, ter deixado clara a relevância da
interpretação da História por Tolstói para a teoria da interpretação do proces-
so histórico mundial, bem como, dentro dos possíveis, ter explicado como se
movem as nações – e que força está por detrás desse movimento. Parece-nos,
no entanto, ter ficado qualquer espaço por preencher e, se não as mesmas,
outras questões por resolver e perguntas por responder.
Questionamos, então: haverá perguntas, pela sua natureza, sem respos-
ta? E que fazer das perguntas para a qual há várias respostas possíveis? Tal-
vez a explicação esteja no facto de precisar de haver sempre uma pergunta,
para que se continue a encontrar respostas – afinal, em parte é isso que faz
do homem um ser racional. Por vezes o importante não é encontrar a respos-
ta, mas formular a pergunta certa. Aqui reside, talvez, a principal causa da
constante e infinita actualidade de Tolstói, porquanto os grandes génios são
nacionais e mortais, são ao mesmo tempo universais, atemporais e constan-
temente actuais e actuantes, usando palavras de Lenine (1977:23): «algo que
não desapareceu no passado, o que pertence ao futuro»
É interessante que, tal como nos descreve Bursov (1982:42), Tolstói
desistiu mais de uma vez do trabalho literário, argumentando que este não
constituía parte das ocupações humanas mais importantes. «Lavrava a terra,
semeava e ceifava o trigo, arranjava a estufa de azulejos e cozia as bootas.
Numa palavra, fazia o mesmo que os camponeses que viviam em Yasnaia
Poliana e em toda a Rússia». Mas o facto é que Tolstói nunca conseguiu
parar de escrever. «Em certa ocasião disse, por graça, que não compreendia
como ele, um velho de 70 anos e com inteligência, se dedicava a coisas tão
frívolas como escrever romances», Bursov (1982:42).
Constatamos, que, provavelmente por esta posição, Tolstói não se limi-
tou a escrever romances, nem os seus romances eram apenas romances. No
epílogo de Guerra e Paz encontramos um discurso interpretativo da origem
das nações e dos povos, que nada de ficcional parece querer ter, pelo contrá-
rio: a exactidão matemática que, segundo Tolstói, a História deve ter é basi-
lar para a narração objectiva e, acima de tudo, verídica dos factos históricos,
e a pertinência da sua preocupação é actual para qualquer campo da ciência –
mas as suas ideias de forças emulsionantes não deixam de poder ser traduzi-
das, simultaneamente, por um mito utópico atemporal.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 67

Bibliografia:

Barros, Gustavo Morais (2010) “Interpretação do Processo Histórico em Leon


Tolstói”, Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, pp. 123-144.
Universidade Federal de Góias. ISSN: 2175-5892. Url:
http://www.historia.ufg.br/revistadeteoria//uploads/files/113/REVISTA_I
II.pdf, último acesso a: 31/03/11.
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History. U.K.: Weidenfeld Goldbacks.
Gardiner, P. (1995) Teorias da História. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gul-
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Houaiss, A./ Mauro Villar (2001) Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
Rio de Janeiro: Editora Objetiva.
Khraptchenko, M. et alii (1982) “Leão Tolstói e a Actualidade” in Problemas do
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Lu, Catherine (2008) "World Government", The Stanford Encyclopedia of Phi-
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http://plato.stanford.edu/archives/fall2008/entries/world-government/ ul-
timo acesso a: 07/05/11.
Milhazes, J. (2010) “Lev Tolstói: um profeta de utopias”. Comunicação na ses-
são realizada no Centro Cultural de Belém a propósito do centenário da
morte de Lev (Leão) Tolstói. Url:
http://darussia.blogspot.com/2010/11/lev-Tolstói-um-profeta-de-
-utopias.html último acesso a: 20/03/11
Tolstói, L. (1997) [1869] Guerra e Paz. Alfragide: Ediclube Coleccionáveis,
Vol.II. pp. 570-609.
Tolstói, L. (1995) [1869] “A Dificuldade de Definir as Forças que Movem as
Nações”, in GARDINER, Patrick (org.) Teorias da História. 4ª ed. Lis-
boa: Fundação Calouste Gulbenkian.
PRINCÍPIOS PROGRAMÁTICOS E ESTÉTICOS
DO CUBO-FUTURISMO DA RÚSSIA

Nadejda Machado

Футуризм, возникший в начале XX века явился одним из активных течений


авангарда, который воспринял искусство как орудие построения нового
общества и начал настойчиво утверждать и претворять в жизнь новые
художественные приёмы и каноны. На фоне многочиcленных
футуристических групп, кубофутуристическая «Гилея» выделялась резкостью
своих манифестов и смелостью художественных приёмов. В дальнейшем
экспериментализм футуристов был использован пост-модернизмом.
Ключевые слова: авангард, футуризм, кубофутуризм, символизм, самовитое
слово, заумь, лубок, самописная книга

O distanciamento entre a arte e o progresso tecnológico e as consequen-


tes mudanças e quebras no sistema de valores que se fizeram sentir desde os
finais do século XIX e que atingiram o seu ponto mais crítico no primeiro
decénio do século XX provocaram uma verdadeira explosão que se manifes-
tou em diversos pontos, principalmente na Europa, através de um enorme
número de correntes e de movimentos artísticos e literários. As novas estéti-
cas que marcaram a sua presença histórica neste período elaboraram os seus
códigos e cânones artísticos atribuindo novas funções à arte. O Futurismo,
uma das correntes da Vanguarda, iniciou a sua batalha revolucionária enca-
rando a nova arte como instrumento de construção de uma sociedade nova.
Ao passado, prometeram os futuristas uma luta encarniçada que não dispen-
sava o “assalto violento”. Esta violência torna-se bem através dos slogans
que utilizaram: “largai fogo às prateleiras das bibliotecas! Desviai o curso
dos canais para inundar as caves dos museus! […] deitai mão a picaretas e
martelos! Minai os alicerces das cidades venerandas!” (Marinetti, 1995:97).
Para a compreensão da obra artística vanguardista é importante ver que,
apesar da ruptura com o passado histórico e do seu esquecimento, a Van-
70 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

guarda aceita o meio artístico como tal, na sua generalidade. Este conceito
de Marx utilizado por Peter Bürger pressupõe “reconstruir o processo de
produção artística como um processo de eleição racional entre diversas
maneiras de actuar cujo acerto depende do efeito conseguido” (Bürger,
1993:46). O posicionamento de ruptura da Vanguarda determinou uma
enorme variedade de correntes e movimentos, muitos deles breves e versá-
teis. Este facto quase eliminou a possibilidade de elaborar um estilo autóno-
mo e específico desta época. A diversidade dos meios artísticos e literários,
dado o condicionamento das normas sociais do tempo, só foi possível no
interior da sociedade burguesa. Exemplo flagrante de aplicação desta diver-
sidade de procedimentos variados e variados meios na obra artística foi, sem
dúvida, o Futurismo, uma das primeiras correntes da Vanguarda a difundir-
-se pela Europa, com alguns efeitos em Portugal, e que se estendeu larga e
fecundamente pela grande Rússia. O manifesto de Marinetti de 1909 provo-
cou um terramoto em todos os géneros artísticos, resultando daí uma forma-
ção completamente inovadora e diversificada na sua produção artística e que
adquiriu traços nacionais nos países onde foi implantada. Esta realidade foi
muito notória principalmente na Rússia.
O Modernismo e as ideias da Vanguarda difundiram-se rapidamente
pelo enorme território da Rússia. Em várias cidades foram criados círculos
literários vanguardistas que foram editando as suas obras. De qualquer for-
ma, podemos dizer que o duplo centro deste pensamento estético permane-
cia, como, aliás, outros de índole diferente, em duas capitais rivais: S.
Petersburgo e Moscovo, cada uma com as suas fontes de inspiração e os seus
desenvolvimentos bem marcados. Quanto a Moscovo, se bem que a intensi-
dade da vida artística tivesse grande amplitude, ela processava-se de forma
mais indiferenciada através de exposições e iniciativas dispersas que iam de
encontro ao grande público, sem locais marcadamente carismáticos. O mes-
mo não acontecia em S. Petersburgo onde ficaram célebres e fizeram escola
vários núcleos em locais fixos com grupos de características bem próprias.
Pela sua natureza de clara diferenciação referir-nos-emos a dois destes
núcleos cujo papel na formação e divulgação das ideias estéticas e das obras
literárias foi, sem dúvida, de grande alcance. Passaremos rapidamente em
revista cada um deles, relevando os elementos mais notórios.
Seria injusto, e sobretudo lacunar, falar-se da atmosfera artística da épo-
ca e não mencionar um célebre café literário que ficou conhecido na gíria
por Cão Vagabundo (Бродячая собака Brodiatchaia sobaka). Aberto em 31
de dezembro de 19111, nele se concentrava a vida literária boémia. Entre

1
O café cujo nome oficial era Sociedade Artística do Teatro Íntimo situava-se na cave
de um dos edifícios no centro da cidade e o seu nome advém do ciclo de poemas em
prosa de Baudelaire, Le spleen de Paris que inclui o texto “Les Bons Chiens” (1869).
Tinha estatuto, hino e um brasão próprio que representava um cão com a pata pousada
em cima duma máscara antiga. Este brasão era da autoria do pintor Dobujinsky. As
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 71

escândalos, provocações e diversão, organizavam-se leituras, representações


teatrais e bailados, bem como homenagens a gente da literatura e da arte. Foi
neste contexto que, nos dias 1 a 5 de fevereiro de 1914, os visitantes do café
honraram o principal ideólogo do Futurismo, Filippo Marinetti. Da mesma
forma, no dia 17 de março desse ano, homenagearam também o poeta fran-
cês Paul Faure. Entre os clientes habituais constavam poetas akmeístas Niko-
lai Gumiliev (1886-1921), Anna Akhmatova (1889-1966), Iossip Mandels-
tam (1891-1938), etc., futuristas, como Vladimir Maiakovsky (1893-1930),
Velimir Khlebnikov (1885 – 1922), entre outros, e também simbolistas como
Konstantin Balmont (1867 – 1942). Paralelamente, teóricos da literatura,
como os formalistas Viktor Shklovsky e Viktor Jirmunsky, expunham e
debatiam lá as suas ideias. Numa das últimas noites da sua existência, no dia
11 de fevereiro de 1915, Vladimir Maiakovsky(1893-1930) leu o seu provo-
cador poema A vós! (Вам!) onde fazia críticas tais à classe pequeno-
-burguesa que chocou profundamente o público pagante2 e desencadeou um
autêntico escândalo. O poema atingia com veemência esse público e a parte
da sociedade que representava a burguesia.
Por esta e por outras, o café foi fechado por mandato policial em março
de 1915. Todavia, não foram com ele fechadas as ideias que lhe haviam dado
vida. Um ano mais tarde, o organizador do Cão Vagabundo abriria o cabaré
Pousada dos comediantes (Привал комедиантов Prival komediantov). No
difícil e miserável período da primeira guerra mundial, dentro desse cabaré
reinava uma atmosfera verdadeiramente fantasmagórica e boémia, graças ao
talento do seu proprietário Boris Pronin, homem das artes e eminente actor
teatral de um estúdio igualmente muito inovador, organizado pelo seu
conhecido mestre Vsevlod Meierkhold (1874 – 1940). As paredes do Pousa-
da estavam decoradas com várias pinturas pitorescas feitas pelo pintor-
-simbolista Serguei Sudeikine, autor dos figurinos e cenários dos Ballets
Russos de Serguei Diaguilev, cujos motivos eram constituídos pelas cenas
dos contos de Ernst Hoffman e Carlo Gozzi. O seu interior envolvia o espec-
tador num ambiente de carnaval e de comédia contrastando fortemente com
o pesado clima mundano que reinava no país mergulhado numa guerra frus-
trada com mais fracassos que vitórias. A vida artística agitada do cabaré
continuou até 1919, ano a partir do qual se foi transformando pouco a pouco

paredes e abóbadas foram desenhadas pelos pintores simbolistas e vanguardistas


Sudeikin, Salunov e Kulbin. Na noite da inauguração, o autor do hino, o escritor Alexei
Tolstoi, trouxe um livro branco a que se chamou Livro porqueiro(Свиная книга), por-
que a sua capa era feita de pele de porco, onde os clientes escreviam os seus poemas,
faziam desenhos ou autografavam.
2
Os clientes do café distinguiam-se entre os denominados os nossos e farmacêuticos,
sendo estes últimos constituídos por um público burguês casual e estranho à criação
artística. Pertenciam a camadas endinheiradas que, para poderem compartilhar tal
ambiente, pagavam bem caras as entradas, o que permitia a sustentação do café.
72 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

num pacato e comum restaurante. O Pousada sobreviveu a duas revoluções:


a de fevereiro e a de outubro de 1917. Não foi fechado. Acabou por morrer
mais tarde de morte natural3.
O Futurismo russo que saiu do Simbolismo, não enjeitou os temas pre-
feridos deste, tais como o urbanismo, a civilização mecanizada, o caos total,
etc., mas utilizava-os de um ponto de vista da estética vanguardista, organi-
zando-os em novos cânones sociais e culturais criados em substituição dos
tradicionais. Por detrás das exposições de pintura futurista e das apresenta-
ções públicas dos seus poetas e literatos, aparentemente escandalosas e pro-
vocadoras, atiçando os gostos do público pequeno-burguês e académico,
como veremos adiante, estavam estudos bastante sérios nos domínios da
matéria linguística, da teoria da literatura e da arte. Foi o Futurismo que pela
primeira vez falou em samovitoe slovo, slovo kak takovoe (самовитое
слово, слово как таковое – palavra auto-suficiente, palavra como tal), rea-
nimando palavras de outrora há muito esquecidas.
Não foram, todavia, os futuristas os primeiros a fixarem a sua atenção
no folclore e na arte popular. Esta tendência é uma das características da
literatura e arte russas em geral, mas foram, de facto, eles que desenvolve-
ram, duma forma inovadora, esta tradição de utilização do léxico, do ritmo,
das canções populares russas, das locuções, dos provérbios, das rezas de
bruxaria, etc. num quadro novo de procedimentos. Este neoprimitivismo foi
abrangente, principalmente na primeira fase do Futurismo que servia de
suporte à criação de outras correntes das artes plásticas.
Naturalmente que o Futurismo russo não foi homogéneo durante toda a
sua história. Existiram, no interior da corrente, vários grupos e associações
artísticas que defenderam visões estéticas diferenciadas ou mesmo antagóni-
cas, seguindo umas vezes posições autónomas e outras aliando-se a pontos
de vista de outras visões de colegas ou grupos vanguardistas. Se os cubo-
-futuristas de Vladimir Maiakovsky apelaram à união, ao colectivo da força
artística, como o único meio possível para a criação da arte completamente
nova, os Ego-Futuristas unidos por Igor Severianin (1887-1941), encararam
o individualismo e egoísmo do homem-poeta, homem-criador como a verda-
deira arma destrutiva da arte velha.
Ao retratar o desenvolvimento histórico da vanguarda russa pode falar-
-se no surgimento de inúmeros grupos artísticos, da sua colaboração e da sua
concorrência, do desaparecimento brusco de alguns deles, da alteração das
suas concepções estéticas, da mudança do seu estatuto sociopolítico, da sua
influência em diferentes forças políticas e mesmo em estruturas governa-
mentais. Dentro desta perspectiva, é bem compreensível o florescimento do
Futurismo no período da Revolução de Outubro, quando as ideias bolchevis-

3
Actualmente em S. Petersburgo, em 2001 e 2003 respectivamente, abriram estes cafés
nos mesmos sítios onde haviam existido quase cem anos atrás.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 73

tas da destruição do mundo velho e da criação de uma sociedade nova eram


consoantes com o meio vanguardista. Nesta base, colaboraram com o Minis-
tério da Educação várias sociedades artísticas da komfut (abreviatura de
comunistas-futuristas) a partir de janeiro de 1919, quer envolvendo-se na
propagação das novas ideias através de jornais como Arte da Komuna, Arte,
etc., quer enfeitando e decorando realizações festivas, quer organizando
exposições de pintura abstracta, realizando peças de teatro futurista de auto-
res como Aleksei Krutchonykh e Vladimir Maiakovsky, etc. A monopoliza-
ção gradual das associações artísticas pelo estado e pela política de autorita-
rismo reinante aplicada à área da Arte, através da criação da União dos
escritores e da União dos Pintores, conduzindo à dissolução de todos os
outros grupos artísticos divergentes, determinou a perda da originalidade e
da força criativa da vanguarda russa real e o seu desaparecimento. Alguns
continuaram a sua criação literária fora dos grupos, como Vassily
Kamensky, Aleksei Krutchonykh, Vadim Cherchenevitch, ou mesmo na
emigração, como Igor Severianin (Estónia) e David Burliuk (USA), mas
tudo isso sem a força colectiva de um grupo organizado.
No contexto do Futurismo russo é possível destacar quatro grupos que
se revelaram mais activos e originais e que ficaram notáveis logo no dealbar
desta corrente estética: são eles: o grupo de Cubo-Futuristas Guilea (Гилея
Hileoea) que polarizou os poetas de Moscovo; o dos Ego-Futuristas; e mais
outros dois menos radicais mas que tiveram alguma expressão que foram o
Mezanino da Poesia e o Centrifuga. Os três últimos sediavam-se em S.
Petersburgo. Os princípios e ideais destas associações artísticas também se
fizeram sentir na província onde, quase ao mesmo tempo, surgiram pequenos
grupos futuristas que foram aderindo a uns ou outros destes princípios e
ideias estéticos.
O importante papel na literatura russa desta corrente literária foi de
imediato adivinhado e notado pelo mundo literário da época. Ao analisar o
estado da literatura russa, principalmente da poesia, o grande poeta-
-simbolista russo Aleksandr Blok (1971,vol.VI:537-538), no seu artigo de
1922 “Sem divindade, sem inspiração”, considerou que o Futurismo russo
“foi a primeira escola que fez surgir aquelas horríveis máscaras e absurdos
que vieram à superfície na época da guerra e da revolução, de que foi profe-
ta-precursor. Ele reflectiu no seu espelho nebuloso o pavor originariamente
alegre que está inscrito na alma russa e que mesmo pessoas muito perspica-
zes não imaginavam. Neste aspecto, o Futurismo é incontornavelmente mais
significativo e profundo do que o Akmeísmo”4.

4
Tendência literária que surgiu em 1912 com o objetivo de reformar o Simbolismo. A
poesia akmeísta foi apresentada pelos seus autores como o ponto culminante da verda-
de artística (da palavra grega ακμη – grau superior, força) -, e o adamismo (Adão)
representava o olhar firme e claro sobre a vida. Os teóricos do akmeísmo S. Gorodetski
e Nikolai Gumiliev uniram-se com Ossip Mandelstam, Anna Akhmatova e outros num
74 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Vamos então debruçar-nos sobre o futurismo histórico e principalmente


sobre o Cubo-Futurismo que é a mais radical e mais criativa daquelas quatro
vertentes acima referidas, quer em termos artísticos, quer literários, quer de
intervenção social. Vamos focar, para além dos seus manifestos programáti-
cos, a vertente que destaca este grupo das outras uniões futuristas na junção
de vários géneros artísticos e no procedimento poético das suas obras.

Cubo-Futurismo: grupo Guilea


Da fusão entre as artes plásticas e a literatura nasceu um movimento
original chamado Cubo-Futurismo. O lema deste movimento assentava na
afirmação de que só a partir da formação desta dualidade da pintura e da
poesia estas duas artes teriam uma autêntica consciência da sua liberdade.
Foi quatro meses antes da publicação no jornal Le Figaro do manifesto
de Marinetti, em outubro de 1908, que veio a lume a prosa rítmica Tentação
do Pecador (Искушение грешника), de Velimir Khlebnikov5, surpreenden-
do os leitores da época com a sua construção semântica e com a criação
ornamental de palavras, que foi considerado pelos críticos literários de então
como um presságio futurista.
O encontro, no outono de 1911, entre David Burliuk e outros participan-
tes da União da Juventude6 com Vladimir Maiakovsky7, conduziu à criação

grupo denominado “Oficina de poetas”. Aceitando os princípios gerais do Simbolismo,


o Akmeísmo relegava, contudo, o misticismo, a teosofia e o ocultismo, se bem que
também abrangesse no seu objecto o desconhecido. Na sua poesia, os akmeístas tenta-
ram libertar a poesia das coisas incompreensíveis cultivadas pelo Simbolismo devol-
vendo-lhes a clareza e a acessibilidade.
5
“Génio, um grande poeta da modernidade”, eis os termos através dos quais foi caracte-
rizado pelos seus colegas, na folha volante Bofetada no gosto social (1913), Velimir
Khlebnikov. Este autor foi, durante muito tempo, secundarizado quer na Rússia que no
Ocidente. Contudo, com os estudos analíticos dos últimos anos, ele foi considerado um
dos principais, senão o principal teórico do futurismo. O próprio Maiakovsky recebeu
dele uma influência decisiva.
6
A associação dos pintores foi criada por iniciativa de Mikhail Matiuchin e Elena Guro,
entre outros, em 1909, em S. Petersburgo. O objectivo principal da associação foi “dar
a conhecer a todos os membros as tendências modernas da arte, desenvolver os seus
gostos estéticos através de aulas de pintura, bem como trocar opiniões relativas aos
problemas da arte e proporcionar a aproximação mútua das pessoas interessadas pela
arte.” Foram realizadas 5 exposições em S. Petersburgo (1910-1913) e uma em Riga
(1910). Nas suas exposições foram apresentadas obras de pintores de várias tendências,
entre as quais as dos irmãos Burliuk, Malevitch, Filonov, Rozanova, Gontcharova,
Tatlin e Maiakovsky. Em 1912-1913, a associação editou 3 colectâneas sob o mesmo
título. Entre os materiais constava a tradução, a partir do italiano, do Manifesto da pin-
tura futurista, cartas do pintor francês Van Donguen, várias reproduções de obras de
pintores estrangeiros, etc. Depois da realização dos espectáculos futuristas em dezem-
bro de 1913, a associação desfez-se.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 75

de uma associação literária, a Guilea8, que em muitos aspectos determinou


as tendências principais e a evolução da literatura vanguardista. Desta cola-
boração estreita entre poetas e pintores começaram a sair livros impressos
por meios litográficos. Aprofundaremos este assunto mais tarde.
Este ataque estético saiu da área artístico-literária para ferir ainda mais
o gosto pequeno-burguês tradicionalista, nomeadamente no que toca ao seu
visual espampanante. Além da camisa do amarelo berrante do Cubo-
-Futurista Maiakovsky e do fraque dourado com punhos pretos do Ego-
-Futurista Ivan Ignatiev com que costumavam aparecer nas discussões públi-
ca, ficando imediatamente famosos graças às referências pejorativas da
imprensa, os cubo-futuristas apareciam também com as caras pintadas não só
no palco durante as apresentações mas também quando simplesmente pas-
seavam pela rua. A propósito disto publicariam um manifesto denominado:
Porque é que nos pintamos. Manifesto dos futuristas (1913), assinado pelo
poeta do grupo futurista Centrifuga, Ilia Zdanievitch e pelo pintor vanguar-
dista Mikhail Larionov . Nele, os autores diferenciaram por contraposição, a
maquilhagem das senhoras em função da moda ou da idade, da sua pintura-
-jornalista a que era inerente a ideia de substituir a banal expressão do rosto
por uma pintura do pensamento do homem:
Em março de 1913 o grupo Guilea passou a ser uma secção literária autó-
noma da associação dos pintores vanguardistas União da Juventude, criada em
1909. Desta aliança turbulenta mas expressiva resultou a elaboração de mais
um número da colectânea “União da Juventude”, o número 3, que foi muito
mais rico em escritos literários do que os números anteriores. Das publicações
aí programadas foram realizadas várias apresentações públicas em comum
com a leitura dos seus programas estéticos na área da literatura e das artes
plásticas, bem como declamações de poemas futuristas. Numa das reuniões da
União, os seus membros decidiram organizar o teatro futurista Budetlianin
(Будетлянин)9 que servia para dar corpo às ideias estéticas futuristas numa
fusão inovadora e radical da literatura com a pintura e a música.
A invasão pela estética futurista da sociedade burguesa russa foi abran-
gente e bastante dinâmica e persistente. Duas das apresentações públicas
organizadas nos dias 23 e 24 de março de 1913 em S. Petersburgo, pelo gru-

7
Nesta altura Maiakovsky frequentou a Escola de Belas Artes de Moscovo onde tam-
bém estudou David Burliuk. Maiakovsky chegou à literatura a partir da pintura. Não
sendo um grande pintor, tornou-se um grande poeta, como nota bem Viktor Shklovsky
na sua obra Vladimir Maiakovsky (Shklovsky, 1974).
8
Guilea (florestal) – é o nome arcaico russo duma localidade dos Escitos – antiga tribo e
uma das eventuais origens das tribos eslavas – na foz do rio Dniepr.
9
Khlebnikov foi um defensor da língua russa e inimigo incansável das influências das
outras línguas estrangeiras. O neologismo “budetliane” (будетляне) criado por ele
advém da terceira pessoa do singular do verbo russo “Budet” (будет) – será. Poderá ser
traduzido por vindouros.
76 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

po Guilea e União da Juventude, intituladas Sobre pintura moderna e Sobre


literatura moderna, respectivamente, provocaram não só grande escândalo
no público mais ortodoxo, como deram também lugar a intensas e vivas dis-
cussões. A intervenção de Kazimir Malevitch, por exemplo, foi interrompida
pelo público indignado face à afirmação de que a pintura naturalista e a foto-
grafia eram a mesma coisa. Também a apresentação que focalizou os pro-
blemas da literatura moderna correu com uma enorme animação. Nela parti-
ciparam Maiakovsky, Krutchonykh e David Burliuk10.
Uma união artística de individualidades tão brilhantes e originais era
difícil de manter por muito tempo. O que é certo é que, para cada um dos
participantes desta aliança, este período representou uma etapa importante e
necessária no seu percurso artístico, um ponto de partida no desenvolvimen-
to da sua criatividade artístico-literária.
Depois da organização da exposição das obras vanguardistas, que
decorreu de novembro de 1913 até janeiro de 1914, a União da Juventude
deixou de existir. Mas com isso não cessaram a colaboração nem a atividade
conjunta dos membros do movimento que realizaram exposições comuns,
produziram e editaram livros futuristas desenhados, fizeram viagens pelo
país promovendo discussões públicas e exposições, etc. Começou, então, a
partir de 1914, o novo período do futurismo literário, o período da aproxi-
mação estética e ideológica dos vários grupos do movimento. Um dos sinais
bem visíveis desta reconciliação está expresso no último manifesto dos
cubo-futuristas “Vão para o Diabo!” (Идите к Чёрту!) que foi, também,
assinado pelo ego-futurista Igor Severianin e foi publicado no livro Parnaso
que ruge11 (Рыкающий Парнас) em janeiro de 1914, em S. Petersburgo.

10
Nas suas memórias, um dos participantes das apresentações públicas, Matiuchin
(2000:322), recordou estes dois eventos: “Eu presidi à primeira discussão “Sobre a
pintura moderna” onde apresentaram os seus temas David Burliuk e Kazimir Male-
vitch. Malevitch afirmou que o naturalismo e a fotografia são a mesma coisa. Ao
dizer: “Eis o que faz Serov...” (saiba-se que Serov era um dos pintores mais respeita-
dos da época), Malevitch projectou no ecrã uma simples fotografia de título “Mulher
de chapéu e manteau”, duma revista da moda. Instalou-se, então, o escândalo e fomos
obrigados a anunciar o intervalo. Mesmo assim Malevitch não conseguiu acabar o seu
discurso. A segunda discussão “Sobre literatura moderna” [...] inicialmente correu
muito bem, mas quando David Burliuk afirmou que Leão Tolstoi não passava de uma
fofoqueira social (pública), instalou-se uma enorme confusão. Uma velhota desmaiou
e foi levada para fora...”
11
A censura na Rússia czarista não foi menos rigorosa do que a censura sidonista portu-
guesa no que respeita às questões da moralidade. A edição do livro foi apreendida pela
polícia por causa da sua indecência, tendo sido notificados os seus editores, o compo-
sitor Mikhail Matuichin e o pintor Ivan Puni para se apresentarem perante o tribunal,
facto que nunca se realizou supostamente por a edição ter sido apreendida. Mas mes-
mo assim, Matiuchim conseguiu obter e distribuir cerca de duas centenas de exempla-
res sem a polícia dar conta.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 77

A participação numa viagem conjunta, que se estendeu por quinze cida-


des da Rússia dos representantes de todos os grupos futuristas, desde os
cubo-futuristas (irmãos Burliuk, Maiakovsky, Krutchonykh), os Ego-
-Futuristas (Igor Severianin, Boian) até ao Mezanino da poesia (Bolchakov),
pode considerar-se como mais uma forma táctica de aproximação entre os
vários grupos dentro do movimento na sua destruição da instituição arte,
objectivo que foi sempre primordial nas vanguardas. As discussões públicas
foram recebidas pela maior parte do público provinciano mais em termos de
curiosidade e vontade de estar a par das correntes artísticas modernas que
estavam na moda e davam muito que falar, do que como uma aceitação e
compreensão das posições estéticas e ainda menos das obras literárias dos
poetas futuristas. Todos os eventos tiveram autorização da polícia, embora
com a recomendação de não mencionarem o governo nem Puchkin. Contu-
do, nas palestras promovidas na viagem pelos futuristas, focaram-se impor-
tantes problemas da arte da Vanguarda desenvolvidos nos artigos técnicos
dos participantes. Por exemplo, David Burliuk apresentou o artigo “Cubismo
e Futurismo”; o poeta Cubo-Futurista Vassiliy Kamensky falou de “Aero-
planos e a poesia dos futuristas”; Maiakovsky leu “Os sucessos do Futuris-
mo”, da sua autoria, etc.
Precisamente nesta altura, em fevereiro de 1914, o fundador do Futu-
rismo visitou Moscovo e S. Petersburgo. No meio dos budetliane12 não havia
opinião unânime a respeito desta recepção. Alguns, como Velimir Khlebni-
kov, expressaram a sua vontade em ignorar este acontecimento. Mas pode
ler-se nas memórias de um dos organizadores da recepção a Marinetti, em
Moscovo, o fundador do grupo moderado futurista Mezanino da Poesia,
Vadim Cherchenevitch (2000:411): “Moscovo recebeu Marinetti duma for-
ma diferenciada. As senhoras deliraram com o seu temperamento; os críticos
social-democratas viram nele um novo Átila; os liberais ficaram indignados
por pôr em causa as bases dos enciclopedistas e da eterna moral”. Por sua
vez, em S. Petersburgo, os futuristas, principalmente o apreciador da cultura
ocidental Nikolai Kulbin, um dos principais ideólogos de vanguarda, organi-
zaram a recepção ao inspirador ideológico da corrente, no café Cão Vaga-
bundo, recepção que também teve os seus momentos bem quentes. No
encontro, Khlebnikov não só distribuiu uma folha-volante de sua autoria
dirigida “Aos carneiros das boas-vindas com rendas de servidão” como,
embora habitualmente calado nestas ocasiões, quase agrediu, em fúria, o
organizador do evento, relata Mikhail Matiuchin13 (2000:327). O pintor

12
Ver nota 8.
13
Nestas mesmas Memorias de Mikhail Matuichin podemos ler o efeito provocado por
Marinetti nos seus interlocutores: “Tive impressão que Marinetti era uma pessoa talen-
tosa, que dominava a palavra como arte. Ele imitava bem o barulho de uma hélice, de
tumultos, de batimentos de tambor como prenúncios da futura guerra europeia. Mas
para mim isso não passava de uma tramóia” (Matiuchin, 2000:327).
78 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Mikhail Larionov acentuava ostensiva e ironicamente a originalidade do


Futurismo russo com uma colher de sopa de madeira, utilizada principalmen-
te pelos camponeses russos, a sair do pequeno bolso do peito do seu casaco.
Não se pode dizer que o juízo sobre a arte e a literatura futuristas russas por
parte de Marinetti tenha sido muito animador; foi até, de certa forma, provo-
cador14. Mas tanto as opiniões de Marinetti sobre o valor e a originalidade da
poética dos futuristas russos, como o juízo destes, principalmente dos cubo-
-futuristas, sobre a poética do pai do Futurismo, tiveram o mesmo tom de
pouca cordialidade e menor valorização mútuas. Num dos artigos de David
Burliuk, citado por Teodor Grits (2001:252), o autor apresenta com indigna-
ção as considerações de Marinetti feitas depois de conhecer as obras dos
futuristas russos:

Isto é um atavismo estético, vocês estão a esquecer que o Futurismo é a


arte do futuro; nós aspiramos às novas formas, nós rejeitamos o que é
velho e acabado em nome do novo, e vocês, com o vosso Khlebnikov,
chegaram a um período pré-histórico da língua; não, isto não é o Futu-
rismo, mas sim o retrocesso ao passado estético esquecido por esta nossa
época do aeroplano, do motor e do sapato de verniz americano.

É no contexto deste ambiente relativo ao fundador do Futurismo que,


em muitos jornais começaram a surgir, entretanto, artigos escritos pelos futu-
ristas em tom de grande violência, demonstrando a sua discordância estética
com o Futurismo italiano. Será no sentido de amenizar este ambiente que
Maiakovsky publicou num dos jornais centrais, o Nov (Новь – O novo), uma
carta de compromisso sublinhando o carácter autónomo do Futurismo russo
e apelando, de certa forma, a uma coexistência pacífica:

Sob o nome de “futuristas russos” existe um grupo que está unido pelo
ódio ao passado e que representa pessoas de temperamentos e caracteres
variados. Pondo de lado a brincadeira pouco elegante de frases como
“ovos podres”, “ramo de flores da estação”15, etc., nós vamos exprimir a
nossa opinião sobre a recepção a Marinetti e sobre as nossas relações
para com ele: rejeitando qualquer tipo de filiação no italofuturismo,

14
Recordemos, com Vadim Cherchenevitch (2000:411), nas suas memórias já citadas,
um dos incidentes que aconteceram durante a visita de Marinetti à Rússia: “O pintor
Larionov tentou explicar a Marinetti (Larionov não dominava nem inglês, nem fran-
cês, nem italiano e Marinetti, por razões de princípio, não quis falar em russo), que o
lutchizm (лучизм – rayonism) inventado por ele era mais importante do que o Futu-
rismo. Marinetti não percebeu nada, mas depois de ver os quadros de Natália Gontcha-
rova retorquiu: “Está bem! É muito fresco! Igual a nós!”, mas olhando com insatisfa-
ção para os quadros de Larionov, virou as costas e saiu, dizendo: “São maus!”
15
Trata-se do hábito russo de ir buscar ao ponto de chegada de uma viagem (estação
ferroviária, porto, aeroporto, etc.) uma pessoa mais íntima e querida ou importante
com um ramo de flores.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 79

apresentamos a tese do paralelismo literário. O Futurismo é uma corren-


te social nascida da grande cidade, pelo que nivela, ela própria, qualquer
tipo de diferenças nacionais. A poesia do futuro é cosmopolita. Eis a his-
tória que é apresentada como sendo de relação entre mestres e discípu-
los.

Esta carta do Cubo-Futurista Vladimir Maiakovsky foi também assina-


da por nomes como o de Konstantin Bolchakov e o de Vadim Cherchene-
vitch, ambos do moderado Mezanino da Poesia (Cherchenevitch, 2000:412).
A ideia da pouca afinação do Futurismo russo com o italiano foi expres-
sa directamente não só nos artigos publicados na imprensa por vários grupos
futuristas ou nas apresentações públicas, mas também nas datas falsamente
antecipadas da publicação dos seus livros e nas exposições de pintura. Com
efeito, a posição ideológica de Marinetti não foi nada bem aceite pelos futu-
ristas russos. A ideia da criação de novas formas artísticas que correspondes-
sem às novas condições da modernidade foi usada pelos futuristas russos
como lema da sua estética, colocando o acento prioritariamente na inovação
dos procedimentos originalmente nacionais, reivindicando o próprio cami-
nho da mudança da sociedade através da sua destruição e rejeitando catego-
ricamente a inimizade entre os povos que era proposta por Marinetti nos seus
Manifestos. O nacionalismo dos futuristas russos foi alheio às ideias chauvi-
nistas expressas pelo Futurismo italiano:

...das catacumbas de Roma saem as canções de Marinetti que quer des-


truir os museus e as bibliotecas e que glorifica a guerra como única
higiene do mundo. Mas nós não queremos nenhuma guerra entre povos!
Nós cantamos as nossas próprias canções de glória da modernidade
sobre os trastes da tristonha existência pequeno-burguesa. Nós celebra-
mos com prazer a missa de corpo presente da arte morta da Rússia pro-
vinciana. Nós somos poetas futuristas do presente, vivos e emocionados,
que trabalhamos como motores em nome do entusiasmo da juventude e
da glória do Futurismo... (Kamensky, 2000:356).

A consciência da importância de ter um órgão de divulgação de maior


eficácia levou os futuristas à criação do seu próprio periódico. Na primavera
de 1914 saiu o primeiro e único número da revista Primeira Revista dos
Futuristas (Первый журнал футуристов). Desta forma, tentaram concen-
trar e unir as suas forças os representantes de todos os grupos futuristas. Mas
a primeira guerra mundial e, devido a ela, a introdução da uma censura mili-
tar severa interromperam a actividade intensa dos futuristas e não permitiram
a continuação de mais edições. Além disso, muitos dos cubo-futuristas, tais
como os poetas Nikolai Burliuk, Khlebnikov, Maiakovsky, Livchits, e pinto-
res como Mikhail Larionov e Pavel Filonov entre outros, foram recrutados
para o exército, constituindo isso um enorme golpe na força do movimento.
As publicações Сubo-Futuristas que saíram neste período foram pouco
80 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

homogéneas e perderam o seu sentido de polémica e de combate. Mas, por


outro lado, foi a guerra que introduziu um tema novo no campo da literatura
russa, tema a que não podia ficar indiferente o Futurismo, deslocando o seu
alvo dos ataques ao gosto público para o inimigo nacional, a Guerra. Propo-
sitadamente, todos os cartazes feitos, por exemplo por Malevitch e Maia-
kovsky, bem como vários poemas dos cubo-futuristas, foram feitos em estilo
neoprimitivista baseado no lubok16 russo.

Lubok patriótico, 1914. Desenho de Kazimir Malevitch, textos de Vladimir Maiakovsky

Precisamente neste período aconteceram aproximações com outros teó-


ricos da literatura, como Iossip Brik, Roman Jakobson, Viktor Shklovsky,
etc., o que proporcionou uma maior análise sobre a criação lexical. Foram
editados, neste período, dois almanaques: Apanhou (Взял) e Lotorei, ambos
de 1915. Estas edições mostraram o potencial criativo artístico dos futuristas,
bem como influenciaram a actividade da OPOIAZ (Sociedade de Estudos da
Linguagem Poética) e a criação da escola formalista. Os acontecimentos da
revolução de Outubro introduziram, entretanto, novas inspirações e novas

16
Lubok é o desenho popular executado segundo a técnica de xilografia ou gravura sobre
cobre, pintado à mão. O próprio lubok remonta à tradição dos ícones narrativos quan-
do no centro é colocada a imagem do santo e ao seu redor cenas relevantes da sua
vida. Assim, através do lubok, o livro manuscrito do movimento vanguardista apresen-
ta uma clara ligação ao ícone.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 81

tendências ideológicas na corrente futurista, marcando um novo período no


seu desenvolvimento.
Desde o seu aparecimento, o Futurismo como corrente da Vanguarda
pretendeu fazer inovações na área artística de modo a criar uma nova con-
cepção de cultura que fosse ofensiva, dinâmica e agressiva e construísse uma
sociedade à medida do perfil dos seus objectivos. A feição artesanal com que
os seus representantes apresentavam os seus livros, bem como o material
usado na sua composição – o vulgar papel de embrulho ou as costas de papel
de parede – eram propositados, e, obviamente, continham um aspecto inten-
cionalmente provocatório. Tudo era feito para obter reacções fortes, mesmo
que fossem negativas. Nas experiências dos livros desenhados destes van-
guardistas sentiram-se, então, as tradições plásticas dos letreiros de anúncio
e dos lubok russos que provinham do século XVII.
A quebra brusca dos cânones tradicionais proclamada nos manifestos
dos cubo-futuristas, os seus livros e brochuras muito inovadores e pouco
compreensíveis para o grande público começaram a circular, como já referi-
mos, desde 1912, provocando reacções que roçaram o extremismo e que
invadiram de imediato todo o tipo de imprensa. Para uns, tratava-se de “mal-
ta” jovem e alegre que decidiu fazer rir as pessoas de si próprios e rir-se dos
outros; outros viram nisto a queda da moral, o cinismo, a arruaça17; outros
ainda, como o grande poeta simbolista russo Aleksandr Blok, aproveitaram o
momento para reflectir sobre problemas da tradição literária.
No livro Bofetada no gosto público – Em defesa da arte livre
(Пощечина общественному вкусу – в защиту свободного искусства)
(1912), que foi editado em Petersburgo, os seus autores publicaram um
manifesto de título idêntico Bofetada no gosto público, no qual traçaram os
princípios da nova estética futurista. “A face do nosso Tempo”, como se
autodenominaram exclusivamente a si próprios os membros deste grupo,
apelou ao destronamento da literatura tradicional e a que “se atirasse para
fora do Navio da modernidade, Puchkin, Dostoievsky, Tolstoi, etc.”, ao
mesmo tempo que instituíam e ordenavam o respeito ao novo estatuto dos
direitos dos poetas que a seguir se referencia:

1– Ampliar o léxico no seu volume com palavras arbitrárias e deri-


vadas (palavra-inovação);
2– Odiar sem remissão a língua que existiu antes;

17
Segundo as recordações de Alexei Krutchonykh (2003:136): “Cada palavra nova
nascia em convulsões e debaixo dos ganidos do acossamento total. Para nós, partici-
pantes da luta, os livros e as declarações não pareciam extravagantes, nem do ponto de
vista do conteúdo nem do visual. Mas a crítica de então [...] tentava-nos simplesmente
estrangular, chamando-nos: delírio forçado de gente pretensiosa e nula; huligans doi-
dos, descarados; coletânea cheia de absurdos insensatos, de delírio de doentes com
febre ou de doidos...”
82 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

3– Repelir com horror, da própria fronte altaneira, a Coroa de glória


barata feita de ramos que apenas são próprios para o banho18.
4– Manter-se firme na rocha da palavra “nós”, face ao mar de asso-
biose indignadas provocações.
E mesmo que nas nossas linhas de escrita ainda restem resquícios
sujos do vosso “bom senso” e “bom gosto”, todavia já nelas pal-
pitam os primeiros Fulgores da Nova Futura Beleza da Palavra
Autovalorizada (auto-suficiente) [Самоценное самовитое слово
Samotsenoe (samovitoe) slovo].
D. Burliuk, Akeksandr Krutchonykh, V. Maiakovsky, Viktor Khlebnikov.
Moscovo, Dezembro de 1912.

No seu programa estético, propuseram os cubo-futuristas novos procedi-


mentos literários (palavra-inovadora), para construir novos padrões de beleza e
de gosto completamente diferentes da semântica simbolista. O tom cortante do
manifesto, bem como as afirmações negativamente peremptórias com que toca
em nomes “sagrados” da literatura e da cultura russas, reforçados com a pró-
pria posição do olhar de cima dos arranha-céus para a mesquinhez daqueles
que limitaram o seu mundo a uma simples casa de campo, provocou uma
extraordinária reacção da sociedade literária e da imprensa russas. O desafio
lançado pela vanguarda mais radical ao tradicionalismo artístico, literário e
cultural da sociedade russa obteve o resultado desejável: uma explosão de
artigos injuriosos e até obscenos que imediatamente invadiram as revistas e
jornais de toda a Rússia. Ao mesmo tempo, foi usada outra arma não menos
eficaz de propagação das ideias futuristas: punha-se a circular uma folha
volante que, sintomaticamente, foi também intitulada Bofetada no gosto públi-
co, reafirmando a união do grupo dos poetas à volta do “génio, do grande poe-
ta da modernidade, Velimir Khlebnikov, que implantou a Renascença da Lite-
ratura Russa sob o slogan «Abaixo a palavra-meio, viva a samovitoe, samot-
senoe Slovo! [Palavra auto-suficiente, autovalorizada]»” (in:Terekhina,
2000:43), dando as devidas respostas às críticas surgidas. Nas costas da folha,
para um maior reforço argumentativo, contrapunham-se às obras dos clássicos
as dos de budetliane: o lugar na literatura russa dos poetas clássicos como
Puchkin, Lermontov, Gogol e Nadson devia ser ocupado pelos poetas-futuris-
tas Khlebnikov, Maiakovsky, Burliuk e Krutchonykh respetivamente.
Na terminologia dos futuristas russos, o lexema manifesto que foi larga-
mente utilizado na estética futurista no estrangeiro, teve alguma aceitação no
seu período histórico inicial, principalmente pelos pintores. Na área literária,
os primeiros textos desta natureza foram denominados como Declaração, e, na
segunda fase do decénio e início dos anos 20, adoptaram-se lexemas como

18
Nos banhos russos, usam-se ramos de bétula e de carvalho para massajar o corpo com
batimentos.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 83

Ordem, Decreto e Apelo. Muitas vezes, os referidos manifestos pura e sim-


plesmente não integravam no título qualquer palavra designatória específica.
Realça-se, talvez, o aparecimento de um manifesto conjunto de poetas e
pintores intitulado Declaração da União da Juventude e da Guilea que teve
por objectivo transmitir, no mesmo seguimento, ideias comuns revolucioná-
rias. Desta forma, desejavam estes criadores, pelo esforço comum, apoiar e
desenvolver um conjunto de princípios do novo tipo de arte que mostrasse a
“união e revelação das suas valiosas diferenças”. Esta colaboração pressupu-
nha publicação conjunta na revista já existente da União da Juventude. Esta
apresentação foi muito sucinta, e até mesmo, de certa forma, inacabada, cin-
gindo-se nalguns aspectos a simples enunciados intencionais. Transcrevamos:
1. Determinação do conceito do Belo.
2. Estabelecimento das diferenças entre criador e espreitador.
3. Luta contra o mecanicismo e a temporalidade.
Depois, os postulados tanto unificadores como separadores:
1. Alargamento do valor do Belo para além dos limites da consciên-
cia (princípio da relatividade).
2. Aceitação da teoria cognitiva como critério.
3. União do chamado «material».
Associação dos pintores União da Juventude
Secção Guilea” (ib.:226).
A proclamação destes princípios estéticos concretizou-se na criação de
uma série de livros experimentais que, segundo os autores, davam liberdade
total à sua leitura e interpretação.

Princípios literários do cubo-futurismo. União entre a literatura e as


artes plásticas
A primeira experiência e afirmação destes novos princípios estéticos na
literatura e na pintura russas foi a de uma coletânea, de título pouco vulgar,
Sadok sudei 19(Садок судей, Abril de 1910), organizada por um grupo de
figuras da arte, entre as quais estavam David Burliuk, Vassily Kamensky,
Elena Guro, o compositor e pintor Mikhail Matiuchin, os pintores Mikhail
Larionov e Natalia Gontcharova. Foi este grupo a que o já referido inspira-
dor Velimir Khlebnikov denominou mais tarde budetliane, em substituição
do termo importado futurista que tinha começado a ser usado nesta altura na
língua russa. A tiragem do livro foi apenas de 300 exemplares e apresentava
um formato quadrado, médio, no avesso de papel de parede florido dos mais
baratos. Aí foram impressos poemas sem qualquer pontuação gráfica acom-

19
Podemos traduzir como Viveiro dos juízes.
84 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

panhados por ilustrações um tanto extravagantes. O facto da existência deste


livro foi suficiente para proclamar guerra à estética da velharia.
A estes livros desenhados, nos quais o texto manuscrito e as ilustrações
se fundiam numa só mancha, os futuristas chamaram autógrafos, em russo
samo-pismo [самописьмо – auto escrita].
Eram bem diferentes dos livros tradicionais, tratando-se dos primeiros
exemplos de um novo género de Arte Experimental: livro-objecto que não se
destinava tanto à leitura mas sobretudo à impressão visual, encarando-se na
sua percepção dupla como um único objecto estético. “A palavra era o
ornamento no quadro de pintura. A pintura e a literatura não eram tidas
como separadas na arte de então” (Shklovsky, 1974,vol.3:40). Por exemplo,
o livro do poeta futurista do grupo Mezanino da Poesia, Konstantin Bolcha-
kov, Le Futur (1913), tinha quinze páginas, oito das quais eram ocupadas
por desenhos. Contudo, não se estava perante uma forma de ilustração de
uma obra literária, que na opinião de Iúri Tynianov leva à deformação e à
limitação da interpretação da obra ou se impõe a esta interpretação. O dese-
nho era, ele próprio, essência da própria obra. Como escreveu aquele crítico
literário em 1923, “a ilustração dá apenas detalhe da fábula e nunca do sujet.
Ela realça-a da dinâmica do sujet. Ela obstrui o sujet”20 (2002:465).

Сapa do livro auto escrito de Maia-


kovsky, Eu!(Я!), Uma pagina auto escrita do livro de Maia-
Desenho de Tchekryguin, 1913. kovsky, Eu!(Я!), 1913.

20
O termo fábula, segundo Tynianov (2002:465), representa “uma cadeia estática das
relações, das ligações e dos objectos da obra fora da sua dinâmica verbal. Sujet são
estas ligações e relações na sua dinâmica verbal”.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 85

Velimir Khlrbnikov, Em memória de Ivan Ignatiev. Auto escrita colorida,


desenho de Olga Rosanova 1914.

O grupo Сubo-Futurista moscovita Guilea lançou o seu programa esté-


tico da arte futurista na sua primeira coletânea, Bofetada no gosto público,
em dezembro de 1912, abrindo com ela um período de um ano e meio de
Sturm und Drang da vanguarda literária russa. Os próprios autores conside-
raram que com este livro se instituiu o Futurismo na Rússia, e com ele foram
proclamados os princípios da criação poética livre fora dos condicionalismos
tradicionais. Na onda deste sucesso escandaloso, foi publicado, em fevereiro
de 1913, Sadok sudei II, onde, por entre os de autores “velhos”, constaram
novos nomes como o de Vladimir Maiakovsky, Alexei Krutchonykh e Bene-
dikt Livchits. No prefácio ao livro esta nova gente da vida nova, como se
autodenominavam, falou sobre um novo limiar das buscas artísticas que
marcava os princípios de um novo procedimento literário.
86 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Capa Sadok sudei II Садок судей, 1913.

A fundamentação estética desta inovação artística que se manifestou


através de uma nova tipologia de livros de natureza completamente invulgar
foi feita sobretudo nos manifestos e em artigos programáticos dos futuristas.
O manifesto Letra auto-suficiente (1913), por exemplo, que apenas conheceu
letra de imprensa muitos anos depois da sua feitura21, foi um dos que expri-
miu as ideias mais divulgadas e defendidas pelos futuristas no meio artístico.
Por sinal, este escrito foi alvo de uma resposta bem severa por parte dos
linguistas-académicos22. Naquela Declaração (assim foi denominado o
manifesto), os seus autores Aleksei Krutchonykh e Velimir Khlebnikov
afirmaram que a percepção da palavra ou do texto depende necessariamente
do tipo de letras com que estes estão escritos. A palavra impressa é palavra
morta na qual as letras “ofendidas, rapadas, todas incolores e cinzentas – não
são letras mas sinais – estão dispostas em fila” (Krutchonykh, 2000:49). Para
que a palavra comece a falar, ela deve ser escrita à mão, já que durante o
processo da escrita essa palavra absorve em si os sentimentos e as emoções
do poeta que a escreve. Veja-se, a propósito, como os autores da Declaração
fundamentaram as suas posições:

21
O Manifesto foi inserido no livro, Khlebnikov – Obras não publicadas, que saiu em
1940.
22
Ver o artigo de Boduen de Kurtene (2000:289-291) “A teoria da «palavra como tal» e
da «letra como tal» que foi publicado no anexo ao jornal peterburguense, Dia, Nº 8
(1914). Neste artigo, por um lado, o autor acusa os futuristas da falta de conhecimen-
tos linguísticos e da atitude desprezível que têm para com a ciência; por outro,
demonstra como as afirmações que os futuristas apresentaram como novidade poética
suscitavam serias dúvidas.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 87

1. O estado de espírito altera a caligrafia durante a escrita.


2. A caligrafia alterada de forma peculiar pelo estado de humor transmi-
te este estado ao leitor independentemente das palavras. Da mesma for-
ma se deve colocar a questão no que respeita aos sinais escritos, visuais
ou simplesmente palpáveis, como são os da escrita para cegos. Claro que
não é obrigatório que seja o próprio retchar23 o escrivão do livro veloci-
no de ouro; é até talvez melhor entregar essa tarefa a um pintor. Mas
livros assim ainda não tiveram existência. Pela primeira vez estão a ser
criados pelos budetliane [...].
É estranho como nem Balmont, nem Blok, que pareciam ser pessoas
moderníssimas, se lembraram de entregar a sua obra criadora a um pin-
tor em vez de um compositor ... A obra que foi transcrita por alguém que
substituiu o próprio criador e que não sentiu nada durante essa transcri-
ção, perdeu toda a magia que era inerente à caligrafia na hora “da terrí-
vel tempestade da inspiração”.
V. Khlebnikov
A. Krutchonykh (ib.).

Ao encontro destas ideias vem também um artigo dos irmãos David e


Nikolai Burliuk. Este artigo, com o título, “Os começos poéticos”, foi publi-
cado na Primeira Revista dos Futuristas Russos que saiu em Moscovo em
1914. Dando força à nova abordagem da palavra e aplicando a ideia aristoté-
lica da obra poética como um organismo, os autores propuseram o seu cami-
nho próprio para a contemplação dos valores estéticos. Era necessário que a
palavra fosse vista como algo que tem a capacidade de despertar uma recor-
dação sobre uma coisa concreta, mas também que fosse utilizada como mas-
sa verbal disponível para o poeta, para além do seu conteúdo semântico.
Assim, as palavras são encaradas como um dos meios importantes para
reforçar o efeito estético através da interacção entre os elementos meramente
visuais e o conteúdo poético. Estes elementos visuais da escrita são, portan-
to, um complemento fundamental à apreensão estética. Podemos aqui estabe-
lecer um paralelismo com Velimir Khlebnikov no que respeita a uma aceita-
ção parcial da antiguidade como uma fonte possível de inspiração estética.
Desta forma, os autores apelam à recordação de livros dos poetas alexandri-
nos onde a mancha do texto apresenta a forma de vasos, de espadas ou de
liras; ou então à de livros medievais que utilizaram elaboradas vinhetas e
iluminuras. Paralelamente, os poetas e pintores contemporâneos introduzem
nas suas obras o sentimento estético através de sinais que, antes, nunca
haviam entrado na linguagem poética, como são, por exemplo, os sinais
utilizados nas fórmulas científicos +, §, =, >, etc., acções que estão na base
dos denominados livros auto-escritos. Ora, são estes, também, os princípios
que orientam os pintores e os poetas futuristas na criação da nova obra artís-
tica. Precisamente esta base teórica foi implacavelmente criticado pelo pai

23
Este neologismo é formado a partir do substantivo retch (речь– fala).
88 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

do Futurismo, Marinetti. Ele viu isso como um grande recuo estético em vez
da projecção para o futuro.
Deste modo, no livro de Velimir Khlebnikov, Izbornik (Изборник)
(1913), acima referido, o seu cúmplice, o pintor Pavel Filonov, realizou a
ideia do poeta sobre a caligrafia transformando os seus poemas numa espécie
da escrita fonológica. Os métodos artísticos utilizados pelo pintor no que
respeita ao tamanho, à cor, ao destacamento de certas linhas chave e à acen-
tuação de letras-fonemas criaram o sentido visual do poema com o seu
movimento rítmico, com a sua aceleração e diminuição, os seus momentos
tónicos.

Velimir Khlebnikov, Izbornik (Изборник), desenhos de Pavel Filonov, 1913

O desenho de Pavel Filonov, assim se exprime o crítico Boklagov


(www.uni-dubna.ru), converte algumas letras em símbolos do significado
das palavras, como se verifica, por exemplo, na primeira letra da palavra
cobra que tem a forma deste réptil, ou com o til em forma de riacho na pala-
vra com este significado, etc.24
No poema Jogo no Inferno, (Игра в аду) de Khlebnikov e Krut-
chonykh, escrito em 1912, podemos ver um outro exemplo de entendimento
artístico, com as litografias da autoria de Natália Gontcharova. Os desenhos
fantasmagóricos, cheios de sentido satírico sobre o Diabo, revelaram uma

24
Compulsar, sobre a matéria, as entradas “Idéogramme” e “logogramme” do Vocabu-
laire de la Modernité Littéraire, de Paul Louis Rossim (Minerve, 1996).
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 89

enorme mestria de ornamento pictórico desse texto poético. Este livro, feito
a imitar o lubok, representa uma feliz união entre texto e imagem.
Numa palavra, explicar o texto poético através de desenhos foi o objec-
tivo que norteou, então, os pintores-futuristas na sua colaboração experimen-
tal com a poesia. E esta colaboração artística, diga-se, conseguiu resultados
notáveis e interessantes, pois alguns destes pintores, como Kazimir Male-
vitch e Pavel Filonov, acabaram por seguir, também, a poética, compondo
poesia e experimentando a linguagem abstraída de sentido, também chamada
zaum25.
Esta compreensão mútua e esta união da visão artística, aliadas à ânsia
de ruptura estética e de experimentação, proporcionaram uma colaboração
fértil entre poetas e pintores. Estão neste caso pintores como Natália Gont-
charova, Mikhail Larionov, Kazimir Malevitch, Vladimir Tatlin, Olga Roza-
nova, Nikolai Kulbin, Vladimir Maiakovsky, entre vários outros. A estreita
ligação da criação poética futurista com a pintura constitui, por isso, uma
característica primordial desta estética. Contudo, como afirma o próprio
Boklagov (ib.):

O Futurismo literário russo, e sobretudo o Cubo-Futurismo, afirmou-se


numa relação intensa com as artes plásticas. Foi precisamente numa
linha de interacção da poesia com a pintura que se criou a maior tensão,
que cintilou o relâmpago khlebnikoviano que deu luz aos princípios esté-
ticos da nova arte. Na poesia, o paradigma musical que foi típico para o
Simbolismo deu lugar ao paradigma da pintura, o que correspondeu ao
surgimento de uma atitude diferente do criador para com a matéria. A
pintura (como reconheceram quase todos os poetas cubo-futuristas)
adquiriu prioridade quando se tratou da descrição da contemporaneida-
de. A frase de Khlebnikov: “Nós queremos que a palavra siga corajosa-
mente atrás da pintura”, define, com precisão, esta tendência.

Diga-se que, neste contexto, os futuristas editaram cerca de vinte livros-


-autógrafos o que, embora não muitos, marcaram o seu espaço no panorama
do modernismo.

Bibliografia
BLOK, Aleksandr (1971 [1906]), “Bez bojestra, bez vdokhnivenia” [“Sem
divindade, sem inspiração”], in Obras escolhidas em VI vol., vol.V,
Moscovo, ed. Pravda, pp. 530-40.

25
Este neologismo – заумь – foi inventado por Velimir Khlebnikov e pode traduzir-se
como para além da mente, para além do sentido. Optamos pela transcrição fonética da
língua portuguesa se bem que na crítica literária francesa se utilize zaoum, transcrição
segundo as regras fonéticas desta língua.
90 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

BODUEN DE KURTENE, I., (2000), “O teorii slova kak takovogo i bukvy kak
takovoi” [“Ao teoria de “palavra como tale a letra como tal”], in: TERIE-
KHINA, V, ZIMENKOV, A. Futurismo russo, Moscovo, ed. Nasledie,
pp. 289-91.
BOKLAGOV, E.N. (18.07.2003), “Velimir Khlebnikov i estetiko-
-khudojestvenni printsip avangarda” [“Velimir Khlebnikov e o princípio
estético-artístico da Vanguarda”],
http://www.uni-dubna.ru/science/publications/collectl/boklagov.shtml
BURGER, Peter (1993) Teoria da Vanguarda, Lisboa, ed.Veja.
CHETCHENEVITCH, V., (2000[s.d.]), “Futuristas”, Memórias,”[“Futuristy,
Vospominania,”] in:. TERIEKHINA, V, ZIMENKOV, A. Futurismo rus-
so, Moscovo, ed. Nasledie, pp. 403-29.
GRITS, Teodor (2000[1933]), Prosa Velimira Khlebnokova [Prosa de Velimir
Khlebnikov], ed. Iazyki russkoi cultury, Moscovo, pp. 231-232.
KAMENSKY, A. (2000[s.d.]),”Put entusiasta. Vospomonania”, [ “Caminho do
entusiasta”, Memórias,] in:. TERIEKHINA, V, ZIMENKOV, A. Futuris-
mo russo, Moscovo, ed. Nasledie, pp. 341-59.
KRUTCHONYKH, A. (2000[s.d.]), “Nach vykhod”, [“A nossa saída”, Memó-
rias,] in:. TERIEKHINA, V, ZIMENKOV, A. Futurismo russo, Moscovo,
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MARINETTI, F. (1995), O futurismo; trad. António Moura., Lisboa, ed. Hiena.
MATIUCHIN, M., (2000[s.d.]) “Pusskie cubofuturisty. Vospominania”, [“Cubo-
-futuristas russos” Memórias], in: TERIEKHINA, V, ZIMENKOV, A.
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SHKLOVSKY, Viktor (1974 [1940]) O Maiakovskom,[Sobre Maiakovsky],
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TERIEKHINA, V, ZIMENKOV, A. (2000), Pusski futurizm, [Futurismo russo],
Moscovo, ed. Nasledie.
TYNIANOV, Iuriy (2001 [1922]) “Promejutok”, in: Hístoria literatury. Kritika,
[“Intermédio” ], in: História da Literatura. Crítica, ed. Acad
OBSERVATÓRIO ASTRONÓMICO DE LISBOA.
O ESPÓLIO DOCUMENTAL CIENTÍFICO

Halima Naimova

Научная библиотека и архив лиссабонской астрономической обсерватории


является богатейшим наследием Португалии и одним из основных источников
для исследований в области истории астрономической науки и связанных с
ней других научных областей XIX и начало XX веков. Лиссабонская
астрономическая обсерватория разделяет свою судьбу в период своего
становления с Пулковской астрономической обсерваторией – сегодня Главная
(Пулковская) астрономическая обсерватория РАН.
Ключевые слова: лиссабонская астрономическая обсерватория, научная
библиотека и архив.

Um dos períodos mais interessantes na história das relações entre o Por-


tugal e a Rússia do século XIX é testemunhado pela cooperação mútua entre
os dois estados na ideia de criação da instituição científica de primeira
ordem no campo de astronomia: O Real Observatório Astronómico de Lis-
boa (ROAL).
F. G. W. Struve (1793-1864) o eminente astrónomo e primeiro director
do Observatório Astronómico de Pulkovo (Rússia) teve conhecimento da
empresa portuguesa através do embaixador Lobo de Moura (1810-1868) em
São Petersburgo.
Struve apresentou, em 1857, ao estado português através do seu embai-
xador Lobo de Moura um longo documento dirigido A Son Excellence M. le
Chevalier Lobo de Moira [,] Ministre de Sa Majesté Trè-Fidèle à St. Peters-
bourg – e intitulado Mémoire présenté par le Directeur de l’Observatoire
central de Russie.
Neste documento único, que faz parte do património documental do
Observatório Astronómico de Lisboa, Struve confirma a importância do
nascimento de uma nova instituição científica: L’éréction décrétée par le
92 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

gouvernement Portugais d’un Observatoire astronomique de primier rang à


Lisbonne, est un événement qui ne pourra manquer à être accueilli avec dês
sympathiis générales dans tout le monde scientifique.
Os alicerces do novo Observatório Astronómico foram lançados em
1861. Integrado em 1992 na Universidade de Lisboa, o Observatório Astro-
nómico celebrou os 150 anos de existência (2011) abarcando o rico espólio
de documentos que formam a sua biblioteca e o arquivo científicos.
O espólio documental do Observatório Astronómico de Lisboa é um
bem que compreende todas as áreas científicas, em particular a relativa à
astronomia do século XIX, a mais completa no território nacional, pensada
para fazer investigação em astronomia sideral.
A astronomia sideral, este vasto campo de pesquisa criado pelo génio
de W. Herschel, prometerá ao Real Observatório Astronómico de Lisboa um
futuro brilhante através da realização de investigação científica como a sua
actividade principal, escrevera Struve.
Considerado pela qualidade dos seus instrumentos astrométricos como
Observatório de primeira ordem na Europa para poder colaborar com o
Observatório Astronómico de Pulkovo, especialmente no campo de astro-
nomia estelar, as colecções da sua biblioteca e a documentação do arquivo
tinham de responder aos propósitos para a qual a instituição foi fundada.
Uma troca de publicações entre o Observatório Astronómico de Pulko-
vo tinha começado imediatamente nos primeiros dias de desenvolvimento do
projecto da edificação do Observatório Astronómico de Lisboa. Entre estes
figuram a obra clássica em história de astronomia Description de l’observa-
toire astronomique central de Poulkova, par F.W.G. Struve (1845), Bulletin
de l’Académie Impériale des Sciences de St.-Pétersbourg (1860). De Portu-
gal enviaram-se para a Rússia os volumes de Memorias da Academia Real
das Sciencias de Lisboa (1797), publicações da mesma e mapas do país.
Frederico Augusto Oom (1830-1890), o primeiro astrónomo e director
do Observatório Astronómico de Lisboa, na sua jornada científica pelos
observatórios europeus, permanência e trabalho entre 1858-1863 no Obser-
vatório Astronómico de Pulkovo igualmente adquiriu livros e estabeleceu
contactos com os livreiros.
A riquíssima e valiosa biblioteca de astronomia do Observatório Astro-
nómico de Pulkovo serviu de referência para o Observatório Astronómico de
Lisboa.
As colecções da biblioteca de Pulkovo acolhiam também quarenta e três
obras de astronomia das mais raras, anterior e do século XVI, da biblioteca
dos padres jesuítas em Pequim do qual fundo principal provinha da missão
portuguesa.
A tradução por F. A. Oom do latim para português do prefácio ao catá-
logo bibliográfico Librorum in bibliotheca Speculae Pulcovensis (1860)
prova de fazer uso de um documento orientador para a constituição das
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 93

colecções da biblioteca do Observatório Astronómico de Lisboa, alem de


Bibliographie astronomique de La Lande (1732-1807).
Pela mão de Leopoldo Voss de Leipzig, agente livreiro da Academia
Imperial das Ciências da Rússia e do Observatório Astronómico de Pulkovo,
chegaram destinados à biblioteca os primeiros livros indicados por Struve.
No entanto, o papel mais relevante na constituição das colecções do
núcleo fundacional da literatura astronómica coube ao livreiro e editor ale-
mão Friedlander & Sohn.
O livro mais antigo da biblioteca é um incunábulo Elementa Geometri-
ca (1492) de Euclides. Engrandecem as colecções da biblioteca alguns livros
raros dos séculos XVI a XVIII que abrangem os domínios de filosofia natu-
ral, astronomia e matemática, trigonometria e óptica, alguns dos quais foram
comprados a Mariano Cirilo de Carvalho (1836-1905), matemático e político
português, outros foram oferecidos como Philosophiae Naturalis Principia
Mathematica de Isaac Newton (1642-1727) e os livros de importante valor
científico em astronomia da biblioteca privada de F. A. Oom. Fazem parte
dos impressos antigos o livro espectacular Cosmographia Petri Apiani
(1551), várias edições de Sphaera Ioannis de Sacro Bosco, a mais antiga da
biblioteca é de 1508. Obras do matemático português Pedro Nunes (1502-
-1578) Petri Nonii Salaciensis Opera (1592); Petri Nonii Salaciensis De
Arte Atqve Ratione Navigandi Libri Dvo (1573), encadernado conjuntamente
com as segundas edições de 1573 Petri Nonii Salaciensis, De Crepusculis
Liber Unus e De Erratis Orontii Finaei foram fornecidos pelo livreiro ale-
mão Friedlander & Sohn.
Da importante colecção de cartas astronómicas, produzidas entre 1600-
-1800, a biblioteca do Observatório Astronómico de Lisboa possui alguns
das mais consideradas. Poucos artefactos da história de Astronomia podem
rivalizar pelo seu esplendor visual como os Grandes Atlas Celestes. Produ-
ções da época de ouro, que incluiu aproximadamente dois séculos (1600-
-1800), estes documentos têm-se na conta dos livros magníficos que alguma
vez se publicou. Por muito que se aprecie atlas celestes como obra de arte,
estes foram, em primeiro lugar, livros de ciência; baseados nos catálogos da
altura, as cartas celestes serviram de ferramenta de trabalho para os astróno-
mos até aos finais do século dezoito. No intervalo de tempo de duzentos
anos somente quatro cartas celestes publicadas adquiriram a categoria profis-
sional: Uranometria (1603) de Bayer, Firmamentum (1690) de Hevelius,
Atlas Coelestis (1729) de Flamsteed a par da importante edição francesa de
1776 e 1795 e Uranographia (1801) de Bode. O atlas de Flamsteed de 1729
era o mais aclamado dos quatro referidos devido às posições de estrelas
insertas de acordo com um sistema de projecção perfeito para o século
dezoito. O atlas Coelum Stellatum Christianum (1627) de Julius Schiller
julgado pelos astrónomos, em várias perspectivas, como um atlas que mais
respondia às exigências da época, embora tenha sido pouco praticável como
94 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

instrumento de trabalho por ter substituído as tradicionais constelações pagãs


pelas figuras bíblicas. O atlas de Doppelmayer de grandes dimensões inclui
um conjunto de gravuras coloridas; a representação no atlas dos mapas de
Lua de Riccioli e Hevelius é considerada como admirável.
Às cartas celestes seguiram-se os catálogos de estrelas mais especiali-
zados. São estes catálogos, ferramenta de referência para consulta dos astró-
nomos do Observatório Astronómico de Lisboa, que enfatizam o perfil espe-
cializado da biblioteca de astronomia estelar. Assim sendo integram, entre
outros, as colecções da biblioteca Nouvelle détermination de la parallaxe de
l´étoile Groombridge 1830, faite par M. O. Struve. Rapport de M. W. Struve
(1849), assunto que abriu o debate na Europa e conduziu para que o proble-
ma fosse melhor estudado em Lisboa. Friedrich Bessel (1784-1846), precur-
sor nas determinações de paralaxes estelares está representado na biblioteca
pelos seus trabalhos fundamentais http://aleph18.sibul.ul.pt/F/IXU9NYSEBB
QJU7V8V32JQKEPIXPVTHYM8132KLBELJEKU69MFJ-23783?func=find-
-b&find_code=AUT&adjacent=Y&request=Bessel,%C2%A0Friedrich%20
Wilhelm,%C2%A01784-1846 Astronomische Beobachtungen auf der Koni-
glichen Universitats-Sternwarte in Konigsberg (1815-1824), Fundamenta
Astronomicae …(1818) e Tabulae Regiomontana… (1830), incluindo outros
publicados em vida do autor.
Nesta constelação brilham os trabalhos realizados no Observatório de
Pulkovo publicados sob a direcção de F. G. W. Struve e da sua autoria entre
os quais consta a obra-prima Études d’Astronomie Stellaire sur la Voie Lac-
tée et sur la Distance des Étoiles Fixes... (1847). Os famosos catálogos de
estrelas de Pulkovo foram compilados na base de alta precisão das observa-
ções estelares. A biblioteca do Observatório Astronómico de Lisboa contém
nos seus fundos Observations de Poulkova (1869-1891) do qual o terceiro
volume encerra os trabalhos do Frederico Augusto Oom realizados no
Observatório Astronómico em Pulkovo.
O contributo de Frederico Augusto Oom para os trabalhos astronómicos
em Pulkovo valera-lhe elogios oficiais e o 2.º grau da Ordem de S. Estanislau.
Outros catálogos das observações compiladas existentes na biblioteca
do Observatório representam valor histórico e científico intrínseco: Observa-
tiones astronomicas institutas in Specula Universitatis Caesareae Dorpaten-
sis (1814-1838); Greenwich observations (1798-); Bonner Durchmusterung
(1846-1903); Annales de l'Observatoire impérial de Paris (1855-); Prodomo
di catalogo físico delle stelle colorato (1876) de Padre P.A. Secchi, Gottin-
ger Aktinometrie (1904-1908) de K. Schwarzschild.
Aos treze mil volumes encadernados das colecções do século dezanove,
trezentos títulos das publicações periódicas, cem mapas em astronomia,
hidrografia, geodesia e geografia, junta-se um grande número das disserta-
ções que contêm pesquisas seminais descrevendo investigação e resultados
dos trabalhos conduzidos nos observatórios do mundo durante o século XIX
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 95

e primeiras décadas do XX, publicados nos Anais, Contribuições, Memórias,


revistas de especialidade mais importantes, muitas das quais se encontram na
biblioteca desde o primeiro volume.
Os astrónomos do Observatório Astronómico de Lisboa publicaram os
resultados das suas observações em Mémoires de l Ácadémie (Imperial) des
Sciences de St. Petersbourg, Astronomische Nachrichten, Zeitschrift für
Instrumentenkunde, Deutsche Mechaniker-Zeitung, The Observatory,
Monthly Notices of the Royal Astronomical Society, South African Journal of
Science, que foram também utilizados como o fez, em 1910, o astrónomo
americano L. Boss (1846-1912), ao publicá-los no Preliminary general cata-
logue of 6188 stars forthe epoch 1900.
Observations Méridiennes de la Planète Mars Pendant l'Oposition de
1892, redigido em francês com o propósito de difundir nos vários observató-
rios do mundo, viu a luz em 1895. Esta publicação representou o ponto mais
alto como trabalho científico do Observatório Astronómico de Lisboa, resulta-
do das observações realizadas no domínio de uma campanha lançada pelo
Observatório Naval de Washington para uma nova determinação do paralaxe
solar.
O esforço do Observatório Astronómico de Lisboa para estabelecer uma
frente pública levou à publicação, em 1916, de Dados Astronómicos para os
Almanaques…. Durante quarenta anos (1931-1971) publicou-se em língua
francesa Bulletin de l’Observatoire Astronomique de Lisbonne (Tapada)
para dar a conhecer os resultados das observações obtidas.
O fundo documental notável, menos magnificente do que a de Pulkovo,
que se fez, não serviu apenas para apoiar o trabalho dos astrónomos, mas antes
contribuiu para reforçar o estatuto do Real Observatório Astronómico de Lis-
boa como o Observatório nacional onde se reuniu a informação astronómica
significativa e que deu ênfase à sua imagem como um centro de investigação
capaz de assumir um lugar ao lado dos avançados centros de ciência.
O arquivo institucional científico do Observatório Astronómico de Lis-
boa, que se prolonga desde 1850 a 1992, abarca um legado considerável.
Está reunido no arquivo a documentação original científica que atravessa a
segunda metade do século XIX e XX representando uma fonte original para
investigação em história da ciência portuguesa. Integram o arquivo os docu-
mentos fundacionais do Real Observatório Astronómico de Lisboa, corres-
pondência com cientistas, instrumentistas, instituições nacionais e estrangei-
ras; os registos originais das observações astronómicas, registo das observa-
ções regulares do tempo, desenhos arquitectónicos, trabalhos gráficos, foto-
grafias, chapas em vidro, provas anotadas das investigações fundamentais
publicadas e não publicadas.
Entre os últimos ocupa lugar cimeiro o trabalho realizado pelos astró-
nomos do Observatório Astronómico de Lisboa no âmbito do projecto inter-
nacional Carte du Ciel por ocasião da oposição do asteróide Eros. Era res-
96 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

posta ao convite dirigido aos observatórios astronómicos na Conferência


Astrofotográfica Internacional (1910) de Paris.
O contributo dado com os resultados obtidos pelo Observatório Astro-
nómico de Lisboa foi reconhecido pela Academia das Ciências de Paris atri-
buindo, em 1904, o prémio Valz a C. A. Campos Rodrigues (1836-1919).
O apoio logístico dado pelo Observatório Astronómico de Lisboa a
Arthur Eddington (1882-1944) na sua expedição à Ilha do Príncipe, em São
Tomé, para observar e fotografar o eclipse do sol de 29 de Maio de 1919,
confirmando a teoria da relatividade geral de Albert Einstein (1879-1955)
através da detecção do desvio dos raios luminosos das estrelas pela massa do
sol, está testemunhado pelo um conjunto de cartas e três fotografias enviadas
pelo físico inglês ao C. A. de Campos Rodrigues (1836-1819). O legado do
arquivo do OAL reflecte a memória histórica da actividade científica dos
astrónomos portugueses e o seu contributo indelével no campo da astrono-
mia posicional.

Fontes e bibliografia:

Arquivos do OAL: pastas, FO17 e A634.


La Lande, Jérôme de, Bibliographie astronomique: avec l’histoire de
l’astronomie depuis 1781 jusqu’à 1802 (Paris: De l’Imprimerie de la Ré-
publique, an XI /1803).
Librorum in Bibliotheca Speculae Pulcovensis anno 1858 exeunte contentorum
catalogus systematicus; edendum curavit et praefatus est Otto Struve (Pe-
tropoli; Rigae; Lipsiae: Eggers; S. Schmidt; L. Voss, 1860-1890).
Naimova, Halima, Biblioteca do Observatório Astronómico de Lisboa. Docu-
mento electrónico: http://www.oal.ul.pt/download/BOAL.pdf
Raposo, Pedro, Guia do fundo documental histórico do Observatório Astronó-
mico de Lisboa. Documento electrónico: http://www.oal.ul.pt/download/
GFHCOAL.pdf
Struve, F. G. W., Description de l’Observatoire astronomique central de Poul-
kova.2 vol. (Saint Petersbourg: Imprimerie de l’Académie Impériale des
Sciences, 1845).
AS MUSAS DE PUSHKIN

Maria Teresa Neves Ferreira

Данная статья содержит автобиографическую информацию о великом русском


поэте А.С. Пушкине, представленную в контексте его творческой и личной
жизни. В ней раскрывается роль возлюбленных поэта, которые оказывали
значительное влияние на его творчество.
Ключевые слова: русская литература, поэзия, XIX век, музы.

Pushkin, como qualquer grande artista, reflete na sua obra a época his-
tórica em que viveu. A personalidade do poeta e a sua vida enquadram-se
nas primeiras décadas do séc. XIX, pois nasceu em 1799 e morreu em 1837.
O princípio do séc. XIX caracterizou-se por uma participação activa da
Rússia na vida da Europa. É a guerra contra a invasão de Napoleão em 1812,
o crescimento do movimento patriótico do povo russo, o início da livre
expressão do pensamento, que culminam com o levantamento militar a 14 de
Dezembro de 1825, na Praça do Senado, e o seu fim trágico.
98 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Pushkin é o grande poeta nacional russo, e, como diz Gogol, “é um


fenómeno extraordinário, possivelmente o único fenómeno do espírito russo.
É o homem russo no seu pleno desenvolvimento, tal como talvez venha a ser
dentro de duzentos anos. Nele está a natureza, a alma, a língua e o carácter
russos . . . A sua vida foi autenticamente russa...”
Foi Pushkin que, pela primeira vez na literatura russa, mostrou a reali-
dade do mundo contemporâneo do seu país. A sua poesia é fiel a esta reali-
dade de uma forma admirável, quer quando se refere à natureza, quer aos
seus personagens. A lírica do poeta foca os mais diversos acontecimentos
ocorridos na Rússia em princípios do século XIX, no que se refere ao
homem, ao mundo espiritual, às relações familiares, ao quotodiano, aos cos-
tumes do povo, ao meio físico.
A mulher ocupa um lugar importante na lírica de Pushkin, que nos revela,
por vezes de uma forma humorística, um temperamento delicado, profundo,
apaixonado. Não há uma única obra sua em que não apresente mulheres. Em
“A Dama de Espadas”, a condessa faz lembrar os velhos tempos de Catarina
II, e Liza, a sua pobre protegida, representa as jovens servas. Em “Eugénio
Oneguine”, a fidalguia da província e da capital é encarnada por Tatiana e
Olga, jovens donzelas oriúndas de uma família latifundiária. Mais tarde,
Tatiana entra por casamento nos altos círculos da sociedade de S. Petersburgo,
dando-nos uma imagem do ambiente que se vive na capital. A sua ama e as
raparigas que trabalham em casa de Larine representam a servidão.
Pushkin não dá preferência às mulheres de uma determinada classe ou
nacionalidade. Para o poeta, o importante e o que o encanta é a mulher em si,
e tudo o que a caracteriza.Em 1829, a caminho de Arzrum – um lugarejo
perdido na estepe imensa – o poeta encontra uma calmuca, à qual dedicou
mais tarde a poesia “Adeus, gentil calmuca...”1 (Прощай, любезная
калмычка), onde afirma, com algum humor e tristeza:

Друзья – не всё ль одно и то же: Amigos, pois não será o mesmo


Забыться праздною душой Extasiarmo-nos perante uma alma alegre
В блестящей зале, в модной ложе Num salão resplandecente, numa casa de modas,
Или в кибитке кочевой Ou numa carroça errante?

No entanto, é notória a sua inclinação por damas da sociedade, mais


próximas da forma de vida e da educação do poeta.
De modo algum Pushkin nos apresenta uma imagem ideal das suas con-
temporâneas, bem patentes nas suas palavras: “Queixam-se da indiferença das
mulheres russas pela nossa poesia, dando a entender que a causa advém da
falta de conhecimento da língua natal: mas qual é a dama que não compreende
os versos de Jukovski, de Viazemski ou de Baratinski? O facto é que as

1
Todas as traduções do russo neste artigo são da minha autoria.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 99

mulheres são as mesmas em todo o lado. A natureza, ao conceder-lhes uma


inteligência acutilante e uma sensibilidade aguda, por pouco não as privou de
sentir mais delicado. Ouvem a poesia, mas esta não lhes atinge a alma.São
insensíveis à sua harmonia. Cantam os romances que estão na moda, mas fal-
seam os versos mais naturais, alteram a métrica, destroem o ritmo”.
Nalgumas linhas do romance “Eugénio Oneguine”, faz uma análise do
amor que a mulher desperta no homem:

В начале жизни мною правил O sexo fraco, astuto e maravilhoso


Прелестный, хитрый, слабый пол; O início da minha vida guiou;
Тогда в закон себе я ставил Como regra então só executava
Его единый произвол. O seu desejo e vontade.

Pushkin inspira-se no amor e na amizade, nas questões políticas, na vida


do campo e da cidade, nas relações do campesinato com os latifundiários,
nos costumes da alta sociedade, nos temas históricos do seu país e ainda em
acontecimentos que se passam para lá das fronteiras da Rússia Interessava-se
pela literatura europeia e, ainda no liceu, já conhecia Camões. No poema
“Ao Amigo Poeta” escrito em 1814, compara a vida trágica do imortal lírico
português com a de Rousseau:

Родился наг и наг ступает в гроб Руссо; Rousseau nasceu nú e nú foi a sepultar;
Камоэнс с нищими постелю разделяет; Camões a cama dividiu com os pobres;

Em 1822, no poema “Bova”, recorda Camões e Milton, como represen-


tantes da literatura clássica mundial:

За Мильтоном и Камоэнсом Sem asas para voar, receei


Опасался я без крил парить; Seguir os passos de Milton e Camões;

Em 1830, em o “Soneto”, caracteriza este tipo de composição poética


como género importante na obra de Dante, Petrarca, Shakespeare e Camões:

Суровый Дант не презирал сонета; O severo Dante o soneto não desdenhara,


В нем жар любил Петрарка извивал; Nele Petrarca o seu amor derramou,
Игру его любил творец Макбета; O criador de MacBeth de tal forma o amara,
Им скорбну мысль Камоэнс облекал. Camões nele seu triste pensamento expressou.

Para estudar a poesia de Pushkin, é necessário conhecer a sua biografia.


Para compreendermos os seus versos de amor, temos de saber a quem são
dirigidos. A sua vida amorosa despertou sempre o maior interesse dos leito-
res, já para não referir o dos seus estudiosos. Ao analisar a vida sentimental
do poeta, Guber conclui que “Pushkin, apesar dos inúmeros amores, dos
ciúmes loucos, e das paixões, nunca se entregou completamente, e, bem no
fundo da alma, manteve-se firme, calmo e sorumbático”. Confessou muitas
100 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

vezes estar apaixonado, mas, como referia a princesa M. N. Volkonskaia, 5


ele só amava a mulher como fonte de inspiração.
O texto das poesias dedicadas às damas permite diferenciar os senti-
mentos que lhe despertaram. Nos poemas da juventude, é a paixão que mais
sobressai. Pushkin entusiasma-se então com várias actrizes – como E. Baku-
nina, Semionova, Sosnitzka. Mas não foram só as actrizes que o atraem:
M. N. Raevskaia é uma das inspiradoras do romance “Eugénio Oneguine”.
Amália Riznitch é a musa dos poemas “Desculpar-me-ás...”, “Para lon-
gínquas terras...”, “Sob o céu azul ...”.
Um amor ardente por Elizabete Ksarievna Vorontsova leva-o a escrever
“O desejo de glória…”, “Talismã” e “A carta que arde”, e, imediantamente a
seguir, uma repentina e arrebatadora paixão por Ana Petrovna Kern inspira-
-lhe “Lembro aquele breve instante”.
Algumas das suas poesias foram escritas durante o período de amudere-
cimento espiritual, por volta dos seus trinta anos, em que Pushkin pensa
formar família. É um problema que se lhe apresenta bastante complicado,
pois não concebe casamento onde não haja amor. Todas as jovens com pos-
sibilidades de se tornarem sua mulher têm o mesmo tipo. São mulheres mui-
to novas, que fazem parte da alta sociedade de S. Petersburgo ou de Mosco-
vo, bonitas, interessantes, com uma educação esmerada. Foram elas, entre
outras, Sofia Fiedorovna Pushkina, Ekaterina Nikolaevna Uchakova, Ana
Alekseievna Olenina e, finalmente, Natália Nikolaevna Gotcharova, que
viria a ser sua esposa.
Há na obra do poeta um ciclo de poesia a que podemos chamar “neu-
tral”, pois é inspirado por mulheres escritoras, como Timacheva, Ichimova, a
pianista M. Chimanovska, a cantora P. Bartenova, ou por familiares, como a
irmã Olga e a tia Ana Lvovna.
A imagem de Arina Rodionovna, uma mulher do povo e ama do poeta,
transparece através de toda a sua obra, repleta de carinho e amor. Também
alguns poetas amigos de Pushkin lhe dedicaram algumas poesias, como foi o
caso de Kozlov e Iazikov.
Vejamos algumas obras líricas dedicadas a estas senhoras.

Maria Nikolaevna Raevskaia, princesa Volkonskaia (1805-1863)

Em Maio de 1820, por ordem do czar Alexandre I, Pushkin é desterrado


para o sul do país. Em Ekaterinoslav, o poeta adoece antes de chagar ao seu
destino. A família do general N. N. Raevski, que também se dirigia para o
Cáucaso, vinda de S. Petersburgo, convida o poeta a acompanhá-los até às
termas. Pushkin precisava de se tratar.Vai com a família Raevski para o
Cáucaso, e daqui para a Crimeia.
Estes três meses de viagem causaram-lhe uma impressão inesquecível.
Numa carta enviada ao irmão Lev Sergueievitch, de Kishinov, após esta via-
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 101

gem, podemos ler: “Imagina a minha felicidade. Uma vida despreocupada e


livre, no seio de uma família gentil, que tanto amo e da qual nunca me canso.
O encanto meridional do sol, das montanhas, dos jardins, do mar, enfim toda a
natureza do Cáucaso e da Crimeia se tornou uma fonte de inspiração”.

Maria Raevskaia, a mais nova das irmãs, foi educada nas tradições rígi-
das da antiga aristocracia, tendo recebido uma educação europeia e avança-
da. Seu pai, o general Nikolai Raevski, era herói da guerra de 1812, e os
irmãos, Alexandre e Nicolau, conheciam o poeta desde os tempos do liceu.
Pushkin, ao escrever ao irmão, acrescentou ainda na carta: “Foram
maravilhosos os momentos que passei com a família do general Raevski…
Todas as suas filhas são uns amores, mas a mais velha é extraordinária”.
Sobre a filha mais nova, Maria, não escreve uma única palavra. Sabe-se, no
entanto, que estava apaixonado por ela – um amor de juventude que deixou
marca na sua vida.
No fim do poema “A fonte de Baktchissaraiski” encontramos uma
divagação poética, inspirada por Maria Raevskaia, que encarna o persona-
gem feminino.

Я помню столь же милый взгляд, Recordo aquele terno olhar,


И красоту ещё земную, De uma beleza transcendente,
Все думы сердца к ней летят, Uma melancolia sem par,
Об ней в изгнании тоскую. Suspiros de uma alma ardente.
102 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Pela primeira vez na sua obra, encontram-se motivos religiosos:


Мгновенья жизни дорогие Os momentos felizes da vida
Давно прошли, давно их нет – Há muito que passaram, que não existem!
Что делать ей в пустыне мира? Num mundo sem sentido, o que faz ela?
Уж ей пора, Марию ждут O seu tempo chegou, já a esperam,
И в небеса, на лоно мира, Com um sorriso a chamam
Родной улыбкой зовут. No céu, onde reina a paz…

A imagem de Maria Nikolaevna, mais tarde princesa Volkonskaia, apa-


rece também no poema “Poltava” (1828). A figura da personagem, Maria
Kotchubei, tem muitas características de Maria Raevskaia:
И то сказать: в Полтаве нет Digamos então, não há em Poltava
Красавицы, Марии равной. Beleza igual à de Maria.
Она свежа, как вешний цвет, Perfume que a fresca flor exalava
Взлелеянный в тени дубравной. Na sombra, ao cair do dia.

Assim, os sentimentos por Maria, que vêm já desde 1820, continuam


vivos por muitos anos, mesmo depois de em Odessa se ter apaixonado por E.
Vorontsova, e, mais tarde, em Makhailovskoi, por Ana Kern.
Quando Pushkin vem de Odessa para Mikhailovskoi, as suas convicções
políticas haviam já amadurecido.Os contactos que tivera no sul com membros
de associações secretas contribuíram para definir a sua posição perante o
regime czarista. A derrota do levantamento de 1825, onde tinham participado
muitos dos seus amigos e conhecidos, provocou grande desgosto no poeta.
Em 1827, Puhkin escreve a famosa “Mensagem para a Sibéria”, que
envia a amigos condenados a trabalhos forçados. Muitas das esposas destes
condenados foram livremente juntar-se aos maridos. Entre elas encontrava-
-se Maria Raevskaia, princesa Volkonskaia. Seu marido, o príncipe Volkns-
ki, era um dos 120 oficiais que fora desterrado para a Sibéria. Cinco tinham
sido enforcados.
Esta mensagem deveria ser transmitida através de Maria. Como partiu
um pouco mais cedo que o previsto, foi A. G. Muravieva, esposa de outro
deportado, que foi encarregada dessa missão. Maria Volkonskaia escreve:
“Em Moscovo, fiquei em casa da minha cunhada, Zinaida Volkonskaia, que
me recebeu de uma forma tão carinhosa, que jamais poderei esquecer.
Sabendo como gosto de música, convidou todos os cantores italianos que se
encontravam nesse momento na cidade, e ainda algumas cantoras famosas.
Fiquei extasiada com o maravilhoso canto italiano, e a ideia de que ouviria
estas canções pela última vez, conferia-lhes ainda mais encanto. Tinha-me
constipado pelo caminho, perdera a voz quase por completo, e isso fazia-me
sofrer, pois cantavam as canções minhas preferidas, sem que eu pudesse
participar. Pushkin, o nosso famoso poeta, também lá estava; há muito que o
conhecia. Meu pai recebera-o quando perseguido pelo imperador Alexandre
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 103

I, por ter escrito versos revolucionários.”Como poeta, considerava seu dever


apaixonar-se por todas as donzelas e senhoras bonitas que encontrava. Lem-
bro-me que, durante a nossa viagem (em 1820), já perto de Taganrog e ao
vermos o mar, demos ordem para parar, saímos das carruagens, e fomos
admirá-lo. Havia ondulação, e, sem me aperceber que o poeta nos tinha
seguido, corria atrás das ondas e fugia-lhes, quando se aproximavam. Push-
kin achou este quadro deveras gracioso, e escreveu um poema maravilhoso.
Então, eu tinha apenas 15 anos”.

Encontro em casa da cunhada antes da viagem para a Sibéria

Я помню море пред грозою: Recordo o mar antes da tempestade.


Как я завидовал волнам, Como invejava as ondas,
Бегущим бурною чередою Que rolavam pela praia impetuosamente,
С любовью лечь к её ногам – Acariciando seus pés com amor!

Как я желал тогда с волнами Como desejavam meus lábios,


Коснуться милых ног устами – Aflorar com as ondas seus graciosos pés.

Na realidade, Pushkin adorava apenas a sua musa, e punha em verso


tudo o que via. Durante o desterro voluntário das mulheres dos exilados para
a Sibéria, Pushkin pretendia que fosse portadora da sua “Mensagem”. Nela,
plena de esperança no futuro, escreve:
Оковы тяжкие падут, Os pesados grilhões caem,
Темницы рухнут и свобода As masmorras ruem,
Вас примет радостно у входа A espada virá de nossos irmãos
И братья меч вам отдадут. Que a alegre liberdade vos darão.
104 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Quando Pushkin em 1829 volta ao sul, onde estava o exército regular,


tendo então seguido o mesmo caminho que fizera em 1820, recorda esses
tempos, surgindo-nos de novo a figura de Maria Raevskaia:

Всё тихо – на Кавказ идёт ночная мгла, Tudo está calmo, e há trevas no Cáucaso.
Восходят звёзды надо мною. As estrelas iluminam-me. Estou triste.
Мне грустно и легко – печаль моя светла. Triste e tranquilo, tua imagem
Печаль моя полна тобою – Ilumina a minha dor.

Nem o amor que sentiu mais tarde por Natália Nicolaevna Gontcharova,
que foi sua esposa, conseguiu desalojar totalmente da alma do poeta o cari-
nho que sentiu por aquela que de livre vontade seguia a senda do sofrimento.
Pushkin sabia que tinha sido um amor sem esperança, não correspondido.
Em 1829, o poeta escreve o epitáfio ao filho de Maria Nicolaevna Val-
konskaia, de dois anos de idade, príncipe Nicolau Volkonski, que morreu em
S. Petersburgo, em casa do avô. Em sinal de respeito e simpatia, Maria Nico-
laevna pede ao pai que exprima ao autor a sua gratidão. Estas linhas foram
escritas a 11 de Maio, e, a 15, o poeta responde com o poema “Continuo a
ser teu, de novo te amo…” Maria Nicolaevna Raevskaia continuava a ocupar
um cantinho muito especial no seu coração.

Elizaveta Ksarievna Vorontzova (1792-1880)


Pushkin conhece Elizaveta Vorontzova em Setembro de 1823, ao ser
transferido de Kishinov para Odessa. Foi grande a impressão que imediata-
mente lhe causou. O seu perfil é uma constante nas folhas dos manuscritos.
O poeta encontrava-se nesse momento ao serviço do general Vorontzov,
que tinha o título de conde, e era visita assídua de sua casa. Estava presente
nas recepções, nos almoços, nos bailes de máscaras. Apaixona-se por Eliza-
veta, esposa do chefe. O conde procurava pretexto para afastar o poeta de
Odessa. Entretanto, uma praga de gafanhotos surgira nos campos do sul,
para onde Puhkin é enviado com a missão de lhe dar combate. O poeta aper-
cebe-se que o conde troçava dele, e, ao fazer o relatório do combate contra a
praga, escreve: “O gafanhoto voou, deteve-se por uns momentos, comeu
tudo o que se lhe deparou, e de novo voou. “Vorontsov escreve para S.
Petersburgo ao conde Nesselrod, dizendo: “Não desejo tê-lo por mais tempo
nem em Odessa, nem em Kishinov.”
Os ciúmes que sentia por causa de Pushkin, e alguns papéis em que este
manifestava as suas opiniões acerca da religião, levaram a que general e poeta
rompessem totalmente as suas relações. Em consequência, Pushkin foi dester-
rado de Odessa para a aldeia de Mikhailovskoi, que pertencia a seus pais.
Se Vorontzov desdenhava do poeta, o certo é que Pushkin o desprezava.
Entre outros epigramas que escreveu, destacamos este, bem mordaz:
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 105

Пoлу-милорд, полу-купец, Meio milorde, meio-sabichão,


Полу-мудрец, полу-невежда, Meio comerciante, meio-vilão,
Полу-подлец, но есть надежда Meio ignorante, mas há esperança
Что будет полным наконец. Que venha a ter uma boa pança.

Pushkin parte de Odessa para Mikhailovskoi em 1824.


Elizaveta Vorontzova oferece-lhe como recordação um medalhão em
ouro, com a sua fotografia, e um anel, que qualifica de “talismã”. Mais tarde,
Pushkin escreverá uma poesia dedicada a Elizaveta, a que dá precisamente o
nome “Talismã”:

Но когда коварны очи Mas quando uns olhos traiçoeiros


Очаруют вдруг тебя, De repente te encantarem,
Иль уста во мраке ночи Ou na escuridão da noite
Поцелуют не любя – Uns lábios sem amor te beijarem,
Милый друг – от преступленья, Ó meu amigo! Do agravo,
От сердечных новых ран, Das novas feridas do coração,
От измены, от забвенья Do esquecimento e do engano
Сохранит мой талисман! O meu talismã te trará salvação!

Com que impaciência Pushkin esperava pelas cartas de Odessa!


A irmã do poeta contou uma vez a um amigo que sempre que o irmão
recebia uma carta de Odessa, lacrada com um sinal igual ao que tinha no
anel, fechava-se no quarto a lê-la, e não deixava entrar ninguém.
Pushkin queimou todas as cartas que recebeu de Elizaveta Vorontzova,
mas deixa-nos uma poesia a que deu o nome de “Carta Queimada”.

Прощай, письмо любви – прощай: Adeus, carta de amor! Adeus! Ela assim
она велела… mandou.
Как долго медлил я – как Quanto tempo protelei! Quanto tempo
долго не хотела a mão hesitou.
Рука предать огню все радости мои!.. Fazer em cinzas minha alegria e minha dor.
Но полно, час настал. Гори письмо Basta! A hora chegou. Arde, carta de
любви. amor.

Em Janeiro de 1834, decorridos dez anos depois da separação, Pushkin


recebe uma carta escrita com letra que bem conhece. Elizaveta dirige-se-lhe
a pedir que participe na elaboração de um almanaque de beneficiência, e diz:

“Na realidade, não sei se o deveria incomodar, se a minha carta será rece-
bida com um sorriso… Tenha a gentileza de não ser demasiado severo
comigo, e, se fôr estritamento necessário defender a minha causa, peço-
-lhe que, para justificar a minha impertinência e o passado, tenha em
atenção que as recordações são a riqueza da velhice, e que esta sua velha
amiga dá muito valor a essa riqueza…”
106 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

É evidente que Pushkin não esquecera os tempos passados, responden-


do-lhe: “Terei coragem, querida princesa, de lhe falar da felicidade que senti
ao receber a sua carta, só por pensar que não esqueceu completamente o
mais dedicado dos seus servos?”

Ana Petrovna Kern (1800-1879)

Pushkin encontrou-se pela primeira vez com Ana Kern em S. Peters-


burgo, em casa do presidente da Academia das Artes, A. N. Olenine, quando
Ana tinha 19 anos e ele próprio 20. Esta jovem e bela senhora causou-lhe
uma enorme impressão. Ana Petrovna escreve:

“Fui a S. Petersburgo em 1819 com o meu marido e o meu pai, que me


levou a casa de sua irmã Olenina. Encontrei-me com um primo e várias
primas que conhecia desde a infância. Gostava muito de ir a casa deles,
porque lá não se jogava às cartas. Também não se dançava, porque esta-
vam de luto pela morte da irmã do imperador Alexandre I, Ekaterina
Pavlovna, que foi rainha de Vurtemberg.”

Aqui, Ana travou conhecimento com alguns dos mais famosos literatos
daquela época: Krilov, Karamzine e Gneditch, entre outros. De um dos
serões literários, conta Ana:

“Encontrei-me com Pushkin, mas estava tão entretida a jogar às adivi-


nhas, que não lhe prestei atenção. Em breve ele se fez notar. Quando nos
sentámos à mesa para jantar, o poeta, que ficara junto a meu primo, não se
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 107

cansava de atrair a minha atenção, pronunciando frases como: “Mas será


permitido ser-se tão bela!?”.

Entretanto, Ana Kern acompanhava o seu idoso marido, o general Kern,


para as localidades aonde se deslocava em serviço militar, como, por exem-
plo, Derpte, de onde Ana guardou boas recordações. Escreve ela: “Tive visi-
tas muito queridas, entre as quais, minha tia P. A. Ossipova e minha querida
prima Ana Nikolaevna Vulf, que passou todo o verão comigo”.
Em Riga, para onde foi mais tarde, acompanhando o marido em mano-
bras militares, Ana sente uma enorme tristeza. Acompanha-a a prima, mas o
ambiente já não é o mesmo. O marido está sempre fora.D e dia para dia sente
cada vez mais intensamente que está casada com um homem rude, que só se
interessa por problemas bélicos.
Durante as manobras, o czar desloca-se a Riga. Organiza-se um grande
baile em sua honra. Ana Kern, Ana Vulf e o general estão presentes. Ana
não passa despercebida, e, apesar de se ter sentado num lugar muito discreto,
o general Saken, que acompanhava o imperador, convida-a a ir ao centro da
sala, pede-lhe que tire a luva para poder beijar a sua mão, e tece-lhe grande
elogios. Dança com o imperador.
A vida com o marido tornava-se de dia para dia mais insuportável. No
diário que Ana Petrovna mantém entre Junho e Agosto de 1820, quase intei-
ramente redigido em francês, é bem patente o deprimente estado de espírito
que atravessa neste período da sua vida. Escreve a uma amiga:

“Que aborrecimento! É horrível! Na verdade, nem sei onde encostar a


cabeça! Imagine a minha situação! Não tenho uma única alma com quem
possa falar. Sinto-me tonta de tanta leitura, mas, ao terminar o livro que
leio, fico novamente sozinha no mundo… O meu marido ou dorme, ou
ausenta-se para os exercícios, ou fuma sem parar. Meu Deus, que angús-
tia! …”

Seis anos mais tarde, em Junho de 1825, quando Pushkin se encontrava


desterrado em Mikhailovskoi, Ana Kern veio inesperadamente à aldeia de
Trigorskoi visitar a prima direita, Ana Vulf, e a tia, P. A. Ossipova, grande
amiga de Pushkin. Ana Kern escreve no diário:

“Uma vez, estávamos todos sentados à mesa do almoço, e ríamos, quando


Pushkin entrou, trazendo consigo um grande livro de capa preta, dizendo
que o trouxera para mim. Sentámo-nos à sua volta, e ele leu-nos “Os
Ciganos”. Ouvimos este maravilhoso poema pela primeira vez, e nunca
esquecerei o arrebatamento que se apoderou da minha alma…”

Depois da leitura do poema, Ana cantou “A Noite de Veneza”, de I. I.


Kozlov. Como eram lindos os versos de Kozlov e harmoniosa a música de
M. I. Glinka!
108 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Венецианская ночь Noites de Veneza – Canção do barqueiro


Ночь весенняя дышала A noite primaveril respirava
Светло-южною красой: A beleza de um claro luar;
Тихо Брента протекала, Calmo o Brenta deslizava,
Серебримая луной: Todo de prata a adornar:

Отражён волной огнистой O brilho da nuvem transparente


Блеск прозрачных облаков, Na onda impetuosa se reflete,
И восходит пар душистый E da margem verdejante
От зеленых берегов. Um suave odor entontece.
По водам скользя, гондолы Pela água desliza a gôndola
Искры брызжут под веслом, Dos remos salpicos saltam,
Звуки нежной баркаролы, Os sons da suave gôndola
Веют лёгким ветерком. P’ra longe o vento os afasta.

O poema “Noites de Veneza” foi publicado em Julho de 1825. Pushkin,


depois de ouvir estes versos, mas já em Mikhailovskoi, escreve a um amigo,
em S. Petersburgo:

“Diz ao Kozlov que há pouco tempo passou pela nossa região um anjo
(A. P. Kern) que cantou celestialmente as suas “Noites de Veneza”. Dá
essa novidade ao nosso querido cego. É pena que não a veja, mas ele que
imagine a beleza e a cordialidade. Que Deus permita que pelo menos uma
vez a possa ouvir”.

Seis anos após o seu primeiro encontro, Ana Kern de novo deixava
Pushkin entusiasmado. Esquece tudo o que passara nestes anos de exílio e,
uma noite, sentado à secretária, recorda o momento em que se encontraram,
escrevendo o poema que intitulou “Para K...”.

Я помню чудное мнгновенье: Lembro aquele breve instante,


Передо мной явилась ты, Que te vi perante mim,
Как мимолетное виденье, Como uma visão momentânea,
Как гений чистой красоты. De uma beleza sem fim…

И сердце бьётся в упоенье, Extasiado bate o coração,


И для него воскресли вновь Nele se sente de novo brotar
И божество, и вдохновенье, A divindade e a inspiração
И жизнь, и слёзы, и любовь. A vida e o pranto que fazem amar.

No momento em que Ana Kern se despede para partir para Riga, Push-
kin oferece-lhe o primeiro capítulo de “Eugénio Oneguine”, e, no meio das
folhas, estavam os versos escritos durante a noite, que Ana guardará religio-
samente até ao fim da sua vida.
Ao passear pelas ruas do parque, em Mikhailovskoi, Pushkin pensa em
Ana. Escreve para Riga a Ana Vulf, que partira com a prima e a tia, que a
levara “para fugir a uma catástrofe”. “...À noite, ao passear pelo jardim, digo
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 109

a mim próprio: Ela esteve aqui...” Depois acrescenta: “Diga-lhe que, se no


seu coração não há um carinho oculto por mim… pois então, detesto-a....
Maldita vinda, maldita partida! ”
Nos seus apontamentos, Ana Kern caracteriza Pushkin da seguinte
maneira:

“Era difícil aproximarmo-nos dele. Tinha um temperamento inconstante,


umas vezes alegre, outras insolente, outras ainda de uma amabilidade difícil
de descrever, ou até tão aborrecido que não se podia estar ao pé dele, a pon-
to de ser difícil prever qual o seu estado de espírito nos momentos imedia-
tos. Incapaz de esconder os seus sentimentos, exprimia-os sempre sincera-
mente. Quando resolvia ser amável, nada se podia comparar ao brilho, à
graça e ao encanto do seu discurso”.

Ana Petrovna está convencida que o poeta não “é capaz de amar verda-
deiramente alguém, excepto a ama e a irmã”. O amor de Pushkin por ela fora
uma arrebatamento momentâneo, mas deixara-lhe marcas profundas para
toda a vida. Pushkin escreveu-lhe várias cartas, de sentimentos contraditó-
rios, de paixão e de ciúmes e, simultaneamente, plenas de adoração perante a
sua beleza. Numa delas, Pushkin acrescenta um pós-escrito extraído de
Byron: “Uma imagem passou por nós, vimo-la, mas não mais a veremos…
No romance “Eugénio Oneguine” no primeiro capítulo, no canto
XXXIV, Pushkin, ao recordar o passado, dedica alguns versos ao encontro
com Ana Kern, em Mikhailovskoi.

Мне памятно другое время – Outros tempos me vêm à ideia!


В заветных иногда мечтах Em sonhos queridos acontece,
Держу я счастливое стремя… Segurar nas mãos o feliz esteio,
И ножку чувствую в руках; Sentir a sua perna ao de leve;
Опять кипит воображенье, De novo fervilha a imaginação,
Опять ее прикосновенье De novo este toque dá calor,
Зажгло в увядшем сердце кровь, Incendeia o sangue no definhado coração,
Опять тоска, опять любовь – De novo a saudade, de novo o amor!..

Os anos passaram.Pushkin, depois de regressar do exílio, voltou a


encontrar-se com Ana Kern em casa de seus pais e em casa de seu amigo
Delvigue. Mas estes encontros eram um fraco eco de uma paixão que já mor-
rera. Os caminhos de ambos haviam divergido.
Em Março de 1829, Pushkin escreve uma carta a A. Kern e a sua irmã
mais nova, onde inclue uma quadra deveras triste:

Когда помилует нас бог, Se Deus me conceder sua graça,


Когда не буду я повешен Se eu não fôr enforcado,
То буду я у ваших ног, A vossos pés me irei prostrar,
В тени украинских черешен Na Ucrânia, à sombra de um prado.
110 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Esta quadra dá-nos a entender o estado de espírito em que Pushkin se


encontrava depois da derrota do levantamento dos dezembristas em 1825,
em S. Petersburgo. Sente-se também uma leve brincadeira e ironia do poeta.
Depois da morte do marido, general Kern, Ana voltou a casar, e foi
feliz.
A 27 de Janeiro de 1837, na Ribeira Preta, perto de S. Petersburgo teve
lugar o duelo: Pushkin defendia a honra da família. Ferido mortalmente pela
bala de d’Anthès, morreu ao fim de dois dias de horrível sofrimento, em sua
casa, na rua Moika. As ruas em redor ficaram repletas de gente, que vinha
dizer um último adeus ao poeta. Todos estavam horrorizados com o que
acontecera.
Uma senhora, vestida de preto e com a cara encoberta por um véu,
subiu lentamente as escadas que levavam à residência de Puhkin. A seu lado
caminhava uma menina. Frente ao quarto onde se encontrava o corpo do
poeta, ambas se ajoelharam. A senhora chorava. Era Ana Kern e sua filha
Ekaterina.
Ana Kern morreu em 1879, um ano antes da inauguração do monumen-
to a Pushkin em Moscovo. Trazia sempre consigo as folhas amareladas do
poema que Puhkin lhe dedicara, assim como as cartas que ele lhe escreveu.
Gostava de as ler aos amigos. Ana Kern foi a enterrar na sua terra natal, per-
to da cidade de Torjok. Na pedra da sepultura, lê-se:”Lembro aquele breve
instante…”

Arina Rodionovna Matveieva (1758-1835)


MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 111

Arina Rodionovna nasceu em 1758 e era serva. Em 1781, Arina casou-


-se com um camponês-servo, Fedor Matveiev, na mesma igreja onde 15 anos
mais tarde iria ter lugar o casamento de Nadejda Ossipovna Gannibal e Ser-
guei Lvovitch Pushkin, pais do futuro poeta.
Em 1811, a avó de Puhskin, Maria Alekseievna Gannibal resolveu dar
carta de alforria a toda a família, mas Arina recusou: “Para que quero eu a
liberdade, mãezinha!”
Esta camponesa, desde o nascimento dos filhos do casal por quem foi
escolhida para ama, ficou para sempre ligada à vida da família Pushkin. Foi
através da sua ama e da avó que Pushkin pela primeira vez teve contacto
com os contos, lendas e canções populares que tão bem soube aproveitar na
sua obra artística.
Quando em 1811 Pushkin entrou para o Liceu na Aldeia do Czar – onde
este vivia – e até ao ano em que o terminou – ou seja, durante seis anos –
Pushkin e Arina Rodionovna não se encontraram. A vida iria uni-los em
1824, quando Pushkin é enviado de Odessa para a aldeia de Mikhailovskoi,
pertencente a sua mãe, e onde continuava a viver a já velha ama.
Nas longas noites do inverno de 1824, Pushkin tomava nota das histó-
rias de Arina. É sob a sua influência que escreve os versos que servem de
prólogo ao poema “Russlan e Liudmila”:

У лукоморья дуб зелёный; O verde sobreiro junto à baía,


Златая цепь на дубе том: Rodeia uma corrente dourada:
И днём и ночью кот учёный E o gato manhoso, noite e dia,
Всё ходит по цепи кругом; Dá-lhe a volta numa saltada.
Идёт направо – песнь заводит, Vai p’ra direita, e faz uma cançoneta,
Налево – сказку говорит. P’ra esquerda, e conta uma historieta.
Там чудеса: там леший бродит, Operam-se milagres: o silvano passeia,
Русалка на ветвях сидит; Nos ramos sentada está a sereia;
Там на неведомых дорожках Pela via encantada caminha
Следы невиданных зверей; A bicharada, que ainda não vimos;
Избушка там на курьих ножках A casinha assente, em pés de galinha
Стоит без окон, без дверей. Não tem portas, nem vidrinhos.

Foi aqui, tendo a ama com companheira, que Pushkin escreveu obras
tão importantes como “Boris Godunov”, “O Conde Nuline” ou “Eugénio
Oneguine”. Um dia escreveu ao irmão Lev “...depois do almoço ando a
cavalo, à noite ouço contos, que maravilha! Cada um é um poema!”.
Em 1825 escreve a seu amigo Raevski: “...Não tenho outra companhia
além de minha velha ama e da tragédia”. Escrevia então “Boris Godunov”.
Pushkin escreveu sete contos com as palavras de Arina Rodionovna.
Alguns são bem conhecidos, como “O conto da princesa morta e dos sete
guerreiros”, “O conto do pescador e do peixinho dourado”, e “O conto do
czar Saltane”, entre outros.
Lembrando os anos de infância, escreve:
112 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

В вечерней тишине No silêncio da noite,


Являлась ты весёлою старушкой Aparecias tu, minha alegre velhinha
И надо мной сидела в шушуне De blusa bordada, a meu lado te sentavas
В больших очках и с резвою гремушкой Com grandes óculos e em surdina
Ты детскую качала колыбель. Uma cancão de embalar me cantavas.

Pushkin tinha uma enorme admiração por esta mulher, analfabeta e pobre,
mas de alma rica. Foi a sua primeira musa. Escreve a um amigo, o príncipe Via-
zemski: “... Minha ama é deveras engraçada. Imagina tu que aos 70 anos apren-
deu de cor uma nova oração, que deve vir já do tempo do czar Ivan. Agora, os
popes vêm cá aprendê-la, e não me deixam fazer o que tenho a fazer”.
A imagem de Arina Rodionovna aparece-nos em várias obras do poeta:
Em “Eugénio Oneguine” encarna a ama de Tatiana, e, em “Boris Godunov”,
a mãe da princesa Ksénia. Pushkin apreciava a opinião de Arina Rodionovna
sobre as suas obras. No romance “Eugénio Oneguine” escreve:
Но я плоды моих мечтаний, Ó minha velha ama,
И гармонических затей Amiga do coração
Читаю только старой няне, Só tu ouves os caprichos
Подруге юности моей. Que brotam da imaginação.

Todas as alegrias e tristezas de Pushkin eram vividas por Arina Rodio-


novna. Ao deixar Mikhailovskoi, em 1826, preocupado com a sua saúde,
escreve os versos “À Minha Querida Ama”:
Подруга дней моих суровых, Amiga das horas de infortúnio,
Голубка дряхлая моя – Minha querida velhinha!
Одна в глуши лесов сосновых Sozinha entre os pinheiros
Давно, давно ты ждёшь меня. Há muito esperas por mim.

Pushkin viu a ama pela última vez em Setembro de 1827. Morreu a 31


de Julho de 1828. Quando voltou a Mikhailovskoi, em 1835, Pushkin escre-
ve a sua mulher, Natália Nikolaevna: “Em Mikhailovskoi nada se alterou,
excepto o facto de não ver a minha ama.” É então que escreve: “E de novo
visitei aquele cantinho de terra...”

Вот опальный домик Lá está a casa, semi-abandonada,


Где жил я с бедной нянею моей Onde vivi com a minha pobre ama,
Уже старушки нет – уж за стеною A velhinha partiu! Atrás da parede
Не слышу я шагов её тяжёлых Seus passos pesados já não ouço,
Ни кропотливого её дозора – Rondando pelo quarto, atarefada.

O cocheiro de Pushkin conta como o poeta carinhosamente a tratava por


mãe, ao que ela respondia: “...Para que me tratas tu por mãe, não sou nada
tua mãe”.Pushkin dizia-lhe então: “Claro que não foste tu que me tiveste,
mas foi o teu leite que me criou”.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 113

Natália Nikolaevna Gontcharova (1812-1863)

A partir de 1828/1829, Pushkin chega à conclusão de que é necessário


por ponto final na vida desregrada de solteiro, assentar e casar. Procura acti-
vamente uma noiva. Tenta convencer-se, bem como a seus amigos, que está
apaixonado, primeiro por A. A. Olenina, e depois por S. Pushkina, A. Kor-
sakova e E. Uchakova, que, no entanto, mais não foram que simples entu-
siasmos de momento. Nenhuma destas meninas da aristocracia conseguia
apagar o amor por Maria Nikolaevna Raevskaia, que a vida dura por que
passara havia afastado do seu caminho.
Apesar destes sentimentos grandiosos, o poeta não se coibe de frequentar
algumas casas menos recomendáveis, e disso fazer alarde, chegando mesmo a
declarar a Elizaveta Mikailovna Khitrova, respeitada dama da corte: “Se assim
o deseja, ser-lhe-ei totalmente sincero. Talvez seja elegante e extremamente
educado naquilo que escrevo, mas o o meu coração é de todo vulgar. O que
mais receio no mundo são as senhoras bem comportadas e de altos sentimen-
tos, e vivam as “grisettes”. Com elas, tudo é mais fácil e simples.
Pushkin conhece Natália Nikolaevna Gontcharova em Moscovo, em
1828, no baile da Reunião Aristocrata.Era uma rapariguinha encantadora,
discreta, de poucas conversas, pertencente à aristocracia moscovita. Tinha
apenas 16 anos.
Apaixona-se imediatamente. Escreve à mãe de Natália: “Quando a vi
pela primeira vez, poucos se apercebiam da sua beleza. Apaixonei-me, a
cabeça pôs-se a andar à roda”. Pushkin pede a mão de Natália a sua mãe,
mas esta recusa. Desolado, regressa a S. Petersburgo e, sem autorização do
114 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

czar, vai a Arzrum, no Cáucaso, onde se desenrolava a guerra russo-turca.


Escreve então estas linhas:

... Друзья, ... Digam, amigos:


Скажите: в странствиях умрёт ли A minha paixão morrerá nestas
страсть моя? peregrinações?
Забуду ль гордую, мучительную Esquecerei aquela serigaita orgulhosa e
деву, cruel,
Или к её ногам, её младому гневу, Ou, como uma dádiva habitual, a seus pés
Как дань привычную, любовь я принесу? Com o meu amor me irei prostrar?

O grande desejo de Pushkin era ir ao estrangeiro, à China, França ou


Itália. Pensava assim esquecer o amor que sentia por Natália. Escreve a Ben-
kendorf – chefe da polícia – pedindo autorização para se deslocar ao estran-
geiro: “Enquanto sou solteiro e não tenho um lugar no Estado, gostaria de
visitar a França ou a Itália. Caso não me autorize, peço que me deixe acom-
panhar a missão que se dirige à China… (7 de Janeiro de 1830).
Ao regressar de Arzrume, Pushkin repete a sua proposta a Natália Niko-
laevna, e, desta vez, obtém uma resposta afirmativa.
A 8 de Julho de 1830, Pushkin escreve o soneto “Madona”, e logo o
entrega imediatamente para publicação. Dedica-o àquela que em breve irá
ser sua esposa:
Исполнились мои желания. Творец Realizaram-se os meus sonhos. O Criador
Тебямнениспослал, тебя, моя Мадона, Pôs-te junto a mim, minha Madona,
Чистейшей прелести чистейший образец. Cândida alma de um tão puro amor.

A 30 de Julho de 1830, Pushkin escreve à noiva, em S. Petersburgo:


“Procuro conforto, e passo várias horas em frente da imagem de Madona, tão
parecida convosco quanto duas gotas de água”. A beleza de Natália em breve
iria ser notada pelos seus contemporâneos. Dela e de A. V. Aliabevaia se
dizia serem as mais belas moscovitas. Pushkin, na mensagem ao princípe N.
B. Iussunov, “A um alto dignitário”, escreve:
Я слушаю тебя: твой разговор Escuto tua conversa fluente
свободный
Исполнен юности. Влиянье красоты Plena de juventude. A influência da
beleza.
Ты живо чувствуешь. С восторгом Sentes vivamente. Falas com
ценишь ты entusiasmo
И блеск Алябьевой и прелесть Do brilho de Aliabevaia e do encanto de
Гончаровой. Gontcharova

O princípe P. A. Viazemski comparava Aliabevaia a uma beleza clássi-


ca, e Gontcharova a uma beleza romântica. Pushkin, como primeiro poeta
romântico na Rússia, deveria casar-se com a primeira beleza romântica.O
casamento realizou-se em Moscovo a 18 de Fevereiro de 1831. Nos primei-
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 115

ros tempos após o casamento Pushkin era um homem feliz. Passada uma
semana, escrevia a Pletnev: “Estou casado e sou feliz”.
Em breve começaram os desentendimentos com a família da esposa, e,
para evitar complicações nas relações familiares, achou por bem ir viver para
S. Petersburgo. O aparecimento de Natália na sociedade e na corte foi um
grande sucesso. Todos falavam da sua beleza e do futuro do casal, e todos
eram da mesma opinião: Natália brilha, é a mais bela. Em 1832, o princípe
Viazemski escreve: “A mulher de Pushkin brilha nos bailes e ofusca todas as
outras”. Desde o casamento e a partir da mudança para S. Petersburgo, a
vida de Pushkin segue o caminho que haveria de o conduzir à sua morte.
Os contemporâneos de Natália Pushkina são unânimes quanto à sua
beleza – mas nada mais. Nenhum deles se pronuncia sobre os seus conheci-
mentos, inteligência, bom gosto. Nada dizem, naturalmente, porque nada
tinham a dizer.
Conservaram-se imensas cartas de Pushkin para Natália. Quando preci-
sava de se afastar de casa por uns tempos, Pushkin preocupava-se com a sua
saúde e a sua situação económica, mas, acima de tudo, que não tivesse “um
passo em falso” que pusesse em causa o respeito e a consideração de todos.
Pushkine escreve-lhe: “Vê bem, minha mulherzinha! Não me aterrori-
zes...não “entres em devaneios” com o czar, com Sobolevski ou com o noivo
da princesa Liuba”.
O ideal de mulher casada, que desejaria ver na sua mulher, está retrata-
do no romance “Eugénio Oneguine”, na imagem de Tatiana (oitavo capitulo,
canto XIV).
Она была не тороплива Ela não se apressava,
Не холодна, не говорлива, Nem fria, nem faladora,
Без взора наглого для всех, Sem despertar olhares insolentes,
Без притязаний на успех, Sem pretensões ao sucesso,
Без этих маленьких ужимок, Sem pequenos trejeitos,
Без подражательных затей…. Sem caprichos imitados...
Всеё тихо, просто было в ней, Tudo nela era fácil e simples.
Она казалась верный снимок Parecia uma cópia exacta
Du comme il faut... Du comme il faut...

“Não te impeço de seres “coquete” – diz Pushkin à mulher – “mas exijo


que sejas fria, decente, séria...”
O inverno de 1833-1834 foi rico em bailes. Por esta altura, Natália
Nikolaevna Pushkina teve a oportunidade de frequentar os bailes da corte,
onde havia o desejo de que ela frequentasse o palácio imperal – e, por isso, o
czar atribui o título de cadete a Pushkin. No fim da estação, Natália vai com
os filhos visitar a mãe e as irmãs, Alexandra e Ekaterina. As irmãs eram
mais velhas, e corriam o risco de ficar solteiras e a viver na aldeia.
Natália pensa então trazê-las para S. Petersburgo, colocá-las como
damas de companhia na corte, enfim, casá-las. Pushkin tenta persuadí-la em
116 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

contrário, mas não consegue. No outono de 1834, as irmãs já vivem em S.


Petersburgo, em casa de Pushkin.
A beleza de Natália mais se acentua ao lado das irmãs. Olga Sergueievna
Pavlichevaia, irmã do poeta, escreve: “O Alexandre (Pushkin) apresentou-me
as suas mulheres: agora são três. As cunhadas são bonitas, mas não se compa-
ram à Natália, que está com uma côr de rosto linda e engordou um bocadinho,
que era o que lhe faltava. A mais velha, Ekaterina, entrou para dama de com-
panhia para o palácio, e a Alexandra ficou a viver em casa da irmã”.
No Inverno de 1834, Natália Nikolaevna conhece d’Anthés. A família
de Jorge d’Anthés era de origem francesa e tinha perdido todos os seus bens
com a Revolução de Julho. D’Anthés resolveu ir para a Alemanha, onde
tinha muitos familiares, e entrar para o exército. Como não havia terminado
a Academia Militar de Saint-Syr, não lhe podiam dar o posto de oficial. O
princípe prussiano Guilherme, mais tarde imperador, aconselhou d’Anthés a
ir para a Rússia e aí procurar a felicidade, escrevendo-lhe uma carta de
recomendação.
A carta tem a data de 6 de Outubro de 1833, e seria mais do que sufi-
ciente para que fosse bem recebido na Rússia, mas d’Anthés, durante a sua
viagem pela Alemanha, teve a sorte de encontrar o barão Heeckeren, embai-
xador holandês na corte do czar, que lhe deu todo o apoio e o levou consigo
para a Rússia. Heeckeren encontrava-se em S. Petersburgo desde 1823, e o
imperador russo atribuíra-lhe a ordem de Santa Ana. Por conseguinte, goza-
va de grande prestígio no meio diplomático.
D’Anthés chegou a S. Petersburgo a 11 de Outubro de 1833, no navio
“Nicolau I”. A sua recomendação foi bem aceite, e, depois de alguns exames
na Academia, entrou a 8 de Fevereiro de 1834, como alferes de cavalaria,
para o 7º esquadrão de reserva. O nome de d’Anthés aparece pela primeira
vez no diário de Pushkin em Janeiro de 1834, ligado a este acontecimento:
“O barão d’Anthés e o marquês de Pina vão entrar para o regimento como
oficiais. O regimento mostra-se descontente”.
Graças à protecção do barão Heeckeren, que passados dois anos acabou
por o perfilhar, dando-lhe o seu nome e legando-lhe por morte todos os bens, o
jovem francês, que tinha reputação de espirituoso, de vestir à moda, de ser
elegante, inteligente e educado, conquistava a alta sociedade de S. Petersbur-
go. No entanto, a sua relação com o protector tinha algo de estranho, e os boa-
tos que corriam punham em perigo a sua carreira, começada de uma forma tão
brilhante. A saída seria um romance com uma jovem da sociedade, que iria
desviar as atenções e que mais prestígio lhe concederia aos olhos das damas.
As suas atenções iriam recair sobre Natália Gontcharova, que parecia
não ser indiferente aos seus galanteios. Natália estava agora no auge da bele-
za e das atenções. Os amigos de Puhkin eram unânimes em considerar que
Natália estava a ser vítima de d’Anthés, porquanto era uma figura passiva.
Puhkin era obrigado a estar presente nos bailes, aborrecido e, segundo as
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 117

suas próprias palavras, “dormitava e empanturrava-se de gelados”. No entan-


to, o próprio Pushkin reconhece que uma mulher não pode ficar indiferente a
um galanteio insistente, que se prolongava há mais de dois anos, vindo da
parte de um jovem atraente.
E, apesar de este ser um dos momentos mais trágicos da sua vida, quan-
do desafia d’Anthés em duelo pela primeira vez, continua a escrever, a criar,
e a pensar. A. I. Turguenev escreve a 21 de Dezembro de 1837: “Ele está
cheio de ideias”.
D’Anthés, para não se bater em duelo – é o que pensa Pushkin – ou por
ordem do imperador – segundo outras opiniões – pede em casamento Ekate-
rina Nikolaevna Gontcharova, irmã mais velha de Natália, que, como todos
sabiam, estava apaixonada por ele. O pedido foi feito a 4 de Novembro de
1836 pelo pai adotivo, e o casamento realizou-se a 10 de Janeiro de 1837.
Pushkin não queria ir ao casamento da cunhada, mas os amigos, tentan-
do aproximá-los, arranjavam encontros quase todos os dias. D’Anthés,
embora casado, continuava a perseguir a pobre Natália, até que um dia de tal
modo a compremeteu num baile com olhares e alusões, que todos os presen-
tes ficaram horrorizados. N. M. Smirnov, cinco anos após estes aconteci-
mentos, escreve: “o comportamento de d’Anthés depois do casamento deu-
-nos a todos o direito de pensarmos que não só pretendia aproximar-se cada
vez mais de Natália, como, em consequência dos laços familiares, afastar a
ira do cunhado... Continuava a dançar com ela, a beber à sua saúde, em
suma, levando todo o mundo a murmurar sobre este caso. O barão Heecke-
ren ajudava-o, para – dizia-se – se vingar do desagradável casamento”.
Além disso, Pushkin recebera mais uma carta anónima a pôr em causa o
seu bom nome e o da mulher. Já nada havia a fazer. O destino estava traça-
do. Alguns pushkinistas são de opinião que o encontro que Natália tivera em
casa de Adália Polética com d’Anthés teria sido a gota de água que levou
Pushkin a desafiá-lo para duelo, pela segunda vez.
O duelo ficou decidido em apenas algumas horas. D’Anthés disparou
em primeiro lugar, e Puhkin caiu mortalmente ferido, mas ainda se levantou
para disparar contra d’Anthés que ficou ligeiramente ferido no braço.
D’Anthés foi condenado e obrigado a deixar a Rússia para sempre.
Os últimos anos da vida de Puskin foram penosos, mas as dificuldades e
os transtornos por que passou não se refletiram na sua obra. Pushkin traba-
lhava cada vez mais. Os seus pensamentos artísticos podem ser avaliados
não só pela quantidade de obras escritas, mas também pela sua qualidade.
Entre 1833 e Janeiro de 1837, escreve algumas das suas melhoras obras:
“Angelo” (1833), “As Noites do Egito” (1835), “A Filha do Capitão” (1833-
-1836), entre outras. Interessa-se pela história do seu país, pelos cataclismos
históricos, pelos conflitos trágicos, por intermédio dos quais demonstra a sua
ideia de humanismo. O tema das revoltas camponesas aparece em “A Histó-
ria da Aldeia Goriukhine”, e é o centro da atenção artística na novela
118 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

“Dubrovski”. Em 1833 conseguiu autorização do czar para se deslocar por


um período de quatro meses aos locais onde tiveram lugar as insurreições
comandadas por Pugatchov, nos distritos de Orenburg e Kazanhe, onde reco-
lheu memórias de muitos dos factos contados pelos velhotes da região que
haviam presenciado os acontecimentos. Escreveu “Pugatchov”, e logo ini-
ciou a história de Pedro I, que, infelizmente não teve tempo de terminar.
Todos os anos, em Junho, se comemora em Mikhailovskoi o aniversário
do poeta. À noite acendem-se fogueiras e cantam-se em côro velhas canções
e quadras como a que se segue:
Наши сосны и озёра Os nossos pinheiros e lagos
Очень замечательны. Tão maravilhosos são,
Мы Михайловские рощи Os bosques de Mikhailovskoi
Бережем старательно. Guardamos no coração.

A alguns quilómetros de Mikhailovskoi, no cimo de um outeiro fica o


Mosteiro de Sviatigorski. Pushkin está sepultado no território do mosteiro. À
aldeia que o rodeia deram o nome: Colinas de Pushkin.
Grandes compositores russos têm-se inspirado nas obras de Pushkin, a
começar por M. Glinka que compõe em 1842 a ópera “Ruslane e Liudmila”.
O herói deste poema, Vadim, depois de muitas aventuras, consegue chegar à
fortaleza encantada onde estavam doze donzelas adormecidas, libertando-as.
Em 1863 estreia-se em S. Petersburgo a ópera “A Vida de Ivan Sussanine”.

Notas
1. O poema “Os Ciganos” foi escrito em 1824, quando Pushkinse encon-
trava desterrado em Odessa.
2. I. I. Kozlov – Poeta e Tradutor (1779-1840)
3. M. I. Glinka. Compositor (1804-1857). Escreve a música da ópera
“Ivan Sussan” e de alguns poemas de Pushkin.
4. Kozlof era cego.
5. Delvigue – Poeta, amigo do poeta desde o tempo do liceu.
6. Ekaterina Ermalaevna Kern é filha de Anna Petrovna, pela qual se apai-
xonou o compositor M. Glinka.
7. Grisette-palavra francesa que o poeta utiliza referindo-se a jovens não
aristocratas e de vida amorosa menos rígida.
8. Adália Polética era filha do conde Strogonof e da condessa portuguesa
Juliana d’Ega, mais tarde Júliana Strogonova, filha de D. Leonor de
Almeida Portugal, condessa d’Oyenhausen, 4ª Marquesa de Alorna
9. Sviatogorski significa. Colina Sagrada
10. Obras Completas de Gogol. (1809-1852)
11. M. S. Vorontso – Governador-general entre 1823-1844.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 119

Bibliografia:
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Grigorenko, V. V., S. A. Makashina, S. I. Mashinskovo, V. I. Orlova. A. S.
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Leningrado: Otdelenie Literaturi i yazyka. Leningradskoe otdelenie.
Vassiliev, V. A. (1994) Dukhovnyi put Pushkina. Moscovo: Sam & Sam.
Viazemski, P. A. (1986) Poesia de Pushkin. Tvortcheskaya evolutzia. Academia
das Ciências da URSS. Leningrado: Izdatelstvoe “Nauk”.
OS EVANGELHOS SEGUNDO LEV TOLSTÓI:
EM TORNO DE OS MEUS EVANGELHOS1

Ana Matoso

Целью данной статьи является освещение некоторых авторских стратегий, с


помощью которых Л.Н. Толстой представляет одну «очищенную» версию
христианства в Кратком изложении Евангелия, одновременно отказываясь
говорить о трансцендентном. Этот отказ можно понять в контексте запрета
Витгенштейна «О чем невозможно говорить, о том следует молчать».
Ключевые слова: краткое изложение Евангелия, логико-философский трактат,
интерпретация, этика

Это сочинение – обзор богословия и разбор Евангелий – есть лучшее


произведение моей мысли, есть та одна книга, которую (как
говорят) человек пишет во всю свою жизнь.
Carta de L. Tolstói a Chertkhov, 1884

Conhece Os Meus Evangelhos de Tolstói? Numa dada altura, este livro


manteve-me praticamente vivo. Não quererá comprá-lo e lê-lo?! Se não o
conhece ainda, não pode imaginar o efeito que este livro pode ter numa
pessoa.
Carta de L. Wittgenstein a Ficker, 1915

Este é um segredo que só para mim é necessário e importante, e não pode


ser expresso em palavras.
Lev Tolstói, Anna Karénina

1
Este artigo é uma adaptação da dissertação de mestrado em Teoria da Literatura, apre-
sentada à Faculdade de Letras em 2005, intitulada Os Evangelhos Segundo Lev Tolstoi
– A Arte como Verdade.
122 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

O inexprimível (o que considero misterioso e não sou capaz de exprimir)


talvez seja o pano de fundo a partir do qual o que quer que eu tenha con-
seguido exprimir adquire sentido.
L. Wittgenstein, Cultura e Valor

O ponto de partida para esta reflexão sobre a obra aqui traduzida por Os
Meus Evangelhos, de Lev Tolstói, retoma a clássica distinção entre os estilos
homérico e bíblico proposta por Erich Auerbach no seu seminal Mimesis: A
Representação da Realidade na Literatura Ocidental.
O muito citado primeiro capítulo da obra de Auerbach coloca em con-
fronto dois excertos que ilustram dois modos de apresentação da realidade a
partir dos quais se constitui toda a literatura ocidental. O episódio do regres-
so de Ulisses é analisado de forma a salientar a descrição exteriorizada que o
narrador faz da cena. Tudo surge uniformemente iluminado e articulado, os
pensamentos e emoções das personagens são minuciosamente descritos e
nada parece ficar por dizer. À descrição objectiva e estática dos poemas
homéricos, Auerbach contrapõe o episódio do sacrifício de Abraão. Ao con-
trário dos deuses homéricos, o Deus hebraico surge sem forma corpórea, um
nome não adjectivado, sem qualquer epíteto através do qual possa ser inter-
pelado. A iluminação dos fenómenos é parcial, o que confere uma ilusão de
profundidade à narrativa. O discurso é fragmentário, paractático, entrecorta-
do por silêncios, e os pensamentos ou emoções ficam por exprimir. As per-
guntas permanecem sem resposta, o retrato humano é mais problemático e o
mundo social mais heterogéneo. O estilo dramático genésico incita o leitor a
completar os seus vazios e, por Abraão encarnar “doutrina e promessa”, o
texto convoca a interpretação.
Auerbach faz notar uma questão fundamental, que será aplicada à análi-
se da obra de Tolstói em discussão: a dispensa da interpretação da épica
homérica, por oposição ao estilo da épica hebraica que, para se tornar inteli-
gível, exige interpretação. É neste ponto que a presente leitura da obra de
Tolstói encontra o seu argumento, já que o autor rejeita a interpretação figu-
ral que Auerbach identifica como tendo sido desenvolvida por S. Paulo e os
Padres da Igreja na tentativa de conciliar Antigo e Novo Testamentos. Tal
rejeição será aqui caracterizada como a resposta de Tolstói ao paradoxo a
partir do qual Os Meus Evangelhos, à semelhança do Tractatus Logico-
-Philosophicus de Wittgenstein, se desenvolve: “O que pode ser mostrado
não pode ser dito.” (4.1212)
No decurso deste trabalho propõe-se assim uma leitura que, ao invocar a
distinção mostrar/dizer, enunciada no célebre aforismo acima citado, e ao
empregar, consequentemente, um vocabulário próximo do do Tractatus, pre-
tende aproximar Os Meus Evangelhos de uma tradição que recusa um discurso
sobre o transcendente, consentânea com a conclusão: “Acerca daquilo de que
não se pode falar, tem que se ficar em silêncio.” (Tractatus, 6.54)
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 123

Os Meus Evangelhos2 é uma versão condensada, sem aparato crítico, de


uma outra mais extensa, onde Tolstói oferece a sua tradução e comentário
dos textos evangélicos, ao lado da versão grega consultada e da versão sino-
dal russa3. Integra o conjunto das obras tardias de Tolstói, compostas no
seguimento da sua famosa conversão religiosa, ou “ataque de melancolia”4,
quando os seus interesses literários e filosóficos gradualmente se transfor-
mam, como o atesta a intensa troca epistolar, no curso da década de 70, entre
o autor e o crítico literário e filósofo Nikolai Strakhov, num novo e apaixo-
nado interesse: a investigação sobre a “forma do Cristianismo mais puro”5.
A conversão de Tolstói, configurada nos capítulos finais de Anna Karé-
nina, quando a luta de Lévin para não cair na “armadilha das palavras” da
filosofia dá lugar à aceitação da impossibilidade de exprimir por palavras o
novo sentimento do bem “que se alojara na sua alma”, sem o modificar ou
iluminar repentinamente, “como sonhava”6, surge descrita em Confissão
(1879-82). Nesta narrativa autobiográfica, inicialmente concebida como um
prefácio, tal como o título original sublinhava7, Tolstói relata, na primeira
pessoa, as diversas etapas da sua “biografia espiritual”, desde a erosão da fé
da infância e adesão ao “culto da arte”, passando pela terrível crise que no
auge da sua carreira o acomete, levando-o à beira do suicídio, até à tomada
de consciência de que, embora impassível de ser capturado na linguagem, a
vida tem um sentido:

Por mais louca que pareça ao meu velho e duro intelecto, esta doutrina
[cristã] é a única esperança de salvação. É preciso estudá-la com cuidado
e atenção para a compreender, e não se trata de compreendê-la como
compreendo os conceitos da ciência. Não é isto que procuro, nem posso
procurar, pois conheço a particularidade da sabedoria da fé. Não vou pro-
curar explicação para tudo. Sei que a explicação de tudo tem de esconder-
-se, como o princípio de tudo, no infinito. Mas quero perceber de modo a
ser levado ao inevitavelmente inexplicável: quero que tudo o que é inex-

2
The Gospel in Brief [Краткое изложение Евангелия, 1881]. Todas as citações são
traduzidas da versão inglesa utilizada e, quando especificado, do original russo, dispo-
nível em versão electrónica em: http://az.lib.ru/t/tolstoj_lew_nikolaewich/text
_1380.shtml.
3
Соединение и перевод четырех Евангелий (1881) [Os Quatro Evangelhos Harmoni-
zados e Traduzidos]. http://az.lib.ru/t/tolstoj_lew_nikolaewich/text_0510.shtml.
4
William James, The Varieties of Religious Experience, 149.
5
Lev Tolstói, Carta a Strakhov de Novembro de 1877, in Tolstoy’s Letters, 308.
6
Lev Tolstói, Anna Karénina, 794, 822.
7
Lev Tolstói, Confissão [Исповедь, Вступление к ненапечатанному сочинению]. A
obra por publicar referida no título original é Исследование догматического
богословия, publicada em Genebra, em 1891.
124 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

plicável não o seja pelo motivo de as exigências da minha razão serem


incorrectas (não, são correctas e, fora delas, nada posso compreender),
mas porque tenho consciência das limitações da minha mente.
É indubitável para mim que há verdade na doutrina; mas também é indu-
bitável que há nela uma mentira, e tenho de encontrar a verdade e a men-
tira e separá-las. (Confissão, 146-47)

Para consternação da mulher e editora, dos seus pares e público, a


intenção, expressa nas linhas acima citadas, iria absorver Tolstói quase
exclusivamente nas últimas décadas da sua carreira. Com um radicalismo
inédito, até para o escritor que no período mais intenso das suas experiências
pedagógicas, na década de 60, já argumentava, contra as teses dos mestres
literati, que os versos dos seus alunos camponeses eram superiores aos de
Púchkin, Tolstói proclamava a inutilidade de “mirar a vida no espelhinho da
arte”8 e o fim da sua carreira de ficcionista. A nova renúncia à literatura não
surge porém, desta vez, como um pretexto para o autor se dedicar, com um
entusiasmo intermitente, à gestão agrícola ou à instrução primária em Iáss-
naia Poliana, mas para mergulhar no estudo aturado das escrituras, ociden-
tais e orientais. Nem o comovido apelo de Turguéniev, o qual, no seu leito
de morte, lhe escreve, implorando que satisfaça o seu último desejo e aban-
done a teologia e regresse à arte que o consagrara como “o grande escritor da
Rússia”9, demove Tolstói do propósito de “encontrar a verdade e a mentira e
separá-las.” Ao invés de dar à estampa os tão aguardados romances, “o
grande escritor da Rússia” devotava-se ao estudo do grego antigo e rodeava-
-se de diversas traduções dos Evangelhos; discutia com Strakhov os proble-
mas da “abordagem materialista” às escrituras de Ernest Renan10; consultava
rabis e latinistas para confirmar as suas descobertas filológicas; e publicava,
na maior parte dos casos, em edições clandestinas, inusitados tratados de
teologia e exegese bíblica, ensaios sobre moral, religião, economia, vegeta-
rianismo, e também sobre arte.
Não pretendo aqui contestar a ainda familiar narrativa dicotómica dos
dois Tolstói nem refutar a perspectivação da carreira literária do autor em
dois momentos radicalmente distintos. Muitos argumentos poderiam ser
aduzidos para questionar o carácter inequívoco desta dicotomia, e os seus

8
Lev Tolstói, Confissão, 42.
9
Turguéniev citado por P. Birukoff, in Leo Tolstoy, His Life and Work, 207.
10
Para além da crítica a Renan ou a Strauss, nos prefácios a Os Meus Evangelhos e Os
Quatro Evangelhos..., Tolstói insta Strakhov a identificar o erro metodológico, ineren-
te às buscas pelo “Jesus histórico”, que confundem “a expressão absoluta da doutrina
[cristã] com a sua expressão na história, reduzindo-a a uma manifestação temporal,
para a discutir.” Cf Tolstoy’s Letters, 321-23, et passim.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 125

benefícios para a discussão da obra de Tolstói, pré e pós Confissão11. Limito-


-me a constatar que esta obra – um extraordinário exemplar do género con-
fessional – embora assinale um marco na vida e carreira de Tolstói, não assi-
nala, todavia, como o autor pretende, o fim da sua carreira literária. Para
além de inúmeros ensaios, Tolstói produziria ainda novelas e contos, obras
dramáticas, um último terceiro grande romance, Ressurreição, e Hadji
Murat, “a melhor história do mundo”, na influente descrição que dela faz
Harold Bloom12.
*
No prefácio de Os Meus Evangelhos, Tolstói afirma que o seu objectivo
é apresentar a essência da doutrina cristã, depurada de todos os ensinamentos
e dogmas da Igreja. Contudo, sublinha que não pretende interpretar a doutri-
na de Jesus, mas recuperá-la como foi originalmente intencionada: inteligí-
vel a todos os homens. Por isso, diz-nos, a sua versão dos Evangelhos foca-
-se exclusivamente na vida e nos ensinamentos directos de Jesus. Neles resi-
de a solução para o problema do homem, a saber, a incompreensão da finali-
dade e sentido da sua vida. Para encontrar a resposta para este problema da
razão prática, para a forma como devemos agir no mundo, Tolstói acredita
que a única via é uma leitura literal da doutrina de Cristo, tal como foi reve-
lada aos seus discípulos nos três capítulos do Sermão da Montanha.
No Padre Nosso e nos mandamentos (Tolstói identifica cinco como
centrais), encontra-se a solução que constitui o fim da busca de um sentido
para a vida. Solução apenas possível a partir do momento em que a essência
dos ensinamentos de Cristo seja recuperada, não como uma questão de natu-
reza teológica ou escatológica, mas como foi revelada: perfeitamente coeren-
te, coerência que o autor afirma ter sido destruída pelas sucessivas versões e
traduções da Bíblia. Ao convocarem o dogma da Revelação como elemento
basilar de uma correcta interpretação, os primeiros exegetas cristãos não só
dissociaram forma e conteúdo, como se afastaram do sentido, e como tal, da
verdade desta doutrina: “Declarar que a expressão de um determinado dog-
ma é uma expressão divina, do Espírito Santo, é presunção e estupidez
[гордости и глупости] no mais alto grau; a maior das presunções, porque
não pode haver nada mais arrogante do que dizer ‘O que eu digo, é o próprio
Deus que fala através das minhas palavras”. (Os Meus Evangelhos, 27)
Neste contexto, interpretar é uma prática ilegítima e mesmo herética.
Significa pressupor que há algo que ficou por dizer, como Auerbach refere, a

11
Eikhenbaum foi o primeiro crítico a enfatizar o papel das crises recorrentes de Tolstói
na criação de novas formas literárias e a rejeitar a visão de que, após Confissão, Tols-
tói se tornara num moralista: “Isto não é verdade. As crises acompanham a obra inteira
de Tolstói”. B. Eikhenbaum, “On Tolstoy’s Crises”, 53.
12
Harold Bloom, “Tolstoy and Heroism”, 313.
126 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

partir do momento em que supomos existir um antagonismo entre forma e


conteúdo: “Isto não quer dizer isto, mas uma outra coisa”. Partimos do pres-
suposto de que existe um segundo sentido por detrás dessa frase e de que
apenas a nossa interpretação poderá estabelecer a referência escondida. É
esta ilusão de profundidade, de sentidos ocultos, inerente ao sublime bíblico,
tal como analisado por Auerbach, que está na origem de todos os erros her-
menêuticos. Por isso, o objectivo de Tolstói ao rescrever os Evangelhos não
foi procurar refutar, ou confirmar, questões teológicas sobre a natureza divi-
na de Jesus. O que pretende é apresentar os ensinamentos de Jesus na sua
vertente mais inteligível e racional, partindo da premissa de que “o funda-
mental não é apenas não provar que Jesus não era Deus, que a sua doutrina
não era divina, nem tão pouco que ele não era Católico; mas conhecer a
essência dos seus ensinamentos.” (Os Meus Evangelhos, 20)
É então neste propósito que a versão de Tolstói parece diferir das
demais. Para o cumprir, o autor procura mostrar que todas as questões de
natureza metafísica não só não têm resposta, nem confirmam a verdade das
palavras de Jesus, como se encontram intrinsecamente mal formuladas, uma
vez que questionam aquilo que não se encontra no mundo (Deus) e que,
como tal, não tem expressão na linguagem.
Por detrás dos sedimentos da Tradição, os ensinamentos directos de
Cristo continuam a oferecer, para este autor, a “mais pura e completa doutri-
na de vida (…) a partir da qual todas as actividades mais nobres da humani-
dade em matéria da política, ciência, poesia e filosofia, instintivamente deri-
vam.” (idem, 32) É, pois, a racionalidade desta “doutrina de vida” que o
autor propõe-se recuperar, não sem antes advertir que:

O leitor não deverá esquecer-se de que são os ensinamentos de Cristo que


poderão ser sagrados, e nunca um número fixo de versículos ou letras; e
que certo número de versículos, aqui e ali, não poderão ser sagrados ape-
nas porque os homens assim o dizem. (…) Não considero o Cristianismo
nem uma pura revelação, nem um período na História, mas considero-o a
única doutrina que dá sentido à vida . (idem, 21-22)

O resultado desta empresa de Tolstói é uma versão dos Evangelhos na


qual pouco fica do estilo do Novo Testamento. O narrador de terceira pessoa
encarrega-se de uniformizar as narrativas dos quatro evangelistas sob um
único ponto de vista omnisciente. Constituída por doze capítulos perfeita-
mente articulados entre si, e que excluem todos os milagres e episódios que
procuram provar a divindade de Jesus, desta versão depurada, cujo tema
principal é o magistério de Jesus, são também eliminados todos os escritos
pertencentes às diversas tradições judaico-cristãs, considerados demasiado
obscuros e heteróclitos.
Nos momentos em que os Evangelhos colocam em cena acontecimentos
que provam a divindade de Jesus, Tolstói conserva as palavras, eliminando
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 127

os versículos que relatam factos de natureza sobrenatural. Por isso, do episó-


dio com que a sua versão se inicia, o nascimento de Jesus (Mt 1,18-25), são
omitidos os versículos que referem explicitamente a concepção divina de
Jesus, “pelo poder do Espírito Santo” (Mt 1,1813), e o sonho de José, uma
vez que “complicam a exposição (…), não contradizem nem confirmam”
(Os Meus Evangelhos, 20) a verdade desta doutrina:

O nascimento de Jesus Cristo foi assim: – A sua mãe Maria estava noiva
de José. Mas antes de começarem a viver como homem e mulher, Maria
engravidou. Mas José era um homem bom, e não pretendia desgraçá-la;
tomou-a como sua mulher, e absteve-se da sua companhia até ela ter dado
à luz o seu primeiro filho, e o chamou de Jesus. (idem, 36)

Um outro exemplo deste minucioso trabalho de articulação, síntese (e


transformação) dos materiais bíblicos é a transcrição do Baptismo de Jesus
(Mt 3,13-17), no qual, depois de ser baptizado por João, os céus rasgam-se e
uma voz vinda do céu diz: “Este é o meu Filho muito amado, no qual pus
todo o meu agrado”. Do original, Tolstói apenas conserva o versículo 13,
cujo verbo “baptizar” traduz por “banhar-se”14, acrescentando uma oração:
“Jesus veio da Galileia ao Jordão ter com João, para ser banhado por ele
[выкупаться у Иоанна]; e ele banhou-se, e ouviu os ensinamentos
[проповедь] de João.” (Os Meus Evangelhos, 39, itálicos meus)
As características que assinalam a inequívoca presença do elemento his-
tórico nos escritos evangélicos, muitas vezes confusos, elípticos e contradi-
tórios, dão aqui lugar a uma narrativa perfeitamente unificada, sem nexos
causo-temporais indeterminados ou digressões. As regras reclamadas por
Tolstói para uma apresentação objectiva, subsumíveis nas três questões
“Quem fala?”, “Onde está?”, “E porquê?”15, são aqui escrupulosamente res-
peitadas. Os intervenientes são identificados e sabemos os motivos que os
levam a agir. Tudo é trazido para a frente, como Auerbach refere na sua des-
crição do sublime homérico, não parecendo existir uma ilusão de profundi-
dade, um outro tempo ou espaço não especificados. As personagens verbali-
zam os seus pensamentos mais secretos e, quando não os dizem em discurso

13
Todas as citações dos textos evangélicos são da Bíblia Sagrada (Ed. dos Missionários
Capuchinhos). Lisboa: Difusora Bíblica, 2008.
14
Em Os Quatro Evangelhos..., comentando o mesmo passo, Tolstói refere que o verbo
grego que traduz por “banhar-se” [выкупаться] carrega também o sentido de purifi-
cação [очищение], e que a tradução mais adequada será “purificar” [очистить]. Cf.
http://az.lib.ru/t/tolstoj_lew_nikolaewich/text_0510.shtml
15
Embora não surjam explicitamente enunciadas, estas são as principais regras convoca-
das em O Que é a Arte? [Что такое искусство?,1897] para demolir a estética sim-
bolista, em particular o poema “Pan”, de Maeterlink, o qual não respeita as regras de
“inteligibilidade”, condição necessária da comunicação através da arte: “Quem saiu?
Quem entrou? Quem fala? Quem morreu? Não sabemos.” Lev Tólstoi, idem, 74.
128 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

directo, o narrador omnisciente encarrega-se de lhes dar expressão: “E assim


em Jerusalém, muitos eram os que acreditava naquilo que ele dizia. Mas ele
próprio não acreditava em nada exterior [внешнее] ao homem, porque sabia
que tudo está dentro do homem. Não precisava que ninguém o elucidasse
acerca das pessoas, pois sabia o que está dentro do homem – o espírito
[дух].” (Os Meus Evangelhos, 52) Não só a relação causal entre crença e
milagre é elidida “(…) muitos creram nele, ao verem os sinais miraculosos
que fazia” (Jo 2,23), como o que fica por denominar nos versículos originais
– “e não precisava de que ninguém o elucidasse acerca das pessoas, pois
sabia o que havia dentro delas” (Jo 2,25) – é aqui nomeado: “pois sabia o
que está dentro do homem – o espírito.”
Mesmo nestes momentos, em que é explicitamente negada a presença
de “Deus” na gramática do dizível, e em que o autor nos pretende mostrar,
tal como o autor do Tractatus, que “os limites da linguagem são os limites
do meu mundo”, o narrador vigilante de Os Meus Evangelhos nada deixa na
penumbra e o domínio do interior é trazido para a superfície da linguagem.
Todos os elementos próprios do estilo tolstóiano parecem também nesta
narrativa conspirar “towards diminishing the irremediable barrier between
the reality of the world of language and that of the world of facts.”16
Não só tudo é expresso como repetidamente explicitado, através de um
discurso de redundância que pretende exaurir todos os sentidos das palavras
de Jesus. Estas são ditas, tal como as das outras personagens, quase exclusi-
vamente em discurso directo. No entanto, o discurso de Jesus já não tem a
brevidade sincopada dos Evangelhos. A palavra é dada ao protagonista, que
expõe os seus ensinamentos da forma mais clara possível. Quando fala por
parábolas, não deixa de fornecer o sentido apenas implícito nas parábolas
dos Evangelistas.
Encontramos um exemplo desta permanente auto-exegese na versão de
Tolstói da parábola do Bom Pastor. Aos dois primeiros versículos do Evan-
gelho “Em verdade, em verdade vos digo: quem não entra pela porta no redil
das ovelhas, mas sobe por outro lado, é um ladrão e salteador. Aquele que
entra pela porta, é o pastor das ovelhas” (Jo 10, 1-2), contrapõe o autor:

Uma terceira vez, Jesus ensinou as pessoas: “Os homens entregam-se aos
meus ensinamentos, não porque eu lhes dê provas da sua verdade. É
impossível provar a verdade [доказывать истину]. É a verdade que pro-
va tudo o resto. Mas os homens entregam-se aos meus ensinamentos, por-
que eles são únicos e conhecidos dos homens, e prometem a vida. Os
meus ensinamentos são para as pessoas como a voz familiar do pastor é
para as suas ovelhas quando ele entra pela porta e vai ter com elas.” (Os
Meus Evangelhos, 138)

16
George Steiner, Tolstoy or Dostoevsky, 115.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 129

Na versão de Tolstói, a parábola é antecedida por um paradoxo que, jus-


tamente, ilustra a parábola: a verdade existe, mas não pode ser provada nem
refutada – é ela que prova tudo o resto. Tal como os ouvintes do Jesus apre-
sentado por Tolstói, também os leitores desta obra são desencorajados a
procurar uma justificação para a verdade que o protagonista reivindica: “É
impossível provar [доказать] se as palavras que são proferidas são de Deus
ou não são de Deus. Deus é espírito; Ele não pode ser avaliado [мерить],
Ele não pode ser provado [доказать].” (idem, 54)
A argumentação de Jesus redunda assim num paradoxo que não pede
para ser resolvido, pois não há qualquer solução, porque Tolstói poderia apa-
rentemente subscrever a conclusão (e a premissa) do argumento que afirma:
“O sentido do mundo tem que estar fora do mundo (…); nele não existe qual-
quer valor – e se existisse não tinha qualquer valor.” (Tractatus, 6.41)
Quer seja à Samaritana, ao Sinédrio (os “ortodoxos do templo”, na tra-
dução de Tolstói) ou a Nicodemos, aos que acreditam nas profecias, mas não
no que vêem, o protagonista de Tolstói retorque: “Não compreendeis? Não
espereis nada mais.”
Aos versículos de Jo 4, 25-26 “Disse-lhe a mulher: ‘Eu sei que o Mes-
sias, que é chamado Cristo, está para vir. Quando vier, há-de fazer-nos saber
todas as coisas.’ Jesus respondeu-lhe: ‘Sou Eu, que estou a falar contigo’”,
contrapõe Tolstói: “A mulher não compreendeu o que Jesus disse, e disse:
‘Ouvi dizer que o enviado de Deus virá, aquele a quem chamam o ungido.
Então ele nos explicará [расскажет] tudo’. E Jesus disse: ‘Sou eu, aquele
que te fala. Não esperes nada mais’.” (Os Meus Evangelhos, 53)
Quando confrontado com o espírito inquisitivo dos seus oponentes da
Lei Antiga, o protagonista de Tolstói responde com uma Lei que não pode
ser definida: “Os meus ensinamentos são únicos e verdadeiros; como são a
única porta para as ovelhas. Todos os vossos ensinamentos sobre a lei de
Moisés são mentiras, todos, são como os ladrões e salteadores das ovelhas.”
(idem, 139)
“Eu falo a verdade, a única verdade”, repete sem cessar o protagonista,
não deixando de acrescentar: “não me peçam provas daquilo que eu não
posso dar”. O apelo não é à razão dos seus ouvintes, mas a algo diferente, ao
pathos da sua audiência. Se a verdade é aqui caracterizada pela sua natureza
evidente, mas não verificável, o narrador de Os Meus Evangelhos intervém
na narrativa, procurando colmatar a falta de provas da “argumentação” de
Jesus. Comparemos as duas versões do mesmo versículo:

Já a festa ia a meio, quando Jesus subiu ao templo e se pôs a ensinar.


(Jo 7,14)
No meio do dia de festa, Jesus entrou no templo, e começou a ensinar às
pessoas que o seu culto a Deus era falso [ложно]; que Deus deveria ser
adorado não no templo e através de sacrifícios, mas no espírito, e através
de actos [делом]. (Os Meus Evangelhos, 128)
130 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Ao longo desta obra, Tolstói reitera, quer através do narrador, quer atra-
vés do seu protagonista, que a interpretação dos ensinamentos de Jesus não
pode ser feita à luz do Antigo Testamento (ou da ortodoxia):

E os ortodoxos [правоверные] aproximaram-se de Jesus, e começaram


por lhe perguntar: “Como, então, e quando, virá o reino de Deus?” E ele
respondeu-lhes “O Reino de Deus que eu prego não é como aquele que os
antigos profetas pregaram. Eles disseram que Deus viria através de dife-
rentes sinais visíveis, mas eu falo de um reino de Deus, cuja vinda poderá
não ser vista com os olhos. E se alguém vos disser “Vejam, ele chegou,
ou ele chegará”, ou “Vejam, é aqui ou acolá”, não acrediteis neles. O Rei-
no de Deus não é nem no tempo nem no espaço, nem de nenhum tipo. É
como um relâmpago, está aqui, ali, e em toda a parte. E não tem nem
tempo nem espaço, porque o reino de Deus, aquele que eu prego, está
dentro de vós.” (idem, 61-62, itálicos meus)

Na transcrição de Lc 17, 20-28, Tolstói omite os versículos 21-23, evi-


tando não só a mudança de interlocutor que ocorre no versículo 22 (dos fari-
seus passa-se para os discípulos), e consequentemente nexos causo-
-temporais indeterminados, como reitera que a proposição “O Reino de Deus
está dentro de nós” apenas adquire sentido quando entendida em oposição à
Lei de Moisés: “O Reino de Deus que eu prego não é como aquele que os
antigos profetas pregaram.” Por encarnar um “conhecimento de vida” único,
a doutrina de Jesus não pode ser lida como a realização de uma outra já reve-
lada. Se a Lei de Jesus veio rasurar a Lei Antiga, o sentido da primeira resul-
ta, no entanto, da sua relação antitética com a segunda.
Este é o método aplicado por Tolstói para recuperar o “verdadeiro sen-
tido dos ensinamentos [dos Evangelhos]” (idem, 16). Só assim pode afirmar
ter descoberto a doutrina de Cristo como algo radicalmente novo, até então
obscurecido pelas sucessivas tentativas da exegese em conciliar a ética da lei
mosaica com a da Lei enunciada no Sermão da Montanha.
Aqui, neste ponto em que dois modos de leitura parecem confluir na
narrativa tolstóiana – o literal e o figurativo –, levanta-se a possibilidade de
Os Meus Evangelhos ser o resultado de uma estratégia do autor em dispensar
um certo tipo de interpretação que, violando as regras da gramática do trans-
cendente, procura sentidos profundos naquilo que para o autor se encontra à
superfície. Com efeito, para chegar a uma versão dos Evangelhos possivel-
mente caracterizada como mais “evidente” ou “homérica”, Tolstói oferece-
-nos a sua versão.
Ao enquadrá-la numa tradição que, segundo Auerbach, resiste à inter-
pretação, procurou-se chamar a atenção para o estilo com que Tolstói apre-
senta a história de Jesus: um estilo mais próprio do herói lendário do que do
herói histórico do estilo fragmentado do Novo Testamento. A dúvida, que
convoca a interpretação, torna-se um elemento desnecessário à compreensão
do texto “redundante” de Tolstói. O autor encarrega-se de fornecer a sua
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 131

auto-exegese, assinalando os limites daquilo que pode “ser expresso com


clareza”, mas também aquilo que não pode ser interpretado. Ao rescrever os
Evangelhos, Tolstói confere-lhes uma nova forma que acomoda as regras da
sua própria gramática. À metáfora “O Senhor é o meu pastor” contrapõe “O
Senhor é como um pastor”. Continuamos, assim, sem uma explicação para a
metáfora, mas com a importante diferença que Tolstói nos diz como ler a sua
história: ela não diz a verdade e somos assim forçados a reconhecer a evi-
dência de que “o Senhor é como se fosse o meu pastor, mas ele de facto não
é.” Não existe nenhum referente, nenhum facto no mundo que possa referir
“Deus”, porque o autor de Os Meus Evangelhos poderia subscrever a consta-
tação de que “Como o mundo é, é para O que está acima completamente
indiferente. Deus não se revela no mundo.” (Tractatus, 6.432)
O autor pede-nos, exige-nos, que respeitemos as regras do seu jogo
onde “Deus” parece encontrar-se estranhamente ausente17, como se preten-
desse dizer: “Uso isto como uma alegoria mas reparem: não encaixa aqui.”
Wittgenstein concisamente conclui que, “[n]esse caso, não sentirias que
estavas a ser enganado, que alguém te estava a tentar convencer através de
um embuste.”18
Transformando as metáforas dos Evangelhos em comparações, estas
continuam a nada afirmar, a não ser a irredutível ausência de uma qualquer
verdade metafórica escondida por detrás do significado das suas palavras. O
“objecto” de comparação não é redescrito num outro contexto, a não ser no
da própria estrutura da símile. O leitor é então convocado a lê-las na sua
literalidade, porque o significado das palavras em contexto metafórico não
parece diferir do seu significado literal. No entanto, se aquilo que afirmam é
patentemente falso, elas apontam numa direcção:

What I deny is that metaphor does its work by having a special meaning,
a specific cognitive content. (…) [T]o suppose it can be effective only by
conveying a coded message is like thinking a joke or a dream makes some
statement which a clever interpreter can restate in plain prose. Joke or
dream or metaphor can, like a picture or a bump on the head, make us ap-
preciate some fact – but not by standing for, or expressing, the fact. (“On
What Metaphors Mean”, 262)

No ensaio citado, Donald Davidson avança a tese de que o significado


metafórico de uma frase não diverge do significado literal das suas palavras.
Uma metáfora “says only what shows on its face – usually a patent falsehood
or an absurd truth” (idem, 259). Uma metáfora não diz nada, pois não signi-

17
Este é um dos pontos de contacto assinalados por Steiner entre o estilo homérico e o
tolstóiano: “His also is an immanent realism, a world rooted in the veracity of our sen-
ses. From it God is strangely absent.” George Steiner, Tolstoy or Dostoevsky, 80.
18
Ludwig Wittgenstein, Cultura e Valor, 50.
132 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

fica como uma afirmação literal significa. Funciona de modo análogo ao de


um “sonho ou uma piada” – “[m]etaphor is the dreamwork of language.”
(idem, 245) Ao interpretar uma metáfora, aquilo que supomos estar a expli-
car não é um segundo sentido, mas os efeitos que esta provoca. Por este
motivo, é difícil parafrasear uma metáfora: nada há ali para parafrasear. É ao
descrever a visão que promove, os seus efeitos, que mostramos compreendê-
-la. Por ser mais uma questão de uso, do que de significado de nomes, quan-
do tentamos interpretar uma metáfora “our attention is directed (…) to what
language is about.” (idem, 252) Neste sentido, Davidson considera as metá-
foras, não um uso indevido da linguagem, emotivo e confuso, mas um dispo-
sitivo válido, nos diversos discursos da literatura, ciência ou filosofia. As
metáforas têm, com efeito, um sentido: convidam-nos a ver algum objecto
ou aspecto da realidade sob uma nova luz, não por o representarem, mas por
dirigirem a atenção para uma determinada direcção, por promoverem a per-
cepção de alguma semelhança. Por este motivo, o papel do crítico não é o de
procurar explicar a metáfora (o que só é possível para frases com significa-
do), mas o de contribuir para que o leitor veja “what the author of the meta-
phor wanted us to see” e “much of what we are caused to notice is not pro-
positional in character.” (idem, 264 e 263)
Com este breve excurso sobre alguns dos aspectos da teoria da metáfora
de Davidson, pretendeu-se abrir caminho para a questão que agora se coloca.
No seu ensaio, Davidson refuta as diferentes teorias que pretendem fornecer
regras de leitura das metáforas. A sua caracterização do modo como as metá-
foras não dizem mas, contudo, mostram algo que, na maioria das vezes, não
é de natureza proposicional, permite contextualizar o que se pretendeu fazer
notar, isto é, o processo de literalização das metáforas efectuado por Tolstói
na sua rescrita dos Evangelhos.
Não será pelo facto de que “[t]he most obvious semantic difference
between simile and metaphor is that all similes are true and most metaphors
are false” (idem, 257) que Tolstói transforma as metáforas do texto bíblico
em comparações? Pelo mesmo motivo que, como Davidson frisa, apenas
usamos uma comparação quando sabemos que a metáfora equivalente é fal-
sa? (idem, 257). Nesse sentido, o narrador de Os Meus Evangelhos, ao osten-
tar que acredita que a expressão metafórica é literalmente falsa, chama a
atenção para a distinção wittgensteiniana entre mostrar/dizer, para “o método
correcto da Filosofia” proposto no Tractatus: “Ela denotará o indizível, ao
representar claramente o que é dizível.” (idem, 6.53)
Explicitando as regras da sua versão, Tolstói assinala os momentos em
que a linguagem deixa de poder dizer a verdade, mas é precisamente aqui, ao
apontar que ao termo “Deus” não foi dado um sinal de denotação, que Tols-
tói situa o sentido:

Compreende que eu não estou a interpretar aquilo que todos nós conhe-
cemos, mas sim a afirmar aquilo que todos conhecemos e vemos. Como
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 133

poderás acreditar naquilo que está no céu, se não acreditas no que está na
terra, naquilo que está em ti próprio? Porque jamais algum homem foi ao
céu, mas há apenas um homem na terra, que desceu do céu e ele mesmo é
do céu. (Os Meus Evangelhos, 63, itálicos meus)

Este é o paradoxo a partir do qual esta obra se desenvolve, mas também


o desafio que nos coloca. Se o valor (Deus) não pode ser expresso, porque
nada afirma sobre o mundo dos factos, parece, contudo, poder ser de alguma
forma apresentado, não como figura que cumpre uma outra (o figuram
implere de Auerbach), mas como algo inteiramente novo. Penso ser esta
possibilidade de redescrever “Deus” dentro de um novo jogo que expõe os
limites da interpretação, e do seu próprio discurso, ao literalizá-lo, que pro-
pulsionou a escrita de Os Meus Evangelhos:

Tudo me conduzira à convicção de que descobrira a verdadeira interpreta-


ção da doutrina de Cristo. Mas levaria algum tempo até que conseguisse
habituar-me à estranha ideia de que depois de tantos homens terem pro-
fessado a doutrina de Cristo por mais de 1800 anos, e devotado as suas
vidas ao estudo dos Seus ensinamentos, me cabia a mim a tarefa de des-
cobrir a Sua doutrina como algo inteiramente novo. (Aquilo em Que
Acredito, 48)19

Apesar da reivindicação universalista da afirmação transcrita, no prefá-


cio de Aquilo em Que Acredito, Tolstói reitera uma vez mais que o seu intui-
to não é interpretar a doutrina de Cristo, mas “evitar que os outros a interpre-
tem erradamente.” (idem, 2) Para tal, convoca o único princípio capaz de
assegurar uma compreensão correcta dos Evangelhos, no “aspecto mais sim-
ples, claro e inteligível desta doutrina” (idem, 2): o princípio de que “Cristo
quis dizer exactamente aquilo que realmente disse” (idem, 10). Apenas par-
tindo deste pressuposto pode a doutrina de Cristo recuperar a sua completude
primordial, ou seja, a inextricável relação entre forma e conteúdo.
Neste ponto Tolstói encontra a justificação para o seu repúdio da inter-
pretação figural. Um argumento que se desenvolve a partir de um princípio
não muito arredado daquele que Davidson, em “On The Very Idea of Con-
ceptual Scheme” (1984), reclama como um dos aspectos constitutivos da
própria interpretação: o princípio da caridade. Um princípio que pressupõe
que um intérprete considere verdadeiras a maioria das crenças do sujeito
interpretado, e também coerentes com as suas próprias crenças. No âmbito
da discussão sobre a putativa dualidade esquema/conteúdo, é assumido que
sem este princípio de racionalidade não é possível sequer atribuir sentido às
frases, i.e., não é possível dar conta do fenómeno da interpretação:

19
Lev Tolstói, What I Believe [В чем моя вера?, 1885].
134 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Since knowledge of beliefs comes only with the ability to interpret words,
the only possibility at the start is to assume general agreement on beliefs.
We get a first approximation to a finished theory by assigning to sen-
tences of a speaker conditions of truth that actually obtain (in our own
opinion) just when the speaker holds those sentences true. (“On The Very
Idea of Conceptual Scheme”, 196)

Na incompreensão deste aspecto da prática interpretativa, reivindicado


por Davidson como condição para uma teoria do sentido, reside o que para
Tolstói constitui a “destruição do sentido moral, religioso, gramatical e lógi-
co das palavras de Cristo” (Aquilo em Que Acredito, 83). O autor identifica
na rejeição da literalidade dos mandamentos de Cristo o início da ruptura da
unidade primordial entre as vertentes a partir das quais a doutrina cristã
afirma a sua superioridade em relação às demais: a ética e a metafísica. Rup-
tura que, destituindo a essência do Sermão da Montanha da sua racionalida-
de, resultou na sua progressiva ininteligibilidade, num processo iniciado com
os escritos de S. Paulo, quando nele se inculcou uma “teoria cabalística,
estranha aos ensinamentos de Cristo” (idem, 204), e se destruiu a relação de
interdependência entre as duas vertentes.
Ainda que o sentido, i.e., a verdade, da componente metafísica não pos-
sa ser abarcado pela razão, Tolstói, contudo, parece acreditar que este se
pode mostrar. A ética cristã, condensada pelo autor na Lei universal do amor
ao próximo, foi concebida à justa medida do homem e é uma forma de vida,
não um dizer, mas um fazer. Não é um ideal utópico, um manual de regras
divinas, cuja observância é impossível. Jesus é, para Tolstói, o verdadeiro
iconoclasta que veio mostrar aos homens que os ídolos, signos e ritos são
vazios, porque Deus não pode ser adorado em palavras, mas “no espírito, e
através da acção.” É nesta orientação ética e pragmática (a imitação de Cris-
to) que Antigo e Novo Testamentos se distinguem e que Tolstói reclama a
legitimidade da sua versão. Embora conceda que ambos partilhem de uma e
mesma fundação metafísica, divergem radicalmente nas regras de aplicação
desta doutrina, diferença crucial que foi obscurecida pela interpretação figu-
ral. Ao acomodar no seu modelo exegético princípios que permitem, e
visam, conciliar Leis antagónicas, a Tradição ficou irremediavelmente anco-
rada num paradoxo: a justificação da ética cristã. Os mandamentos de Cristo
passaram a encarnar leis abstractas, divinas e, enquanto tais, apenas possí-
veis de serem cumpridas num qualquer plano do transcendente. Desta forma,
lendo alegoricamente o que não foi intencionado como metáfora – os man-
damentos de Cristo – se destituiu esta doutrina revolucionária da sua finali-
dade e a transformou-se numa colecção de aforismos e afirmações metafísi-
cas sem sentido20.

20
Note-se, porém, que em Os Quatro Evangelhos...todos os versículos que relatam os
milagres são purgados, à excepção dos que permitem uma leitura simbólica. Um
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 135

Por outro lado, ao interpretar metáforas que nada significam, porque


apenas podem mostrar alguma semelhança, dogmas de fé foram convocados
para colmatar as inevitáveis aporias que nascem quando se interpreta aquilo
que não pode ser interpretado, quando se coloca a mesma questão que Pila-
tos, naquele momento trágico, colocou: “O que é a verdade?”. Neste âmbito,
Pilatos exemplifica a fé adoptada pela Tradição, uma fé que, ao desenvolver
um modelo exegético que transforma o imperativo ético numa questão espe-
culativa, distorce o sentido das leis antitéticas do Sermão da Montanha:
“Quando, à semelhança de talentosos advogados, interpretamos o sentido do
mandamento de tal forma que lhe conferimos um significado contrário àque-
le pretendido por Aquele que o pronunciou (…) substituímos a verdade pelas
nossas instituições.” (Aquilo em Que Acredito, 88)
À deliberação do momento exegético, Tolstói opõe um princípio de
caridade que pretende tornar indissociável sentido e intenção autoral. Fora
deste contexto, as proposições enunciadas no Sermão da Montanha, com as
quais Jesus veio abolir todas as disposições da Lei Mosaica (e Romana), e
inaugurar um novo primado de amor, deixam de ser asserções proferidas
para levar à acção:

Quando compreendi que as palavras “não resistir ao mal” [не противься


злу] significam “não resistir ao mal”, todas as minhas ideias prévias sobre
o sentido da doutrina de Cristo subitamente se modificaram; (...) porque é
que eu não tinha compreendido estas palavras simples de um modo sim-
ples, mas tinha procurado nelas algum sentido figurado
[иносказательный смысл]? Não resistir ao mal – significa não resistir ao
mal, isto é, nunca cometas um acto de violência [никогда не делай
насилия]. (idem, 8821)

A recusa da tradição hermenêutica cristã parece surgir assim, não como


uma recusa da interpretação, mas como a recusa de uma interpretação que
não tome em consideração aquilo que, segundo o esquema adoptado pelo
autor, a própria comunicação linguística impõe a qualquer intérprete, o prin-
cípio racional que responsabiliza qualquer falante pelas suas próprias pala-
vras: “para decidirmos se os Seus ensinamentos são racionais ou não, é
necessário primeiro acreditar que Ele quis dizer aquilo que disse.” (idem, 42)
Perante a proliferação de interpretações da doutrina de Cristo, o autor apre-
senta uma versão que pretende dispensar uma interpretação profunda: “Se
tratarmos as palavras de Cristo da mesma forma que tratamos as palavras de

exemplo disto é a Cura do Cego (Jo 9), que Tolstói transforma numa “parábola”, tra-
duzindo metaforicamente o termo grego para “cego” pelo adjectivo “темный” [igno-
rante]. Cf. http://az.lib.ru/t/tolstoj_lew_nikolaewich/text_0510.shtml.
21
A tradução deste passo foi feita a partir, não da tradução inglesa utilizada ao longo
deste trabalho, mas do original, disponível em versão electrónica em:
http://az.lib.ru/t/tolstoj_lew_nikolaewich/text_0152.shtml.
136 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

qualquer outro homem que tenha a oportunidade de falar connosco, i.e., se


partimos do pressuposto de que Ele diz aquilo que quer dizer, todas as inter-
pretações profundas tornar-se-ão desnecessárias.” (idem, 91, itálicos meus)
Se intenção é o sentido, mostra-se assim a dispensabilidade de qualquer
interpretação profunda (i.e. figural) dos Evangelhos. Não só se assegura, a
priori, a verdade, ou coerência, das palavras de Jesus, como também se
recupera a força assertórica com que foram proferidas.
Resta ainda verificar se este foi o projecto que Tolstói concretizou, ou
julgava concretizar, ao rescrever os Evangelhos. Estará a sua estratégia
interpretativa ancorada na falácia intencional e resultará ela do pressuposto
de que as intenções são equivalentes a significados, pelo que a única apre-
sentação possível da doutrina de Cristo é a sua reconstituição como um
complexo acto de fala?
O facto é que, ao dirimir a racionalidade com que Jesus transmitiu a sua
doutrina, surge a discórdia e começa a luta pelo podium das interpretações,
iniciando-se a heresia que o autor pretende debelar: a pretensão hermenêuti-
ca em descobrir sentidos profundos na alegoria através da qual Cristo se
exprimiu. As palavras proferidas por Jesus não podem, pois, ser interpreta-
das como afirmando algo, e significando outra coisa, já que não existe uma
qualquer referência escondida, uma “profundidade” ou dicotomia entre for-
ma e conteúdo: “O enigma não existe.” (Tractatus, 6.5)
Os mandamentos de Jesus são caracterizados como injunções inteligí-
veis, porque “significam precisamente aquilo que dizem.” (Aquilo em Que
Acredito, 90) Enquanto continuarem a ser lidas como alegorias, e não como
asserções de crença proferidas num contexto de racionalidade, as interpreta-
ções continuarão a proliferar, cindindo a Cristandade numa miríade de seitas,
doutrinas e teorias.
Parece, pois, que ao reivindicar um princípio de caridade, coincidente em
aspectos relevantes àquele conceptualizado por Davidson, Tolstói pretende
assegurar a infalibilidade da sua versão, fazendo deste método um modo de
eliminação de qualquer outra interpretação. Um princípio que Davidson frisa
não ser opcional, por ser constitutivo da própria prática interpretativa, e que,
contudo, não permite eliminar o desacordo entre interpretações, mas antes
fazer o desacordo racional: “its purpose is to make meaningful disagreement
possible, and this depends entirely on a foundation – some foundation – in
agreement.” (“On The Very Idea of Conceptual Scheme”, 197)
Mais do que assegurar uma pretensa autoridade exegética, ou a infalibi-
lidade da sua descrição, Tolstói pretende assegurar uma versão que possibili-
te ao leitor compreender o telos da doutrina cristã e apresentе a ética, não
como uma utopia, mas como uma actividade racional “que ilumina as nossas
vidas e nos impele a modificar as nossas acções.” (Aquilo em Que Acredito,
118) Contrariamente ao que preconiza, os princípios orientadores da sua
leitura talvez não difiram tanto nos seus fins, como diferem nos meios, dos
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 137

de certos Padres da Igreja, como Santo Agostinho, cujo modelo exegético é


justificado pela “criação do reinado da caridade”: “Ora, a Escritura não pres-
creve nada a não ser a caridade.”22
Recuperar a intenção com que os ensinamentos de Jesus foram transmi-
tidos significa, como referido, apresentá-los sob a forma em que foram reve-
lados: como asserções de crença. Compreendê-las exige recuperarmos o
contexto pragmático no qual Jesus transmitiu os novos preceitos que possibi-
litam ao homem reencontrar uma forma de actuação no mundo. Preceitos de
natureza ética que parecem, contudo, transcender o âmbito da racionalidade
preconizado por Tolstói, a partir do momento em que a exposição dos seus
artigos de fé dá lugar à comunicação, ou seja, a partir do momento em que
pretende persuadir, não através da argumentação, mas da sua versão dos
Evangelhos, intencionada com um propósito muito particular:

Na obra completa [Os Quatro Evangelhos...], cada desvio da tradução


aceite, cada anotação inserida no texto e cada omissão são explicados e
justificados através do confronto com diferentes versões dos Evangelhos,
da análise dos seus contextos, considerações filológicas, e outras. Nesta
versão abreviada, todas estas provas e refutações da leitura [понимания]
da Igreja, bem como as pormenorizadas notas e referências, foram omiti-
das; por muito correcto e rigoroso que o raciocínio [рассуждения] de
cada secção possa ser, não poderá persuadir [могут убедить] de que esta
leitura [понимания] da doutrina é verdadeira. (Os Meus Evangelhos, 20)

O grau de correcção da sua versão, diz-nos, não pode ser avaliado pelo
raciocínio. O conteúdo, ou sentido, por ela recuperado, parece ser, neste
contexto, não-linguístico e incircunscritível, quer nas palavras dos discípulos
de Jesus, quer pela exegese. A verdade da sua nova leitura, acrescenta Tols-
tói, reside “não nos seus raciocínios, mas na sua unidade, clareza, simplici-
dade, completude, e pela sua harmonia com os sentimentos internos de todos
os que procuram a verdade [с внутренним чувством каждого человека,
ищущего истины].” (idem, 20) Não sendo uma questão de linguagem,
“porque ninguém delibera sobre o que é eterno”23, transcende o âmbito das
palavras enquanto signos situados num particular contexto pragmático:

O leitor deverá lembrar-se de que Jesus nunca escreveu um livro, como


Platão, Fílon ou Marco Aurélio; que, ao contrário de Sócrates, não trans-
mitiu os seus ensinamentos a pessoas instruídas ou letradas, mas falou
para pessoas iletradas [безграмотным людям], com as quais se cruzou
na sua vida, e que apenas muito após a sua morte ocorreu às pessoas que
o que ele dissera era muito importante [важно] e que não seria má ideia
pôr por escrito uma parte do que ele dissera e fizera; e assim, apenas cerca

22
Santo Agostinho, Doctrina Christiana, III, XV, 23.
23
Aristóteles, Ética a Nicómaco, Livro III, 1112a 20.
138 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

de 100 anos mais tarde, começaram a escrever o que tinham ouvido sobre
ele. (Os Meus Evangelhos, 20-21).

Como reivindicar esta versão como mais verdadeira, em relação a


outras versões dos Padres da Igreja e de autores como Lutero, Thomas Jef-
ferson ou Proudhon? Tolstói justifica-o, afirmando que, por detrás dos sedi-
mentos linguísticos impressos pela Tradição, encontrou algo infinitamente
valioso: o sentido da vida. Em simultâneo, reclama a autoridade de uma
leitura assente no pressuposto de que Jesus “disse precisamente aquilo que
quis dizer”, o que lhe permitiu compreender as palavras de Jesus “com o
sentido exacto com o qual foram proferidas” e que estas o “surpreenderam
pela sua verdade, clareza e força.” (Aquilo em Que Acredito, 42, 90) Toda-
via, não só não existe um texto original, um contexto intencional, como se
pretende acentuar que o sentido corresponde àquele estipulado pelo autor.
Como justificar que em Os Meus Evangelhos é recuperada a intenção e,
como tal, a literalidade das asserções de Cristo? Como, também, justificar
uma ética racional quando esta pode ser apenas comunicada, não por meio
de “raciocínios”, mas de uma versão tanto mais eficaz quanto se encontre em
“harmonia com os sentimentos internos” dos seus leitores?
O facto é que Tolstói, ao negar a Revelação e uma autoria da Bíblia
deixa um espaço vazio que será por si preenchido, um escritor com ideias
muito precisas relativamente à função e aos efeitos da arte, articuladas no
ensaio O Que é a Arte?.
De modo a superar as contradições que foram sendo assinaladas no
decurso desta análise de Os Meus Evangelhos julgo necessário questionar a
justificação oferecida na introdução desta obra – “não é uma questão de for-
ma, mas de conteúdo” – e reflectir nas pistas que foram deixadas. Se pers-
pectivarmos a pretensa neutralidade inicial do autor em recuperar o sentido
literal de excertos da Bíblia como uma estratégia didáctica, com fins persua-
sivos, poderemos aqui encontrar parte da resposta para o problema: forma
versus conteúdo.
Como vimos, Tolstói defende que a sua versão recupera um conteúdo
até então obscurecido pelo exercício, no decorrer dos tempos, das “imagina-
ções de milhares de mentes e mãos humanas”. Simultaneamente, desvaloriza
a forma, alertando para que “longe de ser censurável libertar os Evangelhos
de passagens inúteis, e iluminar outras passagens, é, pelo contrário, repreen-
sível não o fazer, e continuar a ter como sagrados certo número fixo de ver-
sículos ou palavras.” (Os Meus Evangelhos, 21) Em seguida, no comentário
às suas diligências exegéticas, em Aquilo em que Acredito, esboça uma teo-
ria que caracteriza o texto bíblico como um acto de comunicação, dependen-
te de uma intenção autoral. Neste contexto, o autor determina o sentido do
texto, recuperando um conteúdo caracterizado pela sua natureza proposicio-
nal, uma vez que os mandamentos, lidos como actos de fala, veiculam
informação sobre o mundo dos factos. Todavia, Tolstói nega um contexto
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 139

histórico (ou a sua relevância para a compreensão dos Evangelhos), uma


autoria, e desvaloriza a forma em prol de um conteúdo, putativamente recu-
perado numa nova forma consentânea com “os sentimentos internos dos que
procuram a verdade”, e que acaba por ser referido através de uma linguagem
figurativa.
No meio das afirmações bombásticas da introdução a Os Meus Evange-
lhos, a linguagem inusitadamente poética com que o autor se refere ao resul-
tado das suas buscas poderá passar despercebida. Tolstói define aquilo que
encontrou através da poesia, que não só se encontra contida numa oração
(Padre Nosso), como não pode ser referida senão através de metáforas. Mis-
turada com o que apoda de a doutrina suja e “repelente” [безобразный] do
judaísmo e da Igreja, o autor afirma ter descoberto “a nascente da água pura
da vida”, as “pérolas preciosas” nela escondidas, uma “fonte de luz” que o
“cegou”24. (idem, 23) Embora rasure, nuns quantos parágrafos, toda a exege-
se bíblica, Tolstói não pretende identificar as parábolas que poderão, ou não,
ser atribuídas a Jesus, ou o momento histórico da sua composição – antes
pretende mostrar como veio a encontrar o sentido da vida através da sua
compreensão “daquela luz que durante 1800 anos iluminara a humanidade e
o iluminara e continuava a iluminar”. Conhecer ou compreender mais do que
isto, “como nomear aquela luz, quais os materiais que a compõem, e quem a
ateou” (idem, 24) não é o que o preocupa. A ênfase está no “conhecimento
da vida” [разумением жизни] que os Evangelhos oferecem e na sua aplica-
ção prática: a criação de um reinado de amor.
Na rejeição da dissociação entre percepção e conhecimento, expressa
em Aquilo em Que Acredito25, Tolstói fundamenta a sua particular noção de
“ética”. Inicialmente definida como uma moral natural num sentido próximo
da ética aristotélica, ou seja, como um produto das investigações racionais
do homem de forma a encontrar a melhor opção de comportamento, é depois
inserida, como sugerido, num contexto muito diferente. No Sermão da Mon-
tanha, em particular em Mt 5,39, o autor descobriu um conhecimento que
traduz a essência da natureza humana. Agir de acordo com ele significa
compreender a nossa própria condição. Por não revelar verdades novas, mas
desvendar a verdade inerente à essência do homem, entregar-se a ela é um

24
Distinguindo a simplicidade da doutrina evangélica da “religiosidade” dos escritos de
S. Paulo, Wittgenstein emprega uma imagem semelhante à de Tolstói: “A nascente
que corre suave e límpida nos Evangelhos parece escumar nas Epístolas de Paulo (…)
Lá encontras cabanas; em Paulo uma igreja. Lá todos os homens são iguais e o próprio
Deus é um homem; em Paulo já há algo de semelhante a uma hierarquia; honras e
posições sociais”. Ludwig Wittgenstein, Cultura e Valor, 52, itálicos meus.
25
Ao contrário da Tradição, que funda uma concepção de vida assente no postulado de
que “a vida não é aquilo que é, mas aquilo que parece ser”, Tolstói postula a máxima
“a vida é precisamente aquilo que é”. Lev Tolstói, Aquilo em Que Acredito, 114, itáli-
cos no original.
140 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

acto racional, na medida em que surge da compreensão em relação à finali-


dade da vida: a pura acção.
A um primeiro conceito de ética racional é contraposta uma noção que
extravasa o contexto de racionalidade inicialmente preconizado. Abraão é
invocado como o símbolo daquele que compreendeu a sua condição, porque
compreendeu a essência do que o Filho de Deus veio pregar. Ao contrário
dos “ortodoxos do templo”, Abraão “não duvidou por um instante sequer
que era o seu dever oferecer o seu filho como sacrifício a Deus, ao único
Deus que conferiu sentido à sua vida.” (Aquilo em Que Acredito, 158) Não
há dois momentos distintos: acção e compreensão são, como o autor afirma
relativamente ao modo como metafísica e ética se articulam, causa e efeito
uma da outra. São indissociáveis, porque “agir bem” deve ser encarado como
um fim em si, e não um meio.
Por este motivo, a compreensão dos ensinamentos de Jesus é definida
através da metáfora da luz. Ela resulta não “de uma compreensão através da
carne”, da percepção sensorial ou da inteligência especulativa, mas do “des-
pertar da vida”, da aceitação de que “se o homem é concebido no céu, então
nele terá de estar aquilo que é do céu” (Os Meus Evangelhos, 143, 138, 62).
Ao contrário da doutrina de Jesus Cristo, referida como “a verdadeira luz”,
sendo que “vida e iluminação são uma e mesma coisa”, Tolstói refere-se à
“lei escrita de Moisés, repleta de contradições” (idem, 132, 129) através da
metáfora da obscuridade. Ela recai na esfera da teoria, dos argumentos, por-
que se encontra imbuída da razão abstracta. Por não ser realizada apenas na
teoria, mas na praxis, o discurso (ou anti-discurso) sobre Deus reivindicado
por Tolstói tem outras regras que não as dos jogos da ficção ou da filosofia:

E quando ele acabou de falar, os seus discípulos perguntaram-lhe como


deveriam compreender estas parábolas. E ele disse-lhes: “Estas parábolas
devem ser compreendidas de duas formas. Exprimo-me em todas estas
parábolas porque alguns como vós há, meus discípulos, que compreen-
dem que o reino de Deus está dentro de cada homem, que compreendem
como nele podem entrar; enquanto outros há que não o compreendem.
Outros olham e não vêem, ouvem, e não compreendem, porque o seu
coração se tornou insensível. Por isso eu digo estas parábolas, para as
duas classes de ouvintes. (…) Atentai pois na forma como compreendeis
estas parábolas. O reino dos céus cresce e expande-se na alma vindo do
nada [в душе разрастается из ничего], oferecendo tudo. (Os Meus
Evangelhos, 68-70, itálicos meus)

É a esta classe de ouvintes que o protagonista de Tolstói se dirige, aos


que compreendendo que a verdade está além das palavras encontram dentro de
si a força para compreender: “Para vós [aqueles que compreendem] a parábola
[do semeador] é esta: Todo aquele que tiver compreendido o significado do
Reino de Deus, mas não o aceitou dentro do seu coração, a esse o mal assola e
o destitui daquilo que nele foi semeado.” (idem, 69, itálicos meus)
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 141

É possível, pois, que a tese subjacente a Os Meus Evangelhos seja a de


que afinal por detrás da alegorese bíblica não existe um qualquer conteúdo
proposicional ou sentido fixo no texto. Se Tolstói, em diversos momentos da
sua narrativa, parafraseia aquilo que considera serem os preceitos éticos da
doutrina de Cristo, os cinco mandamentos por si estipulados, condensando-
-os depois na máxima que afirma o amor universal, também nos dá a chave
para interpretarmos a sua história: “como se”. Ao mostrar o vazio proposi-
cional das metáforas nas quais o termo “Deus” é empregue, o narrador e o
protagonista de Tolstói chamam a atenção para o facto de que “ver como”
não é “ver aquilo”. Para compreender o “significado do Reino de Deus” é
necessário saber ler e, no contexto dos Evangelhos segundo Tolstói, saber ler
é “lutar contra o fascínio da linguagem” e reconhecer os momentos em que o
protagonista não está a conferir significado às suas palavras. É aceitar a der-
rota do intelecto discursivo para poder, no silêncio do coração, metáfora
empregue pelo autor para o ser espiritual, conhecer Deus. Presa a esta estra-
tégia tolstóiana está um ideal próximo do de Wittgenstein: “se não tentarmos
dizer aquilo que não pode ser dito, então nada se perde. Mas o que não pode
ser dito já estará – sem ser dito – contido naquilo que foi dito!”26.
Apesar de desconstruir o discurso sobre o transcendente, Tolstói repeti-
damente diz-nos que a verdade existe. Uma verdade que afinal não pode ser
avaliada apenas em termos literais (ou referenciais), porque tem duas faces:
uma visível (a ética) e outra invisível (a metafísica). Dois pólos através dos
quais a história de Tolstói se articula e que correspondem à tese sob a qual se
funda a sua filosofia moral: a ética é racional e objectiva; a metafísica é eter-
na e subjectiva. Nesta tensão, o autor expõe os limites do literal: para além
das injunções de Jesus, tudo o mais é subjectivo e deve ser lido segundo as
regras da alegoria. Mas só até determinado ponto, porque, depois de com-
preendermos a ética como uma forma de acção, e não um meio para a con-
templação, talvez possamos compreender a vertente metafísica e, como tal, a
totalidade desta doutrina. Apenas assim, as metáforas poderão ser lidas na
sua literalidade, porque “Conhecer Deus e viver é a mesma coisa. Deus é
vida.” (Confissão, 117): “Eu disse-vos estas coisas em parábolas. Mas vem o
tempo em que não vos falarei por parábolas, mas, abertamente, vos falarei do
Pai.” (Jo 16,25)
Embora a alegoria dos Evangelhos nada diga sobre o Bem absoluto, o
autor alerta para que a leitura da sua obra exige um particular método de
compreensão. Uma disposição que se traduz no reconhecimento, partilhado
por Tolstói e Wittgenstein, de que a doutrina de Cristo não é “uma teoria
sobre o que aconteceu e virá a acontecer à alma humana, mas uma descrição
de algo que na realidade ocorre na vida humana”27 e que, por conseguinte,

26
Ray Monk, Ludwig Wittgenstein – The Duty of a Genius, 151.
27
Ludwig Wittgenstein, Cultura e Valor, 48
142 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

“se conseguissem demonstrar que Cristo nunca existiu, tal tornaria ainda
mais evidente que a fortaleza da religião é inexpugnável (...) e que estamos
diante de verdades que jamais perecerão.”28
Neste sentido, a chave da compreensão da doutrina de Cristo residirá na
tomada de consciência de que o sentido da vida está dentro de nós e de que
este não pode ser apreendido a não ser através de um acto de pura consciên-
cia, de uma entrega incondicional à Luz-Vida que o protagonista de Tolstói
repetidamente afirma estar dentro de cada homem. Tal entrega é tornada
possível naquele instante em que embatemos nos limites da linguagem e
reconhecemos que “As proposições [da Ética] não podem exprimir nada do
que é mais elevado. // É óbvio que a Ética não se pode pôr em palavras (A
Ética e a Estética são Um).” (Tractatus, 6.421)
Contudo, mesmo que os mandamentos de Jesus sejam, nos termos trac-
tarianos, pseudo-proposições (i.e. não configurem relações entre as coisas,
ou factos sobre mundo), Tolstói sublinha que estão conformes à natureza do
homem. A sua aceitação acarreta superar o fosso entre valor e facto, entre
aquilo que é e o que parece ser. Com esta tomada de consciência, poderá
Deus fazer sentir a sua presença ubíqua no mundo. Ao transformar o valor (o
amor como virtude cardinal) numa força imanente no mundo, enraizada na
própria natureza humana e, por isso, independente de conceitos, dogmas ou
contexto histórico, Tolstói pretende acentuar que apenas através dos actos
esse domínio do inexprimível é transportado para o mundo. “Deus” torna-se,
não num nome vazio, sem objecto, mas numa actividade geradora da própria
vida. A noção da ética como um “deve ser” torna-se no “é”, e mostra-se que
mais do que um sistema de regras, a ética é um posicionamento no mundo,
aquilo em que tudo o mais assenta, e que qualquer outro tipo de conhecimen-
to, pressupõe: “a fundação da fé é a verdadeira compreensão da vida (...), a
correcta apreciação de todas as manifestações da vida.” (Aquilo em Que
Acredito, 158) Neste contexto, a Ética deve ser, como a Lógica (e a Estética)
são no âmbito do Tractatus, uma condição do mundo, o seu limite. Se com-
preender a lógica é ver a linguagem como um todo, para compreendermos a
ética temos de ver o mundo como um todo limitado no qual o valor se
encontra ausente29. É nesta aceitação (da segregação do valor do mundo) que
reside a compreensão de que “A solução do problema da vida nota-se no
evanescimento do problema. (…) Contemplação do mundo sub specie aeter-
ni é a sua contemplação como um todo limitado. Místico é sentir o mundo

28
Lev Tolstói, citado por Aylmer Maude, in Tolstoy and His Problems, 209.
29
Tolstói compara este posicionamento “ao que em matemática se chama de integração:
isto é, estabelecer uma relação (…) com o universo infinito no tempo e no espaço,
concebendo-o como um todo. E a relação estabelecida pelo homem com esse todo
(…) é aquilo a que se tem chamado, e se chama ainda, religião. E, por isso, a religião
tem sido, e não poderá deixar de o ser, uma condição essencial e indispensável da vida
racional da humanidade.” Tolstói, “What Is Religion?” (1902), 87.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 143

como um todo limitado.” (Tractatus, 6.52, 6.45) Por este mesmo motivo, o
protagonista de Os Meus Evangelhos reitera que “O Reino de Deus não é
nem no tempo nem no espaço, nem de nenhum tipo.” (idem, 62)
Chegados à conclusão de que o percurso é negativo – nega-se a presen-
ça de Deus – conclui-se também que o destino é, com efeito, positivo por-
que, como assevera Wittgenstein, “É correcto, sem dúvida, dizer: a cons-
ciência é a voz de Deus.”30
Na recusa da Revelação que impulsionou a reescrita dos Evangelhos – a
consumação literária do ideal tolstóiano de apresentar a solução para o pro-
blema da vida – ecoam as palavras de William James quando lamenta ter de
concluir que “the attempt to demonstrate by purely intellectual processes the
truth of the deliverances of direct religious experience is absolutely hope-
less.”31
Este é o ponto de convergência entre a doutrina de Tolstói e uma tradi-
ção filosófica que recusa um discurso sobre o transcendente, a possibilidade
de um Livro sobre Ética, e que pensa a fé como racionalmente não-
-demonstrável:

Por estranho que pareça, poder-se-ia, historicamente falando, demonstrar


a falsidade dos relatos históricos dos Evangelhos e, apesar de tudo, a fé
nada perderia por este motivo: não, contudo, porque ela respeite as “ver-
dades universais da razão”! Mas antes, porque a demonstração histórica
(o jogo de demonstração histórico) é irrelevante para a fé. Esta mensagem
(Os Evangelhos) é apreendida com fé (isto é, com amor) por homens. É
esta a certeza que caracteriza esta forma particular de persuasão, e
nenhuma outra.32

Bibliografia
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Birukoff, Paul (1906) Leo Tolstoy – His Life and Work. Nova Iorque: Charles
Scribner’s Sons.

30
Ludwig Wittgenstein, Cadernos, 111.
31
William James, The Varieties of The Religious Experience, 455.
32
Ludwig Wittgenstein, Cultura e Valor, 55.
144 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

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ça. Lisboa: Edições 70.
Wittgenstein, Ludwig (s.d.) Cultura e Valor. Trad. de Jorge Mendes. Lisboa:
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Wittgenstein, Ludwig (2002) Tratado Lógico-Filosófico/ Investigações Filosófi-
cas. Trad. de M. S. Lourenço. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
ALGUMAS NOTAS SOBRE A PERSONAGEM
DE ANNA ARKADIEVNA KARÉNINA

Pedro Gonçalves Rodrigues

Являясь темой многочисленных кино и телевизионных постановок, смысл


романа Льва Толстого «Анна Каренина» нередко упрощается до банальной
истории о несчастной любви. В данной статье, в противоречие такой
трактовке, мы проведем краткий анализ сложного образа главной героини
романа.
Ключевые слова: Анна Каренина, Л.Н.Толстой, противоречивый персонаж,
критика общества.

Realizado aquando do centenário da morte de Lev Tolstói (2010), o pre-


sente artigo, constitui-se como um olhar pessoal sobre uma obra literária
russa, não tendo pois, por consequência, pretensões de cientificidade rigoro-
sa, ao mesmo tempo que se aproxima mais do género da crítica impressionis-
ta, embora seja sempre devidamente fundamentado e justificado. O objetivo
do artigo é assim o de espelhar uma reflexão completamente autónoma acer-
ca de uma obra literária, escolhida não só por ter sido o primeiro romance
russo com o qual o autor do presente estudo contactou, sendo-lhe por isso
mais familiar do que qualquer outro, mas também por ser a obra que o intro-
duziu à cultura russa – preciosa herança milenar e possuidora de uma produ-
ção artística vastíssima.
***
Anna Karénina permanece no início do século XXI como uma das
obras de Lev Tolstói mais facilmente reconhecidas pelos leitores, pelos
membros de círculos académicos, e também pelo grande público consumidor
das produções cinematográficas e televisivas baseadas em romances já con-
siderados canónicos. Para esta celebridade, justamente merecida, contribuem
inúmeras razões: o reconhecimento de Tolstói como um autor de renome
146 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

internacional; as qualidades estéticas intrínsecas ao texto, já sobejamente


comentadas pela crítica literária; a frequente categorização do romance como
exemplo maior do tratamento do tema do adultério pela estética realista e a
par de romances como Madame Bovary, de Gustave Flaubert, e Effi Briest,
de Theodor Fontane; as suas numerosas adaptações ao cinema/televisão,
desde o tempo dos filmes mudos até à atualidade.
Assim, e por oposição à frequente vulgarização da imagem do romance
como mera história de amor mal sucedida com final trágico – muito propa-
gada pelas adaptações cinematográficas ou televisivas empenhadas em atin-
gir um público massificado –, procurar-se-á deixar nestas poucas linhas
algumas reflexões em torno da personagem de Anna Karénina, na esperança
de descobrir alguns dos traços e aspetos que fazem dela uma das figuras
mais ricas e complexas da literatura mundial.
A aparição de Anna na estação de comboios de Moscovo e posterior-
mente na casa da família Oblonski, logo na primeira parte do romance, é
subtilmente acompanhada pelo contraste com a personagem do seu marido
ausente, gerando a imagem do casal Karénin como um par antitético: lumi-
nosidade jovial da face feminina e austeridade sombria da face masculina.
Com efeito, Vronski recorda o nome Karénina como associado a algo de
enfadonho e pouco natural, o que imediatamente é reforçado pela referência
de Stiva ao conservadorismo de Aleksei Aleksandrovitch [I, cap. XVII]1, e
isto independentemente de o temperamento alegre e ligeiro do irmão de
Anna, sempre avesso ao rigor moral e cristão, poder relativizar essa afirma-
ção. Por seu lado, Dolly lembra-se da impressão de falsidade que o lar dos
Karénin lhe causou outrora [I, cap. XIX] e a própria Kitty não pode deixar
de constatar o contraste entre a jovial Anna e a imagem que guarda no seu
espírito da gravidade circunspecta de Aleksei Aleksandrovitch [I, cap. XX].
É pois perante as personagens que guardam estas opiniões sobre os Karé-
nin que surge a figura deslumbrante de Anna Arkadievna, uma jovem mulher
ágil, amável, sensível e sincera (note-se a referência ao facto de corar frequen-
temente no capítulo XX, parte I). Esta imagem de perfeição é alvo de um juízo
formal por parte da sociedade, incarnada momentaneamente pela condessa
Vronskaia que não hesita em declarar Anna como uma mulher “encantadora”
[I, cap. XVIII]. Porém, se esta perfeição é confirmada pelo papel que Anna
desempenha na reconciliação do casal Oblosnki, a aura sisuda tão característi-
ca de Aleksei Aleksandrovitch parece desenhar-se sobre o encanto da sua
esposa quando esta é conhecida mais de perto. De facto, a condescendência
afável de Anna pelo entusiasmo de Kitty pelo baile [I, cap. XX], assim como a
sua recusa em dançar “sempre que o pode evitar” [I, cap. XXII], são atitudes
que não podem deixar de surpreender pelo relativo desprendimento e rigor que

1
Optou-se pela indicação da parte e capítulo do romance sempre que necessário e para
maior facilidade de consulta.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 147

revelam associados a uma personagem aparentemente tão jovial. São aliás


estes pequenos momentos, abundantes na primeira e segunda partes do roman-
ce, que fornecem mais detalhes sobre a vida de Anna Arkadievna durante os
seus primeiros anos de casamento com Karénin.
Por outro lado, a súbita aceitação de Anna em dançar com Korsunski,
sob a aparência de uma temporária cedência aos divertimentos da juventude,
de modo algum disfarça o verdadeiro propósito de Anna: a fuga ao contacto
com Vronski. Este movimento de recuo da parte da personagem é apenas um
dos muitos sinais da sua perpétua vigilância e autocontrolo. Na verdade, a
protagonista do romance é bem a primeira espectadora atenta do desenvolver
da sua tragédia, precisamente porque Anna Arkadievna nunca é alheia a si
mesma, nunca abdica totalmente da sua autocrítica. Neste sentido, o seu
espírito recorda com desconforto o donativo que Vronski fez à família cujo
pai morreu vítima de um acidente na linha férrea, um donativo que ela sabe
ter sido motivado pela sua própria perturbação face ao desastre [I, cap. XX].
Mesmo tendo acabado por dançar com Vronski no baile, Anna decide partir
logo no dia seguinte sob o pretexto de ter causado a infelicidade de Kitty
que, embora não lhe sendo indiferente, serve apenas para mascarar o verda-
deiro motivo: não voltar a ver Vronski [I, cap. XXVIII].
A sua afirmação, também no capítulo XXVIII da primeira parte, de que
“não tinha vontade de sair de São Petersburgo e que agora não tem vontade
de partir de Moscovo”, constitui a síntese perfeita do momento de transição
que os acontecimentos narrados na primeira parte constituem na vida da
personagem de Anna Karénina. De facto, quando o comboio arranca para a
levar de volta para São Petersburgo, o seu pensamento de satisfação de
regresso à normalidade [I, cap. XXIX] não pode deixar de ser muito signifi-
cativo: Anna pressente que a sua vida, artificial mas laboriosamente criada
por si ao longo de oito anos de casamento, e rigorosamente mantida pela sua
vigilância, é ameaçada por uma força nova, mas desconhecida, que sente
nascer dentro de si. De certa forma, o esforço por esquecer Vronski [I,
cap. XXX] é a manifestação do reconhecimento daquela força como capaz
de abalar as bases do seu mundo. Para além deste episódio ser já revelador
da inexperiência de Anna, ele é também a clara demonstração do espírito
sempre atento da protagonista aos movimentos da sua interioridade, embora
nem sempre capaz de os interpretar corretamente.
Todavia, a explicação dada pela própria Anna Arkadievna para o afas-
tamento de qualquer fator perturbador do curso da sua vida, assim como para
o aparente rigor e asfixiamento do seu espírito, só surge na terceira parte do
romance: revoltada contra o que considera ser a profunda hipocrisia do seu
marido, Anna descreve, no seu pensamento, Aleksei Aleksandrovitch como
um homem obtuso, que “asfixiou” toda a sua pessoa, o que a levou a procu-
rar outras finalidades para a sua existência num casamento insatisfatório, ao
mesmo que tempo que se sente impotente face à sua necessidade de amar
148 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

[III, cap. XVI]. Certamente que o leitor mais atento poderá censurar Anna
Karénina neste momento porque apesar de toda a ironia e conservadorismo
do seu esposo, este fora-lhe sempre um marido fiel que lhe consagrou todo o
amor de que era capaz [V, cap. XXI], para além de ter sido sempre um pai
dedicado [II, cap. XXIV]. No entanto, Anna Arkadievna já não pode nesse
momento do romance deter-se sobre essas considerações porque a força dos
seus sentimentos, durante tanto tempo fechada no seu coração, tem agora um
objeto de adoração em carne e osso – o conde Aleksei Vronski – e já não
está ao seu alcance encarcerá-la de novo num canto da sua alma. Sem se
aperceber, Anna atribui ao marido a causa de toda a sua anterior serenidade
rígida e firmeza de conduta já acima descritas. O que não é completamente
verdade: o seu empenho em ser perfeita e irrepreensível deveu-se igualmente
ao seu gosto por esse papel, mas principalmente à sua honestidade moral de
jovem esposa que, não encontrando no casamento a consumação da sua ima-
gem idealizada do amor, opta por uma conduta extremada de perfeição ina-
tacável a par da repressão total da sua vontade de viver plenamente, durante
muito tempo julgada sem remédio. Esse penoso sacrifício, também revelador
de alguma inexperiência – da ignorância da necessidade de equilíbrio de
forças no seu coração – é brevemente referido quando Anna diz a Dolly ter
os seus segredos, ao mesmo tempo que os sintetiza na imagem de um skele-
ton “triste”, atribuindo assim uma nova dimensão à expressão idiomática de
origem inglesa [I, cap. XXVIII].
Assim, Anna Karénina devota-se ao seu papel na sociedade de esposa e
mãe exemplar com todo o vigor de que é capaz. E é com sinceridade que se
esforça por o desempenhar, a ponto de se sentir verdadeiramente mal consigo
mesma quando sente que falhou de algum modo. A vergonha que sente face à
recordação do enamoramento de Vronski no baile [I, cap. XXIX], a vergonha
que experimenta ao aperceber-se de que se irritou excessivamente com a sua
costureira, e ainda por não se ter lembrado da lei apresentada por Karénin
quando esteve em Moscovo [I, cap. XXXIII], revelam bem a sua preocupação
constante em ser impecável e de estar sempre além de qualquer censura. De
resto, esta preocupação não dissimula nenhuma hipocrisia ou falsidade da sua
parte: a honra, a sua posição na sociedade e o seu filho representam para Anna
Arkadievna valores muito importantes [III, cap. XVI] e que nunca desprezará
apesar de os sacrificar a favor do seu amor cada vez mais intenso por Vronski.
O seu pensamento, quando mais tarde estiver na Itália com Vronski, é elo-
quente: “Perdi o que mais apreciava, o meu nome de mulher honrada, e perco
o meu filho” [V, cap. VIII]. E não se poderá esquecer ainda o grande consolo
que Anna sente com as palavras de Dolly que lhe afirma continuar a gostar
dela independentemente da sua nova situação [VI, cap. XVIII].
De resto, esta perfeição é bem visível aos olhos das pessoas à volta de
Anna Arkadievna: Dolly fica espantada com o facto de Anna ainda se lem-
brar dos nomes e idades e doenças por que passaram os sobrinhos [I,
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 149

cap. XIX], e acreditará com dificuldade na queda de Anna no adultério [IV,


cap. XII]; Kitty venera-a pelo seu encanto até a ver sob uma luz bem diferen-
te no baile; os próprios criados da casa dos Karénin recebem com todo o
respeito a adúltera, que deseja apenas ver o seu amado filho, porque não
esqueceram a bondade com que esta os tratou sempre [V, cap. XXX]. Se o
narrador apresentasse Anna Arkadievna como uma mulher desagradável e
altiva, seria muito mais fácil para o leitor a sua rápida condenação como
mulher perdida bem castigada. Mas para além de obrigar o leitor a uma
reflexão mais profunda, Tolstói aproveita ainda o caráter da sua personagem
principal para melhor retratar a hipocrisia da sociedade: por exemplo, não é
sem razão que o narrador se detém por momentos sobre a satisfação vil das
jovens da sociedade encantadas por verem essa dama, cuja perfeição era tão
gabada, caída na lama do vício e do crime [II, cap. XVI].
Todavia, a perfeição e honestidade de Anna Karénina, por mais sinceras
que sejam, não a protegem da força dos seus sentimentos por Vronski
aquando da perseguição a que este a sujeita no início do romance. Com efei-
to, Anna Arkadievna tira satisfação dos protestos de amor de Vronski mas
experimenta um honesto desconforto e receio perante elas [I, cap. XXX], e o
reforço do argumento da infelicidade de Kitty em nada contribui para a man-
ter numa posição firme de recusa [II, cap. XII]. Na verdade, a honestidade de
mulher casada de Anna é como um castelo de areia que ignora a força das
ondas, a força das paixões que nunca conheceu e que sempre reprimiu no seu
interior. A sua inexperiência e relativa imaturidade são evidentes na forma
como é incapaz de esconder a sua alegria sempre que reencontra Vronski ao
mesmo tempo que se revela impotente face aos avanços deste. A sua afirma-
ção de que o amor é algo de muito importante, e em pleno contraste com o
cinismo e ironia dos convidados em casa da princesa Betsy, é revelador do
idealismo intenso e sincero que nela habita [II, cap. VII].
É esta mesma inexperiência que impede Anna Arkadievna de com-
preender todo o significado e alcance dos movimentos do seu espírito, isto é,
o desequilíbrio e a perturbação de todo o seu mundo que serão gerados pelo
seu amor nascente por Aleksei Vronski. Como já foi referido, Anna Arka-
dievna pressente que algo de novo se agita dentro do seu coração e julga pôr-
-se a salvo ao afastar-se de Vronski, sem reconhecer que não pode fugir de si
própria. Na realidade, até os filhos de Dolly, no dia a seguir ao baile, com-
preendem de imediato que algo mudou nessa tia que ainda na véspera tanta
atenção lhes dava [I, cap. XXVIII]. A agitação do espírito de Anna durante a
viagem de regresso a São Petersburgo [I, cap. XXIX], e que se transforma
em excitação nervosa depois do encontro com Vronski na estação de Bolo-
góie, é uma das manifestações de um sentimento novo que ela parece não
querer reconhecer.
Assim, é o amor por Aleksei Vronski que conduz Anna Karénina a um
progressivo despertar em relação ao mundo que até então preferira aceitar
150 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

sem juízos de valor. Ignorando que as forças da sua vontade de viver e de


amar foram subitamente libertadas, Anna Arkadievna começa a aperceber-se
dos defeitos do mundo e das pessoas que a rodeiam: as orelhas de Aleksei
Aleksandrovitch e a agora consciente sensação de hipocrisia no trato com ele
[I, cap. XXX], os defeitos do filho, até então visto pela mãe como perfeito,
ou a condessa Lídia Ivanovna afinal já não tão digna de estima [I,
cap. XXXII], eis os primeiros ruídos do desabar do seu mundo como um
castelo de cartas. A jovem esposa de Aleksei Aleksandrovitch Karénin, que
vivera até então sossegadamente, entregue ao seu papel de mãe e frequen-
tando círculos sociais mais recatados como o da condessa Lídia, passa a
mover-se bruscamente nos meios sociais mais mundanos da princesa Betsy
Tverskaia e onde pode encontrar Vronski mais facilmente [II, cap. IV].
Deste modo, o desequilíbrio interior de Anna não resultará somente na
assunção do seu amor por Vronski mas também na rejeição de toda a sua
vida até o ter conhecido. O mundo que ela aceitara com a sua serenidade
acrítica, empenhada em conhecer apenas as qualidades de todos à sua volta,
transforma-se em lugar de mentira, de falsidade. Aleksei Aleksandrovitch,
com quem Anna se preocupava sinceramente, passa a ser alvo da sua indife-
rença e afastamento, e já não são as suas qualidades que Anna nota mas
antes a sua hipocrisia social e ausência de amor entre ambos [II, cap. IX].
Enquanto obstáculo à sua felicidade com Vronski, Karénin apresenta-se pro-
gressivamente a seus olhos como uma figura odiosa que a revolta pela sua
vontade em manter as aparências [III, cap. XVI]. A repulsa pelo marido
atingirá um clímax durante a convalescença de Anna, após o nascimento da
filha de Vronski, período em que mais o detesta pela sua magnanimidade e
virtude [IV, caps. XX e XXI], e apesar do perdão que Aleksei Aleksandro-
vitch lhe concedeu quando quase morrera da febre puerperal. Uma vez mais,
não é apenas o amor que move Anna mas também uma recusa completa em
regressar aos espartilhos e hábitos da sua vida passada.
Porém, se a rutura definitiva com Karénin só ocorre no final da quarta
parte do romance, é a consumação do adultério de Anna com Vronski que
marca a perda da honra e do seu lugar na sociedade aos olhos da protagonis-
ta [II, cap. X]. Esse momento da narrativa é crucial também porque é a partir
daí que Vronski passa a ser o centro e único sustentáculo da nova vida de
Anna Arkadievna: “Está tudo acabado. Só tu me restas, não o esqueças” [II,
cap. X]. Todavia, Aleksei Vronski, que não era mais do que um homem de
natureza mediana, nunca compreenderá todo o significado destas palavras: o
seu amor diminuirá face aos aborrecimentos de que toda a história com Anna
será pródiga, e ele nunca compreenderá totalmente todo o sofrimento e
angústia da mulher que tudo abandonou por ele. Com efeito, existe um pen-
samento de Vronski que o leitor poderá confrontar com as já citadas palavras
de Anna Arkadievna: “tudo lhe posso dar, menos a minha independência de
homem” [VI, cap. XXV]. Embora cronologicamente longínquos entre si,
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 151

estes dois momentos, quando cruzados, contêm a essência do conflito que


corrói a relação entre os dois amantes.
Mas a importância do capítulo no qual Anna e Vronski consumam o seu
crime não se esgota nas considerações acima propostas. De facto, nesse capítulo
X da segunda parte opera-se uma mudança profunda e brutal na alma de Anna
Karénina: a serenidade que lhe era tão característica, é quebrada para sempre. A
tranquilidade satisfeita de Anna Arkadievna com a sua irrepreensibilidade, pro-
gressivamente minada pelo seu amor nascente, cai finalmente perante a cons-
ciência angustiada do crime que cometeu. Todo o seu comportamento, conforme
é narrado naquele capítulo, revela a sua angústia e vergonha a ponto de pronun-
ciar palavras com “Deus” e “perdão”. Porém, trata-se de um crime que ela sabe
não ter direito nem ao perdão nem à piedade [III, cap. XV].
Na verdade, se Anna Karénina se liberta da prisão de perfeição que cria-
ra para si própria, ela não pode no entanto escapar à sua honestidade que, no
fundo, é uma das causas da sua destruição. As palavras que utiliza para des-
crever a sua nova condição são prova desta dolorosa consciência honesta
mas envergonhada: “horror” e “baixeza” [II, cap. XXI]; “mulher perdida”
[II, cap. XXVI]. Aliás, uma consciência que não consegue compreender a
facilidade e ligeireza de outros na mesma situação [II, cap. XX], porque para
Anna o seu crime não pode ser escondido: a sua natureza franca e alheia à
falsidade não consegue fingir uma aparência de virtude à qual sabe já não ter
direito. A princesa Betsy Tverskaia, também ela umamulher adúltera, não
deixa de ter muita razão quando descreve Anna Arkadievna como uma pes-
soa que tem tendência a ver a coisas “mais ao trágico” [III, cap. XVII] – uma
interpretação que, para além de acertada, é natural numa representante da
sociedade moralmente relaxada que é a sua. Ora se a honestidade de Anna
Karénina a eleva do ponto de vista moral, apesar do seu crime, é essa mesma
frontalidade íntegra que a conduzirá à condenação e ostracização, decretadas
pela sociedade hipócrita que a rodeia. A firmeza em não desmentir a sua
própria honestidade, e o que resta dos princípios morais pelos quais se guia-
ra, chega mesmo a impedi-la de buscar refúgio e consolo na religião, na qual
acredita mas que julga estar-lhe interdita pela permanência do crime na sua
vida [III, cap. XV].
Existe mesmo um momento no romance que demonstra toda a dimen-
são da consciência de Anna Arkadievna face ao seu crime de adultério. Tra-
ta-se da sua resposta à acusação de vilania que lhe lança o marido [IV,
cap. IV]: “Não pode julgar a minha situação pior do que eu própria a julgo”.
E ainda: “Pondo de lado toda a generosidade, acha conveniente bater numa
pessoa que já está caída por terra?”. Se Anna Karénina não fosse mais do
que uma mulher vulgar e imoral, estas palavras ditas a Aleksei Aleksandro-
vitch nunca teriam sido pronunciadas ou sequer pensadas.
Esta firme honestidade cheia de angústia conduzem Anna Arkadievna a
punir-se excessivamente a si própria. Tal como Betsy a descrevera ao referir
152 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

a sua imaturidade de contornos trágicos, Anna castiga-se, quase como se


fosse uma criança, ao abdicar do divórcio antes de partir para Itália [V,
cap. VIII]. Tão empenhada está em punir-se por ter abandonado o marido e o
filho que não compreende todas as consequências nefastas que poderão advir
da sua decisão.
Apesar do período de acalmia na Itália, o regresso à Rússia revelará
todo o desconforto da posição falsa que Anna Arkadievna ocupa agora
perante toda a sociedade. A perda do filho, da honra, a humilhação que expe-
rimenta na Ópera [V, cap. XXXIII] e a dúvida crescente sobre os sentimen-
tos de Vronski para com ela, despertam de novo toda a angústia e infelicida-
de de Anna. Sendo Vronski o centro da sua nova vida, torna-se então inevi-
tável a visão insidiosa do amante como a causa de todos os seus sofrimentos,
principalmente o sacrifício do seu filho Sergéi: o arrancar das fotografias do
filho das mãos de Vronski [V, cap. XXXI] demonstra bem o caráter dilace-
rante da consciência daquele sacrifício.
A par do seu amor por Vronski, Anna desenvolve assim um progressivo
ressentimento contra a vontade de independência e de vida mundana que o
amante quer manter; ressentimento contra a condescendência ou irritação que
ele aparenta conforme encontra Anna de bom ou mau humor. No fundo, a
insegurança de Anna Arkadievna é fruto não só da sua posição falsa mas tam-
bém da sua perspicácia: de algum modo, ela pressente que Vronski quer
regressar à normalidade e de que está arrependido de ter iniciado aquela rela-
ção agora tão difícil e desgastante [VII, cap. XXVIII]. A inutilidade das suas
ocupações – leituras, a escrita, a família inglesa a seu cargo –, os ciúmes de
Vronski, as discussões entre ambos, e ainda o temor e sofrimento crescentes
face à incerteza sobre o futuro, tudo conduz Anna Karénina ao desespero, a
frequentes oscilações de humor, à necessidade de um desfecho para a desgraça
em que se sente viver. A morte surge-lhe então como uma solução capaz de
redimir os seus erros e de castigar Vronski [VII, cap. XXIV].
Porém, seria erróneo interpretar o suicídio de Anna Arkadievna como
um ato premeditado e calculado. De facto, a morte é já a única saída encon-
trada por uma alma exausta e em profunda desarmonia com o mundo: “Tudo
é mentira, tudo é falso, só há engano e maldade” [VII, cap. XXXI]. Toda a
radiosa serenidade e encanto do passado foram consumidos pela dúvida e
pela queda num ciclo vicioso de medo e angústia.
Certamente que Anna Karénina é uma personagem complexa e que o
autor nunca permite que seja julgada levianamente: todas as suas qualidades,
a sua imaturidade, a sua honestidade e todo o sofrimento que experimenta
despertam sempre a simpatia do leitor ao mesmo tempo que este não pode
esquecer o adultério e o abandono do filho perpetrados pela protagonista. E
da mesma maneira que a condessa Vronskaia fora a primeira a emitir um
juízo social sobre Anna Arkadievna, eis que o narrador recupera a mesma
personagem para na última parte do romance lançar o derradeiro julgamento
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 153

da sociedade sobre Anna: tendo-a declarado outrora “encantadora”, a con-


dessa descreve-a agora como “uma mulher má” e “sem religião” [VIII,
cap. IV]. Anna Karénina atinge assim o extremo oposto da sua posição ini-
cial de perfeição. No entanto, que legitimidade tinha a mãe de Vronski para
julgar Anna? Não refere o narrador, como que por acaso, as suas aventuras
amorosas enquanto o marido era ainda vivo [I, cap. XVI]? Além disso – e
aqui está mais uma prova da dificuldade do leitor em julgar a protagonista –,
o que a condessa Vronskaia não poderia saber é que nos últimos momentos
de vida Anna se arrependeu do seu último ato, e pediu perdão a Deus por
todos os seus pecados [VII, cap. XXXI]. Logo, sua salvação eterna não é
excluída. Afinal, talvez Levine não tivesse razão quando afirmara que “todas
as mulheres decaídas são iguais” [I, cap. XI].
De facto, a par da crítica social, da reflexão sobre a família e sobre o
sentido da Vida que estão contidas no romance, o leitor nunca é indiferente à
riqueza e humanidade das personagens criadas por Tolstói. Mas Anna Karé-
nina, personagem de mais difícil julgamento por parte do leitor, é sem dúvi-
da a mais trágica, principalmente quando se escuta um dos seus últimos pen-
samentos pouco antes de morrer: “Meu Deus! Para onde ir?” [VII,
cap. XXXI] – síntese perfeita de todo o seu sofrimento e solidão no crepús-
culo da sua vida.

Bibliografia
NABOKOV, Vladimir Lectures on Russian Literature, s/l: Harcourt, 1981: 137-
-236.
TOLSTÓI, Lev Ana Karenina, Mem Martins: Europa-América, col. Livros de
Bolso (dois volumes, nºs 202 e 203), 1980.
____________. Anna Karénina, Lisboa: Relógio d’Água, 2006.
A ARTE DE VANGUARDA:
MAIAKOVSKY OU A NÚVEM DE CALÇAS

Maria Helena Guimarães

Данный краткий очерк посвящен известному советскому поэту и драматургу


Владимиру Маяковскому. Мы предпринимаем скромную попытку описания
литературного производства советского периода и анализируем, насколько
творчество поэта зависело от твердых правил “социалистического реализма”.
В Португалии были переведены лишь некоторые подобные произведения,
однако многие из них достойны быть прочитанными.
КЛЮЧЕВЫЕ СЛОВА: российский футуризм, советская литература, Владимир
Маяковский, поэт, драматург, политический агитатор.

Introdução
Se a globalização é um fenómeno que aspira à manipulação da imagem e
da palavra através da intervenção maciça dos meios de comunicação de mas-
sas, com recurso às novas tecnologias, cujos perigos não podemos calcular, já
a universalidade envolve, como afirma Boaventura de Sousa Santos “um pro-
cesso complexo de interconhecimento” (2006), para o qual a tradução tem um
papel fundamental a desempenhar. Assim, de forma a evitar o paroxismo de
que nos fala Baudrillard, isto é, “the penultime moment […], the moment just
before the end, just before there’s nothing more to be said” (1998), talvez seja
necessário aproveitar a oportunidade única de fazer reemergir, dos fragmentos
do espelho partido do universal, as nossas raízes e as nossas memórias, opon-
do-nos ao caos da exclusão ou da inclusão na economia global.
É tempo de a Queda do Muro de Berlim se tornar símbolo do triunfo da
universalidade e que se volte a dar forma à ilusão, ao sonho, no sentido posi-
tivo do termo, numa, porventura, derradeira tentativa de fazer ressurgir os
valores culturais e estéticos, de tornar o Outro, o diferente, de novo visível a
nossos olhos, já que ele é fundamental para a definição da nossa própria
identidade. É, conforme afirma Boaventura de Sousa Santos, “da consciência
156 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

da incompletude cultural” que “nasce o impulso individual ou colectivo para


o diálogo intercultural” (2006) que permite “não reduzir a realidade apenas
ao que existe” (Ibid.).
Em termos de análise literária, este processo passaria por conhecer o
que se produziu, e produz actualmente, para lá do muro imaginário que tei-
ma em subsistir nas nossas mentes, e que nos permitiria, finalmente, desfru-
tar da leitura de obras de autores como S. Essenine, A. Biéli, M. Tzvietaieva,
A. Tolstoi, A. Akhmatova, A. Block, A. Voznessenski, E. Ievtuchenko, E.
Zamiatin, Andrei Siniavsky, M. Zoschenko, V. Vysotsky e, mais recente-
mente, de autores da Escola de Poesia de Leningrado e do Conceptualismo
moscovita, bem como conhecer melhor autores como Leonid Borodin, Alek-
sandr Zinoviev, Maxim Kantor e A. Soljenitsine.
Ao ler as suas obras talvez possamos afinal concluir com Zelinski que
“l’âme russe reflète comme les eaux d’un lac le ciel, l’immensité infinite des
plaines russes, la rigueur du climat et le sentiment du devoir envers les
hommes” (1973) e que, parafraseando Mayakovsky, as raízes da sua escrita
não podem ser separadas do solo russo.
Vladimir Mayakovsky, embora tenha influenciado a produção, essencial-
mente poética, de muitos autores a nível mundial – de Louis Aragon a Hazim
Hikmet – e tenha merecido alguma atenção da crítica literária portuguesa,
nomeadamente a partir de meados dos anos sessenta, cedo, contudo, caiu no
esquecimento, não obstante, como dizia Pablo Neruda, “his power, tenderness
and wrath remain unparalleled as models of poetic accomplishment”.

Breve revisitação da vida de Vladimir Mayakovsky (1893-1930)

Vladimir Mayakovsky foi quem, dentro do modernismo russo, mais se


empenhou pela aceitação pública da arte de vanguarda e do inconformismo
cultural.
Nascido numa aldeia da Geórgia, no seio da família de um guarda-
-florestal, Mayakovsky estuda, a partir de1902, numa escola na cidade de
Kutais, continuando a sua formação, mais tarde, em Moscovo, para onde se
muda definitivamente com toda a família, após a morte do pai. Dois anos
mais tarde, em 1908, Mayakovsky resolve deixar os estudos, passando a
dedicar-se totalmente à actividade revolucionária. Com apenas quinze anos
de idade, Mayakovsky entra para o partido bolchevique, entregando-se, de
alma e coração, a acções de propaganda política. Em 1909, é preso, come-
çando a escrever versos pela primeira vez na prisão.
Quando tinha dezoito anos, Mayakovsky inscreveu-se numa academia
de belas-artes, pois queria tornar-se pintor e, de facto, conservou uma visão
pictórica do mundo também na poesia: as suas imagens não são inventadas,
são vistas. Via mais o mundo do que o ouvia. Segundo Ilya Ehrenburg
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 157

(1965), Mayakovsky usaria dizer, a brincar, que um elefante lhe havia pisado
o ouvido.
É na academia de belas-artes que trava conhecimento com um grande
número de artistas vanguardistas, em particular, com David Burliuk, que havia
já organizado o primeiro grupo futurista na Rússia. Em 1912, Mayakovsky
publica o seu primeiro poema “Noite” (Ночь), assinando o famoso manifesto
Uma Bofetada no Gosto do Público (Пощечина общественному вкусу).
Em 1915, Mayakovsky muda-se para St. Petersburg, entrando na esfera
de influência de um famoso teórico da literatura modernista, Ossip Brik. A
mulher deste, Lili Brik1, tornar-se-ia, desde então, na grande paixão da vida
do poeta, que começa a publicar os seus poemas de amor, povoados de
angústia, que são, por muitos, considerados como uma das partes mais inte-
ressantes da sua obra. Nesse mesmo ano, assiste-se à publicação de “Nuvem
de Calças” (Облако в Штанах) que contém um grande número de alusões
autobiográficas, nomeadamente à sua relação com Lili Brick.
Uma das melhores descrições de Mayakovsky, enquanto ser humano,
podemos encontrá-la no Vol. II das Memórias do escritor e ensaísta russo Ilya
Ehrenburg, Os Primeiros Anos da Revolução (1918-1921). Nele, podemos ler:

Não me recordo quem me fez conhecer Mayakovsky; depois de estarmos


num café […], levou-me onde morava: num quartinho de um pequeno
albergue, […]. Pouco antes, havia lido Simples como um mugido e havia-
-o imaginado exactamente como o vi: um homenzarrão com a mandíbula
pesada, os olhos ora tristes, ora severos, a voz retumbante, desajeitado,
sempre pronto a meter-se numa briga; um misto de atleta e de sonhador,
combinação de um prestidigitador medieval – daqueles que caminhavam
de pernas para o ar – com um irredutível iconoclasta. Enquanto nos
dirigíamos para o seu albergue, continuava a repetir o epitáfio escrito por
François Villon quando esperava que o enforcassem: “Eu sou François
Villon e me entristeço / a morte está à espera de um malvado / e em breve
o pescoço saberá / quanto peso sentado”2.

1
Lili Iourevna Brik, mulher de Ossip Brik, economista e intelectual da época, foi a
mulher da sua vida, no sentido total do termo. Lili Brik era irmã mais velha de Elsa
Iurevna Triolet, que se casou no início da revolução com o francês André Triolet,
conhecendo Louis Aragon só em 1928. Alguns dos maiores estudiosos da obra de
Mayakovsky, como Victor Pertsov, consideram a tradução dos seus poemas por Elsa
Triolet como uma das mais conseguidas. De notar que Lili Brik foi uma das figuras
mais marcantes da intellegentsia russa. Como afirma Claude Frioux na introdução ao
livro Lettres à Lili Brik “elle devait rayonner par son charme et son esprit sur toute la
culture russe d’avant-garde, de 1915 à nos jours” (1969), sempre circundada por gran-
des nomes das artes: dos formalistas russos aos futuristas, passando pelo realizador de
cinema Eisenstein, pelo poeta Voznessenski, pela bailarina Plitssetskaïa e tantos
outros.
2
“Je suis François, dont ce me poise, / Né de Paris emprès Pontoise / Qui d’une corde
d’une toise / Saura mon col que mon cul poise.” (1987)
158 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Segundo Ehrenburg, Mayakovsky ria-se de todo o tipo de superstição, mas


passava o tempo todo a adivinhar o andamento das coisas. Era louco por jogos
de azar: cara ou coroa, par ou ímpar. Ele queria simplesmente adivinhar o que
sairia. Também no tambor do revólver pôs uma única bala: par ou ímpar…
Muito se tem dito e escrito sobre os motivos que o teriam levado ao
suicídio em 14 de Abril de 1930: o malogro da exposição das suas obras
literárias, os ataques da RAPP3, problemas sentimentais. Para Ilya
Ehrenburg, Mayakovsky demolia não só a beleza do passado, mas também a
sua própria pessoa. Segundo ele, aí residiria “a beleza do seu
empreendimento, […] a chave da sua tragédia” (1965). Mais recentemente,
Maxim Kantor no seu livro As Mandíbulas Lentas da Democracia
(Медленые челюсти демократия) defende o ponto de vista de que,
considerando-se Mayakovsky um apóstolo da classe operária, para quem toda
a obra deveria ser um grito de verdade, o autor não aceitaria ver a sua obra
utilizada pelo poder e, sobretudo, não estaria a sentir-se obrigado a ter de
mentir no tocante ao desenrolar dos acontecimentos da época. A verdade,
contudo, referiu Ilya Ehrenburg residiu não tanto nas condições da sua morte,
quanto nas circunstâncias da sua vida. Aos 22 anos de idade, ele já havia
definido a sua singular desolação, que o transformou numa das figuras mais
alienadas da literatura russa, no poema “To His Beloved Self, the Author
Dedicates These Lines” (Себе любимому, посвящает эти строки автор):
Four words,
Heavy as a blow:
“… unto Caesar … unto god …”
But where can a man
Like me
Bury his head?
Where is there shelter for me?
(…)
The gold of all the Californians
Will never satisfy the rapacious horde of my lusts.
I shall go by,
Dragging my burden of love.
In what delirious
And ailing
Night,
Was I sired by Goliaths –
I, so large,
So unwanted?4

3
“Российская Ассоциация пролетарских писателей” – Associação Russa dos Escrito-
res Proletários.
4
Tradução de Max Hayward e George Reavey.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 159

Durante a sua curta vida, Mayakovsky distinguiu-se como poeta, dramatur-


go, ensaísta, jornalista, escritor, publicitário e agitador de propaganda política.

Mayakovsky – o Poeta e o Escritor


Mayakovsky estabelece, desde muito cedo, um estilo muito próprio, onde
predomina um vocabulário veloz com uma enorme panóplia de metáforas ori-
ginais e muito imaginativas, versos com as unidades sintácticas impressas “em
escada” ao longo da página, se bem que a sua métrica se mantivesse, no geral,
bastante presa às normas tradicionais. As suas rimas caracterizam-se, não raro,
por serem imperfeitas e de uma enorme estridência.
Infelizmente, muitos dos críticos da época viam nas acções de
Mayakovsky e dos seus companheiros apenas uma forma exagerada de
extravagância e auto-promoção. Eles não tentavam agradar e tal encontra-se
bem patente no já citado manifesto Uma Bofetada no Gosto do Público,
escrito, em 1912, por Mayakovsky, com a ajuda de Khlebnikov (1885-1922),
Krutchonych (1886-1968) e Burlyuk (1882-1967), um dos fundadores e
teóricos do futurismo russo. No seu manifesto, os autores afirmam “só nós
somos a face do nosso Tempo”5, incitando a lançar borda fora do navio da
contemporaneidade Pushkin, Dostoievski e Tolstoi, entre muitos outros, já
que quem “não esquece o seu primeiro amor, não conhecerá o último”6.
Entre os direitos do poeta citam, em particular, o de aumentar e introduzir na
língua novos vocábulos, bem como o direito a odiar a linguagem até eles
existente.
Mayakovsky mostra especial desprezo pela geração dos simbolistas e
pelas suas obras recheadas de nuances e alusões, considerando-as a flor
decadente da civilização. Em muitos dos seus poemas, Mayakovsky irá
dedicar-se a desmontar e destruir o passado decadente e a tentar fortalecer a
vontade humana contra o determinismo.
Neste período a vida de Mayakovsky foi marcada por uma série de apa-
rições públicas, caracterizadas pela agressividade da expressão, declamando
poemas e gritando obscenidades.
Boris Pasternak, que encontra Mayakovsky, pela primeira vez, em
1914, refere-se a ele como um homem com um grande poder criativo. Os
seus versos agradaram a Pasternak de forma invulgar e excepcional antes
mesmo de se terem conhecido. Conforme escreve, no seu livro Salvo
Conduto7, ao travar conhecimento com Mayakovsky, Pasternak8 começa por

5
Em russo, “Только мы – лицо нашего Времени”.
6
Em russo, “Кто не забудет своей первой любви, не узнает последней.”
7
Título em russo: “Люди и положения”.
160 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

descrevê-lo como um homem bonito, com uma voz profunda e punhos de


boxeur, de uma extrema inteligência, algures entre um herói lendário de
Alexandr Grin (1880 – 1932) e um toureiro espanhol. Na obra supracitada,
escreve, ainda, “tinha perdido a cabeça por Mayakovsky”, “adorava-o”,
“Mayakovsky era o ápice do destino da poesia”, acrescentando, contudo, que
o principal nele era o seu sentimento de dever que fazia com que ele não se
permitisse ser outro – nem menos belo, nem menos inteligente, nem menos
talentoso. De facto, o seu espírito de decisão era o seu próprio génio, génio
que chegava a surpreender o próprio autor e que ele incarnou até ao fim da
vida sem reservas nem piedade.
O movimento rápido da poesia de Mayakovsky dá corpo ao ritmo nervo-
so da vida urbana e à multiplicidade de estímulos simultâneos, mas não rela-
cionados, que os Futuristas Russos, tal como os seus predecessores italianos,
incorporam nas suas teorias estéticas, segundo o princípio de que a sua arte
deve ser tão descontínua quanto a vida moderna, libertando as energias que
levará o Homem para a frente na conquista do tempo e do espaço. Como afir-
ma nas conclusões do seu artigo Como fazer versos9, escrito em 1926, “Poesia
é produção. Pode ser mais difícil, mais complexa, mas é produção.”
Num dos seus poemas mais conhecidos e já aqui citado, Nuvem de Cal-
ças, Mayakovsky designava-se a si próprio como o “today’s yell-mouthed
Zoroaster” (1976)10, inaugurando, formalmente, uma nova era e produzindo
o cântico fúnebre do velho mundo. Tal como Nietzsche, Mayakovsky parti-
lha uma estridência e um desejo enorme de colocar todas as suas forças ao
serviço da mudança, ao mesmo tempo que se lança, num ímpeto que dir-se-
-ia neurótico, numa luta por subjugar o lado passivo e intuitivo da sua perso-
nalidade, demonstrando uma certa dificuldade em gerir a ligação difícil entre
‘revolução’ e ‘sentimento’, como se pode ver numa das suas cartas escritas a
Lili Brik: “Je suis dans la tristesse. De nouveau, tu n’écris strictement rien.”
(1969). É possível, pois, afirmar que o trabalho de Mayakovsky é resultado
de um espírito muito dividido. Por um lado, ele odeia a burguesia e a sua
maneira de viver, por outro lado é inegável que ele acreditava ser o amor
uma parte valiosa da nossa existência. Como afirma Claude Frioux, na intro-
dução ao livro Lettres à Lili Brik, Mayakovsky teria sempre, em vão, tentado
esmagar esse seu lado mais melancólico, já que “elle est présente dans son
œuvre sous la forme de soudaines irruptions irrépressibles qui semblent
contredire le monolithisme agressif du personnage” (1969), como nesta
famosa passagem de Nuvem de Calças:

8
Ao lermos a descrição de Mayakovsky por Pasternak, creio ser compreensível que Ilya
Ehrenburg manifeste estranheza e incompreensão por Pasternak, na sua autobiografia,
acabar por renegar a velha amizade com Mayakovsky.
9
«Как делать стихи?»
10
«крикогубый Заратустра».
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 161

If you want –
I can be all crazy flesh,
the antipode of polite romance.
Or
sweet and delicate as you wish;
not a man but a cloud in pants.11

Os versos de Mayakovsky dão-nos uma imagem poética da época.


Como afirma Zelinski, Mayakovsky “lie l’homme tout entier à l’histoire”
(1973: 39). Na sua poesia, dá-se uma estreita fusão entre temas individuais e
temas sociais, onde está sempre presente uma mistura de lirismo, de grande-
za épica e de inovações no campo da linguagem poética, mas onde, também,
não raro, estamos perante uma denúncia, plena de cólera, do lirismo de bou-
doir, do espírito decadente e da agressividade dos “vampiros e esbirros” da
época, que ele interpela, logo no início do poema Nuvem de Calças:
Your thoughts
day-dreaming in a pudden’-soft head
like an overfed lackey on a greasy sofa,
I’ll tease with my heart’s blood-streaming shred,
deride you, audacious, till you smart all over.12

Não é por demais lembrar que Mayakovsky se envolveu na agitação


política muito antes da Revolução de 1917, quando ainda andava na escola.
No seu poema I Love13, referindo-se à sua juventude, Mayakovsky escreve
“Me – / I got taught / to love / in Butyrki ”14 (1976). Pela força da palavra,
luta contra o atraso económico do país. Em I Myself15, um esboço de auto-
biografia, texto todo ele percorrido por uma fina ironia, escrito em 1928,
Mayakovsky afirma-se um defensor da electricidade, em detrimento da natu-
reza, que ainda não se encontrava suficientemente “modernizada”.
No centro da sua obra, Mayakovsky coloca, sempre, não o homem natu-
ral, não o homem revoltado, mas sim o homem que combate pela liberdade,
pela libertação da humanidade. Como bem afirma Zelinski, “sous la plume
de Maïakovski la vie elle aussi nous regarde de milliers d’yeux élargis par le
sentiment du tragique de l’existence, par un trop-plein d’amour pour
l’homme, par une conscience bouleversée de l’être” (1973).

11
Tradução de Dorian Rottenberg.
12
Idem.
13
Em russo “Люблю”.
14
Prisão em Moscovo, onde Mayakovsky esteve detido na cela nº 103, em 1909-1910,
por actividade revolucionária.
15
Em russo: «Я сам».
162 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Em 1917, Mayakovsky escreve o poema Our March16, seguindo-se-lhe


muitos outros sobre questões de interesse público, desde críticas suaves à
burocracia excessiva até afirmações versificadas relativamente às linhas do
partido no tocante quer a questões internas, quer a questões externas. Quan-
do Lenine morre em 1924, Mayakovsky exalta os seus feitos na elegia Vla-
dimir Ilitch Lenin.
Impulsionado pelas ideias advogadas por Ossip Brik sobre “o papel
social” da literatura e “a literatura dos factos” (preferência por uma escrita
não ficcional e mais factual e documental), Mayakovsky tem um papel acti-
vo na formação do LEF17, que floresceu de 1922 a 1928 e que dará, aliás,
nome a uma revista, onde são constantes os apelos do poeta à participação de
todos (futuristas, construtivistas, formalistas) no esforço de construção de
uma nova sociedade. A revista deixa de ser editada a partir de 1925, sendo
substituída, em 1927, pela revista Novyi Lef (Nova LEF), sob a direcção de
Mayakovsky que, todavia, será substituído, nessa função, por Tetriakov, em
Agosto de 1928. Não escondendo a sua satisfação por ver terminado o perío-
do da NEP18, nesta nova revista, Mayakovsky não nos aparece tão radical
relativamente à tradição literária do passado, afirmando que o Futurismo não
havia rejeitado o passado como tal; ele tentara apenas, segundo o autor, que
esses estilos não se impusessem no presente. A sua negação da arte do pas-
sado foi-se, assim, moderando. No fim de 1928, a Novyi Lef comunicava que
Mayakovsky havia declarado publicamente: “Concedo amnistia a Rem-
brandt”.
Apesar da sua dedicação prática e teórica à arte de intervenção, Maya-
kovsky continuou a escrever poesia lírica, embora não se sentisse muito à
vontade para o fazer, o que levou o seu amigo Roman Jakobson a classificar
tal atitude como “auto-censura”. Dois dos seus maiores poemas de amor,
inspirados pela sua paixão por Lili Brik, datam do período do LEF: I love19
(1922) e De ceci20 (1923). O primeiro é autobiográfico, enquanto o segundo,
um poema-fragmento, “pour elle et pour moi”, descreve a sua busca dolorosa
do amor:

16
Em russo, “Левый марш”.
17
Em russo “Леф”. Revista fundada por Mayakovskiy e pelos seus companheiros cubo-
-futuristas. O nome é um anagrama de Lievi Front (Frente de Esquerda), e a revista
destinava-se a propugnar uma arte de esquerda, que expressasse, na forma e no con-
teúdo, os ideais da Revolução de Outubro.
18
Abreviatura de Nova Política Económica.
19
Em russo, “Люблю”.
20
Em russo, “Про это”.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 163

(…)
Viens,
réponds à l’appel de mes vers.
J’ai mendié à tous – et me voici.
À présent de toi seule peut venir le salut.
Lève-toi!
Courons au pont!
J’ai baissé la tête
sous le coup,
taureau d’abattoir.
Je surmonterai,
j’irai là-bas.
Un instant –
je ferai le pas.21

Neste seu poema, Mayakovsky procura encontrar solução para os seus


problemas da vida pessoal ao mesmo tempo que tenta entender a ideia do
poder criativo do amor.
Nas suas notas de viagem, são muitas as referências a França e a Paris,
cidade que ele viria a visitar quase todos os anos até à sua morte, em 1930. Em
1922, Mayakovsky que visitara o pintor francês Léger escreveu: “Léger, pintor
de que falam com certa arrogância os festejados conhecedores da arte france-
sa, causou-me a maior, a mais agradável das impressões. Atarracado, tinha o
ar de um verdadeiro pintor-operário, que encara o seu trabalho não como uma
predestinação divina, mas como um ofício interessante e necessário, equiva-
lente a outros ofícios da vida” (Ehrenburg, 1964). Era a época do LEF, do
Construtivismo22, do desejo de acabar com a poesia através do verso.
Em 1925, de uma viagem ao México, Cuba e Estados Unidos resultará
o trabalho em prosa My Discovery of America23 (1926), bem como um ciclo
de poemas que incluem muitos trechos anti-americanos, mas também o
encomiástico Brooklyn Bridge24:

21
Tradução de André Robel.
22
Nas artes plásticas e na arquitectura, o construtivismo caracterizou-se pela tendência
de expressar o desenvolvimento industrial da época, em linhas e volumes incisivos.
Ilya Selvinskiy (nascido em 1899) e outros tentaram uma poesia que também pudesse
expressar melhor, graças ao emprego de novas técnicas poéticas, o espírito da civiliza-
ção industrial.
23
Em russo, “Мое открытие Америки”.
24
Em russo “Бруклинский Мост”.
164 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

(…)
As a conqueror rides
through the town he crushes
on a cannon
by which himself’s a midge,
so-
drunk with the glory-
all life be as luscious-
I clamber,
proud,
on to Brooklyn Bridge.25
(…)

O desenvolvimento vertiginoso da técnica exige do artista uma com-


preensão ainda mais profunda do mundo interior do homem. Disto se aper-
ceberam, bem cedo, os fautores da “arte de esquerda”, que defendiam a esté-
tica industrial. Após ter visitado a América, Mayakovsky afirmou a necessi-
dade de refrear a técnica. Mayakovsky compreendia que, se não se impõe à
técnica a mordaça do humanismo, ela acabará por morder o homem.
Mayakovsky ansiava, contudo, por uma ordem social perfeita, enquanto
que, ao mesmo tempo, pressentia a monotonia potencial de um sistema utó-
pico e os perigos de uma tirania política. È possível observar estes seus
dilemas em poemas como Fine!26 (1927), escrito para comemorar o décimo
aniversário da revolução e Aloud and Straight27 (1930), onde são claros os
conflitos pessoais do autor e onde afirma:

(…)
Me too
agitprop
makes sick as hell,
me too
writing love songs would suit as well-
even better-for palate and purse.
Yet I-
I’d trample,
myself to quell,
on the very throat
of my verse.
(…)28

25
Tradução de Dorian Rottenberg.
26
Em russo, “Хорошо!”.
27
Em russo, “Во весь голос”.
28
Tradução de Dorian Rottenberg.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 165

De facto, em 1930, Mayakovsky começara a sentir as pressões para o


conformismo, o que o terá levado a acreditar que a revolução que ele apoiara
tão ardentemente havia sido usurpada pelos filisteus. Aliás, já em 1927, no
seu poema Paper Horrors29, ele se colocara como missão mostrar o que
estava mal na vida da jovem sociedade soviética. Nele pode ler-se:

(…)
Man
Is gradually
Becoming a blot
On the margins
Of enormously important papers.
(…)30

Resumindo, a obra poética de Mayakovsky caracteriza-se de sobrema-


neira pelo recurso constante a neologismos e hipérboles, pela audácia das
suas comparações, pela alternância entre ironia e lirismo, pela força interior
de cada palavra e de cada rima, pela estridência da sua personalidade com-
plexa.

Mayakovsky o dramaturgo e o agitador político


A primeira publicação importante de Mayakovsky foi, exactamente, a
peça de teatro Vladimir Mayakovsky, levada à cena em 1913. A análise
social profunda subjacente a esta tragédia assenta em associações inespera-
das e metáforas complexas, o que tornava a peça não totalmente acessível a
todos os leitores e críticos da época. Nesse mesmo ano, Mayakovsky toma
parte numa tournée de leituras futuristas, cuja intenção era chocar a burgue-
sia provinciana.
Em 1918, publica uma outra peça de teatro Mistério-Bufo31, na qual o
proletariado não só conquista a terra, mas ocupa igualmente o céu. O texto
desta peça não é homogéneo. Há trechos muito fortes, onde é clara a presen-
ça da inspiração genial de Mayakovsky, tendo-se mesmo dois dos seus ver-
sos transformado em provérbio na Rússia: “Para um – a rosca, para outros –
o buraquinho dela / A república democrática é por aí que se revela” (2001).
Outras passagens da peça aparecem, todavia, menos buriladas.
Ao apresentar a sua peça na Casa do Povo de Petrogrado, Mayakovsky
explicou como deveria ser entendido o título da peça: “Mistério é o que a
revolução tem de grande, Bufo é o que ela tem de cómico.” (2001). Escrita

29
Em russo,”Бумажные Ужасы”.
30
Tradução de Dorian Rottenberg.
31
Em russo, “Мистерия-буфф”.
166 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

em verso, o seu significado quase se poderia resumir nos seguintes versos


retirados da mesma:

(…)
Nós – somos arquitectos das terras,
da vida dramaturgos,
dos planetas somos decoradores,
nós – somos taumaturgos.32
(…)

Os últimos anos da sua vida veriam a publicação das suas peças mais
famosas. Uma delas, uma sátira cómica intitulada O Percevejo33, é um ata-
que cerrado contra as “relíquias” burguesas do período da Nova Política
Económica (NEP), no início dos anos vinte. Nesta peça o autor continua a
sua crítica implacável contra a mesquinhez da pequena burguesia.
A segunda peça The Bathhouse34 é um trabalho esquemático, no qual
uma mulher fosforescente, vinda do futuro, traz consigo para o presente uma
máquina que transportará todos os homens de valor para uma utopia futura.
Segundo o próprio autor, o objectivo desta peça seria chamar a atenção para
a necessidade de lutar contra a burocracia e pela concretização dos objecti-
vos socialistas.
Mayakovsky dedicou ainda grande parte do seu tempo à criação de car-
tazes de propaganda para as vitrinas do ROSTA35 e, de 1923 a 1925, escre-
veu anúncios, em rima, para armazéns de produtos de consumo estatais. Eis
aqui, a título de exemplo, um desses anúncios publicitários escrito por
Mayakovsky: “Onde comprar / caderno e caneta? / É fácil de lembrar / No
Mospoligraph / tem tudo o que desejar”36.

Conclusão
Um ponto crucial das posições dos futuristas era libertar a palavra de
camadas sucessivas e sobrepostas, resultantes da tradição literária, e dar-lhe
um novo aspecto visual. No caso de Mayakovsky, são muitos os exemplos
de poemas que apresentam um formato gráfico consideravelmente inventivo,
adquirindo as palavras novas funções ou formas. Como afirma Ernst Fischer
„Majakowski war ein Zerstörer alter Formen, und seine Methode, zu dichten,

32
Tradução de Dmitri Beliaev.
33
Em russo, “Клоп”.
34
Em russo, “Баня”.
35
РОСТА – Российское телеграфное агентство (Russian Telegraph Agency), órgão
central para a informação, de 1918 a 1925, ano em que foi criada a Agência TASS.
36
“Где взять / перо и тетрадь? / Помни, родитель, – / В Мосполиграфе / всё, что
хотите!”.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 167

hat sich als höchst geeignet erwiesen, die neue Wirklichkeit der Revolution
auszudrücken“ (1959).
De lembrar, todavia, que, quando Mayakovsky escreve o seu supracita-
do artigo Como fazer versos (1926), o poeta se encontrava já longe do início
do movimento futurista, mostrando uma entrega à causa socialista que outros
seguidores do movimento foram incapazes de manter. A sua obra abrange o
futurismo desde as suas origens até à sua evolução para algo de mais racio-
nal, como o construtivismo abstracto37, que se distingue pelos seus projectos
arrojados de arquitectura e construção de cenários para teatro, e o suprema-
tismo38 de Malevitch.
Após a Revolução, os futuristas dominaram a vida cultural soviética por
um breve período, não porque não houvesse na cena russa outros movimen-
tos vanguardistas, mas porque Mayakovsky colocara a sua inesgotável ener-
gia ao serviço dos bolcheviques, numa tentativa de combinar o político e o
estético, com o fim de derrotar o passado.
Entretanto, havia surgido na Rússia o formalismo crítico, de que se des-
tacava a figura de Roman Jakobson, que não tinha na altura dúvidas de que a
nova poesia russa era a dos chamados futuristas, já que a poesia, segundo
Jakobson, se renova de dentro para fora, com recurso a meios linguísticos.
Para ele, a linguagem poética era uma espécie de metalinguagem, que o
levou a afirmar, no seu ensaio The Newest Russian Poetry39, escrito em
1919, que “there are four main aspects of the Russian Futurists’ approach to
language to consider: the Destruction of Syntax, Defamiliarisation, the Self-
-contained Word (samovitoe slovo), and Zaum.”
É preciso saber-se distinguir entre o sentido de modernidade e o de
actualidade. O sentido de inovação do das simples novidades, que, um quar-
to de século depois, aparecem superadas. Mayakovsky continua a caminhar
através dos novos quarteirões de Moscovo, pelas ruas da velha cidade de
Paris, por todo o nosso planeta. Caminha com “provisões” não de novas
rimas, mas de novos pensamentos e sentimentos.
Em Nuvem de Calças, ele dirige-se a Maria, colocando uma questão e
fazendo uma advertência:

37
O termo arte construtivista foi introduzido, pela primeira vez, por Kazimir Malevitch
(1878-1935), pintor russo, para descrever o trabalho de Rodchenko, em 1917.
38
O termo suprematismo foi escolhido por Kazimir Malevitch para descrever as suas
próprias pinturas, já que se tratava do primeiro movimento a reduzir a pintura à pura
abstracção geométrica.
39
Cf. linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S0304347904800310 (doc. PDF).
168 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Remember-
you used to ask,
“Jack London,
money,
love,
passion-
aren’t they real?”
And I-all I knew
was that you’re the Gioconda
that somebody’s got to steal.40

Assim, o herói deste poema, cuja mulher amada foi roubada, aparece-
-nos não só como um apóstolo de um amor grande e verdadeiro, mas tam-
bém como um apóstolo da luta contra um mundo baseado na falsidade e na
exploração do homem pelo homem. As principais personagens não são nem
“ele” nem “ela”, mas a sociedade e o indivíduo, cuja humilhação é abençoa-
da pela igreja e pela arte contemporânea decadente, advindo daí a urgência
em pôr termo a todos os velhos conceitos, incluindo os de ordem estética e
religiosa.
O Futurismo Russo, o movimento mais radical e iconoclasta do moder-
nismo russo, deixou-nos o legado de um dos maiores poetas do séc. XX:
Mayakovsky um dos mais citados autores, mas talvez também um dos mais
incompreendidos.
Como escreve Maxim Kantor (2008), a época, em que a arte se une com
a vida, como o queria Mayakovski (“As ruas são os nossos pincéis, as pra-
ças, as nossas paletas”) dá á luz um tipo particular de criadores. Estas pes-
soas não se ocupavam com a arte comum, enquanto parte autónoma da acti-
vidade humana, tinham, sim, uma relação com toda a vida de uma só vez
formando-a no seu todo. A sua actividade já não pode designar-se apenas por
arte, mas merece a designação especial de vanguarda.

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40
Tradução de Dorian Rottenberg.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 169

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Moscou: Editions du Progrès.
IVAN BUNIN E O SENTIDO DA VIDA1

Jayanti Dutta

Иван Бунин является одним из немногих русских писателей, который выбрал


неповторимый художественный способ изображения русской души. Через
описание единичного и особенного автор обращается к насущным вопросам
бытия, таким как жизнь, смерть, любовь и природа. В данной работе мы
попытаемся проанализировать авторское понимание смысла жизни.
Ключевые слова: Иван Бунин, русская душа, смысл жизни.

ИВАНУ БУНИНУ Твой стих роскошный и


Как воды гор, твой голос скупой, холодный
горд и чист. и жгучий стих один горит,
Алмазный стих наполнен один
райским мёдом. над маревом губительных
Ты любишь мир и юный годин,
месяц, лист, и весь в цветах твой
желтеющий над смуглым жертвенник свободный,
сочным плодом.
Он каплет в ночь росою
ледяной
Ты любишь змей, тяжелых и янтарями благовоний
злых узлов знойных,
лиловый лоск на дне сухой и нагота твоих созвучий
ложбины. стройных
Ты любишь снежный сияет мне как бы сквозь
шелест голубиный шелк цветной.
вокруг лазурных, влажных
куполов. Безвестен я и молод в мире
новом,

1
O artigo foi apresentado na Universidade Aberta nas “II Jornadas de Literaturas Euro-
peias” em 26 de Maio de 2011.
172 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

кощунственном, но светит
всё ясней
мой строгий путь: ни
помыслом, ни словом
не согрешу пред музою
твоей.
Vladimir Nabokov

A vida de Ivan Alexievich Bunin (1870-1953) é bastante conhecida e,


aparentemente, pouco difere da vida de toda uma geração de emigrantes
russos: nascido a 1870 numa família nobre empobrecida de Voronej, publica
os primeiros poemas e contos nos anos 90. No início do século viaja pela
Europa. Nesta mesma época publica a colectânea de poemas Listopad (O
cair das folhas). Esta colectânea fez com que o escritor se tornasse famoso e
adorado pelos leitores russos. Viajou também pelo oriente (Egipto, Síria,
Palestina). O resultado destas viajem é o ciclo de ensaios Khram solntsa (O
templo do Sol). Em 1910 sai a primeira obra grande – Derevnja (A aldeia).
Na segunda década de século XX publica alguns dos contos mais famosos
(Sukhodol, O senhor de São Francisco, etc.).
Bunin não aceitou a revolução e emigrou para a França. Em 1933 rece-
beu o prémio Nobel pelo romance Zhizn Arseneva (A vida de Arseniev).
Embora tenha vivido muitos anos e até ao final da vida na emigração, o
coração e a mente nunca abandonaram a Rússia-Mãe, nunca deixou de ser
um escritor profundamente, visceralmente, russo. Faleceu em 1953 em Paris.
Refere o escritor soviético Konstantin Paustovsky, no primeiro encontro
em memória de Bunin (1956): Во Франции умер замечательный русский
писатель – писатель классической силы и простоты – Иван Алексеевич
Бунин. Он умер под чужим небом в ненужном и горьком изгнании,
которое он сам создал для себя, в непереносимой тоске по России и
своему народу. (Na França morreu um grande escritor russo. O escritor do
poder clássico e da simplicidade. Ivan Alexievich Bunin. Ele morreu sob céu
estranho, no exílio desnecessário e amargo, que ele próprio criou para si.
Morreu na saudade insuportável pela Rússia e pelo seu povo.).2
A novela “Derevnya” (Aldeia), publicada em 1910 trouxe uma grande
popularidade ao escritor. Nesta novela e também em “Sukhodol” (Vale
Seco) o escritor mostra a profundidade psicológica da alma russa. Estas duas
obras não só mostram os costumes e a vida tradicional da Rússia histórica,
mas também versam sobre a alma russa no sentido profundo desta palavra,
retratam os traços típicos da psicologia eslava. Embora possamos encontrar
alguma continuidade de tradição turgenevyana, Bunin criou novos tipos de

2
lib.ru/PROZA/PAUSTOWSKJ/iwan_bunin.txt_with-big-pictures.html.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 173

personagens nestas obras com características diferentes das obras literárias


anteriores.
Bunin nunca pertenceu a nenhum movimento literário. Tinha o seu
estilo próprio e uma arma fortíssima – a língua. Alguns críticos afirmam que
só um poeta genial pode assim, desta maneira simples, sem metáforas, sem
comparações, transmitir o sentido de amor, o sentido de perda ou o sentido
de compaixão.

Плакала ночью вдова: Плакала мать по ночам.


Нежно любила ребенка, но Плачущий ночью к слезам
умер ребенок. побуждает другого:
Плакал и старец-сосед, Звезды слезами текут с
прижимая к небосклона ночного,
глазам рукава, Плачет господь, рукава
Звезды светили, и плакал в прижимая к очам3.
закуте козленок.

Este é um pequeno poema sobre um acontecimento trágico: uma viúva


chorava à noite. Amava ternamente o seu filho, mas a criança morreu. Cho-
rava também o velho vizinho, apertando as mangas da camisa nos olhos.
Brilhavam as estrelas, chorava o cabritinho agasalhado. A mãe chorava noite
adentro pelo seu rebento. Chorava até o próprio Deus.
Através de palavras tão simples o escritor consegue transmitir a tragédia
mais profunda, o sofrimento de uma mãe pela perca da sua criança amada.
Sofre também Deus, sofrem as estrelas, o pequeno cabrito. O sentimento da
perda de uma mãe transforma-se num sofrimento universal, num sofrimento
cósmico, do tamanho de um mundo infinito.
Bunin interessava-se muito pela filosofia de Sócrates sobre o valor da
personalidade humana. Também foi influenciado por Tolstoi. Para Bunin, tal
como para Tolstoi, o bem e a beleza, a ética e a estética são os elementos
principiais da criação de valores eternos. Estas concepções filosóficas são
muito visíveis nas obras do autor.
O escritor não aceitou a revolução de 1917. Para ele o “seu” mundo
acabou com esta transformação social e política. A velha Rússia, as cidades
como Moscovo e São Petersburgo, a Rússia de Tolstoi, de Goncharov, a
Rússia de poesia, da arte teria desaparecido com esta mudança drástica. O
velho mundo, a que ele pertencia, já não existia. Por isso abandona a mãe
pátria e, como referimos, parte para a França. E viveu na França ate ao últi-
mo dia da sua vida, embora, no fundo do seu coração, tenha sempre perma-
necido na sua Rússia. Nos diários “Okayannye dni” (Dias malditos), o autor
fala sobre a guerra civil, sobre os dias difíceis após a revolução.

3
bunin.niv.ru/bunin/stihi/464.htm.
174 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Partiu para emigração em 1920. Entre 1923 e 1933 escreveu “Mitina


liubov (O amor do Mitia), “Solnechnyj udar” (Insolação), “Zhizn Arseneva”
(A vida do Arsenev), entre outros. Em 1933 foi galardoado com o premio
Nobel. O escritor considerou que a atribuição do prémio para ele teria ficado
a dever-se ao romance “Zhizhn Arseneva”. Nesta altura Bunin foi uma
grande figura para os leitores ocidentais. Os jornais, as revistas falavam
muito sobre o génio da literatura russa. Boris Zaitsev, outro escritor russo
emigrado comentou assim este acontecimento: “nos éramos os últimos lá, os
emigrantes. E de repente dão o premio Nobel a um escritor emigrante, e não
por razões politicas, mas sim, pela arte”4. O romance, em certo sentido
autobiográfico, representa a vida e carácter do povo russo. Ao mesmo tempo
as personagens russas e a própria Rússia ganha uma dimensão muito maior,
o romance torna-se num documento único da humanidade.
Bunin era de uma natureza calma e regular. No entanto, por baixo de
uma personalidade pacata e pouco dada a excentricidades, entrevemos uma
cosmovisão trágica e única. O amor, a morte e a natureza são as temáticas
centrais nas suas obras. Temáticas que se articulam e urdem numa trama
caracterizada por uma angústia silenciosa, tensão constante e de sentido do
inefável.
O escritor começou a sua vida literária como tradutor de poemas e como
poeta. Por isso a descrição da natureza é um componente fortíssimo também
na prosa dele. Alguns contos como “antonovskie yabloki”(Maças Antonov),
legkoe dykhanie (A respiração leve), sukhodol (Vale seco), etc., podem ser
considerados versos em prosa. A natureza russa é extremamente bem repre-
sentada nas obras do escritor. Os dias solarengos e frescos do verão, o sosse-
go dos campos, os enormes espaços das aldeias, o Outono típico da Rússia, o
Inverno duro e prolongado mas, ao mesmo tempo, belo e imponente são
retratados como num quadro. A natureza russa está fortemente ligada às
personagens (que são, obviamente, russas). Os dois estão presentes na obra
como uma totalidade vital, numa interdependência dinâmica. A natureza e o
homem complementam-se um ao outro. O conto “Antonovskie yabloki”é um
dos seus contos mais líricos, mais poéticos. Lendo este conto, podemos sen-
tir a beleza dos primeiros dias do Outono, o cheiro da relva e plantas dos
campos, o ar fresco e aromatizado, vindo de longe. Quase que sentimos o
sabor e o aroma de maças antonov;

Помню раннее, свежее, тихое утро... Помню большой, весь золотой,


подсохший и поредевший сад, помню кленовые аллеи, тонкий
аромат опавшей листвы и – запах антоновских яблок, запах меда и
осенней свежести. Воздух так чист, точно его совсем нет. (lembro-
-me do início de manhã fresco e tranquilo, lembro-me do jardim grande,

4
Kopylov I. L. Vsya russkaya literatura p. 411.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 175

dourado, seco e diluído, lembro-me das alamedas de aceres, o aroma fino


das folhas caídas, e o cheiro de maças antonov, cheiro de mel e da
frescura do Outono. O ar era tão puro como que não existisse).5

O escritor tinha um senso invulgar da natureza e da cor. Toda beleza da


Rússia interior: os campos com espaços infinitos, o céu azul, espaçoso, pro-
fundo e leve, as flores da Primavera e Outono, as ruas das aldeias, desapare-
cendo no horizonte, os dias chuvosos e frescos aparecem nas obras de Bunin
como fossem pintados pela mão de um pintor maior.

Podemos ler em V derevne, Na aldeia: За садом еще холодно краснеет


заря. Солнце только что выкатилось огнистым шаром из-за
снежного поля; но вся картина села уже сверкает яркими и
удивительно нежными, чистыми красками северного утра. Клубы
дыма алеют и медленно расходятся над белыми крышами. Сад – в
серебряном инее… (Atrás do jardim, a madrugada fria ainda está aver-
melhar-se. O sol tinha acabado de aparecer como uma bola de fogo do
campo de neve, mas toda a imagem da aldeia já está a brilhar com as sur-
preendentemente suaves e puras cores da manhã do norte. Nuvens da
Fumaça enrubescem e lentamente dissiparam-se sobre os telhados bran-
cos. O Jardim – cobre-se de uma geada prateada...).6

A importância e o significado da natureza são questões fulcrais na cria-


ção literária do autor. Para Bunin, é difícil compreender a alma humana sem
a natureza. A visão sobre relacionamento entre homem e a natureza nas
obras dele é quase uma visão panteísta. Homem e natureza, juntos, cons-
troem a harmonia do Universo. Por isso, quando lemos as obras do escritor,
sentimos esta unidade entre os dois. Só conseguimos chegar à compreensão
da alma russa sentindo e conhecendo as estepes, as estações do ano, as flores
e os frutos, os lagos e as florestas, o céu e as estrelas, os dias e as noites da
Rússia. O conto “Na khutore” (Na Quinta) é um belo exemplo desta relação.
Um fidalgo empobrecido da Rússia interior vive a sua vida solitária e triste.
Num dia calmo e silencioso lembrando o passado vê que já não restam mui-
tos dias para o fim da sua vida. O pensamento profundo e triste sobre o sen-
tido de vida leva-o a uma conclusão filosófica:

В темном небе вспыхнула и прокатилась звезда. Он поднял кверху


старческие грустные глаза и долго смотрел в небо. И от этой
глубины, мягкой темноты звездной бесконечности ему стало легче.
"Ну, так что же! Тихо прожил, тихо и умру, как в свое время
высохнет и свалится лист вот с этого кустика..." Очертания полей
едва-едва обозначались теперь в ночном сумраке. Сумрак стал гуще,

5
az.lib.ru/b/bunin_i_a/text_1150.shtml.
6
http://ilibrary.ru/text/1857/index.html.
176 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

и звезды, казалось, сияли выше. Отчетливее слышался редкий крик


перепелов. Свежее пахло травою... Он легко, свободно вздохнул
полной грудью. Как живо чувствовал он свое кронное родство с
этой безмолвной природой! (No céu escuro uma estrela brilhou e
passou rapidamente. Ele ergueu os olhos tristes e senis e olhou
longamente para o céu. E a partir desta profundidade, da escuridão macia
do infinito das estrelas, sentiu-se mais aliviado. "Bem, então! Vivi
discretamente e vou morrer também silenciosamente, como no devido
tempo secam e caem folhas deste arbusto..." Os contornos dos campos
mal eram vislumbrados agora, na escuridão da noite. A obscuridade era
densa, e parecia que as estrelas brilhavam mais acima. Distintamente,
ouviu o grito raro de codornizes. Havia um cheiro fresco de relva... Ele
suspirou levemente e profundamente. Sentiu-se animado a sua relação
com a natureza silenciosa!).7

O amor é a força secreta que aparece como destino, quase como que
causa teleológica dos acontecimentos. O amor não se repete, aparece só uma
vez na vida e faz da pessoa mais feliz, mais bonita, mais forte. Mas o amor
não junta duas pessoas de modo permanente, para serem eterna e tranquila-
mente felizes, como nos contos de fadas. Pelo contrário: os heróis de Bunin,
querendo abandonar uma vida que teima em ser solitária, encontram-se sem-
pre em busca de uma irrealizável felicidade, vivem numa esperança inútil de
verdadeiramente encontrar alguém, amar e ser amados. O amor aparece ful-
gurante, mas é não mais do que um instante. Brilha na sua luz fosca… e
desaparece para todo o sempre. O amor na vida em família teima em não
existir. A vida quotidiana afasta o sentimento mais profundo, mais belo. Por
isso os heróis separam-se, morrem, suicidam-se… O amor é uma coisa
transcendente, de um outro mundo, vem com toda a impetuosidade, força e
beleza do universo mas não é capaz de ser duradouro na vida quotidiana.
Esta felicidade não repartida realiza-se como que no seu contrário, realiza-se
no sofrimento. Por isso, o amor na obra do escritor é sempre um amor trági-
co. A maior contradição da felicidade está aqui. Bunin nunca escreveu um
conto ou um romance de amor onde haja um final feliz. Quando duas pes-
soas apaixonadas se juntam, os sentimentos e relações tornam-se diferentes.
Então, não há lugar para a divina felicidade. Por isso, todas as histórias do
amor acabam de repente e com consequências trágicas. Quando nós, leitores,
esperamos um final feliz, eis que acontece exactamente o inverso.
Lembremo-nos do conto “V Parizhe” (Em Paris), onde dois emigrantes
solitários se encontram num restaurante de Paris. Ele é oriundo de uma
família nobre. Abandonado pela mulher, vive sozinho. Ela é uma empregada
de restaurante, uma mulher simples e pobre. Talvez em outras circunstâncias
seria impossível que os dois se juntassem. Mas a solidão é mais forte que o

7
az.lib.ru/b/bunin_i_a/text_1760.shtml.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 177

estatuto social. Eles apaixonam-se um pelo outro, juntam-se, mas enquanto


estamos a espera de um final feliz, eis que a morte os separa: На третий
день Пасхи он умер в вагоне метро, – читая газету, вдруг откинул к
спинке сиденья голову, завел глаза...Когда она, в трауре, возвращалась
с кладбища, был милый весенний день, кое-где плыли в мягком
парижском небе весенние облака, и все говорило о жизни юной, вечной
– и о ее, конченой. (No terceiro dia da Páscoa, morreu, numa carruagem do
metro a ler um jornal. De repente, atirou a cabeça para trás do banco, fechou
os olhos... Quando ela voltou do cemitério em luto, estava um bom dia de
primavera, as nuvens primaveris flutuavam aqui e ali no macio céu
parisiense, e tudo isto dizia sobre a vida jovem, a vida eterna e sobre o seu
final.).8
O mesmo acontece no outro conto “Kavkaz” (Cáucaso), onde o marido
ciumento acaba por se suicidar, ao descobrir a traição da mulher. Neste con-
to, Bunin retrata magistralmente a psicologia humana. No inicio, toda a sim-
patia do leitor se concentra na vida infeliz da mulher, que foge aos braços do
outro para ser feliz e viaja para o Cáucaso com o seu amante. O marido, um
oficial de alto cargo, parece um homem severo e controlador, persegue a sua
mulher por todo lado. Enquanto o leitor espera uma tragédia por parte da
mulher ou do amante, acontece completamente uma coisa inseparável, uma
coisa inversa. Suicida-se o marido. Será que o amor dele tão forte, tão since-
ro para ela? Será que o único caminho para acabar com o seu sofrimento era
a morte que ele escolheu?

Он искал ее в Геленджике, в Гаграх, в Сочи. На другой день по приезде


в Сочи, он купался утром в море, потом брился, надел чистое белье,
белоснежный китель, позавтракал в своей гостинице на террасе
ресторана, выпил бутылку шампанского, пил кофе с шартрезом, не
спеша выкурил сигару. Возвратясь в свой номер, он лег на диван и
выстрелил себе в виски из двух револьверов. (Ele procurou-a em Gelend-
zhik, em Gagra, em Sochi. No dia seguir à sua chegada a Sochi, tomou um
banho de manhã no mar, em seguida, fez a barba, vestiu as roupas interiores
limpas, túnica militar branca, tomou pequeno almoço no terraço do restau-
rante do seu hotel, bebeu uma garrafa de champanhe e bebeu café com
chartreuse, fumou um charuto lentamente. Voltou ao seu quarto, deitou-se
no divã e deu um tiro nas têmporas com dois revólveres).9

“Legkoe dykhanie” (Respiração leve) é um outro exemplo deste tema.


Este conto versa sobre uma bela jovem adolescente, oriunda duma família
rica. É uma rapariga bela, esperta e faladora. Tem tudo para ser amada e para
ser feliz. De repente, quando a vida ainda só começou, um oficial

8
az.lib.ru/b/bunin_i_a/text_2622.shtml#16.
9
ilibrary.ru/text/1811/index.html
178 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

apaixonado mata-a ao ser recusado por ela. Assim acaba a vida da jovem
Olga. Após ler este conto nunca poderemos esquecer o que sussurrara Olga
uma vez, ao ouvido duma amiga:

– но главное, знаешь ли что? – Легкое дыхание! А ведь оно у меня


есть,– ты послушай, как я вздыхаю,– ведь правда, есть? (mas o
essencial, sabes é o que? – é uma respiração leve. Pois eu tenho isso.
Ouve, como eu respiro. Eu tenho-a, não é verdade?).10 Теперь это легкое
дыхание снова рассеялось в мире, в этом облачном небе, в этом
холодном весеннем ветре (agora esta respiração leve espalhou-se outra
vez pelo mundo, por este céu nublado, por este ar primaveril e fresco.)11
O tema do amor repete-se muitas vezes nas criações do autor. “O amor de
Mitia”, “A vida de Arsenev”, “Gramática de amor”, entre muitas outras
obras, versam sobre o amor fatídico, o amor não alcançado, o amor pouco
duradouro, o amor onírico.

O significado da morte também tem uma grande e forte relação com o


amor e com sentido da vida nas obras de Bunin. Morte é eternidade. Beleza,
paixão, riqueza, conflitos, sofrimento, todos têm um único destino, que tudo
dilui: a morte. Aqui vemos alguns componentes da filosofia oriental e exis-
tencialista, interligadas numa visão de mundo sincrética. A vida é uma ilusão
ou é absurda. Todas as coisas que parecem mais significantes para nós reve-
lam-se, numa situação limite (Jaspers) pouco importantes. A morte é mais
forte, mais resistente do que tudo o resto.
Um grande exemplo desta questão talvez o conto mais famoso de Bunin
“Gospodin iz San-Francisco” (O cavalheiro de São-Francisco): um rico ame-
ricano viaja num cruzeiro de luxo. Ele parece o dono do mundo, pois possui
poder e dinheiro. Mas, de repente, o homem morre. Aí a situação muda
completamente. Para não perturbar a viagem perfeita dos passageiros, a
gerência do navio decide guardar o corpo em baixo, com a bagagem, mesmo
que contra a vontade da família. Nenhum dos turistas pode saber da existên-
cia de um cadáver. E o cavalheiro de São-Francisco, o rico americano, que
tanto respeito e deferências tinha experimentado em vida, faz a sua última
viagem no porão de forma humilhante, escondido e esquecido, pois que a
vida continua.

Тело же мертвого старика из Сан-Франциско возвращалось домой,


в могилу, на берега Нового Света. Испытав много унижений, много
человеческого невнимания, с неделю пространствовав из одного
портового сарая в другой, оно снова попало наконец на тот же
самый знаменитый корабль, на котором так еще недавно, с таким
почетом везли его в Старый Свет. Но теперь уже скрывали его от

10
ilibrary.ru/text/1052/index.htm.
11
ilibrary.ru/text/1052/index.htm.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 179

живых – глубоко спустили в просмоленном гробе в черный трюм (O


corpo do velho de São Francisco voltava para casa, para o túmulo, para as
margens do Mundo Novo. Depois de ter sofrido muita humilhação, muita
negligência humana, vagueando há uma semana de um armazém portuá-
rio para outro, ele finalmente acabou por voltar, no mesmo navio admirá-
vel onde há pouco tempo o trouxeram com tanto respeito ao Mundo
Velho. Mas agora já o esconderam dos vivos, lançaram-no à profundidade
dentro de um caixão alcatroado no porão negro.)12

As personagens do escritor são quase sempre russas, mesmo na emigra-


ção as obras continuavam a versar sobre a Rússia e os russos. No entanto,
Bunin não é um autor apenas russo. Através do singular e do particular o
autor aborda questões universais. Pela forma como são levantadas questões
tão importantes como a morte ou o amor, as personagens adquirem uma
maior significância, quase eterna e a própria Rússia transforma-se num
reflexo do Universo. Aqui reside a grandeza de Bunin, é nesta capacidade de
manifestar o universal pelo singular e particular que ele revela o seu enorme
talento e o torna um clássico da literatura mundial.
Ivan Bunin é um dos poucos escritores russos que procurou privilegiar o
caminho especificamente artístico para retratar a alma russa, a dor e o sofri-
mento, o amor e a solidão do povo russo, sem imprimir directamente um
cunho político, sem se preocupar em criar uma literatura panfletária. Por isso
talvez seja o único escritor russo que recebeu o prémio Nobel pelo verdadei-
ro talento artístico e não por razões directamente políticas.

Bibliografia
Belenkij G.I., Nikolaev P. A., Ovcharenko A.I., Puzikov A.I., Sherbina V.P.
(1987) Russkaya Poeziya XIX – nachala XX veka. Moskva: Khudozhest-
vennaya Litratura..
Bunin I.A. Sobranie Sochenenya. az.lib.ru/b/bunin_i_a/.
Bunin I.A. Plakala nochiu vdava. bunin.niv.ru/bunin/stihi/464.htm.
Charles, Moser (1992) The Cambridge history of Russian literature. Cambridge
University Press.
Ilibrary.ru/author/bunin/index.html
Konstantin Paustovsky. IvanBunin.
lib.ru/PROZA/PAUSTOWSKJ/iwan_bunin.txt_with-big-pictures.html.
Kopylov I. L. (2003) Vsya russkaya literatura. Minsk: Sovremennyj Literator.

12
az.lib.ru/b/bunin_i_a/text_1040.shtml.
À DESCOBERTA DA LITERATURA RUSSA CONTEMPO-
RÂNEA: CAÇA AO MAMUTE, DE TATIANA TOLSTAIA

Cristina Mestre

Статья рассказывает о жизни и творчестве писательницы, а также об ее работе


в качестве журналиста и общественного деятеля. Особенность литературного
языка писательницы – оригинальность и переосмысление классических
ценностей. Статья включает перевод рассказа «Охота на мамонта» с русского
языка на португальский.
Ключевые слова: статья, охота на мамонта, Татьяна Толстая, перевод,
португальский.

A escritora, ensaísta, jornalista e apresentadora de televisão Tatiana


Tolstaia, sobrinha-neta do grande escritor Leão Tolstoi, é geralmente consi-
derada umas das mais originais representantes da literatura russa contempo-
rânea, ao lado de Serguei Dovlátov, Liudmila Petruchévskaia, Vladimir
Sorókin, Boris Akunin, Viktor Pelevin. Na realidade, a literatura que surgiu
na Rússia nos finais dos anos 80, anos 90 do século XX, estimulada pelas
mudanças da Perestroika e consequente maior liberdade na vida cultural,
conta com um número muito maior de escritores, mas poucos são conheci-
dos em Portugal. Os anos 80 (especialmente o final da década), altura em
que Tatiana Tolstaia começou a publicar as suas obras, foram acompanhados
de alterações dramáticas do modo de vida e de todos os outros aspectos da
sociedade russa.
Tatiana Nikititichna Tolstaia nasceu a 3 de Maio de 1951 em Lenine-
grado (hoje, São Petersburgo) numa família com tradições literárias. Neta do
escritor Alexei Tolstoi (1883-1945) e da poetisa Natalia Krandievskaia,
outro dos seus avós, Mikhail Lozinski, era tradutor literário.
Tatiana Tolstaia licenciou-se em 1974 na Universidade de São Peters-
burgo em Filologia Clássica (Grego e Latim). Após o casamento, muda-se
para Moscovo e começa a trabalhar na editora “Nauka”, no departamento de
literatura oriental.
182 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Escreveu o seu primeiro conto em 1983, publicado na revista literária


“Avrora” (Aurora). Depois disso, até 2007, publicou toda uma série de con-
tos na revista “Novii Mir” e em outras edições periódicas literárias.
Em 1987 saiu a sua primeira colectânea de contos “O Alpendre Doura-
do” (traduzida e editada em Portugal em 1992 pela editora D.Quixote e na
qual, curiosamente, o apelido da autora é indicado como Tatiana Tolstoi,
embora os apelidos femininos russos se declinem e não mantenham a forma
masculina). A colectânea é composta por treze contos, entre os quais “A
doce Chura” (1985), “O faquir” (1986), “O círculo” (1987) e outros.
Em 2000, foi publicado o seu primeiro romance, “O lince”, que se tornou
muito popular, sendo considerado uma das obras mais originais da autora. O
livro conta como, numa Rússia após uma explosão nuclear, todos se tornam
mutantes, a língua praticamente desaparece e a vida se degrada lentamente. O
romance, pleno de sarcasmo, deu origem a diversos espectáculos teatrais.
Tatiana Tolstaia não é só conhecida como escritora mas também como
jornalista. Os seus artigos, crónicas e ensaios publicados entre 1990 e 1998
nos jornais “Moskovskie Novosti” e “Russkii Telegraf” foram reunidos no
livro “Irmãs” (1998); a escritora continua até hoje a publicar artigos nos
jornais e revistas sobre os mais variados temas.
Tatiana Tolstaia viveu mais de dez anos nos Estados Unidos, onde ensinou
Literatura e Escrita Criativa em diversas universidades norte americanas (Uni-
versidade de Princeton, Skidmore College), escreveu para o New York Review
of Books, The New‑Yorker e outros. Voltou à Rússia no fim dos anos 1990,
continuando a dedicar-se à literatura, ao jornalismo e à actividade docente.
Os anos que viveu nos Estados Unidos não impediram que a escritora seja
bastante crítica da cultura de massas americana, à qual sempre se refere com
mordacidade, contrapondo-a à cultura europeia, na sua opinião superior quer à
americana quer à russa, embora reconheça que os grandes escritores como Tols-
toi, Dostoievski ou Tchekov são parte dessa mesma cultura europeia.
A escritora participa activamente na sociedade civil, possuindo ideias
muito claras sobre o presente e o futuro do seu país, a arte e a política.
Tatiana Tolstaia é apresentadora, desde 2002, do popular talk-show
televisivo “Escola da Má-Língua”, programa que a tornou conhecida em
todo o país.
É uma das escritoras a quem a actual liberdade de expressão permitiu a
criação literária sem quaisquer barreiras.
Durante os 70 anos do poder soviético, a literatura russa existiu debaixo
de uma rigorosa vigilância do Estado e da censura. Tudo o que era proibido
pelo poder soviético, pela censura soviética, não deixava de ser lido. O assim
chamado “samizdat” (edição própria), eram livros copiados pelas pessoas em
máquinas de escrever, alguns impressos em papel de fotografia, ou seja,
páginas fotografadas e reveladas como se fossem fotos (não havia fotocopia-
doras de acesso livre). Era a literatura de resistência.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 183

Hoje, a situação é completamente diferente. Para além de qualquer


escritor poder ser publicado e de um verdadeiro “boom” na edição de livros,
alargaram-se os limites daquilo que considerávamos “literatura russa”.
Acontece que, após a revolução de 1917, a literatura – e a cultura em geral –
foi dividida em duas partes: a literatura que ficou na União Soviética (algu-
ma da qual foi proibida pela censura) e a que se formou no estrangeiro, a
assim chamada “literatura da emigração”.
Agora existe uma única literatura russa, qualquer que seja o lugar onde
ela é criada, seja nos EUA, na Alemanha ou na França... Muitos escritores
contemporâneos russos moram fora do país, alguns vivem temporadas no
estrangeiro e regressam periodicamente à Rússia.
Tatiana Tolstaia pertence a essa geração de escritores e poetas com uma
nova mentalidade e uma linguagem ousada, uma geração que conhece bem o
mundo, que pode escrever o que quiser e como quiser, havendo, curiosamen-
te, uma predominância de mulheres.
A própria Tatiana Tolstaia, quando uma vez os estudantes lhe pergunta-
ram: “O que é uma pessoa livre?” disse, depois de pensar um pouco: “Uma
pessoa como eu”.
A escritora possui uma admirável capacidade de comunicação com o
público. Nas suas entrevistas, nos encontros com leitores é inegável o prazer
que sente com a troca de ideias. Tal como nas suas obras, a ironia, a morda-
cidade, o sarcasmo aliam-se a um genuíno desejo de compreender a posição
do outro, à curiosidade da escritora pelas pessoas e pelas ideias. Ver Tatiana
Tostaia a falar de literatura ou de política é algo que nos pode deixar horas a
fio colados ao écran. A escritora possui na comunicação oral a mesma rique-
za de linguagem, de associações, de imagens, de ideias que se ligam, interli-
gam e rapidamente se transformam, tal como acontece na sua obra escrita.
Ela gesticula, faz caretas, remexe-se na cadeira, ri à gargalhada, temos a
sensação que é verdadeiramente genuína e que não se preocupa de forma
nenhuma com a sua imagem.
***
Para além da posição cívica da escritora, o que nos cativa na sua prosa?
Os contos de Tatiana Tolstaia deixam-nos uma impressão de mergu-
lharmos lentamente em algo entre a realidade e a fantasia. Em muitos deles
surge o tema do sonho e da colisão com a realidade, o problema da existên-
cia real e fictícia. Alguns contos levam o leitor a pensar qual das vidas
devemos considerar verdadeira…. A real ou a criada nos sonhos?
Ela também escreve sobre a justificação do sofrimento humano no
amor, na família, na arte, sobre a solidão do homem num mundo de incom-
preensão e de crueldade. Os seus heróis encontram-se à procura do seu lugar
no mundo. Escreve sobre a relação da pessoa com o tempo, a ligação entre o
passado, o presente e o futuro. Em muitos contos, há como que um “catálogo
184 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

de recordações” do passado, do qual surge a imagem da infância, uma ima-


gem nostálgica, triste, mágica, “oscilando na água escura”.
A escritora consegue captar magistralmente e transmitir-nos a maneira
como as crianças vêem o mundo – os medos que surgem de noite, a com-
preensão literal dos adultos, a confusão de impressões.
Tatiana Tolstaia também tenta chegar, muitas vezes com sarcasmo, a
uma nova forma de encarar os principais valores clássicos, como o da famí-
lia ou a ideia do sacrifício humano. No conto “O Fogo e a Poeira”, a escrito-
ra ridiculariza o natural desejo humano de alcançar o conforto e o bem-estar
material.
Desta forma, a escritora está próxima do pós-modernismo, da ideia de
uma nova compreensão dos temas da literatura clássica.
A linguagem literária de Tatiana Tolstaia não deixa o leitor indiferente.
Há uma abundância de adjectivos, que às vezes se contradizem, produto de
rápidas associações de ideias. As descrições são detalhadas, abundantes em
imagens, como se estivéssemos diante de uma galeria de quadros ou de
cenas de um filme. Um episódio ocasional provoca todo um fluxo de asso-
ciações e estas, por sua vez, crescem com novos pormenores.
A prosa de Tatiana Tolstaia é repleta de pormenores visuais, de sons, de
cheiros, de luz, de sombras e sensações. Mergulhar nela é mergulhar noutro
espaço, é entrar noutro mundo.
É esse admirável mundo que vos convido a descobrir lendo o conto
“Caça ao Mamute”, escrito em 1985, que nós traduzimos do russo especial-
mente para este artigo.

Caça ao Mamute

Zóia – é um nome lindo, não é? Parece-se com o zumbido das abelhas.


Eu própria sou bonita: sou alta e tudo o mais. Querem saber pormenores?
Aqui vão eles: tenho umas belas pernas, uma bela figura, boa pele, nariz,
olhos. Sou morena. Porque não sou loura? Porque nem todos têm a sorte de
ser louros…
Quando Zóia conheceu Vladimir, ele ficou siderado ou, pelo menos,
agradavelmente surpreendido.
– Оh!– exclamou Vladimir.
Foi isso mesmo que ele disse e começou a querer ver Zóia com fre-
quência. Só que não queria vê-la de forma permanente e isso aborrecia-a.
No apartamento de uma assoalhada de Zóia ele só mantinha uma escova
de dentes – um objeto pessoal, íntimo, sem dúvida, mas não tanto que ligasse
fortemente um homem ao lar. Zóia queria que as camisas de Vladimir, as
meias, os boxers, digamos, se estabelecessem em sua casa, se unissem à
outra roupa no armário, ou talvez ficassem espalhadas na cadeira. Queria
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 185

pegar numa camisola qualquer dele e, zumba, pô-la num alguidar com deter-
gente e pendurá-la depois aberta a secar.
Mas não! Não deixava rastos, mantinha tudo, mas tudo, no quarto onde
vivia, até a máquina de barbear, até essa! Mas que teria ele para barbear, se
usava barba? Vladimir tinha duas barbas: uma espessa, mais escura e, no
meio, como que outra, mais pequena, arruivada, crescendo como um tufo
fino no queixo. Era um fenómeno. Quando comia ou ria, a segunda barba
começava a saltar…. Era baixo, um palmo mais baixo que Zóia, de aspeto
ligeiramente selvagem, cabeludo, movia-se muito rapidamente e era enge-
nheiro.
– É engenheiro? – perguntou Zóia no primeiro encontro, quando esta-
vam sentados no restaurante e ela, abrindo a boca apenas um milímetro,
degustava os profiteroles em molho de chocolate, fingindo que, por qualquer
razão intelectual, estes não lhe agradavam muito.
– Exacto – disse ele, olhando para o queixo dela.
– Trabalha num instituto de investigação?
– Exacto.
– Ou numa fábrica?
– Exacto.
Vá lá a gente entender alguma coisa quando ele se punha fixamente a
olhar para ela! Bebeu um pouco.
Engenheiro também não era mau. Na verdade, seria melhor se fosse
médico, cirurgião. Zóia trabalhava num hospital, no guichet de atendimento,
vestia uma bata branca e, desta forma, sentia-se como que pertencendo de
certa forma a este admirável mundo da medicina, branco, engomado, onde
havia seringas e espátulas, cadeiras de rodas e autoclaves, pilhas de roupa
grossa limpa com carimbos negros, rosas e lágrimas, bombons de chocolate,
um cadáver azulado rapidamente levado pelos corredores infinitos e, atrás
dele, mal o conseguindo acompanhar, um pequeno anjo triste voando e aper-
tando com força contra o seu peito de pássaro a alma acabada de libertar,
sofredora, vestida como uma boneca.
O cirurgião é o rei deste mundo e não podemos deixar de olhar sem
estremecer quando ele, ajudado por camareiros a envergar um amplo manto
branco e uma coroa verde atada com fitas, está de pé, levantando majesto-
samente as mãos, pronto para a sua sagrada missão real: realizar a justiça
suprema, lançar-se sobre o doente, cortar, punir e salvar, dar a vida com a
sua espada brilhante….Um verdadeiro rei… Zóia queria muito, muito lan-
çar-se nos braços ensanguentados de um médico. Mas um engenheiro tam-
bém não era mau.
Eles passaram um tempo bastante agradável no restaurante a conversar
e Vladimir, ainda não sabendo com o que podia contar da parte de Zóia, era
generoso. Só depois ele começaria a economizar, olhando de forma desem-
186 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

baraçada para o menu, passaria a escolher apenas um prato barato de carne e


a evitar ficar muito tempo no restaurante.
Zóia estava sentada e lançava em vão um olhar lânguido, fazendo uma
expressão desprendida, como que ligeiramente trocista, em parte pensativa –
supunha-se que pela sua face deveriam passar vários matizes fugazes da sua
complexa vida emocional, seja uma refinada melancolia seja uma outra
qualquer subtil recordação.
Estava sentada, olhando como que para longe, colocando elegantemente
os cotovelos na mesa e, estendendo o lábio inferior, lançava bonitos anéis de
fumo de cigarro para as abóbadas decoradas do tecto. Era o jogo da fada.
Mas Vladimir jogava mal: comia com interesse, sem qualquer tristeza, bebia
de um só trago, não fumava languidamente, mas sim depressa e, inspirando
sofregamente o fumo, rapidamente esmagava a beata no cinzeiro, torcendo-a
com o dedo amarelado. No fim, aproximava a conta perto dos olhos, ficava
terrivelmente espantado e encontrava logo um erro. Não tinha, dizia, enco-
mendado nenhum caviar: “só princesas e ladrões é que comem caviar”. Zóia
ofendia-se: então ela não era uma princesa, embora não reconhecida?
Depois deixaram de ir a restaurantes, ficavam em casa ou então ela
ficava em casa. Era aborrecido.
No Verão, apeteceu-lhe ir passar uns dias às praias do Cáucaso. Lá
havia bulício e vinho, mergulhos no mar com gritos à noite, muitos homens
interessantes que, olhando para Zóia, diriam: “Oh!” com os dentes a brilhar.
Em vez disso, Vladimir trouxe para casa uma canoa insuflável e dois
amigos, iguais a ele, de camisas de xadrez malcheirosas e puseram-se a gati-
nhar pelo chão, dobrando e desdobrando, colando uns remendos quaisquer,
pondo por partes o repugnante corpo liso da canoa numa bacia com água e
gritando: “Está furado, não está furado”. Zóia ficava sentada no sofá, com
ciúmes e aborrecida com a falta de espaço, tendo que levantar as pernas cada
vez que Vladimir ou os amigos gatinhavam de um sítio para outro.
Depois ela teve de ir com ele e com os amigos àquele horrível passeio
ao norte, passando por uns lagos, à procura de umas quaisquer ilhas deslum-
brantes, estava gelada e molhada e Vladimir cheirava a cão.
Avançavam remando depressa, saltando nas ondas, através de um frio e
soturno lago no norte, enfunado por uma escuridão de chumbo. Zóia ia sen-
tada no fundo da detestada canoa, estendendo as pernas, pequenas por não
usar saltos, umas pernas magras e finas no fato de treino justo, sentindo que
tinha o nariz vermelho, os cabelos emaranhados, salpicos hostis de água
borravam o rímel nas pestanas e, pela frente, havia ainda duas semanas de
tormento numa tenda húmida, numa rocha deserta coberta de pinheiros e
arbustos de mirtilo, entre pessoas estranhas, ofensivamente bem-dispostas,
entre os seus gritos alegres à hora do almoço, feito à base de concentrado de
ervilhas.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 187

Era a vez de Zóia lavar as gordurosas tigelas de alumínio no lago gelado


e profundo mas elas continuavam sujas. Sentia também a cabeça suja e
comichão por baixo do lenço. Os outros engenheiros iam com as mulheres e
ninguém olhava para Zóia com um olhar especial, ninguém dizia “Oh!”, ela
sentia-se como um amigo de calças que não era homem nem mulher e detes-
tava o riso à volta da fogueira, o dedilhar na guitarra, os gritos de alegria
quando alguém apanhava um lúcio.
Ficava deitada na tenda completamente infeliz, odiava as duas barbas de
Vladimir mas queria casar-se com ele rapidamente. Quando isso aconteces-
se, poderia ter todo o direito, como mulher legítima, de não se desfigurar em
caminhadas pela chamada “natureza”, ficar em casa de robe leve e elegante
(há muitos à venda, com folhos, feitos na Alemanha), recostada no sofá de
perna trocada, olhando para a mobília de sala e para a televisão a cores (o
Vladimir que compre), sob a luz cor-de-rosa de um candeeiro de pé importa-
do, beber qualquer coisa leve e fumar algo agradável (os familiares dos
doentes que ofereçam), esperando pelo regresso de Vladimir das tais expedi-
ções de canoa, fazendo um ar ligeiramente descontente e desconfiado quan-
do ele chegasse. “O que é que fizeste lá de interessante sem mim? Com
quem foram? Trouxeste peixe?” Depois, naturalmente, perdoar-lhe a ausên-
cia de duas semanas. Nessa ausência talvez o cirurgião conhecido telefonas-
se, insinuando-se, e Zóia, abraçando indolentemente o telefone e fazendo
uma expressão indefinida, iria arrastar as palavras: “Bom, não sei… Vere-
mos…. A sério que pensa assim?” Ou então telefonaria à amiga: “E tu o que
disseste? E ele? E tu depois?” Ah, que bom, a cidade! O brilho, a tarde, o
alcatrão molhado, as luzes vermelhas de néon nas poças de água sob os sal-
tos altos…
Agora, aqui, as ondas batem pesadamente na rocha, o vento ressoa aba-
fado pela copa das árvores, a fogueira dança a sua eterna dança, a noite
espreita nas costas e as sujas e feias mulheres dos engenheiros guincham nas
tendas. Um tédio!
Vladimir estava delirante, levantava-se cedo, enquanto o lago ainda
estava calmo e luminoso, descia pela encosta íngreme, segurando-se aos
pinheiros e sujando as mãos com resina, ficava de pé de pernas afastadas na
laje de granito que se perdia debaixo da água transparente ao sol, lavava-se,
roncava eufórico, olhando com olhos felizes para Zóia que, lá atrás, ensona-
da, sem maquilhagem, se mantinha de olhar sombrio segurando uma caçaro-
la: “Então, alguma vez ouviste tal silêncio? Repara, como está silencioso…
E o ar tão limpo… Que maravilha!” Ah, como ele era repugnante! Casar,
casar mas é depressa com ele!
No Outono, Zóia comprou uns chinelos a Vladimir. Eram uns chinelos
de xadrez, confortáveis, que esperavam por ele no hall de entrada, abrindo as
bocas: enfia os pés, Vladi, aqui estás em casa, aqui tens um porto de abrigo!
Fica connosco! Para onde andas tu sempre a fugir, maluquinho?
188 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Zóia enfiou ainda a sua fotografia, de caracóis castanhos, sobrancelhas


em arco, olhar severo, na carteira de Vladimir: assim que ele abrir a carteira
para tirar o passe ou o dinheiro, irá vê-la, assim bonita, e exclamará em pen-
samento: ah, porque não me casei ainda? Os outros ainda me ultrapassam…
À noite, esperando por ele, punha no parapeito da janela um candeeiro de luz
cor-de-rosa – o farol da família na escuridão da noite. Para tornar mais fortes
os laços, para aquecer o coração: a casa está escura, a noite está escura, mas
lá em cima brilha uma luzinha, a sua alma não dorme, talvez esteja a fazer
conservas ou, se calhar, resolveu lavar a roupa.
As almofadas estavam macias, as almôndegas macias, passadas duas
vezes pela máquina de picar, tudo era tão apetecível e Zóia, qual abelha,
zumbia: despacha-te, amigo, despacha-te inútil!
Queria casar antes de fazer vinte e cinco anos, depois disso seria tarde,
acabaria a juventude e ir-te-iam tirar da sala, para o teu lugar viriam outras a
correr, rápidas e com caracóis!
De manhã, bebiam café. Vladimir lia a revista “Barcos e Iates”, masti-
gava e sacudia as migalhas presas nas duas barbas; Zóia estava calada,
olhando com hostilidade para a testa dele, lançando fluidos telepáticos: casa
comigo, casa comigo, casa comigo, casa comigo! À tarde ele lia outra vez
qualquer coisa, Zóia olhava pela janela e esperava a hora de dormir. Vladi-
mir lia de forma desinquieta, agitava-se, coçava a cabeça, saltitava, ria à
gargalhada e exclamava “Ouve-me isto!” e, entrecortando o riso, tocando em
Zóia com o dedo, repetia o que estava a ler e que tanto lhe tinha agradado.
Zóia fazia um sorriso amarelo, olhava fria e fixamente para ele, sem reagir e
ele, abanando desconcertado a cabeça, murchava e balbuciava:
“Este fulano é terrível…” dizia ele, mantendo de propósito e por orgu-
lho um sorriso inseguro.
Ela sabia estragar-lhe a alegria.
Se não, vejamos: ele vive aqui com cama e mesa posta, tudo limpo, var-
rido, arrumado, o frigorífico até descongela sozinho. Tem aqui a escova de
dentes, os chinelos, fazem-lhe de comer, de beber, se precisa de alguma coi-
sa da lavandaria, não há problema, por amor de Deus, eu vou…. Então por
que razão, meu filho da mãe, não te queres casar e só andas aqui a chatear-
-me? Se soubesse ao certo que não queres, então adeusinho! Chauzinho,
cumprimentos à tia! Mas como saber as suas intenções? Zóia não tinha cora-
gem de fazer tal pergunta directamente, a experiência de muitos séculos
aconselhava evitá-lo. Um tiro em falso e, pronto, lá se perdia tudo; a presa
punha-se em fuga a toda a velocidade, dela só ficava a poeira e a imagem ao
longe. Não, há que a atrair.
O filho da mãe habituou-se, sentia-se em casa, tornou-se doméstico.
Trouxe do antigo quarto as camisas, os casacos. As meias dele estavam ago-
ra espalhadas por todo o lado. Chega a casa e calça logo os chinelos. Esfrega
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 189

as mãos: “O que temos hoje para o jantar?” Vejam lá: “temos” – pois era
mesmo isso que dizia.
– Carne, – respondia Zóia entre dentes.
– Carne? Perfffffeito! Perffffeito! E porque está a senhora assim tão
aborrecida?
Às vezes ele punha-se a sonhar:
– Queres que compremos um carro? Vamos passear para onde nos ape-
tecer…
Estava mesmo a gozar! Como se nunca mais quisesse deixá-la! E se não
quisesse mesmo? Se assim era, então que se casasse. Zóia não queria amar
sem garantias.
Zóia armava-lhe armadilhas: fazia a cova, cobria-a de ramos e empurra-
va, empurrava….
Uma vez, já vestida e maquilhada, resolveu de repente recusar-se a ir a
casa de amigos, ficou no sofá olhando com tristeza para o tecto. “O que é
que se passa? Não pode ir? Porquê?” Não pode, não vai porque tem vergo-
nha de se expor ao ridículo em público, irão todos apontar o dedo e pergun-
tar na qualidade de quem, afinal, tinha ela vindo…. Todos estavam com as
mulheres legítimas… “Parvoíce”, diz Vladimir, “as mulheres casadas não
serão mais de um terço e mesmo assim, o mais certo é serem mulheres de
outros… Ora se, até agora, ela tinha ido e nada tinha acontecido….Antes ia
sem problemas, agora não quer ir, parece que é muito frágil, é como uma
rosa que murcha quando a tratam mal….”
– Muito gostava de saber quando é que eu te tratei mal …
A conversa continuava mais ou menos no mesmo tom mas sempre ao
lado, sem passar pela cova disfarçada.
Um dia, Vladimir levou Zóia a visitar um artista plástico, um pintor,
diziam que muito interessante.
Zóia imaginava como seria: o mundo artístico, a alta sociedade, grupi-
nhos de especialistas em Arte, as senhoras – velhas aborrecidas com turque-
sas e pescoços de perus; os homens – elegantes, cheirosos, com lenços colo-
ridos no bolso do casaco. Um educado senhor de idade com monóculo abre
caminho, tenta aproximar-se. O pintor, pálido, tem uma blusa de veludo e
segura uma paleta. Então Zóia entra e todos dizem “Oh!”. O pintor empali-
dece. “A menina tem que posar para mim”. O educado senhor de idade olha
com uma triste expressão aristocrática: a sua juventude já passou, o perfume
de Zóia já não é para ele. O retrato de Zóia, um nú artístico, é levado para
Moscovo, para uma exposição na galeria Manej. A Polícia tenta travar a
multidão de pessoas que quer ver a mostra. A exposição vai ao estrangeiro, o
retrato é protegido por um vidro blindado. Deixam entrar na sala só dois a
dois. Soa uma sirene, afastem-se todos para a direita! Entra o presidente. Ele
está impressionado, emocionado. Onde está a modelo? Quem é esta rapari-
ga?
190 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

– Não partas um pé aqui – diz Vladimir, quando desciam para uma


cave.
No atelier estava calor, dos tubos de aquecimento nas paredes pendiam
bocados de estopa. O pintor, um sujeito vestindo um casaco grosso rasgado,
carregava uns quadros pesados. A sua pintura era estranha: por exemplo, um
grande ovo, de dentro dele saem muitos homenzinhos e, por cima, Mao Tzé-
-Tung paira nas nuvens em botas de cano de lona e roupão estampado,
empunhando uma chaleira. Tudo isto se chama “Concordance”. Outro qua-
dro: Uma maçã, de dentro da qual desliza uma lagarta de óculos e pasta; ou
ainda outro: Um local selvagem rochoso com arbustos de equissetos e destes
sai um mamute em chinelos. Um ser pequenino com um arco aponta-lhe uma
seta. Ao lado vê-se uma gruta com uma lâmpada eléctrica pendurada, uma
televisão acesa e a chama do bico do fogão a gás. Até se consegue ver uma
panela de pressão muito bem desenhada e, na mesa, um ramo de equissetos.
O nome do quadro é “A caça ao mamute”. Interessante… “Digamos
…corajoso”, diz Vladimir. “Corajoso, corajoso mas qual é a ideia do qua-
dro?” “Ideia? – admira-se o pintor alegremente. “Estão a ofender-me! Sou
algum pintor peredvijnik1? Ideia! Das ideias há mas é que fugir a sete pés e
não olhar para trás”.
“Mas mesmo assim, mesmo assim, terá que haver….”
Os dois discutiam, gesticulavam, o pintor começou a dispor numa mesi-
ta baixa copos instáveis, limpando com o braço o tampo sujo. Beberam algo
insípido, acompanhado de pedaços duros de qualquer coisa comprada dias
antes.
O dono da casa, com um olhar luminoso e como que cego de profissio-
nal, escorregava pela superfície de Zóia. O olhar não tocava a alma dela,
como se nem sequer existisse. Vladimir estava vermelho, a barba desalinha-
da, ambos falavam alto, pronunciando palavras como “absurdo” e outras
semelhantes; um referia-se a Giotto, outro, a Moiseenko e esqueciam-se de
Zóia.
Zóia doía-lhe a cabeça, sentindo um barulho nos ouvidos: dum, dum,
dum. Lá fora, na escuridão, estava quase a chover, a lâmpada poeirenta que
pendia do tecto navegava através de uma nuvem de fumo azulado, nas gros-
seiras prateleiras brancas acumulavam-se jarros com cardos da Crimeia há
muito partidos e cobertos de teias de aranha. Zóia não estava lá nem em
nenhum lado, ela simplesmente não existia. O mundo à volta também não
existia, apenas o fumo e o barulho: bum, bum, bum.
No caminho para casa, Vladimir abraçou Zóia pelos ombros.

1
Os Peredvijniki, pintores realistas da segunda metade do sec. XIX, princípios do
sec.XX, organizavam exposições itinerantes, eram a favor da divulgação da arte e da
educação estética da população em geral.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 191

– Um fulano extremamente interessante, embora meio maluco! Repa-


raste no raciocínio dele? Uma maravilha, não era?
Zóia ia calada e com rancor. Chovia.
– Estiveste lindamente!– zunia Vladimir.– Agora vamos para casa e
bebemos um chá quente, sim?
O miserável! Que técnicas desonestas, indecentes. Afinal, na caça há
regras: o mamute afasta-se a uma certa distância, eu faço pontaria, disparo a
flecha: vz-z-z-z-z – e está pronto! Eu levo o corpo dele para casa e tenho
carne para o Inverno inteiro. Este vem ele próprio, aproxima-se a pouca dis-
tância, pasta, mordisca a erva, coça-se na parede, dormita ao sol, faz-se
doméstico! Até se deixa ordenhar! A cerca está aberta, aberta de todos os
lados! Meu Deus, nem há nenhuma cerca! Deus, ele ir-se-á embora, ir-se-á
embora! É preciso uma vedação, uma paliçada, cordas!
Dum, dum, dum. O sol pôs-se, o sol nasceu. Na janela pousou um pom-
bo com um anel na pata, olhou severamente Zóia nos olhos. Ora vejam,
vejam! Até um simples pombo, tinhoso e inútil, tem um anel. Cientistas em
batas brancas de rostos honestos, doutores, pegam nele, no pombinho – per-
mita-nos, excelentíssimo senhor, incomodá-lo – e o pombo entende, não faz
objeção, sem nenhum có-có-có estende a pata vermelha – tenham a bondade,
caros senhores, o vosso trabalho é necessário. Clic!
Agora já não irá voar de qualquer maneira, já não irá andar pelo chão, o
pateta, a atrapalhar, aos guinchos, não irá saltar bruscamente para trás, de
queixo caído, mal vê um camião. Não, agora voa cientificamente ao longo
das cornijas e varandas, come correctamente a ração que lhe dão e lembra-se
claramente que até os borrões cinzentos dos seus excrementos estão agora
iluminados pelos raios incorruptíveis da ciência: A Academia sabe, está ao
corrente e, se for preciso, perguntará.
Zóia deixou de falar com Vladimir, ficava sentada a olhar pela janela,
pensando durante horas no pombo científico. Reparando no olhar triste do
engenheiro fixado nela, fica tensa: Então? Onde estão as palavras sagradas?
Pronuncia-as! Rendes-te ou não?
– Zoinha, o que se passa? Eu tento mostrar o meu amor e tu …, balbu-
ciam as duas barbas.
Os traços de Zóia tornaram-se imóveis, impassíveis, afilados e há muito
que já ninguém dizia “Oh!” ao se encontrar com ela, nem já ela precisava
disso: o fogo azul de um sofrimento infinito que ardia na sua alma abafava
todas as luzes do mundo. Não queria fazer nada e era Vladimir quem aspira-
va, sacudia os tapetes, fazia conservas de beringelas.
Dum, dum, dum – zoava na cabeça de Zóia e o pombo, com o refulgen-
te anel de casamento, levantava-se da escuridão franzindo os olhos de repro-
vação. Zóia deitava-se no sofá a direito, tapava a cabeça com a manta e
punha os braços ao longo do corpo.
192 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Uma Dor sem fim – seria assim que os artistas da Idade Média, como os
do álbum no extremo da estante, chamariam à sua estátua em madeira.
Uma Dor sem fim – era isso.
Oh, eles esculpiriam bem a sua alma, a sua dor, todas as dobras da sua
manta, esculpiriam e pespegariam no topo de uma vertiginosa catedral rendi-
lhada, mesmo no cimo, fariam depois uma foto em grande plano: “Zóia.
Pormenor. Gótico primitivo”.
O fogo azul aquecia a gruta de lã, sufocava.
O engenheiro saía do quarto em bicos de pé. “Onde vaaais? – gritava
Zóia num piar de cegonha. O pombo casado sorria, irónico.
“Nada, nada, ia lavar as mãos…descansa”, sussurrava o monstro, assus-
tado.
“Primeiro diz que vai lavar as mãos, depois diz que vai à cozinha e, aí,
pouco falta até à porta da rua”, lembrava-lhe o pombo ao ouvido. “Mais um
passo e vai-se embora”.
É que é mesmo verdade… Ela atirou ao pescoço das duas barbas uma
corda com laço, deitou-se no sofá, puxou e pôs-se à escuta. No outro lado,
alguma coisa farfalhava, suspirava, pateava. Nunca tinha gostado especial-
mente deste homem, ou melhor, digamos que ele sempre lhe tinha sido
repugnante. Um animal pequeno, potente, pesado, rápido, cabeludo, insensí-
vel.
O animal ainda fez barulho durante algum tempo – chiava, agitava-se
até que, finalmente, sossegou – no silêncio denso e bem-aventurado do gelo
eterno.
UM ROMANCE INVULGAR (“NIKALAI! NIKALAI!”,
DE JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS)1

Jayanti Dutta
Luís Rafael Gomes

Данная статья посвящена роману Rodrigues Miguéis о жизни в изгнании


русских эмигрантов, которые организовали интервенцию для уничтожения
большевистской власти. Эта попытка закончилась полным провалом. В своем
романе автор проявляет огромный талант художественного мастерства и
одновременно поднимает вопрос о глубоком смысле создания индивидуальной
и коллективной идентичности и феномена мифологизированного сознания.
Ключевые слова: русские эмигранты, Jose Rodrigues Migueis, идентичность,
мифологизированное сознание.

O mito é o nada que é tudo. Por não ter vindo foi vindo
O mesmo sol que abre os céus E nos criou.
É um mito brilhante e mudo – Assim a lenda se escorre
O corpo morto de Deus, A entrar na realidade,
Vivo e desnudo. E a fecundá-la decorre.
Este que aqui aportou, Em baixo, a vida, metade
Foi por não ser existindo. De nada, morre.
Sem existir nos bastou.
(Fernando Pessoa)

“Nikalai! Nikalai!” (1971) é um romance de José Rodriguéis Miguéis


(1901-1980), que versa sobre a vida de emigrantes russos exilados que, por
força dos acontecimentos revolucionários de 1917, deixam a “Santa madre
Rússia” e se espalham por um ocidente burguês que os despreza e ao qual

1
Este artigo foi apresentado na 5ª Conferência Internacional da Série «Iberian And
Slavonic Cultures In Contact And Comparison: Myths Of Origin Of Nations – Modern
And Postmodern Approaches», no dia 13 de Maio de 2011, na Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa.
194 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

não se adaptam. O tema da emigração russa era muito popular entre escrito-
res russos (Bunin, Bulgakov, Erenburg, etc.), mas é manifestamente invulgar
para um escritor português. Por isso este romance pode ser considerado
como uma obra sem igual. Nela, um escritor português procura adentrar-se
pela vida e “alma” russa e cossaca, apropriando-se criticamente de uma
cosmovisão à partida considerada estranha.
Neste romance encontramos o profundo conhecimento do autor não
apenas da história da Rússia, do povo russo, da língua, tradição e cultura
russas, mas também das profundezas existenciais do ser humano e a comple-
xa imbricação entre o desenvolvimento individual e o destino colectivo.
“Nikalai! NikalaiI” é uma obra bastante diferente das anteriores de José
Rodrigueis Miguéis. Depois de “A escola do Paraíso”, “Páscoa Feliz”, “Gen-
te de terceira classe”, entre muitos outros romances, o escritor escolhe, como
referimos, os emigrantes russos para o seu novo romance, mais propriamen-
te, cossacos (oriundos das margens do rio Don). Os cossacos, que compu-
nham grande parte do exército da Rússia czarista eram um povo com uma
forte tradição militar (magistralmente descrita em Taras Bulba, de Gogol2).
Rodrigues Miguéis mostra a vida miserável dos seus heróis na emigração,
que vêem defraudadas muitas das ilusões que carregavam ao virem para o
ocidente após a revolução de 1917.
A realidade, como frequentemente acontece, nada lhes oferece de bom3.
Passam fome, vivem uma vida indigna de miséria e de dependência constan-
te da misericórdia alheia. A sua profissão de fé, a sua identidade, a sua resis-
tência à realidade, o seu “mecanismo de defesa” no enfrentamento trágico
com o quotidiano, consiste numa contínua evocação do passado, da pretensa
“vida gloriosa e digna” que tinham na Rússia, comportamento que adquire
foros de elevação nacional mas também de passatempo na ruminação dos
dias. Afinal, é tediosa a falta de uma mitologia, diria Fernando Pessoa.
Enquanto projecção, o mito é também um mecanismo de defesa. O núcleo
ideológico da vivência exilada consiste na evocação e no amor sem limites
ao Czar Nikolau II, que, na sua figura, congrega, soteriologicamente, uma
promessa sebastiânica de recuperação do passado e da identidade pretérita
que se esvai por entre os dedos do presente. O mito da absoluta fidelidade
cossaca ao Czar enquanto encarnação do mundo perdido exige uma constan-
te ritualização deste amor incondicional, na evocação colectiva do seu nome:
“Nikalai! Nikalai!”. Mas, por força da realidade do exílio, esta evocação e o

2
Gogol, Tolstoi, Sholokhov, Grizzly, Petrov, Miroshnichenko, Kalinin, Sofronov, Turo-
verov, etc
3
Há uma anedota russa sobre uma pessoa que, indo parar a um monótono céu, desejava
conhecer o inferno. Foi-lhe permitido ir por uns dias e o inferno afigurou-se-lhe muito
mais divertido. Mas, após ter pedido para ficar a viver no inferno, passou a conhecer
todas as agruras deste. Moral da história: não se deve confundir turismo com emigra-
ção.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 195

próprio mito têm de conviver e misturar-se com as prosaicas saudades pela


comida, pelo clima, pelo estilo de vida, tem de se reafirmar constantemente
nos preconceitos e em posições reaccionárias de toda a espécie.
Nicolau II, estadista débil mas implacável contra o seu próprio povo,
que o vê, na sua maioria, como o seu “paizinho” (basta referir o famoso
domingo sangrento, onde a guarda czarista disparou sobre uma multidão
pacífica que entoava o “Deus Salve o Czar”), aparece na sua tradicional
auréola beatífica de encarnação do espírito pátrio e garante da sua salvação.
Othon Kirílovitch Buldógov e Vladimir Mirônovitch Tatarátsin, dois
refugiados russos que fazem lembrar levemente dom Quixote e Sancho pan-
ça, cossacos dos exércitos do Czar Nicolau II convivem, com outros “russos
Brancos” numa miséria lúgrube na pensão russa de Madame Papelótskaya
ex-vivandeira do exército. Na pensão reúnem-se desde deserdados do exérci-
to czarista a decadentes membros da nobreza até um Pantaleônov, seguidor
de Kerensky. A pensão é um momento vivo do passado, uma representação
espácio-temporal diegética da Rússia perdida que se recusa a perecer, partí-
cula do passado mantida pela unidade ideológico-cultural alicerçada no mito
de uma grandeza passada. Uma vida medíocre e pequena, de pequena gente,
a que a história conferiu um sentido funcional mas que acabou por atirar
borda fora. Só a vivência do mito parece preencher o vazio e dar um sentido,
ainda que alienado, à vida que não se aceita como tal. Mas, “pode-se fugir da
Pátria mas não de si próprio” (Horácio): à melancolia, nostalgia e ódio ao
presente juntam-se preconceitos e reaccionarismo, e uma angustiante neces-
sidade da tolerância do outro nas condições da emigração, uma repugnante
necessidade de aceitação do presente.
O sofrimento humano, a tentativa de reafirmação da identidade e o sen-
timento de perda são questões fulcrais desta obra. Trata-se do problema da
identidade de um povo perdido e do relacionamento deste com uma socieda-
de quase desconhecida à qual se vai tendo de adaptar pelas duras contingên-
cias da vida. A ideia de desenraizamento e estranhamento, condimentada
com uma efabulação permanente do que se perdeu, percorre todo o romance,
num tom agridoce: embora o romance aborde uma história trágica, a atmos-
fera é caricaturalmente leve, como se o autor se apiedasse das personagens.
De certo modo, esta relação é particularmente forte pelo facto de Rodrigues
Miguéis também passar pela Via Crucis da emigração. A saudade, a nostal-
gia, o desenraizamento, a busca de si próprio e da sua identidade também
eram vividos intensamente pelo autor. Podemos dizer outrossim que este é
um elo que aproxima este romance dos portugueses, povo de tantas emigra-
ções, que o torna quase “familiar”, apesar de propriamente não haver portu-
gueses na história narrada.
O fim do Romance ilustra a ideia de que, na história, a tragédia se repe-
te enquanto farsa: Othon e Vladimir encontram, por mero acaso um francês
alcoólico, anarquista com laivos anti-monárquicos que, de tão parecido com
196 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

o czar falecido, bem poderia passar por ele. Então fazem-no tomar o lugar do
próprio czar. O mito é forte, todas as distorções da realidade podem ser legi-
timadas a partir dele, o mito tem as costas largas. Mesmo os organizadores
da farsa vêem-se dentro da voragem do cumprimento do mito a tal ponto que
o que é realidade ou não já não mais interessa. O que importa é o cumpri-
mento da ideia, nem que se force a realidade a enquadrar-se nesta. O contras-
te entre a realidade e a ficção produzida, ilustra o ambiente de incongruência
dentro do qual viviam os exilados: o “imperador” era afinal, nada mais do
que ex-anarquista alcoólico e perdido, tão perdido quanto Othon e Valódia.
“O jogo entre a verdade e o simulacro torna-se a placa giratória do entrecho
ficcional e a contradição nos termos não pode ser mais óbvia: só um falso
czar pode ressuscitar o verdadeiro czar. Inventar um falso czar é uma forma
de corromper a sua memória e simultaneamente, de a preservar” (Santos,
Gilda p. 139).
Depois de arrecadar fundos e aderentes através desta farsa salvífica,
misto de charco e luar, intentam uma intervenção, com o falso Czar à frente4,
para acabar como domínio bolchevique. Intentona que acaba em fracasso
total: foram capturados logo à entrada no território soviético. Não só não
conseguiram alçar-se ao desejo pessoano de criadores de mitos, mas nem
puderam dar consistência ao mito existente através da criação de um substi-
tuto.
Dizia Tadeusz Kotarbiński que a “A emigração é um funeral após o
qual a vida continua”. A vida russa no exílio, no Ocidente, é uma vida sus-
pensa, uma vida em função do passado que se perdeu e de um futuro que não
se vislumbra. É uma vida que nem presente tem, já que por todos os meios se
procura enfeitar e negar um presente que se revela absurdo, um presente que
não é reconhecido como algo que sequer faça jus ao nome de presente. É
uma vida em auto-negação. A nostalgia pelo mundo perdido é uma nostalgia
pela imagem perdida de si próprio, “anseio de auto-identificação e perma-
nência na infinidade do espaço-tempo, esse mundo subjectivo cujo perpétuo
movimento ou devir nos ameaça a cada instante de alienação ou aniquila-
mento” (José Rodrigues Miguéis).
O mito “imobiliza” o tempo. O Passado, presente e futuro já não exis-
tem enquanto tais, a história é um passado mítico nostalgicamente acarinha-
do e ciclicamente reafirmado num eterno retorno ao mesmo. A irreversibili-
dade real do passado5 entra em contradição com o mito. À ilusão de passado
junta-se a utopia.

4
“Temos apenas que seguir a trilha do herói... e lá onde pensávamos estar sós, estaremos
na companhia do mundo todo” (Joseph Campbell).
5
Um tema recorrente em Rodrigues Miguéis, como no conto “regresso à cúpula da
pena”.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 197

A perda e a impossível recuperação da “imaginada grandeza” é uma


situação trágica. A própria luta contra o tempo e a história adquire ares de
quixotismo. Também Taras Bulba, de Gógol era incapaz de compreender a
nova realidade e a personalidade dos próprios filhos, o que leva a sua luta
para enfrentar o futuro a adquirir um ar de luta sem sentido. A ideia de
absurdo existencial, já presente em “uma Páscoa Feliz”, reaparece neste
romance, agora numa dimensão mais alargada.
Em “Nikalai! Nikalai!” a narração flui constantemente do narrador
principal, para outras personagens, que leva a uma estruturação polifónica
em que o leitor é levado a uma identificação com o mundo observado. O
interior e o exterior, o individual e o social são apresentados num todo artís-
tico orgânico.
José Rodrigues Miguéis tenta compreender empaticamente as persona-
gens tornando-as tão próximas do leitor que parecem ser uma extensão não
só do autor, mas do próprio leitor. Aliás, a vontade de Rodrigues Miguéis de
“compreender por dentro” o mundo de quem fala é uma constante, com con-
tornos de humana ternura. Rodrigues Miguéis, mesmo quando critica, apie-
da-se dos homens, peões de forças e circunstância em que se vêem enreda-
dos. É um romance de uma sensibilidade extrema, em que as críticas são
quase que exclusivamente dirigidas às circunstancias e não às pessoas.
O narrador principal, um agente de serviços secretos pouco engagé, que
observa a vida russa no exílio e o seu viver mitologizado com uma distância
que se afigura uma distância não tanto do mundo mas de si mesmo é um ser
perdido de si próprio, sem raízes e sem destino, um niilista urbano, cosmo-
polita, individualista, que persegue um sentido que acredita não existir.
Como em “Leah”, só se interessa pelo que não consegue alcançar, como fica
patente na sua relação com a agente que ele inicialmente acreditava ser uma
simples desafortunada finlandesa. Esta consciência angustiosa do próprio
desenraizamento fá-lo, de certo modo, aproximar-se daqueles que, tendo
uma relação mítica com a própria identidade, ele sente como tão perdidos
como ele. Ele sabe dos interesses que giram em torno da mitologização do
passado, interesses que têm a ver com questões materiais, económicas e polí-
ticas que ele serve mas com os quais não se identifica inteiramente. A sua
simpatia e, quase diríamos, a sua ternura vão mais para os que se encontram
emocionalmente afogados no turbilhão da história do que os que, de modo
calculista (como os serviços secretos para os quais trabalha) tentam aprovei-
tar-se da ingenuidade alheia em jogos estratégico-políticos. Os homens,
quando reféns dos mitos, agem em nome destes, desconhecedores das pró-
prias razões que os movem.
Miguéis tenta, no meio da ironia, guardar alguma dignidade às persona-
gens cossacas, num Lirismo trágico, onde se manifesta, como que a contra-
gosto da personagem do narrador, alguma humanidade. A própria personali-
dade do narrador, o seu cinismo, afastam o leitor de uma identificação com-
198 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

pleta com este, como se Rodrigues Migués apelasse à ideia brechtiana de


superação da tendência para a identificação alienante com as personagens.
Rodrigues Miguéis não escolhe como personagens principais altas figu-
ras da imigração, figuras de alto estatuto político, económico ou intelectual,
mas figuras simples, pequenas. Não eram membros da aristocracia, da
nobreza, da administração imperial, não eram intelectuais aburguesados, não
eram filósofos, nem teólogos, eram simples cossacos. A própria saudade pela
pátria é vivida distintamente por diferentes tipos de emigrante. Não é uma
saudade intelectualizada, é uma saudade mais directamente emotiva, menos
sujeita a reflexão, menos permeada pelo pensamento, é uma saudade de gen-
te simples e ingénua. De certa maneira José Rodrigues Miguéis transpõe
para o mundo da emigração a abordagem gogoliana e dostoievskiana, ao
contrário do que era comum entre as obras russas acerca da emigração, em
que as personagens tinham um estatuto mais elevado, por simpatia e identifi-
cação dos autores, ou para conferir elevação ao próprio movimento anti-
-bolchevique. Não só esta “simpatia” pelas desventuras da gente pequena
mas também o modo como trabalha o humor revelam a influência marcante
de Gógol.
É interessante que José Rodrigues Miguéis recorra a cossacos como
personagens centrais da trama: a origem cossaca, mesmo historicamente
contextualizada, aparecia, aos olhos deste povo, como uma origem mítica, os
cossacos são como que uma etnia sustentada em mitos fundadores. Se histo-
ricamente o povo cossaco se viu livre (e graças a si próprio) da servidão, o
mito aprisionou-o ao servilismo. A falsidade desta mitificação é demonstra-
da pela própria história: os cossacos lutaram em ambos os lados da revolu-
ção, como ilustrou Sholokhov em “O Don Tranquilo”.
A relação entre o povo cossaco e o mitologizado czarismo aparece
como uma mitificação dupla, uma mitificação imbricada noutra mitificação,
reforçando o carácter alienante do mudo exilado, carácter alienante ainda por
sua vez reforçado pelo exílio, pela alienação da pátria. É uma relação labirín-
tica de extrema complexidade, é um entrelaçamento de nós intrincados que
conduz a um sentimento de perda e perdição, de quem perde e está perdido.
As personagens aparecem quase como náufragos, o sentimento de perda mói
no interior do sentimento de estar perdido. A afirmação repetitiva das bases
de uma identidade mitologizada conferem algum sentido de vida e nessa
ficção procuram viver o que é possível viver. É interessante observar, entre-
tanto, que a mitificação da origem e da identidade cossaca tem um sentido
diferente da mitificação do poder czarista. Esta última mitificação tem uma
característica que Lévi-Strauss poderia chamar de post-mortem, a de mera
legitimação política.
O colectivismo cossaco e as condições do exílio tornam mais necessária
a função socializadora do mito. Já Durkheim e Lévy-Bruhl mostraram a for-
ça aglutinadora das representações colectivas e a sua importância na tentati-
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 199

va de resolução emocional de contradições. Os mitos acentuam a vivência


colectiva e até promovem um certo igualitarismo ficcionado, contrapondo-se
tanto ao individualismo como ao crescimento da individualidade e da perso-
nalidade autónoma. O mito apresenta o seu conteúdo ideológico sob uma
forma “despolitizada”, “naturalizada”. Na verdade, ele “naturaliza” relações
sociais de subalternidade e procura imobilizá-las no tempo.
O termo mitologia é de uma polissemia propensa a ambiguidades: pode
referir-se tanto ao conjunto de mitos como à apreensão teórica destes. Podem
ser aceites como uma narração fundante da realidade, transcendência que
confere sentido à história ou como narração fabulosa e imaginária, integrada
na história, como “falas” que, no entanto, não são invenções aleatórias, mas
antes distorções e magnificações da realidade, numa lógica determinada, que
importa compreender.
Mostra uma luta contra a história real enquanto tentativa de concretiza-
ção e perpetuação do que se considera o fundamento dessa própria história.
Toda a luta pelo mito é uma luta contra a erosão do tempo e, num certo sen-
tido, contra o próprio tempo. Zeus afirma o seu reinado matando Cronos. “A
Mitologia é estática: encontramos os mesmos elementos mitológicos combi-
nados de infinitas maneiras, mas num sistema fechado, contrapondo-se à
História, que, evidentemente, é um sistema aberto6.”
Como já referimos, não foi certamente por acaso que José Rodrigues
Miguéis apelou a cossacos para o papel de personagens principais. Os cossa-
cos exilados vinham de uma vivência colectiva em que os mitos eram mais
vívidos e vividos do que para um neo-burguês individualista. José Rodrigues
Miguéis mostra esse espírito colectivo cossaco tanto na amizade sincera de
Othon e Valódia como na relação com a Rússia-Mãe. Ao contrário da nobre-
za e da burguesia, os cossacos tinha uma ideia igualitarista de súbitos: viam-
-se como irmãos na subserviência devida ao czar.
Isto ilustra a vivência díspar do mito, quando a sociedade se mostra
dividida: cada grupo social vive o mito nacional à sua maneira e à sua medi-
da. Os pobres cossacos, usados e manipulados pelo exército czarista vivem a
sua “grandeza” como uma grandeza servil, como uma “grandeza” na qual
eles próprios se inserem como súbitos fiéis e obedientes. O mito é mais forte
no exílio, mas o mito é, ele próprio, um exílio.
Se os mitos clássicos, fazendo referência a uma era primordial, trans-
cendente e atemporal têm um sentido ideológico, a mitificação do poder
político evidencia ainda mais a sua carga ideológico-política. A função ideo-
lógica do mito (bastante estudada por Roland Barthes) tem, portanto, neste
romance uma expressão que o autor torna “palpável”. A inversão projectiva
do mito, que pretende apresentar como engrandecimento do povo o dos
grandes, de modelos, do poder que o subjuga, apenas o eleva o através da

6
Claude Lévi-Strauss (1978).
200 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

sua diminuição e o diminui numa aparência de elevação, que engrandece e


rebaixa aqueles que nele crêem, é a mitificação do servilismo.
O poder mitologizado é um poder que deve ser aceite dogmática e intei-
ramente. Esta projecção alienada do próprio povo, aparece como uma essên-
cia reificada deste, como um feiticismo. Todos os monarcas desprezam o
povo, mesmo que este seja monárquico. O máximo que o monarca faz é
concordar e alimentar o auto-desprezo do povo, o seu ajoelhar-se7. A fideli-
dade, a subalternidade, o servilismo aparecem, na relação invertida do mito,
como sinais de grandeza. A pretensa grandeza do povo é uma grandeza
enquanto função social de subserviência a algo grande, que tudo incorpora. É
esta a pretensa grandeza cossaca mitificada, que torna a identidade cossaca,
enquanto se mantém prisioneira desta alienação, uma identidade em-si, mas
não para-si8.
Os mitos clássicos eram narrativas situadas num tempo primordial em
que os acontecimentos adquiriam um carácter transcendente que, entretanto,
conferiam inteligibilidade ao presente. Também aqui, nesta mitologização da
história, o presente é aferido pelo mito, pelo cumprimento de um futuro que
nada mais é do que a eterna e imutável ordem legada pelo mito. Na história
mitologizada, a história enquanto criação das novas gerações não existe. O
seu sentido está determinado pelo passado.
A ideologia dominante frequentemente mitifica e mistifica a própria
história9. As possíveis similitudes com a mitificação da identidade portugue-
sa são mais do que muitas. Também a evocação do passado tem para a iden-
tidade portuguesa uma importância crucial e polissémica. A própria história
portuguesa é profundamente mitologizada, convivendo os factos históricos
com narrativas lendárias de encontros de dom Afonso Henriques com Cristo,
D. Fuas Roupinho e a lenda da Nazaré, com mistificações acerca dos mou-
ros, milagre das rosas, lendas de santo António, evocações míticas do quinto
império enquanto idade do espírito Santo, sebastianismo, Fátima, etc, num
todo em que a fantasia e realidade se entrecruzam. Este sincretismo de reali-
dade e ficção vive na cultura e aparece mesmo em historiadores e pensadores
idealistas, como Agostinho da Silva.
O mito acreditado é algo bastante diferente do mito apreendido critica-
mente. No mito acreditado somos ingénuas vítimas do mito, já no seu estudo

7
Refira-se, a titulo de exemplo, o servilismo e a humilhante auto-diminuição subser-
viente patente durante o recente Casamento real no Reino unido.
8
“La historicidad del hombre no reside en la facultad de evocar el pasado, sino en el
hecho de integrar, en su vida individual, trazos comunes a lo humano en general. El
hombre en tanto que praxis, está ya penetrado por la presencia de los otros (sus con-
temporáneos, precursores sucesores) y recibe y transforma esta presencia o bien adqui-
riendo su independencia, y con ella su próprio rostro y su personalidad, o bien perdien-
do su independencia o no alcanzándola (Kosik, K. 1991).
9
Ver as obras de Marc Ferro acerca desta questão.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 201

e compreensão somos sujeitos. O mito confere identidade, mas é uma identi-


dade alienada, que deve ser seguida, não construída. A descrença na narrati-
va literal do mito é um caminho de desenvolvimento da própria acção e da
individuação. Assim, para um desenvolvimento social e pessoal, há necessi-
dade de mudança de paradigma: só se compreende o mito não acreditando
literalmente no que ele nos faz crer, mas conhecendo verdadeiramente o seu
significado. Somente assim ele adquire dimensão histórica e até estética. Só
se conhece o mito se estivermos para além de uma atitude mitificada. Há
uma necessidade de demitologização, de demitificação, e, consequentemen-
te, de desmistificação tanto da história como da nossa própria identidade.

Referências
Campbell, Joseph (1990), O poder do mito, São Paulo: Palas Athena,
Durkheim, Emile (1968), Las formas elementales de la vida religiosa. Buenos
Aires: Editorial Schapire.
Fernandes, Florestan (1980). O mito revelado. Artigo publicado no Jornal “Fo-
lha de São Paulo” em 08/06/1980.
Hobsbawn, E (1998) Nações e Nacionalismo desde 1780. São Paulo: Paz e Ter-
ra.
Kosik, Karel (1991), El individuo y la historia. Buenos Aires: Editorial Alma-
gesto.
Lévi-Strauss, Claude (1971) Como morrem os mitos. In Science en conscience
de la société. París, Calmann-Lévy, vol. I.
Lévi-Strauss, Claude (1978) Mito e Siginificado. Lisboa: Edições 70
Marques, Teresa Martins (2006) in Jorge de Sena: ressonâncias, e cinqüenta
poemas (introdução e organização de Gilda santos). Rio de Janeiro:
7letras.
Marx, Karl e Engels, Friedrich (1976) Sobre a religião. Lisboa: Edições 70.
Migueis, José Rodrigueis (1985): Nikalai! Nikalai! Lisboa: Estampa.
I – NOTA INTRODUTÓRIA AO LIVRO IMAGINAÇÃO
E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA (1930),
DE LEV SEMENOVICH VYGOTSKY

João Pedro Fróis

В работу входит вводное исследование к труду Льва Семёновича Выготского


(1886-1934) “Воображение и творчество в детском возрасте” и перевод на
португальский язык шестой главы этого психологического очерка под
названием “Литературное творчество в школьном возрасте”. Перевод был
сделан из работы Л. С. Выгoтского "Психология развития ребёнка",
издательство Эксмо, 2004.
Ключевые слова: Л. С. Выготский (1886-1934), литературное творчество
детей.

O interesse de Lev Vygotsky (1886-1934) pela psicologia da arte, pela


estética teatral e pela educação estética acompanhou o seu breve e intenso
percurso científico. A importância que atribuiu à psicologia da criação e da
fruição artísticas foi afirmada no livro Psicologia da Arte (1925), estudo
apresentado com vista à titulação como investigador do Instituto de Psicolo-
gia de Moscovo. No ano seguinte, publicou a Psicologia Pedagógica, onde
incluiu um capítulo sobre Educação Estética. Em 1927-1928, foram publica-
dos dois artigos na revista Arte Soviética sob o título «Psicologia Contempo-
rânea e Arte».
O livro Imaginação e Criatividade na Infância–Ensaio Psicológi-
co e mais dois textos: «Imaginação e o seu Desenvolvimento na Infância» e
«Imaginação e Criatividade do Adolescente» que integram as Obras Com-
pletas foram escritos em 19301. Como encerramento deste ciclo sobre a psi-

1
As Obras Completas de Lev Vygotsky foram editadas na URSS entre 1982 e 1984. O
primeiro texto integra o vol. I (1982) e o segundo, o vol. II (1984). Em «Imaginação e
o seu Desenvolvimento na Infância», Vygotsky distancia-se de Wilheim Wundt (1832-
-1920) e recusa entender a imaginação apenas como um tipo de combinatória de
204 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

cologia, a estética e a pedagogia da criatividade, publicou, em 1932, um


importante texto – «Sobre o problema da Psicologia da Criatividade do
Actor».
Imaginação e Criatividade na Infância é uma obra de referência da
Psicologia da Criatividade2. O ensaio está organizado em oito pequenos
capítulos. Nos primeiros cinco capítulos, o autor examina os conceitos de
imaginação e de criatividade, a partir dos contributos teóricos de Pavel
Blonsky (1884-1941) no campo da linguagem, Anatoli Bakushinsky (1883-
-1939) e Georg Kerschensteiner (1854-1932) na área do desenho infantil,
Theodule Ribot (1839-1916) na psicologia da imaginação criadora e Lev
Tolstoi (1828-1910) na pedagogia da escrita criativa, tão do agrado deste
escritor.
Lev Vygotsky apresenta neste ensaio um «estado da arte» a partir de
uma análise psicológica e pedagógica; define conceitos, esclarece alguns
mitos e apresenta linhas inspiradoras para a investigação futura com utiliza-
ção de exemplos de modalidades expressivas, que as crianças apreciam: o
drama, o desenho, a leitura e a escrita criativa. Todos estes modos de expres-
são, que a criança no seu desenvolvimento elabora e a escola promove,
potenciam as funções psicológicas superiores e têm um natural significado
na educação da criança.
Nos últimos três capítulos apresenta exemplos concretos a partir de três
modalidades expressivas: a escrita, a dramatização e o desenho. As conclu-
sões e as exemplificações que usa interessam aos destinatários originais des-
te ensaio – pedagogos e psicólogos.
Não se pretende produzir, no espaço desta introdução, uma análise
exaustiva sobre a imaginação e a criatividade no âmbito da Psicologia Histó-
rico-Cultural de Lev Vygotsky. Põe-se em relevo cinco domínios que o
autor problematiza neste texto: problematização da relação entre a imagina-

impressões, puzzle irresolúvel, preexistentes na consciência. Em «Imaginação e Criati-


vidade do Adolescente» trata a criatividade e a imaginação a partir de um enfoque da
psicopatologia. Elabora teoricamente sobre as imagens eidéticas; define a imaginação
concreta em oposição à imaginação abstracta na adolescência, refere-se à formação de
conceitos visuais, compara a imaginação na infância e na adolescência e apresenta a
imaginação criativa como uma actividade de fusão entre cognição (pensamento) e
emoção.
2
Gunila Lindkvist (2003), Natália Gajdamaschko (1999, 2005), Valeria Mukhina (1981)
e Iurii Poluianov (2000) têm desenvolvido a interpretação de Lev Vygotsky sobre a
imaginação criativa em várias modalidades expressivas (Hakkarainen, 2004). Outras
edições surgiram em língua russa, respectivamente em 1967, 1991 e 2004 (Vygotskaya
& Lifanova 1996; Hakkarainen, 2004). A edição de 2004 foi incluída na colectânea de
textos de L. Vygotsky intitulada Psicologia do Desenvolvimento da Criança editada
pela Eksmo que serve a presente tradução. Por se tratar de um ensaio de divulgação
científica, segundo Vassily Davidov (1991) e Pentti Hakkarainen (2004), este texto não
integrou as Obras Completas (1982-1984). São conhecidas várias traduções: japonês
(1972), italiano (1973), espanhol (1982), sueco (1995) e inglês (2004).
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 205

ção e a criatividade; definição dos limites da relação entre a imaginação e a


realidade; clarificação de alguns dos mecanismos psicológicos de encadea-
mento entre a imaginação e a criatividade; comparação da imaginação criati-
va na criança e no adolescente; e por último, dos tormentos e inquietação
pela qual os indivíduos passam na concreção da imaginação.
No primeiro domínio, a imaginação e a criatividade articulam-se com a
experiência individual. No seu sentido lato, a imaginação e a criatividade estão
em qualquer dos âmbitos da vida dos indivíduos: nos mundos da cultura, artes,
técnica e ciência. A imaginação é, pela sua natureza, antecipatória, porque
possibilita ir além do apreendido directamente. Neste sentido a plasticidade
cerebral e a memória orgânica são factores decisivos dos nexos entre a capaci-
dade imaginativa da criatividade e a sua «antevisão das coisas».
Na imaginação distingue duas direcções: a imaginação reprodutiva liga-
da à memória e a imaginação criativa que ultrapassa a própria memória. Na
infância encontramos a alternância de uma e outra forma de imaginação
concomitante ao desenvolvimento intelectual, estruturada a partir das rela-
ções entre quantidade e qualidade das imagens mentais. Esta alternância, raiz
comum da expressão artística da criança é, para Vygotsky, evidenciada na
percepção sincrética do mundo que tanto fascina o «adulto atento» ao desen-
volvimento das crianças. Este tipo de sincretismo, o jogo e a actividade lúdi-
ca têm um papel preparatório para o desenvolvimento do pensamento analí-
tico, permanecendo ao longo da vida com o indivíduo. De facto, o jogo é a
primeira actividade em que a imaginação criativa surge, primeiro, orientada
pela percepção, a memória sensorial e o pensamento visual, depois, mediada
simbolicamente.
Para Vygotsky a actividade criativa é realização humana, geradora do
novo, quer se trate dos reflexos de algum objecto do mundo exterior, ou de
determinadas elaborações do cérebro e do sentir, que vivem e se manifestam
apenas no próprio ser humano. A imaginação, fundamento da actividade
criativa, revela-se, de modo claro, em todos os aspectos da vida cultural. Ela
é a abertura à criação artística, científica e técnica. A cultura, a técnica e a
ciência são, neste sentido, produtos da imaginação e da criatividade: «toda a
descoberta grande ou pequena antes de se concretizar e de se consolidar
esteve unida na imaginação como uma estrutura mental mediante novas
combinações ou correlações». O outro aspecto importante para Vygotsky
reside em que a criatividade tem uma origem social, veiculada através da
actividade de troca simbólica entre os indivíduos, palavras, ou através do
contacto com uma «pintura» ou da leitura de um texto literário; é historica-
mente determinada e faz parte de um sistema de significados mais complexo
que se modifica ao longo dos estádios de desenvolvimento humano3.

3
Lev Vygotsky discordou de Jean Piaget (1896-1980). Para Piaget, imaginação simbóli-
ca regulava-se por uma disposição emocional, egocêntrica, orientada pelo imediato
desejo de concretização e prazer (Gajdamaschko, 2005).
206 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Um dos aspectos que deve ser sublinhado diz respeito ao princípio cria-
tivo inerente ao desenvolvimento humano: ele é comum a todos os seres, é o
fulcro da vida das pessoas. Com alguma frequência reconhece-se que a acti-
vidade dos poetas e dos cientistas é «naturalmente» criativa, no entanto,
temos dificuldade em assumir o mesmo na actividade do «homem comum».
Vygotsky enfatiza a transversalidade do processo criativo aos vários grupos.
Ao considerarmos a criatividade deste modo, encontramo-la nessa situação
na infância e noutros períodos da vida; mas avisa que as formas de criativi-
dade mais elaboradas, específicas, se encontram presentes apenas em grupos
restritos de indivíduos e são reveladas precocemente.
O segundo domínio respeita as características, o tipo e a qualidade das
conexões criadas entre a imaginação e a realidade. Qualquer imagem mental,
por mais fantástica que seja, encerra sinais da realidade externa. Os traços da
imaginação fundam-se nas experiências precoces do homem: a primeira
forma de ligação entre a imaginação e a realidade faz-se a partir das primei-
ras experiências do sujeito com o «outro». É neste espaço entre a realidade
interna e externa, espaço potencial de desenvolvimento, que a imaginação
tem lugar. A segunda forma de ligação entre a imaginação e a realidade cor-
poriza-se no produto final da imaginação com os elementos complexos da
realidade. O quadro que se organiza na nossa mente sobre um qualquer acon-
tecimento, no qual não participámos, resulta do trabalho da nossa imagina-
ção. A imaginação (imaginatio) é, para Vygotsky, uma cognição sensível,
uma capacidade para a reprodução de impressões sensoriais, como Alexan-
der Baumgarten (1714-1762) a definiu. A terceira forma de ligação entre a
imaginação e a realidade é a emocional – «os psicólogos há muito notaram,
que cada sentimento tem não apenas uma expressão exterior corpórea, mas
também interior, que se mostra na escolha dos pensamentos, das imagens e
impressões».
A maior parte das imagens produzidas pela imaginação, quaisquer que
elas sejam, realizadas nos textos literários, nas obras artísticas, estão, de
facto, contaminadas e contaminam através desta lei psicológica da realidade
emocional que o autor formula neste texto. Por último, a quarta forma de
ligação, entre a imaginação e a realidade, enfatiza que a primeira pode criar
o novo, sem qualquer correspondência com a realidade, levando à formula-
ção da pergunta: para que serve afinal a obra artística?
O terceiro domínio que o autor propõe respeita a descrição do meca-
nismo psicológico da imaginação criativa. Ela integra as características sin-
gulares do objecto, as suas modificações, por exemplo, o exagero ou a subes-
timação das situações e dos elementos do texto – a ligação de elementos
imutáveis em novas imagens totais, a sistematização destas imagens, as
associações e as dissociações das impressões através da percepção, a sua
cristalização e corporização – «a paixão das crianças pelo exagero, tal como
dos adultos, tem fundamentos internos [psicológicos] muito profundos» –
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 207

que ora enfatizam, ora minimizam as necessidades e aspirações de cada um


de nós, alimentam-nos cognitiva e emocionalmente.
O quarto domínio caracterizador da problemática da imaginação criativa
diz respeito à relação entre a experiência e a criatividade na criança e no
adolescente. Neste âmbito, propõe uma separação entre a imaginação plásti-
ca que usa as impressões externas e a imaginação emocional que elabora a
partir do próprio sujeito. Esclarecemos que – «a imaginação da criança não é
mais pobre nem mais rica do que a do [adolescente] ou do homem adulto»,
refere Vygotsky – ela é desenvolvida ao longo do processo do crescimento
até atingir um certo tipo de maturidade, facto que deve, a todo o momento,
estar presente na mente dos educadores.
Por último Vygotsky fala da «angústia» que, quase sempre, advém do
acto de criação. Nem sempre o impulso para criar vai ao encontro da capaci-
dade exigida para a criação e, neste processo, há um sofrimento, quase sem-
pre sentido e consciente, inerente à tentativa de consecução das imagens
produzidas pela imaginação e sua urgência de materialização – «Não existe
no mundo tormento mais intenso do que o tormento da palavra; em vão, às
vezes, sai da boca um grito louco: inutilmente, por vezes, a nossa pobre lín-
gua pronta para queimar o amor frio e miserável», disse Fiodor Dostoievsky.
Neste ensaio, o desenvolvimento teórico sobre a imaginação e a criati-
vidade, foi organizado como um dos fundamentos da pedagogia da imagina-
ção criativa. Em todos os capítulos relaciona a teorização sobre a imaginação
e a criatividade com os exemplos das aprendizagens na área da escrita criati-
va da expressão dramática e do desenho. Para Vygotsky a pedagogia da cria-
tividade não pode ser reduzida à actividade educativa supletiva ou a uma
qualquer moralidade, como é sugerido por alguns; ou à expressão catártica,
que perpassa nos discursos daqueles, que aparentemente desejam a sua pre-
sença na escola. A pedagogia da criatividade é uma possibilidade real para o
desenvolvimento cognitivo e emocional dos indivíduos.

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II – A criatividade literária no período escolar, Lev Semenovich


Vygotsky
De todas as formas de criação literária, a verbal é a mais característica do
período escolar. É bem conhecido que na idade precoce todas as crianças pas-
sam por vários estádios do desenvolvimento do desenho. O desenho é a cria-
ção típica da idade infantil, principalmente da idade pré-escolar. Nesta fase as
crianças desenham muito, às vezes sem serem incitadas pelos adultos; às vezes
basta um pequeno estímulo para que a criança comece a desenhar.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 209

As observações mostraram que todas as crianças desenham, e as fases,


através das quais passam os seus desenhos são mais ou menos comuns para
as crianças da mesma idade. Nesta etapa da vida o desenhar é a actividade
que a criança mais gosta. No começo da idade escolar, o seu gosto e interes-
se pelo desenho começa a decair. Em muitos casos, as crianças, e até mesmo
na maioria das nossas crianças, este gosto mais ou menos autónomo pelo
desenho desaparece completamente se não for incentivado. Apenas se con-
serva esta propensão nalgumas crianças, melhore dotadas nesta área e igual-
mente nos grupos de crianças onde as condições de educação, em casa ou na
escola, são alvo de estímulo e atenção para o seu desenvolvimento. É evi-
dente que existe uma certa ligação interna entre a personalidade da criança
nesta idade e a sua predilecção pelo desenho. É manifesto que a concentra-
ção das forças criativas da criança no desenho não é um acaso, deve-se à
circunstância de ser o desenho o modo expressivo que nesta idade dá à
criança a possibilidade de expressar melhor o que a preocupa. Com a passa-
gem para outra fase do desenvolvimento, a criança eleva-se a um nível supe-
rior da sua idade; ela muda e com isso muda o carácter da sua criação.
O desenho fica para trás como uma etapa já vivida, e o seu lugar come-
ça a ser ocupado por um esforço novo, o da criação verbal ou literária, cria-
ção, que dominará sobretudo no período de maturação sexual do adolescen-
te. Alguns autores supõem que apenas a partir desta idade se pode falar da
criatividade verbal nas crianças no sentido específico desta palavra.
«A própria criatividade literária», diz o professor Soloviev4, «no sentido
genuíno da palavra tem a sua origem precisamente quando surge o despertar
da sexualidade. É necessária uma reserva de vivências pessoais, é necessária
a sua experiência pessoal, a capacidade para analisar as relações entre as
pessoas em várias situações para poder criar e exprimir através de palavras
algo seu e de novo (a partir de um ponto de vista próprio) encarnado e com-
binado pelos factos da vida real. A criança em idade escolar (precoce) não
pode ainda fazê-lo e, por isso, a sua criação tem também um carácter condi-
cional, e sob muitos aspectos é extremamente ingénua.»
Existe um facto fundamental que muito convincentemente mostra que a
criança deve amadurecer primeiro para chegar à criação literária. Apenas a
partir de um grau elevado de experiência acumulada e de um grau elevado da
acumulação do domínio da fala e num grau elevado do desenvolvimento do
seu mundo interior, a criação literária se tornará acessível. Este facto a que
nos referimos traduz-se no atraso que as crianças revelam do desenvolvi-
mento da linguagem escrita comparativamente com a linguagem falada.

4
I. M. Soloviev, professor de educação especial (surdos), colaborador de Lev S.
Vygotsky.
210 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

«Como é sabido», diz Gaupp5, «a expressão escrita dos pensamentos e


sentimentos dos alunos fica significativamente atrás da sua capacidade de os
expor verbalmente. Encontrar uma explicação para este facto não é fácil.
Quando falamos com um rapaz ou uma rapariga que se entusiasmam sobre
as coisas que lhes são familiares ao seu entendimento e interesses, então
vemos que habitualmente ouvimos deles descrições vivas e respostas acerta-
das. A conversa com elas torna-se num verdadeiro prazer. Mas se às mesmas
crianças for pedido para de um modo livre escrever sobre o assunto da con-
versa que tivemos mesmo agora, obteríamos apenas algumas frases escassas.
Como são monótonas, forçadas e pobres em conteúdo as cartas das crianças
para o seu pai ausente e como são vivas e ricas as descrições verbais quando
o pai regressa. Parece que no momento quando a criança pega na caneta o
seu pensamento é travado, é como se o trabalho de escrever a assustasse.
«Eu não sei o que escrever. Não me ocorre nenhuma ideia à cabeça» – é a
queixa frequente da criança. Daqui se depreende ser erróneo avaliar o nível
do seu desenvolvimento mental, sobre a sua inteligência, nos alunos dos
primeiros anos de escolaridade, a partir da qualidade das suas composições
escolares.
A explicação para esta falta de correspondência do desenvolvimento da
linguagem oral e escrita deve-se fundamentalmente à diversidade das difi-
culdades que a criança encontra para se exprimir de um e outro modo; quan-
do a criança está perante uma tarefa de maior dificuldade, tenta resolvê-la
com se fosse uma criança muito mais pequena.
«Basta complicar à criança o trabalho linguístico», diz Blonsky6, «dan-
do-lhe uma tarefa difícil, isto é, a de a obrigar a exprimir-se no papel, de
imediato vemos que a sua linguagem escrita se torna mais infantil do que a
linguagem falada: aparecem palavras desconectadas nas orações e aumentam
muito os modos imperativos. Podemos ver isto praticamente em tudo; quan-
do a criança executa um trabalho intelectual difícil, começa novamente a
manifestar todas as peculiaridades da idade de quando era mais jovem. Se
mostramos a uma criança de sete anos uma imagem com um conteúdo ade-
quado à sua idade e pedimos-lhe que fale sobre a mesma, ela falará como
uma criança de sete anos, isto é, diz o que se passa na imagem. Mas se lhe
mostrarmos uma imagem difícil, ela começará a descrevê-la como uma
criança de três anos, isto é, inicia simplesmente a nomeação dos objectos
representados na imagem sem os ligar uns aos outros.»
O mesmo acontece quando a criança passa da linguagem oral para a lin-
guagem escrita. A linguagem escrita é mais difícil porque tem as suas pró-

5
Robert Eugen Gaupp (1870-1953), psicólogo alemão. (Livro citado: Psikhologiia
rebenka [Psychologie des kindes]. Tradução do Alemão. 2.ª edição. Leningrad: Gosiz-
dat, 1926).
6
Pavel Blonsky (1884-1941), psicólogo e pedagogo russo.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 211

prias leis, que diferem, em parte, das leis do discurso oral e estas leis, e a
criança, em parte, ainda não domina bem essas leis.
Muitas vezes as dificuldades que a criança experimenta na passagem
para a linguagem escrita podem ser explicadas por razões internas muito
profundas. A linguagem falada é sempre compreensível para a criança; resul-
ta da comunicação viva com as outras pessoas; é uma reacção completamen-
te natural, é uma resposta ao que acontece à sua volta e a afecta pessoalmen-
te. Ao passar para a linguagem escrita, muito mais abstracta e condicional,
por vezes a criança não compreende para que é necessário escrever. A crian-
ça não detém uma necessidade intrínseca para a escrita.
Isto manifesta-se especialmente nas situações, quando a criança escreve
sobre temas atribuídos na escola. Na velha escola, o desenvolvimento da
criatividade para a escrita dos alunos das classes primárias seguia este curso:
o professor escolhia um tema para a elaboração de uma composição e as
crianças escreviam a composição aproximando a sua redacção, tanto quanto
possível, da linguagem literária dos adultos, ou do estilo dos livros que liam.
Tais temas eram estranhos à compreensão dos alunos, desligados da sua
imaginação e dos seus sentimentos. Não se davam às crianças exemplos de
como elas deveriam escrever e só em casos raros o próprio se referia a um
objectivo familiar e compreensível para a criança, ao seu alcance. Tais pro-
fessores, ao não orientar bem a criatividade literária das crianças, com fre-
quência, matavam a beleza espontânea, as particularidades e a vitalidade da
linguagem infantil e obstaculizavam a aquisição da linguagem escrita como
expressão particular dos seus próprios pensamentos e sentimentos, e incu-
tiam nas crianças, como dizia Blonsky, o jargão escolar, construído a partir
do inculcamento da repetição mecânica da linguagem livresca dos adultos.
«A arte principal do professor no ensino da língua», diz Tolstoi, «e o
principal exercício que deve ser usado na orientação das crianças para a
escrita de composições consiste na atribuição dos temas, mas não tanto na
indicação dos mesmos, assim como na oferta de uma grande variedade de
escolha dos temas, na indicação da extensão da composição e alguns exem-
plos literários iniciais. Muitos alunos inteligentes e talentosos escreviam
composições sem sentido como: “O fogo inflamou-se, começaram a arrastar
as coisas e eu fui para a rua” – o resultado desta escrita era nulo, apesar de o
tema da composição ser rico e ter deixado uma impressão profunda na crian-
ça. Elas não compreendiam o mais importante: por que motivo deviam
escrever e qual era a utilidade da escrita? Elas não compreendiam a arte – a
beleza de representar a vida na palavra e a atracção dessa arte.»7

7
Tolstoy, L.N. Komu u kogo uchit’sia pisat’, krest’ianskim rebiatam u nas ili nam u
krest’ianskikh rebiat? (Com quem se deve aprender a escrever, as crianças camponesas
connosco ou nós com as crianças camponesas?]. In L.N. Tolstoi, Sobranie sochinenii,
T. 15 (L.N. Tolstoy. Obas Completas. Vol. 15). Moscow, 1964.
212 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

O desenvolvimento da criatividade literária da criança torna-se imedia-


tamente mais fácil e bem-sucedida quando a criança é estimulada a escrever
sobre um tema que lhe é internamente compreensível, que a emociona e,
mais importante, que a desperta para a expressão do seu mundo interior atra-
vés da palavra. Muitas vezes a criança escreve mal porque não tem nada
sobre o que ela quer escrever.
«É necessário ensinar a criança», diz Blonsky, «a escrever apenas sobre
o que ela conhece bem, sobre o que ela pensou profundamente. Não há nada
pior para a criança do que lhe dar um tema sobre o qual ela pouco pensou e
sobre o qual ela tem pouco para dizer. Isto significa educar um escritor
superficial e oco. Para educar na criança o gosto pela escrita é necessário
desenvolver nele um grande interesse pelo que se passa à sua volta. A crian-
ça escreve melhor sobre o que mais lhe interessa, sobretudo quando ela
compreendeu esse assunto. É necessário ensinar à criança a escrever sobre o
que lhe interessa fortemente e sobre o que ela pensou muito e profundamen-
te, e conhece bem. Deve ensinar-se à criança a não escrever sobre o que ela
não sabe, não compreendeu e não está interessada. E a verdade é que, entre-
tanto, há professores que actuam completamente ao contrário, aniquilando
deste modo o potencial escritor na criança.»
Por essa razão Blonsky aconselha que se escolham os tipos de obras
literárias mais adequadas para crianças, como pequenas notas, cartas ou
pequenas histórias.
«Se a escola deseja ser educativa, então ela deve ter em atenção este
tipo de obras literárias. A propósito, as cartas (pessoais e de negócios) – são
as formas de escrita mais frequentes entre as pessoas. É evidente que o estí-
mulo para a escrita de cartas é a comunicação com os que estão longe.
Assim, a educação social pública motiva e educa a criança-escritor no mes-
mo sentido: quanto maior é o círculo de pessoas com o qual a criança está
ligada, maior é o estímulo para a escrita de cartas, o que faz com que as car-
tas falsas e artificiais, dirigidas a pessoas desconhecidas ou inexistentes, não
pareçam fazer algum sentido para a criança.»
Deste modo, a tarefa consiste em motivar a criança para a escrita e
seguidamente ajudá-la a dominar a técnica da escrita. Lev Tolstoi descreveu
uma experiência extraordinária relacionada com o despertar do gosto para a
escrita nos filhos dos camponeses, e na qual ele próprio participou. No artigo
que escreveu, «Quem deve aprender a escrever a partir de quem?» [Komu u
kogo uchit’sia pisat? – krest’ianski rebiatam u nas ili nam u krst’ianskih
rebiat]8, este grande escritor chegou à conclusão, à primeira vista paradoxal,
particularmente, de que somos nós os adultos, e mesmo para o grande escri-
tor como ele era, quem deve aprender a escrever com as crianças campone-
sas e não o contrário. Esta experiência de despertar o gosto pela escrita cria-

8
«As crianças camponesas a partir de nós ou nós a partir das crianças camponesas.»
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 213

tiva das crianças camponesas mostra, como decorre o processo da escrita


criativa na criança, como ela nasce e se desenvolve, e que papel pode nisto o
professor desempenhar quando deseja contribuir para o adequado desenvol-
vimento deste processo. A essência desta descoberta de Tolstoi consiste no
facto de ele ter detectado os traços da escrita das crianças característicos
apenas desta idade e ter compreendido que a verdadeira tarefa da educação
consiste, não em inculcar prematuramente na criança a linguagem dos adul-
tos, mas em ajudar a criança a desenvolver e formar a sua própria linguagem
literária. Tolstoi deu aos seus alunos a tarefa de escreverem uma composição
baseada no provérbio: «Ele alimenta-te com a colher e depois dá-te no olho
com ela...»
«Imagina» disse eu, «que o camponês tomou a seu cargo um pedinte e
depois, porque lhe deu ajuda, lhe atirou à cara o bem que lhe tinha feito,
concluindo-se daqui que quem “alimenta com a colher com ela pode bater no
olho”. De início as crianças recusaram-se a escrever, pensando que este
assunto não estava ao seu alcance, e foi Tolstoi, ele próprio, que escreveu a
primeira página:
«Qualquer pessoa imparcial», diz o escritor, «com sensibilidade artística
e gosto pela cultura popular, ao ler esta primeira página, escrita por mim, e
as outras páginas seguintes da história escritas pelas próprios alunos, distin-
guirá esta página por comparação com as outras, como o preto do branco:
uma vez que é falsa, artificial e escrita numa linguagem muito pobre...
Pareceu-me muito estranho que um rapaz camponês semiletrado de
repente mostrasse tal força artística consciente, que nem o próprio Goethe,
com o seu nível de desenvolvimento artístico, poderia alcançar. Isto pareceu-
-me tão humilhante e estranho que eu, o autor de Infância, com algum êxito
e reconhecimento do meu talento artístico pelo público letrado russo, não
pudesse contribuir artisticamente com nada, no sentido de ajudar ou mesmo
instruir o pequeno Semka ou o Fedka de onze anos de idade, senão só com
dificuldade, e graças a um surto afortunado da inspiração feliz, fui capaz de
acompanhá-los e compreendê-los. Isto pareceu-me tão estranho que eu não
acreditei no que ontem sucedeu.»
Como foi capaz Tolstoi de despertar nestas crianças, que antes não
tinham qualquer ideia sobre a escrita criativa, a capacidade para se expressa-
rem neste modo complexo e difícil? As crianças começaram a criar colecti-
vamente. Tolstoi começava a narrar-lhes e eles davam-lhe sugestões.
«Uma das crianças dizia que o velho era um bruxo; outro dizia: não, não
é necessário – ele será apenas um soldado; ou não, é melhor que ele os rou-
be; não, isto não corresponde ao provérbio, etc. – diziam elas.» Todas as
crianças participaram na redacção da composição; ficaram interessadas e
atraídas pelo próprio processo da composição e isto foi o primeiro impulso
na direcção da inspiração criativa. «Aqui» escreve Tolstoi, «é óbvio que as
crianças, pela primeira vez, sentiram o encanto da impressão causada,
214 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

obviamente estavam a experimentar o encanto de captar os pormenores artís-


ticos através das palavras.» As crianças compunham, criavam personagens,
descreviam a sua aparência, uma série de pormenores, episódios isolados e
tudo isto estava feito numa linguagem clara em certa forma. «Os seus olhos
brilhavam quase lacrimosos» escreve Tolstoi, sobre um rapaz que estava a
compor a história, «as suas mãos sujas e pequeninas torciam-se; ele zangava-
-se e insistia continuadamente comigo: escreveste, escreveste? Perguntava
ele.» Tratava as outras crianças de modo despótico e irritado, queria ser o
único a falar, não a falar do modo habitual das pessoas que o fazem, mas a
falar como escrevem, isto é, de forma artística, imprimir através da palavra
imagens e sentimentos; por exemplo, não suportava a modificação da ordem
das palavras escritas, dizendo: «Tenho nas pernas feridas», e não: «Tenho
feridas nas pernas». Neste último exemplo vemos como era forte o sentimen-
to da forma verbal nesta criança, que, pela primeira vez, tinha abordado a
criação escrita, o sentido da forma verbal.
A alteração das palavras e a sua ordem é para a literatura o mesmo que
a melodia para a música, ou o fragmento para a pintura. E o sentimento deste
desenho verbal, dos detalhes picturais, do sentimento da proporção – tudo
isto, de acordo com Tolstoi, foi na criança claramente expresso em grau ele-
vado. A criança representava quando escrevia; quando pronunciava as pala-
vras dos personagens; às vezes falava «num tom cansado e calmo, sério e, ao
mesmo tempo, benevolente, apoiando a sua cabeça com a sua mão, que as
outras crianças se rebolavam de tanto rir.» Esta colaboração real entre o
escritor adulto e as crianças foi por ela compreendido como um verdadeiro
trabalho conjunto, no qual elas se sentiam no mesmo plano dos adultos.
«Vamos publicar o texto?», perguntou um rapaz a Tolstoi. Assim, tal como é
necessário publicar as obras de Makarov, Morozov e Tolstoi. Isto revela na
atitude da criança a co-autoria em relação à composição escrita em comum.
«Não seria possível errar», diz Tolstoi. «Isto foi um acidente, mas da
criação consciente de uma obra... Não encontrei nada que fosse parecido
com estas páginas na literatura russa.»
Na base desta experiência, Tolstoi ia ao ponto de defender o seguinte:
segundo ele, para se desenvolver a escrita criativa das crianças é apenas
necessário dar-lhes estímulo e material para a criação. «Tudo o que a criança
necessita de mim é do material para se preencher de modo harmonioso e
cabal. Assim que eu lhe dei a liberdade completa, parei de o instruir, ele
escreveu um trabalho poético, nunca visto na literatura russa. E por isso,
estou convicto de que não deveríamos ensinar as crianças em geral e as
crianças rurais em particular a escrever e a compor poeticamente.
Se o que eu fiz para alcançar estes objectivos pode ser designado como
técnicas, então as técnicas eram as seguintes. Primeiro: oferecer-lhes a maior
e mais vasta escolha de tópicos sem os inventar, mas sugerir às crianças os
temas mais sérios que interessam o próprio professor. Segundo: dar a ler às
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 215

crianças composições infantis e apenas este tipo de textos como modelos.


Terceiro (muito importante): quando se examina as composições das crian-
ças não se deve fazer críticas sobre o asseio do caderno ou sobre a caligrafia
ou a ortografia e, especialmente, sobre a construção frásica ou a sua lógica.
Quarto: uma vez que a dificuldade em redigir consiste não no volume ou
conteúdo, mas no valor artístico do tema, então a sequência em que os temas
são apresentados devem ser determinados não pelo volume, não pelo con-
teúdo, não pela linguagem, mas pela natureza do mecanismo que subjaz ao
trabalho criativo.»
Por mais instrutiva que seja a experiência de Tolstoi, a interpretação que
faz da sua experiência mostra uma idealização da natureza da criança e uma
atitude negativa em relação à cultura, e à criação artística, que caracteriza-
ram as suas ideias ético-religiosas no último período da sua vida. De acordo
com a teoria e os pressupostos reaccionários de Tolstoi:
«O nosso ideal não está no futuro mas no passado. A Educação estraga
e não melhora as pessoas; ensinar e educar a criança é impossível e absurdo
pela simples razão de a criança estar mais perto do que eu, mais próxima do
que qualquer adulto do ideal de harmonia, verdade, beleza e bondade, até ao
qual, eu, no meu orgulho, desejo elevá-lo. A consciência deste ideal é mais
forte nele do que em mim.»
Este é um vestígio da teoria de Rousseau, ultrapassado há muito pela
ciência. «O homem nasce perfeito» – esta é a grande frase de Rousseau e
esta expressão, como pedra, mantém-se dura e verdadeira. – «Ao nascer, o
homem é um protótipo da verdade, da harmonia, da beleza e da bondade.»
Nesta visão incorrecta da natureza da criança está encerrado o segundo
erro que Tolstoi comete em relação à educação. Se a perfeição está antes de
nós e não à frente, então é completamente lógico negar o significado, o sen-
tido e a possibilidade da educação. No entanto, será suficiente rejeitarmos a
primeira proposição, não confirmada pelos factos, para se tornar claro que a
educação em geral e, em particular, a educação para a criatividade literária
nas crianças é não apenas possível, como é, de modo absoluto, inevitável. É
também fácil de ver, mesmo a partir do nosso relato, o que Tolstoi fez com
as crianças camponesas não pode ser chamado outra coisa que não fosse
facultar-lhes uma educação literária. Ele despertou nas crianças um método
de expressão da sua experiência pessoal e da sua atitude em relação ao mun-
do; com as crianças construiu, compôs, combinou, contagiou-as emocional-
mente, deu-lhes um tema, quer dizer, na sua essência, orientou todo o pro-
cesso da criação, mostrou-lhes os métodos da criação, etc. Ora, tudo isto,
para todos os efeitos é educação no sentido mais puro e autêntico deste con-
ceito.
A compreensão adequada e científica da educação não é inculcar artifi-
cialmente, de fora, nas crianças os ideais, sentimentos ou estados de espírito
alheios. A verdadeira educação consiste em despertar na criança aquilo que
216 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

ela já tem em si e ajudá-la a desenvolvê-lo, e orientar o seu desenvolvimento


numa determinada direcção. Tolstoi fez tudo isto com as crianças de que nos
fala. O que é mais importante para nós não é a teoria geral de Tolstoi sobre a
educação; interessa-nos sobremaneira a sua maravilhosa descrição do des-
pertar da criatividade literária apresentada nas páginas que evocámos.
Que as crianças escrevem com maior desejo quando se manifesta nelas
necessidade para a escrita, é muito evidente na criação das crianças abando-
nadas. As criações verbais destas crianças, na maior parte das vezes, assu-
mem-se sob a forma de canções, que entoam e reflectem todos os aspectos
da sua vida, sendo na maioria canções profundamente tristes e melancólicas.
Como Pushkin disse: «Do cocheiro até ao mais sublime e puro poeta, todos
nós cantamos canções tristes.» Nas canções da criança abandonada reflecte-
-se toda a dimensão obscura e difícil da sua vida. A prisão, a morte precoce
ou a doença, orfandade, abandono, desamparo – são estes os motivos perma-
nentes destas canções, ainda que, por vezes, se revele também nestas can-
ções outro motivo de nota, um género de coragem, jactância, que promove a
exortação dos seus feitos:

«Chegou a noitinha escura,


Peguei num cinzel,
E num triz tirei o vidro e
Entrei numa casa bonita»

cantava um rapaz abandonado. Mas, mesmo neste exemplo, o que nós ouvi-
mos é uma resposta natural a uma infindável dificuldade da sua vida miserá-
vel, da inevitabilidade e obstinação do seu destino.

«Houve tempo, quando quis a vossa mão de ajuda encontrar,


Mas agora que a minha alma empederniu, decidi eu roubar.
Cospem, lançam pedras, eu, habituado a tudo, aguento tudo,
E não espero pela vossa pena, ninguém se preocupa comigo.»

Há alguns anos atrás realizou-se uma tentativa muito interessante de


recolher as autobiografias das crianças abandonadas. Anna Grinberg reco-
lheu cerca de setenta histórias escritas por crianças de rua com catorze e
quinze anos.

«Sobre a sua vida todas as crianças escreveram com muito interesse», diz a
autora deste livro. Escreveu: «Algumas eram pouco letradas ou iletradas,
que apesar de todas as dificuldades irrompiam-se para chegar às mesas, ao
papel, e às canetas, parcimoniosamente distribuídas; lutavam por um lugar à
mesa e caneta, e feito o gesto de benzer, durante várias horas respeitosa-
mente e cuidadosamente escreviam, pedindo ajuda dos seus vizinhos, rees-
crevendo e comparando com páginas impressas de um livro despedaçado.
Nestas histórias, com a excepção daquelas onde as crianças queriam abrir-
-se completamente e ficavam caladas ou incrédulas, manifesta-se o traço
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 217

principal de todas as criações deste género. Existe alguma coisa acumulada


dentro da pessoa dorida, que tenta exteriorizar-se, reclama expressão, que
quer sair através das palavras. Quando a criança tem alguma coisa para
escrever ela escreve-o com extrema seriedade.»
«Com isto termino a minha escrita», escreveu uma das meninas, «eu gos-
taria, podia escrever mais, mas isto é apenas um terço daquilo que eu vivi.
Hei-de lembrar-me desta minha vida durante muito tempo!»

Se tivermos em atenção não a semelhança exterior mas a interior,


encontramos nestas histórias quase os mesmos traços da escrita criativa das
crianças a que Tolstoi se refere. Exteriormente, quanto ao conteúdo e à lin-
guagem, estas histórias diferem profundamente das histórias de Tolstoi sobre
Fedka e Semka. Do mesmo modo é diferente a época em que viveram, o
meio no qual cresceram e a experiência de vida que tiveram umas e outras
crianças. Mas a seriedade autêntica da linguagem utilizada testemunha a
necessidade actual de se exprimir pela palavra. A clareza e individualidade
da linguagem infantil é muito diferente da linguagem estereotipada da lin-
guagem literária dos adultos. A emocionalidade sincera e a imaginação con-
creta destas histórias evocam os traços análogos detectados nas histórias das
crianças camponesas, de que Tolstoi falou. Uma das crianças acrescentou a
seguinte nota à sua autobiografia, que exprime o profundo sentimento e a
especificidade autêntica das experiências associadas com a sua composição
literária: «As memórias e a saudade da minha casa na província de Vologda
na aldeia de Vymsk, na floresta perto do rio.»
É muito fácil compreender a ligação que existe entre o desenvolvimento
da criação literária e a idade de transição da adolescência. O facto mais
importante desta idade é o despertar da sexualidade. A partir deste aspecto
central e fundamental podem ser explicados todos os outros, relacionados
com esta característica essencial desta idade; é graças a este facto que faz
desta idade um período crítico na viragem da vida da criança. Neste período
da vida da criança entra em cena um novo e poderoso factor constituído pelo
despertar da sexualidade e do instinto sexual. O anterior equilíbrio estável do
período inicial da escola foi entretanto destruído, enquanto um novo equilí-
brio ainda não pôde ser encontrado. Esta ruptura do equilíbrio anterior e a
procura de um novo equilíbrio forma a essência da crise que a criança expe-
rimenta nesta idade. Mas em que consiste a natureza desta crise?
A resposta a esta pergunta não foi até hoje encontrada pela ciência com
a devida acuidade. Alguns consideram que a principal característica desta
crise é a astenia, a fragilidade da constituição e do comportamento da crian-
ça, que a atinge neste período crítico. Outros, pelo contrário, acreditam que
na base desta crise está o aumento poderoso da energia vital que envolve
todos os aspectos do desenvolvimento infantil e que esta fase critica é apenas
consequência do aumento deste poder criativo. Sabemos que nesta idade o
adolescente cresce rapidamente, aproximando-se de modo rápido do tama-
nho e da estrutura corporal adulta.
218 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Todo um novo mundo de experiências íntimas, impulsos e aspirações se


abre nesta idade; a vida interior torna-se infinitamente mais complexa quan-
do comparada com a dos primeiros anos da infância. As suas relações com
os que estão à sua volta tornam-se muito mais complexas; as impressões do
mundo exterior são alvo de uma análise profunda. Há um traço muito óbvio
no comportamento do adolescente directamente relacionado com a tendência
para a criatividade literária deste período – é a intensificação da emocionali-
dade, o aumento da excitabilidade dos afectos na adolescência. Quando o
comportamento humano tende para condições conhecidas e para o invariável
não se detecta neste qualquer emoção visível ou forte. Geralmente, estamos
calmos ou indiferentes quando agimos em meio conhecido; mas quando o
equilíbrio no comportamento é quebrado, surge de imediato uma reacção
forte e vivaz, a reacção emocional. As emoções e a ansiedade surgem em nós
sempre que o nosso equilíbrio é rompido.
Se esta ruptura se traduz no reforço da nossa posição e na ultrapassagem
relativa das dificuldades com as quais nos confrontámos, em geral, sentimos
emoções positivas: felicidade, orgulho, etc. Se, pelo contrário, este equilíbrio é
perturbado não nos beneficiando, se as circunstâncias são mais fortes do que
nós, e nos sentimos em seu poder, conscientes da nossa insegurança, fraqueza,
fragilidade, humilhação, surgem em nós emoções negativas: cólera, medo,
tristeza. É completamente compreensível que os períodos críticos da vida
humana, os períodos onde há momentos de mudança e reestruturação interna
da personalidade sejam especialmente ricos em reacções emocionais ou em
sentimentos. A segunda parte da idade escolar é a época da maturação sexual e
constitui-se como uma mudança, uma crise interna no desenvolvimento da
criança, que se caracteriza pelo agravamento e o crescimento da intensidade e
a labilidade das emoções: como já aludimos, o equilíbrio entre a criança e o
meio que a circunda rompe-se nesta idade devido à ocorrência de um factor
novo, que até então não se fazia sentir com tanta acuidade como agora.
Esta é a fonte da instabilidade emocional desta idade que explica, em
certa medida, o facto de ao aproximar-se desta idade a criança substituir o
desenho, a sua forma favorita de actividade criativa no período pré-escolar,
pela criatividade das palavras. A palavra permite mais facilmente do que o
desenho transmitir as relações complexas do seu sentir, nomeadamente as de
natureza interior. A linguagem verbal também é melhor para expressar o
movimento, a dinâmica e a complexidade de algum acontecimento do que o
infantil e imperfeito desenho da criança. Por isso o desenho infantil, que é
uma actividade completamente adequada aos estádios da relação simples e
pouco complexa da criança com o mundo, é substituído pela palavra, meio
de expressão correspondente a uma relação mais profunda e complexa com o
mundo interior da criança em relação à vida, em relação a si mesma e aos
outros. Surge então uma questão fundamental: que atitude devemos adoptar
em relação à sobre-emocionalidade desta idade de transição? Como é que a
podemos avaliar? Como um facto positivo ou um facto negativo? Existe nela
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 219

alguma coisa de patológico, que leva as crianças inevitavelmente ao isola-


mento, ao fechamento sobre si mesmo, à contemplatividade, à fuga da reali-
dade, de acordo com o que é visível frequentemente nesta idade, ou esta
emocionalidade pode ser um factor positivo, que enriquece infinitamente e
alarga as relações da criança com o seu mundo externo? Nada de importante
ou de grande na vida se faz sem sentir uma grande emoção.
«A educação artística», diz Pistrak9, «dá não tanto o conhecimento nem
aptidões, mas o tom para a vida ou, talvez, o fundo para a actividade vital.
As convicções que nós podemos assimilar na escola através dos conheci-
mentos, apenas poderão criar raízes no psiquismo da criança quando estas
convicções são reforçadas emocionalmente. Não se pode ser um lutador
convicto se no momento da luta não houver no cérebro imagens claras, fortes
e inspiradoras para a luta; não se pode lutar contra o que é velho sem saber
odiá-lo e a capacidade para odiar é também emoção. Não se pode construir o
novo com entusiasmo se não se amar com entusiasmo o novo, e o entusias-
mo é resultado de uma educação artística adequada.»
F. Giese10 realizou antes da guerra uma investigação sobre a criação
literária das crianças em diferentes idades. Teve acesso a mais de três mil
trabalhos escritos por autores com idades compreendidas entre os cinco e os
vinte anos de idade. Este estudo foi realizado na Alemanha antes da guerra e,
por essa razão, os resultados não podem ser extrapolados para nós, uma vez
que o estado de espírito, os interesses e todos os factores dos quais depende a
escrita criativa são diferentes daqueles com os quais Giese lidou na sua
investigação. Além disso, como o seu estudo foi total e em grande escala,
limitou-se a um geral e superficial escrutínio das composições e poesias
infantis, identificando os estados de espírito dominantes e as formas literá-
rias predominantes nas várias idades. No entanto, estes resultados podem ter
para nós um interesse decisivo como primeira tentativa de análise geral da
escrita criativa das crianças e como dados, em que se reflectem determinadas
características etárias que, sob uma forma ou outra, numas condições ou
noutras, podem manifestar-se em nós.
Por fim, estes dados têm interesse porque nos dão material para os
comparar com os nossos. Os resultados que o autor cita demonstram como
variam na prosa e na poesia dos rapazes e raparigas os temas principais em
função da idade. A experiência pessoal pouco se reflecte na poesia dos rapa-
zes e das raparigas; na prosa, pelo contrário, a temática pessoal ocupa um
lugar dominante, o que é claro quando comparado com os catorze e os quin-
ze anos de idade. Nos rapazes, durante estes dois anos, a percentagem de
prosa relativa à experiência pessoal sobe de 23,1% para 53,4%, e nas rapari-

9
Pistrak, Moiseii Mikhaĭlovich (1888–1937), pedagogo e educador russo.
10
Fritz Giese (1890-1935), psicólogo alemão. (Livro citado: Kinderpsychologie. In
Handbuch der Vergleichende Psychologie, Jena, 1922). (N.T.)
220 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

gas de 18,2% para 45,5%, isto é, aumenta mais do dobro, enquanto que a
proporção destes temas na poesia nos rapazes e nas raparigas de dezasseis e
dezassete anos é nula. A proporção relativamente alta de temas tomados da
experiência pessoal nas crianças mais novas é explicada pelo facto de Giese
incluir nesta categoria todos os acontecimentos triviais, episódios do dia-a-
-dia, como por exemplo um fogo, uma viagem fora da cidade, a visita a um
museu. Apenas 2,6% na prosa e 2,2% nos versos são relativos aos aconteci-
mentos ocorridos na escola, o que demonstra o grau de insignificância que os
acontecimentos ocorridos na escola tocam a vida interior das crianças. Os
temas eróticos, pelo contrário, estão mais representados na poesia do que na
prosa; os motivos eróticos ocorrem mais cedo nas raparigas do que nos rapa-
zes: aos doze, treze anos de idade. Enquanto que nos rapazes a percentagem
desta temática é nula, ela alcança o montante de cerca de 36,3% na escrita das
raparigas, decaindo entre os catorze e os quinze anos; aumenta aos dezasseis,
dezassete anos e, novamente, mais nas raparigas do que nos rapazes.
«O mundo dos contos de fadas», diz Giese, «é claramente o mundo da
poesia feminina, que os rapazes ignoram.»
É muito interessante observar a presença insignificante de motivos
sociais na poesia e prosa destes jovens autores alemães. Estes temas estão
ausentes na poesia em todas as idades, enquanto que na prosa alcançam uma
percentagem muito pouco significativa, constituindo cerca de 13,8% nas
raparigas aos doze e treze anos de idade (máximo). Chama a atenção para o
incremento do coeficiente dos temas filosóficos na poesia, o que, sem dúvi-
da, se relaciona com o despertar do pensamento abstracto e o interesse por
questões abstractas nesta idade. Por fim, o coeficiente do tema dedicado à
natureza na poesia e prosa entre raparigas e rapazes está bem representado.
As raparigas de nove anos de idade dedicam a maior parte dos seus tra-
balhos a este tema e os rapazes de treze e catorze anos de idade escrevem
sobre a natureza em metade dos seus trabalhos. As crianças alemãs dedica-
ram uma elevada percentagem dos seus trabalhos aos temas religiosos,
sobretudo as raparigas. No entanto, este tema diminui em percentagem perto
dos 16 anos de idade.
Os dados que comparam os temas e os pontos de vista das crianças nos
seus trabalhos escolares e os da criação livre têm muito interesse. Concluí-
mos que os mesmos temas surgem distribuídos não de modo proporcional
em dois tipos de escrita criativa: o tema heróico, por exemplo, representado
na idade escolar por uma elevada percentagem, cerca de 54,6 %, reduz-se na
escrita livre para 2,4%. Pelo contrário os temas eróticos e filosóficos ocor-
rem apenas em 3% das composições escolares, mas elevam-se a 18,2% e
29% nas composições livres. O mundo dos contos de fadas está representado
neste tipo de criação quinze vezes menos nas composições escritas em casa
do que nas composições escolares. E, por fim, os designados temas restantes,
não figurados na poesia escolar, estão representados em cerca de 28,1% fora
da escola e em casa. Também não coincide o humor das crianças mostrado
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 221

nestes dois tipos de criação. Assim, por exemplo, o humor triste e sério está
representado nas composições cinco vezes mais nos textos escritos na escola
do que em casa. Esta comparação tem uma importância significativa porque
mostra até que ponto a escrita criativa da criança é estimulada e alterada pela
acção de influências exteriores e de que forma ela assume quando é autoge-
rada e deixada a si própria.
A conclusão seguinte refere-se aos dados da presença do humor domi-
nante nas composições literárias analisadas por Giese. A partir destes resul-
tados é fácil ver que os estados de espírito de abatimento e de tristeza se
encontram muito raramente na criação literária das crianças e que os estados
de espírito alegres prevalecem. Assim, se na poesia dos rapazes um e outro
estado estão próximos – 5,9% e 5,2% – em proporção semelhante, nas rapa-
rigas o humor alegre encontra-se em 33,4%, e o humor soturno apenas em
1,1%; na prosa, nos rapazes, dez vezes mais, e nas raparigas o valor é seme-
lhante – predomina a disposição alegre. É de notar a percentagem insignifican-
te do humor aventureiro, porque este género é difícil para a criação das crian-
ças; do mesmo modo o humor cómico e crítico é insignificante quando con-
firmado pela baixa percentagem dos temas satíricos. Mas será necessário sub-
linhar que o humor prevalecente é o factor que mais facilmente se modifica na
escrita criativa da criança e, por isso, nos exemplos referidos, devem ser ape-
nas considerados como indicadores genéricos dentro desta problemática.
Seria desejável que entre nós a escrita criativa das crianças fosse tam-
bém estudada, evidenciando deste modo quais os temas prevalecentes e os
humores nas composições das nossas crianças. Os dados seguintes caracteri-
zam as formas literárias mais frequentes na criação infantil.
Como era esperado, o mais frequente é o relatório ou o ensaio, quer
dizer, a escrita de comunicação prática; em segundo lugar, está a história e
em terceiro lugar o conto. A percentagem de trabalhos relacionados com o
drama (0,1%) e a escrita de cartas (1,9%) são extremamente baixos. Este
último resultado explica-se, porque esta é, no seu sentido psicológico, a for-
ma mais natural da escrita infantil e a menos cultivada na educação tradicio-
nal da criança. Os dados sobre a forma gramatical e o volume das composi-
ções infantis não deixam de ter interesse. Com a idade aumenta a extensão
dos trabalhos das crianças. Uma avaliação do número médio de sílabas na
poesia e na prosa, dos rapazes e das raparigas de várias idades, mostrou que
o aumento em termos externos das composições está dependente do seu con-
teúdo. Shneyerson, ao estudar a criatividade infantil, concluiu que nem o
drama nem a poesia são formas naturais para a criança. No seu entender, se
encontramos estas formas na criação infantil é porque elas são fundamen-
talmente o resultado das influências externas. Por outro lado, a prosa é, em
sua opinião, o género mais adequado à criação da criança. Os dados de V. P.
Vakhterov11 sobre este problema geraram os resultados seguintes: 57% das

11
Vassili Vakhterov (1853-1924), pedagogo russo. (Livro citado: Osnovy novoi pedago-
giki [Os Fundamentos da Nova Pedagogia]. Moskva: I. D. Sytin, 1911). (N.T.)
222 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

crianças estudadas escreviam em verso, 31% em prosa e 12% escreviam em


forma de drama. É sabido que a riqueza da forma gramatical da linguagem
infantil é um factor muito importante para a apreciação da expressão literária
infantil. Os psicólogos há muito estabeleceram que o período da fala não-
-gramatical da criança é um período especial e particular do desenvolvimen-
to da linguagem infantil.
De facto, a ausência das formas gramaticais no discurso é um sinal claro
de que no pensamento verbal da criança e na sua representação faltam as
indicações relativas às relações e associações entre os objectos e os fenóme-
nos, uma vez que são as formas gramaticais os signos usados para afirmar
estas associações e relações. É por isso que o período do surgimento das
orações subordinadas no discurso da criança, segundo Stern, assinalam a
entrada na quarta e mais elevada fase do desenvolvimento do discurso da
criança, porque a presença das orações subordinadas põe em evidência o
domínio pela criança de relações complexas entre diferentes fenómenos. V.
P. Vakhterov, que se ocupou da análise deste aspecto do discurso da criança,
chegou aos seguintes resultados. O seu estudo identifica duas etapas: a dos
quatro aos oito anos de idade e a dos nove aos doze anos e meio de idade.
Nestas etapas as crianças utilizam as declinações de modo diferente. É fácil
observar a partir destes dados o seguinte: à medida que a criança se desen-
volve, aumenta o uso de declinações indirectas, o que é a demonstração clara
de que a criança passa a uma etapa da compreensão das relações que a decli-
nação transmite na forma gramatical. A análise do discurso da criança do
ponto de vista do uso que ela faz dos elementos da proposição conduz a uma
conclusão semelhante.
De novo, os dados mostram-nos que a criança aumenta o uso dos ele-
mentos gramaticais como circunstâncias determinativas e complementares
de lugar, tempo, etc. «O desenvolvimento mental da criança não se caracte-
riza apenas pela aquisição de conceitos qualitativos e quantitativos, mas
igualmente pelas associações quantitativas e qualitativas destes conceitos.
Quanto mais desenvolvida for a criança, maior é o número de conceitos e
ideias que ela pode juntar num todo unificado. O tempo presente e especial-
mente o futuro é mais utilizado nas crianças de menor idade do que nas de
maior idade. O uso do passado aumenta com a idade. Quanto mais nova é a
criança, mais ela vive, aparentemente, na esfera do esperado, previsto e dese-
jado e igualmente na esfera do vivido e do presente próximo.
Mas à medida que a vida da criança se torna mais longa, mais frequen-
temente ela recorre às experiências vividas, e então deparamo-nos com o
fenómeno contrário: no que respeita aos tempos do futuro e ao presente,
existem menos expressões verbais do que ao tempo passado.»
Todos os investigadores estão unanimemente de acordo quando dizem
que as crianças de idade mais precoce usam muito frequente e profusamente
os pronomes pessoais. Shlag diz: «Se cada palavra fosse pronunciada pela
criança de 7-8 anos, em média, cinco vezes e meia, então o pronome pessoal
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 223

singular seria pronunciado cem vezes mais – 542 vezes e os pronomes pes-
soais na segunda pessoa com uma frequência 25 vezes maior – 135 vezes.»
Gaupp sublinha que as crianças dos quatro aos seis anos de idade, quanto mais
desenvolvidas forem, com maior frequência utilizarão as orações subordina-
das. Alguns autores propõem dividir em três períodos o desenvolvimento da
criatividade infantil: o primeiro período é o da expressão oral, que se prolonga
dos três aos sete anos de idade; o segundo período é o da expressão escrita,
que se prolonga dos sete à adolescência e, por fim, o período literário, que se
estende desde o fim da puberdade à idade da juventude. É preciso dizer que,
no fundamental, esta divisão corresponde de facto à realidade, uma vez que,
como já sublinhámos, o desenvolvimento do discurso oral ocorre mais cedo do
que o desenvolvimento da linguagem escrita. No entanto é muito importante
notar que esta superioridade da linguagem oral sobre a linguagem escrita con-
tinua depois de o primeiro período da expressão oral ter terminado. No seu
desenvolvimento subsequente, as crianças expressam-se oralmente com mais
brilho expressivo do que através da escrita.
A transição para a linguagem escrita imediatamente obscurece e dificul-
ta a sua linguagem. O investigador austríaco Linke chegou à conclusão de
que se comparássemos as produções escritas e orais das crianças, constata-
ríamos que o modo como a criança de sete anos escreve é equivalente ao
modo como uma criança de dois anos fala, isto é, o desenvolvimento mani-
festo da criança recua para um nível inferior da linguagem oral na passagem
a uma forma escrita mais difícil. É um facto extremamente notável que as
composições das crianças camponesas, que Tolstoi tanto admirava, não eram
mais do que exemplos da sua expressão verbal. As crianças falavam e Tols-
toi escrevia o que elas diziam e, nas suas notas, registava todo o encanto do
discurso oral infantil. Nestas histórias revelava-se ainda uma característica
original e importante da criação infantil a que alguns autores chamam sincre-
tismo, que se revela no facto de a criação infantil não estar ainda muito dife-
renciada em relação às várias modalidades artísticas, nem em função das
diferentes formas literárias; os elementos da poesia, da prosa e do drama na
produção infantil unem-se num todo.
O processo da escrita criativa que Tolstoi descreveu está muito próximo
pela sua forma do teatro. A criança não apenas ditou a história, mas também
a descreveu e representou os protagonistas da própria história. Nesta ligação
da criação oral e a arte dramática, como adiante veremos, está alicerçada
uma das mais originais e produtivas formas de criação artística na infância.
Um interessante exemplo da expressão verbal foi-nos dado pelo Profes-
sor Soloviov. Diz ele que o discurso escrito de uma criança em idade escolar
é «muito mais pobre e esquemático» do que o discurso oral. É como se esti-
véssemos na presença de dois tipos de reacções verbais. Uma rapariga cam-
ponesa de oito anos e meio, ainda que fosse capaz de escrever, nunca escre-
veria de modo a corresponder cabalmente aos seus pensamentos. Depois de
224 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

ter sido perguntado na escola o que é que as crianças gostam de fazer em


casa, respondeu: «Eu gosto de varrer o chão, quando começo a varrer o chão,
o lixo voa, muito lixo voa e divirto-me com o lixo a voar é como se ele esti-
vesse a lutar.» Neste discurso vivo da criança está muito bem expresso a sua
vivacidade emocional.
A. Busemann12 realizou uma investigação completa com vista ao estudo
da questão sobre o modo como a actividade infantil é revelada na criação lite-
rária, e encontrou um coeficiente específico de actividade que exprime as rela-
ções das características existentes entre a menção das acções e os valores qua-
litativos descritivos encontrados nas produções orais e escritas das crianças.
Este indicador de actividade mostrou-se mais elevado nas crianças de 6-8
anos, nos rapazes e nas raparigas de idades entre os três e os nove anos de
idade. Na idade dos nove aos dezassete anos, este indicador foi maior nos nove
e treze anos. A comparação do discurso oral e escrito levou Busemann à con-
clusão mais importante da sua investigação: «O discurso oral tende mais para
a actividade enquanto o discurso escrito tende para um estilo descritivo.»
Esta conclusão é confirmada pelas longas expressões orais escritas. O
discurso oral tomou muito menos tempo do que o escrito; no espaço de qua-
tro ou cinco minutos as crianças diziam aquilo que só em quinze a vinte
minutos conseguiriam no discurso escrito. Este abrandamento do discurso
escrito causa não apenas mudanças qualitativas mas quantitativas, porque
como resultado deste retardamento as produções linguísticas infantis desen-
volvem um novo estilo e carácter psicológico. O foco da actividade que
estava no primeiro plano do discurso oral recua para o segundo plano, sendo
substituída por uma descrição mais detalhada do objecto descrito e por uma
enumeração das suas qualidades, das características, etc.
O foco da actividade do discurso infantil é só um reflexo da actividade
geral da sua idade. Alguns autores contaram a quantidade dos conceitos rela-
cionados com a acção nas histórias das crianças. Um exemplo deste cálculo
pode ser visto em diferentes relatórios que enumeram a frequência dos
objectos, das acções e dos traços peculiares que ocorrem nas histórias de
crianças de diversos níveis de escolaridade. A partir destes dados depreende-
-se que nas histórias infantis aparecem com maior frequência as acções, com
menor frequência os objectos e, ainda mais raramente, as características par-
ticulares dos objectos.
É necessário no entanto fazer aqui uma ressalva em relação à influência
do discurso dos adultos, das suas formas literárias, na linguagem escrita das
crianças. É sabido como as crianças são contagiadas pela imitação. É assim
compreensível que seja enorme a influência do estilo literário dos livros nas
crianças, o que frequentemente obscurece as verdadeiras características da

12
Adolf Busemann (1887-?), psicólogo alemão. (Livro citado: Padagogische Milien-
kunde. Halle, 1927) (N.T.)
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 225

sua linguagem escrita. Neste sentido, o estilo mais puro é o das crianças
camponesas órfãs e outras que, de um modo geral, foram menos influencia-
das pelo estilo do adulto. Damos alguns exemplos tomados das autobiogra-
fias das crianças abandonadas. Estes exemplos são óbvios em relação ao
modo como o discurso destas crianças está muito próximo do seu discurso
verbal. Semeon Vekshin, de quinze anos de idade, escreve:
«Eu tinha então doze anos, o meu irmãozinho dez anos, e sofríamos por-
que não tínhamos pai e mãe. Como eu era o mais velho tinha às vezes de
cozer o pão: levantava-me manhã cedo – queria voltar a dormir, mas não:
olho para mim e começo a trabalhar. Vejo a rapaziada que está a brincar e
fico desgostoso porque os outros que têm pai e mãe são livres e brincam.
E assim trabalhei e sofri até ao ano de 1920.»

Outra criança abandonada escreve:


«Dantes eu tinha pais. Agora fiquei sem eles. É mau não ter pais. Eu tinha
uma casa. Tinha um cavalo e uma vaca. Agora não tenho nada. Em casa
ficaram três ovelhas, dois porcos e cinco galinhas. Acabei.»

Neste sentido, em geral, quanto mais nova a criança, mais a sua escrita
reflecte as características do discurso infantil e se distancia do discurso dos
adultos. Como exemplos citaremos dois curtos excertos das composições de
crianças: um foi escrito por um rapaz de treze anos de idade, filho de um
trabalhador, e o outro, por um rapaz de doze anos de idade, filho de um
tanoeiro. O primeiro texto é sobre a Primavera que se anuncia assim:
«Depois da neve, depois dos sombrios dias de Inverno, o Sol espreitava-
-nos através da janela com raios primaveris. A neve começou a derreter e
os riachos por todo o lado corriam e a Primavera na sua beleza aproxima-
-se e traz-nos alegria. Eis que o mês de Maio chegou e a relva verde des-
pontou, em todos nós surgiu uma nova alegria.»

Outra composição era sobre o tema «À espera»:


«Na montanha, no penhasco da encosta sobre o Volga, abriga-se uma
cabana de um pescador, negra como azeviche. Os madeiros apodreceram.
O vento espalhou o telhado de colmo e no interior da cabana soa o grito
do vento. Dentro da cabana esperam a vinda do pescador. O dia está a
chegar ao fim. O ar está frio. No horizonte levanta-se uma nuvem, uma
nuvem cor de chumbo. Levantou-se o vento. O rio Volga começou a agi-
tar-se mas o pescador ainda não chegava. Mas, de repente, apareceu uma
mancha, que crescia. Chegou ao penhasco, era um barco e nele vinha um
pescador»13

13
Estes exemplos da expressão literária infantil, como outras imagens, que apresenta-
mos, foram tomados, na maior parte, do livro do Professor I. M. Soloviev, Criação
226 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Nestas histórias sobressai de um modo claro o sincretismo da escrita da


criança. Nelas, a prosa não está separada da poesia. Algumas frases são rigo-
rosamente cadenciadas e outras são fundadas num ritmo livre. Esta é ainda
uma história indiferenciada, semiprosa e semipoética, cuja frequência é habi-
tual nas crianças desta idade. Citaremos aqui um exemplo composto em
prosa. O autor é um rapaz de doze anos de idade, filho de um operário.

«A maior floresta é a taiga. Os pinheiros altos não deixam penetrar o sol. É


enorme como o mar; por onde quer que vás há floresta e floresta. Do Lago
Ladoga até às montanhas do Ural são 1500 quilómetros. Se entrares no
matagal não sairás de lá. Ali no Inverno é frio. A neve é tanta que não se
consegue passar e atravessar e no Verão faz tanto calor como aqui. A rapa-
ziada apanha cogumelos e frutos silvestres, as pessoas só têm apenas medo
dos animais selvagens. A floresta tem linces, ursos, lobos, alces, etc.»

Neste caso, a tarefa prosaica de descrever a região florestal ditou à


criança uma forma de narração em prosa. No entanto, os temas emocionais
que preocupam as crianças são por elas transmitidos numa prosa com um
estilo calmo e tranquilo. Eis aqui uma história sobre um fogo escrita por um
rapaz de doze anos, filho de um operário.

«Anoitecia, a debulhadora apitava e ouviam-se as vozes das pessoas. De


repente tocou o sino e todos foram para casa. O silêncio era absoluto.
Tudo o que se podia ouvir era o mugir das vacas e a voz alta do pastor.
Quando ele passou perto da debulhadora deixou cair uma ponta de cigar-
ro. Deflagrou o fogo e no meio da noite toda a palha se ateou. Tocou o
sino. O povo correu com água para apagar o fogo. As crianças gritavam e
choravam. Toda a aldeia estava virada do avesso. Depois de apagado o
fogo todos recolheram a casa, estavam todos desolados porque tinham
perdido o pão.»

Como exemplo da escrita criativa colectiva, citamos uma história apre-


sentada numa exposição no Instituto Pedagógico em 1925/1926. Este traba-
lho é da autoria de crianças do quinto ano de escolaridade de uma das esco-
las de Moscovo, com idades entre as doze e os quinze anos. Ao todo são sete
os autores, seis raparigas e um rapaz. O rapaz foi o responsável pelo plano
geral e da redacção de todo o trabalho da composição, sob o tema «A histó-
ria do vagão número 1243 contada pelo próprio». Este tema surgiu por ini-
ciativa das próprias crianças na relação directa com o estudo que fizeram
sobre a indústria.
Neste trabalho colectivo infantil, as crianças manifestam todas as carac-
terísticas fundamentais da criação literária infantil: a fantasia combinatória, a

Literária e a Linguagem Infantil da Idade Escolar [Literaturnoe tvorchestvo i iazyk


detei shkol’nogo vozrasta] (1927).
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 227

atribuição de sentimentos e experiências humanas ao material de que era


feito e ao próprio vagão; o registo emocional que leva as crianças não apenas
a compreender e a imaginar para si a história do vagão, mas a vivê-la e a
traduzi-la numa linguagem dos sentimentos, assim como a tendência a
encarnar esta elaboração emocional e imaginativa a partir de uma forma
verbal externa para a poderem concretizar. É fácil vermos em que medida a
criação infantil se alimenta das impressões que têm a sua origem na realida-
de externa, como é que estas impressões são elaboradas e como é que isso
leva as crianças a uma compreensão e empatia com a realidade. No entanto é
também fácil ver nesta história aquilo que se pode sublinhar relativamente a
todo o trabalho criativo da criança, principalmente a imperfeição da sua acti-
vidade criadora, isto se a olharmos a partir da perspectiva das exigências que
temos em relação à verdadeira literatura.
«Os trabalhos criativos das crianças», diz G. Révész14, «tanto pelo seu
conteúdo, como pela sua técnica, são na sua maioria primitivos, imitativos,
de valor desigual e desprovidos do princípio da tensão gradualmente cres-
cente.»
Este trabalho criativo é mais importante para a criança do que propria-
mente para a literatura em si mesma. Seria incorrecto e injusto tratar a criança
como se fosse um escritor e exigir dos seus trabalhos aquilo que se exige ao
escritor profissional. A escrita da criança está para a escrita dos adultos, assim
como o jogo da criança está para a vida. O jogo é necessário para a própria
criança, tal como o é a escrita, antes de mais, para o próprio desenvolvimento
dos impulsos do próprio autor. O jogo é necessário para o meio em que a
criança nasceu e para o qual ele é dirigido. Tal não significa, de modo algum,
que a criatividade da criança deva surgir apenas espontaneamente por impulso
interno das próprias crianças, nem que todas as manifestações da arte das
crianças sejam completamente idênticas, ou devam satisfazer não mais do que
o seu gosto subjectivo. No jogo, o mais importante não é o prazer que a crian-
ça obtém ao jogar, mas a utilidade objectiva e o significado objectivo do jogo
do qual a própria criança não se apercebe. Este significado, como é sabido,
consiste no desenvolvimento e no exercício de todas as forças e capacidades
das crianças. Do mesmo modo a escrita criativa das crianças pode ser estimu-
lada e orientada a partir de fora e deve ser avaliada a partir do ponto de vista
do significado objectivo que ela tem para o seu desenvolvimento e educação.
Tal como ajudamos as crianças a organizar os seus jogos, escolhemos e orien-
tamos a sua actividade lúdica, também podemos estimular e orientar a reacção
criativa das crianças. Há muito que os psicólogos estabeleceram um conjunto
de procedimentos e técnicas que servem um objectivo: o de induzir experi-
mentalmente a reacção criativa da criança. Para esta finalidade dá-se às crian-

14
Révész, Géza (1878-1955), psicólogo húngaro. (Livro citado, Die Formenwelt des
Tastsinnes. Haag, 1929. (N.T)
228 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

ças tarefas especiais ou temas, ou propõe-se uma série de estímulos musicais,


artísticos, tomados da realidade, etc., com o objectivo de induzir nas crianças a
criatividade literária. No entanto todas estas técnicas enfermam de uma artifi-
cialidade extrema e todas elas servem um único objectivo para o qual foram
criadas, quer dizer, o de causar uma reacção nas crianças que possa servir
como uma boa matéria de estudo.
Precisamente no sentido do seu estudo, esta reacção deverá ser evocada
através de um estímulo simples conhecido do psicólogo para que este possa
segurar nas suas mãos a linha dessa reacção criativa. Outras tarefas comple-
tamente distintas se oferecem à estimulação pedagógica da criação infantil.
Aqui a tarefa é outra e de igual modo as suas técnicas são diferentes. O
melhor dos estímulos para a criação artística infantil consiste em organizar a
vida e o contexto social das crianças de tal modo que crie a necessidade e a
possibilidade da criação infantil. Como exemplo, podemos referir as revistas
ou os jornais de parede infantis.
«O jornal se for bem organizado», diz Zhurin, «combina mais capacida-
des do que qualquer outra actividade. As mais diversas capacidades das
crianças podem ser aqui aplicadas: as crianças que gostam de pintura e de
desenho pintam e ilustram; as que têm tendência para a literatura escrevem;
os que gostam de organizar, organizam as reuniões e distribuem o trabalho;
os que gostam de copiar, colar e recortar, e que são muitos, com gosto se
envolvem nestas actividades. Numa palavra, na concepção de um jornal
podemos encontrar aplicação para as capacidades e interesses das crianças.
Os mais velhos e os mais capazes arrastam atrás de si os menos hábeis. E
tudo isto se realiza naturalmente, sem qualquer pressão externa.
O jornal pode desempenhar um papel importante no desenvolvimento
da linguagem escrita da criança. É bem sabido que o trabalho que as crianças
realizam com interesse e de livre vontade trás melhores resultados do que
quando são obrigadas a fazê-lo.»
O maior valor da revista, em certa medida, reside no facto de que ela
aproxima a escrita criativa da criança da sua própria vida. As crianças come-
çam a compreender porque que é que as pessoas têm necessidade da escrita.
A escrita torna-se para elas uma actividade com sentido e uma tarefa impres-
cindível. Os jornais escolares de parede têm a mesma ou até maior importân-
cia, permitem também juntar no esforço colectivo o trabalho de diferentes
tendências infantis, ou tardes criativas, e semelhantes formas de trabalho
estimulam a criatividade e a inventividade da criança.
Já falamos que uma das formas primárias da criatividade da criança é o
sincretismo, isto é, a forma em que não se distingue ainda a poesia e a prosa,
a narrativa e o texto dramático. Deste modo, falamos do sincretismo literário
das crianças que não distingue os géneros artísticos. Mas nas crianças existe
ainda um sincretismo mais amplo que consiste sobretudo na ligação de dife-
rentes modalidades artísticas numa única acção artística. A criança inventa,
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 229

compõe e imagina tudo aquilo de que fala, como acontecia com as crianças
mencionada por Tolstoi.
A criança desenha e fala ao mesmo tempo sobre o que está a desenhar.
A criança dramatiza e compõe o discurso para a sua personagem. Este sin-
cretismo aponta para a raiz comum a partir da qual se separaram todos os
géneros da arte infantil. Esta raiz comum é representada pelo jogo infantil
que serve de etapa preparatória para a criatividade artística. Mas mesmo
quando, desta raiz comum do jogo sincrético geral, se diferenciam formas
independentes, mais ou menos autónomas da criação das crianças, como o
desenho e a dramatização da composição escrita, mesmo nessa situação,
cada uma das formas não se autonomiza completamente das outras, antes
absorve e assimila activamente os elementos das outras formas.
Numa das características da criação infantil encontramos o traço do
jogo a partir do qual ela procede. A criança raramente trabalha durante muito
tempo sobre a sua própria obra, na maioria das vezes completa-a num único
momento. O esforço criativo infantil lembra, neste caso, o jogo que surge a
partir da urgente necessidade da criança e proporciona, na maioria das vezes,
uma rápida e completa libertação do seu sentir.
A segunda ligação com o domínio do jogo consiste no facto de, tanto na
criação literária infantil como nos jogos, na sua base, a criança ainda não ter
cortado os laços com seus interesses e a sua experiência pessoal. Bernfeld
investigou as novelas escritas por adolescentes dos catorze aos dezassete anos
de idade. Em todas as novelas, como refere o autor, há uma marca profunda da
vida privada dos autores, algumas delas representam uma autobiografia disfar-
çada, outras modificam, em grande medida, a base íntima da narrativa, mas
não muito para que ela se perdesse completamente do seu trabalho. Baseando-
-se neste subjectivismo da criação infantil, muitos autores inclinam-se para a
afirmação de que já na infância podemos distinguir dois tipos de escrita: a
escrita subjectiva e a escrita objectiva. Parece-nos que estas duas característi-
cas da escrita infantil podem ser encontradas durante o período de transição,
na adolescência, pois são o reflexo do ponto de viragem que a criatividade
imaginativa infantil experiencia na passagem do tipo subjectivo para o objec-
tivo. Em certas crianças os traços do passado podem ser mais expressivos;
noutras, serão mais marcados os traços da imaginação futura.
Não há dúvida de que este facto está directamente ligado às característi-
cas individuais de uma determinada criança. Tolstoi identificava-as por refe-
rência aos dois tipos que correspondem à imaginação plástica e emocional,
definidas por Ribot. O seu personagem Semka destacava-se pelo seu tipo de
criatividade plástica. A sua narrativa caracterizava-se pelo modo como cons-
truía a sua descrição artística, em que os pormenores mais verdadeiros se
sucediam uns aos outros.
«Ao narrar, Semka via e descrevia tudo o que estava perante os seus
olhos: as tamancas geladas de madeira de bétula e a lama que escorria quan-
230 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

do o gelo derretia e que se tornavam em carvão quando a velha os atirava


para a lareira.» A sua imaginação reproduzia e combinava as imagens
visuais exteriores e construía a partir delas um quadro novo. Fedka criava
combinando de modo geral os elementos emocionais e juntava-lhes as ima-
gens externas. Ele «via apenas aqueles detalhes que evocavam nele o sentir
com que olhava para um rosto familiar». As impressões que seleccionava, na
base de uma emoção comum, eram apenas aquelas impressões que corres-
pondiam à emoção predominante que o dominava: o sentimento de pena, de
compaixão e comoção. Alfred Binet chamou a estes dois tipos o «observa-
dor» e o «imaginativo» e considerou que estes dois tipos poderão ser encon-
trados, em igual proporção, entre os artistas e os homens de ciência, como
entre os adolescentes. Binet estudou os produtos da criatividade artística de
duas raparigas de onze e doze anos e meio, uma das quais era do tipo criati-
vo objectivo e a outra do tipo subjectivo.
O professor Soloviev, ao analisar a criação de dois adolescentes, mos-
trou em que medida a pertença a um ou a outro tipo determina todos os deta-
lhes e os pormenores do discurso da criança. Isto reflecte-se na escolha dos
epítetos, isto é, das definições, tanto nas próprias imagens como nos senti-
mentos com os quais elas estavam imbuídas. Eis algumas das imagens dos
epítetos que encontramos na criação artística de raparigas (artistas objecti-
vas): a neve é fofa, branca, argêntea e limpa. Uma violeta é azul, uma borbo-
leta colorida, as nuvens são ameaçadoras, mãos geladas, as espigas douradas,
o bosque bem cheiroso, escuro, o sol vermelho e claro, dourado e primaveril.
Tudo isto corresponde às impressões e percepções reais, tudo nos proporcio-
na um quadro visual das coisas. O mesmo não se passa com a outra rapariga.
Os seus epítetos, face toda a sua expressividade e visualidade, são sobretudo
emocionais: a tristeza sem esperança, os pensamentos negros e escuros como
um corvo.
Resta concluir. Quem observou com cuidado a criação literária da
criança, poderá perguntar-se: qual é o seu sentido se ela não for capaz de
alimentar na criança um futuro escritor, um criador, ou se ela não for mais
do que apenas um curto e episódico fenómeno no desenvolvimento do ado-
lescente, que mais tarde se desvanece e, por vezes, desaparece completamen-
te? O sentido e o significado desta criatividade reside no facto de ela permitir
à criança fazer uma viragem brusca no desenvolvimento da imaginação cria-
tiva, imprimindo uma nova direcção para a sua fantasia que permanecerá
para o resto da sua vida. O seu sentido reside no facto de ela aprofundar,
alargar e purificar a vida emocional da criança que é despertada e sintoniza-
da, pela primeira vez, para o lado sério, e a ela se dispõe; por último o seu
significado reside no facto de que a criatividade, ao exercitar as suas tendên-
cias criativas e hábitos, permite à criança dominar a linguagem humana, a
ferramenta mais subtil e complexa de transmissão do pensamento e dos sen-
timentos humanos, o mundo interior do homem.
OS EFEITOS PEDAGÓGICOS, PSICOLÓGICOS E FORMA-
TIVOS DE INTERVENÇÕES CULTURAIS NAS AULAS DE
RUSSO PARA PÚBLICO PORTUGUÊS

Oleg Chumakov

Цель данного исследования заключается в том, чтобы лучше понять


пространственно-временную динамику процессов, связанных с восприятием и
производством речи в устной и в письменной формах, музыки. Выдвигается
гипотеза о том, что музыка, как и другие элементы межкультурного общения
на уроках русского языка для студентов Португалии, является не только
сильным мотивирующим инструментом преподавания, но и способствуют
развитию когнитивных, моторных и рефлекторных языковых функций в
процессе обучения.
Ключевые слова: мотивация, межкультурное общение, урок иностранного
языка, музыка, средство обучения.

Introdução
A língua russa é uma das línguas dos eslavos de leste. É a língua mater-
na do povo russo, é uma das maiores, mais divulgadas e mais usadas línguas
na Europa em termos geográficos e em termos do número de pessoas que a
usam como língua materna e como língua de comunicação intercultural e
internacional.
Como assinala Felício (2005), “Entre as modernas línguas eslavas, o
russo ocupa lugar de destaque, tanto pela cultura de que tem sido veículo
como pela sua expansão e número de falantes.”
Como informa o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Federação
Russa1 (2003), muitas universidades da Europa têm reforçado os seus Depar-
tamentos de Línguas Eslavas com pessoal qualificado no campo de idioma
russo e também aumentou o número de escolas e de classes com estudo

1
Tradução livre.
232 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

intensivo de idioma russo. Um número crescente de estudantes escolhe russo


como segunda língua estrangeira. Verifica-se, em particular, um acrescido
interesse por parte de economistas, gestores, advogados, profissionais na
área artística, bem como por estudantes destes ramos. A língua russa tem
estado a tornar-se cada vez mais popular entre aqueles diretamente envolvi-
dos no desenvolvimento das relações com a Rússia e na realização de proje-
tos internacionais com esse país.
Berdichevsky (2000, p. 2)2 destaca que entre as motivações exteriores
para se estudar um idioma estrangeiro podem apresentar-se vários fatores
entre os quais a globalização associada à expansão da língua, ou seja, a utili-
zação dessa língua para lá das fronteiras do território de origem e a cons-
ciência da aceitação desse idioma enquanto língua internacional. No mesmo
artigo o autor afirma que para 288 milhões das pessoas a língua russa é lín-
gua materna, ou segunda língua oficial. A Língua russa tem tradicionalmente
desempenhado um papel especial na vida social dos vários países da Comu-
nidade dos Estados Independentes.
Mas na verdade não são só as razões práticas que motivam os estudan-
tes europeus, em particular, lusófonos a estudarem o idioma russo. Entre
outras motivações encontramos a sua vontade de conhecer melhor a cultura,
a mentalidade e a história original russas, famosas e, ao mesmo tempo, ainda
pouco conhecidas em Portugal. É curioso que entre os estudantes que pre-
tendem saber Russo há sempre pessoas reformadas, com mais de 60 anos,
que acham que a gramática russa é uma excelente ginástica mental, “é algo
que lhes serve para se manterem jovens” e “tem muita graça”3.
“Devemos considerar, ainda, que após conhecer o russo tem-se meio
caminho andado para o estudo de qualquer outro idioma eslavo, como por
exemplo: o polaco, o búlgaro, o tcheco, o servo-croata, o esloveno, etc.”
(Castro, 2005, p. 7).
Pode-se concluir, então, que as problemáticas relacionadas com o ensi-
no e a aprendizagem da língua russa para falantes de Português são bastante
atuais, sendo esta área ainda muito pouco apresentada e estudada em Portu-
gal. Neste sentido, as observações e investigações científicas que são desti-
nadas a organização formativa e educacional competente nos processamen-
tos de ensino e aprendizagem da língua russa para nativos de Português estão
se tornando cada vez mais relevantes neste país.
O presente artigo pretende contribuir para o desenvolvimento de pro-
cessos de ensino e aprendizagem da língua russa como língua estrangeira
para nativos de Português, principalmente nos primeiros etapas de estudo,

2
Todas as referências a Berdichevsky em Português são traduções minhas do original
russo. Futuramente, indico apenas as páginas traduzidas e/ou parafraseadas.
3
Citado da revista Tabu do jornal Sol, nº 231, 4 de Fevereiro de 2011, p. 52. Entrevista
com os alunos de russo do ILNOVA.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 233

nos níveis A1 e A2. A fim de atingir esta meta pretende-se expor uma inves-
tigação teórico-prática para conseguir atingir uma maior taxa de sucesso na
obtenção de competências fonéticas e escritas por parte dos estudantes na
aprendizagem da língua russa, de modo a ganhar autonomia no domínio
duma linguagem que tem tradições linguísticas diferentes e tornando mais
acessível o estudo de uma estrutura fonológica e gramatical tão própria e
original para a mentalidade linguística do estudante lusófono.
As problemáticas de ensino e aprendizagem do idioma russo para nati-
vos de Português são bastante abrangentes. Mas o objetivo da presente pes-
quisa é entender melhor a dinâmica espaço-temporal dos processos envolvi-
dos na perceção e produção da linguagem, falada ou escrita, e música. Tam-
bém inclui o estudo da relação entre estes processos e outros mecanismos de
perceção, cognitiva, emocional e motor tendo em conta o papel fundamental
desempenhado pelo contexto.

O papel motivacional de intervenções culturais no estudo de Russo como


língua estrangeira em Portugal.

Berdichevsky (2000) sublinha que um dos motivos para estudo da lín-


gua estrangeira é que ela (a língua) representa em si própria a ideia atrativa e
de conhecer uma cultura nova. O desejo de se iniciar nessa cultura pode ser-
vir como motivo para estudo da língua – alvo (p. 2).
Neste caso, podemos falar sobre o grande efeito pedagógico e motiva-
cional produzido pelas intervenções culturais na sala da aula no estudo da
língua estrangeira. Esta estratégia ganha uma relevância suplementar quando
se trata de uma cultura ainda pouco conhecida para o público português.
Assim, a obtenção de conhecimentos sobre as tradições e sobre certos aspe-
tos da cultura do povo russo, assim como da cultura das outras etnias que
povoam o território da Federação da Rússia, adquire importância significati-
va. A presença de um professor nativo traduz-se, nestas situações, numa
grande vantagem aos estudantes. Os contactos interculturais facilitados pelo
professor, ajudam de certa forma, os alunos a compreender melhor, não só a
língua, mas também a mentalidade, o espírito, os hábitos do povo e contri-
buem assim para melhor integração junto dos cidadãos da Federação da Rús-
sia, caso seja necessário no futuro. Tudo isto só aumenta o interesse dos
estudantes, criando neles uma vontade sincera e forte de saber falar e com-
preender a língua de um povo com uma cultura de importância mundial.
A prática de ensino de Russo para portugueses demonstra que essa cul-
tura, não só clássica, mas também contemporânea e popular, impressiona os
estudantes. Às vezes, eles descobrem algo que antes nunca imaginaram.
Independentemente da primeira impressão provocada por estas descobertas,
elas ajudam a compreender melhor a mentalidade linguística do povo russo.
Ao mesmo tempo, a descoberta da complexidade e da riqueza da linguagem
234 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

russa desenvolve interesse em compreender melhor a alma e o espírito de um


povo cuja grandeza, profundidade e originalidade impressionam, ou, injus-
tamente, assustam alguns que vivem em Portugal.
Neste caso, a tarefa do professor é, não só quebrar estereótipos obsole-
tos, mas também conseguir (através destas quebras e descobertas) aumentar
a curiosidade e interesse nos seus discípulos, para que, apesar das dificulda-
des, se continuem a esforçar para, um dia, conseguirem dominar a língua
estrangeira, tarefa que não é fácil mas que não é impossível. A intervenção
cultural das artes cinematográfica, televisiva, musical e poética russas
abrem, gradualmente, um universo de interesses no estudo do idioma russo
para os estudantes. As intervenções interculturais utilizadas e organizadas
pelo professor de russo enriquecem o estudo, criam um toque poético, ou, às
vezes, até romântico na aprendizagem e costumam conferir às aulas elemen-
tos de surpresa positiva.
Para os próprios professores a utilização das intervenções culturais
durante a aula constitui per si empiricamente um elemento motivador para
estes e os estudantes.
E, como Okon B. (1990)4 refere “a motivação é a força motriz de qual-
quer atividade humana e, portanto, de qualquer tipo de estudo” (p. 4), logo se
a música ou outro tipo de componente intercultural facilitar a aprendizagem
e aumentar a motivação de alunos e professores a sua utilização deve ser
estimulada.
Como um fator motivador em sentido de motivação na aprendizagem da
língua estrangeira a literatura moderna metodológica enfatiza, em particular,
a importância da cultura estrangeira, cujo idioma materno o aprendente estu-
da. “Assim, os alunos aprendem uma língua estrangeira como parte de uma
cultura estrangeira”. (Tarkhova, Aslanian & Bolshakova, 2010, p. 54)5.
Assim, a fim de aumentar a motivação de alunos e professores, hoje em
dia é proposto considerar a utilização do material musical de diferentes esti-
los e géneros. De acordo com Tarthova, Aslanian e Bolshakova (2010) “o
material musical – constitui a melhor maneira de criar impacto positivo
sobre os sentimentos e emoções” (p. 53). As canções provocam um impacto
sobre as emoções humanas e, portanto, contribuem para uma melhor memo-
rização de vocabulário e material gramatical e, além disso, reduz a fadiga
durante o treino no estudo.
Aliás, o sentido da aplicação e utilização, nas aulas de russo, da música
e da poesia russa, de episódios do cinema russo, é muito mais vasto do que
somente o sentido de aumento de motivação.

4
Todas as referências a Okon são traduções minhas do original russo.
5
Todas as referências a Tarkhova, Aslanian e Bolshakova são traduções minhas do
original russo. Futuramente, indico apenas as páginas traduzidas e/ou parafraseadas.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 235

Aplicação da música como um componente facilitador na aquisição de


capacidades e competências sobre linguagem estrangeira.
Uma das estratégias de ensino consiste em incluir nas aulas a música
sob a forma de canções como meio facilitador da aquisição da linguagem.
Vários investigadores estão convencidos que é extremamente importan-
te comparar diferentes funções cognitivas usando diferentes abordagens para
entender melhor como o cérebro processa a informação.
Um dos primeiros desafios de aprender uma nova língua é segmentar
um discurso em palavras. Segundo Saffran, Aslin, e Newport. (1996)6, estu-
dos anteriores demonstraram que quer adultos, quer crianças, usam as pro-
babilidades estatísticas de sequências de sílabas para extrair palavras do dis-
curso contínuo. Em 1999 os mesmos autores afirmam7 que os estudos tam-
bém demonstraram que um mecanismo semelhante de aprendizagem ocorre
aquando de estímulos musicais.
A este propósito é importante destacar os estudos realizados em 2008
que partiram da hipótese de que as canções constituem uma ajuda para a
aquisição da linguagem. Foram autores do estudo mencionado: Daniele
Schon8, Maud Boyer9, Sylvain Moreno10, Mireille Besson11, Isabelle Peretz12
e Regine Kolinsky13.
O objetivo destes estudos consistiu em comparar a aprendizagem da
língua com base em sequências faladas, com a aprendizagem da língua com
base em sequências cantadas (utilizando os contributos, simultaneamente da
linguística e da informação musical).
Assim, com base nos resultados destes estudos os autores do respetivo
artigo (2008)14 trabalharam a hipótese de que, em comparação com sequên-
cias de discurso, um mapeamento consistente de informações linguísticas e
musicais iria melhorar a aprendizagem. Os resultados confirmaram a hipóte-
se mostrando na aprendizagem uma forte facilitação da canção em relação ao
discurso.

6
Word Segmentation: The Role of Distributional Cues. Journal of Memory and Lan-
guagem 35, 606-621. Article Nº 0032.
7
Statistical Learning in Linguistic and Nonlinguistic Domains. University of Ro-
chbester.
8
INCM-CNRS & Université de la Mediterraneé – França
9
Unité de Reserche en Neurosciences Cognitives – Bélgica
10
INCM-CNRS & Université de la Médterranée – França
11
INCM-CNRS & Université de la Mediterranée – França
12
Départament de Psycologie, Université de Montréal – Canadá
13
Unité de Reserche en Neurosciences Cognitives – Bélgica
14
Songs as an aid for language acquisition. Cognition 106 (2008), 975–983. INCM-
-CNRS & Université de la Méditerranée.
236 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Principais vantagens da utilização das canções:


– Aumento dos níveis de atenção e interesse (relação música-emoções);
– Aumento dos níveis de discriminação fonológica (a mudança de síla-
ba é muitas vezes acompanhada por uma alteração de tom da melodia);
– Otimização do funcionamento dos mecanismos de aprendizagem
(decorrente de uma utilização coerente de estruturas musicais e de estruturas
linguísticas).
A investigação empírica tem demonstrado que na iniciação a uma lín-
gua, tanto as crianças como os adultos se apoiam nas probabilidades transi-
cionais entre as sílabas, ou seja, a probabilidade em que uma unidade (síla-
ba) prediz a ocorrência da unidade seguinte.
A língua estrangeira nos primeiros tempos de aprendizagem soa como
um fluxo ininterrupto de sons sem sentido. As estatísticas de distribuição de
unidades de sub-palavras fornecem informações suficientes para descobrir os
limites das palavras, pelo menos nos primeiros passos da aquisição da lin-
guagem. Tanto os adultos como as crianças podem usar essas propriedades
estatísticas de sequências de sílabas para extrair palavras do discurso contí-
nuo. Além disso, segundo afirmações dos Saffran, Johnson, Aslin, e New-
port (1999)15 esta capacidade de aprendizagem estatística está não só rela-
cionada com a linguagem, mas também pode operar com estímulos não-
-linguísticos, tais como a entoação.
Estes resultados sugerem a existência de um mecanismo de aprendiza-
gem aplicado de forma similar na segmentação das palavras e na segmenta-
ção das sequências de tons, bem como a possibilidade “desafiante” de existir
um dispositivo comum para a aprendizagem da música e da língua.
Por esta razão foi estudada a hipótese que uma utilização consistente de
informações linguísticas e musicais favorecerá, comparativamente com a
utilização de sequências faladas, a aprendizagem da língua.
Segundo Daniele Schon, Maud Boyer, Sylvain Moreno, Mireille Bes-
son, Isabelle Peretz e Regine Kolinsky (2008), foram efectuados experiên-
cias em 3 grupos.
Experiência/grupo 1:
26 Falantes de francês (língua materna), média de idades 23 anos.
Ouviram durante sete minutos, num fluxo falado, monótono e contínuo,
uma sequência de seis palavras sem sentido (ex. gimysy, mimosi, pogysi),
cada uma das quais com três sílabas. O desempenho dos participantes (repe-
tição correcta das palavras) não foi significativamente diferente de um acerto
conseguido ao acaso. Ao fim dos 7 minutos, os participantes deixaram de
distinguir entre palavras e partes de palavras).
Experiência/grupo 2:

15
Statistical Learning in Linguistic and Nonlinguistic Domains. University of Ro-
chbester.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 237

A segunda experiência foi idêntica à primeira com uma diferença: as


sílabas foram cantadas por um sintetizador. Ao contrário do que se verificou
na Experiência 1, os participantes aprenderam as palavras; a simples adição
de informação musical permitiu que os participantes na experiência conse-
guissem distinguir palavras e de partes de palavras.
Experiência/grupo 3:
As sequências de sílabas continuaram a ser cantadas mas eliminou-se a
sobreposição linguística e melódica, isto é, eliminaram-se as correspondên-
cias entre as fronteiras linguísticas (sucessão de sílabas) e musicais (sucessão
de sons); por outras palavras, os participantes ficaram sem pistas sonoras
(musicais) que lhes sugerissem os limites das palavras.
A percentagem de respostas corretas foi significativamente maior do
que na Experiência 1 mas significativamente menor do que na Experiência 2.
Estes resultados apontam, simultaneamente, para o papel importante da
sobreposição das probabilidades de transição (sílabas e tons, ao mesmo tem-
po) e de estímulos (música) que mantenham o interesse/entusiasmo dos par-
ticipantes.
Os resultados do estudo confirmaram a hipótese colocada.
Demonstraram não só que a canção, por contraste com a fala, é um
importante facilitador da aprendizagem da língua, mas também que a apren-
dizagem de uma nova língua (em particular nos estádios iniciais, em que é
necessário recorrer à divisão silábica das palavras) pode beneficiar das pro-
priedades motivacionais e de estruturação, presentes na música/melodia de
uma canção.

Conclusões

Em última analise, uma aprendizagem ótima da língua pressupõe que


estejam preenchidas, simultaneamente, as funções emocionais (interesse –
proporcionado pela música, poesia, cinema, vídeo) e as funções linguísticas
que intervêm na aquisição/aprendizagem de uma língua.
Para além disso os professores que utilizam as canções e outras inter-
venções culturais nas suas aulas estão não raramente mais motivados e a
resposta positiva por parte dos alunos constitui ela própria uma forte compo-
nente motivadora para os docentes, e é um motor muito significante para o
permanente desenvolvimento na formação contínua dos professores.
Do ponto de vista médico e das neurociências não há qualquer dúvida
na atualidade de que a aquisição de conhecimentos musicais e linguísticos
estão correlacionados e que diferentes áreas cerebrais se interconectam e
inclusive se criam novas conexões neuronais aquando da aquisição de uma
nova língua ou música. É também sobejamente estudado e demonstrado que
a música tem um efeito motivador, tranquilizador e estimulante, sendo a
musicoterapia reconhecida como área de competência médica, e não é de
238 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

estranhar que ao ser utilizada numa sala de aula tenha efeitos positivos quer
nos professores quer nos alunos.
Por outro lado, cada vez mais os alunos que procuram o ensino de lín-
guas estrangeiras têm idades mais avançadas (porque sabem que a aprendi-
zagem de uma nova língua tem manifestos efeitos benéficos na prevenção de
doenças degenerativas cerebrais como a Doença de Alzheimer) e também
para os alunos em idade adulta a musica tem um efeito motivador muito
significativo como se depreende no decurso das aulas, não sendo somente
benéfico em jovens como no estudo realizado.
Em conclusão, “Música em uma língua estrangeira vai muito além do
processo educacional e fornece uma ligação entre a aprendizagem, o desen-
volvimento intelectual e a educação do indivíduo.” (Tarthova, Aslanian e
Bolshakova, 2010, p. 56).
Verdadeiro profissional na área de ensino da língua estrangeira, aplicando
métodos não tradicionais e originais normalmente preocupa-se com exposi-
ções e conclusões de investigações científicas sobre os resultados dos meios e
recursos aplicados. A música neste sentido, no ensino e aprendizagem das
línguas estrangeiras pode ser aproveitada em diversas maneiras graça os últi-
mos alcances na área de recursos, ferramentas e possibilidades que as novas
tecnologias oferecem para que o trabalho do professor seja refletido de modo
ainda mais motivador e criativo para os aprendentes, pois o nível da motivação
e os resultados, que os alunos atingem na aprendizagem, podemos considerar
como um espelho do profissionalismo do professor. A aplicação da música nas
aulas da língua estrangeira é um dos fatores que indica que o professor, de
facto tenta alargar a presença dos métodos de ensino na sala da aula, encontrar
meios e ferramentas adicionais que além dos métodos tradicionais são capazes
de melhorar a compreensão, memorização, o espírito dos alunos na aprendiza-
gem, e, sequencialmente, a capacidade cognitiva e produtividade nos proces-
sos da aprendizagem dos estudantes.

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Nível inicial]. Izdatelstvo “Russki yazik”. Moscou.
EXCLUSIVO: PRÉ-PUBLICAÇÃO

Traduções de António Pescada

António Pescada nasceu em Albufeira, em 1938. Trabalhou como revi-


sor literário e como tradutor de francês e inglês. Na década de setenta viveu
cinco anos em Moscovo, onde estudou língua e literatura russas; de regresso
a Portugal, converteu-se por mérito próprio no tradutor de referência dos
clássicos da grande literatura russa, a par do casal Nina e Filipe Guerra: a ele
devemos, entre outras, a recriação em português de obras como Anna Karé-
nina de Lev Tolstoi, Doutor Jivago de Boris Pasternak, Margarita e o mes-
tre de Mikhail Bulgakov, Crime e castigo e O jogador de Fiodor Dostoievski
etc.
Mundo Russo tem a honra e o prazer de incluir neste primeiro número
duas traduções de António Pescada que apresentamos aqui numa pré-
-publicação exclusiva: o poema O Sonho, de Boris Pasternak, e o primeiro
capítulo de Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski; agradecemos às editoras
Sextante e Relógio d’Água, respetivamente, a gentileza de nos facultarem a
sua inclusão. Publicamos os textos russos a par das versões portuguesas: os
leitores que dominem a língua russa poderão cotejar a tradução com o origi-
nal e assim apreciar a sensibilidade estilística e a fluência da escrita de
António Pescada.
242 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Sonho Сон (1913)


Boris Pasternak Борис Пастернак
Sonhei o Outono na penumbra da vidraça. Мнe снилaсь oсeнь в пoлусвeтe стeкoл,
Tu e os amigos no seu bando bufão. Дpузья и ты в иx шутoвскoй гуpьбe,
E como um falcão que sangue buscasse И, кaк с нeбeс дoбывший кpoви сoкoл,
Meu coração desceu para a tua mão. Спускaлoсь сepдцe нa pуку к тeбe.
Mas o tempo envelhece enquanto passa, Нo вpeмя шлo и стapилoсь, и глoxлo,
E pondo as sedas da moldura prateadas, И, повoлoкoй paмы сepeбpя,
Do jardim a aurora banhou a vidraça Зapя из сaдa oбдaвaлa стeклa
Com lágrimas de Setembro ensanguentadas. Кpoвaвыми слeзaми сeнтябpя.
Mas o tempo envelheceu. E friável Нo вpeмя шлo и стapилoсь. И pыxлый,
Como gelo, a seda das poltronas rompeu. Кaк лeд тpeщaл и тaял кpeсeл шeлк.
De súbito, tu, ruidosa, estás calada, Вдpуг гpoмкaя зaпнулaсь ты и стиxлa,
E o sonho, como o eco de um sino emudeceu. И сoн, кaк oтзвук кoлoкoлa смoлк.
Acordei. Era uma escura madrugada Я пpoбудился. Был кaк oсeнь тeмeн
De Outono, e o vento ao afastar-se colheu Paссвeт и вeтep, удaляясь нeс
Como chuva de palhas por um carro arrastada, Кaк зa вoзoм бeгущий дoждь сoлoмин,
Um tufo de bétulas voando pelo céu. Гpяду бeгущиx пo нeбу бepeз.

Primeiro capítulo de Fiódor Dostoievski, Os Irmãos Karamázov.


Livro Primeiro
História de uma família

I
Fiódor Pávlovitch Karamázov

Aleksei Fiódorovitch Karamázov era o terceiro filho de Fiódor Pávlo-


vitch Karamázov, proprietário rural do nosso distrito muito conhecido no seu
tempo (e ainda hoje se lembram dele entre nós) devido ao seu fim trágico e
obscuro, ocorrido há precisamente treze anos, e de que a seu tempo falarei.
Por agora direi acerca desse «proprietário» (como entre nós lhe chamavam,
embora durante toda a sua vida quase não tenha vivida na sua propriedade)
apenas que era um tipo estranho, tipo que no entanto se encontra com bas-
tante frequência, concretamente o tipo de homem não apenas mau e depra-
vado, mas ao mesmo tempo inepto – um daqueles ineptos que sabem muito
bem tratar dos negócios da sua propriedade e, ao que parece, apenas desses.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 243

Fiódor Pávlovitch, por exemplo, começou quase do nada, era um dos mais
pequenos proprietários; corria a comer nas mesas alheias, era um papa-
-jantares, e contudo, no momento da sua morte, verificou-se que possuía até
cem mil rublos em dinheiro contado. E ao mesmo tempo, continuou toda a
sua vida a ser um dos extravagantes mais ineptos de todo o nosso distrito.
Volto a repetir: não se trata aqui de estupidez – a maioria desses extravagan-
tes são bastante inteligentes e astutos – mas apenas de inépcia, e de uma
inépcia especial, nacional.

Foi casado por duas vezes e tinha três filhos – o mais velho, Dmitri Fió-
dorovitch, da primeira mulher, e os outros dois, Ivan e Aleksei, da segunda.
A primeira mulher de Fiódor Pávlovitch era da família nobre bastante rica e
distinta dos Miússov, também latifundiários no nosso distrito. Não me esfor-
çarei por explicar como foi possível que uma rapariga com um rico dote,
além disso bonita e ainda por cima uma dessas inteligências vivas tão fre-
quentes entre nós na actual geração mas que apareciam já na geração ante-
rior, se casasse com um insignificante «enfezado», como todos então lhe
chamavam. Pois eu conheci uma jovem, ainda da anterior geração «românti-
ca», que depois de alguns anos de enigmático amor por um cavalheiro, com
o qual de resto se poderia ter casado sem qualquer dificuldade, acabou no
entanto por inventar ela própria obstáculos intransponíveis e numa noite de
tempestade atirou-se de uma arriba altíssima, quase um penhasco, para um
rio bastante profundo e rápido e nele morreu resolutamente pelos seus pró-
prios caprichos, apenas para se parecer com a Ofélia de Shakespeare. É até
possível que, se essa arriba, lugar há tanto tempo escolhido por ela como seu
predilecto, não fosse tão pitoresca, e no seu lugar houvesse apenas uma mar-
gem baixa e prosaica, o suicídio nem tivesse acontecido. Este é um facto
verdadeiro, e é de crer que na nossa vida russa têm acontecido nas últimas
duas ou três gerações bastantes casos como este ou parecidos. De modo
idêntico, o acto de Adelaída Ivánovna Miússova foi, sem dúvida, um eco de
ideias alheias e também da irritação de um pensamento cativo. Ela quis tal-
vez proclamar a independência feminina, ir contra as convenções sociais,
contra o despotismo da família e dos parentes, e uma obsequiosa fantasia
convenceu-a, apenas por um instante, admitamos, de que Fiódor Pávlovitch,
apesar da sua condição de parasita, era um dos homens mais corajosos e
zombeteiros daquela época de transição para melhor, quando na verdade ele
era apenas um palhaço mau e nada mais. O aspecto picante consistia ainda
no facto de que o caso envolveu o rapto, e isso fascinou enormemente Ade-
laída Ivánovna. Quanto a Fiódor Pávlovitch, estava muito bem preparado
para todas essas aventuras, até pela sua situação social, pois desejava apai-
xonadamente fazer carreira fosse como fosse; encostar-se a uma boa família
e receber um dote era muito tentador. Quanto ao amor recíproco, parece que
nunca existiu – nem do lado da noiva, nem do lado dele, apesar da beleza de
Adelaída Ivánovna. De modo que este caso foi talvez único do seu género na
244 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

vida de Fiódor Pávlovitch, que toda a sua vida foi um homem extremamente
lascivo, sempre pronto a colar-se a qualquer saia desde que esta lhe acenas-
se. E entretanto, só esta mulher não provocou nele qualquer impressão espe-
cial do lado da paixão.

Logo depois do rapto, Adelaída Ivánovna percebeu num instante que


pelo seu marido só sentia desprezo e nada mais. Deste modo, as consequên-
cias do casamento evidenciaram-se com extraordinária rapidez. Embora a
família se tivesse conformado bastante depressa com o acontecimento,
entregando o dote à fugitiva, começou entre os esposos a vida mais desorde-
nada, com cenas constantes. Contava-se que a jovem esposa revelou em tudo
isso incomparavelmente mais generosidade e dignidade do que Fiódor
Pávlovitch, o qual, como agora se sabe, lhe surripiou de uma vez todo o
dinheiro, até vinte e cinco mil rublos, assim que ela os recebeu, de modo que
para ela esses milhares como que se sumiram definitivamente. Quanto à
pequena aldeia e à boa casa da cidade que faziam parte do dote, durante mui-
to tempo ele procurou com todas as forças transferi-las para o seu próprio
nome por meio de um qualquer acto apropriado, e por certo teria conseguido
esse objectivo, graças apenas, por assim dizer, ao desprezo e repulsa que
causava à esposa a todo o momento com as suas súplicas e chantagens, só
por cansaço moral dela, para que ele a largasse. Felizmente, a família de
Adelaída Ivánovna interveio e restringiu a rapacidade do marido. É um facto
conhecido que eram frequentes as brigas entre os dois esposos, mas, segundo
as vozes, não era Fiódor Pávlovitch que batia na mulher, mas Adelaída Ivá-
novna que lhe batia a ele, sendo como era uma mulher fogosa, ousada, tri-
gueira, impaciente e dotada de uma notável força física. Por fim, ela abando-
nou a casa e fugiu do marido com um pobre seminarista, deixando Fiódor
Pávlovitch com o pequeno Mítia de três anos nos braços. Fiódor Pávlovitch
introduziu imediatamente em casa um autêntico harém e lançou-se nas mais
desatinadas bebedeiras; nos intervalos percorria quase toda a província,
queixando-se lacrimosamente a todos e a cada um do abandono de Adelaída
Ivánovna, falando de pormenores da sua vida conjugal que um marido devia
ter vergonha de contar. O que mais parecia agradar-lhe e até lisonjeá-lo era
representar diante de toda a gente o seu ridículo papel de marido ofendido e
descrever até ao exagero pormenores da sua ofensa. «Até parece que o
senhor obteve uma promoção, Fiódir Pávlovitch, de tão contente que está
apesar de toda a sua amargura» – diziam-lhe os trocistas. Muitos até acres-
centavam que ele estava contente por aparecer com um renovado papel de
palhaço e que, para aumentar o riso, fingia não perceber a sua situação ridí-
cula. De resto, quem sabe, talvez isso fosse nele apenas ingenuidade. Por fim
conseguiu descobrir o rasto da sua fugitiva. A pobre estava em Petersburgo,
para onde tinha ido com o seu seminarista e onde se entregava sem reservas
à mais completa emancipação. Fiódor Pávlovitch atarefou-se imediatamente
e preparou-se para ir a Petersburgo, sem que ele próprio naturalmente sou-
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 245

besse para quê. Na verdade, talvez tivesse mesmo ido nessa altura; mas, ao
tomar uma tal decisão, achou-se de imediato no especial direito, para se
animar, de se entregar outra vez à mais ilimitada bebedeira. E eis que entre-
tanto a família da esposa recebeu a notícia de que ela morrera em Petersbur-
go. Morreu como que de repente, algures numa água-furtada, de tifo segundo
uma versão, e de forme, segundo outra. Ao saber da morte da esposa, Fiódor
Pávlovitch estava bêbedo; diz-se que correu pela rua e começou a gritar,
erguendo os braços ao céu de alegria: «Agora libertas o teu servo», mas
segundo outros, soluçava como uma criança pequena, de tal modo que,
segundo dizem, até metia dó olhar para ele, apesar de toda a repulsa que
inspirava. É muito possível que houvesse uma e outra coisa, ou seja, que se
alegrasse pela sua libertação, e chorasse pela libertadora – tudo ao mesmo
tempo. Na maior parte dos casos as pessoas, mesmo as malvadas, são muito
mais ingénuas e simples do que de um modo geral supomos delas. E nós
próprios também.

Книга первая
История одной семейки
I – Федор Павлович Карамазов

Алексей Федорович Карамазов был третьим сыном помещика


нашего уезда Федора Павловича Карамазова, столь известного в свое
время (да и теперь еще у нас припоминаемого) по трагической и
темной кончине своей, приключившейся ровно тринадцать лет назад и
о которой сообщу в своем месте. Теперь же скажу об этом «помещике»
(как его у нас называли, хотя он всю жизнь совсем почти не жил в
своем поместье) лишь то, что это был странный тип, довольно часто,
однако, встречающийся именно тип человека не только дрянного и
развратного, но вместе с тем и бестолкового, – но из таких, однако,
бестолковых, которые умеют отлично обделывать свои имущественные
делишки, и только, кажется, одни эти. Федор Павлович, например,
начал почти что ни с чем, помещик он был самый маленький, бегал
обедать по чужим столам, норовил в приживальщики, а между тем в
момент кончины его у него оказалось до ста тысяч рублей чистыми
деньгами. И в то же время он все-таки всю жизнь свою продолжал быть
одним из бестолковейших сумасбродов по всему нашему уезду.
Повторю еще: тут не глупость; большинство этих сумасбродов
довольно умно и хитро, – а именно бестолковость, да еще какая-то
особенная, национальная.
Он был женат два раза, и у него было три сына: старший, Дмитрий
Федорович, от первой супруги, а остальные два, Иван и Алексей, от
второй. Первая супруга Федора Павловича была из довольно богатого и
246 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

знатного рода дворян Миусовых, тоже помещиков нашего уезда. Как


именно случилось, что девушка с приданым, да еще красивая и, сверх
того, из бойких умниц, столь нередких у нас в теперешнее поколение,
но появлявшихся уже и в прошлом, могла выйти замуж за такого
ничтожного «мозгляка», как все его тогда называли, объяснять
слишком не стану. Ведь знал же я одну девицу, еще в запрошлом
«романтическом» поколении, которая после нескольких лет загадочной
любви к одному господину, за которого, впрочем, всегда могла выйти
замуж самым спокойным образом, кончила, однако же, тем, что сама
навыдумала себе непреодолимые препятствия и в бурную ночь
бросилась с высокого берега, похожего на утес, в довольно глубокую и
быструю реку и погибла в ней решительно от собственных капризов,
единственно из-за того, чтобы походить на шекспировскую Офелию, и
даже так, что будь этот утес, столь давно ею намеченный и
излюбленный, не столь живописен, а будь на его месте лишь
прозаический плоский берег, то самоубийства, может быть, не
произошло бы вовсе. Факт этот истинный, и надо думать, что в нашей
русской жизни, в два или три последние поколения, таких или
однородных с ним фактов происходило немало. Подобно тому и
поступок Аделаиды Ивановны Миусовой был без сомнения отголоском
чужих веяний и тоже пленной мысли раздражением. Ей, может быть,
захотелось заявить женскую самостоятельность, пойти против
общественных условий, против деспотизма своего родства и семейства,
а услужливая фантазия убедила ее, положим, на один только миг, что
Федор Павлович, несмотря на свой чин приживальщика, все-таки один
из смелейших и насмешливейших людей той, переходной ко всему
лучшему, эпохи, тогда как он был только злой шут, и больше ничего.
Пикантное состояло еще и в том, что дело обошлось увозом, а это
очень прельстило Аделаиду Ивановну. Федор же Павлович на все
подобные пассажи был даже и по социальному своему положению
весьма тогда подготовлен, ибо страстно желал устроить свою карьеру
хотя чем бы то ни было; примазаться же к хорошей родне и взять
приданое было очень заманчиво. Что же до обоюдной любви, то ее
вовсе, кажется, не было – ни со стороны невесты, ни с его стороны,
несмотря даже на красивость Аделаиды Ивановны. Так что случай этот
был, может быть, единственным в своем роде в жизни Федора
Павловича, сладострастнейшего человека во всю свою жизнь, в один
миг готового прильнуть к какой угодно юбке, только бы та его
поманила. А между тем одна только эта женщина не произвела в нем со
страстной стороны никакого особенного впечатления.

Аделаида Ивановна, тотчас же после увоза, мигом разглядела, что


мужа своего она только презирает и больше ничего. Таким образом,
следствия брака обозначились с чрезвычайною быстротой. Несмотря на
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 247

то что семейство даже довольно скоро примирилось с событием и


выделило беглянке приданое, между супругами началась самая
беспорядочная жизнь и вечные сцены. Рассказывали, что молодая
супруга выказала при том несравненно более благородства и
возвышенности, нежели Федор Павлович, который, как известно
теперь, подтибрил у нее тогда же, разом, все ее денежки, до двадцати
пяти тысяч, только что она их получила, так что тысячки эти с тех пор
решительно как бы канули для нее в воду. Деревеньку же и довольно
хороший городской дом, которые тоже пошли ей в приданое, он долгое
время и изо всех сил старался перевести на свое имя чрез совершение
какого-нибудь подходящего акта и наверно бы добился того из одного,
так сказать, презрения и отвращения к себе, которое он возбуждал в
своей супруге ежеминутно своими бесстыдными вымогательствами и
вымаливаниями, из одной ее душевной усталости, только чтоб
отвязался. Но, к счастию, вступилось семейство Аделаиды Ивановны и
ограничило хапугу. Положительно известно, что между супругами
происходили нередкие драки, но, по преданию, бил не Федор
Павлович, а била Аделаида Ивановна, дама горячая, смелая, смуглая,
нетерпеливая, одаренная замечательною физическою силой. Наконец
она бросила дом и сбежала от Федора Павловича с одним погибавшим
от нищеты семинаристом-учителем, оставив Федору Павловичу на
руках трехлетнего Митю. Федор Павлович мигом завел в доме целый
гарем и самое забубённое пьянство, а в антрактах ездил чуть не по всей
губернии и слезно жаловался всем и каждому на покинувшую его
Аделаиду Ивановну, причем сообщал такие подробности, которые
слишком бы стыдно было сообщать супругу о своей брачной жизни.
Главное, ему как будто приятно было и даже льстило разыгрывать пред
всеми свою смешную роль обиженного супруга и с прикрасами даже
расписывать подробности о своей обиде. «Подумаешь, что вы, Федор
Павлович, чин получили, так вы довольны, несмотря на всю вашу
горесть», – говорили ему насмешники. Многие даже прибавляли, что
он рад явиться в подновленном виде шута и что нарочно, для усиления
смеха, делает вид, что не замечает своего комического положения. Кто
знает впрочем, может быть, было это в нем и наивно. Наконец ему
удалось открыть следы своей беглянки. Бедняжка оказалась в
Петербурге, куда перебралась с своим семинаристом и где беззаветно
пустилась в самую полную эмансипацию. Федор Павлович немедленно
захлопотал и стал собираться в Петербург, – для чего? – он, конечно, и
сам не знал. Право, может быть, он бы тогда и поехал; но, предприняв
такое решение, тотчас же почел себя в особенном праве, для бодрости,
пред дорогой, пуститься вновь в самое безбрежное пьянство. И вот в
это-то время семейством его супруги получилось известие о смерти ее
в Петербурге. Она как-то вдруг умерла, где-то на чердаке, по одним
248 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

сказаниям – от тифа, а по другим – будто бы с голоду. Федор Павлович


узнал о смерти своей супруги пьяный; говорят, побежал по улице и
начал кричать, в радости воздевая руки к небу: «Ныне отпущаеши», а
по другим – плакал навзрыд как маленький ребенок, и до того, что,
говорят, жалко даже было смотреть на него, несмотря на всё к нему
отвращение. Очень может быть, что было и то, и другое, то есть что и
радовался он своему освобождению, и плакал по освободительнице –
всё вместе. В большинстве случаев люди, даже злодеи, гораздо наивнее
и простодушнее, чем мы вообще о них заключаем. Да и мы сами тоже.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 249

O pescador e o peixinho dourado de Pushkin


Halima Naimova

Nota sobre o conto O pescador e o peixinho dourado:


Alexander Sergeevich Pushkin (1799-1837) o poeta e escritor amado
pelo povo russo, o fundador da nova literatura russa e criador da língua lite-
rária russa. Representa o âmago dos valores nacionais russos. Legou uma
obra vasta e notável deixando transparecer a estética da língua russa na sua
totalidade.
Pushkin (1799-1837), durante a maior parte da sua actividade literária,
entre 1814-1834, escreveu contos de carácter nacional russo. S. M. Bondi1
aponta para o aspecto relevante dos contos, dizendo que eles não são uma
simples transposição a partir de tradição popular genuína mas antes um
género literário, complexo pela sua composição. Pushkin aparece como um
reconstrutor da transmissão oral deficiente pelo povo dos contos e toma parte
na sua criação em pé de igualdade. O principal desvio de Pushkin do tradi-
cional género do conto popular em prosa se encontrava na sua forma de ver-
so; como o fez em “Eugenii Onegin”, transformando o tradicional género do
romance em prosa no romance em versos.
Nos contos O pescador e o peixinho, O conto sobre o padre e o seu
empregado tolo, O conto sobre a mãe ursa Pushkin não se limita a transmitir
apenas o espírito, enredo e as imagens de arte popular mas também as for-
mas populares da linguagem, do estilo e verso: quadras, trovas, e versos
raioshny2. O conto sobre o padre e o seu empregado tolo e O conto sobre [a
mãe] ursa são escritos em verso genuinamente popular.
O conto O pescador e o peixinho criado em verso pelo próprio poeta
tem semelhanças com o verso popular segundo a composição de algumas
suas formas. Aqui o poeta se encarna no narrador do povo, como referiu S.
M. Bondi.
Pushkin conhecia bem que muitos dos enredos dos contos existiam e
existem na tradição oral dos diferentes povos, passando, modificados de uns
para os outros. Assim, igual a um narrador genuinamente popular, tomava,
quando era preciso, umas ou outras imagens narrativas, particularidades da

1
S.Bondi. Os cоntos de Pushkin. In A.S. Pushkin. Obras Completas em 10 tomos. ©
Publicação Electrónica – РВБ, 2000 – 2012. [С. Бонди. Сказки Пушкина. Из
А.С.Пушкин. Собрание сочинений в 10 томах. © Электронная публикация – РВБ,
2000– 2012].
2
A mais antiga forma de versar do povo russo; é um verso livre com rimas adjacentes
determinado pela leitura pausada e entonante.
250 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

trama do folclore de outros povos, dando uma nova feição genuinamente


russa.
Pushkin introduzia inúmeros elementos da sua própria criação e imagi-
nação: mudava a seu modo a trama popular, apresentando-a de modo simpli-
ficado ou complexo. Procedeu assim no conto O pescador e o peixinho. O
último foi fixado como o conto popular genuíno a partir de narração de um
contador do povo. A.S. Pushkin escreveu O pescador e o peixinho no Outo-
no de 1833 publicado em 1835.
O conto foi traduzido para a língua portuguesa em prosa sob o título O
pescador e o peixinho dourado e publicado no suplemento Júnior do jornal
Público em 20 de Outubro de 1990.

O pescador e o peixinho dourado


Um conto de Alexander Sergeevich Pushkin
Tradução do russo: Halima Naimova

Era uma vez um velho e uma velhinha que viviam numa cabana ao pé
do mar azul, havia precisamente trinta e três anos. E enquanto o velho pes-
cava com a rede, a velha fiava o seu bragal. Um dia o velho lançou a rede ao
mar e recolheu-a só com limo. Tornou ele a lançar a rede e voltou a recolhê-
-la mas agora cheia de algas marinhas. Terceira vez lançou a rede ao mar e
apanhou então um só peixinho. Não um peixinho qualquer, mas um de ouro
a valer! Começou o peixinho dourado a implorar com voz humana:
– Liberta-me, ancião, deixa-me voltar para o mar! Ofereço-te elevado
resgate por mim: tudo o que desejares!
Ouviu-o o velho pescador com espanto e até um tanto assustado. Ele
pescava havia trinta e três anos e nunca ouvira um peixe a falar e, talvez por
isso, deixou o peixinho dourado voltar para o mar azul, não sem lhe dizer
com carinho:
– Vai com Deus, peixinho dourado! Não preciso do teu resgate. Vai
para o teu mar azul e passeia lá em liberdade!
Voltou o velho para o pé da sua velhinha e contou-lhe a grande maravi-
lha:
– Eu, hoje, pesquei um peixinho e, sabes, não era um peixinho qual-
quer: era de ouro a valer. E, o mais espantoso, falava como nós, e pediu que
o deixasse voltar para casa, para o mar azul. Prometeu-me um resgate de alto
preço: dar-me tudo o que eu desejasse! Mas não tive coragem de aceitar tal
resgate e deixei-o voltar para o mar azul.
Começou a velha a ralhar com o velho:
– És bobo, és paspalho! Não quiseste aceitar o resgate do peixinho: pelo
menos exigias uma tina nova, pois a nossa está toda partida.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 251

Assim voltou o velho ao pé do mar azul (estava a ver o mar um pouco


agitado) e o peixinho dourado chegou e perguntou:
– De que necessitas, ancião?
O velho respondeu-lhe com reverência:
– Tenha piedade, meu senhor, a minha velha pôs-se a brigar comigo e
não me deixa em paz: ela quer uma tina nova, pois a nossa está toda partida.
Responde-lhe o peixinho dourado:
– Não fiques triste. Vai com Deus. Irás ter uma tina nova.
Quando o velho voltou para o pé da velha, já ela estava com uma tina
nova. E começou a ralhar ainda mais, dizendo:
– Tu és bobo, és paspalho. Pediste, imbecil, a tina, como se tirasses
muito proveito disto. Volta, bobo, para o pé do peixinho. Saúda-o e exige, já
agora, uma isba.
Lá voltou o velho ao pé do mar azul (o mar estava algo perturbado) e
começou a clamar pelo peixinho dourado. Chegou o peixinho e perguntou:
– De que precisas agora, ancião?
O velho respondeu-lhe com reverência:
– Tenha piedade, meu senhor! A velha ralha cada vez mais comigo e
não me deixa em paz. Agora exige uma isbá, a velha rabugenta.
Respondeu o peixinho dourado:
– Não estejas triste, vai com Deus, e que seja assim, pois vão ter uma
isbá.
Voltou o velho para a sua cabana e viu que nem rasto dela ficara. Peran-
te os seus olhos estava a isbá com uma chaminé de tijolo caiada e de portas
de madeira de carvalho trabalhadas. A sua velha, sentada debaixo da janela,
já praguejava como um carroceiro com o marido:
– És bobo, és paspalho. Conseguiste, paspalho, uma isbá. Pois volta,
outra vez, para o pé do peixinho. Saúda-o e diz-lhe que não quero ser mais
uma simples camponesa. Quero-me tornar numa fidalga de quatro costados!
Foi o velho ao pé do mar azul (estava inquieto, o mar azul) e começou
de novo a clamar pelo peixinho dourado. Chegou o peixinho e perguntou:
– Que mais precisas, bom ancião?
Respondeu o velho com reverência:
– Tenha piedade, meu senhor. Mais do que antes desatinou a velha. Não
me deixa um momento em paz. Agora, nem mais um momento quer ser
camponesa. Quer tornar-se numa fidalga de quatro costados.
– Não estejas triste. Vai com Deus.
Voltou o velho para o pé da velha. E o que viu? Um alto solar e, no ter-
raço da entrada, a sua velha com um colete forrado de pele de marta zibelina.
Ornava-lhe a cabeça uma gorra de brocado e, pesadas pérolas, envolviam-lhe
o pescoço. Adornavam-lhe as mãos anéis de ouro e calçavam-lhe os pés
botinas encarnadas. Estavam junto dela zelosos criados. E ela batia-lhe e
puxava-lhes os cabelos. Disse o velho à sua velha:
252 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

– Bom dia, grã-senhora fidalga! Agora a tua alma está satisfeita!


Ela levantou a voz para o velho e mandou-o trabalhar na cavalariça.
Assim passou uma semana e, à outra, desatinou a velha ainda mais. Outra
vez mandou o velho para o pé do peixinho, dizendo:
– Volta para o pé do para azul e saúda o peixinho. Já não quero ser
fidalga de quatro costados: quero-me tornar numa tsarina!
Assustou-se o velho e implorou:
– O que é, bába, enlouqueceste? Nem sequer sabes dar um passo, nem
falar. Farás rir o reino todo.
Zangou-se ainda mais a velha e deu uma bofetada na cara do marido.
– Como te atreves, mujique, a discutir comigo, uma fidalga de quatro
costados? Vai já, já ao pé do mar – falo-te de verdade! Se não fores, mando-
-te à força.
O velhinho lá foi ao pé do mar (o mar estava negro) e começou a cha-
mar pelo peixinho dourado. Chegou o peixinho e perguntou:
– De que precisas, oh ancião?
Respondeu o velho com a reverência das outras vezes:
– Tenha piedade, meu senhor. A minha velha está outra vez zangada,
subleva-se. Agora já não quer ser fidalga: quer-se tornar numa tsarina.
Respondeu o peixinho dourado:
– Não estejas triste, vai com Deus! A tua velha será uma tsarina.
O velhinho voltou para o pé da velha e, pois bem, perante os seus olhos
erguia-se um palácio real e, lá dentro, a sua velha sentada à mesa, como uma
tsarina. Os boiardos e os nobres serviam-lhe vinhos estrangeiros e biscoitos
de mel. Uma guarda temível, de cutelos aos ombros, estava à sua volta. Ven-
do tudo aquilo o velho assustou-se. Inclinou-se até aos pés da velha, e disse:
– Salvé! Oh Terrível tsarina! Agora a tua alminha está satisfeita?
A velha nem sequer o olhou, mandou apenas pô-lo fora. Aproximaram-
-se, correndo, os boiardos e os nobres, a empurrar o velho. E, à porta apare-
ceu a guarda, que o ia quase despedaçando com os seus cutelos. A multidão
riu largamente dele, gritando:
– Recebeste bem o que mereces, velho ignorantão. Isto te servirá, daqui
em diante, idiota, como ensinamento: “Cada um no seu lugar”!
Assim passou outra semana. Durante a qual a velha mais desatinava.
Mandou então aos cortesãos buscar o marido, para que o encontrassem e o
trouxessem para o pé de si. Quando lho trouxeram, ordenou ela:
– Volta para o pé do peixinho, saúda-o. Não quero ser tsarina: quero-
-me tornar soberana do mar; viver no oceano, para que o peixinho dourado
me sirva e seja servo dos meus desejos.
Não teve coragem o velho de a contrariar, nem ousou sequer contradizê-
-la. Assim voltou para o pé do mar azul, e viu desencadear-se uma negra
tempestade. As ondas estavam altas e bravas, uivando. Começou o velho a
clamar pelo peixinho dourado. Chegou o peixinho e perguntou:
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 253

– De que necessitas, oh ancião?


Respondeu o velho com a habitual reverência:
– Tenha piedade, meu senhor. O que hei-de eu fazer a esta velha maldi-
ta? Ela já não quer ser tsarina: quer-se tornar soberana do mar, viver no
oceano para que tu a sirvas e sejas servo dos seus desejos.
Não respondeu o peixinho dourado, apenas chapinhou com a cauda na
água e recolheu-se para o mar azul. Esperou o velho, junto ao mar durante
muito tempo a resposta. Como não a obteve voltou para junto da velha. E foi
então que, súbito, viu outra vez a sua antiga cabana, a velha sentada à entra-
da, e ao pé dela a tina partida.

Vocabulário russo:

isbá – casa característica dos camponeses do Norte da Europa e mais par-


ticularmente da Rússia, construída geralmente com madeira de pinheiro.
tsarina – esposa do tsar; mulher social e/ou economicamente bem-
-sucedida.
bába – a mulher do camponês.
mujique – camponês russo.
boiardo – senhor feudal, grande proprietário de terras nos países eslavos,
especialmente na Rússia e, por extensão, nas províncias danubianas da
Europa central, cujo título nobiliárquico era inferior apenas ao dos prínci-
pes reinantes.
254 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Anton Tchekhov: O Gordo e o Magro

Texto traduzido por Marina Khabenskaya


Revisto por Maria Helena da Costa Guimarães

Na estação de comboios encontraram-se dois amigos: um gordo e o


outro magro. O gordo tinha acabado de almoçar na estação e os seus lábios,
besuntados de manteiga, reluziam como duas cerejas maduras. Exalava dele
um cheiro a sherry e a fleur d’orange. O magro acabara de sair da carruagem
naquele momento e estava carregado de malas, sacos e caixas de cartão.
Cheirava a presunto e a borra de café. Por trás dele espreitava uma mulher
magricela de queixo comprido, a sua esposa, e o aluno de liceu alto com os
olhos meio fechados era o seu filho.
– Porfírio! – gritou o gordo ao ver o magro.– És mesmo tu? Meu queri-
do amigo! Há quanto tempo!
– Meu Deus do céu! – exclamou de espanto o magro.– Micha! Meu
amigo da infância! Mas que fazes tu por aqui?
Os amigos beijaram-se três vezes e fitaram-se com os olhos rasos de
lágrimas. Os dois sentiam-se agradavelmente surpreendidos.
– Querido amigo! – começou a dizer o magro depois de se terem beija-
do – Não estava nada à espera! Que surpresa! Vá, olha bem para mim! Con-
tinuas a ser um bonitão! Sempre encantador e janota! Deus seja louvado! Vá,
conta lá como vai a tua vida? Estás rico? Casado? Eu já sou casado, como
vês... Esta é a minha mulher Luísa, Vantsenbakh em solteira... protestante. E
este é o meu fiho, Nafanail, aluno da 3ª classe. Este, Hafania, é um amigo da
minha infância. Estudámos juntos no liceu!
Nafanail pensou por instantes e tirou o chapéu.
– Estudámos juntos no liceu! – continuou o magro. – Lembras-te como
se metiam contigo? Chamavam-te Heróstrato por teres queimado com o
cigarro o livro da escola e a mim chamavam-me Efiáltes por que era queixi-
nhas. Ha-ha... Éramos crianças! Não tenhas medo, Nafanail! Aproxima-te
mais dele... E esta é a minha mulher, Vantsenbakh em solteira ... protestante.
Nafanail pensou por uns instantes e escondeu-se atrás do pai.
– Então, como vais tu, meu amigo? – perguntou o gordo, olhando exta-
siado para o amigo. – Onde és tu funcionário? A que escalão já chegaste?
– Sou funcionário, meu caro amigo! Há já dois anos que atingi o oitavo
escalão de assessor colegial e já tenho um galardão Stanislav. O salário é
pequeno… mas paciência! A minha mulher dá aulas de música e eu faço
cigarreiras de madeira. São fantásticas. Vendo-as a um rublo cada. Se
alguém leva 10 ou mais, faço um desconto, claro. E assim nos vamos
aguentando. Sabes, servi como funcionário no departamento e agora fui
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 255

transferido para cá como chefe do mesmo departamento. Vou trabalhar aqui.


E tu, como estás? Com toda a certeza que já és Conselheiro estatal.
– Não, meu querido amigo, pensa mais alto, – disse o gordo. Já sou
Conselheiro do III grau e tenho duas estrelas.
O magro, de repente, ficou pálido e petrificado; mas logo o seu rosto se
torceu em todos os sentidos num sorriso a tal ponto aberto, que até parecia
que tinha visto estrelas ao meio-dia. E ele próprio se encolheu, se curvou,
ficando ainda mais sumido. As suas malas, sacos e caixas de papelão enco-
lheram-se, contraindo-se... O queixo comprido da sua mulher ficou ainda
mais comprido. Nafanail pôs-se em sentido e abotoou todos os botões do seu
uniforme.
– Eu, Excelência, ... É um grande prazer! Amigo, pode dizer-se, da
infância e, de repente, estamos perante um tão alto dignitário! Hi-hi
– Vá la, chega! – disse o gordo, fazendo um trejeito. A que propósito
falas nesse tom? Somos amigos desde a infância – E que vem para aqui fazer
todo esse servilismo!
– Perdão! Mas o que está a dizer... – riu-se à socapa o magro, encolhen-
do-se ainda mais. A amável atenção de Excelência é como uma bênção revi-
gorante. Estes aqui, Excelência, são o meu filho Nafanail e a minha mulher
Luisa, protestante, de certo modo...
O gordo ainda queria objectar, dizer alguma coisa, mas na cara do
magro estava estampada tal veneração, docilidade e azedume reverente que o
Conselheiro sentiu vómitos. Virou a cara para o lado e estendeu a mão para
se despedir do magro.
O magro apertou três dedos, fez uma vénia com todo o corpo e riu-se à
socapa como um chinês: “hi-hi-hi”. A mulher sorriu. Nafanail fez um sala-
maleque e deixou cair o boné. Todos os três estavam agradavelmente sur-
preendidos.
INFORMAÇÃO SOBRE OS AUTORES

Ana Matoso – Mestre em Teoria da Literatura, Faculdade de Letras da Uni-


versidade de Lisboa. Doutoranda em Teoria da Literatura, Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa

Ana Prokopyshyn – Mestre em Linguística Geral (Sintaxe Comparada do


Português e do Russo), Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Doutoranda em História Contemporânea. Leitora de Língua e Cultura
Russas I e II, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

António Eduardo Mendonça – Mestre em Museologia, Faculdade de Ciên-


cias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Doutorando
em História Contemporânea.

Cristina Mestre – Licenciada em Psicologia, Universidade de Moscovo


Lomonossov. Tradutora em agências de notícias russas.

Elena Bulakh – Doutorada em Linguística Histórica e Comparativa, Univer-


sidade Estatal de Pyatigorsk, Rússia – grau reconhecido pela Universi-
dade de Lisboa. Leitora de Russo V e VI, Faculdade de Letras da Uni-
versidade de Lisboa.

Halima Naimova – Mestre em Filologia (Estudos Orientais), Universidade


Estatal de S. Petersburgo. Pós-graduação em Ciências Documentais,
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Responsável pela
Biblioteca e o Arquivo científicos, Observatório Astronómico de Lis-
boa. Docente de Língua e Cultura Persas, Universidade Católica Portu-
guesa.

Luís Rafael Gomes – Mestre em Filosofia, Universidade Estatal de Mosco-


vo. Professor de Filosofia, Escola Secundária de Vila Real de Santo
António.

Larysa Shotropa – Doutoranda em Linguística (Formação de palavras em


Português e em Russo), Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
258 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

Universidade Nova de Lisboa. Leitora de Língua Russa, Instituto


Oriental – Universidade Nova de Lisboa.

Jayanti Dutta – Mestre em Literatura Russa, Universidade Estatal de Mos-


covo. Leitora de Língua e Cultura Russas III e IV, Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa.

João Pedro Fróis – Doutor em Ciências da Educação, Universidade de Lis-


boa. Mestre em Educação, Universidade Técnica de Lisboa, e em Psico-
logia, Universidade Estatal de S. Petersburgo. Investigador Auxiliar,
Universidade de Lisboa. Docente dos Cursos de Doutoramento e de
Mestrado, Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.

Maria Helena Guimarães – Doutorada em Tradução e Paratradução, Uni-


versidade de Vigo. Professora Adjunta de Russo e Alemão, Instituto
Superior de Contabilidade e Administração do Porto.

Maria Teresa Neves Ferreira – Mestre em Língua e Literatura Russa, Uni-


versidade Estatal de Moscovo, Ex-Leitora de Língua e Cultura Russas,
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Marina Khabenskaia – Mestre em Linguística Portuguesa e Comparada,


Universidade do Minho. Doutoranda em Tradução e Paratradução, Uni-
versidade de Vigo. Professora de Russo, Instituto Superior de Contabi-
lidade e Administração do Porto.

Nadejda Machado – Mestre em Teoria da Literatura e Literatura Portuguesa,


Universidade do Minho. Doutoranda em Literatura Comparada. Leitora
de Língua e Cultura Russas, Universidade do Minho.

Oleg Chumakov – Licenciado em Língua e Literatura Russas, Faculdade de


Letras do Instituto Estatal Superior Pedagógico de Maykop. Docente de
Língua e Literatura Russas, Instituto de Línguas da Universidade Nova
da Lisboa.

Pedro Gonçalves Rodrigues – Mestrando em Estudos Literários, Culturais e


Interartes, Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Vladimir Pliassov – Leitor de Língua e Cultura Russas, Faculdade de Letras


da Universidade de Coimbra.
“ROSSOTRUDNICHESTVO”

A Agência Federal da Rússia para os Assuntos da Comunidade dos


Estados Independentes, Сompatriotas Residentes no Estrangeiro, e a Coope-
ração Humanitária Internacional foi estabelecida em setembro de 2008 por
decreto do Presidente da Federação da Russia.
“Rossotrudnichestvo” promove uma imagem objetiva da Rússia moder-
na e das suas realidades materiais e espirituais.
Um dos mais importantes objetivos da Agência é a promoção da língua
russa no mundo. Existe hoje uma larga cooperação entre universidades e
instituições educativas russas e estrangeiras. Milhares de pessoas, especial-
mente jovens, aprendem hoje russo em cursos de línguas promovidos no
estrangeiro; o seu nível de proficiência é avaliado em centros de exames e
confirmado por certificados oficiais. “Rossostrudnichestvo” garante as con-
dições para a aplicação prática da língua russa, bem como para a formação
em russo. A Agência promove o acesso de estudantes estrangeiros às univer-
sidades russas: até hoje, já estudarem no país mais de 500 mil estudantes
estrangeiros, que mantêm laços com a Rússia depois da sua graduação. O
programa “Língua Russa 2011-2015”, aprovado pelo Governo Federal em
junho de 2011, é um instrumento estratégico para a implementação da língua
e da cultura russa no mundo: promovido pelo Ministério da Educação e da
Ciência da Federação da Russia e por “Rossotrudnichestvo”, este programa
foi concebido como uma pedra angular da imagem do país no estrangeiro.
Uma outra importante actividade desenvolvida pela Agência respeita
aos compatriotas que vivem no estrangeiro: “Rossotrudnichestvo” trabalha
para a promoção das suas actividades culturais, científicas e económicas; as
organizações criadas pelos nossos compatriotas são apoiadas pelos Centros
Russos de Ciência e Cultura, bem como pelas agências governamentais rus-
sas. Os Centros servem tradicionalmente de ligação entre todos os cidadãos
russos residindo no exterior; também se revelam úteis para todos aqueles que
desejam aprender a língua russa, conhecer melhor a história e a cultura do
país, ou que procuram a cooperação económica com a Rússia.
Em cada ano, os Centros acolhem numerosas actividades que contam
com a indispensável participação dos nossos compatriotas: conferências e
seminários sobre a realidade russa, encontros com cientistas, políticos e
figuras públicas dos mais diferentes campos. Especial importância merecem
as actividades que comemoram o Dia Nacional da Rússia (com festivais
260 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”

como “A Grande Palavra Russa”, “Viva a Rússia!”, “A Canção da Rússia”


etc.) e o Dia da Vitória. “Rossotrudnichestvo” promove igualmente iniciati-
vas de geminação entre cidades russas e estrangeiras.
Nos Centros Russos de Ciência e Cultura têm lugar festivais de música
e de cinema, exposições de arte e de fotografia; ali actuam artistas bem
conhecidos do público russo, e se reúnem clubes e ateliês dos mais diferentes
domínios. Muitos Centros possuem bibliotecas e clubes de vídeo, e oferecem
também cursos de língua russa. Em todas estas actividades, o público jovem
merece a maior atenção.
A Agéncia participa também na preservação de monumentos e objectos
de origem russa com valor patrimonial; em parceria com o Ministério dos
Negócios Estrangeiros, foi compilada uma lista de objectos do património
cultural russo no estrangeiro, que já engloba mais de 250 itens.
A Agência trabalha com diferentes ONG e organizações religiosas rus-
sas, e ainda com outras organizações internacionais e governos estrangeiros
– em particular no campo da cooperação humanitária. Especial importância
merece a cooperação com instituições da CEI (Comunidade de Estados
Independentes).
Um papel importante cabe também à interação da Agência, não apenas
com as instituições públicas, mas também com organizações não-
-governamentais de âmbito internacional ou local: “Rossotrudnichestvo”
mantém relações frutuosas com a Associação Russa da Cooperação Interna-
cional, a Fundação “Mundo Russo”, a Fundação-Biblioteca “Rússia no
Estrangeiro”, o Conselho Internacional dos Compatriotas Russos, a União
dos Trabalhadores do Teatro, o Conselho Internacional dos Museus, a Asso-
ciação Internacional das Cidades Gémeas, a Associação para a Cooperação
Internacional de São Petersburgo, e muitas outras.
Entre os parceiros de “Rossotrudnichestvo” destacam-se importantes
meios de comunicação social como as agências ITAR-TASS e RIA-Novosti,
os canais televisivos “Russia Today” e TVC, a companhia de televisão MIR,
as emissoras “Voz da Rússia”, os periódicos “Pensamento Russo”, “Século
Russo”, “Mundo Russo” e muitos outros meios de comunicação em língua
russa, tanto no país como no estrangeiro.
Colibri – Artes Gráficas
Apartado 42 001
1601-801 Lisboa
Tel: 21 931 74 99
www.edi-colibri.pt
colibri@edi-colibri.pt

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