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13 A Sabedoria do Siracida (Eclesiastico): panorama SEU LUGAR NA BIBLIA A questao do lugar do Siracida na Biblia é complicada. Principalmente Por razdes historicas, algumas biblias incluem o livro e outras nao. Martinho Lutero segregou 0 Siracida a um apéndice do Antigo Testamento, ao lado de outros livros alegadamente “apécrifos”. Lutero foi influenciado pela decisio dos rabinos judeus do final do século | d.C. Quando definiram o canon das escrituras para sua comunidade, esses rabinos nao incluiram o Siracida (nem a Sabedoria de Salomao) como um livro que considerassem “inspirado”. Nao obstante, mui- tos rabinos continuaram a citar o Sirécida como fonte dotada de autoridade, Outros grupos de judeus, especialmente falantes de grego, incluiram o Si- racida em seu canon de escrituras. Sua coletanea de livros judaicos sagrados foi traduzida para o grego, sendo conhecida popularmente como Septuaginta. Essa foi a Biblia adotada pelos primeiros cristaos. Assim, o Siracida fez parte da Biblia crista até a época de Martinho Lutero. Os catélicos romanos, portanto, conside- ram a obra parte do canon inspirado das escrituras, situando-a entre os escritos sapienciais do Antigo Testamento, ao lado dos Provérbios, de J6 e do Eclesias A maioria das igrejas protestantes segue Lutero, nao aceitando o Sir: como livro canénico, embora seja valorizado como escrito instrutivo e edificante. O mais importante, contudo, é a ponte que 0 Sirdcida e 0 livro da Sabedoria formam entre o Antigo e o Novo Testamentos. Ben Witherington observa, por exemplo, que “tem-se de fato a impressao de ser possivel considerar os mate- riais sapienciais tardios, em particular o Siracida e a Sabedoria de Salomio... como tendo sido os que afetaram de maneira mais profunda as fontes e autores dos documentos do Novo Testamento” (“Wisdom”, p. 384). Logo, essas duas obras merecem um estudo detido, quer as julguemos canénicas, quer nao. O livro costuma ser nomeado “a Sabedoria de Ben Sira” ou “Siracida” ( partir de Sirach, a forma grega do nome do autor). As Igrejas cristas tem usado amplamente o livro para o culto ea instrugdo ao longo do tempo. Desse modo, 130 ele também recebeu o nome de “Eclesidstico”. a partir de “Ecclesiasticus”. palavra latina que significa “(livro da) Igreija” O AUTOR O Siracida é 0 tnico livro do Antigo Testamento no qual o autor se identifica fh . “Jesus. filho de Sirac (= hebraico: ben Sirah), neto de Eleazar de Jerusalém” (50,27). Ele pertencia a uma familia de sacerdotes, mas nao exercia esse oficio. Era um “escriba” treinado, ou seja. homem de boa educacao, tanto secular come religiosa, que poderia seguir varias carreiras: burocrata. diplomata, conselheiro. A partir de seus escritos, parece que ele escolheu prestar alguma espécie de servico ao governo na maior parte de sua vida. Depois do trabalho e/ou da aposentadoria. ele dirigia uma escola para filhos de familias abastadas e influentes de Jerusalém (ver 31,23). A maioria dos autores biblicos consegue manter o anonimato. Nao sabemos seu nome nem quase nada sobre sua vida pessoal e seu carater. Em contraste, sabemos muita coisa sobre o Siracida. e os conhecimentos que sobre ele temos causaram diferentes reacGes aos leitores e comentadores. Alguns leitores modernos, por exemplo. ficam agastados diante do evi- dente orgulho que o autor tem de seus talentos e realizagdes. Outros criticam em especial sua atitude com relacdo as mulheres. Essas reacdes nao levam em conta nem a €poca de Siracida nem sua cultura. Sendo ele membro responsavel ¢ influente de sua comunidade e professor respeitado, esperava-se que fosse sincero ¢ explicito com relac&o as suas capacidades e realizacGes. Ter silenciado teria sido sinal nao de humildade, mas de insensatez. Seus comentérios sobre as mulheres também tém de ser compreendidos sob o pano de fundo da época e da cultura em que ele escreveu (ver 3,2-6; 7,19, 24-26; 9,1-9; e assim por diante). Nao se pretende com isso desculpa-lo ou aprovar suas observacdes, especialmente as mais extremas (ver 25,13-26; 42,14a). O Siracida reflete a mentalidade e a perspectiva tipicas do mundo antigo orientado para os homens. As passagens ofensivas no tocante as mulheres servem como um bom lembrete da necessidade de praticar o discernimento e a capacidade de discri- minac&o ao ler e interpretar as escrituras. Temos de distinguir, a mensagem sadia ¢ doadora de vida, de um lado, e os aspectos potencialmente danosos do tempo e da cultura do autor, do outro. Esses aspectos insalubres encontram inevitavelmente um lugar nos escritos do autor ou da autora. Como sabemos o seu nome e dispomos de tantos dados a seu respeito, hé uma atraente vulnerabilidade humana cercando esse autor. Ele nos fala de sua carreira ¢ de suas realizaces, de suas crencas e opinioes pessoais. Logo, o 151 Sirdcida € provavelmente o mais fragil autor biblico, tendo merecido Criticas por ser tio sincero e ingénuo. Claro que o Sirfcida nfo era um “santo”. Ao mesmo tempo, ha muito a ser apreciado no homem, Seu livro constitui uma sdlida realizagdo como obra liter4ria ¢ como trabalho teolégico, Contém uma sintese consistente e coerente dos ensinamentos sapienciais, bem como conselhos dotados de bom senso numa formulagio atraente e muitas vezes persuasiva. Ao ler e estudar 0 Siracida, pode-se reconhecer com clareza a profunda fé do autor no Deus de Israel e sua dedicag4o ao seu povo e as suas escritur S, Também se pode apreciar a sua dedicagio aos discipulos. Seu desejo de ajud. Jos a compreender ¢ a valorizar a fé e a cultura judaicas lhe proporcionou a motivagao para elaborar o livro, que tem instruido e inspirado tantos judeus ¢ eristios ao longo do tempo. CONTEXTO HISTORICO Os estudiosos aleangaram algum consenso sobre a data e o lugar relativos a0 Siracida, O autor viveu em Jerusalém e completou sua obra por volta de 180 a.C, Esereveu em hebraico, Contudo, por volta de 130 a.C., o neto do Siracida traduziu 0 livro para o grego a fim de torné-lo acessivel A grande comunidade judaica falante de grego de Alexandria, no Egito. Essa tradugao grega representa a forma em que 0 livro ficou conhecido até ha pouco tempo, Nos tiltimos cem anos, foram encontradas partes do texto hebraico original do livro. Dispomos agora de aproximadamente dois tergos da versio hebraica original. O Sirdcida viyeu durante 0 periodo helénico. Completou a obra pouco de- pois de o controle da Palestina ter passado das mos dos ptolomeus egipcios as dos reis seléucidas de Antioquia, No capitulo 11, descrevemos a situagao dos judeus nessa época, As condigdes econdmicas eram sombrias. Muitos pequenos fazendeiros © suas familias foram privados de suas propriedades, enquanto as familias ricas, aristocrdticas, acumulavam parcelas cada vez maiores de terra, para si mesmas como agentes dos dirigentes estrangeiros. Sob essas severas condigbes econdmicas, os valores ¢ relacionamentos mais antigos, fundados em Jagos familiares e de parentesco, comegaram a ruir, Membros da mesma familia ou grupo de parentesco se separavam em estratos econémicos diferentes € até antagonicos, A unidade ¢ a identidade da comunidade judaica, que se mantinha coesi especialmente devido ao seu compromisso com a ajuda mtua e as redes de apoio, estavam ameagadas. Os reis gregos permitiram, a principio, que os judeus conservassem seus proprios costumes e sua religiio, Mas exerciam sutis presses a favor da adoca0 dos hébitos gregos —nomes, roupas, a lingua e a religido gregas. Veio primeir 132 a propaganda. Os gregos tinham conquistado a regido e agora a dominavam militarmente. Tinham estabelecido um florescente comércio, Afirmavam que eram mais “civilizados” do que outros povos por causa de sua filosofia, sua arte, sua literatura e sua cultura, A implicagdo era clara: adote 06 costumes ¢ a “sabedoria” grega € vocé também tera sucesso. Havia ainda atrativos materiais. judeus mais receptivos aos costumes gregos eram favorecidos com altos cargos politicos e lucrativos contratos comerciais. Logo, uma das questdes-chave para os judeus da época era nado 86 a po- sigdo a tomar diante do dominio politico grego, mas o enfrentamento de ten- tativas dos regentes gregos de impor também o dominio cultural ¢ intelectual. Havia sem dvida beneficios para a cultura judaica advindos do contato com essa cultura grega, ou helénica, que é 0 nome que recebe sua manifestag4o no Oriente Préximo. Mas a cultura helénica ocupava uma posic¢Ao privilegiada na sociedade. Logo, havia o claro perigo de o judaismo ser absorvido ¢ ter seu carter essencial distorcido ou perdido. ‘As reacdes dos judeus a esse desafio da cultura grega variaram ao longo de um espectro que ia do acolhimento e aceitacao entusidsticos do modo grego de ser a resisténcia e a rejei¢&o encarnicada em relagao a tudo que fosse grego. Entre esses extremos, havia muitos judeus confusos ¢ que nao sabiam bem o que fazer. Tanto o Eclesiastico como a Sabedoria (ver o cap. 15) representam tentativas de fornecer uma orientacio diante do desafio do helenismo. A RESPOSTA DO SIRACIDA Na época do Siracida, por conseguinte, os judeus enfrentavam crises em duas frentes. Em primeiro lugar, os regentes gregos haviam imposto uma série de medidas econémicas predatérias a fim de drenar a riqueza € os recursos dos povos submetidos. Esse regime econdmico ameacava sabotar e solaparasredes tradicionais-de-lagos de familia-e de parentesco entre os judeus. Esse sistema de apoio e as estratégias de apoio mituo, que remontavam a origem dos judeus como povo, estavam sob cerco. Vinculava-se a esta, uma segunda crise: a sutil atracdo dirigida principalmente ao’ para que abandonassem sua cultura ¢ sua religiao judaicas e Tabela 2 A Resposta do Sirdcida as Duas Crises Enfrentadas pelo seu Povo AMEACA _ Solapamento dos lagos familiares ¢ tribais tradicionais pelas politicas eco- NOmicas predatérias dos gregos. 133 RESPOSTA 1. Enfase naformagao e manutengao de vinculos familiares e da solidaviedadg comunitaria por meio de: : a. adaptacao e desenvolvimento de ensinamentos dos Provérbios no toc ‘ante aos relacionamentos. b. conclamagao a ajuda aos pobres ¢ A compaixio por eles, 2. Assentar todos os relacionamentos humanos no nosso relacionamento com Deus por meio da imagem da Sabedoria (personificada) AMEACA O atrativo dos modos de ser e da cultura gregos. RESPOSTA 1. Usar recursos e materiais gregos para exprimir ensinamentos judaicos, 2. Afirmar a soberania divina a fim de se contrapor a énfase grega na raziio humana: O Siracida estava profundamente mergulhado nas tradigdes de seu povo com respeito a um Deus libertador que se pde do lado do pobre e liberta o oprimido. Ele é mais direto e explicito quanto a essas raizes do que qualquer outro autor precedente. Apesar de suas ligagGes e lealdades de classe alta, ele demonstra uma intensa (ver por exemplo 3,30-31: 4,1-6, 8-10). Ele resiste& dominagio e a exploragao de seu povo pelos dirigentes gregos. Segue nesse aspecto o exemplo dos grandes pro- fetas, em seu clamor de justiga e de libertacio. O génio do Siracida reside em sua capacidade de discernir os perigos que seu povo enfrentava sob 0 jugo opressivo do regente estrangeiro. De certo ponto de vista, seu livro representa um modelo para todo Povo cuja vida e identida- de se vejam ameagadas pelo dominio e pela opressao imperiais. De um lado, 2 obra usa estratégias para combater a deterioragdio da familia e dos lagos de parentesco sob a pressao do regime econémico helénico. Do outro, demonstra convincentemente a continuidade da viabilidade e da relevancia da cultura e da religido tradicionais de seu povo. O judaismo nao seria absorvido pela cultura grega dominante nem teria seu carater essencial perdido ou distorcido. ESTRATEGIAS PARA FORTALECER RELACIONAMENTOS Quem Jé o Siracida pela primeira vez costuma impressionar-se pela “fe levancia” do livro, Surpreendo-me vezes sem conta com o nimero de alunos que comentam como gostam do livro do Sirécida e como aprendem com seus 134 livro contém uma imensa quantidade de sabios conselhos i. aoetc. Boa parte dele é tio aplicavel hoje quanto o foi ha mais de dois mil anos. O agudo interesse do siracida pela promogao ¢ o fortalecimento dos relacionamentos continua a ter ressonancia em leitores contemporancos. Isso representa parte da estratégia do gutor, de contraposigao aos danos causados aos relacionamentos e as redes de apoio familiar pelo regime econémico espoliativo imposto pelos reis helénicos. Ease esforgo de fortalecimento das relagGes pessoais inclui dois movimen- tos do Siracida. Primeiro, ele retoma uma obra sapiencial anterior,.o-bivro . como modelo. Os provérbios também se destinavam a erigir € promover vinculos no ambito da familia, com os amigos e com a comunidade. Em 6,5-17, 0 autor reGne ditos isolados dos Provérbios que se referem a ami- vade. Ele os transforma num ensaio mais amplo sobre “a amizade verdadeira ¢ a falea”, desenvolvendo e aplicando assim os ensinamentos dos Provérbios. Observe-se, por exemplo, os vv. 14-17: Amigo fiel € protegao poderosa, © quem 0 encontrar, tera encontrado um tesouro. Amigo fiel nao tem prego, ¢ 0 seu valor é incalculavel. Amigo fiel € remédio que cura, € 08 que temem ao Senhor o encontrarao. Quem teme ao Senhor tem amigos verdadeiros, pois tal ¢ qual ele é, assim sera o seu amigo. Além de scus esforcos por fortalecer os lacos familiares e de amizade no interior da comunidade, 0 Siracida i i érbit sobre 0 t6pico da riqueza ¢ da pobreza. A cultura grega dominante estimulava oacémulo de riquezas, culpava os pobres por sua lamentavel situagao e deses- timulava tentativas de ajudé-los. O livro dos Provérbios também contém alguns ditos que menosprezam os pobres ¢ Ihes atribuem a culpa pela pobreza. O Sirdcida elimina essas observa- Ges ¢ acentua em seu lugar a compaixiio.c.o.respeito pelos pobres. Ele insiste na obrigagfio de Ihes prover o sustento ¢ ajuda-los, Ensina que a riqueza pode ser um bem relativo, mas nao o grande bem que os Provérbios alegam que iio. “Com pouco ou muito esteja contente” (29,23) — aconselha. “Sao coisas i ii para preservar a propria intimidade” (29,21). © Sirdcida faz um segundo movimento em prol do fortalecimento dos relacionamentos familiares ¢ das redes comunitarias de apoio. Ele fundamenta. Desse modo, formula sua propria versio de uma “espiritualidade sapiencial”. Ele estabelece 135 esse vinculo por meio da A Sabedoria vem dy Deus como dadiva divina aos seres humanos. Ela assume a forma concreta dy Tora, ou Lei, de Israel. Os seres humanos aceitam e tornam sua essa dédiva da Lei/Sabedori, por meio da vivéncia e da pratica dessa Lei, especialmente as leis © costumes que orientam e determinam os nossos relacionamentos com as outras pessoas — a familia, os amigos, os estrangeiros ¢ Deus. Tornamo-nos sAbi0s. ao viver, de-maneira:sdbia, 0 que equivale a viver de acordo.com 0s. preceitos.darei « pratica-los. Na linguagem dos escritores sapienciais, € isso que significa “te. mer a Deus”: “ "= vi i in Logo, molda-os uma “espiritualidade” que guia e permeia todos os aspectos da vida, conferindo-lhes vida ¢ significado. Praticar a Lei se traduz em participar da propria sabedoria de Deus. Traduz-se também na criagéo e manutengao de relacionamentos. Logo, praticar a Lei nos liga ao mesmo tempo a Deus ¢ ao préximo. _gregos; Deus ja dotara seu povo da plenitude da sabedoria por intermédio da Lei, que dera por meio de Moisés. Essa “plenitude da sabedoria” nao era senao a Sabedoria (personificada), que viera de Deus e fizera de Isracl sua morada: A Sabedoria louva a si mesma se gloria no meio do seu povo. (..) “Eu sai da boca do Altissimo e recobri a terra como névoa.” oo Entao o Criador do universo me deu uma ordem. Aquele que me criou armou a minha tenda, e disse: “Instale-se em Jac6é ¢ tome Israel como heranga”. (24,1,3,8) SABEDORIA HEBRAICA E APRENDIZADO GREGO 0 Siracida desenvolveu e ampliou os ensinamentos dos Provérbios sobre 0s relacionamentos como forma de combater a crosio dos vinculos familiares ¢ tri- bais. Mas também respondeu aos desafios representados pelo atrativo da cultura ¢ do modo de vida gregos. Na qualidade de cultura dos conquistadores, cla se apresentava como “superior” a cultura ¢ aos costumes dos povos conquistados, como “mais civilizada” que a deles. O-helenismo exerciauma enorme atragao sobre muitos judeus, especialmente jovens, Estes reconheciam os intimeros 136 aspectos positivos da cultura grega. A arte ea literatura gregas se vangloriavam de grandes realizagdes que todos podiam ver ev reconhecer, Os filésofos gregos examinaram 0 significado da vida ¢ promoveram a aprendizagem. Os gregos tinham uM grande respeito pelo intelecto humano: sua capacidade de raciocinar, de aprender ¢ de pesquisar, de buscar a “sabedoria”, Muitos judeus devem ter questionado se a cultura ea religiio de seus ancestrais eram adequadas para Jidar com esse Novo mundo de que eram parte, Para o Sirdcida, havia poucas dtividas quanto ao valor, a relevancia ¢ a verdade da fé e das tradigdes de seu povo. Ele admitia abertamente o perigo s judeus tinham diante de si, Sua resposta ao dilema de muitos de seus assumiu duas formas. Antes de tudo, ele alega que a Ele chega a usar recursos € materiais gregos para provar sua tese, Mas ele remodela esses materiais e recursos de uma maneira totalmente judaica ¢ compativel com a tradigao biblica anterior. Um paralelo amplamente aceito envolve nao a filosofia, mas a literatura grega. Eclo 14,18 representa um claro empréstimo feito pelo Sirécida a uma passagem da Ilidda de Homero: que 0 conterraneos judeus ‘As pessoas vao e vém, como as folhas, que surgem ¢ caem das arvores todos os anos. As folhas do outono sao langadas ao solo pelo vento; mas quando volta a primavera, a floresta faz que surjam novas folhas. Assim também sao as geracdes de homens, 0 novo brota enquanto o velho passa. (The Iliad, 6.146-49; cf. Skehan e Di Lela, Wisdom of Ben Sira, p. 260). Como abundantes folhas em arvore frondosa, que faz que umas caiam e outras brotem, assim sucede com as geragoes de carne e sangue: uns morrem enquanto outros nascem, (Eclo 14,18) Assim, 0 Siracida demonstrou aos seus companheiros judeus que o melhor do pensamento estrangeiro nao precisa representar um perigo a sua fé. Na verdade, pode até mesmo ser incorporado a uma obra autenticamente judaica como a sua. a a fim de apreciar e usar o que ha de melhor no aprendizado grego. Uma segunda modalidade de resposta do Sirdcida ao helenismo envolveu a afirmacdo dos fildsofos gregos acerca da i a —a razio humana como medida de si mesma. A fim de se contrapor a essa afir- mado, ele reafirma a primazi a tnica sabedoria auténtica é aquela que reconhece a soberania divina. Para o Siracida, “o temor a Deus” consti- tui o ponto de partida exclusivo, 0 centro da busca humana da sabedoria. A expresso “temor a Deus”, ou seus equivalentes, ocorre quase sessenta vezes 137 no livro. Além disso, os dois capitulos iniciais (clo 1,1-2,18) “presentam i “ “ i detalhado tratado sobre a sabedoria enquanto “temor a Deus". Com efejig ‘ , 7 Hilo, 9 livro comega com a afirmagio; Toda sabedoria vem do Senhor e esta com ele para sempre, (1,1) UMA DIMENSAO LIBERTADORA Os dois movimentos da resposta do Siracida as crises que seu povo ep. frentava contém uma dimensiao libertadora, Representam estratégias por ele utilizadas para ajudar seu povo a sobreviver ¢ a reagir as pressOes opressivas ¢ espoliativas do regime helénico. De um lado, ele se contrap6e ao efcito corrosive das politicas econdmicas gregas sobre as redes de apoio familiares e comunita- rias. Do outro, reafirma a identidade judaica, o valor de sua cultura e de suas tradigdes, bem como a verdade de suas alegacées de fé. Ele resiste as tentativas dos gregos no sentido de impor sua cultura e sua religiao como recurso para subjugar e explorar 0 povo judeu. O LIVRO COMO UM TODO Os cii jo livro constituem um manual do compor- tamento moral de um judeu piedoso do século I a.C. O Sirécida 0 compilou principalmente a partir de suas anotagGes para as palestras que fazia para os jovens judeus do sexo masculino de sua escola. Ele usa as formas litera tipicas dos sdbios, especialmente 0 mas: “proyérbio”. Porém, ao contra- rio do livro dos Provérbios, com suas coletaneas de ditos de uma Gnica linha, a obra do Siracida contém grandes unidades de “discursos”, ou instrugoes, de dez a vinte e uma linhas, Outras formas literarias presentes sao o hino de louyor (ver 1,1-10; 18,1-7; 39,12-35 etc.), as'stiplicas (22,27-23,6; 36, 1-22), a narrativa autobiografica (51,13-30), listas owonomasticas:(como parte de um hino de louvor em 39,16-35 e 42,15-43,33) ea “narrativa didatica” (0 “Elogio dos Antepassados” em 44,1-50,24). O livro apresenta trés grandes divisdes (1,1-23,28; 24-1-43,33; 44,1- 50,24), contendo um prefacio e uma conclusao com apéndices (50,25-51,30) Afora isso, nao parece haver nenhuma organizacao especifica do assunto. Logo, alguns comentadores oferecem uma relagdo descritiva do contetido do livro contendo titulos de topico seguidos por referéncias a capitulos e versiculos (vet, por exemplo, Skehan e Di Lella, Wisdom of Ben Sira, pp. 4-6). Dois poemas 138 alfabéticos, um No comego (1,1 1-30) ¢ o outro no fim (5113-30), formam uma jnclusio que serve para unificar 6 todo, O PREFACIO DO NETO O principal acesso ao livro do Siracida até recentemente era a traducéo gre- ga feita por seu neto. Esse neto completou a tradugio por volta de 130 a.C. na cidade egipcia portudria de Alexandria. Ele 6.0 prefacio se assemelha a outros prologos como o do Evangelho de Lucas em Le 1,1-4, As informagées historica: fornecidas pelo neto permitiram aos estudiosos atribuir uma data tanto ao Prefacio como ao proprio livro (antes de 180 a.C.). Entre outras coisas, 0 neto relata: Assim, meu avo Jesus, que se dedicou especialmente a Lei e aos Profetas, bem como aos outros livros de nossos ancestrais, e que chegou a ter com relacao a eles consideravel proficiéncia, foi levado a escrever algo perti- nente a instrugdo e a sabedoria, de modo que, conhecendo também este livro, os amantes do saber pudessem fazer um maior progresso no viver segundo a Lei. PRIMEIRA GRANDE DIVISAO (1,1-23,28) O poema inicial sobre a “Origem da Sabedoria” (1,1-10) serve de introdu- cao ao livro como um todo. Segue-se um poema alfabético (vinte e dois versos, igual ao namero de letras do alfabeto hebraico) que faz o clogio da Sabedoria ea identifica com 0 “temor ao Senhor”, Os vinte e dois capitulos que vém em seguida contém instrug6es sobre uma variedade de topicos, incluindo a confianga_ 26). A instrugao sobre os deveres para com os pais (3,1-16) é uma passagem frequentemente citada; por exemplo, os vy, 12-16: Meu filho, cui endo o abandone enquanto ele viver. Mesmo que ele fique caduco, seja compreensivo e nao o despreze, enquanto voce esté em pleno vigor, pois a caridade feita ao pai nao sera esquecida, . e valeré como reparacao pelos pecados que vocé tiver cometido. No dia do perigo, 0 Senhor se lembrara de voce, e seus pecados se derreterao como geada ao sol. Quem despreza seu pai 6 um blasfemador, € quem irrita sua mae sera amaldigoado pelo Senhor. 139 SEGUNDA GRANDE DIVISAO (24, 1-43,33) Tal como o trecho introdutério da primeira grande diy: a comega com um longo poema de louvor 4 sabedoria (24,1 33). sana tem prosseguimento com mais instrugdes sobre dar esmolas (29,8-13) ¢ Parte como se comportar mesa (31, 12-32, 15), entre outros assuntos, Em 39 ‘bre © Siracida oferece uma descrigdo do ideal para cuja tealizagao ele se et 1, na vida de escriba; por exemplo, os vy. 6-9: ou Se for da vontade do supremo Senhor, ele ficara repleto do espirito de inteligéncia e fara chover palavras de sabedoria e agradecer’ ao Senhor na oragao. O Senhor dirigira seu conselho e sua ciéncia, e ele meditara nos mistérios divinos. Ele fara brilhar a instrugao do seu ensinamento e se orgulhara com a Lei da Alianga do Senhor. Muitos elogiarao a sua inteligéncia, e ele nunca sera esquecido. Nao desaparecera a sua recordagao, ea sua fama vivera de geragdo em geracao. A TERCEIRA GRANDE DIVISAO (44, 1-50,24) A divisao final do livro tem como titulo “Elogio dos Antepassados” ou “Elogio dos Predecessores Longinquos”. Representa a parte mais unificada ¢ coesa do livro, Em oito capitulos, o Siracida revé a hist6ria de seu povo por meio de narrativas sobre os grandes herdis de seu passado. Ele comega com ancestrais como Henoc, Noé a Abrado. Passa pelos juizes. reis, profetas, sdbios etc, Ele os agrupa em doze categorias e trata, com riquez de detalhes, de quase trinta herdéis individuais. _ Nao hé na Biblia coisa alguma que se compare a essa notével compos!s2° que forma a parte final do Eclesidstico. Essa segdo representa a primeira vez nas escrituras em que seres humanos, e nao Deus, sio louvados. Além di 7 pela primeira vez um sdbio judeu combinou a tradigao e a abordagem saple! judaica com os temas biblicos mais conhecidos da histéria de Israel: 0 EX° eas aliangas, os reis e os profetas, Logo, o Siraécida criou uma nova sintese teolégica que abrange tanto criagdo como a histéria. Seu trabalho reflete o projeto mais amplo que esta? em execugao entre os outros autores e tedlogos de Israel na criagdo da propre o 140 piblia. As tradigdes sacerdotal, profética e sapiencial estavam sendo reunidas ecombinadas num todo mais amplo que descrevia toda a hist6ria, a comegar pela criag: 10, que se desenvolvia sob os olhos de Deus e com a sua sabia e potente orientacao, Para o Siracida, a meta dessa historia foi alcangcada com 0 estabelecimento em Jerusalém da comunidade centrada no templo, governada pelo sumo sacer- dote Simeao II (219-196 a.C.). Assim, ele reserva uma larga parcela do ultimo capitulo desse “Elogio dos Antepassados” (50, 1-24) a esse “lider de seus irmaos e orgulho de seu povo” (v. 1). Um duplo propésito parece estar atuando na segao final do Eclesiastico. Em primeiro lugar, seu povo obviamente precisava de consolo e de esti- mulo diante das cruéis pressdes do implacavel regime helénico. O exemplo de sua longa linhagem de herdis serviria para aumentar sua confianga e revigorar sua esperanga na intervencao inevitdvel de Deus em seu resgate do infortinio. Uma segunda raziio para a composigao dessa obra sui generis residia em sua intencado de demonstrar a relevancia e o valor permanentes das tradicSes culturais e religiosas de Israel. Nessa secao do livro, ele segue de perto as con- vengoes do encomium, ou “canto de louvor”, grego. Para ele, contudo, a forma encomium se torna um veiculo para contar a historia e a sabedoria judaicas. Desse modo, a forma literaria pode ter sido grega, mas o contetido vinha das tradigdes judaicas. Para o Siracida, o exemplo desses herdis e dos ideais que representam tem mais relevancia e mais potencial de doagao de vida do que tudo aquilo que a “sabedoria” grega tem a oferecer. QUESTOES DE REVISAO 1, O que sabemos a respeito do autor da Sabedoria do Siracida? Como esse conhecimento sobre sua identidade e personalidade afeta nossa leitura e in- terpretagdo de sua obra? 2. Descreva o contexto histérico do livro. Quais foram algumas das reagdes dos judeus ao programa de helenizagao dos regentes gregos? 3. Descreva as duas crises que os judeus enfrentavam na época do Siracida. 4. Como o Siracida respondeu as ameacas ds redes tradicionais de lacos familiares e de parentesco? 5. Quais os dois movimentos que ele faz a fim de construir ¢ manter os relacio- namentos no mbito da familia, entre amigos e na comunidade? 6. Como 0 autor adapta e usa o Livro dos Provérbios e seus ensinamentos? 141 10. 142 Que uso faz 0 Sirdcida da imagem da Sabedoria (personificada) a 4j assentar todos os relacionamentos humanos no nosso relacionamenta i! Deus? mo com Como ele respondeu ao desafio representado pelo atrativo da culty de vida gregos? Que papel desempenhou o “temor ao Senhor” dele? ©do modg Na resposty Descreva sucintamente a estrutura e as caracteristicas do livre do § como um todo, racida Descreva a segio final do livro, “Louvor aos Antepassado: Quais os dois propésitos que parecem atuar nessa secao? (44,1-50,24)

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