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MUNDO RUSSO
PУCCKИЙ MИP
Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
MUNDO RUSSO
PУCCKИЙ MИP
Editor responsável
Vladimir Shatalin
Coordenadores Editoriais
Elena Bulakh
António Eduardo Mendonça
Edições Colibri
Título: MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP
ISBN: 978-989-689-207-4
Apresentação da Publicação................................................................... 7
I. Estudos:
História e Cultura
Literatura
Psicologia e Pedagogia
II. Tradução:
Larysa Shotropa
1 Versão romanceada.
10 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
7 A principal catedral da Rússia ao longo dos séculos. Em 1933, por ordem de Estaline,
foi explodida, sendo construída em seu lugar uma piscina. Em 1996, a catedral foi
reconstruída e novamente se tornou a catedral ortodoxa central da Rússia.
8 A dinastia dos Romanov iria governar a Rússia durante mais de três séculos. Pedro o
Grande, Ekaterina II e o último czar Nikolai – são só alguns dos representantes dessa
dinastia de czares russos;
9 Recordamos que a mãe de Ivan, Helena Glinskaia, era polaca;
10 Recordamos que a alcunha do avô do czar, Ivan III, era “O Terrível”.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 15
Inicialmente, foi dito à multidão que Ivan não se encontrava lá. Depois,
quando as pessoas já se tinham acalmado e começado a dispersar, Ivan deu
asas a toda sua raiva. Os boiardos permaneceram apavorados e temeram
aquela raiva ao longo de toda a vida do terrível czar. Exaltado, deu ordens
para disparar contra a multidão e para apanhar os fomentadores. Os soldados
disparavam alegremente e apanhavam as pessoas em fuga. Logo tudo se
acalmou. E nos dias seguintes, pedindo desculpa e glorificando o czar, os
condenados iam para o cadafalso.
Exatamente na altura do grande incêndio, apareceu na vida do czar um
simples sacerdote, Silvestre, que teve a coragem de lhe falar como igual e
que ao longo de treze anos seguintes o influenciou significativamente, junto
da sua religiosa mulher. Silvestre disse a Ivan que o incêndio não era outra
coisa senão o fogo divino dos céus: assim eram pagos os pecados cometidos
ao longo dos anos anteriores, as execuções injustificadas, as violações e todo
o mal que o jovem czar tinha feito. E, se não parasse, o fogo iria engolir toda
a Moscóvia.
Silvestre parecia um vidente. Como um pai intimida a criança desobe-
diente, assim o sacerdote intimidava o czar de dezassete anos. E este último
cedeu, mas só por momentos. Ivan continuava a ser o Poder, enquanto Sil-
vestre era a sua “cabeça”. Uma grande ajuda vinha da parte de Anastácia.
Naquela altura, Ivan vivia cheio de paixão pela sua jovem mulher, que era
alegre, bonita e muito religiosa. Ela salvara-lhe a alma. Os “tempos de Nero”
já eram do passado. O amor, a paz, o perdão e a leitura do Evangelho – nisso
e disso vivia Ivan IV. Era sábio, responsável pelo seu povo, perfeito e puro
de corpo e alma. O casamento com Anastácia, os treze anos de vida em
comum, ficariam como um dos melhores períodos da história da Rússia.
Os boiardos reuniam-se na Duma11, mas não eram eles que governa-
vam. O czar juntou um grupo de homens jovens, de famílias russas distintas,
mas também de famílias humildes, assim como um dos seus melhores ami-
gos, Aleksey Adashev e ainda Silvestre. Eram eles os bons conselheiros do
jovem czar. Seguiram-se grandes reformas. Foi elaborado o novo Código do
Estado de Moscóvia, tentando regularizar as relações com a igreja; abriam-se
escolas, tentava-se melhorar a vida.
Em 1550, Ivan IV dirigiu-se com um discurso histórico ao povo. Este
discurso não foi proferido no palácio, e não foi dirigido aos boiardos, como
acontecera outrora; Ivan falou ao povo moscovita. Falou com o coração e
com muita paixão. Parecia que se encontrava em frente de toda a nação rus-
sa. Naquele discurso, Ivan pediu ao seu povo que se unisse na paz e no amor,
que fossem perdoadas as ofensas, que se esquecessem as maldades até então
cometidas. O czar anunciou-se defensor de todos aqueles que sofriam das
injustiças dos mais poderosos. Chorava lágrimas sinceras e o povo, ajoelha-
11 Parlamento russo.
16 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
vel e Ivan decidiu marchar contra o khan de Kazan12. Ao lado do czar mar-
chava o seu primo, o príncipe Vladimir Staritsky, cujo pai acabara de pade-
cer na prisão (encarcerado por ordem da mãe de Ivan). Cedendo aos pedidos
de Silvestre, Ivan redimiu a culpa, não só libertando o primo, mas também
aproximando-o de si e tornando-o como um irmão.
Então chegou o grande dia para toda a Rússia – o dia da batalha pela
cidade de Kazan. No início, Ivan dirigiu-se com um discurso pacífico ao
khan e aos habitantes da cidade: propôs-lhes renderem-se em troca da vida e
da liberdade. Mas o corajoso khan respondeu: “Ou morremos todos ou
defendemos as nossas terras”. Então Ivan ordenou o ataque.
O exército russo entrou com poucas perdas na cidade, pois os espiões
tinham feito explodir o armazém das munições e os soldados entraram pelas
brechas das paredes. Já estavam eles a aproximarem-se de palácio do khan
quando aconteceu o inevitável: a cidade de Kazan era riquíssima e os guer-
reiros do czar, esquecendo-se de batalha, começaram a pilhar. Ivan conhecia
bem o seu exército e tentou prever tudo: atrás dos guerreiros ia o exército
especial com as espadas desembainhadas, para não permitir a “vergonha
perigosa”. O czar só não anteviu que estes últimos também se puseram a
saquear. Os tártaros começaram a contra-atacar e os russos estavam prestes a
bater a retirada. Precisamente nessa altura, nas portas da cidade, apareceu
Ivan com o novo reforço e assim decidiu o fim da batalha. Os russos foram
muito cruéis, não deixaram ninguém vivo à sua frente. Dizem os historiado-
res que os corpos chegavam à altura dos murros da cidade. Só o khan foi
apanhado e deixado vivo. Depois, num gesto de humilhação, Ivan batizou-o.
Assim fora obtida uma das mais importantes vitórias daquela época. Em
honra da conquista de Kazan, Ivan mandou construir, na Praça Vermelha, a
bela catedral, o símbolo de Moscovo, mais conhecida sob o nome de Vassily
Blajenny.
É relevante saber o que se passava naquela época para compreender a
importância da vitória obtida. O relinchar dos cavalos – o som assustador das
incursões tártaras, a que se seguiam incêndios, mortes e escravidão – passou
para a história. Começara o fim do jugo tártaro, que deixou vestígios de san-
gue asiático nas veias de descendentes das mulheres violadas. Ao longo de
muitos anos, como testemunho disso mesmo, nasceriam crianças russas
morenas e de olhos asiáticos. Pela primeira vez, o Ocidente levantou-se con-
tra o Oriente. E, também pela primeira vez, a Ásia recuou. Pela primeira vez,
depois da ocupação tártara, veio um czar novo, forte, que conseguiu libertar
o seu povo e pôr fim ao horror que subjugava as terras russas. Com lágrimas
de alegria, o povo russo glorificava o czar Ivan.
Logo após esta milagrosa cura, Ivan e a família partiram para o mostei-
ro Kirilo-Belozersky – para comemorar a sua saúde restabelecida. No cami-
nho de volta ocorreu algo fatal: a ama deixou cair no rio o pequeno príncipe
herdeiro, que se constipou e acabou por falecer ainda longe do Kremlin. Mas
o destino foi benevolente em relação a Ivan, pois a amada Anastácia iria dar
à luz mais dois filhos, Ivan e Fiodor.
Tinham passado cinco anos após a “doença” de Ivan. Já fora conquista-
da Astrakhan e Ivan sonhava com mais conquistas. Silvestre propôs começar
uma nova campanha, desta vez contra a Criméia, que estava nas mãos dos
tártaros. Os conselheiros do czar apoiaram-no, dizendo que o país estava
farto da escravatura dos khans e que tinha de se pôr fim às incursões dos
nómadas uma vez para sempre.
Os tártaros da Criméia invadiam com frequência as terras russas: sem
acender fogueiras, sem descanso nem comida, eles atacavam inesperadamen-
te depressa nos locais onde ninguém os esperava. Ardiam as cidades saquea-
das, ficavam as aldeias vazias e milhares de mulheres e crianças loiras eram
levadas para serem vendidas para a escravidão. As praças turcas de escravos
estavam cheias de belas mulheres e rapazes loiros de olhos azuis. Os comer-
ciantes, ao verem a fila longa de escravos, perguntavam-se: ”Será que ainda
ficou alguém naquelas terras?!”
Mas em vez de atacar a Criméia, Ivan escolheu a Livónia15, que lhe
podia dar saída para os mares nórdicos e abria caminho para a Europa, para o
Ocidente. As terras da atual Estónia, em tempos, pertenceram aos antepassa-
dos de Ivan, aos cavaleiros da ordem Teutónica. Agora a Livónia constituía
uma presa apetitosa para a Suécia, para a Dinamarca e ainda para Rech Pos-
polita16. Por isso, o czar russo decidiu atacar primeiro.
A recusa de invadir a Criméia foi explicada por Ivan por temer que a
Turquia, que apoiava o khan da Criméia, entrasse em guerra com a Rússia.
Os conselheiros do czar ficaram muito admirados e desapontados ao repara-
rem na teimosia do Ivan, pois já davam a guerra no Sul (da Criméia) como
decidida. Diziam eles que, se atacassem a Criméia, sim, realmente haveria o
perigo de a Turquia entrar em guerra. Mas, por outro lado, se atacassem a
Livónia, seria muito mais arriscado, pois nesse caso a Rússia entraria em
guerra com a Suécia, com a Dinamarca e ainda com a Rech Pospolita – o
exército europeu contra o qual o exército russo, mal instruído e pouco disci-
plinado, não seria capaz de se defrontar.
Ivan sabia que eles tinham razão, mas revoltou-se contra os conselhei-
ros indesejados, que lhe tinham retirado o poder e não o deixavam decidir
pela sua própria cabeça. Basta! Já chegava da humilhação de tantos anos.
Tratavam-no como se fosse o seu igual ou como se fosse uma criança. A
partir daí seria ele a tomar as decisões. A liberdade que os boiardos tinham
tido nos anos da juventude do czar havia de acabar!
Tudo o que fora calado ao longo de anos, explodiu! Todos sentiram a
fúria do czar e ouviram o grito de cólera: ”Livónia!”.
Lá, já se esperava os russos. Desde que Ivan conquistara as terras tárta-
ras, na Livónia pressentiu-se que a seguir se virava para norte. Por isso,
decidiram não vender armas aos russos e não deixar que os armeiros passas-
sem a trabalhar para o czar.
Com a decisão já tomada, Ivan quis dar um espetáculo: convidou os
embaixadores da Livónia para um grande banquete. Fez-se imensa comida,
as mesas estavam cheias, não havia lugar para mais pratos, trazia-se vinho
sem fim…Mas os que serviam à mesa passavam ao lado dos hóspedes. Os
embaixadores esfomeados estavam rodeados de russos a comerem e a bebe-
rem, mas nada lhes davam a eles. Depois foram mandados embora, com
gritos e assobios.
Logo após a partida dos embaixadores ofendidos, Ivan avançou com o
seu exército multinacional: para além dos russos, haviam nele tártaros e
homens de várias tribos conquistadas. Os cavaleiros fecharam-se nos caste-
los e fortificações, deixando o povo à guarda da sorte. E os asiáticos, selva-
gens, incendiavam, pilhavam e matavam tudo o que lhes aparecia à frente,
violavam mulheres e logo lhes abriam as barrigas. Assim começou a guerra
com a Livónia, que durou mais de vinte anos.
Pouco tempo depois do início desta guerra, Ivan sofreu um dos maiores
e mais atrozes golpes da sua vida: morreu Anastácia17. A morte da sua ama-
da mulher dividiu a governação de Ivan: assim como o seu casamento fora o
início de uma grande e boa época, a partida da Anastácia representava o
princípio de uma nova época na história russa e do aparecimento de um czar
novo, até lá desconhecido. A morte de Anastácia revirou o rumo de toda a
Rússia.
Anastácia morreu depois de uma doença. Mas o czar, que viu tantas
maldades praticadas pelos boiardos, suspeitou que ela tivera sido envenena-
da. Contudo, quando ela faleceu, não houve acusações.
Naquela altura Ivan não se atreveu a dizer ou a investigar nada. Sentia
um sofrimento e uma tristeza incalculável. Desapareceu o único ser que ele
foi capaz de amar e que o entendia e o amava. A Anastácia não tinha medo
dele, ela amou-o verdadeiramente. As mulheres que se vão seguir na vida do
Ivan terão medo.
Pouco tempo depois da morte da Anastácia, começaram as tragédias.
A primeira vítima foi o Silvestre, o eterno sacerdote e o mestre da alma
de Ivan. Este era capaz de encontrar razão para tudo: fosse a morte de uma
criança doente, uma seca ou uma chuva, – em tudo Silvestre via o castigo
divino e mandava rezar. Enquanto Ivan era novo e tinha a Anastácia, muito
religiosa, ao seu lado, obedecia sempre. Mas agora fartara-se. Não, Ivan não
se atreveu a matá-lo: simplesmente enviou-o para o mosteiro Solovetsky, de
onde raramente alguém regressava com vida.
Ao longo dos anos, Ivan teve um amigo, um conselheiro preferido, pes-
soa de confiança, considerado quase seu irmão: Aleksei Adashev. E até ele
foi morto. Todos os companheiros de Ivan padeceram: alguns foram direta-
mente para o cadafalso, outros foram exilados para mosteiros longínquos,
outros morreram envenenados. Na sua fúria, o czar ultrapassou o seu lendá-
rio avô – Ivan III, o Terrível – a partir desse tempo a história conheceria
apenas um czar terrível, Ivan IV.
Ivan sofria profundamente, à sua maneira mas a vida obrigava-o a pen-
sar no futuro. Por isso, poucos dias após o enterro de Anastácia, enviou a sua
embaixada ao rei polaco, Siguizmund, pedindo a mão da sua irmã em casa-
mento, o que lhe foi recusado. Então Ivan virou-se para outro lado, para o
Cáucaso e casou-se com a princesa Cherkessa Maria. O czar tinha de pensar
apenas em interesses de estado: na união com o príncipe caucasiano, pai de
Maria, que possibilitava uma melhor defesa dos tártaros, que de vez em
quando invadiam as terras do sul da Rússia.
Para a corte real voltaram os tempos de outrora: as bebedeiras, as
orgias, as torturas e o sangue – muito sangue, por todo o lado. Os boiardos
de dinastias e com raízes lendárias eram mortos uns atrás dos outros. Eram
assassinados até na hora de oração, nas capelinhas e até nas igrejas – para
Ivan não existiam locais proibidos. A intenção era de mostrar a todos que
não havia poder maior que o poder do czar. Nem Deus Todo Poderoso, nem
o diabo podiam salvar alguém apontado por Ivan. Havia só um único poder –
o do déspota Ivan.
Ainda aconteceu algo que arrancou o último sentido humano que resta-
va algures nas profundidades da alma do czar: um dos mais fiéis e dos mais
próximos de Ivan, o príncipe Kurbsky – traiu-o, fugindo para o inimigo, o rei
polaco (nessa altura a Polónia já estava em guerra com a Rússia). Ivan ficou
ainda mais abandonado e, consequentemente, mais cruel. “Se o melhor de
todos foi capaz de me trair, o que posso, então, esperar dos outros?” – pen-
sava ele. E decidiu: todos os boiardos são traidores. Matava por suspeita, por
prazer, sem julgamentos, por vezes mesmo no seu palácio. (nem se fala das
caves e prisões subterrâneas horríveis, onde se praticavam torturas impossí-
veis de imaginar).
Assim se seguiram os anos...
Ao mesmo tempo, Ivan continuava a ser ator. Em 1564, uma estranha
procissão saiu do palácio do czar. Fora anunciado que Ivan Vassilievich ia
rezar. Mas nunca dantes ele ia rezar daquela forma: junto com Ivan encon-
trava-se a sua mulher, a “escura” Maria, os seus filhos: Ivan e Fiodor, os
22 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
outros. Mas ainda haviam de chegar os tempos em que a morte por decapita-
ção seria desejada, pois ao sangrento czar esta forma de morrer parecia
demasiadamente “leve” e então inventaria torturas mais incríveis.
Criando a Oprichnina, o czar inventou para ela uns tristes símbolos:
cada cavaleiro pendurava uma cabeça de cão e uma vassoura à sua sela.
Aquilo simbolizava: primeiro, encontrar a traição e varrê-la para mais longe
possível; segundo, defender o czar e ser-lhe fiel assim como o cão é fiel ao
seu dono. Os soldados de Oprichnina tinham o poder total e eram tudo: a
defesa estatal, a polícia secreta – ao todo, eram seis mil pessoas, escolhidas
pelo czar. Nenhum deles podia ter qualquer tipo de ligação de sangue com os
de Zemchina.
No estrangeiro, não se podia saber do massacre que ocorria no país: os
embaixadores eram obrigados a dizer que nada estava a acontecer e que, se
alguma notícia chegasse à Europa, não passava de uma mentira.
Oprichnina, para além das pilhagens e mortes, trouxe ao país o sentido
de medo eterno: ninguém sabia o que se poderia seguir, o que poderia passar
pela cabeça do czar, por que motivo iria ele matar ou perdoar. E ainda nin-
guém percebia para que fora criada essa Oprichnina de sangue e selvajaria.
O que viria a seguir?
Ivan criou um jogo novo: o jogo dos frades. Juntou os soldados de
Oprichnina, de quem mais gostava, a quem deu a roupa de frades; ele pró-
prio assim se vestia considerando-se o superior deles. Rezavam como se
estivessem num mosteiro e, interrompendo as orações, torturavam os infeli-
zes incriminados por culpas inventadas e sem sentido18. Depois de passar
algum tempo nas caves, nas câmaras de tortura, Ivan regressava muito satis-
feito e continuava a rezar. Dizem as crónicas que, de vez em quanto, Ivan
rezava com sinceridade, com lágrimas e súplicas, pois tinha consciência
daquilo que fazia. Mas isso acontecia apenas em momentos de fraqueza, que
rapidamente passavam, e o czar continuava dedicado à sua obra: criar um
estado obediente e subjugado ao medo. O poder do czar era total e nem o
Metropolita era capaz de salvar alguém da morte. A submissão tinha de ser
total e para se certificar disso, Ivan mandou os seus “cães” para Moscovo.
Estes levaram as mulheres dos boiardos para a capital de Oprichnina. As
mais bonitas eram violadas primeiro pelo czar e pelo seu filho mais velho –
também Ivan, e de seguida divertiam-se os oprichniki19. Depois as mulheres
foram devolvidas aos maridos. Muitas suicidaram-se, sem conseguirem
ultrapassar a vergonha, mas os maridos, rangendo os dentes, ficaram cala-
dos, nada disseram: tinham medo.
18
Esse tempo vai-se repetir, já em meados do século XX, quando milhares, milhões
morriam sem culpa alguma, por ordem de outro ditador sangrento, Estaline, que con-
siderava Ivan IV seu professor.
19
Soldados fieis ao czar, em Oprichnina.
24 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
20
Cidades russas antigas
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 25
21
Uma das mais antigas cidades russas.
26 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
22
Como viria a ser descoberto, a morte fora provocada por uma elevadíssima dose de
mercúrio.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 27
23
Tempo que se seguiu à morte do Ivan IV, quando o país ficou sem o czar legítimo,
apareceram vários “czares”falsos e a Rússia foi ocupada pela Polónia; o desespero, a
pobreza deste tempo não tinham comparação em toda a história russa.
24
Pessoas que diziam ser o “príncipe Dimitrii”, o verdadeiro herdeiro do trono russo,
que milagrosamente se tinha salvo, em Uglich.
28 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
Bibliografia
Mussky, I.A., (2000). Sto velikikh diktatorov [Os 100 maiores ditadores]. Mos-
covo, Veche;
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Sites
http://www.tonnel.ru/?l=gzl&uid=132)
http://vivl.ru/grozny/grozny.php
BREVE EXPOSIÇÃO DOS PERÍODOS DA FORMAÇÃO
DA LÍNGUA RUSSA
Introdução
1
No presente artigo não foram apresentados os exemplos ilustrativos das línguas esla-
vas, por não ter sido possível reproduzir os caracteres correspondentes.
2
Os Eslavos orientais, como povo formado, foram descritos pela primeira vez pelos
Bizantinos em meados do século VI.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 31
3
O historiador russo S.M. Solov'yev (1820-1879) na sua obra “História da Rússia desde
os Tempos Antigos”, dividiu a história russa em vários períodos, atribuindo-lhes
designações atualizadas, embora um pouco artificiais.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 33
4
Número duplo que indicava duas pessoas ou coisas.
5
Forma nominal dos verbos que, usada como substantivo, designava o resultado da
acção.
6
Tempo verbal que indicava uma acção simples sem ideia de duração, ocorrida em
época passada.
7
Varegues significa em nórdico antigo Vikings.
34 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
8
N.K. Nikol'ski, “Acresce a questão sobre os caracteres russos antigos, referidos na
Vida de Constantino, o Filósofo.”
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 39
isso é que a base da língua das primeiras traduções foi o dialeto destes esla-
vos que, sendo o materno, era o mais conhecido dos autores.
Não sabemos exactamente a naturalidade de Constantino e Metódio, se
grega ou eslava. Alguns investigadores consideram que os dois irmãos eram
eslavos, outros gregos, sendo que ambas as partes fornecem bastantes pro-
vas. Mas o facto é que muitos eslavos, até agora, chamam-se a si mesmos
gregos porque pertencem à Igreja grega.
Metódio, o mais velho dos irmãos, ocupou-se da atividade administrati-
va – no decurso de uma série de anos foi governante de uma das regiões
eslavas no Sudeste da Macedónia ocupada pelo Império Bizantino.
Constantino, o mais novo, era muito instruído e, durante algum tempo,
ocupou-se da atividade missionária. No decurso das suas viagens, travou
conhecimento com as diferentes escritas (hebraica, copta, entre outras) e com
os dialetos dos diferentes povos eslavos (moravos, panónicos, búlgaros). O
trabalho de composição do abecedário eslavo e de tradução de livros religiosos
para a língua eslava foi iniciado nos finais dos anos 50 do século IX.
No ano 863, por encargo do Imperador bizantino Mikhail III, Constan-
tino e Metódio encabeçaram uma missão à Morávia, na qual o papel dirigen-
te pertenceu ao irmão mais novo. Durante a missão prepararam quadros de
sacerdotes de um certo número de habitantes nacionais e continuaram o tra-
balho de tradução da literatura canónica cristã para a língua eslava.
A actividade de Constantino e da sua missão foi recebida com hostili-
dade por parte dos trilingues que defendiam o dogma da legitimidade da
escrita apenas em três línguas: hebraico, grego e latim. Defendendo o direito
dos eslavos, tal como dos outros povos, à sua escrita, os dois irmãos deram
um passo decisivo: dirigiram-se ao chefe da Igreja de Roma a fim de, com a
Sagrada Escritura, dar provas textuais da legitimidade da língua eslava na
escrita. O Papa Adriano II, tendo em conta a elevada autoridade de Constan-
tino e Metódio entre os eslavos, assim como o aumento do poderio dos
jovens estados eslavos, deu aos irmãos o seu apoio oficial, e elevou os seus
discípulos a sacerdotes.
Em Roma, Constantino adoeceu e veio a falecer (a 14 de Fevereiro de
869) com a idade de 42 anos. Pouco antes da sua morte vestiu o hábito de
monge e recebeu o nome de Cirilo. Sob este nome, foi posteriormente cano-
nizado pela Igreja cristã. O Papa nomeou Metódio bispo, para o qual insti-
tuiu um episcopado eslavo especial como o objectivo de consolidar o cristia-
nismo na sua variante bizantina.
Depois da sua morte (em 885), os seus discípulos foram expulsos da
Morávia, o eslavo eclesiástico deixou de ser usado na igreja oficial e as tra-
duções de Constantino, Metódio e dos seus discípulos foram destruídas.
Os discípulos de Metódio, expulsos da Morávia, partiram para a Mace-
dónia, Bulgária e Croácia, onde continuaram o trabalho de criação de livros
na escrita eslava. Na Macedónia, um dos mais talentosos discípulos de
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 41
Referências Bibliográficas
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A DIVERSIDADE LINGUÍSTICA
DA RÚSSIA CONTEMPORÂNEA
Elena Bulakh
António Eduardo Mendonça
Introdução
Para os nascidos e criados em Portugal, a homogeneidade étnica e lin-
guística parece ser da natureza dos estados contemporâneos, habituados que
estamos à quase uniformidade que nos carateriza. Entre nós sobrevive, é
certo, uma língua co-oficial: o mirandês, essa intrusão asturo-leonesa que
nos ficou deste lado da fronteira, e que hoje goza de proteção jurídica como
idioma minoritário; e de outros dois enclaves linguísticos encontramos tam-
bém menção – um no extremo norte e igualmente de afinidade leonesa, o
guadramilês-riodonorês, outro na borda alentejana, o barranquenho. Só que,
em qualquer um destes casos, a dimensão geográfica e demográfica sempre
foi limitada: eram redutos periféricos, nunca excedendo as centenas ou os
escassos milhares de indivíduos cuja língua materna não seria o português;
meras curiosidades regionais, nada que levasse a nossa percepção a questio-
nar sequer a homogeneidade étnica e linguística do espaço português. E,
curiosamente, só a entrada no país de dezenas de milhares de imigrantes
oriundos do leste europeu, desde finais da década de noventa, nos começou a
habituar a que outras línguas entre nós residissem.
46 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
Menção particular merece a língua ket, falada hoje por cerca de duas
centenas de pessoas de uma região da Sibéria Central: será a última sobrevi-
vente das línguas ienisseianas, que uma tese recente – mas crescentemente
aceite – tem associado às línguas dene de povos nativos da América do Nor-
te para formar a família dene-ienisseiana. A comprovar-se a afinidade, seria
o único caso identificado de parentesco entre línguas dos dois continentes.
Extinta em território russo estará a família linguística Ainu (por vezes
incorretamente englobada na família paleosiberiana): correspondia às popu-
lações da metade sul da ilha Sacalina, onde o último falante morreu em
1994, e abrangia também o arquipélago das Curilhas; uma última língua ainu
é ainda falada no Norte do Japão, onde sobrevive na voz de uma escassa
dezena e meia de habitantes da ilha de Hokkaido (embora a sua revitalização
desperte um crescente interesse local). Línguas das ex-repúblicas soviéticas
faladas em território russo: as migrações internas comuns na época soviética
– pois que do Báltico ao Pacífico era um mesmo e único país –, adicionadas
à imigração pós-soviética (provinda sobretudo dos mais pobres de entre os
novos países, como sejam o Tajiquistão, o Quirguistão e a Moldova), resul-
taram na formação de várias minorias nacionais radicadas em território rus-
so: os ucranianos são os mais numerosos, mas também há importantes
comunidades bielorrussas, arménias, georgianas... Na sua maioria, estas
54 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
Referências:
Lähteenmäki, Mika; Vanhala-Aniszewski, Marjatta: Language Ideologies in
Transition: Multilingualism in Russia; Peter Lang, s/ local, 2010
Páginas Electrónicas
* http://en.wikipedia.org/wiki/Languages_of_Russia e páginas do mesmo ende-
reço para as quais tem ligação – consultada em 15/12/2011; foram igual-
mente consultadas as versões portuguesa e russa das mesmas páginas;
* http://int.rgo.ru/news/minority-languages-in-russia-under-threat-of-extinction/
– consultada em 16/12/2011;
* http://www.ethnologue.com/show_country.asp?name=ru e páginas do mesmo
endereço para as quais tem ligação – consultada a 14/12/2011;
* http://www.peoples.org.ru/eng_index.html e páginas do mesmo endereço para
as quais tem ligação – consultada a 14/12/2011;
* http://www.perepis-2010.ru/ http://www.unesco.org/culture/languages-
-atlas/index.php e páginas do mesmo endereço para as quais tem ligação
– consultada a 17/12/2011.
* http://www.unesco.org/culture/languages-atlas/index.php e páginas do mesmo
endereço para as quais tem ligação – consultada a 14/12/2011.
Mapa linguístico da Rússia, parte europeia, © Ethnologue, reprodução autorizada
Mapa linguístico da Rússia, parte asiática, © Ethnologue, reprodução autorizada
LEÃO TOLSTÓI – (DES)MITIFICAÇÃO DA HISTÓRIA
E AS SUAS LEITURAS1
Ana Prokopyshyn
1. Introdução
Apesar de, comparativamente à sua qualidade de romancista, não ser
(re)conhecido como filósofo, o emblemático Leão Tolstói tem um papel
crítico no seu tempo, que transparece além dos seus romances inquestiona-
velmente sociais e históricos, influentes até aos dias de hoje. Tolstói deixa-
-nos uma reflexão teórica sobre a sociedade e as nações, onde desenvolve
uma profunda repercussão crítica, da qual sobressai um evidente desconforto
em aceitar os métodos de investigação e interpretação histórica convencio-
nais, e uma constante procura de explicação dos fenómenos históricos atra-
vés de leis humanas, com plena consciência da dificuldade que daí advém,
leia-se:
1
Este artigo é uma adaptação resumida de uma comunicação apresentada pela autora no
Congresso Internacional «A Europa das Nacionalidades. Mitos de Origem: Discursos
Modernos e Pós-Modernos, no dia 10 de Maio de 2011, na Universidade de Aveiro,
Portugal. (cf.: http://europe-nations.web.ua.pt/index.htm)
56 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
2
Advertimos para o facto de, noutras edições, ao invés da palavra “povos”, encontramos
“nações” (cf. Gardiner, 1966).
3
Do ponto de vista científico, somos obrigados a considerar esse tipo de textos menos
teórico, enquadrando-os numa tipologia diferente: na mitistória (termo datado do séc.
XIX), ou seja, uma narrativa que mescla a História e o mito, mas o mito com a inter-
pretação que primeiramente referimos acima: como lenda, fábula, etc. (cf.
Houaiss:2001).
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 57
pretações do que é o mito – as mais correntes, pelo menos, e que nos interes-
sam na nossa análise – «o relato fantástico de tradição oral, ger[almente]
protagonizado por seres que encarnam, sob forma simbólica, as forças da
natureza e os aspectos gerais da condição humana; lenda, fábula, mitologia
[…]; narrativa acerca dos tempos heróicos, que guarda um fundo de verdade
[…]; relato simbólico, passado de geração em geração dentro de um grupo,
que narra e explica a origem de determinado fenómeno, ser vivo, acidente
geográfico, instituição, costume social etc. ex.: o m[ito] da criação do mundo
[…]; representação de factos e/ou personagens históricos, freq[uentemente]
deformados, amplificados através do imaginário colectivo e de longas tradi-
ções literárias orais ou escritas […]; exposição alegórica de uma ideia qual-
quer, de uma doutrina ou teoria filosófica; fábula, alegoria. ex.: <o m. da
utopia, de More> <o m. da caverna, de Platão […]; construção mental de
algo idealizado, sem comprovação prática; ideia, estereótipo, ex.: <o m. do
bom selvagem>, […] representação idealizada do estado da humanidade, no
passado ou no futuro, [e por último] valor social ou moral questionável,
porém decisivo para o comportamento dos grupos humanos em determinada
época.» [cf. Houaiss:2010].
Praticamente todas as acepções do mito se ligam à antropologia, i.e., à
ciência do homem no sentido mais lato, o que em Tolstói é mais do que evi-
dente, pois este não fala da sua nação nem do seu povo em específico, mas
abarca – ou tenta abarcar – toda a humanidade. O seu ensaio do 2º Epílogo
de Guerra e Paz (1946) é, por assim dizer, uma teoria da História, fazendo
parte do repertório de textos seleccionados por Gardiner (1966) que com-
põem a sua obra Teorias da História, onde figuram nomes como Kant,
Marx, etc. A sua delineação ontológica pode ser resumida nas seguintes
linhas; citemos Tolstói:
Tudo o que sabemos acerca da vida do homem limita-se a uma certa rela-
ção entre a liberdade e a necessidade, ou seja, entre a consciência e as leis
da razão. Tudo o que sabemos acerca do mundo exterior da natureza limi-
ta-se a uma certa relação entre as forças da natureza e a necessidade, ou
entre a essência da vida e as leis da razão. (Tolstói, 1997, 581)
Logo de início nos apercebemos que, apesar de isso não ser dito direc-
tamente, «o povo inteiro» é detentor de força, no sentido em que é relevante
para o processo histórico – aos olhos de Tolstói – “outros” parecem pensar
diferentemente. Nas próximas linhas veremos mais detalhadamente a con-
cepção histórica do pensador russo.
Para as várias leituras de Tolstói destacamos vários autores, cronologi-
camente: Berlin, 1967, Khraptchenko et alii, 1982, Milhazes, 2010 e Barros,
2010, textos que serão evocados sempre que pertinente.
Concluindo esta fase do seu ensaio, Tolstói resume: «em última análise,
atingimos o círculo do eterno […], a electricidade produz calor; este, electri-
cidade», associando este movimento aos fenómenos históricos: «porque
motivo surge uma guerra ou revolução? Ignoramos; sabemos apenas que,
para a execução deste ou aquele efeito, as pessoas se coligam em certa con-
junção, e todas participam; e dizemos ser assim a natureza dos homens, e ser
isto uma lei» (Tolstói, 1995: 215-216).
Numa secção seguinte do epílogo em análise, o autor desenvolverá uma
análise dos conceitos de necessidade e livre arbítrio. Por questões de espaço
e de tempo não nos ocuparemos aqui destes conceitos morosamente, até
porque sairíamos do âmbito deste trabalho. Contudo, no que compete à fun-
ção destes dois elementos na interpretação do processo histórico que Tolstói
nos afigura, convém destacar a seguinte problemática: «Integrado na vida
geral da humanidade, o homem apresenta-se sujeito às leis que tal vida
determinam. O mesmo homem, porém, independentemente deste vínculo,
62 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
4
Lembremos aqui que, aos 82 anos, Tolstoi sai de casa, isolando-se da família e dos
bens materiais, vivendo uma vida semelhante à de um peregrino. Apesar de o Tolstói
de Guerra e Paz não se ter ainda metamorfoseado, podemos já aqui, pelo menos em
1846, observar as raízes filosóficas e ideológicas da sua transição.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 63
4. Leituras de Tolstói
Isaiah Berlin (1967), em The Hedgehog and the Fox, reúne fontes
importantes sobre as leituras de Tolstói pelos intelectuais seus contemporâ-
neos. Não nos compete abordar nem listar aqui o repertório de citações, mas
é pertinente notar que a maioria é exaltadora dos seus romances, mas exis-
tem críticas pejorativas quanto à crítica dos seus ensaios filosóficos e inter-
pretação do processo histórico, como podemos ler abaixo:
Tolstói tem sido dos escritores da literatura mundial mais lidos e admira-
dos no meu país – por assim dizer, uma das figuras tutelares da nossa cul-
tura, que, aliás, muitas afinidades mostra, quanto à atmosfera humana e ao
modo de a captar e de a exprimir, com a cultura russa.
64 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
5. Palavras Finais
Julgamos, através desta breve análise, ter deixado clara a relevância da
interpretação da História por Tolstói para a teoria da interpretação do proces-
so histórico mundial, bem como, dentro dos possíveis, ter explicado como se
movem as nações – e que força está por detrás desse movimento. Parece-nos,
no entanto, ter ficado qualquer espaço por preencher e, se não as mesmas,
outras questões por resolver e perguntas por responder.
Questionamos, então: haverá perguntas, pela sua natureza, sem respos-
ta? E que fazer das perguntas para a qual há várias respostas possíveis? Tal-
vez a explicação esteja no facto de precisar de haver sempre uma pergunta,
para que se continue a encontrar respostas – afinal, em parte é isso que faz
do homem um ser racional. Por vezes o importante não é encontrar a respos-
ta, mas formular a pergunta certa. Aqui reside, talvez, a principal causa da
constante e infinita actualidade de Tolstói, porquanto os grandes génios são
nacionais e mortais, são ao mesmo tempo universais, atemporais e constan-
temente actuais e actuantes, usando palavras de Lenine (1977:23): «algo que
não desapareceu no passado, o que pertence ao futuro»
É interessante que, tal como nos descreve Bursov (1982:42), Tolstói
desistiu mais de uma vez do trabalho literário, argumentando que este não
constituía parte das ocupações humanas mais importantes. «Lavrava a terra,
semeava e ceifava o trigo, arranjava a estufa de azulejos e cozia as bootas.
Numa palavra, fazia o mesmo que os camponeses que viviam em Yasnaia
Poliana e em toda a Rússia». Mas o facto é que Tolstói nunca conseguiu
parar de escrever. «Em certa ocasião disse, por graça, que não compreendia
como ele, um velho de 70 anos e com inteligência, se dedicava a coisas tão
frívolas como escrever romances», Bursov (1982:42).
Constatamos, que, provavelmente por esta posição, Tolstói não se limi-
tou a escrever romances, nem os seus romances eram apenas romances. No
epílogo de Guerra e Paz encontramos um discurso interpretativo da origem
das nações e dos povos, que nada de ficcional parece querer ter, pelo contrá-
rio: a exactidão matemática que, segundo Tolstói, a História deve ter é basi-
lar para a narração objectiva e, acima de tudo, verídica dos factos históricos,
e a pertinência da sua preocupação é actual para qualquer campo da ciência –
mas as suas ideias de forças emulsionantes não deixam de poder ser traduzi-
das, simultaneamente, por um mito utópico atemporal.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 67
Bibliografia:
Nadejda Machado
guarda aceita o meio artístico como tal, na sua generalidade. Este conceito
de Marx utilizado por Peter Bürger pressupõe “reconstruir o processo de
produção artística como um processo de eleição racional entre diversas
maneiras de actuar cujo acerto depende do efeito conseguido” (Bürger,
1993:46). O posicionamento de ruptura da Vanguarda determinou uma
enorme variedade de correntes e movimentos, muitos deles breves e versá-
teis. Este facto quase eliminou a possibilidade de elaborar um estilo autóno-
mo e específico desta época. A diversidade dos meios artísticos e literários,
dado o condicionamento das normas sociais do tempo, só foi possível no
interior da sociedade burguesa. Exemplo flagrante de aplicação desta diver-
sidade de procedimentos variados e variados meios na obra artística foi, sem
dúvida, o Futurismo, uma das primeiras correntes da Vanguarda a difundir-
-se pela Europa, com alguns efeitos em Portugal, e que se estendeu larga e
fecundamente pela grande Rússia. O manifesto de Marinetti de 1909 provo-
cou um terramoto em todos os géneros artísticos, resultando daí uma forma-
ção completamente inovadora e diversificada na sua produção artística e que
adquiriu traços nacionais nos países onde foi implantada. Esta realidade foi
muito notória principalmente na Rússia.
O Modernismo e as ideias da Vanguarda difundiram-se rapidamente
pelo enorme território da Rússia. Em várias cidades foram criados círculos
literários vanguardistas que foram editando as suas obras. De qualquer for-
ma, podemos dizer que o duplo centro deste pensamento estético permane-
cia, como, aliás, outros de índole diferente, em duas capitais rivais: S.
Petersburgo e Moscovo, cada uma com as suas fontes de inspiração e os seus
desenvolvimentos bem marcados. Quanto a Moscovo, se bem que a intensi-
dade da vida artística tivesse grande amplitude, ela processava-se de forma
mais indiferenciada através de exposições e iniciativas dispersas que iam de
encontro ao grande público, sem locais marcadamente carismáticos. O mes-
mo não acontecia em S. Petersburgo onde ficaram célebres e fizeram escola
vários núcleos em locais fixos com grupos de características bem próprias.
Pela sua natureza de clara diferenciação referir-nos-emos a dois destes
núcleos cujo papel na formação e divulgação das ideias estéticas e das obras
literárias foi, sem dúvida, de grande alcance. Passaremos rapidamente em
revista cada um deles, relevando os elementos mais notórios.
Seria injusto, e sobretudo lacunar, falar-se da atmosfera artística da épo-
ca e não mencionar um célebre café literário que ficou conhecido na gíria
por Cão Vagabundo (Бродячая собака Brodiatchaia sobaka). Aberto em 31
de dezembro de 19111, nele se concentrava a vida literária boémia. Entre
1
O café cujo nome oficial era Sociedade Artística do Teatro Íntimo situava-se na cave
de um dos edifícios no centro da cidade e o seu nome advém do ciclo de poemas em
prosa de Baudelaire, Le spleen de Paris que inclui o texto “Les Bons Chiens” (1869).
Tinha estatuto, hino e um brasão próprio que representava um cão com a pata pousada
em cima duma máscara antiga. Este brasão era da autoria do pintor Dobujinsky. As
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 71
3
Actualmente em S. Petersburgo, em 2001 e 2003 respectivamente, abriram estes cafés
nos mesmos sítios onde haviam existido quase cem anos atrás.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 73
4
Tendência literária que surgiu em 1912 com o objetivo de reformar o Simbolismo. A
poesia akmeísta foi apresentada pelos seus autores como o ponto culminante da verda-
de artística (da palavra grega ακμη – grau superior, força) -, e o adamismo (Adão)
representava o olhar firme e claro sobre a vida. Os teóricos do akmeísmo S. Gorodetski
e Nikolai Gumiliev uniram-se com Ossip Mandelstam, Anna Akhmatova e outros num
74 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
7
Nesta altura Maiakovsky frequentou a Escola de Belas Artes de Moscovo onde tam-
bém estudou David Burliuk. Maiakovsky chegou à literatura a partir da pintura. Não
sendo um grande pintor, tornou-se um grande poeta, como nota bem Viktor Shklovsky
na sua obra Vladimir Maiakovsky (Shklovsky, 1974).
8
Guilea (florestal) – é o nome arcaico russo duma localidade dos Escitos – antiga tribo e
uma das eventuais origens das tribos eslavas – na foz do rio Dniepr.
9
Khlebnikov foi um defensor da língua russa e inimigo incansável das influências das
outras línguas estrangeiras. O neologismo “budetliane” (будетляне) criado por ele
advém da terceira pessoa do singular do verbo russo “Budet” (будет) – será. Poderá ser
traduzido por vindouros.
76 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
10
Nas suas memórias, um dos participantes das apresentações públicas, Matiuchin
(2000:322), recordou estes dois eventos: “Eu presidi à primeira discussão “Sobre a
pintura moderna” onde apresentaram os seus temas David Burliuk e Kazimir Male-
vitch. Malevitch afirmou que o naturalismo e a fotografia são a mesma coisa. Ao
dizer: “Eis o que faz Serov...” (saiba-se que Serov era um dos pintores mais respeita-
dos da época), Malevitch projectou no ecrã uma simples fotografia de título “Mulher
de chapéu e manteau”, duma revista da moda. Instalou-se, então, o escândalo e fomos
obrigados a anunciar o intervalo. Mesmo assim Malevitch não conseguiu acabar o seu
discurso. A segunda discussão “Sobre literatura moderna” [...] inicialmente correu
muito bem, mas quando David Burliuk afirmou que Leão Tolstoi não passava de uma
fofoqueira social (pública), instalou-se uma enorme confusão. Uma velhota desmaiou
e foi levada para fora...”
11
A censura na Rússia czarista não foi menos rigorosa do que a censura sidonista portu-
guesa no que respeita às questões da moralidade. A edição do livro foi apreendida pela
polícia por causa da sua indecência, tendo sido notificados os seus editores, o compo-
sitor Mikhail Matuichin e o pintor Ivan Puni para se apresentarem perante o tribunal,
facto que nunca se realizou supostamente por a edição ter sido apreendida. Mas mes-
mo assim, Matiuchim conseguiu obter e distribuir cerca de duas centenas de exempla-
res sem a polícia dar conta.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 77
12
Ver nota 8.
13
Nestas mesmas Memorias de Mikhail Matuichin podemos ler o efeito provocado por
Marinetti nos seus interlocutores: “Tive impressão que Marinetti era uma pessoa talen-
tosa, que dominava a palavra como arte. Ele imitava bem o barulho de uma hélice, de
tumultos, de batimentos de tambor como prenúncios da futura guerra europeia. Mas
para mim isso não passava de uma tramóia” (Matiuchin, 2000:327).
78 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
Sob o nome de “futuristas russos” existe um grupo que está unido pelo
ódio ao passado e que representa pessoas de temperamentos e caracteres
variados. Pondo de lado a brincadeira pouco elegante de frases como
“ovos podres”, “ramo de flores da estação”15, etc., nós vamos exprimir a
nossa opinião sobre a recepção a Marinetti e sobre as nossas relações
para com ele: rejeitando qualquer tipo de filiação no italofuturismo,
14
Recordemos, com Vadim Cherchenevitch (2000:411), nas suas memórias já citadas,
um dos incidentes que aconteceram durante a visita de Marinetti à Rússia: “O pintor
Larionov tentou explicar a Marinetti (Larionov não dominava nem inglês, nem fran-
cês, nem italiano e Marinetti, por razões de princípio, não quis falar em russo), que o
lutchizm (лучизм – rayonism) inventado por ele era mais importante do que o Futu-
rismo. Marinetti não percebeu nada, mas depois de ver os quadros de Natália Gontcha-
rova retorquiu: “Está bem! É muito fresco! Igual a nós!”, mas olhando com insatisfa-
ção para os quadros de Larionov, virou as costas e saiu, dizendo: “São maus!”
15
Trata-se do hábito russo de ir buscar ao ponto de chegada de uma viagem (estação
ferroviária, porto, aeroporto, etc.) uma pessoa mais íntima e querida ou importante
com um ramo de flores.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 79
16
Lubok é o desenho popular executado segundo a técnica de xilografia ou gravura sobre
cobre, pintado à mão. O próprio lubok remonta à tradição dos ícones narrativos quan-
do no centro é colocada a imagem do santo e ao seu redor cenas relevantes da sua
vida. Assim, através do lubok, o livro manuscrito do movimento vanguardista apresen-
ta uma clara ligação ao ícone.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 81
17
Segundo as recordações de Alexei Krutchonykh (2003:136): “Cada palavra nova
nascia em convulsões e debaixo dos ganidos do acossamento total. Para nós, partici-
pantes da luta, os livros e as declarações não pareciam extravagantes, nem do ponto de
vista do conteúdo nem do visual. Mas a crítica de então [...] tentava-nos simplesmente
estrangular, chamando-nos: delírio forçado de gente pretensiosa e nula; huligans doi-
dos, descarados; coletânea cheia de absurdos insensatos, de delírio de doentes com
febre ou de doidos...”
82 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
18
Nos banhos russos, usam-se ramos de bétula e de carvalho para massajar o corpo com
batimentos.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 83
19
Podemos traduzir como Viveiro dos juízes.
84 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
20
O termo fábula, segundo Tynianov (2002:465), representa “uma cadeia estática das
relações, das ligações e dos objectos da obra fora da sua dinâmica verbal. Sujet são
estas ligações e relações na sua dinâmica verbal”.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 85
21
O Manifesto foi inserido no livro, Khlebnikov – Obras não publicadas, que saiu em
1940.
22
Ver o artigo de Boduen de Kurtene (2000:289-291) “A teoria da «palavra como tal» e
da «letra como tal» que foi publicado no anexo ao jornal peterburguense, Dia, Nº 8
(1914). Neste artigo, por um lado, o autor acusa os futuristas da falta de conhecimen-
tos linguísticos e da atitude desprezível que têm para com a ciência; por outro,
demonstra como as afirmações que os futuristas apresentaram como novidade poética
suscitavam serias dúvidas.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 87
23
Este neologismo é formado a partir do substantivo retch (речь– fala).
88 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
do Futurismo, Marinetti. Ele viu isso como um grande recuo estético em vez
da projecção para o futuro.
Deste modo, no livro de Velimir Khlebnikov, Izbornik (Изборник)
(1913), acima referido, o seu cúmplice, o pintor Pavel Filonov, realizou a
ideia do poeta sobre a caligrafia transformando os seus poemas numa espécie
da escrita fonológica. Os métodos artísticos utilizados pelo pintor no que
respeita ao tamanho, à cor, ao destacamento de certas linhas chave e à acen-
tuação de letras-fonemas criaram o sentido visual do poema com o seu
movimento rítmico, com a sua aceleração e diminuição, os seus momentos
tónicos.
24
Compulsar, sobre a matéria, as entradas “Idéogramme” e “logogramme” do Vocabu-
laire de la Modernité Littéraire, de Paul Louis Rossim (Minerve, 1996).
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 89
enorme mestria de ornamento pictórico desse texto poético. Este livro, feito
a imitar o lubok, representa uma feliz união entre texto e imagem.
Numa palavra, explicar o texto poético através de desenhos foi o objec-
tivo que norteou, então, os pintores-futuristas na sua colaboração experimen-
tal com a poesia. E esta colaboração artística, diga-se, conseguiu resultados
notáveis e interessantes, pois alguns destes pintores, como Kazimir Male-
vitch e Pavel Filonov, acabaram por seguir, também, a poética, compondo
poesia e experimentando a linguagem abstraída de sentido, também chamada
zaum25.
Esta compreensão mútua e esta união da visão artística, aliadas à ânsia
de ruptura estética e de experimentação, proporcionaram uma colaboração
fértil entre poetas e pintores. Estão neste caso pintores como Natália Gont-
charova, Mikhail Larionov, Kazimir Malevitch, Vladimir Tatlin, Olga Roza-
nova, Nikolai Kulbin, Vladimir Maiakovsky, entre vários outros. A estreita
ligação da criação poética futurista com a pintura constitui, por isso, uma
característica primordial desta estética. Contudo, como afirma o próprio
Boklagov (ib.):
Bibliografia
BLOK, Aleksandr (1971 [1906]), “Bez bojestra, bez vdokhnivenia” [“Sem
divindade, sem inspiração”], in Obras escolhidas em VI vol., vol.V,
Moscovo, ed. Pravda, pp. 530-40.
25
Este neologismo – заумь – foi inventado por Velimir Khlebnikov e pode traduzir-se
como para além da mente, para além do sentido. Optamos pela transcrição fonética da
língua portuguesa se bem que na crítica literária francesa se utilize zaoum, transcrição
segundo as regras fonéticas desta língua.
90 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
BODUEN DE KURTENE, I., (2000), “O teorii slova kak takovogo i bukvy kak
takovoi” [“Ao teoria de “palavra como tale a letra como tal”], in: TERIE-
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OBSERVATÓRIO ASTRONÓMICO DE LISBOA.
O ESPÓLIO DOCUMENTAL CIENTÍFICO
Halima Naimova
Fontes e bibliografia:
Pushkin, como qualquer grande artista, reflete na sua obra a época his-
tórica em que viveu. A personalidade do poeta e a sua vida enquadram-se
nas primeiras décadas do séc. XIX, pois nasceu em 1799 e morreu em 1837.
O princípio do séc. XIX caracterizou-se por uma participação activa da
Rússia na vida da Europa. É a guerra contra a invasão de Napoleão em 1812,
o crescimento do movimento patriótico do povo russo, o início da livre
expressão do pensamento, que culminam com o levantamento militar a 14 de
Dezembro de 1825, na Praça do Senado, e o seu fim trágico.
98 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
1
Todas as traduções do russo neste artigo são da minha autoria.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 99
Родился наг и наг ступает в гроб Руссо; Rousseau nasceu nú e nú foi a sepultar;
Камоэнс с нищими постелю разделяет; Camões a cama dividiu com os pobres;
Maria Raevskaia, a mais nova das irmãs, foi educada nas tradições rígi-
das da antiga aristocracia, tendo recebido uma educação europeia e avança-
da. Seu pai, o general Nikolai Raevski, era herói da guerra de 1812, e os
irmãos, Alexandre e Nicolau, conheciam o poeta desde os tempos do liceu.
Pushkin, ao escrever ao irmão, acrescentou ainda na carta: “Foram
maravilhosos os momentos que passei com a família do general Raevski…
Todas as suas filhas são uns amores, mas a mais velha é extraordinária”.
Sobre a filha mais nova, Maria, não escreve uma única palavra. Sabe-se, no
entanto, que estava apaixonado por ela – um amor de juventude que deixou
marca na sua vida.
No fim do poema “A fonte de Baktchissaraiski” encontramos uma
divagação poética, inspirada por Maria Raevskaia, que encarna o persona-
gem feminino.
Всё тихо – на Кавказ идёт ночная мгла, Tudo está calmo, e há trevas no Cáucaso.
Восходят звёзды надо мною. As estrelas iluminam-me. Estou triste.
Мне грустно и легко – печаль моя светла. Triste e tranquilo, tua imagem
Печаль моя полна тобою – Ilumina a minha dor.
Nem o amor que sentiu mais tarde por Natália Nicolaevna Gontcharova,
que foi sua esposa, conseguiu desalojar totalmente da alma do poeta o cari-
nho que sentiu por aquela que de livre vontade seguia a senda do sofrimento.
Pushkin sabia que tinha sido um amor sem esperança, não correspondido.
Em 1829, o poeta escreve o epitáfio ao filho de Maria Nicolaevna Val-
konskaia, de dois anos de idade, príncipe Nicolau Volkonski, que morreu em
S. Petersburgo, em casa do avô. Em sinal de respeito e simpatia, Maria Nico-
laevna pede ao pai que exprima ao autor a sua gratidão. Estas linhas foram
escritas a 11 de Maio, e, a 15, o poeta responde com o poema “Continuo a
ser teu, de novo te amo…” Maria Nicolaevna Raevskaia continuava a ocupar
um cantinho muito especial no seu coração.
Прощай, письмо любви – прощай: Adeus, carta de amor! Adeus! Ela assim
она велела… mandou.
Как долго медлил я – как Quanto tempo protelei! Quanto tempo
долго не хотела a mão hesitou.
Рука предать огню все радости мои!.. Fazer em cinzas minha alegria e minha dor.
Но полно, час настал. Гори письмо Basta! A hora chegou. Arde, carta de
любви. amor.
“Na realidade, não sei se o deveria incomodar, se a minha carta será rece-
bida com um sorriso… Tenha a gentileza de não ser demasiado severo
comigo, e, se fôr estritamento necessário defender a minha causa, peço-
-lhe que, para justificar a minha impertinência e o passado, tenha em
atenção que as recordações são a riqueza da velhice, e que esta sua velha
amiga dá muito valor a essa riqueza…”
106 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
Aqui, Ana travou conhecimento com alguns dos mais famosos literatos
daquela época: Krilov, Karamzine e Gneditch, entre outros. De um dos
serões literários, conta Ana:
“Diz ao Kozlov que há pouco tempo passou pela nossa região um anjo
(A. P. Kern) que cantou celestialmente as suas “Noites de Veneza”. Dá
essa novidade ao nosso querido cego. É pena que não a veja, mas ele que
imagine a beleza e a cordialidade. Que Deus permita que pelo menos uma
vez a possa ouvir”.
Seis anos após o seu primeiro encontro, Ana Kern de novo deixava
Pushkin entusiasmado. Esquece tudo o que passara nestes anos de exílio e,
uma noite, sentado à secretária, recorda o momento em que se encontraram,
escrevendo o poema que intitulou “Para K...”.
No momento em que Ana Kern se despede para partir para Riga, Push-
kin oferece-lhe o primeiro capítulo de “Eugénio Oneguine”, e, no meio das
folhas, estavam os versos escritos durante a noite, que Ana guardará religio-
samente até ao fim da sua vida.
Ao passear pelas ruas do parque, em Mikhailovskoi, Pushkin pensa em
Ana. Escreve para Riga a Ana Vulf, que partira com a prima e a tia, que a
levara “para fugir a uma catástrofe”. “...À noite, ao passear pelo jardim, digo
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 109
Ana Petrovna está convencida que o poeta não “é capaz de amar verda-
deiramente alguém, excepto a ama e a irmã”. O amor de Pushkin por ela fora
uma arrebatamento momentâneo, mas deixara-lhe marcas profundas para
toda a vida. Pushkin escreveu-lhe várias cartas, de sentimentos contraditó-
rios, de paixão e de ciúmes e, simultaneamente, plenas de adoração perante a
sua beleza. Numa delas, Pushkin acrescenta um pós-escrito extraído de
Byron: “Uma imagem passou por nós, vimo-la, mas não mais a veremos…
No romance “Eugénio Oneguine” no primeiro capítulo, no canto
XXXIV, Pushkin, ao recordar o passado, dedica alguns versos ao encontro
com Ana Kern, em Mikhailovskoi.
Foi aqui, tendo a ama com companheira, que Pushkin escreveu obras
tão importantes como “Boris Godunov”, “O Conde Nuline” ou “Eugénio
Oneguine”. Um dia escreveu ao irmão Lev “...depois do almoço ando a
cavalo, à noite ouço contos, que maravilha! Cada um é um poema!”.
Em 1825 escreve a seu amigo Raevski: “...Não tenho outra companhia
além de minha velha ama e da tragédia”. Escrevia então “Boris Godunov”.
Pushkin escreveu sete contos com as palavras de Arina Rodionovna.
Alguns são bem conhecidos, como “O conto da princesa morta e dos sete
guerreiros”, “O conto do pescador e do peixinho dourado”, e “O conto do
czar Saltane”, entre outros.
Lembrando os anos de infância, escreve:
112 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
Pushkin tinha uma enorme admiração por esta mulher, analfabeta e pobre,
mas de alma rica. Foi a sua primeira musa. Escreve a um amigo, o príncipe Via-
zemski: “... Minha ama é deveras engraçada. Imagina tu que aos 70 anos apren-
deu de cor uma nova oração, que deve vir já do tempo do czar Ivan. Agora, os
popes vêm cá aprendê-la, e não me deixam fazer o que tenho a fazer”.
A imagem de Arina Rodionovna aparece-nos em várias obras do poeta:
Em “Eugénio Oneguine” encarna a ama de Tatiana, e, em “Boris Godunov”,
a mãe da princesa Ksénia. Pushkin apreciava a opinião de Arina Rodionovna
sobre as suas obras. No romance “Eugénio Oneguine” escreve:
Но я плоды моих мечтаний, Ó minha velha ama,
И гармонических затей Amiga do coração
Читаю только старой няне, Só tu ouves os caprichos
Подруге юности моей. Que brotam da imaginação.
ros tempos após o casamento Pushkin era um homem feliz. Passada uma
semana, escrevia a Pletnev: “Estou casado e sou feliz”.
Em breve começaram os desentendimentos com a família da esposa, e,
para evitar complicações nas relações familiares, achou por bem ir viver para
S. Petersburgo. O aparecimento de Natália na sociedade e na corte foi um
grande sucesso. Todos falavam da sua beleza e do futuro do casal, e todos
eram da mesma opinião: Natália brilha, é a mais bela. Em 1832, o princípe
Viazemski escreve: “A mulher de Pushkin brilha nos bailes e ofusca todas as
outras”. Desde o casamento e a partir da mudança para S. Petersburgo, a
vida de Pushkin segue o caminho que haveria de o conduzir à sua morte.
Os contemporâneos de Natália Pushkina são unânimes quanto à sua
beleza – mas nada mais. Nenhum deles se pronuncia sobre os seus conheci-
mentos, inteligência, bom gosto. Nada dizem, naturalmente, porque nada
tinham a dizer.
Conservaram-se imensas cartas de Pushkin para Natália. Quando preci-
sava de se afastar de casa por uns tempos, Pushkin preocupava-se com a sua
saúde e a sua situação económica, mas, acima de tudo, que não tivesse “um
passo em falso” que pusesse em causa o respeito e a consideração de todos.
Pushkine escreve-lhe: “Vê bem, minha mulherzinha! Não me aterrori-
zes...não “entres em devaneios” com o czar, com Sobolevski ou com o noivo
da princesa Liuba”.
O ideal de mulher casada, que desejaria ver na sua mulher, está retrata-
do no romance “Eugénio Oneguine”, na imagem de Tatiana (oitavo capitulo,
canto XIV).
Она была не тороплива Ela não se apressava,
Не холодна, не говорлива, Nem fria, nem faladora,
Без взора наглого для всех, Sem despertar olhares insolentes,
Без притязаний на успех, Sem pretensões ao sucesso,
Без этих маленьких ужимок, Sem pequenos trejeitos,
Без подражательных затей…. Sem caprichos imitados...
Всеё тихо, просто было в ней, Tudo nela era fácil e simples.
Она казалась верный снимок Parecia uma cópia exacta
Du comme il faut... Du comme il faut...
Notas
1. O poema “Os Ciganos” foi escrito em 1824, quando Pushkinse encon-
trava desterrado em Odessa.
2. I. I. Kozlov – Poeta e Tradutor (1779-1840)
3. M. I. Glinka. Compositor (1804-1857). Escreve a música da ópera
“Ivan Sussan” e de alguns poemas de Pushkin.
4. Kozlof era cego.
5. Delvigue – Poeta, amigo do poeta desde o tempo do liceu.
6. Ekaterina Ermalaevna Kern é filha de Anna Petrovna, pela qual se apai-
xonou o compositor M. Glinka.
7. Grisette-palavra francesa que o poeta utiliza referindo-se a jovens não
aristocratas e de vida amorosa menos rígida.
8. Adália Polética era filha do conde Strogonof e da condessa portuguesa
Juliana d’Ega, mais tarde Júliana Strogonova, filha de D. Leonor de
Almeida Portugal, condessa d’Oyenhausen, 4ª Marquesa de Alorna
9. Sviatogorski significa. Colina Sagrada
10. Obras Completas de Gogol. (1809-1852)
11. M. S. Vorontso – Governador-general entre 1823-1844.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 119
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das Ciências da URSS. Leningrado: Izdatelstvoe “Nauk”.
OS EVANGELHOS SEGUNDO LEV TOLSTÓI:
EM TORNO DE OS MEUS EVANGELHOS1
Ana Matoso
1
Este artigo é uma adaptação da dissertação de mestrado em Teoria da Literatura, apre-
sentada à Faculdade de Letras em 2005, intitulada Os Evangelhos Segundo Lev Tolstoi
– A Arte como Verdade.
122 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
O ponto de partida para esta reflexão sobre a obra aqui traduzida por Os
Meus Evangelhos, de Lev Tolstói, retoma a clássica distinção entre os estilos
homérico e bíblico proposta por Erich Auerbach no seu seminal Mimesis: A
Representação da Realidade na Literatura Ocidental.
O muito citado primeiro capítulo da obra de Auerbach coloca em con-
fronto dois excertos que ilustram dois modos de apresentação da realidade a
partir dos quais se constitui toda a literatura ocidental. O episódio do regres-
so de Ulisses é analisado de forma a salientar a descrição exteriorizada que o
narrador faz da cena. Tudo surge uniformemente iluminado e articulado, os
pensamentos e emoções das personagens são minuciosamente descritos e
nada parece ficar por dizer. À descrição objectiva e estática dos poemas
homéricos, Auerbach contrapõe o episódio do sacrifício de Abraão. Ao con-
trário dos deuses homéricos, o Deus hebraico surge sem forma corpórea, um
nome não adjectivado, sem qualquer epíteto através do qual possa ser inter-
pelado. A iluminação dos fenómenos é parcial, o que confere uma ilusão de
profundidade à narrativa. O discurso é fragmentário, paractático, entrecorta-
do por silêncios, e os pensamentos ou emoções ficam por exprimir. As per-
guntas permanecem sem resposta, o retrato humano é mais problemático e o
mundo social mais heterogéneo. O estilo dramático genésico incita o leitor a
completar os seus vazios e, por Abraão encarnar “doutrina e promessa”, o
texto convoca a interpretação.
Auerbach faz notar uma questão fundamental, que será aplicada à análi-
se da obra de Tolstói em discussão: a dispensa da interpretação da épica
homérica, por oposição ao estilo da épica hebraica que, para se tornar inteli-
gível, exige interpretação. É neste ponto que a presente leitura da obra de
Tolstói encontra o seu argumento, já que o autor rejeita a interpretação figu-
ral que Auerbach identifica como tendo sido desenvolvida por S. Paulo e os
Padres da Igreja na tentativa de conciliar Antigo e Novo Testamentos. Tal
rejeição será aqui caracterizada como a resposta de Tolstói ao paradoxo a
partir do qual Os Meus Evangelhos, à semelhança do Tractatus Logico-
-Philosophicus de Wittgenstein, se desenvolve: “O que pode ser mostrado
não pode ser dito.” (4.1212)
No decurso deste trabalho propõe-se assim uma leitura que, ao invocar a
distinção mostrar/dizer, enunciada no célebre aforismo acima citado, e ao
empregar, consequentemente, um vocabulário próximo do do Tractatus, pre-
tende aproximar Os Meus Evangelhos de uma tradição que recusa um discurso
sobre o transcendente, consentânea com a conclusão: “Acerca daquilo de que
não se pode falar, tem que se ficar em silêncio.” (Tractatus, 6.54)
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 123
Por mais louca que pareça ao meu velho e duro intelecto, esta doutrina
[cristã] é a única esperança de salvação. É preciso estudá-la com cuidado
e atenção para a compreender, e não se trata de compreendê-la como
compreendo os conceitos da ciência. Não é isto que procuro, nem posso
procurar, pois conheço a particularidade da sabedoria da fé. Não vou pro-
curar explicação para tudo. Sei que a explicação de tudo tem de esconder-
-se, como o princípio de tudo, no infinito. Mas quero perceber de modo a
ser levado ao inevitavelmente inexplicável: quero que tudo o que é inex-
2
The Gospel in Brief [Краткое изложение Евангелия, 1881]. Todas as citações são
traduzidas da versão inglesa utilizada e, quando especificado, do original russo, dispo-
nível em versão electrónica em: http://az.lib.ru/t/tolstoj_lew_nikolaewich/text
_1380.shtml.
3
Соединение и перевод четырех Евангелий (1881) [Os Quatro Evangelhos Harmoni-
zados e Traduzidos]. http://az.lib.ru/t/tolstoj_lew_nikolaewich/text_0510.shtml.
4
William James, The Varieties of Religious Experience, 149.
5
Lev Tolstói, Carta a Strakhov de Novembro de 1877, in Tolstoy’s Letters, 308.
6
Lev Tolstói, Anna Karénina, 794, 822.
7
Lev Tolstói, Confissão [Исповедь, Вступление к ненапечатанному сочинению]. A
obra por publicar referida no título original é Исследование догматического
богословия, publicada em Genebra, em 1891.
124 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
8
Lev Tolstói, Confissão, 42.
9
Turguéniev citado por P. Birukoff, in Leo Tolstoy, His Life and Work, 207.
10
Para além da crítica a Renan ou a Strauss, nos prefácios a Os Meus Evangelhos e Os
Quatro Evangelhos..., Tolstói insta Strakhov a identificar o erro metodológico, ineren-
te às buscas pelo “Jesus histórico”, que confundem “a expressão absoluta da doutrina
[cristã] com a sua expressão na história, reduzindo-a a uma manifestação temporal,
para a discutir.” Cf Tolstoy’s Letters, 321-23, et passim.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 125
11
Eikhenbaum foi o primeiro crítico a enfatizar o papel das crises recorrentes de Tolstói
na criação de novas formas literárias e a rejeitar a visão de que, após Confissão, Tols-
tói se tornara num moralista: “Isto não é verdade. As crises acompanham a obra inteira
de Tolstói”. B. Eikhenbaum, “On Tolstoy’s Crises”, 53.
12
Harold Bloom, “Tolstoy and Heroism”, 313.
126 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
O nascimento de Jesus Cristo foi assim: – A sua mãe Maria estava noiva
de José. Mas antes de começarem a viver como homem e mulher, Maria
engravidou. Mas José era um homem bom, e não pretendia desgraçá-la;
tomou-a como sua mulher, e absteve-se da sua companhia até ela ter dado
à luz o seu primeiro filho, e o chamou de Jesus. (idem, 36)
13
Todas as citações dos textos evangélicos são da Bíblia Sagrada (Ed. dos Missionários
Capuchinhos). Lisboa: Difusora Bíblica, 2008.
14
Em Os Quatro Evangelhos..., comentando o mesmo passo, Tolstói refere que o verbo
grego que traduz por “banhar-se” [выкупаться] carrega também o sentido de purifi-
cação [очищение], e que a tradução mais adequada será “purificar” [очистить]. Cf.
http://az.lib.ru/t/tolstoj_lew_nikolaewich/text_0510.shtml
15
Embora não surjam explicitamente enunciadas, estas são as principais regras convoca-
das em O Que é a Arte? [Что такое искусство?,1897] para demolir a estética sim-
bolista, em particular o poema “Pan”, de Maeterlink, o qual não respeita as regras de
“inteligibilidade”, condição necessária da comunicação através da arte: “Quem saiu?
Quem entrou? Quem fala? Quem morreu? Não sabemos.” Lev Tólstoi, idem, 74.
128 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
Uma terceira vez, Jesus ensinou as pessoas: “Os homens entregam-se aos
meus ensinamentos, não porque eu lhes dê provas da sua verdade. É
impossível provar a verdade [доказывать истину]. É a verdade que pro-
va tudo o resto. Mas os homens entregam-se aos meus ensinamentos, por-
que eles são únicos e conhecidos dos homens, e prometem a vida. Os
meus ensinamentos são para as pessoas como a voz familiar do pastor é
para as suas ovelhas quando ele entra pela porta e vai ter com elas.” (Os
Meus Evangelhos, 138)
16
George Steiner, Tolstoy or Dostoevsky, 115.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 129
Ao longo desta obra, Tolstói reitera, quer através do narrador, quer atra-
vés do seu protagonista, que a interpretação dos ensinamentos de Jesus não
pode ser feita à luz do Antigo Testamento (ou da ortodoxia):
What I deny is that metaphor does its work by having a special meaning,
a specific cognitive content. (…) [T]o suppose it can be effective only by
conveying a coded message is like thinking a joke or a dream makes some
statement which a clever interpreter can restate in plain prose. Joke or
dream or metaphor can, like a picture or a bump on the head, make us ap-
preciate some fact – but not by standing for, or expressing, the fact. (“On
What Metaphors Mean”, 262)
17
Este é um dos pontos de contacto assinalados por Steiner entre o estilo homérico e o
tolstóiano: “His also is an immanent realism, a world rooted in the veracity of our sen-
ses. From it God is strangely absent.” George Steiner, Tolstoy or Dostoevsky, 80.
18
Ludwig Wittgenstein, Cultura e Valor, 50.
132 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
Compreende que eu não estou a interpretar aquilo que todos nós conhe-
cemos, mas sim a afirmar aquilo que todos conhecemos e vemos. Como
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 133
poderás acreditar naquilo que está no céu, se não acreditas no que está na
terra, naquilo que está em ti próprio? Porque jamais algum homem foi ao
céu, mas há apenas um homem na terra, que desceu do céu e ele mesmo é
do céu. (Os Meus Evangelhos, 63, itálicos meus)
19
Lev Tolstói, What I Believe [В чем моя вера?, 1885].
134 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
Since knowledge of beliefs comes only with the ability to interpret words,
the only possibility at the start is to assume general agreement on beliefs.
We get a first approximation to a finished theory by assigning to sen-
tences of a speaker conditions of truth that actually obtain (in our own
opinion) just when the speaker holds those sentences true. (“On The Very
Idea of Conceptual Scheme”, 196)
20
Note-se, porém, que em Os Quatro Evangelhos...todos os versículos que relatam os
milagres são purgados, à excepção dos que permitem uma leitura simbólica. Um
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 135
exemplo disto é a Cura do Cego (Jo 9), que Tolstói transforma numa “parábola”, tra-
duzindo metaforicamente o termo grego para “cego” pelo adjectivo “темный” [igno-
rante]. Cf. http://az.lib.ru/t/tolstoj_lew_nikolaewich/text_0510.shtml.
21
A tradução deste passo foi feita a partir, não da tradução inglesa utilizada ao longo
deste trabalho, mas do original, disponível em versão electrónica em:
http://az.lib.ru/t/tolstoj_lew_nikolaewich/text_0152.shtml.
136 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
O grau de correcção da sua versão, diz-nos, não pode ser avaliado pelo
raciocínio. O conteúdo, ou sentido, por ela recuperado, parece ser, neste
contexto, não-linguístico e incircunscritível, quer nas palavras dos discípulos
de Jesus, quer pela exegese. A verdade da sua nova leitura, acrescenta Tols-
tói, reside “não nos seus raciocínios, mas na sua unidade, clareza, simplici-
dade, completude, e pela sua harmonia com os sentimentos internos de todos
os que procuram a verdade [с внутренним чувством каждого человека,
ищущего истины].” (idem, 20) Não sendo uma questão de linguagem,
“porque ninguém delibera sobre o que é eterno”23, transcende o âmbito das
palavras enquanto signos situados num particular contexto pragmático:
22
Santo Agostinho, Doctrina Christiana, III, XV, 23.
23
Aristóteles, Ética a Nicómaco, Livro III, 1112a 20.
138 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
de 100 anos mais tarde, começaram a escrever o que tinham ouvido sobre
ele. (Os Meus Evangelhos, 20-21).
24
Distinguindo a simplicidade da doutrina evangélica da “religiosidade” dos escritos de
S. Paulo, Wittgenstein emprega uma imagem semelhante à de Tolstói: “A nascente
que corre suave e límpida nos Evangelhos parece escumar nas Epístolas de Paulo (…)
Lá encontras cabanas; em Paulo uma igreja. Lá todos os homens são iguais e o próprio
Deus é um homem; em Paulo já há algo de semelhante a uma hierarquia; honras e
posições sociais”. Ludwig Wittgenstein, Cultura e Valor, 52, itálicos meus.
25
Ao contrário da Tradição, que funda uma concepção de vida assente no postulado de
que “a vida não é aquilo que é, mas aquilo que parece ser”, Tolstói postula a máxima
“a vida é precisamente aquilo que é”. Lev Tolstói, Aquilo em Que Acredito, 114, itáli-
cos no original.
140 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
26
Ray Monk, Ludwig Wittgenstein – The Duty of a Genius, 151.
27
Ludwig Wittgenstein, Cultura e Valor, 48
142 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
“se conseguissem demonstrar que Cristo nunca existiu, tal tornaria ainda
mais evidente que a fortaleza da religião é inexpugnável (...) e que estamos
diante de verdades que jamais perecerão.”28
Neste sentido, a chave da compreensão da doutrina de Cristo residirá na
tomada de consciência de que o sentido da vida está dentro de nós e de que
este não pode ser apreendido a não ser através de um acto de pura consciên-
cia, de uma entrega incondicional à Luz-Vida que o protagonista de Tolstói
repetidamente afirma estar dentro de cada homem. Tal entrega é tornada
possível naquele instante em que embatemos nos limites da linguagem e
reconhecemos que “As proposições [da Ética] não podem exprimir nada do
que é mais elevado. // É óbvio que a Ética não se pode pôr em palavras (A
Ética e a Estética são Um).” (Tractatus, 6.421)
Contudo, mesmo que os mandamentos de Jesus sejam, nos termos trac-
tarianos, pseudo-proposições (i.e. não configurem relações entre as coisas,
ou factos sobre mundo), Tolstói sublinha que estão conformes à natureza do
homem. A sua aceitação acarreta superar o fosso entre valor e facto, entre
aquilo que é e o que parece ser. Com esta tomada de consciência, poderá
Deus fazer sentir a sua presença ubíqua no mundo. Ao transformar o valor (o
amor como virtude cardinal) numa força imanente no mundo, enraizada na
própria natureza humana e, por isso, independente de conceitos, dogmas ou
contexto histórico, Tolstói pretende acentuar que apenas através dos actos
esse domínio do inexprimível é transportado para o mundo. “Deus” torna-se,
não num nome vazio, sem objecto, mas numa actividade geradora da própria
vida. A noção da ética como um “deve ser” torna-se no “é”, e mostra-se que
mais do que um sistema de regras, a ética é um posicionamento no mundo,
aquilo em que tudo o mais assenta, e que qualquer outro tipo de conhecimen-
to, pressupõe: “a fundação da fé é a verdadeira compreensão da vida (...), a
correcta apreciação de todas as manifestações da vida.” (Aquilo em Que
Acredito, 158) Neste contexto, a Ética deve ser, como a Lógica (e a Estética)
são no âmbito do Tractatus, uma condição do mundo, o seu limite. Se com-
preender a lógica é ver a linguagem como um todo, para compreendermos a
ética temos de ver o mundo como um todo limitado no qual o valor se
encontra ausente29. É nesta aceitação (da segregação do valor do mundo) que
reside a compreensão de que “A solução do problema da vida nota-se no
evanescimento do problema. (…) Contemplação do mundo sub specie aeter-
ni é a sua contemplação como um todo limitado. Místico é sentir o mundo
28
Lev Tolstói, citado por Aylmer Maude, in Tolstoy and His Problems, 209.
29
Tolstói compara este posicionamento “ao que em matemática se chama de integração:
isto é, estabelecer uma relação (…) com o universo infinito no tempo e no espaço,
concebendo-o como um todo. E a relação estabelecida pelo homem com esse todo
(…) é aquilo a que se tem chamado, e se chama ainda, religião. E, por isso, a religião
tem sido, e não poderá deixar de o ser, uma condição essencial e indispensável da vida
racional da humanidade.” Tolstói, “What Is Religion?” (1902), 87.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 143
como um todo limitado.” (Tractatus, 6.52, 6.45) Por este mesmo motivo, o
protagonista de Os Meus Evangelhos reitera que “O Reino de Deus não é
nem no tempo nem no espaço, nem de nenhum tipo.” (idem, 62)
Chegados à conclusão de que o percurso é negativo – nega-se a presen-
ça de Deus – conclui-se também que o destino é, com efeito, positivo por-
que, como assevera Wittgenstein, “É correcto, sem dúvida, dizer: a cons-
ciência é a voz de Deus.”30
Na recusa da Revelação que impulsionou a reescrita dos Evangelhos – a
consumação literária do ideal tolstóiano de apresentar a solução para o pro-
blema da vida – ecoam as palavras de William James quando lamenta ter de
concluir que “the attempt to demonstrate by purely intellectual processes the
truth of the deliverances of direct religious experience is absolutely hope-
less.”31
Este é o ponto de convergência entre a doutrina de Tolstói e uma tradi-
ção filosófica que recusa um discurso sobre o transcendente, a possibilidade
de um Livro sobre Ética, e que pensa a fé como racionalmente não-
-demonstrável:
Bibliografia
Agostinho (2002) A Doutrina Cristã – Manual de Exegese e Formação Cristã.
Trad. de Nair de Assis Oliveira. S. Paulo: Paulus.
Aristóteles (2004) Ética a Nicómaco. Trad. de António C. Carneiro. Lisboa:
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Literature. Trad. de Willard R. Trask. Princeton: Princeton University
Press.
Birukoff, Paul (1906) Leo Tolstoy – His Life and Work. Nova Iorque: Charles
Scribner’s Sons.
30
Ludwig Wittgenstein, Cadernos, 111.
31
William James, The Varieties of The Religious Experience, 455.
32
Ludwig Wittgenstein, Cultura e Valor, 55.
144 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
Bloom, Harold (1994) “Tolstoy and Heroism”, in The Western Canon – The
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lhos Harmonizados e Traduzidos].
http://az.lib.ru/t/tolstoj_lew_nikolaewich/text_0510.shtml.
Tolstói, Lev (2010) Confissão. Trad. de Nina Guerra e Filipe Guerra. s.l.: Alfa-
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don: Athlone Press.
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Publishing. Versão russa em
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Tolstói, Lev (1987) “What Is Religion?”, in A Confession and Other Religious
Writings. Trad. de Jane Kentish. Londres: Penguin, pp. 81-128.
Wittgenstein, Ludwig (s.d.) Cadernos – 1914-1916. Trad. de João Tiago Proen-
ça. Lisboa: Edições 70.
Wittgenstein, Ludwig (s.d.) Cultura e Valor. Trad. de Jorge Mendes. Lisboa:
Edições 70.
Wittgenstein, Ludwig (2002) Tratado Lógico-Filosófico/ Investigações Filosófi-
cas. Trad. de M. S. Lourenço. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
ALGUMAS NOTAS SOBRE A PERSONAGEM
DE ANNA ARKADIEVNA KARÉNINA
1
Optou-se pela indicação da parte e capítulo do romance sempre que necessário e para
maior facilidade de consulta.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 147
[III, cap. XVI]. Certamente que o leitor mais atento poderá censurar Anna
Karénina neste momento porque apesar de toda a ironia e conservadorismo
do seu esposo, este fora-lhe sempre um marido fiel que lhe consagrou todo o
amor de que era capaz [V, cap. XXI], para além de ter sido sempre um pai
dedicado [II, cap. XXIV]. No entanto, Anna Arkadievna já não pode nesse
momento do romance deter-se sobre essas considerações porque a força dos
seus sentimentos, durante tanto tempo fechada no seu coração, tem agora um
objeto de adoração em carne e osso – o conde Aleksei Vronski – e já não
está ao seu alcance encarcerá-la de novo num canto da sua alma. Sem se
aperceber, Anna atribui ao marido a causa de toda a sua anterior serenidade
rígida e firmeza de conduta já acima descritas. O que não é completamente
verdade: o seu empenho em ser perfeita e irrepreensível deveu-se igualmente
ao seu gosto por esse papel, mas principalmente à sua honestidade moral de
jovem esposa que, não encontrando no casamento a consumação da sua ima-
gem idealizada do amor, opta por uma conduta extremada de perfeição ina-
tacável a par da repressão total da sua vontade de viver plenamente, durante
muito tempo julgada sem remédio. Esse penoso sacrifício, também revelador
de alguma inexperiência – da ignorância da necessidade de equilíbrio de
forças no seu coração – é brevemente referido quando Anna diz a Dolly ter
os seus segredos, ao mesmo tempo que os sintetiza na imagem de um skele-
ton “triste”, atribuindo assim uma nova dimensão à expressão idiomática de
origem inglesa [I, cap. XXVIII].
Assim, Anna Karénina devota-se ao seu papel na sociedade de esposa e
mãe exemplar com todo o vigor de que é capaz. E é com sinceridade que se
esforça por o desempenhar, a ponto de se sentir verdadeiramente mal consigo
mesma quando sente que falhou de algum modo. A vergonha que sente face à
recordação do enamoramento de Vronski no baile [I, cap. XXIX], a vergonha
que experimenta ao aperceber-se de que se irritou excessivamente com a sua
costureira, e ainda por não se ter lembrado da lei apresentada por Karénin
quando esteve em Moscovo [I, cap. XXXIII], revelam bem a sua preocupação
constante em ser impecável e de estar sempre além de qualquer censura. De
resto, esta preocupação não dissimula nenhuma hipocrisia ou falsidade da sua
parte: a honra, a sua posição na sociedade e o seu filho representam para Anna
Arkadievna valores muito importantes [III, cap. XVI] e que nunca desprezará
apesar de os sacrificar a favor do seu amor cada vez mais intenso por Vronski.
O seu pensamento, quando mais tarde estiver na Itália com Vronski, é elo-
quente: “Perdi o que mais apreciava, o meu nome de mulher honrada, e perco
o meu filho” [V, cap. VIII]. E não se poderá esquecer ainda o grande consolo
que Anna sente com as palavras de Dolly que lhe afirma continuar a gostar
dela independentemente da sua nova situação [VI, cap. XVIII].
De resto, esta perfeição é bem visível aos olhos das pessoas à volta de
Anna Arkadievna: Dolly fica espantada com o facto de Anna ainda se lem-
brar dos nomes e idades e doenças por que passaram os sobrinhos [I,
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 149
Bibliografia
NABOKOV, Vladimir Lectures on Russian Literature, s/l: Harcourt, 1981: 137-
-236.
TOLSTÓI, Lev Ana Karenina, Mem Martins: Europa-América, col. Livros de
Bolso (dois volumes, nºs 202 e 203), 1980.
____________. Anna Karénina, Lisboa: Relógio d’Água, 2006.
A ARTE DE VANGUARDA:
MAIAKOVSKY OU A NÚVEM DE CALÇAS
Introdução
Se a globalização é um fenómeno que aspira à manipulação da imagem e
da palavra através da intervenção maciça dos meios de comunicação de mas-
sas, com recurso às novas tecnologias, cujos perigos não podemos calcular, já
a universalidade envolve, como afirma Boaventura de Sousa Santos “um pro-
cesso complexo de interconhecimento” (2006), para o qual a tradução tem um
papel fundamental a desempenhar. Assim, de forma a evitar o paroxismo de
que nos fala Baudrillard, isto é, “the penultime moment […], the moment just
before the end, just before there’s nothing more to be said” (1998), talvez seja
necessário aproveitar a oportunidade única de fazer reemergir, dos fragmentos
do espelho partido do universal, as nossas raízes e as nossas memórias, opon-
do-nos ao caos da exclusão ou da inclusão na economia global.
É tempo de a Queda do Muro de Berlim se tornar símbolo do triunfo da
universalidade e que se volte a dar forma à ilusão, ao sonho, no sentido posi-
tivo do termo, numa, porventura, derradeira tentativa de fazer ressurgir os
valores culturais e estéticos, de tornar o Outro, o diferente, de novo visível a
nossos olhos, já que ele é fundamental para a definição da nossa própria
identidade. É, conforme afirma Boaventura de Sousa Santos, “da consciência
156 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
(1965), Mayakovsky usaria dizer, a brincar, que um elefante lhe havia pisado
o ouvido.
É na academia de belas-artes que trava conhecimento com um grande
número de artistas vanguardistas, em particular, com David Burliuk, que havia
já organizado o primeiro grupo futurista na Rússia. Em 1912, Mayakovsky
publica o seu primeiro poema “Noite” (Ночь), assinando o famoso manifesto
Uma Bofetada no Gosto do Público (Пощечина общественному вкусу).
Em 1915, Mayakovsky muda-se para St. Petersburg, entrando na esfera
de influência de um famoso teórico da literatura modernista, Ossip Brik. A
mulher deste, Lili Brik1, tornar-se-ia, desde então, na grande paixão da vida
do poeta, que começa a publicar os seus poemas de amor, povoados de
angústia, que são, por muitos, considerados como uma das partes mais inte-
ressantes da sua obra. Nesse mesmo ano, assiste-se à publicação de “Nuvem
de Calças” (Облако в Штанах) que contém um grande número de alusões
autobiográficas, nomeadamente à sua relação com Lili Brick.
Uma das melhores descrições de Mayakovsky, enquanto ser humano,
podemos encontrá-la no Vol. II das Memórias do escritor e ensaísta russo Ilya
Ehrenburg, Os Primeiros Anos da Revolução (1918-1921). Nele, podemos ler:
1
Lili Iourevna Brik, mulher de Ossip Brik, economista e intelectual da época, foi a
mulher da sua vida, no sentido total do termo. Lili Brik era irmã mais velha de Elsa
Iurevna Triolet, que se casou no início da revolução com o francês André Triolet,
conhecendo Louis Aragon só em 1928. Alguns dos maiores estudiosos da obra de
Mayakovsky, como Victor Pertsov, consideram a tradução dos seus poemas por Elsa
Triolet como uma das mais conseguidas. De notar que Lili Brik foi uma das figuras
mais marcantes da intellegentsia russa. Como afirma Claude Frioux na introdução ao
livro Lettres à Lili Brik “elle devait rayonner par son charme et son esprit sur toute la
culture russe d’avant-garde, de 1915 à nos jours” (1969), sempre circundada por gran-
des nomes das artes: dos formalistas russos aos futuristas, passando pelo realizador de
cinema Eisenstein, pelo poeta Voznessenski, pela bailarina Plitssetskaïa e tantos
outros.
2
“Je suis François, dont ce me poise, / Né de Paris emprès Pontoise / Qui d’une corde
d’une toise / Saura mon col que mon cul poise.” (1987)
158 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
3
“Российская Ассоциация пролетарских писателей” – Associação Russa dos Escrito-
res Proletários.
4
Tradução de Max Hayward e George Reavey.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 159
5
Em russo, “Только мы – лицо нашего Времени”.
6
Em russo, “Кто не забудет своей первой любви, не узнает последней.”
7
Título em russo: “Люди и положения”.
160 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
8
Ao lermos a descrição de Mayakovsky por Pasternak, creio ser compreensível que Ilya
Ehrenburg manifeste estranheza e incompreensão por Pasternak, na sua autobiografia,
acabar por renegar a velha amizade com Mayakovsky.
9
«Как делать стихи?»
10
«крикогубый Заратустра».
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 161
If you want –
I can be all crazy flesh,
the antipode of polite romance.
Or
sweet and delicate as you wish;
not a man but a cloud in pants.11
11
Tradução de Dorian Rottenberg.
12
Idem.
13
Em russo “Люблю”.
14
Prisão em Moscovo, onde Mayakovsky esteve detido na cela nº 103, em 1909-1910,
por actividade revolucionária.
15
Em russo: «Я сам».
162 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
16
Em russo, “Левый марш”.
17
Em russo “Леф”. Revista fundada por Mayakovskiy e pelos seus companheiros cubo-
-futuristas. O nome é um anagrama de Lievi Front (Frente de Esquerda), e a revista
destinava-se a propugnar uma arte de esquerda, que expressasse, na forma e no con-
teúdo, os ideais da Revolução de Outubro.
18
Abreviatura de Nova Política Económica.
19
Em russo, “Люблю”.
20
Em russo, “Про это”.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 163
(…)
Viens,
réponds à l’appel de mes vers.
J’ai mendié à tous – et me voici.
À présent de toi seule peut venir le salut.
Lève-toi!
Courons au pont!
J’ai baissé la tête
sous le coup,
taureau d’abattoir.
Je surmonterai,
j’irai là-bas.
Un instant –
je ferai le pas.21
21
Tradução de André Robel.
22
Nas artes plásticas e na arquitectura, o construtivismo caracterizou-se pela tendência
de expressar o desenvolvimento industrial da época, em linhas e volumes incisivos.
Ilya Selvinskiy (nascido em 1899) e outros tentaram uma poesia que também pudesse
expressar melhor, graças ao emprego de novas técnicas poéticas, o espírito da civiliza-
ção industrial.
23
Em russo, “Мое открытие Америки”.
24
Em russo “Бруклинский Мост”.
164 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
(…)
As a conqueror rides
through the town he crushes
on a cannon
by which himself’s a midge,
so-
drunk with the glory-
all life be as luscious-
I clamber,
proud,
on to Brooklyn Bridge.25
(…)
(…)
Me too
agitprop
makes sick as hell,
me too
writing love songs would suit as well-
even better-for palate and purse.
Yet I-
I’d trample,
myself to quell,
on the very throat
of my verse.
(…)28
25
Tradução de Dorian Rottenberg.
26
Em russo, “Хорошо!”.
27
Em russo, “Во весь голос”.
28
Tradução de Dorian Rottenberg.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 165
(…)
Man
Is gradually
Becoming a blot
On the margins
Of enormously important papers.
(…)30
29
Em russo,”Бумажные Ужасы”.
30
Tradução de Dorian Rottenberg.
31
Em russo, “Мистерия-буфф”.
166 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
(…)
Nós – somos arquitectos das terras,
da vida dramaturgos,
dos planetas somos decoradores,
nós – somos taumaturgos.32
(…)
Os últimos anos da sua vida veriam a publicação das suas peças mais
famosas. Uma delas, uma sátira cómica intitulada O Percevejo33, é um ata-
que cerrado contra as “relíquias” burguesas do período da Nova Política
Económica (NEP), no início dos anos vinte. Nesta peça o autor continua a
sua crítica implacável contra a mesquinhez da pequena burguesia.
A segunda peça The Bathhouse34 é um trabalho esquemático, no qual
uma mulher fosforescente, vinda do futuro, traz consigo para o presente uma
máquina que transportará todos os homens de valor para uma utopia futura.
Segundo o próprio autor, o objectivo desta peça seria chamar a atenção para
a necessidade de lutar contra a burocracia e pela concretização dos objecti-
vos socialistas.
Mayakovsky dedicou ainda grande parte do seu tempo à criação de car-
tazes de propaganda para as vitrinas do ROSTA35 e, de 1923 a 1925, escre-
veu anúncios, em rima, para armazéns de produtos de consumo estatais. Eis
aqui, a título de exemplo, um desses anúncios publicitários escrito por
Mayakovsky: “Onde comprar / caderno e caneta? / É fácil de lembrar / No
Mospoligraph / tem tudo o que desejar”36.
Conclusão
Um ponto crucial das posições dos futuristas era libertar a palavra de
camadas sucessivas e sobrepostas, resultantes da tradição literária, e dar-lhe
um novo aspecto visual. No caso de Mayakovsky, são muitos os exemplos
de poemas que apresentam um formato gráfico consideravelmente inventivo,
adquirindo as palavras novas funções ou formas. Como afirma Ernst Fischer
„Majakowski war ein Zerstörer alter Formen, und seine Methode, zu dichten,
32
Tradução de Dmitri Beliaev.
33
Em russo, “Клоп”.
34
Em russo, “Баня”.
35
РОСТА – Российское телеграфное агентство (Russian Telegraph Agency), órgão
central para a informação, de 1918 a 1925, ano em que foi criada a Agência TASS.
36
“Где взять / перо и тетрадь? / Помни, родитель, – / В Мосполиграфе / всё, что
хотите!”.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 167
hat sich als höchst geeignet erwiesen, die neue Wirklichkeit der Revolution
auszudrücken“ (1959).
De lembrar, todavia, que, quando Mayakovsky escreve o seu supracita-
do artigo Como fazer versos (1926), o poeta se encontrava já longe do início
do movimento futurista, mostrando uma entrega à causa socialista que outros
seguidores do movimento foram incapazes de manter. A sua obra abrange o
futurismo desde as suas origens até à sua evolução para algo de mais racio-
nal, como o construtivismo abstracto37, que se distingue pelos seus projectos
arrojados de arquitectura e construção de cenários para teatro, e o suprema-
tismo38 de Malevitch.
Após a Revolução, os futuristas dominaram a vida cultural soviética por
um breve período, não porque não houvesse na cena russa outros movimen-
tos vanguardistas, mas porque Mayakovsky colocara a sua inesgotável ener-
gia ao serviço dos bolcheviques, numa tentativa de combinar o político e o
estético, com o fim de derrotar o passado.
Entretanto, havia surgido na Rússia o formalismo crítico, de que se des-
tacava a figura de Roman Jakobson, que não tinha na altura dúvidas de que a
nova poesia russa era a dos chamados futuristas, já que a poesia, segundo
Jakobson, se renova de dentro para fora, com recurso a meios linguísticos.
Para ele, a linguagem poética era uma espécie de metalinguagem, que o
levou a afirmar, no seu ensaio The Newest Russian Poetry39, escrito em
1919, que “there are four main aspects of the Russian Futurists’ approach to
language to consider: the Destruction of Syntax, Defamiliarisation, the Self-
-contained Word (samovitoe slovo), and Zaum.”
É preciso saber-se distinguir entre o sentido de modernidade e o de
actualidade. O sentido de inovação do das simples novidades, que, um quar-
to de século depois, aparecem superadas. Mayakovsky continua a caminhar
através dos novos quarteirões de Moscovo, pelas ruas da velha cidade de
Paris, por todo o nosso planeta. Caminha com “provisões” não de novas
rimas, mas de novos pensamentos e sentimentos.
Em Nuvem de Calças, ele dirige-se a Maria, colocando uma questão e
fazendo uma advertência:
37
O termo arte construtivista foi introduzido, pela primeira vez, por Kazimir Malevitch
(1878-1935), pintor russo, para descrever o trabalho de Rodchenko, em 1917.
38
O termo suprematismo foi escolhido por Kazimir Malevitch para descrever as suas
próprias pinturas, já que se tratava do primeiro movimento a reduzir a pintura à pura
abstracção geométrica.
39
Cf. linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S0304347904800310 (doc. PDF).
168 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
Remember-
you used to ask,
“Jack London,
money,
love,
passion-
aren’t they real?”
And I-all I knew
was that you’re the Gioconda
that somebody’s got to steal.40
Assim, o herói deste poema, cuja mulher amada foi roubada, aparece-
-nos não só como um apóstolo de um amor grande e verdadeiro, mas tam-
bém como um apóstolo da luta contra um mundo baseado na falsidade e na
exploração do homem pelo homem. As principais personagens não são nem
“ele” nem “ela”, mas a sociedade e o indivíduo, cuja humilhação é abençoa-
da pela igreja e pela arte contemporânea decadente, advindo daí a urgência
em pôr termo a todos os velhos conceitos, incluindo os de ordem estética e
religiosa.
O Futurismo Russo, o movimento mais radical e iconoclasta do moder-
nismo russo, deixou-nos o legado de um dos maiores poetas do séc. XX:
Mayakovsky um dos mais citados autores, mas talvez também um dos mais
incompreendidos.
Como escreve Maxim Kantor (2008), a época, em que a arte se une com
a vida, como o queria Mayakovski (“As ruas são os nossos pincéis, as pra-
ças, as nossas paletas”) dá á luz um tipo particular de criadores. Estas pes-
soas não se ocupavam com a arte comum, enquanto parte autónoma da acti-
vidade humana, tinham, sim, uma relação com toda a vida de uma só vez
formando-a no seu todo. A sua actividade já não pode designar-se apenas por
arte, mas merece a designação especial de vanguarda.
Bibliografia
BAUDRILLARD, JEAN.1998. Paroxysm. London/New York: Verso.
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(ed.) The Cambridge History of Russian Literature. Cambridge: Cam-
bridge University Press, pp. 387-457).
CORNWELL, NEIL (ed.). 2001. The Routledge Companion to Russian Literature.
London and New York: Routledge.
EHRENBURG, ILYA. 1964. Memórias. Infância e Junventude. Vol. I (1891-1917).
Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira SA.
40
Tradução de Dorian Rottenberg.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 169
Jayanti Dutta
1
O artigo foi apresentado na Universidade Aberta nas “II Jornadas de Literaturas Euro-
peias” em 26 de Maio de 2011.
172 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
кощунственном, но светит
всё ясней
мой строгий путь: ни
помыслом, ни словом
не согрешу пред музою
твоей.
Vladimir Nabokov
2
lib.ru/PROZA/PAUSTOWSKJ/iwan_bunin.txt_with-big-pictures.html.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 173
3
bunin.niv.ru/bunin/stihi/464.htm.
174 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
4
Kopylov I. L. Vsya russkaya literatura p. 411.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 175
5
az.lib.ru/b/bunin_i_a/text_1150.shtml.
6
http://ilibrary.ru/text/1857/index.html.
176 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
O amor é a força secreta que aparece como destino, quase como que
causa teleológica dos acontecimentos. O amor não se repete, aparece só uma
vez na vida e faz da pessoa mais feliz, mais bonita, mais forte. Mas o amor
não junta duas pessoas de modo permanente, para serem eterna e tranquila-
mente felizes, como nos contos de fadas. Pelo contrário: os heróis de Bunin,
querendo abandonar uma vida que teima em ser solitária, encontram-se sem-
pre em busca de uma irrealizável felicidade, vivem numa esperança inútil de
verdadeiramente encontrar alguém, amar e ser amados. O amor aparece ful-
gurante, mas é não mais do que um instante. Brilha na sua luz fosca… e
desaparece para todo o sempre. O amor na vida em família teima em não
existir. A vida quotidiana afasta o sentimento mais profundo, mais belo. Por
isso os heróis separam-se, morrem, suicidam-se… O amor é uma coisa
transcendente, de um outro mundo, vem com toda a impetuosidade, força e
beleza do universo mas não é capaz de ser duradouro na vida quotidiana.
Esta felicidade não repartida realiza-se como que no seu contrário, realiza-se
no sofrimento. Por isso, o amor na obra do escritor é sempre um amor trági-
co. A maior contradição da felicidade está aqui. Bunin nunca escreveu um
conto ou um romance de amor onde haja um final feliz. Quando duas pes-
soas apaixonadas se juntam, os sentimentos e relações tornam-se diferentes.
Então, não há lugar para a divina felicidade. Por isso, todas as histórias do
amor acabam de repente e com consequências trágicas. Quando nós, leitores,
esperamos um final feliz, eis que acontece exactamente o inverso.
Lembremo-nos do conto “V Parizhe” (Em Paris), onde dois emigrantes
solitários se encontram num restaurante de Paris. Ele é oriundo de uma
família nobre. Abandonado pela mulher, vive sozinho. Ela é uma empregada
de restaurante, uma mulher simples e pobre. Talvez em outras circunstâncias
seria impossível que os dois se juntassem. Mas a solidão é mais forte que o
7
az.lib.ru/b/bunin_i_a/text_1760.shtml.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 177
8
az.lib.ru/b/bunin_i_a/text_2622.shtml#16.
9
ilibrary.ru/text/1811/index.html
178 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
apaixonado mata-a ao ser recusado por ela. Assim acaba a vida da jovem
Olga. Após ler este conto nunca poderemos esquecer o que sussurrara Olga
uma vez, ao ouvido duma amiga:
10
ilibrary.ru/text/1052/index.htm.
11
ilibrary.ru/text/1052/index.htm.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 179
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12
az.lib.ru/b/bunin_i_a/text_1040.shtml.
À DESCOBERTA DA LITERATURA RUSSA CONTEMPO-
RÂNEA: CAÇA AO MAMUTE, DE TATIANA TOLSTAIA
Cristina Mestre
Caça ao Mamute
pegar numa camisola qualquer dele e, zumba, pô-la num alguidar com deter-
gente e pendurá-la depois aberta a secar.
Mas não! Não deixava rastos, mantinha tudo, mas tudo, no quarto onde
vivia, até a máquina de barbear, até essa! Mas que teria ele para barbear, se
usava barba? Vladimir tinha duas barbas: uma espessa, mais escura e, no
meio, como que outra, mais pequena, arruivada, crescendo como um tufo
fino no queixo. Era um fenómeno. Quando comia ou ria, a segunda barba
começava a saltar…. Era baixo, um palmo mais baixo que Zóia, de aspeto
ligeiramente selvagem, cabeludo, movia-se muito rapidamente e era enge-
nheiro.
– É engenheiro? – perguntou Zóia no primeiro encontro, quando esta-
vam sentados no restaurante e ela, abrindo a boca apenas um milímetro,
degustava os profiteroles em molho de chocolate, fingindo que, por qualquer
razão intelectual, estes não lhe agradavam muito.
– Exacto – disse ele, olhando para o queixo dela.
– Trabalha num instituto de investigação?
– Exacto.
– Ou numa fábrica?
– Exacto.
Vá lá a gente entender alguma coisa quando ele se punha fixamente a
olhar para ela! Bebeu um pouco.
Engenheiro também não era mau. Na verdade, seria melhor se fosse
médico, cirurgião. Zóia trabalhava num hospital, no guichet de atendimento,
vestia uma bata branca e, desta forma, sentia-se como que pertencendo de
certa forma a este admirável mundo da medicina, branco, engomado, onde
havia seringas e espátulas, cadeiras de rodas e autoclaves, pilhas de roupa
grossa limpa com carimbos negros, rosas e lágrimas, bombons de chocolate,
um cadáver azulado rapidamente levado pelos corredores infinitos e, atrás
dele, mal o conseguindo acompanhar, um pequeno anjo triste voando e aper-
tando com força contra o seu peito de pássaro a alma acabada de libertar,
sofredora, vestida como uma boneca.
O cirurgião é o rei deste mundo e não podemos deixar de olhar sem
estremecer quando ele, ajudado por camareiros a envergar um amplo manto
branco e uma coroa verde atada com fitas, está de pé, levantando majesto-
samente as mãos, pronto para a sua sagrada missão real: realizar a justiça
suprema, lançar-se sobre o doente, cortar, punir e salvar, dar a vida com a
sua espada brilhante….Um verdadeiro rei… Zóia queria muito, muito lan-
çar-se nos braços ensanguentados de um médico. Mas um engenheiro tam-
bém não era mau.
Eles passaram um tempo bastante agradável no restaurante a conversar
e Vladimir, ainda não sabendo com o que podia contar da parte de Zóia, era
generoso. Só depois ele começaria a economizar, olhando de forma desem-
186 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
as mãos: “O que temos hoje para o jantar?” Vejam lá: “temos” – pois era
mesmo isso que dizia.
– Carne, – respondia Zóia entre dentes.
– Carne? Perfffffeito! Perffffeito! E porque está a senhora assim tão
aborrecida?
Às vezes ele punha-se a sonhar:
– Queres que compremos um carro? Vamos passear para onde nos ape-
tecer…
Estava mesmo a gozar! Como se nunca mais quisesse deixá-la! E se não
quisesse mesmo? Se assim era, então que se casasse. Zóia não queria amar
sem garantias.
Zóia armava-lhe armadilhas: fazia a cova, cobria-a de ramos e empurra-
va, empurrava….
Uma vez, já vestida e maquilhada, resolveu de repente recusar-se a ir a
casa de amigos, ficou no sofá olhando com tristeza para o tecto. “O que é
que se passa? Não pode ir? Porquê?” Não pode, não vai porque tem vergo-
nha de se expor ao ridículo em público, irão todos apontar o dedo e pergun-
tar na qualidade de quem, afinal, tinha ela vindo…. Todos estavam com as
mulheres legítimas… “Parvoíce”, diz Vladimir, “as mulheres casadas não
serão mais de um terço e mesmo assim, o mais certo é serem mulheres de
outros… Ora se, até agora, ela tinha ido e nada tinha acontecido….Antes ia
sem problemas, agora não quer ir, parece que é muito frágil, é como uma
rosa que murcha quando a tratam mal….”
– Muito gostava de saber quando é que eu te tratei mal …
A conversa continuava mais ou menos no mesmo tom mas sempre ao
lado, sem passar pela cova disfarçada.
Um dia, Vladimir levou Zóia a visitar um artista plástico, um pintor,
diziam que muito interessante.
Zóia imaginava como seria: o mundo artístico, a alta sociedade, grupi-
nhos de especialistas em Arte, as senhoras – velhas aborrecidas com turque-
sas e pescoços de perus; os homens – elegantes, cheirosos, com lenços colo-
ridos no bolso do casaco. Um educado senhor de idade com monóculo abre
caminho, tenta aproximar-se. O pintor, pálido, tem uma blusa de veludo e
segura uma paleta. Então Zóia entra e todos dizem “Oh!”. O pintor empali-
dece. “A menina tem que posar para mim”. O educado senhor de idade olha
com uma triste expressão aristocrática: a sua juventude já passou, o perfume
de Zóia já não é para ele. O retrato de Zóia, um nú artístico, é levado para
Moscovo, para uma exposição na galeria Manej. A Polícia tenta travar a
multidão de pessoas que quer ver a mostra. A exposição vai ao estrangeiro, o
retrato é protegido por um vidro blindado. Deixam entrar na sala só dois a
dois. Soa uma sirene, afastem-se todos para a direita! Entra o presidente. Ele
está impressionado, emocionado. Onde está a modelo? Quem é esta rapari-
ga?
190 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
1
Os Peredvijniki, pintores realistas da segunda metade do sec. XIX, princípios do
sec.XX, organizavam exposições itinerantes, eram a favor da divulgação da arte e da
educação estética da população em geral.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 191
Uma Dor sem fim – seria assim que os artistas da Idade Média, como os
do álbum no extremo da estante, chamariam à sua estátua em madeira.
Uma Dor sem fim – era isso.
Oh, eles esculpiriam bem a sua alma, a sua dor, todas as dobras da sua
manta, esculpiriam e pespegariam no topo de uma vertiginosa catedral rendi-
lhada, mesmo no cimo, fariam depois uma foto em grande plano: “Zóia.
Pormenor. Gótico primitivo”.
O fogo azul aquecia a gruta de lã, sufocava.
O engenheiro saía do quarto em bicos de pé. “Onde vaaais? – gritava
Zóia num piar de cegonha. O pombo casado sorria, irónico.
“Nada, nada, ia lavar as mãos…descansa”, sussurrava o monstro, assus-
tado.
“Primeiro diz que vai lavar as mãos, depois diz que vai à cozinha e, aí,
pouco falta até à porta da rua”, lembrava-lhe o pombo ao ouvido. “Mais um
passo e vai-se embora”.
É que é mesmo verdade… Ela atirou ao pescoço das duas barbas uma
corda com laço, deitou-se no sofá, puxou e pôs-se à escuta. No outro lado,
alguma coisa farfalhava, suspirava, pateava. Nunca tinha gostado especial-
mente deste homem, ou melhor, digamos que ele sempre lhe tinha sido
repugnante. Um animal pequeno, potente, pesado, rápido, cabeludo, insensí-
vel.
O animal ainda fez barulho durante algum tempo – chiava, agitava-se
até que, finalmente, sossegou – no silêncio denso e bem-aventurado do gelo
eterno.
UM ROMANCE INVULGAR (“NIKALAI! NIKALAI!”,
DE JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS)1
Jayanti Dutta
Luís Rafael Gomes
O mito é o nada que é tudo. Por não ter vindo foi vindo
O mesmo sol que abre os céus E nos criou.
É um mito brilhante e mudo – Assim a lenda se escorre
O corpo morto de Deus, A entrar na realidade,
Vivo e desnudo. E a fecundá-la decorre.
Este que aqui aportou, Em baixo, a vida, metade
Foi por não ser existindo. De nada, morre.
Sem existir nos bastou.
(Fernando Pessoa)
1
Este artigo foi apresentado na 5ª Conferência Internacional da Série «Iberian And
Slavonic Cultures In Contact And Comparison: Myths Of Origin Of Nations – Modern
And Postmodern Approaches», no dia 13 de Maio de 2011, na Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa.
194 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
não se adaptam. O tema da emigração russa era muito popular entre escrito-
res russos (Bunin, Bulgakov, Erenburg, etc.), mas é manifestamente invulgar
para um escritor português. Por isso este romance pode ser considerado
como uma obra sem igual. Nela, um escritor português procura adentrar-se
pela vida e “alma” russa e cossaca, apropriando-se criticamente de uma
cosmovisão à partida considerada estranha.
Neste romance encontramos o profundo conhecimento do autor não
apenas da história da Rússia, do povo russo, da língua, tradição e cultura
russas, mas também das profundezas existenciais do ser humano e a comple-
xa imbricação entre o desenvolvimento individual e o destino colectivo.
“Nikalai! NikalaiI” é uma obra bastante diferente das anteriores de José
Rodrigueis Miguéis. Depois de “A escola do Paraíso”, “Páscoa Feliz”, “Gen-
te de terceira classe”, entre muitos outros romances, o escritor escolhe, como
referimos, os emigrantes russos para o seu novo romance, mais propriamen-
te, cossacos (oriundos das margens do rio Don). Os cossacos, que compu-
nham grande parte do exército da Rússia czarista eram um povo com uma
forte tradição militar (magistralmente descrita em Taras Bulba, de Gogol2).
Rodrigues Miguéis mostra a vida miserável dos seus heróis na emigração,
que vêem defraudadas muitas das ilusões que carregavam ao virem para o
ocidente após a revolução de 1917.
A realidade, como frequentemente acontece, nada lhes oferece de bom3.
Passam fome, vivem uma vida indigna de miséria e de dependência constan-
te da misericórdia alheia. A sua profissão de fé, a sua identidade, a sua resis-
tência à realidade, o seu “mecanismo de defesa” no enfrentamento trágico
com o quotidiano, consiste numa contínua evocação do passado, da pretensa
“vida gloriosa e digna” que tinham na Rússia, comportamento que adquire
foros de elevação nacional mas também de passatempo na ruminação dos
dias. Afinal, é tediosa a falta de uma mitologia, diria Fernando Pessoa.
Enquanto projecção, o mito é também um mecanismo de defesa. O núcleo
ideológico da vivência exilada consiste na evocação e no amor sem limites
ao Czar Nikolau II, que, na sua figura, congrega, soteriologicamente, uma
promessa sebastiânica de recuperação do passado e da identidade pretérita
que se esvai por entre os dedos do presente. O mito da absoluta fidelidade
cossaca ao Czar enquanto encarnação do mundo perdido exige uma constan-
te ritualização deste amor incondicional, na evocação colectiva do seu nome:
“Nikalai! Nikalai!”. Mas, por força da realidade do exílio, esta evocação e o
2
Gogol, Tolstoi, Sholokhov, Grizzly, Petrov, Miroshnichenko, Kalinin, Sofronov, Turo-
verov, etc
3
Há uma anedota russa sobre uma pessoa que, indo parar a um monótono céu, desejava
conhecer o inferno. Foi-lhe permitido ir por uns dias e o inferno afigurou-se-lhe muito
mais divertido. Mas, após ter pedido para ficar a viver no inferno, passou a conhecer
todas as agruras deste. Moral da história: não se deve confundir turismo com emigra-
ção.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 195
o czar falecido, bem poderia passar por ele. Então fazem-no tomar o lugar do
próprio czar. O mito é forte, todas as distorções da realidade podem ser legi-
timadas a partir dele, o mito tem as costas largas. Mesmo os organizadores
da farsa vêem-se dentro da voragem do cumprimento do mito a tal ponto que
o que é realidade ou não já não mais interessa. O que importa é o cumpri-
mento da ideia, nem que se force a realidade a enquadrar-se nesta. O contras-
te entre a realidade e a ficção produzida, ilustra o ambiente de incongruência
dentro do qual viviam os exilados: o “imperador” era afinal, nada mais do
que ex-anarquista alcoólico e perdido, tão perdido quanto Othon e Valódia.
“O jogo entre a verdade e o simulacro torna-se a placa giratória do entrecho
ficcional e a contradição nos termos não pode ser mais óbvia: só um falso
czar pode ressuscitar o verdadeiro czar. Inventar um falso czar é uma forma
de corromper a sua memória e simultaneamente, de a preservar” (Santos,
Gilda p. 139).
Depois de arrecadar fundos e aderentes através desta farsa salvífica,
misto de charco e luar, intentam uma intervenção, com o falso Czar à frente4,
para acabar como domínio bolchevique. Intentona que acaba em fracasso
total: foram capturados logo à entrada no território soviético. Não só não
conseguiram alçar-se ao desejo pessoano de criadores de mitos, mas nem
puderam dar consistência ao mito existente através da criação de um substi-
tuto.
Dizia Tadeusz Kotarbiński que a “A emigração é um funeral após o
qual a vida continua”. A vida russa no exílio, no Ocidente, é uma vida sus-
pensa, uma vida em função do passado que se perdeu e de um futuro que não
se vislumbra. É uma vida que nem presente tem, já que por todos os meios se
procura enfeitar e negar um presente que se revela absurdo, um presente que
não é reconhecido como algo que sequer faça jus ao nome de presente. É
uma vida em auto-negação. A nostalgia pelo mundo perdido é uma nostalgia
pela imagem perdida de si próprio, “anseio de auto-identificação e perma-
nência na infinidade do espaço-tempo, esse mundo subjectivo cujo perpétuo
movimento ou devir nos ameaça a cada instante de alienação ou aniquila-
mento” (José Rodrigues Miguéis).
O mito “imobiliza” o tempo. O Passado, presente e futuro já não exis-
tem enquanto tais, a história é um passado mítico nostalgicamente acarinha-
do e ciclicamente reafirmado num eterno retorno ao mesmo. A irreversibili-
dade real do passado5 entra em contradição com o mito. À ilusão de passado
junta-se a utopia.
4
“Temos apenas que seguir a trilha do herói... e lá onde pensávamos estar sós, estaremos
na companhia do mundo todo” (Joseph Campbell).
5
Um tema recorrente em Rodrigues Miguéis, como no conto “regresso à cúpula da
pena”.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 197
6
Claude Lévi-Strauss (1978).
200 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
7
Refira-se, a titulo de exemplo, o servilismo e a humilhante auto-diminuição subser-
viente patente durante o recente Casamento real no Reino unido.
8
“La historicidad del hombre no reside en la facultad de evocar el pasado, sino en el
hecho de integrar, en su vida individual, trazos comunes a lo humano en general. El
hombre en tanto que praxis, está ya penetrado por la presencia de los otros (sus con-
temporáneos, precursores sucesores) y recibe y transforma esta presencia o bien adqui-
riendo su independencia, y con ella su próprio rostro y su personalidad, o bien perdien-
do su independencia o no alcanzándola (Kosik, K. 1991).
9
Ver as obras de Marc Ferro acerca desta questão.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 201
Referências
Campbell, Joseph (1990), O poder do mito, São Paulo: Palas Athena,
Durkheim, Emile (1968), Las formas elementales de la vida religiosa. Buenos
Aires: Editorial Schapire.
Fernandes, Florestan (1980). O mito revelado. Artigo publicado no Jornal “Fo-
lha de São Paulo” em 08/06/1980.
Hobsbawn, E (1998) Nações e Nacionalismo desde 1780. São Paulo: Paz e Ter-
ra.
Kosik, Karel (1991), El individuo y la historia. Buenos Aires: Editorial Alma-
gesto.
Lévi-Strauss, Claude (1971) Como morrem os mitos. In Science en conscience
de la société. París, Calmann-Lévy, vol. I.
Lévi-Strauss, Claude (1978) Mito e Siginificado. Lisboa: Edições 70
Marques, Teresa Martins (2006) in Jorge de Sena: ressonâncias, e cinqüenta
poemas (introdução e organização de Gilda santos). Rio de Janeiro:
7letras.
Marx, Karl e Engels, Friedrich (1976) Sobre a religião. Lisboa: Edições 70.
Migueis, José Rodrigueis (1985): Nikalai! Nikalai! Lisboa: Estampa.
I – NOTA INTRODUTÓRIA AO LIVRO IMAGINAÇÃO
E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA (1930),
DE LEV SEMENOVICH VYGOTSKY
1
As Obras Completas de Lev Vygotsky foram editadas na URSS entre 1982 e 1984. O
primeiro texto integra o vol. I (1982) e o segundo, o vol. II (1984). Em «Imaginação e
o seu Desenvolvimento na Infância», Vygotsky distancia-se de Wilheim Wundt (1832-
-1920) e recusa entender a imaginação apenas como um tipo de combinatória de
204 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
3
Lev Vygotsky discordou de Jean Piaget (1896-1980). Para Piaget, imaginação simbóli-
ca regulava-se por uma disposição emocional, egocêntrica, orientada pelo imediato
desejo de concretização e prazer (Gajdamaschko, 2005).
206 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
Um dos aspectos que deve ser sublinhado diz respeito ao princípio cria-
tivo inerente ao desenvolvimento humano: ele é comum a todos os seres, é o
fulcro da vida das pessoas. Com alguma frequência reconhece-se que a acti-
vidade dos poetas e dos cientistas é «naturalmente» criativa, no entanto,
temos dificuldade em assumir o mesmo na actividade do «homem comum».
Vygotsky enfatiza a transversalidade do processo criativo aos vários grupos.
Ao considerarmos a criatividade deste modo, encontramo-la nessa situação
na infância e noutros períodos da vida; mas avisa que as formas de criativi-
dade mais elaboradas, específicas, se encontram presentes apenas em grupos
restritos de indivíduos e são reveladas precocemente.
O segundo domínio respeita as características, o tipo e a qualidade das
conexões criadas entre a imaginação e a realidade. Qualquer imagem mental,
por mais fantástica que seja, encerra sinais da realidade externa. Os traços da
imaginação fundam-se nas experiências precoces do homem: a primeira
forma de ligação entre a imaginação e a realidade faz-se a partir das primei-
ras experiências do sujeito com o «outro». É neste espaço entre a realidade
interna e externa, espaço potencial de desenvolvimento, que a imaginação
tem lugar. A segunda forma de ligação entre a imaginação e a realidade cor-
poriza-se no produto final da imaginação com os elementos complexos da
realidade. O quadro que se organiza na nossa mente sobre um qualquer acon-
tecimento, no qual não participámos, resulta do trabalho da nossa imagina-
ção. A imaginação (imaginatio) é, para Vygotsky, uma cognição sensível,
uma capacidade para a reprodução de impressões sensoriais, como Alexan-
der Baumgarten (1714-1762) a definiu. A terceira forma de ligação entre a
imaginação e a realidade é a emocional – «os psicólogos há muito notaram,
que cada sentimento tem não apenas uma expressão exterior corpórea, mas
também interior, que se mostra na escolha dos pensamentos, das imagens e
impressões».
A maior parte das imagens produzidas pela imaginação, quaisquer que
elas sejam, realizadas nos textos literários, nas obras artísticas, estão, de
facto, contaminadas e contaminam através desta lei psicológica da realidade
emocional que o autor formula neste texto. Por último, a quarta forma de
ligação, entre a imaginação e a realidade, enfatiza que a primeira pode criar
o novo, sem qualquer correspondência com a realidade, levando à formula-
ção da pergunta: para que serve afinal a obra artística?
O terceiro domínio que o autor propõe respeita a descrição do meca-
nismo psicológico da imaginação criativa. Ela integra as características sin-
gulares do objecto, as suas modificações, por exemplo, o exagero ou a subes-
timação das situações e dos elementos do texto – a ligação de elementos
imutáveis em novas imagens totais, a sistematização destas imagens, as
associações e as dissociações das impressões através da percepção, a sua
cristalização e corporização – «a paixão das crianças pelo exagero, tal como
dos adultos, tem fundamentos internos [psicológicos] muito profundos» –
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 207
Bibliografia
Davydov, V. V. (1991/1930). Posfácio, in Lev Vygotsky, Tvorchestvo e voo-
brajenie. Psikhologicheskii ocherk: Кniga dlia uchitelia [Criatividade
e imaginação na infância, Ensaio psicológico – Livro para professo-
res] (3.ª edição), Moscovo: Rabotnik Prosvecheniya.
Fróis, J. P. (2011). Introductory Note to “Contemporary Psychology and Art:
Towards a Debate” by Lev S. Vygotsky. Journal of Aesthetic Education,
45 (1), pp. 107-117.
Gajdamaschko, N. (1999). «Lev Semeonovitch Vygotsky». In Mark Runco (Ed.)
Enciclopedia of Creativity, New York: Academic Press, pp. 619-697.
Gajdamaschko, N. (2005). «Vygotsky on imagination: Why an understanding of
the imagination is an important issue for schoolteachers». Teaching Edu-
cation, 16 (1), pp. 13-22.
208 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
4
I. M. Soloviev, professor de educação especial (surdos), colaborador de Lev S.
Vygotsky.
210 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
5
Robert Eugen Gaupp (1870-1953), psicólogo alemão. (Livro citado: Psikhologiia
rebenka [Psychologie des kindes]. Tradução do Alemão. 2.ª edição. Leningrad: Gosiz-
dat, 1926).
6
Pavel Blonsky (1884-1941), psicólogo e pedagogo russo.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 211
prias leis, que diferem, em parte, das leis do discurso oral e estas leis, e a
criança, em parte, ainda não domina bem essas leis.
Muitas vezes as dificuldades que a criança experimenta na passagem
para a linguagem escrita podem ser explicadas por razões internas muito
profundas. A linguagem falada é sempre compreensível para a criança; resul-
ta da comunicação viva com as outras pessoas; é uma reacção completamen-
te natural, é uma resposta ao que acontece à sua volta e a afecta pessoalmen-
te. Ao passar para a linguagem escrita, muito mais abstracta e condicional,
por vezes a criança não compreende para que é necessário escrever. A crian-
ça não detém uma necessidade intrínseca para a escrita.
Isto manifesta-se especialmente nas situações, quando a criança escreve
sobre temas atribuídos na escola. Na velha escola, o desenvolvimento da
criatividade para a escrita dos alunos das classes primárias seguia este curso:
o professor escolhia um tema para a elaboração de uma composição e as
crianças escreviam a composição aproximando a sua redacção, tanto quanto
possível, da linguagem literária dos adultos, ou do estilo dos livros que liam.
Tais temas eram estranhos à compreensão dos alunos, desligados da sua
imaginação e dos seus sentimentos. Não se davam às crianças exemplos de
como elas deveriam escrever e só em casos raros o próprio se referia a um
objectivo familiar e compreensível para a criança, ao seu alcance. Tais pro-
fessores, ao não orientar bem a criatividade literária das crianças, com fre-
quência, matavam a beleza espontânea, as particularidades e a vitalidade da
linguagem infantil e obstaculizavam a aquisição da linguagem escrita como
expressão particular dos seus próprios pensamentos e sentimentos, e incu-
tiam nas crianças, como dizia Blonsky, o jargão escolar, construído a partir
do inculcamento da repetição mecânica da linguagem livresca dos adultos.
«A arte principal do professor no ensino da língua», diz Tolstoi, «e o
principal exercício que deve ser usado na orientação das crianças para a
escrita de composições consiste na atribuição dos temas, mas não tanto na
indicação dos mesmos, assim como na oferta de uma grande variedade de
escolha dos temas, na indicação da extensão da composição e alguns exem-
plos literários iniciais. Muitos alunos inteligentes e talentosos escreviam
composições sem sentido como: “O fogo inflamou-se, começaram a arrastar
as coisas e eu fui para a rua” – o resultado desta escrita era nulo, apesar de o
tema da composição ser rico e ter deixado uma impressão profunda na crian-
ça. Elas não compreendiam o mais importante: por que motivo deviam
escrever e qual era a utilidade da escrita? Elas não compreendiam a arte – a
beleza de representar a vida na palavra e a atracção dessa arte.»7
7
Tolstoy, L.N. Komu u kogo uchit’sia pisat’, krest’ianskim rebiatam u nas ili nam u
krest’ianskikh rebiat? (Com quem se deve aprender a escrever, as crianças camponesas
connosco ou nós com as crianças camponesas?]. In L.N. Tolstoi, Sobranie sochinenii,
T. 15 (L.N. Tolstoy. Obas Completas. Vol. 15). Moscow, 1964.
212 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
8
«As crianças camponesas a partir de nós ou nós a partir das crianças camponesas.»
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 213
cantava um rapaz abandonado. Mas, mesmo neste exemplo, o que nós ouvi-
mos é uma resposta natural a uma infindável dificuldade da sua vida miserá-
vel, da inevitabilidade e obstinação do seu destino.
«Sobre a sua vida todas as crianças escreveram com muito interesse», diz a
autora deste livro. Escreveu: «Algumas eram pouco letradas ou iletradas,
que apesar de todas as dificuldades irrompiam-se para chegar às mesas, ao
papel, e às canetas, parcimoniosamente distribuídas; lutavam por um lugar à
mesa e caneta, e feito o gesto de benzer, durante várias horas respeitosa-
mente e cuidadosamente escreviam, pedindo ajuda dos seus vizinhos, rees-
crevendo e comparando com páginas impressas de um livro despedaçado.
Nestas histórias, com a excepção daquelas onde as crianças queriam abrir-
-se completamente e ficavam caladas ou incrédulas, manifesta-se o traço
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 217
9
Pistrak, Moiseii Mikhaĭlovich (1888–1937), pedagogo e educador russo.
10
Fritz Giese (1890-1935), psicólogo alemão. (Livro citado: Kinderpsychologie. In
Handbuch der Vergleichende Psychologie, Jena, 1922). (N.T.)
220 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
gas de 18,2% para 45,5%, isto é, aumenta mais do dobro, enquanto que a
proporção destes temas na poesia nos rapazes e nas raparigas de dezasseis e
dezassete anos é nula. A proporção relativamente alta de temas tomados da
experiência pessoal nas crianças mais novas é explicada pelo facto de Giese
incluir nesta categoria todos os acontecimentos triviais, episódios do dia-a-
-dia, como por exemplo um fogo, uma viagem fora da cidade, a visita a um
museu. Apenas 2,6% na prosa e 2,2% nos versos são relativos aos aconteci-
mentos ocorridos na escola, o que demonstra o grau de insignificância que os
acontecimentos ocorridos na escola tocam a vida interior das crianças. Os
temas eróticos, pelo contrário, estão mais representados na poesia do que na
prosa; os motivos eróticos ocorrem mais cedo nas raparigas do que nos rapa-
zes: aos doze, treze anos de idade. Enquanto que nos rapazes a percentagem
desta temática é nula, ela alcança o montante de cerca de 36,3% na escrita das
raparigas, decaindo entre os catorze e os quinze anos; aumenta aos dezasseis,
dezassete anos e, novamente, mais nas raparigas do que nos rapazes.
«O mundo dos contos de fadas», diz Giese, «é claramente o mundo da
poesia feminina, que os rapazes ignoram.»
É muito interessante observar a presença insignificante de motivos
sociais na poesia e prosa destes jovens autores alemães. Estes temas estão
ausentes na poesia em todas as idades, enquanto que na prosa alcançam uma
percentagem muito pouco significativa, constituindo cerca de 13,8% nas
raparigas aos doze e treze anos de idade (máximo). Chama a atenção para o
incremento do coeficiente dos temas filosóficos na poesia, o que, sem dúvi-
da, se relaciona com o despertar do pensamento abstracto e o interesse por
questões abstractas nesta idade. Por fim, o coeficiente do tema dedicado à
natureza na poesia e prosa entre raparigas e rapazes está bem representado.
As raparigas de nove anos de idade dedicam a maior parte dos seus tra-
balhos a este tema e os rapazes de treze e catorze anos de idade escrevem
sobre a natureza em metade dos seus trabalhos. As crianças alemãs dedica-
ram uma elevada percentagem dos seus trabalhos aos temas religiosos,
sobretudo as raparigas. No entanto, este tema diminui em percentagem perto
dos 16 anos de idade.
Os dados que comparam os temas e os pontos de vista das crianças nos
seus trabalhos escolares e os da criação livre têm muito interesse. Concluí-
mos que os mesmos temas surgem distribuídos não de modo proporcional
em dois tipos de escrita criativa: o tema heróico, por exemplo, representado
na idade escolar por uma elevada percentagem, cerca de 54,6 %, reduz-se na
escrita livre para 2,4%. Pelo contrário os temas eróticos e filosóficos ocor-
rem apenas em 3% das composições escolares, mas elevam-se a 18,2% e
29% nas composições livres. O mundo dos contos de fadas está representado
neste tipo de criação quinze vezes menos nas composições escritas em casa
do que nas composições escolares. E, por fim, os designados temas restantes,
não figurados na poesia escolar, estão representados em cerca de 28,1% fora
da escola e em casa. Também não coincide o humor das crianças mostrado
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 221
nestes dois tipos de criação. Assim, por exemplo, o humor triste e sério está
representado nas composições cinco vezes mais nos textos escritos na escola
do que em casa. Esta comparação tem uma importância significativa porque
mostra até que ponto a escrita criativa da criança é estimulada e alterada pela
acção de influências exteriores e de que forma ela assume quando é autoge-
rada e deixada a si própria.
A conclusão seguinte refere-se aos dados da presença do humor domi-
nante nas composições literárias analisadas por Giese. A partir destes resul-
tados é fácil ver que os estados de espírito de abatimento e de tristeza se
encontram muito raramente na criação literária das crianças e que os estados
de espírito alegres prevalecem. Assim, se na poesia dos rapazes um e outro
estado estão próximos – 5,9% e 5,2% – em proporção semelhante, nas rapa-
rigas o humor alegre encontra-se em 33,4%, e o humor soturno apenas em
1,1%; na prosa, nos rapazes, dez vezes mais, e nas raparigas o valor é seme-
lhante – predomina a disposição alegre. É de notar a percentagem insignifican-
te do humor aventureiro, porque este género é difícil para a criação das crian-
ças; do mesmo modo o humor cómico e crítico é insignificante quando con-
firmado pela baixa percentagem dos temas satíricos. Mas será necessário sub-
linhar que o humor prevalecente é o factor que mais facilmente se modifica na
escrita criativa da criança e, por isso, nos exemplos referidos, devem ser ape-
nas considerados como indicadores genéricos dentro desta problemática.
Seria desejável que entre nós a escrita criativa das crianças fosse tam-
bém estudada, evidenciando deste modo quais os temas prevalecentes e os
humores nas composições das nossas crianças. Os dados seguintes caracteri-
zam as formas literárias mais frequentes na criação infantil.
Como era esperado, o mais frequente é o relatório ou o ensaio, quer
dizer, a escrita de comunicação prática; em segundo lugar, está a história e
em terceiro lugar o conto. A percentagem de trabalhos relacionados com o
drama (0,1%) e a escrita de cartas (1,9%) são extremamente baixos. Este
último resultado explica-se, porque esta é, no seu sentido psicológico, a for-
ma mais natural da escrita infantil e a menos cultivada na educação tradicio-
nal da criança. Os dados sobre a forma gramatical e o volume das composi-
ções infantis não deixam de ter interesse. Com a idade aumenta a extensão
dos trabalhos das crianças. Uma avaliação do número médio de sílabas na
poesia e na prosa, dos rapazes e das raparigas de várias idades, mostrou que
o aumento em termos externos das composições está dependente do seu con-
teúdo. Shneyerson, ao estudar a criatividade infantil, concluiu que nem o
drama nem a poesia são formas naturais para a criança. No seu entender, se
encontramos estas formas na criação infantil é porque elas são fundamen-
talmente o resultado das influências externas. Por outro lado, a prosa é, em
sua opinião, o género mais adequado à criação da criança. Os dados de V. P.
Vakhterov11 sobre este problema geraram os resultados seguintes: 57% das
11
Vassili Vakhterov (1853-1924), pedagogo russo. (Livro citado: Osnovy novoi pedago-
giki [Os Fundamentos da Nova Pedagogia]. Moskva: I. D. Sytin, 1911). (N.T.)
222 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
singular seria pronunciado cem vezes mais – 542 vezes e os pronomes pes-
soais na segunda pessoa com uma frequência 25 vezes maior – 135 vezes.»
Gaupp sublinha que as crianças dos quatro aos seis anos de idade, quanto mais
desenvolvidas forem, com maior frequência utilizarão as orações subordina-
das. Alguns autores propõem dividir em três períodos o desenvolvimento da
criatividade infantil: o primeiro período é o da expressão oral, que se prolonga
dos três aos sete anos de idade; o segundo período é o da expressão escrita,
que se prolonga dos sete à adolescência e, por fim, o período literário, que se
estende desde o fim da puberdade à idade da juventude. É preciso dizer que,
no fundamental, esta divisão corresponde de facto à realidade, uma vez que,
como já sublinhámos, o desenvolvimento do discurso oral ocorre mais cedo do
que o desenvolvimento da linguagem escrita. No entanto é muito importante
notar que esta superioridade da linguagem oral sobre a linguagem escrita con-
tinua depois de o primeiro período da expressão oral ter terminado. No seu
desenvolvimento subsequente, as crianças expressam-se oralmente com mais
brilho expressivo do que através da escrita.
A transição para a linguagem escrita imediatamente obscurece e dificul-
ta a sua linguagem. O investigador austríaco Linke chegou à conclusão de
que se comparássemos as produções escritas e orais das crianças, constata-
ríamos que o modo como a criança de sete anos escreve é equivalente ao
modo como uma criança de dois anos fala, isto é, o desenvolvimento mani-
festo da criança recua para um nível inferior da linguagem oral na passagem
a uma forma escrita mais difícil. É um facto extremamente notável que as
composições das crianças camponesas, que Tolstoi tanto admirava, não eram
mais do que exemplos da sua expressão verbal. As crianças falavam e Tols-
toi escrevia o que elas diziam e, nas suas notas, registava todo o encanto do
discurso oral infantil. Nestas histórias revelava-se ainda uma característica
original e importante da criação infantil a que alguns autores chamam sincre-
tismo, que se revela no facto de a criação infantil não estar ainda muito dife-
renciada em relação às várias modalidades artísticas, nem em função das
diferentes formas literárias; os elementos da poesia, da prosa e do drama na
produção infantil unem-se num todo.
O processo da escrita criativa que Tolstoi descreveu está muito próximo
pela sua forma do teatro. A criança não apenas ditou a história, mas também
a descreveu e representou os protagonistas da própria história. Nesta ligação
da criação oral e a arte dramática, como adiante veremos, está alicerçada
uma das mais originais e produtivas formas de criação artística na infância.
Um interessante exemplo da expressão verbal foi-nos dado pelo Profes-
sor Soloviov. Diz ele que o discurso escrito de uma criança em idade escolar
é «muito mais pobre e esquemático» do que o discurso oral. É como se esti-
véssemos na presença de dois tipos de reacções verbais. Uma rapariga cam-
ponesa de oito anos e meio, ainda que fosse capaz de escrever, nunca escre-
veria de modo a corresponder cabalmente aos seus pensamentos. Depois de
224 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
12
Adolf Busemann (1887-?), psicólogo alemão. (Livro citado: Padagogische Milien-
kunde. Halle, 1927) (N.T.)
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 225
sua linguagem escrita. Neste sentido, o estilo mais puro é o das crianças
camponesas órfãs e outras que, de um modo geral, foram menos influencia-
das pelo estilo do adulto. Damos alguns exemplos tomados das autobiogra-
fias das crianças abandonadas. Estes exemplos são óbvios em relação ao
modo como o discurso destas crianças está muito próximo do seu discurso
verbal. Semeon Vekshin, de quinze anos de idade, escreve:
«Eu tinha então doze anos, o meu irmãozinho dez anos, e sofríamos por-
que não tínhamos pai e mãe. Como eu era o mais velho tinha às vezes de
cozer o pão: levantava-me manhã cedo – queria voltar a dormir, mas não:
olho para mim e começo a trabalhar. Vejo a rapaziada que está a brincar e
fico desgostoso porque os outros que têm pai e mãe são livres e brincam.
E assim trabalhei e sofri até ao ano de 1920.»
Neste sentido, em geral, quanto mais nova a criança, mais a sua escrita
reflecte as características do discurso infantil e se distancia do discurso dos
adultos. Como exemplos citaremos dois curtos excertos das composições de
crianças: um foi escrito por um rapaz de treze anos de idade, filho de um
trabalhador, e o outro, por um rapaz de doze anos de idade, filho de um
tanoeiro. O primeiro texto é sobre a Primavera que se anuncia assim:
«Depois da neve, depois dos sombrios dias de Inverno, o Sol espreitava-
-nos através da janela com raios primaveris. A neve começou a derreter e
os riachos por todo o lado corriam e a Primavera na sua beleza aproxima-
-se e traz-nos alegria. Eis que o mês de Maio chegou e a relva verde des-
pontou, em todos nós surgiu uma nova alegria.»
13
Estes exemplos da expressão literária infantil, como outras imagens, que apresenta-
mos, foram tomados, na maior parte, do livro do Professor I. M. Soloviev, Criação
226 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
14
Révész, Géza (1878-1955), psicólogo húngaro. (Livro citado, Die Formenwelt des
Tastsinnes. Haag, 1929. (N.T)
228 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
compõe e imagina tudo aquilo de que fala, como acontecia com as crianças
mencionada por Tolstoi.
A criança desenha e fala ao mesmo tempo sobre o que está a desenhar.
A criança dramatiza e compõe o discurso para a sua personagem. Este sin-
cretismo aponta para a raiz comum a partir da qual se separaram todos os
géneros da arte infantil. Esta raiz comum é representada pelo jogo infantil
que serve de etapa preparatória para a criatividade artística. Mas mesmo
quando, desta raiz comum do jogo sincrético geral, se diferenciam formas
independentes, mais ou menos autónomas da criação das crianças, como o
desenho e a dramatização da composição escrita, mesmo nessa situação,
cada uma das formas não se autonomiza completamente das outras, antes
absorve e assimila activamente os elementos das outras formas.
Numa das características da criação infantil encontramos o traço do
jogo a partir do qual ela procede. A criança raramente trabalha durante muito
tempo sobre a sua própria obra, na maioria das vezes completa-a num único
momento. O esforço criativo infantil lembra, neste caso, o jogo que surge a
partir da urgente necessidade da criança e proporciona, na maioria das vezes,
uma rápida e completa libertação do seu sentir.
A segunda ligação com o domínio do jogo consiste no facto de, tanto na
criação literária infantil como nos jogos, na sua base, a criança ainda não ter
cortado os laços com seus interesses e a sua experiência pessoal. Bernfeld
investigou as novelas escritas por adolescentes dos catorze aos dezassete anos
de idade. Em todas as novelas, como refere o autor, há uma marca profunda da
vida privada dos autores, algumas delas representam uma autobiografia disfar-
çada, outras modificam, em grande medida, a base íntima da narrativa, mas
não muito para que ela se perdesse completamente do seu trabalho. Baseando-
-se neste subjectivismo da criação infantil, muitos autores inclinam-se para a
afirmação de que já na infância podemos distinguir dois tipos de escrita: a
escrita subjectiva e a escrita objectiva. Parece-nos que estas duas característi-
cas da escrita infantil podem ser encontradas durante o período de transição,
na adolescência, pois são o reflexo do ponto de viragem que a criatividade
imaginativa infantil experiencia na passagem do tipo subjectivo para o objec-
tivo. Em certas crianças os traços do passado podem ser mais expressivos;
noutras, serão mais marcados os traços da imaginação futura.
Não há dúvida de que este facto está directamente ligado às característi-
cas individuais de uma determinada criança. Tolstoi identificava-as por refe-
rência aos dois tipos que correspondem à imaginação plástica e emocional,
definidas por Ribot. O seu personagem Semka destacava-se pelo seu tipo de
criatividade plástica. A sua narrativa caracterizava-se pelo modo como cons-
truía a sua descrição artística, em que os pormenores mais verdadeiros se
sucediam uns aos outros.
«Ao narrar, Semka via e descrevia tudo o que estava perante os seus
olhos: as tamancas geladas de madeira de bétula e a lama que escorria quan-
230 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
Oleg Chumakov
Introdução
A língua russa é uma das línguas dos eslavos de leste. É a língua mater-
na do povo russo, é uma das maiores, mais divulgadas e mais usadas línguas
na Europa em termos geográficos e em termos do número de pessoas que a
usam como língua materna e como língua de comunicação intercultural e
internacional.
Como assinala Felício (2005), “Entre as modernas línguas eslavas, o
russo ocupa lugar de destaque, tanto pela cultura de que tem sido veículo
como pela sua expansão e número de falantes.”
Como informa o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Federação
Russa1 (2003), muitas universidades da Europa têm reforçado os seus Depar-
tamentos de Línguas Eslavas com pessoal qualificado no campo de idioma
russo e também aumentou o número de escolas e de classes com estudo
1
Tradução livre.
232 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
2
Todas as referências a Berdichevsky em Português são traduções minhas do original
russo. Futuramente, indico apenas as páginas traduzidas e/ou parafraseadas.
3
Citado da revista Tabu do jornal Sol, nº 231, 4 de Fevereiro de 2011, p. 52. Entrevista
com os alunos de russo do ILNOVA.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 233
nos níveis A1 e A2. A fim de atingir esta meta pretende-se expor uma inves-
tigação teórico-prática para conseguir atingir uma maior taxa de sucesso na
obtenção de competências fonéticas e escritas por parte dos estudantes na
aprendizagem da língua russa, de modo a ganhar autonomia no domínio
duma linguagem que tem tradições linguísticas diferentes e tornando mais
acessível o estudo de uma estrutura fonológica e gramatical tão própria e
original para a mentalidade linguística do estudante lusófono.
As problemáticas de ensino e aprendizagem do idioma russo para nati-
vos de Português são bastante abrangentes. Mas o objetivo da presente pes-
quisa é entender melhor a dinâmica espaço-temporal dos processos envolvi-
dos na perceção e produção da linguagem, falada ou escrita, e música. Tam-
bém inclui o estudo da relação entre estes processos e outros mecanismos de
perceção, cognitiva, emocional e motor tendo em conta o papel fundamental
desempenhado pelo contexto.
4
Todas as referências a Okon são traduções minhas do original russo.
5
Todas as referências a Tarkhova, Aslanian e Bolshakova são traduções minhas do
original russo. Futuramente, indico apenas as páginas traduzidas e/ou parafraseadas.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 235
6
Word Segmentation: The Role of Distributional Cues. Journal of Memory and Lan-
guagem 35, 606-621. Article Nº 0032.
7
Statistical Learning in Linguistic and Nonlinguistic Domains. University of Ro-
chbester.
8
INCM-CNRS & Université de la Mediterraneé – França
9
Unité de Reserche en Neurosciences Cognitives – Bélgica
10
INCM-CNRS & Université de la Médterranée – França
11
INCM-CNRS & Université de la Mediterranée – França
12
Départament de Psycologie, Université de Montréal – Canadá
13
Unité de Reserche en Neurosciences Cognitives – Bélgica
14
Songs as an aid for language acquisition. Cognition 106 (2008), 975–983. INCM-
-CNRS & Université de la Méditerranée.
236 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
15
Statistical Learning in Linguistic and Nonlinguistic Domains. University of Ro-
chbester.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 237
Conclusões
estranhar que ao ser utilizada numa sala de aula tenha efeitos positivos quer
nos professores quer nos alunos.
Por outro lado, cada vez mais os alunos que procuram o ensino de lín-
guas estrangeiras têm idades mais avançadas (porque sabem que a aprendi-
zagem de uma nova língua tem manifestos efeitos benéficos na prevenção de
doenças degenerativas cerebrais como a Doença de Alzheimer) e também
para os alunos em idade adulta a musica tem um efeito motivador muito
significativo como se depreende no decurso das aulas, não sendo somente
benéfico em jovens como no estudo realizado.
Em conclusão, “Música em uma língua estrangeira vai muito além do
processo educacional e fornece uma ligação entre a aprendizagem, o desen-
volvimento intelectual e a educação do indivíduo.” (Tarthova, Aslanian e
Bolshakova, 2010, p. 56).
Verdadeiro profissional na área de ensino da língua estrangeira, aplicando
métodos não tradicionais e originais normalmente preocupa-se com exposi-
ções e conclusões de investigações científicas sobre os resultados dos meios e
recursos aplicados. A música neste sentido, no ensino e aprendizagem das
línguas estrangeiras pode ser aproveitada em diversas maneiras graça os últi-
mos alcances na área de recursos, ferramentas e possibilidades que as novas
tecnologias oferecem para que o trabalho do professor seja refletido de modo
ainda mais motivador e criativo para os aprendentes, pois o nível da motivação
e os resultados, que os alunos atingem na aprendizagem, podemos considerar
como um espelho do profissionalismo do professor. A aplicação da música nas
aulas da língua estrangeira é um dos fatores que indica que o professor, de
facto tenta alargar a presença dos métodos de ensino na sala da aula, encontrar
meios e ferramentas adicionais que além dos métodos tradicionais são capazes
de melhorar a compreensão, memorização, o espírito dos alunos na aprendiza-
gem, e, sequencialmente, a capacidade cognitiva e produtividade nos proces-
sos da aprendizagem dos estudantes.
Bibliografia
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Nível inicial]. Izdatelstvo “Russki yazik”. Moscou.
EXCLUSIVO: PRÉ-PUBLICAÇÃO
I
Fiódor Pávlovitch Karamázov
Fiódor Pávlovitch, por exemplo, começou quase do nada, era um dos mais
pequenos proprietários; corria a comer nas mesas alheias, era um papa-
-jantares, e contudo, no momento da sua morte, verificou-se que possuía até
cem mil rublos em dinheiro contado. E ao mesmo tempo, continuou toda a
sua vida a ser um dos extravagantes mais ineptos de todo o nosso distrito.
Volto a repetir: não se trata aqui de estupidez – a maioria desses extravagan-
tes são bastante inteligentes e astutos – mas apenas de inépcia, e de uma
inépcia especial, nacional.
Foi casado por duas vezes e tinha três filhos – o mais velho, Dmitri Fió-
dorovitch, da primeira mulher, e os outros dois, Ivan e Aleksei, da segunda.
A primeira mulher de Fiódor Pávlovitch era da família nobre bastante rica e
distinta dos Miússov, também latifundiários no nosso distrito. Não me esfor-
çarei por explicar como foi possível que uma rapariga com um rico dote,
além disso bonita e ainda por cima uma dessas inteligências vivas tão fre-
quentes entre nós na actual geração mas que apareciam já na geração ante-
rior, se casasse com um insignificante «enfezado», como todos então lhe
chamavam. Pois eu conheci uma jovem, ainda da anterior geração «românti-
ca», que depois de alguns anos de enigmático amor por um cavalheiro, com
o qual de resto se poderia ter casado sem qualquer dificuldade, acabou no
entanto por inventar ela própria obstáculos intransponíveis e numa noite de
tempestade atirou-se de uma arriba altíssima, quase um penhasco, para um
rio bastante profundo e rápido e nele morreu resolutamente pelos seus pró-
prios caprichos, apenas para se parecer com a Ofélia de Shakespeare. É até
possível que, se essa arriba, lugar há tanto tempo escolhido por ela como seu
predilecto, não fosse tão pitoresca, e no seu lugar houvesse apenas uma mar-
gem baixa e prosaica, o suicídio nem tivesse acontecido. Este é um facto
verdadeiro, e é de crer que na nossa vida russa têm acontecido nas últimas
duas ou três gerações bastantes casos como este ou parecidos. De modo
idêntico, o acto de Adelaída Ivánovna Miússova foi, sem dúvida, um eco de
ideias alheias e também da irritação de um pensamento cativo. Ela quis tal-
vez proclamar a independência feminina, ir contra as convenções sociais,
contra o despotismo da família e dos parentes, e uma obsequiosa fantasia
convenceu-a, apenas por um instante, admitamos, de que Fiódor Pávlovitch,
apesar da sua condição de parasita, era um dos homens mais corajosos e
zombeteiros daquela época de transição para melhor, quando na verdade ele
era apenas um palhaço mau e nada mais. O aspecto picante consistia ainda
no facto de que o caso envolveu o rapto, e isso fascinou enormemente Ade-
laída Ivánovna. Quanto a Fiódor Pávlovitch, estava muito bem preparado
para todas essas aventuras, até pela sua situação social, pois desejava apai-
xonadamente fazer carreira fosse como fosse; encostar-se a uma boa família
e receber um dote era muito tentador. Quanto ao amor recíproco, parece que
nunca existiu – nem do lado da noiva, nem do lado dele, apesar da beleza de
Adelaída Ivánovna. De modo que este caso foi talvez único do seu género na
244 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
vida de Fiódor Pávlovitch, que toda a sua vida foi um homem extremamente
lascivo, sempre pronto a colar-se a qualquer saia desde que esta lhe acenas-
se. E entretanto, só esta mulher não provocou nele qualquer impressão espe-
cial do lado da paixão.
besse para quê. Na verdade, talvez tivesse mesmo ido nessa altura; mas, ao
tomar uma tal decisão, achou-se de imediato no especial direito, para se
animar, de se entregar outra vez à mais ilimitada bebedeira. E eis que entre-
tanto a família da esposa recebeu a notícia de que ela morrera em Petersbur-
go. Morreu como que de repente, algures numa água-furtada, de tifo segundo
uma versão, e de forme, segundo outra. Ao saber da morte da esposa, Fiódor
Pávlovitch estava bêbedo; diz-se que correu pela rua e começou a gritar,
erguendo os braços ao céu de alegria: «Agora libertas o teu servo», mas
segundo outros, soluçava como uma criança pequena, de tal modo que,
segundo dizem, até metia dó olhar para ele, apesar de toda a repulsa que
inspirava. É muito possível que houvesse uma e outra coisa, ou seja, que se
alegrasse pela sua libertação, e chorasse pela libertadora – tudo ao mesmo
tempo. Na maior parte dos casos as pessoas, mesmo as malvadas, são muito
mais ingénuas e simples do que de um modo geral supomos delas. E nós
próprios também.
Книга первая
История одной семейки
I – Федор Павлович Карамазов
1
S.Bondi. Os cоntos de Pushkin. In A.S. Pushkin. Obras Completas em 10 tomos. ©
Publicação Electrónica – РВБ, 2000 – 2012. [С. Бонди. Сказки Пушкина. Из
А.С.Пушкин. Собрание сочинений в 10 томах. © Электронная публикация – РВБ,
2000– 2012].
2
A mais antiga forma de versar do povo russo; é um verso livre com rimas adjacentes
determinado pela leitura pausada e entonante.
250 Agência Federal da Rússia “Rossotrudnichestvo”
Era uma vez um velho e uma velhinha que viviam numa cabana ao pé
do mar azul, havia precisamente trinta e três anos. E enquanto o velho pes-
cava com a rede, a velha fiava o seu bragal. Um dia o velho lançou a rede ao
mar e recolheu-a só com limo. Tornou ele a lançar a rede e voltou a recolhê-
-la mas agora cheia de algas marinhas. Terceira vez lançou a rede ao mar e
apanhou então um só peixinho. Não um peixinho qualquer, mas um de ouro
a valer! Começou o peixinho dourado a implorar com voz humana:
– Liberta-me, ancião, deixa-me voltar para o mar! Ofereço-te elevado
resgate por mim: tudo o que desejares!
Ouviu-o o velho pescador com espanto e até um tanto assustado. Ele
pescava havia trinta e três anos e nunca ouvira um peixe a falar e, talvez por
isso, deixou o peixinho dourado voltar para o mar azul, não sem lhe dizer
com carinho:
– Vai com Deus, peixinho dourado! Não preciso do teu resgate. Vai
para o teu mar azul e passeia lá em liberdade!
Voltou o velho para o pé da sua velhinha e contou-lhe a grande maravi-
lha:
– Eu, hoje, pesquei um peixinho e, sabes, não era um peixinho qual-
quer: era de ouro a valer. E, o mais espantoso, falava como nós, e pediu que
o deixasse voltar para casa, para o mar azul. Prometeu-me um resgate de alto
preço: dar-me tudo o que eu desejasse! Mas não tive coragem de aceitar tal
resgate e deixei-o voltar para o mar azul.
Começou a velha a ralhar com o velho:
– És bobo, és paspalho! Não quiseste aceitar o resgate do peixinho: pelo
menos exigias uma tina nova, pois a nossa está toda partida.
MUNDO RUSSO – PУCCKИЙ MИP 251
Vocabulário russo: